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Capítulo V • Fatos Jurídicos 285

Capítulo V

Fatos Jurídicos

1. FATOS JURÍDICOSA teoria dos fatos jurídicos é a mais importante para o estudo de todo o Direito Civil, quiçá

de todos os ramos do Direito. Com efeito, é através da ocorrência de fatos juridicamente relevan-tes que o Direito se realiza, transforma-se ou se extingue.

Mas nem todos os fatos da vida humana são tidos como juridicamente relevantes. Fatos ocorrem que não importam para o Direito, porque não são capazes de influenciar em nada a es-fera jurídica das pessoas ou das coisas. Um simples acontecimento do cotidiano, sem nenhuma modificação relevante, não será qualificado como fato jurídico.

Serão jurídicos, portanto, todos os fatos que possam trazer consequências para o mundo jurídico, quer seja criando, modificando, extinguindo, resguardando ou transmitindo direitos. Os fatos da vida que não sirvam a esses efeitos não são classificados como jurídicos (o acordar dia-riamente, o escovar os dentes, uma brisa calma etc.), a não ser que, ainda indiretamente, possam ser considerados causadores de efeitos como a criação, a modificação, a transmissão, a garantia e a extinção de direitos.

Para melhor enquadramento dessa matéria entre os tópicos já vistos, relembremos as três categorias distintas de fenômenos estudados na Teoria Geral do Direito Civil:

Sujeitos de direito Objetos de direito Relações jurídicas

são todas as pessoas capazes de ad-quirir direitos. Aqui tratamos de pes-soas capazes ou incapazes, porque estas podem adquirir direitos, mas, para exercê-los, devem ser represen-tadas ou assistidas, conforme o caso; fala-se também, nesse ponto, de pessoas naturais ou jurídicas, porque todas são capazes de adquirir direitos ou de transmiti-los a outrem;

são todos os bens suscetíveis de apropriação e que podem ser ob-jeto de interesse pelos sujeitos de direito. Sua divisão e classificação já foi elucidada nos tópicos ante-riores;

a relação jurídica é o vínculo capaz de unir dois ou mais sujeitos de di-reito ou esses sujeitos com um ou mais objetos de direito. Para que sur-ja a relação jurídica entre sujeitos ou entre sujeito e objeto, é necessária a ocorrência de um fato jurídico.

A relevância do estudo dos fatos jurídicos, portanto, surge nesse ponto. Sem a ocorrência de um fato capaz de criar, modificar, resguardar, transferir ou extinguir um direito, não haverá rela-ção jurídica a ser disciplinada pela norma legal. Toda a existência do direito, portanto, depende da ocorrência dos fatos juridicamente relevantes.

Ainda que o fato seja caracterizado por um agir contrário ao direito (ato ilícito), será qualifi-cado como fato jurídico porque do dano também surge um direito, qual seja, o de ressarcimento em favor do prejudicado e em detrimento do ofensor.

Mesmo em outros ramos do Direito, a categoria do fato jurídico estará sempre presente. No Direito Administrativo, por exemplo, os atos administrativos, tais como concebidos pela teoria administrativista, nada mais são do que atos jurídicos especificamente praticados pela Adminis-

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tração Pública. No Direito Processual, os atos processuais são atos jurídicos capazes de influen-ciar na relação jurídica processual. Até no Direito Penal, a prática do ato delituoso se configura como fato jurídico, porque vincula o criminoso a uma relação jurídica com o Estado, o qual passa a ser titular do chamado jus puniendi (direito de punir) em seu desfavor.

A parte geral do Código Civil de 2002 adotou nova nomenclatura para os fatos jurídicos. A legislação de 1916 utilizava, de forma genérica, a designação atos jurídicos para todos os atos que visassem criar, conservar, modificar, transmitir ou extinguir direitos, fossem eles negociais ou não.

Muito embora a teoria dos negócios jurídicos já fosse conhecida no início do Século XX, máxime em face do Código alemão, nosso antigo Estatuto não trouxe em suas definições a dife-renciação entre ato jurídico stricto sensu e o negócio jurídico.

2. EFEITOS DOS FATOS JURÍDICOS – A AUTONOMIA DA VONTA-DE E A MITIGAÇÃO DO VOLUNTARISMO JURÍDICO

Como vimos, os fatos jurídicos se constituem na mais importante categoria do direito en-quanto dinâmica de regulação da sociedade. Se o nascimento, por exemplo, é um fato jurídico, podemos concluir sem dificuldade que, sem os fatos, sequer se haveria de falar em sujeitos de direito (pessoas naturais ou jurídicas), pois as pessoas naturais não nasceriam e as jurídicas não seriam criadas pelas naturais.

Assim também os direitos: sem fatos jurídicos, não se criam direito objetivo (por (costumes ou processo legislativo) nem subjetivo (por contratos ou atos ilícitos, dentre outros).

Igualmente se pode falar dos bens jurídicos, pois, sem os fatos jurídicos, não se falaria em objeto de direito, já que não teríamos agentes para comporem as relações jurídicas em torno dos bens.

Para o nascimento dos atos jurídicos (que são, como veremos, os fatos que derivam da ação humana), é necessário que concorram certos elementos de existência, como o agente, a vontade, a forma e o objeto. O segundo desses elementos citados (a vontade) tem sido alvo de numerosos debates doutrinários, principalmente do ponto de vista do objetivo primordial dos atos e negócios jurídicos, que é a geração de seus efeitos. Podemos classificar os efeitos dos fatos jurídicos em:

a) efeitos aquisitivos: os fatos, atos e negócios jurídicos assim se qualificam por gerarem criação, aquisição, modificação, transmissão, conservação e extinção de direitos. O efeito aquisitivo é aquele pelo qual, através do fato, decorre em seguida o acréscimo de um bem ou direito ao patrimônio do agente, como na tradição, na transcrição do título aquisitivo no registro de imóveis, na reunião dos requisitos para a usucapião, na abertura da sucessão etc. Diz-se, para efeitos didáticos, que a aquisição de direitos pode ser:

a1) originária ou derivada: originária é a aquisição de bens ou direitos sem relação jurí-dica com algum eventual titular anterior. Assim, na caça e pesca, por exemplo, adqui-rem-se bens sem relação jurídica com titular anterior. Por aquisição originária podemos falar, também, em criação de direitos, já que, determinados casos, como no do exemplo citado, existiam os objetos (bens), mas sobre eles não existiam direitos, que foram criados a partir do fato jurídico; a aquisição derivada, por sua vez, decorre de relação jurídica com o titular anterior;

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a2) gratuita ou onerosa: gratuita é a aquisição de direito sem necessidade de sacrifício da contra-parte para fazer jus à sua atribuição; onerosa, aquela em que se exige sacrifício correspondente por quem adquire o direito;

a3) a título universal ou singular: aquisição a título universal é aquela em que o adquiren-te recebe um patrimônio, seja na integralidade ou uma cota-parte dele, como no caso da sucessão causa mortis, por exemplo; singular é a aquisição de certos e determinados bens ou direitos;

a4) simples ou complexa: a aquisição simples é a que depende de um único fato e a com-plexa é a que demanda vários fatos, sejam eles sucessivos ou simultâneos;

a5) imediata, eventual ou a termo: imediata é a aquisição de direitos que decorre imedia-tamente do fato para a qual se destina; a termo é a aquisição em que o agente passa a ser titular do direito de forma imediata, no entanto só pode exercê-lo após o advento de um termo ou data prefixada pelos agentes; por fim, a aquisição eventual se dá quando os agentes condicionam a aquisição do bem ou direito a um evento futuro e incerto (condição).

b) efeitos modificativos: os fatos jurídicos não servem apenas para criar e determinar a aquisi-ção de direitos, mas também para que esses sejam modificados. Assim, por exemplo, em um determinado contrato, podem as partes alterar o seu conteúdo através de um ato substitutivo, como na transação e na dação em pagamento, por exemplo. Essa modificação pode ser sub-jetiva, se forem substituídos os sujeitos de direito componentes da relação jurídica (partes) ou objetiva, caso sejam substituídos o objeto ou a qualidade da prestação.

c) efeitos translativos: os efeitos translativos são aqueles que derivam da potencialidade que tem o fato jurídico de transmitir bens ou direitos de uma pessoa para outra. A tradição, por exemplo, guarda o efeito de transmitir a propriedade do alienante para o adquirente.

d) efeitos conservativos: esses são os efeitos pelos quais a prática de determinados atos visa resguardar o bem ou direito da ação deletéria do tempo ou de terceiros. Assim, por exem-plo, são atos de conservação: (d1) os atos de defesa dos direitos, através do ajuizamento de ações (de conhecimento e de execução), não só para evitar a prescrição e a decadência mas para efetivar a tutela do interesse; (d2) as ações e medidas cautelares para que se garanta o resultado prático efetivo do processo de conhecimento ou execução; (d3) atos de garantia do direito, como as cláusulas acessórias que estabelecem as garantias reais ou pessoais da satisfação do crédito, de que são exemplo a hipoteca, o penhor, as multas moratória e com-pensatória, as arras, a fiança, o aval etc; (d4) atos de autodefesa, que podem ser visualizados nas exceções admitidas pela lei à proibição do exercício arbitrário das próprias razões, como no desforço imediato para defesa da posse e na autorização legal para que o credor de obri-gação de não fazer desfaça o ato praticado pelo devedor, em caso de urgência (CC, art. 251, parágrafo único), evitando, assim, o perecimento do objeto ou do próprio direito.

e) efeitos extintivos: estes são o fim da relação jurídica. Determinados fatos têm por finalidade extinguir o direito ou a obrigação do agente, como a transferência da propriedade (em que se extingue o domínio do transferente), o abandono, o pagamento (que extingue o direito do credor), a condição resolutiva, a prescrição, a decadência, o perecimento do objeto e qual-quer outro fato que acarrete o falecimento do direito.

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288 Parte II • Parte Geral

Elucidados os efeitos dos fatos jurídicos, podemos observar, de pronto, que alguns deles (nem todos, é bom alertar desde logo) exigem, em maior ou menor extensão, o concurso da von-tade.

Veja-se que, na vontade reside um dos pontos de maior destaque do direito no mundo mo-derno. Vale lembrar, ainda que de forma bastante sintética, que somente a partir da Revolução Francesa é que a história do mundo ocidental passou a conceber a liberdade e a vontade como predicados de todos os cidadãos, sem exceção.

A vontade, no entanto, levada às últimas consequências nas primeiras legislações liberais, de que é exemplo máximo o Código Civil francês de 1804 (Código de Napoleão), pode encami-nhar o ordenamento jurídico a uma realidade de distorções e falhas na missão máxima do direito, que é a da pacificação da sociedade.

Com efeito, muito se discutiu, inclusive, se a vontade era, de fato, elemento verdadeiramente criador de efeitos jurídicos, já que, de qualquer forma, a vontade não seria capaz de agregar a nenhum fato o efeito jurídico se este não fosse previsto ou não proibido pela lei.

Caio Mário da Silva Pereira proclama, com acerto, a fragilidade dessa discussão, já que, por outro lado, a lei, também, sem o concurso da vontade, não seria elemento suficiente para a geração de efeitos, máxime no estado democrático de direitos, em que, embora se conviva com o mandamento constitucional da legalidade (CF, art. 5º, II), segundo o qual ninguém será obrigado a fazer deixar de fazer nada senão em virtude de lei, tem-se, por outro lado, como fundamento da República (CF, art. 1º, IV), o postulado da livre iniciativa.

Como se vê, o voluntarismo jurídico é mola propulsora do direito da qual não se pode afastar, e cuja presença, nos estados democráticos, é inegável.

Daí se fala, portanto, em autonomia da vontade, pela qual é a vontade do agente que de-termina a sua prerrogativa de vincular-se ou não a um direito ou dever; fala-se também em auto-nomia privada, pela qual, além de o cidadão escolher livremente se se obriga ou não, poderá ele determinar o conteúdo da obrigação.

É a vontade, portanto (embora esquecida como elemento essencial do negócio jurídico no art. 104 do Código Civil), o motor do chamado comércio jurídico, é a condição sine qua non para que o cidadão saia da ampla e irrestrita liberdade para se vincular a uma obrigação, perdendo, com isso, parcela dessa natureza livre, pois a partir daí, assumirá o compromisso de cumprir bem e fielmente aquilo a que contratou.

Esse preceito, na verdade, já está presente desde o Direito Romano, quando se formulou a máxima pacta sunt servanda, pela qual o indivíduo, uma vez obrigado, deve dar cumprimento à sua obrigação. Repetindo, no entanto, o que já se disse, se levada às últimas consequências, sem um sistema de freios e contrapesos, a autonomia da vontade pode desaguar em um sistema jurídico recheado de falhas e injustiças.

Basta imaginar a situação imediatamente decorrente da chamada Revolução Industrial, em que se noticia que na Rússia czarista (ou pré-bolchevista) a liberdade de contratar acarretava verdadeiros absurdos, como a contratação de operários para jornadas de trabalho desumanas, de doze, quatorze ou até mesmo dezesseis ou dezoito horas diárias, já que, sem um sistema de freios e contrapesos, o trabalhador ficava à mercê daqueles que disponibilizavam as ofertas de trabalho, sob pena de, sem emprego, não obter condições de subsistência.

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Por isso, as legislações modernas contêm vários instrumentos de mitigação da autonomia da vontade e da autonomia privada, de forma que, embora a vontade continue a ser (em regra) elemento primordial para a prática dos atos jurídicos (sobretudo dos negócios jurídicos), existem limites legais e sociais para a sua manifestação ou declaração na vida prática, como a boa-fé ob-jetiva, a função social do contrato, a proteção dos hipossuficientes (consumidores, inquilinos etc) e outros tantos exemplos que servem para refrear a ambição do ser humano em conseguir lucro desmedido à custa, muitas vezes, da dignidade do próximo.

Pode-se dizer, portanto, que o voluntarismo jurídico, ainda hoje uma regra, encontra-se mi-tigado, de forma que as partes podem livremente contratar e determinar o conteúdo do negócio, no entanto, devem respeito aos limites impostos, em última análise, pelo princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), que orienta, fundamentalmente, institutos como a boa-fé, a função social (da propriedade e do contrato), a proteção dos hipossuficientes, e, porque não dizer, a própria isonomia material, consubstanciada na máxima “tratar igualmente aos iguais e desi-gualmente aos desiguais na medida das suas desigualdades”.

Feitos esses esclarecimentos – absolutamente necessários – podemos averiguar as diversas espécies de fatos jurídicos.

3. ESPÉCIES DE FATOS JURÍDICOSO novo Código passou a utilizar, em seu Título I do Livro III da Parte Geral, especialmente

no art. 104, a expressão negócio jurídico.

Para entender as diferenças existentes entre o negócio jurídico e o ato jurídico stricto sensu, devemos relembrar as diversas categorias de fatos jurídicos.

3.1. Fatos jurídicos naturais ou em sentido estritoSão fatos jurídicos em sentido estrito ou naturais aqueles capazes de gerar efeitos jurídicos

como criar, modificar, resguardar, transferir ou extinguir direitos sem o concurso da ação humana.

Fatos como a morte natural de uma pessoa, uma tempestade que arrasa uma plantação em-penhada, o ataque de um animal selvagem, o estouro de um rebanho vendido e ainda não entre-gue, por exemplo, são capazes de criar ou alterar direitos, influenciando diretamente em relações jurídicas estabelecidas, entretanto, não demandam a necessidade de atividade humana para que ocorram.

É importante conhecer a noção de fato jurídico natural e sua diferenciação para os atos jurí-dicos, porque, a depender da situação, estaremos diante de hipótese de caso fortuito ou de força maior, que excluem a responsabilidade civil pelo ato danoso.

3.2. Atos jurídicosO ato jurídico, por sua vez, é o fato jurídico lato sensu que, para ocorrer, depende da ação

humana para gerar os efeitos de criar, extinguir, conservar, transmitir ou modificar direitos.

Diferentemente do fato jurídico natural, que ocorre sem a interferência da ação humana, o ato jurídico lato sensu demanda a ação voluntária do homem para se materializar.

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Importante elucidar, neste ponto, que ações não humanas (de animais ou de seres inanimados encontrados na natureza), em regra, não serão considerados atos jurídicos, a não ser que derivem de ato humano anterior, que a ele se liga por nexo de causalidade e sem o qual não teria ocorrido.

Como exemplos podemos citar: o ataque de um cão bravio será mero fato jurídico natural quando derive de atitude espontânea do animal, mas será ato jurídico quando decorrer de ordem de seu dono. A distinção é importante porque, de qualquer forma, o dono ou detentor do animal responde pelos prejuízos que ele causar (art. 936), no entanto, em se tratando de ato jurídico, tem-se caso não de responsabilidade pelo fato da coisa (ato do animal), mas sim de ato ilícito direto causado pela pessoa, o que pode agravar a sua situação no momento da fixação do dano, sobretudo do dano moral. O mesmo se diga do exemplo do estouro de uma represa, por força natural (fato jurídico natural) e de seu transbordamento por ato humano (ato jurídico).

O ato jurídico lato sensu, por sua vez, comporta classificações. Dentre elas, a que mais importa para o direito é a sua partição em atos jurídicos não negociais e atos jurídicos negociais.

3.2.1. Atos jurídicos stricto sensu ou não negociaisSão atos que, embora decorrentes da ação e da vontade humanas, não são cometidos, preci-

puamente, com a finalidade de realizar o efeito previsto na norma para o respectivo ato. Equivale a dizer que a pessoa tem a vontade dirigida somente à prática do ato, mas não ao seu efeito, que decorre, automaticamente, dos ditames da lei. Não exige a lei, na prática de atos jurídicos stricto sensu, a declaração de vontade para a geração de seus efeitos.

Podemos exemplificar os atos jurídicos stricto sensu em vários atos da vida comum, como: aceitação de herança, fixação e transferência de domicílio, recebimento de citação, ocupação, achado de tesouro, especificação, pagamento indevido, reconhecimento de filho fora do casa-mento etc.

Para aceitar uma herança, por exemplo, basta a vontade de querer praticar esse ato, entretan-to, uma vez aceita a herança, os efeitos jurídicos dela decorrentes (assunção dos ônus deixados pelo falecido) independem da vontade declarada pelo herdeiro, no momento da aceitação.

O mesmo ocorre, por exemplo, com o reconhecimento de filho fora do casamento: não existe margem de negociação para a ocorrência dos efeitos jurídicos do ato. Uma vez assumida a paternidade, decorrem, automaticamente, todos os efeitos previstos pela lei, como a obrigação alimentar, o direito à legítima etc.

Os atos jurídicos stricto sensu estão previstos no novo Código Civil, sob a rubrica de atos jurídicos lícitos, no art. 185, que prevê, in verbis, que aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior.

Observe-se, portanto, que, ao disciplinar que os atos jurídicos não negociais submeter-se-ão às regras dos negócios jurídicos no que couber, o legislador impõe importante norma de integra-ção, pois admite que, para certos efeitos jurídicos, não é possível aplicar-se determinadas normas destinadas exclusivamente aos negócios.

Isto se deve justamente ao fato de que, nos atos jurídicos não negociais, a vontade é dirigida somente à sua prática, surgindo os efeitos independentemente do querer do agente. Assim, por exemplo, é incompatível com a natureza dos atos não negociais a imposição de elementos de eficácia, como no caso dos termos e condições.

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Figure-se, então, a aceitação ou renúncia da herança: não pode o herdeiro dizer que aceita ou renuncia à herança em parte, ou somente a partir de determinado dia. Veja-se, a respeito, o conteúdo do art. 1.808, caput do Código Civil: “Não se pode aceitar ou renunciar a herança em parte, sob condição ou a termo”.

Imagine-se, também, o caso do reconhecimento de filho: não pode o pai, que o reconhece, impor a eficácia do ato a um termo inicial (ex: Nestor passa a ser meu filho – de Castor – a partir do dia 15 de maio) ou condição (ex: Reconheço Nestor como meu filho somente se eu não tiver mais filhos), pois tal disposição ofende frontalmente a natureza jurídica do ato. A respeito, são claros os termos dos arts. 1.610 e 1.613 do Código Civil:

Art. 1.610 Art. 1.613

“O reconhecimento não pode ser revogado, nem mes-mo quando feito em testamento”.

“São ineficazes a condição e o termo apostos ao ato de reconhecimento do filho”.

3.2.1.1. Atos-fatos jurídicosParcela considerável da doutrina indica a categoria dos atos-fatos jurídicos como espécies

autônomas de fatos jurídicos. Em verdade, é tão tênue a sua distinção com os atos jurídicos stricto sensu que preferimos aborda-los como sub-espécies destes.

Como pudemos observar, no ato jurídico não negocial, o agente o realiza sempre pela ação humana e em decorrência de sua vontade, entretanto, os efeitos jurídicos daí decorrentes não dependem dessa vontade, já que derivam diretamente da lei. Já no ato-fato jurídico, temos ato ju-rídico no sentido de que a sua ocorrência depende de ação humana, no entanto, não é necessária a vontade para a sua prática ou esse elemento volitivo é irrelevante.

Dessa forma, se um indivíduo absolutamente incapaz, por exemplo, praticar sozinho algum ato-fato jurídico, este será, em regra, válido, e produzirá todos os efeitos que deveria produzir. Classificam-se os atos-fatos jurídicos em:

a) atos reais, pelos quais se adquirem bens pela ação de agente incapaz. O exemplo típico é o da compra de doce pela criança, no qual não se nega a criação de efeitos como a translação da propriedade decorrente da tradição subsequente, no entanto, se desconsidera a vontade do agente, já que, no caso, essa vontade não é reconhecida pelo direito.

Alguns dos exemplos utilizados anteriormente como atos jurídicos stricto sensu também poderiam figurar nesta categoria. Assim, se um menor de 10 anos pesca um peixe (res nullius) em um rio, torna-se dono do peixe (efeito jurídico produzido pelo ato); da mesma forma se encon-tra um tesouro. Pessoa enferma, sem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil, já interditada, que se encontra internada em instituição própria para seus cuidados, vem a utilizar tela, tinta e pincéis e pinta um quadro (especificação), ao menos em tese se tornará dona do quadro.

b) atos indenizativos, categoria na qual o agente pratica ato lícito, mas, mesmo assim, sofre o efeito de se ver obrigado a indenizar terceiro ofendido, como se observa do estado de necessidade (art. 929) e, por que não dizer, da responsabilidade objetiva própria ou pura, na qual o cidadão, ainda que não pratique ato ilícito, é obrigado a indenizar. Veja-se o caso do poluidor: ainda que a sua atividade econômica seja lícita e autorizada pelo poder público, ficará responsável pela indenização dos danos causados ao meio ambiente pela poluição (Lei 6.938/81, art. 14, § 1º);

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c) atos caducificantes, que são aqueles em que, independentemente da vontade do agente, opera-se efeito extintivo de direito, como na prescrição e decadência (no âmbito material) e na preclusão (no âmbito processual). Também aqui podemos identificar fatos como o da perda da preferência na compra e venda, se o titular do direito de preempção não pagar o mesmo preço oferecido por terceiro (CC, art. 515).

Além dos exemplos acima citados, como a ocupação (apropriação de coisa sem dono) e a pintura de um quadro por pessoa demente (operando a especificação em seu favor), costuma-se citar também o do desforço incontinenti para a defesa da posse: em todos esses casos, o ato é humano e produz efeitos jurídicos, no entanto, não dependem da vontade para serem praticados, muito embora esta possa estar presente no caso concreto.

Como se vê, tratam-se de casos que, de fato, traduzem a hipótese de atos jurídicos lícitos (CC, art. 185, acima referido), no entanto, podem ser vistos como subespécies dos atos jurídicos stricto sensu.

Resumindo, os atos jurídicos stricto sensu são aqueles em que se exige ação humana e vontade, no entanto, os efeitos jurídicos da sua prática não derivam da vontade, mas da lei; os atos-fatos jurídicos, por sua vez, são subespécies de atos jurídicos em sentido estrito na qual a vontade pode estar presente, mas não é exigida ou é irrelevante.

Por isso, repisamos nossa posição de que se trata, aqui, de subespécie de ato jurídico stricto sensu. Em contrário senso, citamos as posições de Stolze e Gagliano e Farias e Rosenvald. Ve-nosa, por sua vez, relega a categoria a segundo plano, enquanto Orlando Gomes e Caio Mário da Silva Pereira não a abordam.

3.2.2. Atos jurídicos negociais ou negócios jurídicosNegócio jurídico, portanto, é o ato cuja prática e efeitos são derivados da vontade humana.

Quer dizer que, para que determinada pessoa possa alienar uma coisa, por exemplo, ela deve ter a vontade livre e consciente não só de praticar a venda, mas, também, de gerar os seus efeitos, ou seja, a transmissão da propriedade.

Nos negócios, então, os efeitos jurídicos do ato dependem da vontade declarada do agente (declaração de vontade). Ainda que vários desses efeitos estejam previstos na própria lei, eles não decorrerão caso não exista declaração de vontade nesse sentido. Além disso, a manifestação da vontade humana alcança a produção de efeitos, modulando-os, a vontade não fica adstrita – como no caso dos atos jurídicos stricto sensu – à simples escolha quanto a prática do ato ou não.

Caio Mário da Silva Pereira resumiu com brilhantismo a diferenciação básica entre ato jurí-dico negocial (negócio jurídico) e não negocial (ato jurídico stricto sensu). Veja-se:

Observa-se, então, que se distinguem o ‘negócio jurídico’ e o ‘ato jurídico’. Aquele é a declaração de vontade em que o agente persegue o efeito jurídico (Rechtsgeschäft), no ato jurídico stricto sensu ocorre manifestação volitiva também, mas os efeitos jurídicos são gerados independentemente de se-rem perseguidos diretamente pelo agente. Sobre essa distinção, lembram-se Santoro-Passarelli, Serpa Lopes, Sílvio Rodrigues, Vicente Ráo, Torquato Castro, Soriano Neto, Paulo Barbosa de Campos Fi-lho, Alberto Muniz da Rocha Barros, Fábio de Mattia. Todos eles são fatos humanos voluntários. Os ‘negócios jurídicos’ são, portanto, declarações de vontade destinadas à produção de efeitos jurídicos queridos pelo agente; os ‘atos jurídicos stricto sensu’ são manifestações de vontade obedientes à lei, porém geradoras de efeitos que nascem da própria lei. Dentre os atos lícitos estão os atos que não são negócios jurídicos, bem como os negócios jurídicos. Todos, porém, compreendidos na categoria mais ampla de ‘atos lícitos’, que se distinguem na sua etiologia e nos seus efeitos, dos ‘atos ilícitos’. (2005, p. 475-476)

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Em suma, em ambas as categorias (atos não negociais e negociais), existe vontade do agente. Entretanto, podemos dizer que, no negócio jurídico, o agente exerce sua vontade no sentido de praticar o ato e produzir o efeito, na maneira, intensidade e forma que deseja; no ato jurídico stricto sensu, o agente exerce a vontade apenas no sentido de praticar o ato, pois, independente-mente de sua vontade, os efeitos serão atingidos.

Tome-se um exemplo simples do alcance da vontade na prática dos negócios jurídicos com o contrato de compra e venda, a manifestação de vontade define se haverá a compra e venda a vista ou a prazo, com ou sem reserva de domínio, com alguma cláusula especial (retrovenda, preferência, etc.), alterando a garantia contra a evicção (que pode ser reforçada, diminuída ou excluída – art. 448 CC), com garantia por defeitos do objeto (afeta o prazo para reclamar vícios redibitórios – art. 446 CC), com objetos cujo risco de virem a existir uma das partes tome para si (contratos aleatórios – emptio spei e emptio rei speratae, arts. 458 e 459 CC), com a fixação do preço em razão de índices futuros, etc.

São exemplos típicos de negócios jurídicos, portanto, os contratos, o casamento, o testa-mento, enfim, todos aqueles atos em que a vontade do agente se volta tanto para a prática do ato quanto para os seus efeitos, que são gerados e dirigidos diretamente pelo elemento volitivo.

4. CLASSIFICAÇÕES DOS NEGÓCIOS JURÍDICOSExistem inúmeras classificações para os negócios jurídicos. Com efeito, os negócios podem

se subdividir por diversos fatores, desde as partes, o objeto e até por seus efeitos. As mais rele-vantes são as seguintes:

4.1. Pelo número de partesa) Unilateral: é o negócio cuja prática e efeitos derivam da declaração de vontade de uma só

das partes, sem necessidade da aceitação ou do concurso da vontade da outra. Pode ser:

a1) receptício: é o negócio unilateral cujos efeitos, embora não dependam da vontade de outra parte, dependem, pelo menos, de que ela seja notificada. Exemplos práticos po-dem ser visualizados na denúncia de contratos e na cessão de crédito (art. 290). A denúncia é ato pelo qual se permite que uma das partes rompa um contrato sem neces-sidade de concordância da outra, que deve, no entanto, ser cientificada da ruptura; na cessão de crédito, o credor de uma dívida cede seu crédito a outrem, sem necessidade de concordância do devedor, que tem direito, todavia, de ser notificado;

a2) não receptício: é o negócio unilateral cujos efeitos dependem somente da prática do ato, sem necessidade de notificação à outra parte, como o testamento e a emissão de títulos de crédito, por exemplo. No testamento, a validade de suas disposições não depende de anuência nem ciência por ninguém que não seja o próprio testador; já na emissão de títulos de crédito, como a nota promissória, por exemplo, o emitente cria a obrigação pelo simples preenchimento da cártula, sem necessidade de concordância ou conhecimento por outrem; de igual natureza é a promessa de recompensa, já que a criação da obrigação para a promitente depende apenas da publicação do anúncio da sua promessa (CC, art. 854);

b) bilateral: é o negócio cuja celebração e efeitos dependem do concurso da vontade de pelo menos dois agentes, que atuam em polos distintos, cada um com suas obrigações próprias. O contrato é o negócio jurídico bilateral, por excelência. O casamento também pode ser usado

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294 Parte II • Parte Geral

como referência. Deve-se entender que os efeitos do negócio jurídico bilateral são desejados por ambas as partes e, com ele, cria-se uma relação jurídica obrigacional, de forma que cada parte deve cumprir com a prestação a que se obrigou. Aqui não se deve confundir com a classificação dos contratos em unilaterais e bilaterais. Todo contrato é negócio jurídico bila-teral, pois depende da declaração de vontade de ambas as partes, ainda que de uma delas seja tácita. O contrato unilateral, no entanto, cria obrigação apenas para uma das partes, como nos casos do depósito, do comodato, etc. O contrato bilateral cria obrigações para ambas as partes, como na compra e venda, na locação, etc.;

c) plurilateral: é o negócio em que não se encontram dois polos distintos, mas sim um conjun-to de pessoas que atuam com o mesmo interesse, como na sociedade.

4.2. Pela tipicidadea) típicos: Os negócios típicos são figuras negociais ou contratuais previstas expressamente

pela lei, de que são exemplos a compra e venda, a permuta, a locação, o empréstimo, o se-guro, a corretagem, o mandato etc.;

b) atípicos: Estes são figuras negociais cujos conteúdos e efeitos não têm previsão legal, en-tretanto, em função do princípio da autonomia da vontade, devem ser aceitos, desde que preencham os elementos de existência e os requisitos de validade previstos pelo art. 104 do Código Civil.

Aqui se deve observar que os negócios jurídicos que criam efeitos meramente obrigacionais (pessoais) é que podem ser livremente criados pelas partes, independentemente de previsão legal. A observação é relevante pois, quanto aos direitos reais, somente a lei pode criar novas modali-dades de relação jurídica entre sujeitos e objetos de direito. A isto se dá o nome de princípio da tipicidade dos direitos reais.

4.3. Pelos efeitosa) translativos: visam à transmissão de um direito. No sistema brasileiro, inspirado no ale-

mão, e diverso do francês, o contrato, simplesmente, não transmite a propriedade, que, em verdade, somente se transfere pela tradição, em caso de bens móveis, ou pela transcrição no Registro de Imóveis, em caso de imóveis. É o que atestam os textos dos arts. 1.245 e 1.267 do Código Civil, verbis: “Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o re-gistro do título translativo no Registro de Imóveis. Art. 1.267. A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”;

b) modificativos: São negócios que visam a modificar o conteúdo de uma relação jurídica já existente, como a novação ou a transação, por exemplo. Pode ocorrer que o conteúdo origi-nal do negócio tenha se tornado indesejado ou penoso para as partes. Sendo assim, podem elas, através de novo negócio, chamado de modificativo, alterar o conteúdo que primitiva-mente contrataram. Sobre o tema, o Código Civil de 2002 inovou, no campo do direito de família, ao possibilitar a modificação do regime de bens durante a constância do casamento, em seu art. 1.639, cuja transcrição se segue:

Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver. § 1º. O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento. § 2º. É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.

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Capítulo V • Fatos Jurídicos 295

c) extintivos: têm por fim a extinção de um direito ou de uma relação jurídica, como o distra-to, o pagamento, etc. Com efeito, para extinguir uma relação jurídica negocial, necessária é a prática de negócio que visa esse efeito extintivo. Fatos ou atos não negociais, como a prescrição e a decadência, também extinguem o direito, mas não se enquadram, como se vê, como negócios jurídicos. Além do pagamento ou cumprimento da prestação (forma ordiná-ria de extinção das obrigações), os negócios extintivos podem ser:

c1) resolutivos: quando são determinados por causas posteriores à contratação, como a inadimplência ou descumprimento contratual. A respeito, reza o art. 475 que “a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exi-gir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos”.

c2) resilitivos: quando decorrem da simples vontade das partes de cancelar os efeitos do negócio, de que são exemplos o distrato e as resilições unilateraias, como o arrependi-mento, a denúncia, a revogação e a renúncia;

c3) rescisórios: a rescisão não é propriamente um negócio, mas um ato jurídico que ex-tingue um negócio jurídico por causas contemporâneas à celebração do contrato, como ocorre com as causas de nulidade e anulabilidade e nos vícios redibitórios. Registre-se, aqui, importante controvérsia doutrinária acerca do significado da palavra rescisão, pre-ferindo grande parte da doutrina conceituá-la como a hipótese de extinção dos contratos advinda de atitude contrária, por uma das partes, às cláusulas contratuais, demandando, então, para o seu desfazimento, o concurso da atividade judicial. Conquanto, a nosso ver, não seja a tese mais científica, é a que tem prevalecido. Sobre o tema, colhe-se da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, que, para a reintegra-ção de posse, em favor do promitente vendedor, de imóvel sujeito a compromisso de compra e venda, por inadimplemento do promissário comprador, é necessária a prévia rescisão judicial do contrato. Veja-se:CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE AJUIZADA EM VIRTUDE DE INADIMPLEMENTO DE CONTRATO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. IMPOSSI-BILIDADE DE DEFERIMENTO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA SEM QUE TENHA HAVIDO MANIFESTAÇÃO JUDICIAL ACERCA DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO, AINDA QUE ESTE CONTE COM CLÁUSULA RESOLUTÓRIA EXPRESSA. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. 1. Não há violação ao artigo 535 do CPC quando a Corte de origem aprecia a questão de maneira fundamentada, apenas não adotando a tese do recorrente. 2. É imprescindível a prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa, diante da necessidade de observância do princípio da boa-fé objetiva a nortear os contratos. 3. Por conseguinte, não há falar-se em antecipação de tutela reintegratória de posse antes de resolvido o contrato de compromisso de compra e venda, pois somente após a resolução é que poderá haver posse injusta e será avaliado o alegado esbulho possessório. 4. Recurso provido em parte, para afastar a antecipação de tutela. (REsp 620.787/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/04/2009, DJe 27/04/2009, REPDJe 11/05/2009, REPDJe 15/06/2009)

d) obrigacionais: sua finalidade é criar, entre as partes, obrigações de dar, fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Orlando Gomes (op. cit., p. 388) esclarece que

o negócio translativo do direito de propriedade é frequentemente precedido de negócio obrigacional, como, por exemplo, o contrato de compra e venda. Todas as obrigações de dar têm de ser cumpridas por meio de ato de disposição da coisa objeto da prestação, se deve ser transmitida ao credor.

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296 Parte II • Parte Geral

Importante repetir, portanto, que, no sistema brasileiro o contrato, somente, não transmite a propriedade, o que ocorre apenas pela tradição ou pela transcrição no Registro de Imóveis.

Muito embora não haja translação da propriedade com o mero contrato, o compromisso de compra e venda, no ordenamento atual, cria, ao promitente comprador, um direito que se cha-ma de direito real de aquisição. Ainda que o art. 1.417 do Código Civil condicione o direito ao registro em cartório, assiste ao comprador o direito à adjudicação compulsória (art. 1.418) e a embargos de terceiro em caso de penhora do imóvel. O registro em cartório somente se exige para a finalidade de se poder conferir ao referido direito a oponibilidade erga omnes (contra todos). É o que se dessume das Súmulas 84 e 219 do STJ, verbis:

Súmula 84 Súmula 239

“É admissível a oposição de embargos de terceiro fun-dados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido de registro”.

“O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no car-tório de imóveis”.

Não só a compra e venda é negócio obrigacional. A maioria dos negócios jurídicos é de conteúdo obrigacional, pois ocorre a criação de obrigações para uma ou ambas as partes, como na locação, no seguro, no empréstimo etc.

e) de garantia: são os negócios que têm por finalidade resguardar o cumprimento de um outro negócio contra os riscos da insolvência de uma das partes. Dependem, portanto, da vincu-lação do patrimônio de uma das partes ao adimplemento de sua prestação. São os casos do penhor, da hipoteca e da anticrese. O Código Civil de 2002 trouxe a figura da propriedade fiduciária (arts. 1.361 a 1.368), instituto já conhecido antes em virtude das leis 4.728/65 e 9.514/97. Não se trata, no entanto, de negócio puramente de garantia, pois, por essa mo-dalidade de negócio, cria-se verdadeira propriedade em favor do credor, propriedade esta, entretanto, resolúvel, pois deixa de existir quando do adimplemento total da dívida.

Observa-se, portanto, nessa classificação, o conceito de negócio jurídico: negócio capaz de criar (negócios obrigacionais), modificar (modificativos), resguardar (de garantia), transferir (translativos) ou extinguir (extintivos) direitos.

4.4. Pelo tempo em que devam produzir efeitosQuanto ao tempo em que devam produzir efeitos, os negócios podem ser inter vivos, quando

se destinam a produzir eficácia imediatamente ou durante a vida das partes, ou causa mortis, quando se destinam a produzir efeitos após a morte de quem pratica o ato, como no testamento ou nas disposições de última vontade em geral, de que são exemplos o reconhecimento de filho ou a instituição de patrimônio para fundação.

4.5. Pela causa do negócioOs negócios jurídicos podem também se classificar pela causa da sua celebração. Com efei-

to, o motivo comum que leva os agentes à declaração de vontade pode ser de diversas naturezas, daí porque podemos falar em:

a) negócios de troca, quando uma das partes dá uma coisa com valor econômico a fim de rece-ber outra ou até sem interesse em receber nada. São exemplos a compra e venda, a permuta, a doação etc.

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Capítulo V • Fatos Jurídicos 297

b) negócios associativos, quando ambas as partes têm interesses comuns, sem que uma queira adquirir algum bem ou outro elemento do patrimônio da outra. Exemplo típico é o contrato de sociedade, mas, nesse sentido, o casamento e a parceria rural podem ser tomados, tam-bém, como exemplos, pois, apesar de não serem plurilaterais, não existe criação de interes-ses particulares de cada parte;

c) negócios para prevenção de riscos: são entabulados com a finalidade de garantir a inte-gridade de pessoas, coisas ou até de relações jurídicas. Seu exemplo típico é o seguro. O seguro pode ter por objeto cobrir a subsistência de pessoas dependentes do segurado, como no seguro de vida, ou o próprio segurado, como no caso dos planos de saúde, mas pode visar à garantia de recebimento de indenização em caso de perda ou deterioração de uma coisa, como no caso de seguro automotivo ou de imóveis. Existem seguros, no entanto, que bus-cam prevenir riscos contra acontecimentos que possam influenciar relações jurídicas, como no caso de seguros contratados com empresas de crédito contra o desemprego de mutuários, por exemplo;

d) negócios de crédito: são aqueles em que uma das partes outorga a outra um valor econômi-co com o objetivo de auferir vantagem a partir daí, como é o caso do mútuo feneratício, no qual o mutuante empresta ao mutuário certa quantia, que deverá ser restituída com acrésci-mo de juros;

e) negócios de atividade, quando a prestação de uma das partes consiste em fazer alguma coi-sa em favor da outra, como no contrato de trabalho, na prestação de serviços na empreitada, mandato, agência e distribuição, corretagem, comissão e no transporte.

4.6. Pela causa da atribuição patrimonialForte em Orlando Gomes (op. cit., p. 333-430), podemos falar também que os negócios jurí-

dicos se diferenciam pela atribuição patrimonial que cada agente pretende, podendo ser:

a) onerosos: serão onerosos os negócios quando ambas as partes têm a intenção de auferir proveito econômico com o negócio, como na compra e venda: o alienante aufere o proveito decorrente do recebimento do preço, todavia, exige-se-lhe o sacrifício correspondente à van-tagem atribuída ao adquirente, que é a aquisição da propriedade da coisa;

b) gratuitos: diz-se gratuito o contrato quando não existe, de uma das partes, essa intenção econômica, como no caso da doação pura: enquanto o donatário aufere proveito econômico com a aquisição da coisa, o doador não exige dele nenhum sacrifício para isso. Verifica-se, ainda, na doutrina, ao lado do contrato gratuito, o contrato desinteressado. Seria gratuito ou benéfico aquele em que, além da gratuidade, há redução do patrimônio de quem comete a li-beralidade, como na doação. Já no contrato desinteressado não existe a redução no patrimô-nio, como, por exemplo, no comodato, em que a coisa emprestada voltará para o comodante ao final do contrato.

c) neutros: são neutros os negócios em que não se destina uma atribuição patrimonial específi-ca, de tal forma a reduzir o patrimônio (negócios gratuitos) ou estabelecer troca de patrimô-nios (onerosos). São atos, portanto, que não se enquadram em nenhuma das hipóteses acima, como a instituição voluntária do bem de família ou a imposição de ônus de inalienabilidade, incomunicabilidade ou impenhorabilidade sobre bens. Nesses exemplos, não se vislumbra a instituição de causa patrimonial, seja para onerar os agentes ou estabelecer percepção gra-tuita de vantagens.

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298 Parte II • Parte Geral

d) bifrontes: consideram-se bifrontes certos negócios que podem ser contratados tanto a título oneroso quanto gratuito. Bom exemplo é o contrato de mútuo, que é o empréstimo de coi-sas fungíveis. Pode se dar de forma gratuita, hipótese em que o mutuário deverá devolver coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade. Mas também pode ser contratado de forma onerosa ou econômica (mútuo feneratício), hipótese em que, segundo o art. 591 do Código Civil, presumem-se devidos os juros.

4.7. Pela formaPode-se classificar o negócio jurídico, também, pela forma, sendo: negócios escritos ou

verbais; negócios tácitos ou expressos; negócios solenes (formais) ou não solenes (informais); e negócios reais ou consensuais.

Nesse particular, remetemos o leitor às classificações da própria forma como elemento de existência do negócio jurídico, tema a ser tratado mais à frente.

4.8. Outras classificaçõesOs negócios jurídicos podem ser classificados, ainda:

a) segundo a relação de interdependência: aqui, os negócios podem ser principais ou aces-sórios. Principal é o negócio que existe sobre si mesmo, como a compra e venda, por exem-plo; acessório é aquele que depende da existência do principal, como os negócios de garantia (fiança para a locação, hipoteca para a compra e venda, penhor para o empréstimo etc);

b) segundo a flexibilidade da prestação: nesse ponto os negócios podem ser impessoais, quando a figura do devedor pode ser substituída, já que a prestação pode ser desempenhada livremente por qualquer pessoa, como se vê no exemplo do pintor de paredes; ou persona-líssimo, hipótese em que a prestação só pode ser desempenhada pelo próprio devedor, como no caso de um famoso pintor contratado para pintar uma obra de arte.

c) segundo a causa: No sistema jurídico brasileiro, em que o contrato não gera translação de propriedade (que só se transmite com a tradição ou transcrição), os contratos obrigacionais, que são aqueles que geram a obrigação de transferir a propriedade, são conhecidos como negócios causais, porque geram a causa da transferência; já o negócio formal ou real que, de fato, transfere a propriedade (ou algum outro direito real), como a tradição ou o registro do título (transcrição) é denominado de negócio abstrato.

d) segundo o início da geração dos efeitos: diz-se também que os negócios podem produzir efeitos ex nunc, ou seja, a partir da sua celebração, como no caso da compra e venda, por exemplo, hipótese em que são chamados de negócios constitutivos; por outro lado, alguns negócios têm a característica de retroagir seus efeitos a um momento anterior, conferindo efeitos ex tunc, quando então são chamados de negócios declarativos. Alguns exemplos de negócios declarativos: 1. Partilha de bens, porque seus efeitos retroagem à data da morte do autor da herança, dado que, segundo o princípio da saisine, a propriedade se transfere a partir da abertura da sucessão; 2. Ratificação de poderes para o terceiro sem mandato que adquire a posse em nome do possuidor (CC, art. 1.205, II): nesse caso, é importante que haja a retroação dos efeitos, para que o adquirente da posse obtenha contagem de prazos (para ações possessórias e para usucapião) desde o momento em que o terceiro sem mandato ob-teve a coisa; 3. Aquisição a posteriori à tradição a non domino: aqui, segundo o art. 1.268, § 1º do Código Civil, se o adquirente recebe a coisa por negócio e tradição realizados em seu

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Capítulo V • Fatos Jurídicos 299

favor por quem não era dono, por regra legal (art. 1.268, caput), não adquire a propriedade. Porém, se esse adquirente estiver de boa-fé e o alienante adquirir depois a propriedade, esse negócio (aquisição posterior da propriedade pelo alienante) faz com que a transferência ao adquirente de boa-fé seja considerada desde o momento em que lhe foi feita a tradição.

5. INTERPRETAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOSA parte geral do Código Civil adota três importantes regras para a interpretação dos negócios

jurídicos. São elas:

a) Princípio da prevalência da intenção dos agentes: Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem (art. 112). Isto quer dizer que, quando as circunstâncias reais do negócio jurídico divergirem do conteúdo escrito do contrato, dever-se-á respeitar mais a intenção consubstanciada na declaração de vontade do que o sentido literal da linguagem.

Figure-se, por exemplo, que duas pessoas celebrem contrato de locação de uma residência, com a real intenção de que o locatário utilize o imóvel para nele residir, o que ele o faz efeti-vamente. Todavia, inseriram no instrumento do negócio que se tratava de locação comercial. Depois de algum tempo, o locador, buscando se prevalecer das normas da locação comercial, mais favoráveis ao proprietário do que aquelas destinadas à locação residencial (Lei 8.245/1991), intenta rescindir o contrato consoante as normas destinadas aos locadores de imóvel não residen-cial.

Nesse caso, a interpretação do negócio consoante a intenção das partes deve prevalecer sobre o sentido literal da linguagem, em ordem a se fazer aplicarem as regras atinentes à locação residencial, conforme se pode observar da jurisprudência:

Imóvel locado e utilizado para fins residenciais. Irrelevância de cláusula contratual conferindo finali-dade comercial à locação. Intenção deliberada de fraudar a lei demonstrada. Irrelevante a existência de cláusula contratual conferindo finalidade comercial à locação se o real intento das partes sempre foi de dar destinação residencial ao imóvel e assim se procedeu. A intenção dos contratantes prevalece sobre o sentido literal do texto, conforme preceitua o CC/1916, 85 [CC 112], mormente restando demonstra-do que o objetivo deste era, deliberadamente, fraudar a lei em cuja vigência se deu a contratação (2º TACivSP – RT 686/136, apud NERY JR., 3a ed., p. 231.)

Outro caso importante, que decorre da jurisprudência, é o da interpretação da vontade real dos agentes para considerar que, mesmo diante da ausência de declaração de vontade expressa, seja considerada a intenção de celebrar o negócio, como no julgado a seguir, em que o tribunal paulista reconheceu que, no caso da aplicação de valores em investimentos de risco, sem anuên-cia expressa do cliente, considerar a conduta do correntista que, embora não consultado previa-mente quanto à aplicação, silenciou-se enquanto a operação lhe era vantajosa, vindo a reclamar somente quando se verificou o prejuízo. Veja-se:

Aplicação no mercado financeiro de ações não autorizada por correntistas que experimentaram perda com o desvio de seus ativos que estavam no Itaú-FIC, investimento de renda fixa, 'para o fundo de ações Itaú Carteira Livre – Correntistas que querem indenização porque não autorizaram o investi-mento e não ficaram cientes do seu elevado grau de risco, como determinavam as normas da CVM – Ação julgada parcialmente procedente – Condenação do banco ao pagamento de danos materiais (RS 42.697,60) desviados indevidamente do fundo de renda fixa para o de ações – Dano moral não pronunciado – Correntistas inconformados porque, os revezes sofridos com a malsinada aplicação lhe atingiram o mais fundo de suas almas – Inconformismo do banco porque os correntistas sabiam dos riscos da troca dos ativos do fundo de renda fixa para o de ações – Acolhimento do recurso do banco – Não acolhimento do recurso dos correntistas – Aplicador-varão advogado – Ainda que ao tempo da

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300 Parte II • Parte Geral

transferência do numerário de um fundo para o outro vigorasse a Instrução Normativa CVM 177/92, que exigia a ciência do cotista sobre o alto índice de risco da aplicação em fundo de ações, o certo é que o aplicador-varão não pode desconhecer que ele consentiu a transferência enquanto os ganhos estavam polpudos – Quem cala consente quando tem o dever de se pronunciar – Não estivessem felizes com a transferência, deveriam ter ordenado o retorno do capital para o fundo de renda fixa – Silêncio só quebrado quando o fundo de ações experimentou perdas sensíveis (9 meses após a transferência) – Silêncio absoluto com a transferência que importa aquiescência – Art. 85, do CC/16 que se confronta com o art. 112, do CC/02 – A melhor forma de se aferir a vontade contratual das partes é observar o comportamento delas – Inviabilidade do aplicador-varão desconhecer que permitiu – a execução de um contrato aleatório equiparado a uma emptio spei – Recurso do banco provido para, julgar improcedente a ação, invertidos os ônus da sucumbência. (TJSP. Julgado referido na decisão monocrática proferida no Ag 1312778. Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI. Data da Publicação: 03/09/2010)

b) Princípio da boa-fé: Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração (art. 113). Fala-se, aqui, em primeiro plano, da boa-fé objetiva, cláusula geral de interpretação para todos os negócios, ou seja, regra de procedimento segundo a qual as partes contratantes devem se isentar de intenções maliciosas em detrimento da outra.

Mas não se pode deixar de compreender que o art. 113, embora seja norma de interpretação, dá vazão ao irrestrito reconhecimento, também, da boa-fé subjetiva, como norma geral de efi-cácia vertical sobre as demais regras contidas no próprio sistema, devendo prevalecer, portanto, a boa-fé subjetiva de terceiro quando em confronto com normas que acarretem a invalidade de negócios por ele entabulados.

Bom exemplo disso é a opção que o STJ tem feito pela proteção do terceiro adquirente de boa-fé de unidade autônoma de edifício de apartamentos em detrimento de garantia real oferecida pela construtora, antes ou depois do compromisso com o adquirente (Súmula 308), à instituição financeira que lhe concedera empréstimo para financiar a obra. Veja-se, a título de exemplo, o seguinte julgado:

DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. SFH. CONTRATO DE FINANCIAMENTO. UNIDADE DE APARTAMENTOS. HIPOTECA CONSTITUÍDA SOBRE IMÓVEL JÁ PROMETIDO À VEN-DA E QUITADO. INVALIDADE. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSU-MIDOR. OFENSA. CARACTERIZAÇÃO. ENCOL. NEGLIGÊNCIA DA INSTITUIÇÃO FINAN-CEIRA. I – É nula a cláusula que prevê a instituição de ônus real sobre o imóvel, sem o consentimento do promitente-comprador, por ofensa ao princípio da boa-fé objetiva, previsto no Código de Defesa do Consumidor. II – Não prevalece diante do terceiro adquirente de boa-fé a hipoteca constituída pela incorporadora junto ao agente financeiro, em garantia de empréstimo regido pelo Sistema Financeiro da Habitação. Destarte, o adquirente da unidade habitacional responde, tão – somen-te, pelo pagamento do seu débito. III – Consoante já decidiu esta Corte: "é negligente a instituição financeira que não observa a situação do empreendimento ao conceder financiamento hipotecário para edificar um prédio de apartamentos". Da mesma forma, "ao celebrar o contrato de financiamento, fa-cilmente poderia o banco inteirar-se das condições dos imóveis, necessariamente destinados à venda, já oferecidos ao público e, no caso, com preço total ou parcialmente pago pelos terceiros adquiren-tes de boa-fé". (Precedentes: REsp n° 239.968/DF, DJ de 04.02.2002 e REsp n° 287.774/DF, DJ de 02.04.2001 e EDResp. nº 415.667/SP, de 21.06.04). Recurso especial não conhecido. (REsp 617.045/GO, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/10/2004, DJ 17/12/2004, p. 539)

Importante ressaltar, por fim, que voltaremos ao tema da boa-fé na oportunidade da análise das obrigações e dos contratos.

c) Interpretação restritiva dos negócios benéficos: Já desde o Direito Romano se dizia: "Lei nº 28 de Ulpiano: qui ex liberalitate conveniuntur, in id, quod facere possunt, condemnan-dos: aqueles que são demandados em virtude de liberalidade só serão condenados ao que corresponda às suas possibilidades".

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Capítulo V • Fatos Jurídicos 301

Isto se dá porque as liberalidades implicam, geralmente, em redução permanente ou tem-porária do patrimônio de seus autores. Assim, não se pode interpretar de maneira extensiva o conteúdo da intenção de beneficiar, sob pena de injusto empobrecimento daquele que fez o bem ao terceiro.

Por isso, reza o art. 114 do Código Civil que, nos negócios jurídicos benéficos (fiança, doa-ção, comodato etc) e na renúncia, a interpretação deve ser restritiva (art. 114). Essa norma impor-ta em relevantes reflexos na parte especial do Código Civil, a exemplo dos seguintes dispositivos:

Art. 552. O doador não é obrigado a pagar juros moratórios, nem é sujeito às conseqüências da evicção ou do vício redibitório. Nas doações para casamento com certa e determinada pessoa, o doador ficará sujeito à evicção, salvo convenção em contrário. […] Art. 584. O comodatário não poderá jamais re-cobrar do comodante as despesas feitas com o uso e gozo da coisa emprestada. […] Art. 819. A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.

6. REPRESENTAÇÃO

6.1. Noções introdutóriasO Código Civil de 2002 disciplina, na parte geral, as regras da representação.

Diferentemente do antigo código, que tratava da representação apenas na parte especial, nos tópicos respectivos, o atual legislador entendeu necessária a sua regulamentação geral, porque os diversos casos de representação existentes na parte especial se espalham por diversas matérias, como no Direito de Família (pais, tutores, curadores), nas obrigações (mandato, agência etc.) e nas sucessões (inventariança), por exemplo. Por isso, exige-se uma sistematização geral do tema para aplicação supletiva às normas especiais.

A representação pode ser legal ou voluntária (art. 115). É legal quando decorre da lei; volun-tária quando decorre da vontade das partes.

6.2. Limites ao exercício da representação e a teoria da aparênciaO exercício da manifestação de vontade, pelo representante, deve se limitar aos poderes a

ele conferidos (pela lei ou pelo negócio de representação), segundo o art. 116, sob pena de anula-bilidade, conferida pelo art. 119. Esta anulabilidade, no entanto, fica subordinada à circunstância de que o excesso de representação deve ser do conhecimento do outro contratante, ou que, pelo menos, este deva ter conhecimento deste excesso. Essa proteção da boa-fé do terceiro contratante advém da adoção da teoria da aparência.

A ação para anular o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado está sujeita ao prazo decadencial de 180 dias (CC, art. 119, par. único), a contar da conclusão do negócio ou, em se tratando de representado incapaz, da cessação da incapacidade.

Adotada a teoria da aparência, o resguardo da boa-fé do terceiro faz com que o negócio possa ser exigível em desfavor do representado.

O reconhecimento da teoria da aparência no direito brasileiro tem resultado em consequên-cias como, por exemplo, a validade da citação da pessoa jurídica, mesmo que feita na pessoa de funcionário sem poderes para tanto, o qual, no entanto, recebe o ato citatório sem mencionar qualquer ressalva a esse respeito. Trata-se de entendimento já consolidado no STJ, como se vê adiante:

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302 Parte II • Parte Geral

PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO Art. 535 DO CPC INOCORRENTE. AÇÃO DE INDENI-ZAÇÃO. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. ENTIDADE FILANTRÓPICA. PRESUNÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA. INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE NULIDADE DE CI-TAÇÃO. TEORIA DA APARÊNCIA. APLICAÇÃO. […] 4. "Aplicação do entendimento prevalente da Corte Especial no sentido de adotar-se a Teoria da Aparência, reputando-se válida a citação da pessoa jurídica quando esta é recebida por quem se apresenta como representante legal da empresa e recebe a citação sem ressalva quanto à inexistência de poderes de representação em juízo" (AgR-gEREsp 205.275/PR, Relatora Min. Eliana Calmon, DJ 28.10.02). 5. Recurso especial não provido. (REsp 1195605/RJ, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/09/2010, DJe 22/09/2010)

Na mesma trilha de entendimento, o Superior Tribunal de Justiça tem aplicado a teoria da apa-rência para se autorizar a responsabilização da pessoa jurídica por atos de gerentes que, mesmo sem poderes expressos, contratam com terceiros em circunstâncias tais que não era razoável exigir-se deles (terceiros) o conhecimento sobre a inexistência de poderes para a pactuação. Veja-se:

DIREITO EMPRESARIAL. NEGÓCIO JURÍDICO CELEBRADO POR GERENTE DE SOCIEDADE ANÔNIMA. AUSÊNCIA DE PODERES. ATO CONEXO COM A ESPECIALIZAÇÃO ESTATUTÁ-RIA DA EMPRESA. LIMITAÇÃO ESTATUTÁRIA. MATÉRIA, EM PRINCÍPIO, INTERNA COR-PORIS. TERCEIRO DE BOA-FÉ. TEORIA DA APARÊNCIA. APLICABILIDADE. 1. No caso em exame, debatem as partes em torno de aditivo que apenas estabeleceu nova forma de reajuste do contrato original – em relação ao qual não se discute a validade –, circunstância a revelar que o negócio jurídico levado a efeito pelo então Gerente de Suprimentos, que é acessório, possui a mesma natureza do principal – prestação de serviços –, o qual, a toda evidência, poderia ser celebrado pela sociedade recorrente por se tratar de ato que se conforma com seu objeto social. 2. Na verdade, se a pessoa jurídica é constituída em razão de uma finalidade específica (objeto social), em princípio, os atos consentâneos a essa finalidade, não sendo estranho ao seu objeto, praticados em nome e por conta da sociedade, por seus representantes legais, devem ser a ela imputados. 3. As limitações estatutárias ao exercício de atos por parte da Diretoria da Sociedade Anônima, em princípio, são, de fato, matéria interna corporis, inoponíveis a terceiros de boa fé que com a sociedade venham a contratar. 4. Por outro lado, a adequada representação da pessoa jurídica e a boa-fé do terceiro contratante devem ser somadas ao fato de ter ou não a sociedade praticado o ato nos limites do seu objeto social, por intermédio de pessoa que ostentava ao menos aparência de poder. 5. A moldura fática delineada pelo acórdão não indica a ocorrência de qualquer ato de ma-fé por parte da autora, ora recorrida, além de deixar estampado o fato de que o subscritor do negócio jurídico ora impugnado – Gerente de Suprimento – assinou o apontado "aditivo contratual" na sede da empresa e no exercício ordinário de suas atribuições, as quais, aliás, faziam ostentar a nítida aparência a terceiros de que era, deveras, representante da empresa. 6. Com efeito, não obstante o fato de o subscritor do negócio jurídico não possuir poderes estatutários para tanto, a circunstância de este comportar-se, no exercício de suas atribuições – e somente porque assim o permitiu a companhia –, como legítimo representante da sociedade atrai a responsabilidade da pessoa jurídica por negócios celebrados pelo seu representante putativo com terceiros de boa-fé. Aplicação da teoria da aparência. 7. Recurso especial improvido. (REsp 887277. Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO. QUARTA TURMA. Informativo/STJ nº 0454).

No mesmo sentido:Direito comercial. Recurso especial. Ação de embargos do devedor à execução. Acórdão. Omissão. Inexistência. Título de crédito (nota promissória) emitido em nome da pessoa jurídica. Administrador. Excesso de mandato caracterizado. Oposição a terceiro de boa-fé. Impossibilidade. Ausência de ex-cesso de mandato. Ônus da prova. Prequestionamento. – […] – O excesso de mandato praticado pelo administrador da pessoa jurídica poderá ser oposto ao terceiro beneficiário apenas se ficar afastada a boa-fé deste, o que ocorre quando: (i) a limitação de poderes dos administradores estiver inscrita no registro próprio, (ii) o terceiro conhecia do excesso de mandato, e (iii) a operação realizada for evidentemente estranha ao objeto social da pessoa jurídica. – Verificada a boa-fé do terceiro, restará à pessoa jurídica exigir a reparação pelos danos sofridos em ação regressiva a ser proposta contra o administrador que agiu em excesso de mandato. – É inadmissível o recurso especial na parte em que não restou prequestionado o direito tido por violado. – Recurso especial a que não se conhece. (REsp 448.471/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/03/2003, DJ 14/04/2003, p. 221)

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Capítulo V • Fatos Jurídicos 303

Contudo, o art. 118 impõe ao representante que excede seus poderes, sem o conhecimento do terceiro, a responsabilidade pelos atos que excederem os termos da representação. Isso não implica, como vimos, em desoneração do representado para com os terceiros de boa-fé, por apli-cação da teoria da aparência. A responsabilidade do representante decorre, portanto, do direito de regresso que se confere ao representado.

6.3. Negócio consigo mesmoDiz o art. 117 do Código Civil que salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o

negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo.

Consagra-se, assim, a regra de que, não existindo autorização legal ou convencional (forne-cida pelo representado), não pode o representante utilizar seus poderes para celebrar negócio em que o destinatário da declaração de vontade do representado seja o próprio representante.

Tome-se como exemplo o do representante de uma empresa que transfira para seu nome os bens de propriedade da sociedade, em detrimento da pessoa jurídica e de seus sócios. Nos termos do art. 117, tal negócio é anulável.

Também podemos verificar a aplicação da norma no caso em que um procurador com pode-res de alienação de uma coisa de propriedade do mandante (mas sem os poderes previstos no art. 685 do CC – conferir abaixo), outorga substabelecimento a outrem, vindo a praticar o negócio de aquisição da coisa com o substabelecido, em clara distorção do regramento acima referido.

Registre-se ainda o exemplo da nulidade da cláusula-mandato, talhada pela jurisprudência do STJ. Trata-se de expediente utilizado, geralmente, por instituições financeiras para garantir o pagamento de empréstimos a juros por parte do mutuário: no momento da assinatura do contrato de mútuo, o mutuário dá poderes ao mutuante para que este emita, em seu próprio favor, título de crédito representativo do valor atualizado da dívida, o que foi repelido, com justiça, pela Súmula 60 do STJ, que reza que "é nula a obrigação cambial assumida por procurador do mutuário, vinculado ao mutuante, no exclusivo interesse deste".

Observe-se que a outorga desses poderes abusivos em favor de instituições financeiras, na prática, dá-se muito comumente, também, através da exigência, pelo credor, de emissão, pelo devedor, no momento da assinatura do contrato de empréstimo, de títulos de crédito (geralmente notas promissórias) em branco em favor do credor, para posterior preenchimento ao alvedrio deste, o que também foi sabiamente repugnado pelo Superior Tribunal de Justiça, como se pode ver da seguinte ementa:

PROCESSO CIVIL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – NEGATIVA DE PROVIMENTO – AGRA-VO REGIMENTAL – CONTRATO BANCÁRIO – NOTA PROMISSÓRIA – EMISSÃO EM BRAN-CO – VIOLAÇÃO AO Art. 51, IV, CDC – SÚMULA 60/STJ – LETRA DE CÂMBIO – SAQUE – NULIDADE – DESPROVIMENTO. 1 – No que diz respeito à validade da nota promissória emitida em branco, a orientação desta Corte é no sentido de que a cláusula contratual que permite a emissão da nota promissória em favor do banco/embargado, caracteriza-se como abusiva, porque violadora do princípio da boa-fé, consagrado no art. 51, inciso IV do Código de Defesa do Consumidor. Precedente (REsp 511.450/RS). 2 – Igualmente, é nula a cláusula contratual em que o devedor autoriza o credor a sacar, para cobrança, título de crédito representativo de qualquer quantia em atraso. Isto porque tal cláusula não se coaduna com o contrato de mandato, que pressupõe a inexistência de conflitos entre mandante e mandatário. Precedentes (REsp 504.036/RS e AgRg Ag 562.705/RS). 3 – Agravo regimen-tal desprovido. (AgRg no Ag 511.675/DF, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUARTA TURMA, julgado em 23/08/2005, DJ 17/10/2005, p. 297)

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304 Parte II • Parte Geral

Mais sobre a cláusula-mandato poderá ser lido no capítulo próprio a respeito do contrato de mandato (item 1.3.2 do Capítulo X da Parte V).

Ainda sobre o tema do negócio consigo mesmo, devemos lembrar que existia discussão, no regime jurídico anterior, sobre a validade do uso da procuração (instrumento do mandato) para compra e venda de imóveis, hipótese em que o mandante dava ao mandatário poderes para alienar a coisa para quem quisesse, inclusive para si mesmo, pois o antigo Código, embora previsse o mandato em causa própria, proibia expressamente essa hipótese. Veja-se:

CC, 1916, Art. 1.317, I Art. 1.133

É irrevogável o mandato: I – quando se tiver convencio-nado que o mandante não possa revogá-lo, ou for em causa própria a procuração dada.

Não podem ser comprados, ainda em hasta pública: […] II – pelos mandatários, os bens, de cuja administração ou alienação estejam encarregados.

Em que pese a antiga vedação legal, ainda mesmo na vigência do CC-1916 se arraigou a praxe de, em lugar da lavratura de escritura pública de compra e venda, os agentes do negócio em torno da propriedade de bens imóveis emitirem procuração, em favor do adquirente, para que este transfira para si ou para terceiros o bem objeto do mandato. A prática se tornou tão comum que passou a se consi-derar inconveniente, do ponto de vista da política judiciária, invalidar esses pactos, já que isso, não raro, dava margem a especulações e prevalência de má-fé por parte de alienantes mal-intencionados.

Por isso, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula nº 165, segundo a qual: "A venda realizada diretamente pelo mandante ao mandatário não é atingida pela nulidade do art. 1.133, II, do Código Civil".

O art. 685 do atual Código extingue qualquer polêmica em torno do assunto, ao dispor que “conferido o mandato com a cláusula “em causa própria”, a sua revogação não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o mandatário dispensado de pres-tar contas, e podendo transferir para si os bens móveis ou imóveis objeto do mandato, obedeci-das as formalidades legais”.

Trata-se, portanto, de expressa autorização legal para a prática do chamado negócio consigo mesmo.

7. QUADRO SINÓTICO

CAPÍTULO V – FATOS JURÍDICOS

Fatos Jurídicos

É através da ocorrência de fatos juridicamente relevantes que o Direito se realiza, transforma-se ou se extingue. Mas nem todos os fatos da vida humana são tidos como juridicamente relevantes. Serão jurídicos, portanto, todos os fatos que pos-sam trazer consequências para o mundo jurídico, quer seja criando, modificando, extinguindo, resguardando ou transmitindo direitos.

1

Efeitos dos Fatos Jurídicos

– efeitos aquisitivos: são aqueles pelos quais, através do fato, decorre em segui-da o acréscimo de um bem ou direito ao patrimônio do agente, como na tra-dição, na transcrição do título aquisitivo no registro de imóveis, na reunião dos requisitos para a usucapião, na abertura da sucessão etc.

– efeitos modificativos: os fatos jurídicos podem modificar os direitos já adquiridos, por exemplo, em um determinado contrato, podem as partes alterar o seu conteú-do através de um ato substitutivo, como na transação e na dação em pagamento;

– efeitos translativos: os efeitos translativos são aqueles que derivam da poten-cialidade que tem o fato jurídico de transmitir bens ou direitos de uma pessoa para outra. A tradição, por exemplo;

2

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Capítulo V • Fatos Jurídicos 305

Efeitos dos Fatos Jurídicos

– efeitos conservativos: esses são os efeitos pelos quais a prática de determina-dos atos visa resguardar o bem ou direito da ação deletéria do tempo ou de terceiros;

– efeitos extintivos: extinguem o direito ou a obrigação do agente, como o abandono, o pagamento (que extingue o direito do credor), a condição reso-lutiva, a prescrição, a decadência, o perecimento do objeto e qualquer outro fato que acarrete o falecimento do direito;

2

Espécies de Fatos Jurídicos

Fatos jurídicos naturais ou em sentido estrito

São aqueles capazes de gerar efeitos jurídicos como criar, modificar, resguardar, transferir ou extinguir direitos sem o concurso da ação humana, como uma tem-pestade ou a morte natural de alguém

3.1

Atos jurídicosDemandam a ação voluntária do homem para se materializar. O ato jurídico lato sensu, por sua vez, comporta classificações. Dentre elas, a que mais importa para o direito é a sua partição em atos jurídicos não negociais e atos jurídicos negociais.

3.2

Atos jurídicos stricto sensu ou não negociais

São atos que decorrem da vontade humana, contudo, a vontade é dirigida so-mente à prática do ato, mas não ao seu efeito, que decorre, automaticamente, dos ditames da lei.

3.2.1

Atos-fatos jurídicos

A sua ocorrência depende de ação humana, no entanto, não é necessária a von-tade para a sua prática ou esse elemento volitivo é irrelevante. Dessa forma, se um indivíduo absolutamente incapaz, por exemplo, praticar sozinho algum ato--fato jurídico, este será, em regra, válido, e produzirá todos os efeitos que deveria produzir. A ocupação (art. 1.263 CC) e o achado de tesouro (art. 1.264 CC) seriam exemplos.

3.2.1.1

Atos jurídicos negociais ou

negócios jurídicos

É o ato cuja prática e efeitos são derivados da vontade humana. Nos negócios os efeitos jurídicos do ato dependem da vontade declarada do agente, a manifesta-ção da vontade humana alcança a produção de efeitos, modulando-os, a vontade não fica adstrita – como no caso dos atos jurídicos stricto sensu – à simples escolha quanto a prática do ato ou não. Os contratos são exemplos típicos de negócios jurídicos.

3.2.2

Classificações dos negócios jurídicos

Pelo número de partes

– Unilateral: derivam da declaração de vontade de uma só das partes, sem ne-cessidade da aceitação ou do concurso da vontade da outra. Pode ser:

receptício: depende, pelo menos, de que a outra parte seja notifi cada;

não receptício: sem necessidade de notificação à outra parte;

– bilateral: dependem do concurso da vontade de pelo menos dois agentes;

– plurilateral: é o negócio em que não se encontram dois polos distintos, mas sim um conjunto de pessoas que atuam com o mesmo interesse, como na sociedade.

4.1

Pela tipicidade

– típicos: são figuras previstas expressamente pela lei;

– atípicos: não têm previsão legal, entretanto, em função do princípio da auto-nomia da vontade, devem ser aceitos, desde que preencham os requisitos de existência e os elementos de validade previstos pelo art. 104 do Código Civil.

4.2

Pelos efeitos

– translativos: visam à transmissão de um direito;

– modificativos: visam modificar o conteúdo de uma relação jurídica já existen-te, como a novação ou a transação, por exemplo;

– extintivos: têm por fim a extinção de um direito ou de uma relação jurídica, como o distrato, o pagamento, etc;

– obrigacionais: sua finalidade é criar, entre as partes, obrigações de dar, fazer ou deixar de fazer alguma coisa;

4.3

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306 Parte II • Parte Geral

Pelos efeitos

– de garantia: têm por finalidade resguardar o cumprimento de um outro negó-cio contra os riscos da insolvência de uma das partes. São os casos do penhor, da hipoteca e da anticrese;

4.3

Pelo tempo em que devam

produzir efeitos

– inter vivos, quando se destinam a produzir eficácia imediatamente ou durante a vida das partes;

– causa mortis, quando se destinam a produzir efeitos após a morte de quem pratica o ato, como no testamento.

4.4

Pela causa do negócio

– negócios de troca, quando uma das partes dá uma coisa com valor econômico a fim de receber outra ou até sem interesse em receber nada;

4.5

Pela causa do negócio

– negócios associativos, quando ambas as partes têm interesses comuns, sem que uma queira adquirir algum bem ou outro elemento do patrimônio da ou-tra. Exemplo típico é o contrato de sociedade;

– negócios para prevenção de riscos: entabulados para garantir a integridade de pessoas, coisas ou até de relações jurídicas. Exemplo típico é o seguro;

– negócios de crédito: uma das partes outorga a outra um valor econômico com o objetivo de auferir vantagem a partir daí, como é o caso do mútuo fenera-tício;

– negócios de atividade, quando a prestação de uma das partes consiste em fazer alguma coisa em favor da outra, como no contrato de trabalho, na prestação de serviços.

4.5

Pela causa da atribuição patrimonial

– onerosos: ambas as partes têm a intenção de auferir proveito econômico com o negócio, como na compra e venda;

– gratuitos: quando não existe, de uma das partes, intenção econômica, como no caso da doação pura;

– neutros: não se destina uma atribuição patrimonial específica, de tal forma a reduzir o patrimônio (negócios gratuitos) ou estabelecer troca de patrimônios (onerosos). São atos, portanto, que não se enquadram em nenhuma das hipó-teses acima, como a instituição voluntária do bem de família ou a imposição de ônus de inalienabilidade, incomunicabilidade ou impenhorabilidade sobre bens;

– bifrontes: podem ser contratados tanto a título oneroso quanto gratuito. Bom exemplo é o contrato de mútuo.

4.6

Interpretação dos negócios jurídicos

A parte geral do Código Civil adota três importantes regras para a interpretação dos negócios jurídicos. São elas:

– Princípio da prevalência da intenção dos agentes: Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem (art. 112);

– Princípio da boa-fé: Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração (art. 113);

– Interpretação restritiva dos negócios benéficos. Reza o art. 114 do Código Civil que, nos negócios jurídicos benéficos (fiança, doação, comodato etc) e na renúncia, a interpretação deve ser restritiva.

5

Representação

O Código Civil de 2002 disciplina, na parte geral, regulamentação geral das regras da representação, a qual se espalha por diversas matérias, como no Direito de Família (pais, tutores, curadores), nas Obriga-ções (mandato, agência etc.) e nas Sucessões (inventariança), por exemplo.

6

Limites ao exercício da

representação e a teoria da

aparência

O exercício da representação deve se limitar aos poderes conferidos ao represen-tante (pela lei ou pelo negócio de representação), segundo o art. 116, sob pena de anulabilidade, conferida pelo art. 119, desde que o excesso de representação seja conhecido do outro contratante. Essa proteção da boa-fé do terceiro contratante advém da adoção da teoria da aparência.

6.2

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Capítulo V • Fatos Jurídicos 307

Negócio consigo mesmo

Diz o art. 117 do Código Civil que salvo se o permitir a lei ou o representado, é anu-lável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo. Portanto, não existindo autorização legal ou convencio-nal (fornecida pelo representado), não pode o representante utilizar seus poderes para celebrar negócio em que o destinatário da declaração de vontade do repre-sentado seja o próprio representante.

6.3

8. SÚMULAS E ENUNCIADOS

8.1. Enunciados das Jornadas do CJF409. Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpre-tados não só conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, mas também de acordo com as práticas habitualmente adotadas entre as partes.

420. Arts. 112 e 113. Os contratos coligados devem ser interpretados segundo os critérios hermenêuticos do Código Civil, em especial os dos arts. 112 e 113, conside-rada a sua conexão funcional.

9. QUESTÕES

1. (Imprensa.Of/SP/Advogado/2010) Sobre os fatos jurídicos, é correto afirmar que

(A) nas declarações de vontade se atenderá mais o sen-tido literal da linguagem do que a intenção nelas consubstanciada.

(B) o silêncio importará em anuência quando as cir-cunstâncias ou os usos assim autorizarem, e sempre que a declaração de vontade expressa não for ne-cessária.

(C) é nulo o negócio jurídico concluído pelo represen-tante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou deveria ser de conhecimento de quem com ele tratou.

(D) o protesto cambial e qualquer ato judicial que cons-tituam o devedor em mora são causas de suspensão de prescrição.

(E) são atos ilícitos aqueles que importem na deteriora-ção ou destruição da coisa alheia ou a lesão à pes-soa, a fim de remover o perigo iminente.

2. (Sefin/São José do Rio Preto/Auditor/2008) Leia os itens. Está correto, apenas, o contido em:

I. Em regra, a validade da declaração de vontade de-pende de forma especial, a não ser quando a lei ex-pressamente a dispensar.

II. Para subsistir a manifestação de vontade do autor que haja feito reserva mental de não querer o que manifestou, é necessário que o destinatário tenha conhecimento dela.

III. Quando não for necessária a declaração de vontade expressa, as circunstâncias ou os usos podem auto-rizar presumir que o silêncio tenha significado de anuência.

IV. Nas declarações de vontade, mais importante que o sentido literal da linguagem, é a intenção nelas con-substanciada.

V. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia inter-pretam-se extensivamente.

(A) I e III.

(B) I e IV.

(C) III e IV.

(D) II, III e IV.

(E) I, IV e V.

3. (PGM/Natal/Procurador/2008) Paulo, proprietário de um imóvel, constituiu Henrique como seu procu-rador para a venda do bem. Henrique, por falta de tempo disponível para tratar com os interessados em comprar o imóvel em questão, substabeleceu seus poderes para Mônica, que passou a negociar esse imóvel. Passado um mês, Henrique foi bene-ficiado por uma herança e procurou Mônica para adquirir o imóvel de Paulo. Considerando a situa-ção hipotética apresentada acima e as disposições do Código Civil acerca do assunto, é correto afirmar que a venda do imóvel a Henrique

(A) seria nula de pleno direito, por tratar-se de negócio jurídico celebrado consigo mesmo.

(B) seria plenamente válida, porque, diante do silêncio de Paulo, presume-se que este tenha permitido o autocontrato por Henrique.

(C) poderia ser anulada por Paulo, por tratar-se de ne-gócio jurídico celebrado por Henrique consigo mes-mo, por intermédio de substabelecimento.

(D) seria perfeitamente válida, porque os poderes de representação constituídos a Henrique foram subs-tabelecidos a Mônica.

4. (TJ/PA/Analista/2009) No que tange aos negócios jurídicos pode-se afirmar que

(A) os negócios neutros podem ser enquadrados entre os onerosos ou os gratuitos.

(B) nos negócios jurídicos onerosos nem sempre am-bos os contratantes auferem vantagens.

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308 Parte II • Parte Geral

(C) não há nenhum negócio que não possa ser incluído na categoria dos onerosos ou dos gratuitos.

(D) nos negócios jurídicos gratuitos só uma das partes aufere vantagens ou benefícios.

(E) os negócios celebrados inter vivos não se destinam obrigatoriamente a produzir efeitos desde logo, ain-da que estando vivas as partes.

5. (TRE/AL/Analista/2010) O negócio jurídico con-cluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, quando tal fato devia ser do conhecimento de quem o contratou, é

(A) nulo, sendo de 180 dias, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo decadencial para pleitear-se a anulação.

(B) anulável, sendo de 180 dias, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo decadencial para pleitear-se a anulação.

(C) anulável, sendo de um ano, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo decadencial para pleitear-se a anulação.

(D) nulo, sendo de um ano, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo decadencial para pleitear-se a anulação.

(E) anulável, sendo de dois anos, a contar do conheci-mento da nulidade, o prazo decadencial para plei-tear-se a anulação.

6. (MPE-SC – Promotor de Justiça – SC/2013) Nas de-clarações de vontade nunca se atenderá à intenção nelas consubstanciadas pelo agente, mas sim, uni-camente, ao sentido literal da linguagem .

7. (FCC – Analista Judiciário – Área Judiciária – TRT 9/2013) Em relação à interpretação do negócio jurí-dico, é correto afirmar que

(A) quaisquer negócios jurídicos onerosos interpretam--se estritamente.

(B) na vontade declarada atender-se-á mais à intenção das partes do que à literalidade da linguagem.

(C) a renúncia interpreta-se ampliativamente.

(D) o silêncio da parte importa sempre anuência ao que foi requerido pela outra parte.

(E) como regra geral, não subsiste a manifestação da vontade se o seu autor houver feito a reserva mental de não querer o que manifestou.

10. GABARITOS

Questão Resposta Comentário Onde encontro no livro?

1 B CC, art. 111 Parte II, Capítulo VI, item 2.2.3

2 C CC, arts. 111 e 112Parte II, Capítulo VI, item 2.2.3 e Capítulo V, item 5

3 C CC, art. 117 Parte II, Capítulo V, item 6.3

4 DÉ gratuito o negócio quando uma das partes não au-fere vantagem

Parte II, Capítulo V, item 4.6

5 B CC, art. 119, parágrafo único Parte II, Capítulo V, item 6.3

6 ERRADO CC, art. 112 Parte II, Capítulo V, item 5

7 B CC, art. 112 Parte II, Capítulo V, item 5