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MATLIT 1.1 (2013): 9-33. ISSN 2182-8830
Nenhum Problema Tem Soluo:
Um Arquivo Digital do Livro do Desassossego
MANUEL PORTELA CLP | Universidade de Coimbra
Resumo
O projeto 'Nenhum Problema Tem Soluo: Um Arquivo Digital do Livro do
Desassossego' tem como objetivo a criao de um arquivo digital hipermdia dedicado
obra Livro do Desassossego [LdoD], de Bernardo Soares/Fernando Pessoa.1 O arquivo
agregar fac-smiles digitais dos materiais documentais do LdoD, transcries
topogrficas desses materiais, transcries textuais das quatro edies crticas
publicadas entre 1982 e 2010 [Coelho 1982 (2 reimpresso, 1997); Cunha 1990-91 (2
edio, 2008); Zenith 1998 (10 edio, 2012); Pizarro 2010], e ainda ferramentas de
pesquisa e anlise textual. Esta agregao e codificao eletrnica dos fragmentos
combina edio gentica e edio social do LdoD, mostrando-o como rede potencial
de intenes autorais e como construo conjetural dos seus sucessivos editores. O
arquivo digital criar ainda um espao de virtualizao do LdoD que favorea novas
dinmicas de leitura, edio, investigao e escrita. Este artigo apresenta o projeto nos
seus aspetos tericos, tcnicos e metodolgicos, enquadrando-os na investigao em
curso neste domnio. Palavras-chave: escrita; livro; edio eletrnica; arquivo digital;
Fernando Pessoa; Livro do Desassossego.
Abstract
The research project 'No Problem Has Solution: A Digital Archive of the Book of
Disquiet' aims to produce a digital hypermedia archive of the Book of Disquiet [LdoD],
by Bernardo Soares/Fernando Pessoa. The archive will contain digital facsimiles of
the documentary materials of LdoD, topographic transcriptions of those materials,
textual transcriptions of the four critical editions published between 1982 and 2010
[Coelho 1982 (2nd printing, 1997); Cunha 1990-91 (2nd edition, 2008); Zenith 1998
(10th edition, 2012); Pizarro 2010], and also tools for search and textual analysis. This
aggregation and electronic encoding of textual fragments combines genetic and social
editing of LdoD, showing it both as a network of potential authorial intentions and a
conjectural construction of its successive editors. This digital archive will also provide
a space for virtualizing LdoD that encourages new dynamics of reading, editing,
research, and writing. This article presents the project in its theoretical, technical, and
methodological aspects, contextualizing them within ongoing research in the field.
Keywords: writing; book; electronic editing; digital archive; Fernando Pessoa; Book of
Disquiet.
1 Artigo produzido no mbito do projeto de investigao Nenhum Problema Tem Soluo: Um Arquivo Digital do Livro do Desassossego (referncia PTDC/CLE-LLI/118713/2010), do Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra. Projeto financiado pela FCT e cofinanciado pelo FEDER, atravs do Eixo I do Programa Operacional Fatores de Competitividade (POFC) do QREN, COMPETE: FCOMP-01-0124-FEDER-019715.
10 Manuel Portela
migrao de textos impressos e manuscritos para o meio digital
resultou na progressiva formalizao de princpios e normas de
codificao eletrnica que permitem tirar partido da processabilidade
automtica. A TEI-Text Encoding Initiative (Burnard e Bauman 2012)
produziu um conjunto de normas tcnicas que representam a informao
textual e metatextual dos originais atravs de um conjunto de esquemas e
marcadores XML, com o objetivo de aumentar a processabilidade dos textos
e a interoperabilidade entre diferentes sistemas e plataformas (Schreibman
2002 e 2010; Renear 2004; Vanhoutte 2004; Burnard et al. 2006; Cummings
2008; Barney 2012).2 Diversos projetos de edio eletrnica maximizaram a
lgica hipertextual do meio, estabelecendo redes de relaes entre textos e
imagens em diversas configuraes documentais de tipo autoral e editorial
(McGann 1993-2008; Smith 1994-2012; Eaves et al. 1996-; Werner 1999;
Drucker 2006; Jansen et al. 2009; Van Hulle e Nixon 2011-). Tomando por
vezes a forma de arquivo, estes projetos editoriais funcionam na base de uma
tenso entre uma funo representacional que garante a correspondncia dos
fac-smiles (ficheiros de imagem) e transcries (ficheiros de texto) a um
conjunto de originais manuscritos, datiloscritos ou impressos e uma funo
simulatria que procura maximizar as novas propriedades resultantes da
remediao digital.
Apesar da sofisticao terica que est na base da reconcetualizao das
prticas e formas editoriais em meio digital, a sua concretizao algortmica
fica aqum do potencial representacional, simulatrio e interpretativo
projetado para o novo meio (Shillingsburg 2006). O conceito de textualidade
radial formulado por Jerome McGann (2001) que pressupe a equivalncia
entre todas as instanciaes materiais de um texto e, portanto, a possibilidade
de qualquer delas funcionar como centro da constelao de testemunhos
genticos ou editoriais limitado na sua implementao digital quer pela
presena da hierarquia dos cdigos bibliogrficos originais, quer pela
hierarquia da estrutura de ficheiros e da interface que regula a representao e
a interao com os materiais digitalizados (Earhart 2012). Um arquivo digital
2 A Text Encoding Initiative um consrcio fundado em 1988 com o objetivo de desenvolver uma norma de representao de textos em formato digital. A primeira verso da norma foi publicada em 1994. Desde ento essa norma tem sido adotada por projetos institucionais e individuais de edio eletrnica para efeitos de ensino, investigao e preservao. Revista e aumentada periodicamente, a verso atual da norma designada TEI-P5 (2012; verso 2.3.0, janeiro de 2013). O consrcio integra atualmente 60 parceiros institucionais de diversos pases, incluindo bibliotecas, museus, editoras, departamentos universitrios, centros de investigao e associaes cientficas. Publica-se desde 2011 o Journal of the Text Encoding Initiative, que agrega a investigao sobre mtodos de codificao textual eletrnica com a investigao sobre diversos problemas tcnicos e tericos de humanidades digitais, como edio crtica digital, anlise lingustica, criao de corpora, digitalizao em massa, web semntica e edio de mundos virtuais. Para uma avaliao sucinta da histria, implicaes e estado atual da TEI vejam-se Vanhoutte 2004, Cummings 2008 e Barney 2012. O projeto LdoD adota a norma TEI-P5.
A
Um Arquivo Digital do LdoD 11
que pretenda ir alm de uma funo repositorial implica a criao de um
espao eletrnico que tire pleno partido das seguintes propriedades: a
reconfigurao contnua dos artefactos digitais ao nvel do cdigo, a
capacidade de marcar eletronicamente essas reconfiguraes, a agregao de
documentos e dados em ambientes integrados, e a criao de espaos de
interao colaborativa e intersubjetiva (Drucker 2009 e 2011).
Figura 1. Estrutura radial do Arquivo LdoD. A estrutura de base de dados e os
marcadores de codificao textual eletrnica a introduzir estabelecem uma rede de
relaes entre todos e cada um dos fragmentos de tal modo que a partir de cada um
deles possvel chegar automaticamente a qualquer outro que seja uma sua variante.
Alm disso, qualquer dos fragmentos agregados nos sete conjuntos possveis (fac-
smile, edio 1, edio 2, edio 3, edio 4, edio 5, edio n) pode ser o centro da
constelao. Manuel Portela, 2012.
12 Manuel Portela
Figura 2. Trs dimenses do Arquivo LdoD. A dimenso gentica (A) permite gerar
uma narrativa da composio; a dimenso social (B) permite gerar uma narrativa da
edio e receo; a dimenso virtual (C) permite explorar quer permutaes de A e B
na construo de verses, quer os prprios processos e mecanismos da escrita e do
livro. Manuel Portela, 2012.
O projeto de criao de um Arquivo Digital do LdoD procura constelar
radialmente os testemunhos textuais existentes (fac-smiles e edies 1 a 5) ou
a existir (edio n) [cf. Figura 1]. As capacidades processual, participatria,
enciclopdica e espacial do meio digital (Murray 2012) so exploradas de
modo a criar uma rede complexa de relaes documentais e um conjunto de
funcionalidades de simulao e interao aberta com essa rede documental.
Alm da dimenso gentica (construo do LdoD pelo autor) e da dimenso
social (construo do LdoD pelos editores), o Arquivo Digital do LdoD prev
uma dimenso virtual (construo do LdoD pelos leitores), com um conjunto
de funcionalidades interativas e dinmicas explicitamente programadas no
modelo [cf. Figura 2]. A codificao eletrnica dos fragmentos textuais
dever possibilitar configuraes radiais que respondem a mltiplas
interaes em cada uma das trs dimenses: gentica, social e/ou virtual. Ao
concetualizar e articular estas trs dimenses, o projeto LdoD procura
submeter os modelos de edio crtica eletrnica a processos literrios digitais
no contexto dinmico da Web 2.0 (Benel e Lejeune 2009; Fraistat e Jones
2009; Siemens et al. 2012).
Um Arquivo Digital do LdoD 13
Figura 3. Uma descrio funcional do Arquivo LdoD que distingue trs funes:
representao textual, simulao contextual e interao interpretativa. Manuel
Portela, 2011.
Trata-se de reinventar criticamente no arquivo digital as relaes entre as
funes de representao textual, simulao contextual e interao
interpretativa [cf. Figura 3]. Alm de fac-smiles digitais, transcries textuais
e outras formas de remediao, a representao textual implica a incluso de
dados sobre os documentos originais (registos bibliogrficos completos, com
uma descrio do meio e tcnica de inscrio, por exemplo), mas tambm
dados sobre os prprios derivados digitais (processos, normas, formatos,
resolues), bem como protocolos de preservao e arquivo (garantindo a
sua integrao e interoperabilidade com outros repositrios digitais). A
simulao contextual refere-se capacidade do arquivo para recuperar a histria
da produo (a dimenso gentica do arquivo) e a histria da edio e receo
das obras (a dimenso social do arquivo), incluindo a autoconscincia do
arquivo como nova ferramenta para produo de contexto (ou seja, para
estabelecer a sua prpria rede de associaes intertextuais entre os itens que
agrega e categoriza). Finalmente, a interao interpretativa descreve o conjunto
das funcionalidades digitais como um ambiente crtico para a gerao de
novas interpretaes. A codificao eletrnica (XML, XSLT, HTML5, etc.),
os metadados, a estrutura da base de dados e a programao devem resultar
na descoberta de novos padres e relaes atravs do processamento
automtico. Pesquisas agregadas de acordo com critrios abertos que
resultam numa constelao radial de documentos ou a possibilidade de
adicionar edies e anotaes dos utilizadores so dois exemplos desse nvel
de reinterpretao crtica. A implementao desta funo implica uma
concetualizao do arquivo como um espao de investigao.
14 Manuel Portela
1. Do ato de escrita mquina do livro
A edio eletrnica de manuscritos modernos que constituem projetos
inacabados de livros pode conceber-se a partir de diversos princpios.3 O
princpio usado pelos editores do Arquivo do LdoD toma por base a unidade
trecho ou fragmento, entendida como uma certa extenso textual com
marcadores temticos ou materiais de unidade, que podem ser reforados ou
no por marcadores grficos especficos: por exemplo, um espao maior ou
um trao entre duas sequncias textuais manuscritas que sugere uma
interrupo; ou um trecho datilografado; ou ainda, um texto publicado em
revista. As unidades de composio a integrar no Arquivo do LdoD tm por
base quer o conjunto formado pelas quatro edies crticas, quer os fac-
smiles digitais dos testemunhos autorais correspondentes a esse conjunto [cf.
Figura 4]. Por outro lado, possvel pensar no ato de escrita, semelhana
do ato de fala, como uma certa unidade temporal de escrita, que nem sempre
coincidente com a unidade material documental (folha solta, ou conjunto
de pginas num caderno, por exemplo), ou com outras unidades do discurso
escrito, como o pargrafo, ou da forma bibliogrfica, como o captulo. A
existncia de fragmentos embrionrios, de escala quase aforstica, juntamente
com fragmentos de extenso varivel, escritos em momentos separados no
tempo, sugere precisamente essa descoincidncia entre a unidade temporal de
escrita e o processo cumulativo e retrospetivo de acreo e reescrita que
produz coerncia semntica e coeso sinttica. Para Edward Vanhoutte
(2006) o manuscrito moderno carateriza-se por uma rede complexa daquelas
unidades temporais de escrita. Marta L. Werner (2011), por seu turno,
descreve o manuscrito moderno como registo da dinmica do texto no
processo de criar-se a si mesmo, situando-o num espao liminal de inscrio
privada que se reflete materialmente na sua condio textual indisciplinada.
3 Dois exemplos de edies eletrnicas crtico-genticas so a edio eletrnica das obras completas de Robert Musil: Kommentierte Edition smtlicher Werke, Briefe und nachgelassener Schriften. Mit Transkriptionen und Faksimiles aller Handschriften, organizada por Walter Fanta, Klaus Amann e Karl Corino (Robert Musil-Institut der Alpen-Adria Universitt Klagenfurt, DVD, 2009); e a edio em curso dos manuscritos de Samuel Beckett: Samuel Beckett Digital Manuscript Project (2011-[a concluir at 2030]), coordenada por Dirk Van Hulle e Mark Nixon.
Um Arquivo Digital do LdoD 15
Figura 4. LdoD 18-7-1916: Nenhum problema tem soluo. Transcrio textual
topogrfica. Referncia BN do fac-smile digital: bn-acpc-e-e3_144d2_0351_135r_t24-
C-R0150. Biblioteca Nacional de Portugal.
Ao usar a noo de trecho para se referir s unidades de composio do
LdoD, Fernando Pessoa mostra-se ciente dessa dimenso de agregao e
sequenciao de trechos como um dos princpios composicionais do LdoD.
O processo de reviso que imagina em direo ao horizonte bibliogrfico
parece implicar a produo simultnea de coerncia psicolgica e de
coerncia estilstica:
LdoD. (nota)
A organizao do livro deve basear-se numa escolha, rgida quanto
possvel, dos trechos variadamente existentes, adaptando, porm, os mais
antigos, que falhem psicologia de Bernardo Soares, tal como agora
surge, a essa vera psicologia. Aparte isso, h que fazer uma reviso geral
do prprio estilo, sem que ele perca, na expresso ntima, o devaneio e o
desconexo lgico que o caracterizam.
H que estudar o caso de que se devem inserir trechos grandes,
classificveis sob ttulos grandiosos, como a Marcha Fnebre do Rei Lus
Segundo da Baviera, ou a Sinfonia de uma Noite Inquieta. H a hiptese
de deixar como est o trecho da Marcha Fnebre, e h a hiptese de a
transferir para outro livro, em que ficassem os Grandes Trechos juntos.
(Pessoa 1982: 8)
16 Manuel Portela
Fernando Pessoa imagina submeter os fragmentos coerncia do livro,
reconhecendo quer a natureza desconexa do estilo devaneador de Bernardo
Soares, quer a afinidade que mantm entre si os trechos maiores. A coerncia
bibliogrfica parece depender, em simultneo, de duas lgicas: de uma lgica
externa de organizao que sequencia e articula os elementos de acordo com
a estrutura sinttica e o horizonte de totalizao do cdice, criando unidade a
partir do seu carter discreto e finito; e uma lgica interna de organizao que
associa os textos por afinidades estilsticas e semnticas, produzindo unidade
bibliogrfica por efeito cumulativo da coerncia discursiva entre fragmentos
breves e trechos longos. A dificuldade em fazer coincidir o espao material e
discursivo da escrita com o espao material e concetual do livro resulta num
processo de inacabamento e de reconfigurao sucessiva da conformao
entre espao da escrita e espao do livro.
Deste modo, a ciso heteronmica no decorre apenas da subjetividade
retroativa produzida por um modo de escrita. Ela resulta tambm da
descoincidncia entre ordem da escrita e ordem do livro, que se desdobra
numa autoconscincia autoral como produto das regras da escrita e numa
autoconscincia autoral como produto das regras do livro. Bernardo Soares
surge como o nome de uma psicologia manifesta num estilo e como nome de
autor potencial de um livro, autor que coproduzido retroativamente pelo
livro que deseja produzir e no apenas pela psicografia do seu modo de
escrita. Parece implicar que as regras de escrita que o definem enquanto
hetero-autor so tambm um dispositivo editorial de produo de coerncia
bibliogrfica, atravs do qual o heternimo se edita enquanto autor,
determinando os textos que fazem parte do seu livro em construo e,
atravs dessa produo conjunta de escrita e de cdice, o sujeito da escrita se
produz enquanto autor do livro.
As obras inacabadas de natureza fragmentria editadas postumamente
podem ser sujeitas a duas estratgias de edio antagnicas: uma das
estratgias consiste na produo de unidade que minore a natureza
fragmentria e inacabada, transformando um conjunto de folhas soltas e
cadernos num todo bibliograficamente coerente; a estratgia oposta consiste
na reconstruo minuciosa da fragmentariedade original, isto , na edio dos
fragmentos enquanto fragmentos (Werner 1995 e 1999; Dedner 2006). De
certo modo, as edies de Jacinto do Prado Coelho, Teresa Sobral Cunha e
Richard Zenith sequenciam e estruturam os trechos e fragmentos segundo
princpios de racionalidade bibliogrfica, enquanto a edio crtica de Pizarro
tenta captar a lgica temporal e cintica de composio e reviso, diluindo a
racionalidade bibliogrfica na evidncia do fragmento material como
evidncia da temporalidade cumulativa e fluida dos atos de escrita.4
4 Para uma histria sistemtica dos diferentes momentos e estratgias editoriais na produo do conjunto da obra de Fernando Pessoa, veja-se Pizarro 2012: 29-92.
Um Arquivo Digital do LdoD 17
Tomando como ponto de partida a concetualizao da escrita e do livro
no prprio LdoD, a segunda componente do projeto, intitulada Conceitos e
Formas da Escrita e do Livro na Imaginao Modernista, tem como
objetivo analisar histrica e teoricamente formas e conceitos da escrita e do
livro nas prticas modernistas. A possibilidade e a impossibilidade do livro
sero analisadas no discurso e nas prticas modernistas e ao longo do sculo
XX, consideradas num contexto translingustico e transcultural. Por um lado,
analisamos processos e obras que tomam a materialidade tipogrfica e a
unidade concetual do livro como horizonte do ato de escrita; por outro lado,
analisamos processos e obras em que a escrita excede os limites discursivos e
conceptuais do livro, centrando-se numa explorao aberta da
processualidade do prprio ato de escrita que resulta em disperso,
fragmentariedade e incompletude. Esta teorizao tem trs finalidades
principais: (a) elucidar a relao entre escrita e livro na produo de Fernando
Pessoa 5 ; (b) enquadr-la na conscincia autorreflexiva da escrita e dos
processos bibliogrficos e autobibliogrficos na literatura modernista; e (c)
desenvolver um modelo de investigao das prticas literrias centrado na
materialidade verbal, tcnica e social da linguagem e da comunicao.
2. Edies crticas eletrnicas
As ltimas dcadas caracterizam-se por transformaes tecnoculturais cujos
impactos se tm intensificado em inmeras atividades humanas. A
conectividade e a reprodutibilidade digitais originaram novas prticas criativas
e novos mtodos de produo de conhecimento (Schreibman e Siemens
2004; Schreibman et al. 2008; Deegan e Sutherland 2009a; McGann et al.
2010). Os mdia digitais abriram um amplo espao de investigao sobre as
materialidades da comunicao, designadamente sobre as interaes entre
cultura e tecnologias digitais. Uma das reas emergentes diz respeito histria
e anlise das materialidades tcnicas enquanto tecnologias de inscrio e
explorao esttica da tecnomediao na era digital (Kittler 1999; Manovich
2001, 2008 e 2012; Gitelman 2008; Hayles 2012). Novos modelos de
descrio e anlise das prticas de produo e comunicao mediadas pelo
livro e pela escrita tiveram impacto sobre a crtica textual. Refiram-se, em
particular, novas abordagens da cena da escrita e da interao entre processos
de escrita e publicao nas prticas modernistas. Refira-se ainda o recente
projeto suo-alemo dedicado genealogia da escrita (Genealogie des
5 Sobre este tpico, destaque-se a investigao recente de Pedro Seplveda, Os Livros de Fernando Pessoa (2012, Universidade Nova de Lisboa, tese de doutoramento), na qual se analisam os inmeros planos editoriais de Fernando Pessoa e se argumenta a favor da natureza editorial dos heternimos enquanto dispositivos de produo de coerncia bibliogrfica e de presena da imaginao e da fico do livro no processo de escrita.
18 Manuel Portela
Schreiben), que produziu novos estudos a partir da anlise de manuscritos e
datiloscritos de autores como Friedrich Nietzsche, Friedrich Drrenmatt,
Paul Celan, Walter Benjamin, Roland Barthes, Ren Char, Octavio Paz, entre
outros.6 O prprio Livro do Desassossego foi objeto recente de uma edio
crtica (Pessoa 2010) e a obra de Fernando Pessoa continua ser um objeto
crtico produtivo para os estudos literrios contemporneos. 7 De resto, a
centralidade do LdoD para a compreenso da obra de Pessoa e da literatura
modernista atestada quer pela investigao, quer pelas edies e tradues
que continuam a ser produzidas.
A migrao do patrimnio cultural e literrio para o meio digital tem
colocado com renovada acuidade o problema da representao de objetos e
prticas literrias, como demonstra a teorizao gerada pelas dezenas de
projetos de edio crtica e de arquivo digital da produo literria de diversos
perodos (Smith 2004; Burnard et al 2006; Vanhoutte e Van der Branden
2009; Deegan e Sutherland 2009b; Flanders 2009; Robinson 2009;
Shillingsburg 2009). Alguns dos projetos de edio e arquivo eletrnico
foram entretanto objeto de anlise sistemtica do ponto de vista das suas
funcionalidades e implicaes tericas, como aconteceu, por exemplo, com
os Dickinson Electronic Archives (Christensen 2008) e The William Blake Archive
(Loureno 2009). A conscincia da flexibilidade da textualidade digital
resultou em diferentes estratgias de remediao do manuscrito e do
impresso em meio digital. Expressas atravs de teorias e conceitos como
hypertext rationale (McGann 1996), radical scatters (Werner 1999), fluid
text (Bryant 2002 e 2007) e linkemic approach (Vanhoutte 2000 e 2006),
estas estratgias de remediao valorizam, por um lado, a codificao e
6 Entre 2004 e 2009, foram publicados pela Wilhelm Fink Verlag os 12 volumes seguintes: Martin Stingelin, Davide Giuriato e Sandro Zanetti, orgs., Mir ekelt vor diesem tintenklecksenden Skulum: Schreibszenen im Zeitalter der Manuskripte (2004); Davide Giuriato, Martin Stingelin e Sandro Zanetti, orgs., Schreibkugel ist ein Ding gleich mir: von Eisen: Schreibszenen im Zeitalter der Typoskripte (2005); Davide Giuriato, Martin Stingelin e Sandro Zanetti, orgs. System ohne General: Schreibszenen im digitalen Zeitalter (2006); Daniela Langer, Wie man wird, was man schreibt: Sprache, Subjekt und Autobiographie bei Nietzsche und Barthes (2005); Davide Giuriato, Mikrographien: Zu einer Poetologie des Schreibens in Walter Benjamins Kindheitserinnerungen (1932-1939) (2006); Sandro Zanetti, Zeitoffen: Zur Chronographie Paul Celans (2006); Thomas Fries, Peter Hughes e Tan Wlchli, orgs., Schreibprozesse (2008); Rudolf Probst, (K)eine Autobiographie schreiben Friedrich Drrenmatts Stoffe als Quadratur des Zirkels (2008); Davide Giuriato, Martin Stingelin e Sandro Zanetti, orgs., Schreiben heit: sich selber lesen: Schreibszenen als Selbstlektren (2008); Kurt Hahn, Ethopoetik des Elementaren: Zum Schreiben als Lebensform in der Lyrik von Ren Char, Paul Celan und Octavio Paz (2008); Hubert Thring, Corinna Jger-Trees e Michael Schlfli, orgs., Anfangen zu schreiben: Ein kardinales Moment von Textgenese und Schreibproze im literarischen Archiv des 20. Jahrhunderts (2009); Martin Stingelin, Matthias Thiele e Claas Morgenroth, orgs., Portable Media (2009). Cf. Genealogie des Schreiben (2009). 7 Veja-se o projeto de investigao Estranhar Pessoa: Um Escrutnio das Pretenses Heteronmicas (Laboratrio de Estudos Literrios Avanados, Universidade Nova de Lisboa), coordenado por Antnio M. Feij.
Um Arquivo Digital do LdoD 19
visualizao da variabilidade textual e, por outro, a reconfigurao varivel de
todos os elementos textuais a partir de opes dos utilizadores. Enquanto a
primeira estratgia projeta no espao topografado do ecr a dinmica
temporal da gnese autoral e da socializao editorial, a segunda decorre do
aparato crtico hipertextual e da processabilidade computacional:
This linkemic approach provides the user with enough contextual
information to study the genetic history of the text, and introduces new
ways of reading the edition. Because of the fact that a new document
window, displaying a text version of the user's choice, can be opened
alongside the hypertext edition, every user can decide on which text to
read as her own base text. The hypertext edition can then be used as a
sort of apparatus with any of the versions included in the edition. This
way, hypertext and the linkemic approach enable the reading and study
of multiple texts and corroborate the case for textual qualifications such
as variation, instability and genetic (ontologic/teleologic) dynamism.
(Vanhoutte 2006: 168)
A esta possibilidade de configurao varivel da variabilidade textual
acrescenta-se a investigao sobre gesto de metadados em edies crticas e
genticas digitais de grande complexidade (Pitti 2004; Price 2008; D'Iorio
2010). Uma parte do campo atualmente designado como Humanidades
Digitais teve origem no desenvolvimento de projetos de edio e arquivo
digital do patrimnio lingustico e literrio, e na sua estruturao sob a forma
de bases de dados analisveis com ferramentas informticas. O potencial do
espao eletrnico para simular diversas materialidades tem sido explorado de
mltiplas formas, dando origem gradualmente a um conjunto de protocolos
tcnicos comuns, sucessivamente atualizados pela Text Encoding Initiative e
outras normas. Ao mesmo tempo, diversos centros que desenvolvem edies
digitais de corpora lingusticos e literrios tm concebido e desenhado
ferramentas digitais capazes de responder s melhores prticas de
representao, codificao e manipulao de objetos digitais, incluindo
ferramentas de edio e marcao textual em ambiente web, criao de
comunidades em linha e espaos de interao crtica com os objetos digitais
publicados, em contexto de ensino e de investigao. 8 So igualmente
relevantes os projetos de investigao que procuram resolver problemas de
8 Dois exemplos de centros dedicados ao desenvolvimento de projetos e aplicaes para a investigao em humanidades so o Electronic Textual Cultures Lab, da Universidade de Victoria, no Canad, dirigido por Ray Siemens, e o Center for Textual Studies and Digital Humanities, da Universidade Loyola, em Chicago, dirigido por Steven Jones e George K. Thiruvathukal.
20 Manuel Portela
visualizao da informao atravs de interfaces grficas que representam
mltiplas verses e variantes simultaneamente.9
Projetos da ltima dcada e meia oferecem uma rica experincia editorial
no que diz respeito s potencialidades e limitaes do meio digital para
agregar, analisar e simular vastos corpora de textos e imagens. O Arquivo
LdoD procura incorporar a experincia acumulada por diversos modelos, de
que destaco, pela relevncia direta, os projetos dedicados aos manuscritos de
Samuel Beckett do Centro de Gentica de Manuscritos da Universidade de
Anturpia (Hulle e Nixon 2011); aos manuscritos de James Joyce (Genetic Joyce
Studies: Electronic Journal for the Study of James Joyce's Works in Progress) do Centro
James Joyce da Universidade de Anturpia; a edio digital da correspon-
dncia de Vincent Van Gogh, realizada pelo Museu Van Gogh e pelo
Instituto Huygens da Academia Real de Artes e Cincias da Holanda (Jansen
et al. 2009); o projeto Modernist Magazines Project (ed. Peter Brooker and
Andrew Thacker, 2006-2011,) da De Montfort University, Leicester; e as
edies digitais includas no Austrian Academy Corpus, entre as quais a
edio da revista Die Fackel, de Karl Kraus.
3. Plano, mtodos e tarefas de investigao
O projeto Arquivo Digital do LdoD tira partido de um conjunto de recursos
j existentes: o Esplio Digital Fernando Pessoa (2008-[em curso]), da Biblioteca
Nacional de Portugal; o Arquivo Pessoa (2008) da responsabilidade do Instituto
de Estudos sobre o Modernismo, da Universidade Nova de Lisboa; a
Biblioteca Digital Fernando Pessoa (2010), publicada pela Casa Fernando
Pessoa; e as vrias edies do Livro do Desassossego (Coelho 1982 [1997];
Cunha 1990-91 [2008]; Zenith 1998 [2012]; Pizarro 2010). Estes materiais
sero transcritos e codificados em XML e XSLT, acrescidos de um conjunto
de marcadores resultantes da nossa prpria anlise dos textos e imagens a
incluir. Paralelamente explorao do potencial editorial e cognitivo do meio
digital na criao de uma nova representao textual e metatextual do Livro do
Desassossego, a investigao incidir, como referido, sobre os conceitos e
formas da escrita e do livro na imaginao modernista, tomando como ponto
9 No domnio da codificao eletrnica e da colao automtica para edio crtica de textos, refiram-se: Juxta Commons, verso web de uma aplicao desenvolvida anteriormente como aplicao autnoma pelo consrcio Nines (Nineteenth-century Scholarship Online), sediado na Universidade da Virginia (verso beta, dezembro de 2012); e e-Laborate, espao web de trabalho para edio digital desenvolvido pelo Huygens Institute for the History of the Netherlands of the Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences (e-Laborate3, verso de 2012). No domnio da agregao, anotao e publicao web de objetos digitais, em regime de cdigo aberto, refiram-se as aplicaes: Collex, desenvolvida na Universidade da Virginia, desde 2007 (verso 1.6.7, 2009); e Omeka, desenvolvido no Center for History and New Media, George Mason University, desde 2007 (verso 2.0, janeiro de 2013).
Um Arquivo Digital do LdoD 21
de partida o Livro do Desassossego e a obra de Fernando Pessoa. O facto de a
equipa de investigao contar com especialistas em diversas lnguas e
literaturas permite um tratamento transcultural e translingustico das questes
a investigar. O processo de preparao de um arquivo que tire o mximo
partido das funcionalidades especficas do meio digital e dos processos
automticos de anlise textual constitui uma oportunidade para repensar a
natureza da escrita e do livro a partir do prprio Livro do Desassossego. Esta
experincia meta-editorial de uma nova disseminao documental e discursiva
da obra contribuir para a teorizao da relao entre escrita e livro. A
construo das dimenses gentica, social e virtual do arquivo dever
funcionar como laboratrio para formular e testar um conjunto de hipteses
sobre a materialidade lingustica e bibliogrfica das prticas literrias.
Os membros da equipa do projeto formam quatro grupos de trabalho,
associados a cada uma das quatro tarefas principais. Dois dos grupos so
responsveis pela componente especificamente tecnolgica do arquivo. Os
restantes dois grupos so responsveis pela anlise dos fac-smiles digitais dos
materiais autgrafos do LdoD, e pelo desenvolvimento do conjunto de
estudos tericos sobre a escrita e o livro nas prticas modernistas. Todos os
membros da equipa participam na tarefa de disseminao e publicao dos
resultados. Esta configurao varivel dos grupos de trabalho ao longo das
vrias fases do projeto est concebida para propiciar cruzamentos
disciplinares entre a componente tecnolgica e a componente terica do
projeto. A representao e remediao digital do LdoD devem constituir um
espao de investigao que d origem a novas ideias sobre a escrita e o livro.
Do mesmo modo, a reflexo terica sobre a escrita e o livro contribuir para
tornar mais complexas a estrutura e as funcionalidades do arquivo. Esta
diviso do trabalho de investigao procura favorecer o desenvolvimento de
uma metodologia especfica de humanidades digitais, e em particular de
estudos literrios digitais, enquanto campo interdisciplinar emergente.
Humanidades Digitais (ou Computao para as Humanidades) um
campo interdisciplinar de investigao que resulta das capacidades
representacionais e de modelao dos meios digitais para codificar textos,
visualizar espaos humanos e naturais, visualizar dados, simular fenmenos, e
agregar, estruturar, pesquisar e recuperar informao. 10 O diagrama de
Willard McCarty (2003: 1024) representa a Computao para as
10 Para um levantamento terico das metodologias do campo veja-se Susan Schreibman, Ray Siemens e John Unsworth, eds., A Companion to Digital Humanities, Oxford: Blackwell, 2004. Um nmero especial da revista Digital Humanities Quarterly, Volume 6, Number 3 (2012), foi recentemente dedicado histria deste campo. Organizado por Julianne Nyhan sob o ttulo Hidden Histories: Computing and the Humanities c. 1965-1985, este nmero rene uma srie de entrevistas com cinco protagonistas na teorizao das humanidades digitais nas ltimas duas dcadas: Ray Siemens, John Unsworth, Harold Short, Willard McCarty e Geoffrey Rockwell. Refiram-se ainda as obras seguintes: McCarty 2005, Drucker 2009, Fiormonte et al 2010, Bartscherer and Coover 2011, Gold 2012, Berry 2012, Lunenfeld et al 2012.
22 Manuel Portela
Humanidades como um territrio metodolgico que funciona em retroao
com cada disciplina: os modelos computacionais recebem input terico e
metodolgico de disciplinas especficas; por seu turno, o ato de formalizar e
desenhar modelos digitais e ferramentas analticas retroalimenta as respetivas
disciplinas. Ao mesmo tempo, as metodologias computacionais geram
processos de transferncia metodolgica e terica entre disciplinas. Estas
trocas interdisciplinares, que ocorrem naquilo que McCarty descreve como
um territrio metodolgico comum, repercutem-se em reas disciplinares
mais amplas. So estas intersees disciplinares, fomentadas pela dinmica de
retroao entre disciplinas especficas e modelos e ferramentas
computacionais, que permitem mapear as trocas de conhecimento que
definem atualmente as Humanidades Digitais.
3.1. Levantamento, recolha, digitalizao e transcrio de materiais
A primeira tarefa consiste no levantamento e localizao de fontes e
materiais, seguida de digitalizao e transcrio do conjunto de fontes e
materiais primrios a incluir no arquivo. Para alm dos ficheiros digitais de
imagem relativos ao esplio do LdoD e respetivos metadados, fornecidos pela
Biblioteca Nacional de Portugal como instituio parceira do projeto, so
transcritos todos os fragmentos correspondentes s edies do LdoD. Sero
solicitadas autorizaes para reproduo de uma amostra selecionada de
fragmentos do LdoD em traduo em diversas lnguas. Ser ainda recolhida a
principal bibliografia crtica dedicada ao LdoD. No final desta tarefa,
deveremos dispor, em formato digital (sob a forma de ficheiros de imagem e
de texto), da maior parte dos materiais primrios que constituiro a base de
dados textual do arquivo.
3.2. Anlise editorial e definio da marcao eletrnica e metadados
A segunda tarefa ser a definio dos protocolos tcnicos de marcao
textual eletrnica (XML, XSLT) a partir de uma anlise editorial do corpus
recolhido e transcrito que permita fazer uma descrio formal das
propriedades dos diversos objetos documentais e textuais, que resultar num
modelo de codificao eletrnica. Espera-se produzir uma anlise sistemtica
dos materiais recolhidos, digitalizados e transcritos, com o objetivo de
desenvolver um prottipo de codificao XML capaz de responder a todas as
funcionalidades, estticas e dinmicas, a integrar no arquivo. A codificao
ser baseada nas normas de TEI-P5 acrescidas de marcadores resultantes da
anlise e modelao dos documentos. Espera-se desenvolver um conjunto de
marcadores textuais e semnticos que suportem as mltiplas funcionalidades
de pesquisa, agregao, anlise textual e interao dinmica virtual com os
objetos digitais que constituiro a base de dados.
Um Arquivo Digital do LdoD 23
3.3. Produo de uma teoria da escrita e do livro na imaginao modernista
Em simultneo com as tarefas 1 e 2, ser desenvolvido um enquadramento
terico relativo escrita e ao livro. Esta reflexo sobre a natureza e
materialidade especficas do livro e da escrita toma o Livro do Desassossego e as
formas e prticas modernistas como ponto de partida. A partir da
investigao internacional relevante e de estudos de caso especficos do
projeto (como Karl Kraus, Robert Musil, Walter Benjamin, James Joyce, etc.)
espera-se construir uma nova articulao das questes da cena da escrita na
sua relao com os cdigos do livro, enquanto conceito e enquanto objeto.
Deste modo, ser possvel testar modelos de anlise das materialidades
verbais, tcnicas e sociais da literatura, e testar uma concetualizao do
processo de escrita como experimentao material com as condies de
produo da subjetividade e do sentido. Espera-se produzir um conjunto de
ensaios originais a publicar posteriormente na base de dados, organizar um
colquio internacional e produzir um livro sobre a escrita e o livro na
imaginao modernista. Esta tarefa desenvolve-se em sete fases sucessivas:
Fase 1: anlise do LdoD como ato de escrita' (Shillingsburg 2006), i.e.,
como uma srie de eventos genticos e sociais (histria composicional e
editorial);
Fase 2: anlise da tematizao da escrita no LdoD, incluindo as relaes
entre escrita manuscrita, datiloscrita, tiposcrita e leitura;
Fase 3: definio de um corpus de outras obras europeias e no-
europeias nas quais o processo de escrita-em-curso possa ser descrito de
modos similares ou contrastados;
Fase 4: o processo de escrita como investigao da linguagem e do
sujeito;
Fase 5: anlise das formas materiais e concetuais do livro baseada numa
srie de estudos de caso;
Fase 6: traduo da investigao produzida nesta componente do
projeto, e marcao de todos os documentos (originais e tradues) para
incluso na base de dados;
Fase 7: definio das associaes e mapas concetuais que integram esta
componente da investigao na estrutura e funes gerais do arquivo.
3.4. Construo da base de dados, interface e funcionalidades da comunidade virtual
A quarta tarefa consiste na construo da base de dados, da interface do
arquivo e das funcionalidades da comunidade virtual, cuja robustez testada
em funo dos diversos tipos de utilizao e funcionalidades previstos para o
arquivo. Espera-se conseguir uma integrao de todas as funcionalidades, seja
atravs da adaptao de ferramentas disponveis em cdigo aberto, seja
atravs de programao prpria a desenvolver de acordo com os objetivos do
arquivo. O arquivo dever ficar a funcionar experimentalmente durante o
ltimo semestre previsto para esta tarefa. Esta tarefa conclui-se com a
24 Manuel Portela
publicao e divulgao do arquivo e com iniciativas para constituir uma
primeira comunidade de utilizadores.
3.5. Publicao e disseminao dos resultados
Durante todo o projeto, decorrero atividades de disseminao dos
resultados do trabalho em curso: disseminao no mbito de encontros
cientficos nacionais e internacionais e disseminao atravs de aes de
divulgao pblica em contexto no-acadmico. A publicao do Arquivo
LdoD (com uma estrutura trilingue) num stio web de acesso pblico, assim
como a publicao da investigao sobre o livro e a escrita no arquivo digital
constituiro os dois resultados fundamentais do projeto. Espera-se submeter
o conjunto de resultados intercalares do projeto crtica pelos pares, em
colquios e revistas, com o objetivo de testar as melhores solues tcnicas e
de assimilar as melhores prticas e teorias. Espera-se disseminar os resultados
do projeto, designadamente o arquivo digital e a teorizao sobre a escrita e o
livro, de forma a poder torn-los instrumentos de investigao e ensino.
Espera-se ainda contribuir, com oficinas de formao especficas em escolas
e universidades, para a construo da comunidade de ensino e investigao
de utilizadores do arquivo, em particular no mundo de lngua portuguesa.
4. Problemas e solues
Nenhum Problema Tem Soluo: Um Arquivo Digital do LdoD pode ser
sintetizado em trs componentes editorial, computacional e torica , s
quais correspondem problemas de investigao especficos.
4.1. Componente editorial
Problema de investigao n1: possvel usar um ambiente hipermdia para produzir
um arquivo digital que rena a abordagem gentica e social no processo de edio?
A crtica gentica centra-se na reconstruo da gnese de uma obra, ou
seja, na edio dos documentos autorais que permitem reconstituir os
momentos de composio autoral. No caso do LdoD, os testemunhos dos
fragmentos e trechos incluem trs processos de inscrio distintos:
manuscrito, datiloscrito e/ou verso impressa. Cada processo de inscrio
pode conter ainda diferentes camadas de reviso. Por exemplo, os
testemunhos autorais que fazem parte da gnese de um fragmento podem
ramificar-se em: dois manuscritos com diferentes verses de um mesmo
fragmento; um manuscrito e um datiloscrito que faz alteraes ao
manuscrito; um datiloscrito com alteraes manuscritas; um manuscrito, um
datiloscrito e uma verso impressa publicada em revista. Uma representao
gentica desta ramificao documental implica incluir todos os testemunhos
no arquivo e encontrar um modo de codific-los para que a cronologia e
genealogia de reviso se torne clara - por exemplo, sequenciando-as ou
Um Arquivo Digital do LdoD 25
justapondo-as automaticamente, com variantes destacadas de acordo com um
cdigo de cores e com a respetiva datao.
A noo de edio social, por outro lado, refere a produo e reproduo
do texto a partir do momento em que deixa de estar sob controlo individual
do autor e se torna num objeto textual e bibliogrfico de reviso e
transmisso negociada em processos de publicao, seja ainda durante vida
do autor, seja postumamente. Cada ato de publicao cria uma nova verso
material da obra, mesmo que a variao afete apenas formato, composio
tipogrfica ou outro aspeto do cdigo bibliogrfico. No caso do LdoD, como
apenas alguns trechos foram publicados em revista e a obra nunca foi
organizada e publicada pelo autor, o livro foi desde a primeira edio uma co-
construo dos seus editores, que selecionaram, transcreveram e organizaram
os testemunhos autorais, interpretando de formas diferentes os materiais do
esplio e as indicaes de Fernando Pessoa. A representao deste processo
de socializao textual implica que o arquivo desenvolva marcadores
especficos para as quatro edies crticas publicadas. Na medida em que
permite apresentar em configuraes variveis um conjunto vasto de textos, a
textualidade digital permite integrar edio crtica e edio documental de um
modo que transcende a tradicional representao bibliogrfica da relao
entre texto e aparato crtico, proporcionando aos leitores e estudiosos acesso
reticular ou hierarquizado a mltiplas formas genticas e sociais dos
fragmentos do LdoD. Deste modo, torna-se possvel produzir uma escala de
observao integrada para todo o processo de transformisso textual.11 Uma
representao da histria editorial do LdoD significa incluir os quatro
testemunhos editoriais no arquivo e codific-los eletronicamente nas suas
variantes microtextuais (transcries de passos especficos) e macrotextuais
(incluso/excluso de fragmentos, atribuio heteronmica, organizao),
tornando-as automaticamente comparveis.
4.2. Componente computacional
Problema de investigao n2: possvel codificar eletronicamente os testemunhos
genticos e editoriais do LdoD, concebendo estruturas de dados e algoritmos capazes de
submeter as dimenses gentica e social do arquivo processabilidade? possvel, alm
disso, programar uma dimenso virtual do LdoD que incorpore um princpio de
processabilidade dinmica, capaz de integrar no arquivo as interaes com os utilizadores
ao longo do tempo?
A integrao da dimenso gentica e da dimenso social do arquivo
implica que os leitores possam aceder (1) aos fac-smiles e transcries de
todos os materiais genticos nas suas variaes de composio; (2) s quatro
edies crticas produzidas entre 1982 e 2010; e ainda a (3) agregaes abertas
11 Adoto aqui o termo usado por Randall McLeod transformission para referir o princpio geral de transmisso textual como um processo de transformao, inerente a cada instanciao material dos textos.
26 Manuel Portela
dos materiais referidos em (1) e (2), em resposta a pesquisas e critrios
definidos pelos utilizadores. Estas agregaes genticas e sociais geradas
pelos leitores devem ocorrer ainda dentro de um espao virtual crtico
interativo que permite anotaes e extenses aos fragmentos, alargando a
virtualizao experimental da edio e organizao do livro aos prprios
processos de escrita. Diversos projetos de arquivo digital tm desenvolvido
modelos de codificao e programao que permitem visualizar complexas
representaes crtico-genticas, seja de mltiplas verses documentais, seja
de mltiplas camadas de reviso (Blake, Melville, Dickinson, Whitman, Musil,
Wittgenstein, Beckett). Alguns destes arquivos incluem uma componente de
representao da socializao textual, com diferentes edies e documentos
de receo (Folsom e Price, 1995-). O problema da criao de um espao de
interao e adio dinmica aos materiais do arquivo tem sido tambm
formalizado num pequeno nmero de casos. No entanto, no existe ainda
nenhum modelo ou soluo satisfatria de integrao das funcionalidades
genticas, sociais e virtuais. A concetualizao da componente digital do
Arquivo LdoD implica justamente encontrar uma soluo tcnica satisfatria
ao problema enunciado acima, a nvel da codificao eletrnica dos
documentos e da programao das operaes.
A componente digital do projeto pode sintetizar-se nas seguintes alneas:
(a) ESTRUTURA
(a.1) Elementos atmicos (ainda que correspondam a diversos elementos
que representem uma unidade, e.g., diferentes verses do mesmo texto)
(a.2) Propriedades dos elementos atmicos (por exemplo, cronologia,
materialidade, atribuio, esplio, ncleo temtico, etc.)
(a.3) Criao de elementos compostos
(a.3.1) Dinamicamente, agregando as propriedades dos elementos
atmicos (por exemplo, uma agregao cronolgica dos textos atribudos a
VG e, se houver vrias verses de um dos textos, dever surgir a mais antiga)
(a.3.2) Por construo em que se consideram as 4 edies (1982, 1990-91
[2008],1998 [2012], 2010) + a transcrio topogrfica do projeto + as que os
utilizadores quiserem construir. Nesta forma de construo poder haver
funcionalidades de interface que simplifiquem o trabalho do utilizador final
(por exemplo, permitindo uma variao de uma construo que j existe).
(b) INTERFACE
(b.1) Ser necessrio definir interfaces de pesquisa para suportar (a.3.1)
(b.2) Suportar interfaces de criao para (a.3.2) em particular nos aspetos
da construo partilhada
(c) INTERNACIONALIZAO
(c.1) Sistema deve funcionar em dupla entrada (portugus e ingls)
(c.2) Textos publicados sero, em alguns casos, multilingues (portugus e
ingls, predominantemente, mas tambm noutras lnguas)
(d) COMUNIDADE
Um Arquivo Digital do LdoD 27
(d.1) Definio de social software features que suportam a comunidade
[codificao TEI, comentrios, publicao de materiais didticos, colees de
materiais, etc.]
(d.2) Integrao das social software features com a construo
partilhada do arquivo (cf. a.3.2)
(d.3) Textos sobre textos, isto , integrao do trabalho cientfico
produzido sobre o arquivo e sobre a temtica do livro e da escrita (de acordo
tambm com as propriedades estruturais definidas em a.1, a.2 e a.3)
(e) PRIVILGIOS DE ACESSO
(e.1) Acesso pblico sem registo ao material publicado
(e.2) Acesso pblico com registo (rea da comunidade de ensino e de
investigao)
(e.3) Acesso reservado edio e adio de materiais base de dados
(f) SOFTWARE
(f.1) Pginas estticas marcadas com a estrutura XML
(f.2) Pginas dinmicas adaptando software existente
(f.3) Desenvolvimento de um sistema adaptado s necessidades mediante
programao especfica
4.3. Componente terica
Pergunta de investigao n3: medida que tentamos remediar e representar os
processos bibliogrficos e de escrita no LdoD, ser possvel repensar a materialidade da
literatura examinando a relao especfica entre atos de escrita e formas do livro tal como
foram performatizadas e imaginadas nos discursos e prticas modernistas? Por outras
palavras, como que esta dinmica se desenrola em vrios textos-livros modernistas
medida que a subjetividade e o sentido so produzidos experimentalmente por meio de
prticas inscricionais, como a escrita mo, a datilografia e a impresso?
N' O Livro da Conscincia, Antnio Damsio refere a soluo encontrada
para o ttulo portugus da sua obra (em ingls, Self Comes to Mind) como uma
homenagem a Fernando Pessoa (419). Uma das epgrafes escolhidas
retirada do LdoD e sugere a ligao entre a introspeo autorreflexiva e
metaconsciente de Bernardo Soares e o conhecimento atual sobre a
complexidade da integrao das zonas cerebrais de mapeamento corporal na
produo do sentido do eu. Esta citao , de resto, a mesma que serviu para
encenar o momento de afinao da orquestra que abre o Filme do Desassossego
(2010), de Joo Botelho. A escrita e o livro podem ser vistos como parte
daquilo que Damsio designa como homeostase sociocultural, resultante do
processo de interao com o impulso homeosttico biolgico que favoreceu
o desenvolvimento da mente consciente e a integrao de padres que
produz o sentido do eu (356-363). Que o LdoD seja lido, na era da
imagiologia por ressonncia magntica funcional, como um livro da
conscincia nas teorias da equivalncia mente-crebro das neurocincias
atuais evidencia a sua relevncia como indagao das possibilidades de
autoconhecimento da mente humana. Ao mapear as relaes entre livro e
28 Manuel Portela
escrita, usando a virtualizao eletrnica para explicitar a dinmica de
processos composicionais e editoriais, o Arquivo Digital LdoD tambm
uma investigao terica e tcnica sobre a conscincia do livro nos processos
literrios de escrita, edio e leitura.
5. Consideraes finais
Diversos projetos de edio e arquivo digital realizados nas ltimas duas
dcadas tm adotado uma abordagem de codificao exaustiva ao traduzirem
as teorias da crtica gentica e da socializao textual numa complexa
metodologia de filologia eletrnica. O Arquivo LdoD adota essa metodologia,
mas pretende usar tambm a capacidade simulatria dos ambientes
eletrnicos para reformular perguntas e repensar a fenomenologia textual no
espao participatrio da Web 2.0. Este projeto prope-se construir um
ambiente computacional que nos faa olhar de novo para a materialidade da
escrita e do livro na produo da experincia literria. Os dois objetivos
principais devem funcionar num circuito de retroalimentao: (1) construir
um arquivo digital do LdoD que realize em maior grau o potencial da
remediao computacional ao nvel da codificao textual e da programao;
(2) transformar o processo de construo do arquivo e o arquivo resultante
num instrumento de investigao para gerar novas ideias e novas teorias. A
interfacializao de um espao de escrita, edio e leitura colaborativa com
base no LdoD representa a reimaginao do arquivo como constelao radial
e distribuda de simulaes interativas, isto , a concretizao de uma
experincia concetual que procura reinventar o meio digital para alm do
horizonte da codificao bibliogrfica.
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2013 Manuel Portela.