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MEMÓRIAS E VISÕES DO PARAÍSO Explorando o Mito Universal de uma Idade de Ouro Perdida RICHARD HEINBERG 1991

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MEMÓRIAS E VISÕES DO PARAÍSO

Explorando o Mito Universal de uma Idade de Ouro Perdida

RICHARD HEINBERG

1991

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Este livro é afetuosamente dedicado a meus amigos Michael e Nancy Exeter. Tradução Octávio Mendes Cajado

Em algum lugar do mundo inferior, fomos criados pelo Grande Espírito, o Criador. Fomos criados Primeiro um, depois dois, depois

três. Fomos criados iguais, na unicidade, vivendo de modo espiritual, onde a vida é eterna. Éramos felizes e vivíamos em paz com os

nossos semelhantes. Todas as coisas eram abundantes, propiciadas pela nossa Mãe Terra, sobre a qual fomos colocados. Não

precisávamos plantar nem trabalhar para obter comida. As doenças e os problemas eram desconhecidos. Ancião dos hopis Dan Katchongva

Os seres humanos mais antigos viviam sem desejos maus, sem culpa

nem crime, e, por conseguinte, sem penalidades nem compulsões. Tampouco havia necessidade de recompensas, visto que, pela

instigação da sua própria natureza, trilhavam caminhos virtuosos. E como nada se desejava contrário à moral, nada se proibia através do

medo. Tácito, poeta romano (século I d.C.)

[Na Primeira Idade] havia tão somente uma religião, e todos os homens eram santos; em vista disso, não se sentiam solicitados a levar a efeito cerimônias religiosas. Na Primeira Idade não havia

deuses nem demônios. A Primeira Idade não conhecia doenças; não havia redução de nada com o passar dos anos; não havia ódio, nem

vaidade, nem quaisquer maus pensamentos; tampouco havia tristeza

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ou medo. Naqueles tempos, os homens viviam o quanto queriam viver e não tinham medo da morte.

O Mahabharata da Índia

Na Idade da Virtude Perfeita eles eram justos e corretos, sem saber que o ser assim significava retidão; amavam-se uns aos outros, sem

saber que o fazer assim significava benevolência; eram sinceros e leais de coração, sem saber que tratava-se de boa-fé; em seus

movimentos simples, empregavam os serviços uns dos outros sem pensar que estavam dando ou recebendo algum presente. Por

conseguinte, suas ações não deixavam traços e não havia registro dos seus negócios.

Chuang Tzu, sábio chinês (século IV a.C.)

Também disse Deus: o homem à nossa imagem, conforme a nossa

semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre

todos os répteis que rastejam pela terra. Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher o criaram...

E plantou Deus o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do Oriente, e pôs nele o homem que havia formado...

Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para que o cultivasse e guardasse.

Gênesis 1:26, 27; 2:8, 15

Agradecimentos Estou encantado por ter, afinal, a oportunidade de agradecer publicamente às pessoas que me ajudaram na criação deste livro.

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Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a Marilyn Ferguson e Jeremy Tarcher, que viram que havia um livro para ser escrito e me tornaram possível escrevê-Io; e a todo o pessoal da Jeremy P. Tarcher, Inc., que aplicou as suas várias habilidades editoriais com calor e entusiasmo genuínos. Sou também devedor de Susan Rogers que, incansável, esquadrinhou para mim as bibliotecas e livrarias de Portland, Oregon, e me mandou um sem-número de livros e artigos, que, de outro modo, eu nunca teria podido encontrar; e de Roger Migchelbrink, que me acompanhou em muitas excursões as bibliotecas do Colorado e farejou passagens obscuras, mas importantes, da literatura religiosa do mundo. Não posso expressar adequadamente minha profunda gratidão pela generosidade e tolerância dos 150 residentes da comunidade de Sunrise Ranch, que me sustentaram durante os dois anos, aliás improdutivos, que passei preparando o manuscrito. Foi a sua boa vontade para dar ao Paraíso uma forma terrena numa base cotidiana, através da qualidade do seu modo de vida, que faz deste livro mais que um simples exercício teórico. Finalmente, eu queria agradecer ao meu editor, Dan Joy, que veio compartilhar da visão inspiradora deste livro, e que, delicada e persistentemente, cultivou tudo o que era harmonioso à visão, e, paciente, arrancou as idéias e a linguagem que não se lhe ajustavam. No processo de trabalhar juntos por meses ou anos, dissecando pensamentos e podando parágrafos, autores e editores acabam conhecendo o interior das mentes uns dos outros como a planta da própria cozinha. Em alguns casos, tenho a certeza de que a experiência é cruciante para as duas partes; neste caso, todavia, o processo todo foi um prazer sem contraste.

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Adam Naming the Beasts (Adão dando nome às feras), de William

Blake (1810)

Prefácio

Já se disse da música de Mozart que ela poderia ter sido escrita antes da Queda. Poder-se-ia dizer o mesmo das Lembranças e visões do Paraíso de Richard Heinberg. Heinberg é um explorador das regiões do mito e da profecia. Essas regiões são estranhas, no sentido de que o mundo pintado, assim no mito como na profecia, é tão diferente do mundo que conhecemos que é capaz de nos tornar, a princípio, incrédulos aos dois. Um explorador,

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porém, é mais que um viajante, que pode simplesmente contemplar, rápido e incrédulo, paisagens exóticas, e, logo, com um suspiro de alívio, retornar aos lugares familiares que costuma habitar. O explorador precisa demorar-se em ambientes não-familiares e ter coragem suficiente para desafiar a desorientação inevitavelmente resultante da sua estada. Em seguida, reorientado, precisa ter a mente e o coração abertos para encontrar sentido no que se lhe deparou, e a generosidade de espírito para transmitir esse sentido a outros menos aventurosos do que ele. Tudo isso fez Heinberg. Ele está fazendo muito mais, entretanto, do que apresentar, aos que vivem longe dos mitos, histórias estranhas e predições forçadas. Está Ihes dizendo - e a nós também que existe um componente oculto na nossa relutância em acreditar em histórias antigas e aceitar descrições de coisas por vir. Esse componente, diz ele, é que, longe de nos serem alheias, as regiões umbrosas do passado e do futuro não são ficções. Pelo contrário, o domínio mítico é a realidade a longo prazo da nossa progênie coletiva, ao passo que o sonho profético é uma possibilidade para os que desejam atualizá-Ia. Somos como crianças adotadas que, ao descobrirmos que os nossos pais verdadeiros não são os que tínhamos presumido, nos recusamos a reconhecer, não somente o parentesco, senão também as perspectivas alteradas que dele podem fluir. A grande tarefa intelectual que Heinberg nos propõe é o que os psicanalistas junguianos denominam anamnese, ou a recuperação de lembranças sepultadas, individuais e coletivas. Como sugere a origem grega da palavra, a anamnese não é uma proposta moderna. Platão insistiu que todo pensamento é recordação. E os devotos dos Mistérios Órficos procuraram compensar o Leste, o tradicional rio do esquecimento, com um lago da recordação, no qual se banhariam os iniciados para recuperar o apelo do cosmo primevo e o lugar deles nesse cosmo. No século XIX, Friedrich Nietzsche, cuja carreira de filósofo se iniciou com um estudo intensivo de filologia clássica, interessou-se profundamente por essas idéias e advogou o que

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denominava mnemotécnica - método sistemático de relembrar alguma coisa que, a não ser assim, cairia no esquecimento. Um dos pensadores mais aventurosos que herdaram a visão analítica foi o médico austro-americano Wilhelm Reich, que declarou que "o sonho do Paraíso... é racional e necessário". Reich, cujo objetivo terapêutico era a restauração da criatividade energética das pessoas que se sentiam profundamente deprimidas, convenceu-se de que os grandes movimentos políticos do seu tempo, tanto revolucionários, eram esforços desesperados, porém mal-orientados, para restaurar uma ordem social pré-histórica perdida. Conquanto a exposição de Richard Heinberg assuma a forma de prosa, a sua visão é poética. Para utilizar um termo tomado de empréstimo ao poema épico Paraíso, do poeta John Milton, Heinberg mostra-nos o que era, e o que voltará a ser, viver "emparaisado". Porém a mais rica expressão em versos dessa visão que conheço vem do admirador e sucessor de Milton, William Wordsworth. É a sua ode intitulada Intimations of Immortality from Recollections of Early Childhood [Sugestões de imortalidade tiradas das lembranças da primeira infância] (em que podemos interpretar a sua "infância" como a da humanidade em geral, e o pronome "eu" se referisse a toda a nossa espécie): Houve um tempo em que o prado, o bosque e o ribeiro, A terra, e todas as visões comuns, A mim me pareciam Vestidas de luz celeste, Da glória e do frescor de um sonho. Agora já não é como foi outrora; Para onde quer que eu me volte, De noite ou de dia, As coisas que via antes já não vejo agora... O amor-perfeito a meus pés Repete a mesma história: Para onde fugiu o brilho visionário? Onde estão, agora, a glória e o sonho?... Nosso nascimento é apenas um sonho e um olvido; A Alma que nasce conosco, a Estrela da nossa vida, Teve alhures seu ocaso, E vem de longe:

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Não do pleno esquecimento, Nem da completa nudez, Mas, nuvens roçagantes de glória, viemos De Deus, que é o nosso lar... Que alegria! que em nossas brasas Haja alguma coisa que vive, Que a natureza ainda se lembre Do que era tão fugitivo!... Por isso, numa estação de tempo mimoso, Embora estivéssemos longe, terra adentro, Nossas almas contemplaram o mar imortal Que nos trouxe para cá, Que pode, num momento, viajar para lá E ver as crianças brincando na praia. E ouvir as águas poderosas rolando para sempre... Graças ao coração humano pelo qual vivemos, Graças à sua ternura, alegrias e medos, Para mim, a menor das flores que floresce pode dar Pensamentos que jazem amiúde profundos demais para lágrimas.

Doù venons-nous? Que sommes-nous? Ou allons-nous? [De onde viemos? Que somos? Aonde vamos?], de Paul Gauguin (1898)

Apoio mais recente, ainda que indireto, à tese de Heinberg vem da teoria da acusação formativa do biólogo britânico Rupert Sheldrake. De acordo com Sheldrake, tanto a "lei" física quanto o comportamento humano são mutáveis, sendo, em grande parte, determinados por padrões estabelecidos em tempos primitivos. O fato de tanta coisa da

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nossa iconografia religiosa e tantas obras-de-arte, verbais e não-verbais, pintarem um mundo radicalmente diferente de qualquer outro conhecido da história pode indicar, em função da causação formativa, que os nossos sonhos paradisíacos são, com efeito, lembranças grupais. O conceito de Paraíso talvez mexa conosco porque, antigamente, moramos no Paraíso e nunca renunciamos de todo à esperança subliminal de voltar àquele estado. Consoante a sabedoria convencional do nosso século, tudo o que se diz do Paraíso é hipérbole ou fantasia. A definição de um local de férias como paradisíaco é considerado um exagero de efeito. Analogamente, ter uma visão do Paraíso é considerado "mera imaginação". Mas o que é a imaginação? Literalmente, é imaginar - vale dizer, formar ou perceber imagens. E, se bem algumas de nossas imagens sejam formadas deliberadamente, a maioria simplesmente nos vêm; de onde, não sabemos. Nem toda imaginação, em outras palavras, é uma invenção ex nihilo, senão o reaparecimento, nas mentes individuais, de imagens antigas e coletivas. Quase todo visionamento é a memória revivificada. O Paraíso é menos criado do que recriado. Se, por outro lado, essas obras enriquecedoras de arte e ciência, que comumente vemos como criações pessoais, são, na verdade, ressurreições da humanidade que desapareceu, uma observação recíproca parece igualmente válida: a de que o agir como veículo para essa consciência imortal está, ele mesmo, entre as formas mais elevadas de criatividade a que os indivíduos podem aspirar. Lembrando-nos o Paraíso e ajudando-nos a revisioná-Io, Richard Heinberg mostrou ser um compadecido e criativo explorador do espírito humano.

Roger Williams Wescott, Professor de Antropologia

Na Universidade Drew

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Introdução

Se isso aconteceu ou não aconteceu assim, não sei; mas se você pensar nisso, verá que é verdade.

Alce Negro Quase todos os esforços humanos - desde a busca de empregos melhores e relacionamentos mais satisfatórios até a fundação de nações e a procura do progresso tecnológico e social - podem ser vistos como expressões de um anseio, que incendeia as paixões de cada geração, pode ser recuperado se remontarmos, através das primitivas expressões da imaginação humana na literatura e no folclore, à memória primordial de um Paraíso original, onde seres humanos viviam em inocente e milagrosa harmonia com a Natureza e o Cosmo. A imagem paradisíaca ainda acena para nós com um poder e uma resistência realmente arquetípicos, mas sua origem e seu sentido, não obstante, são misteriosos. Como uma sugestão hipnótica esquecida, ela nos força o comportamento, mas permanece obscura. Em 1979, uma série de acontecimentos conspirou para lançar-me a uma busca, que durou uma década, do sentido do mito universal do Paraíso. Naquela época, eu acabara de passar cinco anos trabalhando com um grupo de amigos no desenvolvimento de uma pequena comunidade de base espiritual em Ontário. Eu possuía modestos antecedentes educacionais em arte, música e nos textos budistas sagrados, sendo um leitor voraz de livros e artigos sobre as fronteiras da pesquisa científica. Através de uma amiga, a sra. Grace Van Duzen, fiquei sabendo que o controvertido cosmólogo e historiador Immanuel Velikovski estava precisando de um auxiliar de pesquisa. Como eu admirava os trabalhos de Velikovski pelo saber e pela originalidade que denotavam, pedi a Grace, que conhecia o cientista, já de certa idade, que me recomendasse a ele. Após umas poucas cartas e chamadas telefônicas, rumei para o lar dos Velikovski

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em Princeton, Nova Jérsei. Cinco dias depois, o dr. Velikovski, que já havia completado 84 anos, veio a falecer. A pedido da família, permaneci na casa dele e ajudei a editar dois dos seus manuscritos, mais tarde publicados com os títulos Mankind in Amnesia (1981) e Stargazers and Gravediggers (1983). Velikovski fora pioneiro de uma nova maneira de ler a mitologia antiga. Colecionara tradições muito difundidas de dilúvios, incêndios e outras catástrofes, e as cotejara com as provas da geologia e da astronomia. Concluiu que os mitos não eram simples fantasias infantis - como haviam presumido muitos eruditos anteriores - mas lembranças de eventos históricos. Essa idéia foi uma revelação para alguns dos seus leitores e um ultraje para outros. Desde a publicação de Worlds in Collision, em 1950, os descobrimentos científicos tenderam a confirmar inúmeras propostas de Velikovski, mas nos círculos acadêmicos a menção de seu nome ainda evoca respostas ambíguas. À proporção que fui me familiarizando com os mitos de antigas catástrofes que Velikovski utilizara como fontes de material, principiei a encontrar, por acaso, tradições mais antigas de um tempo de paz e abundância. Logo descobri que a imagem de um Paraíso desaparecido e a procura de sua restauração são temas essenciais do folclore mundial. Quase todos os povos antigos tinham tradições de uma era primordial, quando a humanidade vivia uma existência simples e, contudo, mágica, em harmonia com a Natureza. Diziam os antigos que essa Idade de Ouro original chegara ao fim por causa de um equívoco ou falha trágica, que obrigou à separação entre o Céu e a Terra. De mais a mais, diziam que a ruptura entre os dois mundos precipitara uma descida à separação, ao medo e à cobiça, que caracterizam a natureza humana tal como a conhecemos hoje. Diziam que só depois dessa mudança do modo de ser humano - a Queda - a Terra ficou sujeita a horrendas catástrofes globais, cujo impacto geológico, climático e psicológico apagou quase todos os traços do antigo estado "áureo". As palavras Paraíso e Queda nos trazem à cabeça, inevitavelmente, a história hebraica de Adão e Eva no Jardim do Éden - a versão da

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antiga narrativa do Paraíso mais conhecida dos ocidentais, e que milhões de pessoas ainda aceitam literalmente. Eu estava decidido a pesquisar a origem e o sentido da história do Éden, mas me sentia igualmente fascinado pelas dúzias de mitos semelhantes que se encontram entre povos tão diversos quanto os nativos americanos, os antigos gregos e hindus, os povos tribais da África, e os aborígines da Austrália. Aqui me pareceu topar com uma idéia mais ampla do que qualquer religião singular poderia conter. Senti-me compelido a perguntar, como Velikovski sem dúvida o teria feito, onde poderia haver alguma verdade histórica no âmago do mito do Paraíso. Houve realmente uma Idade de Ouro? Pus-me a aplicar um método interdisciplinar, correlacionando os descobrimentos da arqueologia, da antropologia e da psicologia com as tradições arcaicas dos nossos ancestrais. Os resultados das investigações - sumariados nos capítulos finais do livro - proporcionaram uma introvisão do sentido do mito, mas também contestaram a maioria das minhas suposições a respeito de história, psicologia e religião. Logo comecei a ver que a tradição do Paraíso, com efeito, pode ser encarada como história, mas somente se se reconhecer que se trata também de uma metáfora profunda. Descobri que o sentido metafórico do mito flui da visão sagrada que os antigos tinham do mundo. A sua abordagem da vida, de caráter inteiramente espiritual, carecia de todo sentido de sectarismo ou dogmatismo. Eles pareciam ter uma compreensão da ordem e do sentido universais da existência, que os guiava em suas relações com o Céu e a Natureza. O mito do Paraíso, nas descrições de paisagens milagrosas e poderes perdidos em virtude de uma mudança desastrosa do caráter humano, encerrava essa visão do mundo, e, ao mesmo tempo, contava como e por que se eclipsara gradativamente. Quando cheguei a ver, através dos olhos dos primeiros fazedores de mitos, minha própria visão da vida e da cultura humanas se transformou. Comecei a encarar as religiões modernas como remanescentes de uma tradição espiritual outrora universal, e a

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história da civilização como o registro da perda progressiva, sofrida pela humanidade, do seu sentido original de propósito sagrado. Comecei a suspeitar, cada vez mais, de que a imagem mítica do mundo tem um significado especial para nós na atual geração. Conquanto, no mundo industrial moderno, propendamos a orgulhar-nos de nossas consecuções, sentimo-nos, ao mesmo tempo, profundamente inquietos. Toda civilização tem tido seus problemas únicos, com os quais lhe coube lutar, mas a nossa se nos afigura especialmente sobrecarregada. De fato, os derradeiros efeitos da poluição, da guerra e da superpopulação são potencialmente tão graves que exigiram se cunhasse um termo novo - onicídio. Seriam os nossos dilemas correntes, mais do que acompanhamentos do processo da evolução humana, sintomas de alguma neurose cultural universal? Teremos perdido contato com uma dimensão interior do ser tão vital e nutriente que o nosso afastamento dela deixou-nos uma brecha no coração - uma brecha que debalde tentamos preencher com realizações pessoais e aquisições materiais? E dar-se-ia que os antigos, em suas histórias de um Éden desaparecido, estivessem procurando dar-nos informações importantes sobre a natureza dessa perda e sobre o modo com que ela pode ser compensada - informações de que precisamos no estádio atual da história, se quisermos tornar a um modo de existência sadio e estável? Ora, depois desses anos de pesquisa e escritos, creio compreender melhor por que o mito do Paraíso me atraiu tão irresistivelmente, e por que fascinou multidões de gerações. Tendo examinado a literatura mitológica importante, assim como os descobrimentos correlatos da antropologia e da arqueologia, senti-me empurrado para a teoria segundo a qual nossas memórias culturais de uma Idade de Ouro de harmonia são o resíduo de uma compreensão, outrora universal, da dimensão espiritual da consciência humana e, ao mesmo tempo, lembranças do modo que essa dimensão foi quase completamente decepada. E não posso deixar de notar a casualidade do fato de que o estudo comparativo da mitologia chegou ao estado adulto, e está-nos conduzindo de volta à visão sagrada do mundo, exatamente como a

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nossa sociedade industrial moderna se aproxima do que só pode ser denominado crise espiritual. Os pensadores de vanguarda da nossa era proclamam a necessidade de uma nova base para a vida e um novo conjunto de suposições a respeito da Terra e do gênero humano. O psicanalista Carl Jung compendiou esta situação quando disse que a humanidade necessita de um novo mito, um novo fundamento de sentido, a fim de firmar a superestrutura da nossa complexa civilização. Tudo indica que o novo mito está emergindo, expresso de várias maneiras por pensadores em disciplinas divergentes. O biólogo James Lovelock, por exemplo, sugere, em sua hipótese Gaia, que a Terra é uma entidade viva, capaz de regular seus próprios sistemas internos. George Wald, vencedor do Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1957, argumenta que a consciência, longe de ser um desenvolvimento evolutivo recente, inere à própria estrutura do Cosmo. O economista mais perspicaz do nosso século, E. F. Schumacher, mostrou-nos que enquanto "as riquezas, a educação, a pesquisa, e muitas outras coisas são necessárias a toda civilização... o mais necessário hoje é uma revisão dos fins a que esses meios se destinam a servir" -, fins que devem proceder de ideais e de valores não materiais, como a verdade, a temperança e a beleza. E os pesquisadores médicos e psicológicos estão descobrindo que os estados emocionais influem diretamente sobre a saúde física. As suas experiências sugerem que a expressão das mais elevadas qualidades do espírito humano não é apenas um ideal louvável, senão também a base necessária para uma saudável abordagem da vida. O respeito à Terra como entidade viva, o reconhecimento do propósito e da consciência do Cosmo, a admissão dos valores espirituais universais e a aceitação da responsabilidade pela expressão do caráter nobre são atitudes e ídéias amiúde resumidas numa palavra que define o novo mito que forcejamos por alcançar tão bem quanto qualquer palavra isolada pode fazê-Io: holismo. O holismo é a crença de que as totalidades (organismos e ecologias, por exemplo)

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determinam o desenho, a função e a saúde de suas partes, em lugar de ser o contrário. Muitos dos nossos pensadores mais destacados são atraídos para uma visão holística do mundo, aproximando-se dela a partir de cada categoria e departamento em que se fragmentou o pensamento humano. Mas quanto mais se segue a tendência na direção do holismo, tanto mais nítida é a impressão de que alguém esteve aqui antes. À maneira que nossas filosofias caminham para o reconhecimento da ordem cósmica e para o respeito ao propósito inerente da Natureza, estamos recapitulando, de muitas maneiras, a antiga visão espiritual do mundo. Parecemos estar na iminência de voltar ao ponto de partida, por um caminho que nos afasta da especialização e nos dirige para a integração, que nos distancia do excesso tecnológico e nos conduz ao respeito ao processo natural, que nos leva para longe do materialismo e nos aproxima de um sentido renovado do sagrado. Talvez nada disso deva surpreender-nos. Para que o nosso novo mito possua a profundidade de ressonância indispensável a que soe claro, através da massa do inconsciente coletivo, é preciso que soe desde a Fonte final da identidade, do significado e do propósito humanos. E essa Fonte - a que chamamos de Brahma, Deus ou base universal do Ser - não é uma invenção moderna. Os povos indígenas, como os americanos nativos e os aborígines australianos, nunca imaginaram. como nós imaginamos, que a natureza existe para benefício do homem. Ao invés disso, acreditaram, milênios a fio, que nós, humanos, temos uma profunda responsabilidade para com a Terra como canais para a revelação do Céu. Eles vêem o propósito essencial da vida mais em termos espirituais do que em termos materiais, e vêem o próprio Universo consciente e benévolo. Podemos dar-nos os parabéns por pensar que os líderes intelectuais e espirituais do mundo moderno estão alimentando pensamentos similares numa volta mais alta da espiral evolutiva, mas não podemos ser muito arrogantes ao comparar o

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nosso meio de vida com o dos povos tribais. Eles eram mestres de holismo muito antes de chegarmos a cunhar a expressão. A idéia de que podemos, de um modo ou de outro, trazer de volta um Paraíso perdido, pode parecer a mais quixotesca das iniciativas nos dias de hoje. Vivemos num mundo cínico e quase perdemos a capacidade de olhar para um passado que nada mais é do que bárbaro, ou para um futuro que pouco mais é do que passível de sobrevivência. Muitos vieram a aceitar a perda da inocência como necessária e irreversível, e considerar toda recordação ou sonho de uma existência realmente satisfatória como nada mais que um exercício de sentimentalismo, romantismo ou nostalgia. O mito do Paraíso, em compensação, oferece a visão de uma idade de milagres e prodígios, de simplicidade mágica, de paz e alegria. Diz-nos que é possível viver com confiança. Teremos ainda a coragem de alimentar uma visão assim? Em nossa resposta a essa pergunta talvez se encontre a realidade do nosso futuro. "Sem a visão", proclama o provérbio, "as pessoas perecem.” Dada a amplitude assustadora e a variedade do material que suplicava claramente a sua inclusão neste volume, tentei levar adiante a nossa jornada através do mito, da profecia, da história, da antropologia e da psicologia tão lógica e diretamente quanto possível. A Primeira Parte do livro (Capítulos de 1 a 5) se compõe de uma descrição geral e seqüencial da visão mítica da história do mundo. É uma excursão orientada através da Criação, do Paraíso e da Queda. Espero que esses capítulos interessem a todos os estudiosos e amantes do mito. A Segunda Parte é uma análise da visão paradisíaca tal e qual emergiu das culturas humanas históricas. Como veremos no Capítulo 6, as profecias de uma dia futuro de purificação e retorno final ao Paraíso são ubíquas, transcendem as divisas culturais. Além disso, como veremos no Capítulo 7, as lembranças e sonhos de um Éden passado ou futuro moldaram, em grau surpreendente, os ideais literários e sociais da nossa própria civilização.

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A Terceira Parte é uma investigação das tentativas da humanidade de descobrir o sentido da imagem paradisíaca. No Capítulo 8, exploraremos as provas antropológicas e arqueológicas relativas à questão de saber se houve realmente uma Idade de Ouro muitos milênios atrás, e no Capítulo 9, veremos que o mito do Paraíso descreve, metaforicamente, estados alternados de consciência. A Quarta Parte apresenta algumas implicações especulativas nascidas, naturalmente, do nosso enfoque do mito do Paraíso. Como veremos, há razões para pensarmos que, se estamos dispostos a confrontar e mudar muitas de nossas suposições e valores atuais, e muito do nosso condicionamento social, o mundo milagroso do Paraíso pode ser, de fato, atingível, não só para nós individualmente, mas também para a humanidade em geral.

Sumário PRIMEIRA PARTE A Memória Capítulo 1 Os Mistérios do Mito. Interpretando os antigos. Dissecando o mito e a religião. O retorno do sagrado. A visão mítica do mundo. Mito: história ou metáfora. O problema da unidade mítica Capítulo 2 No Princípio Fiat ex nihilo. O Ovo Cósmico. O Mergulhador da Terra. A Emergência.

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A origem dos seres humanos Capítulo 3 A Procura do Éden Suméria e Dilmun. O Jardim iraniano. A era de Rá. A Raça de Ouro. Os Paraísos do Oriente. O Primitivismo entre os Primitivos. Capítulo 4 Imagens do Paraíso: Temas Comuns. A paisagem mágica. As idades do mundo. A Idade dos milagres e das maravilhas. A santidade de caráter. A comunhão com a divindade: os pais divinos. A imortalidade. Paraísos celestes e terrenos. A ponte do arco-íris. Continentes perdidos. Capítulo 5 A História Mais Triste. A Mudança de caráter. A desobediência. O fruto proibido. A ciência do bem e do mal. O esquecimento. Os efeitos da Queda. O Dilúvio. Outras catástrofes. SEGUNDA PARTE

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A Visão Capítulo 6 A Profecia: O Paraíso Antigo e o Paraíso Futuro. No fim como no princípio. Esperando o milênio. A grande purificação. Capítulo 7 O Paraíso como Força na Cultura Humana. O Paraíso na literatura. Sonhos de um Paraíso terreno. Utopia: o Paraíso feito de encomenda. O poder do exemplo. A América utópica. O novo espírito comunal. TERCEIRA PARTE A Busca Capítulo 8 O Paraíso como História. Aconteceu realmente? A arqueologia bíblica. De forrageadores e agricultores. O Paraíso como jardim. O Paraíso paleolítico. Atlântida e Mu. Anomalias arqueológicas. Os limites do conhecimento histórico Capítulo 9 O Paraíso como Metáfora. Os velhos e bons tempos.

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O sexo e a Queda. O complexo de Édipo. O Paraíso como infância. A evolução da consciência. O Paraíso como união mística QUARTA PARTE A Volta Capítulo 10 Desdobrando Imagens: o Espelho do Mito. A Mente Original. O Ego e a Queda. A Sobrevivência do Milagroso. Revisionando a História Capítulo 11 O Paraíso Agora: Entre o Céu e a Terra. A experiência da quase-morte. Idéias da vida após a morte. A experiência de quase-morte como forma de experiência mística. Imaginação ou realidade? Capítulo 12 Para Voltar ao Jardim. A Atingibilidade do Paraíso. Advertências do Inconsciente Coletivo. A Nova Cultura. Compreendendo o Paraíso Epílogo.

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CAPÍTULO 1 Os Mistérios do Mito

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Era uma vez uma época em que todos os seres humanos viviam em amizade e paz, não apenas entre eles mesmos, como também com todos os outros seres vivos. A gente daquela Idade da Inocência original era sábia, brilhante, capaz de voar à vontade pelo ar, e estava em contínua comunhão com as forças e inteligências cósmicas. Entretanto, uma trágica disrupção acabou com a Primeira Idade, e a humanidade viu-se alheada do Céu e da Natureza. Desde então temos vivido de modo fragmentário, nunca nos compreendendo realmente a nós mesmos, nem o nosso lugar no Universo. De vez em quando, porém, olhamos para trás, com saudade e pesar, e sonhamos com uma volta ao Paraíso que outrora conhecemos. O Paraíso talvez tenha sido a idéia mais popular e intensamente significativa que alguma vez já se apoderou da imaginação humana. Encontramo-Ia em toda a parte. "Em formas mais ou menos complexas, o mito paradisíaco ocorre aqui e ali, no mundo inteiro”!, escreveu a grande autoridade moderna sobre religiões comparadas Mircea Eliade. O Jardim do Éden hebraico, a Idade de Ouro grega, o Tempo de Sonho dos aborígines australianos e a Idade da Virtude Perfeita do taoísmo chinês são apenas variantes locais do universalmente relembrado Tempo dos Primórdios, cuja lembrança coloriu toda a história subseqüente. O impacto da imagem paradisíaca sobre a consciência coletiva humana é tão profundo quanto vasto. Em nenhuma tradição o tema é recente ou periférico; existe, antes, no próprio cerne do impulso espiritual perene, que reemerge na literatura, na arte e nos ideais sociais de cada geração. Com efeito, se estivéssemos buscando um motivo que servisse de base a um esboço sumário de cultura humana, poderíamos começar perfeitamente com nossas lembranças coletivas de uma Idade de Ouro perdida e com nossos anseios pela sua volta. Os grandes empreendimentos da história - as Cruzadas, as revoltas milenárias da Idade Média, a demanda do Graal, o descobrimento e a colonização do Novo Mundo, os movimentos utópicos na literatura e na política, o marxismo e o culto do progresso - todos de certo modo, estão enraizados no solo do Jardim mítico original. Quanto mais nos

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familiarizamos com a essência da história, tanto mais freqüentemente lhe reconhecemos o reflexo nos devaneios nostálgicos e nas fervorosas aspirações de todas as culturas em todas as idades.

Ao passo que a imagem do Paraíso, em determinados sentidos, é intemporal, suas expressões se encontram nas tradições orais e nas antigas escrituras religiosas - isto é, em mitos. Para o Ocidente, o

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Éden hebraico e a Idade de Ouro grega serviram de protótipos a todas as visões subseqüentes do Paraíso na arte e na literatura. A situação é semelhante em outros lugares. Em toda tradição, a imagem do Paraíso deriva de um mito que remonta aos primórdios da cultura humana. A natureza do Paraíso está ligada à natureza do mito. Portanto, para chegarmos a qualquer nova introvisão a respeito do anseio universal do Paraíso, talvez fosse útil ter primeiro uma compreensão básica da natureza e do sentido do mito em geral. Mas o assunto não é simples: a questão do sentido do mito atormentou estudiosos durante milênios, e continua a atormentá-los. São os mitos lembranças deformadas de acontecimentos históricos? Ou são alegorias de introvisões morais ou psicológicas? Estas são as duas primeiras direções que os eruditos exploraram na busca da origem da panóplia desconcertante da mitologia do mundo. E podemos reenquadrar as duas perguntas em função da história universal do Paraíso: existiu uma verdadeira Idade de Ouro? Se não existiu, que verdade psicológica estavam procurando os antigos ao transmitir suas histórias ubíquas de um mundo perdido de felicidade e abundância? Visto que não se pode empreender a interpretação desta História das histórias sem uma compreensão geral da natureza da mitologia, começaremos examinando rapidamente, neste capítulo, as principais teorias, crenças e especulações que exercitaram os estudiosos do mito através dos séculos. Em seguida, tendo explorado o contexto do assunto, prosseguiremos, no restante da Primeira Parte, com uma investigação dos relatos míticos da Criação, do Paraíso e da Queda em todo o mundo, em toda a sua variedade e colorido.

Interpretando os Antigos Na maioria das conversações, a palavra mito é intercambiável com mentira. Falamos em expor os mitos, dispersá-Ios e fazê-Ios descansar. A equação do mito com a ficção não é particularmente

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nova; de fato, pode ser seguida, pelo menos, até o século VI a.C., quando os primeiros filósofos gregos empreenderam uma avaliação crítica da mitologia homérica. É nos escritos de Xenófanes, filósofo grego do século VI a.C., que encontramos a primeira expressão de descrença no panteão tradicional. Xenófanes, particularmente, fez objeções às descrições dos deuses de Homero em termos antropomórficos: "Se bois e cavalos tivessem mãos, ou fossem capazes de puxar com as mãos e fazer os trabalhos que os homens fazem, os cavalos puxariam as formas dos deuses como cavalos, e os bois como bois.” Xenófanes era um homem instruído e, para as pessoas instruídas primitivas, os mitos já não faziam parte de uma experiência religiosa viva; antes - por motivos obscuros - eles se haviam transformado em matérias de interpretação e debate. Os gregos primitivos enfrentavam, assim, um problema: a sua cultura estava cheia de rituais e histórias de grande antiguidade, mas o sentido dessas tradições se evaporara em grande parte. Como mostrar que tinham um sentido? Era uma questão a que mentes curiosas e engenhosas se aplicaram, entusiasmadas. Entre os gregos primitivos já podemos discernir os primórdios das duas escolas interpretativas primárias que dominaram o estudo do mito até os tempos atuais. Teágenes, escritor do século V a.C., criou a escola alegórica de interpretação, sugerindo que todos os deuses homéricos representam faculdades humanas ou elementos naturais. A Teágenes devemos a idéia, por exemplo, de que, sendo Hera a deusa do ar, as histórias de suas relações tempestuosas com o marido, Zeus, devem ser compreendidas como descrições de perturbações atmosféricas reais, tempestades e furacões. Segundo Teágenes e seus seguidores em séculos posteriores, os mitos são sempre sinais ou símbolos de alguma outra coisa; aceitá-Ios ao pé da letra é errar inteiramente o alvo. Dois séculos depois, no princípio do século III a.C., um escritor grego chamado Euêmero deu início à escola histórica da interpretação. Em sua famosa coleção de excursões filosóficas, Escritos sagrados, sustentou ele que os mitos são relatos exagerados de acontecimentos

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realmente presenciados por povos primitivos, e que os deuses homéricos eram reis históricos. Zeus, ApoIo e o resto do panteão, seres humanos de verdade, tinham sido deificados por gratidão ou lisonja, e os seus feitos na guerra e na paz forjados em tradições sagradas, para serem fielmente transmitidos de geração a geração. Quando lemos um mito, segundo Euêmero, estamos, na verdade, lendo a história deformada. Tão grande influência exerceu o livro de Euêmero, que foi o primeiro texto grego a ser traduzido em latim, e a discussão escolástica do panteão grego, através da Idade Média e da Renascença continuou a ser dominada pelo euemerismo - o tratamento do mito como história deformada.

Dissecando o Mito e a Religião O debate entre os adeptos do metaforismo e do historicismo continua até hoje, e nós o estudaremos mais profundamente adiante. Mas esta não é a única saída para a antiga e continuada procura do sentido do mito. Sendo a mitologia inseparável da religião, as atitudes mutáveis da civilização ocidental em relação ao sentido misterioso e universal do sagrado afetaram também profundamente tanto as idéias populares quanto as idéias eruditas sobre a natureza do mito. Durante a Idade Média, a Igreja declarou que todas as tradições que não fossem as suas eram, por definição, pagãs e idólatras, e - excetuando-se os mitos gregos e romanos, aos quais se concedeu um interesse puramente histórico - não deviam merecer atenção alguma das pessoas tementes a Deus. Conseqüentemente, suprimiu-se o estudo das mitologias celta, germânica, zoroastriana, islâmica e outras não-cristãs. Mais tarde, porém, à maneira que enfraqueceu o domínio da Igreja sobre a livre indagação e os exploradores regressavam com notícias dos costumes e do folclore de povos nativos das Américas, da África e das ilhas do Pacífico, os filósofos entraram a discutir as concepções paroquiais da Igreja sobre a religião e a cultura - a

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princípio cautelosa e serenamente, mas com um vigor que aumentava cada vez mais. Por volta do meado do século XIX, tantos dados novos estavam chegando de etnólogos e antropólogos de campo que os teóricos, em suas tentativas de lidar com a superabundância de informações, exigiram um plano simples, abrangente, organizacional - de preferência completamente independente da influência eclesiástica. A base ideal para um plano dessa natureza parecia ser fornecida pela idéia, cada vez mais popular, da evolução. Antes mesmo da publicação da Origem das espécies, de Darwin, os teóricos começaram a aplicar o princípio evolutivo (a lei do desenvolvimento do simples para o complexo, do baixo para alto - e, por implicação, do inferior para o superior) em toda a parte e a todas as coisas. Enquanto os astrônomos teorizavam acerca da evolução do Universo, historiadores e eruditos continuavam a investigar a evolução da linguagem, da cultura e da mitologia. Conforme o ponto de vista evolucionista, os povos tribais eram relíquias de um estádio primitivo, pré-racional, do desenvolvimento humano. Essa conclusão levou diversas gerações de antropologistas a adotar, para com as culturas indígenas e suas religiões, atitudes quase tão superiores quanto as dos primeiros teólogos cristãos. Enquanto isso, os cientistas ocidentais expressavam um antagonismo crescente às raízes religiosas de sua própria cultura também.. A Igreja restringira a investigação científica durante séculos; agora os cientistas tinham liberdade para questionar e teorizar, e estavam decididos a virar a mesa sobre os teólogos tratando a religião e o mito como meras aberrações psicológicas peculiares, que tinham afligido a humanidade arcaica. As duas influências juntas - a insistência evolucionista sobre a ordenação de todas as culturas humanas numa escala teórica de valores, e a desconfiança geral, entre os cientistas, pelo quer que exsudasse o mais remoto cheiro de religião levaram os mitólogos do século XIX a construir projetos que hoje se nos afiguram estreitos, racionalistas, para explicar as obsessões aparentemente irracionais

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dos antigos. Destarte, o filólogo Max MüIler via a mitologia como uma "doença da linguagem", em que os povos primitivos, incapazes de distinguir com clareza as metáforas das declarações factuais, vieram a referir-se a objetos naturais como coisas vivas, animadas por um espírito. O antropólogo Lucien-Bruhl tentou explicar as tradições culturais contemporâneas atribuindo sua origem a modos "pré-lógicos" de pensamento. E o folclorista Sir James Frazer, cujo estudo enciclopédico The Golden Bough [O galho de ouro] dominou a mitologia comparada durante décadas, sustentava que uma atitude cética em relação a toda e qualquer religião era o fundamento necessário ao enfoque do estudo de qualquer religião. Nem essa maré anti-religiosa e anti-primitivista refluiu com a virada do século. Pode-se dizer que a antropologia do século XX começou com Emile Durkheim e sua abordagem funcionalista, sociológica, do mito e da cultura. Durkheim enfatizou a significação da consciência coletiva - a maneira coletiva de pensar de uma comunidade - qualitativamente diferente do pensamento individual. Para Durkheim e os funcionalistas, o sentido do sagrado era o sentido da própria sociedade; a mitologia servia, principalmente, como função social. Assim sendo, é inútil especular a respeito do significado filosófico do mito da criação de determinada cultura; deveríamos examinar, em vez disso, o efeito do mito sobre os costumes e atitudes do povo. A função social do mito é o seu sentido. Entrementes, psicológicos, liderados por Sigmund Freud, estudavam dados antropológicos em ordem a validar teorias da personalidade e suas aberrações. Para Freud, os mitos eram expressões disfarçadas das compulsões sexuais inconscientes e das compulsões agressivas da humanidade primitiva. Em seu Totem e Tabu (1912), foi buscar a origem das instituições, crenças e temores das culturas assim modernas como primitivas num drama hipotético ocorrido na vida familiar de povos da Idade da Pedra - o assassínio do pai tribal pelos filhos com o propósito de possuírem a mãe. Esse drama está sintetizado no mito grego de Édipo. Para Freud e seus seguidores, todos os motivos míticos eram edípicos e sexuais em sua origem, e

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estavam cheios de símbolos que só poderiam ser decifrados pelo analista já familiarizado com a interpretação dos sonhos. No capítulo 9 teremos ocasião de examinar mais circunstanciadamente o enfoque freudiano do mito, com uma referência específica à imagem do Paraíso. Poucos dentre os primeiros antropólogos do século XX escaparam à influência de Durkheim ou de Freud, ambos os quais procuravam identificar a religião com a ilusão, e explicar o mito pela referência a fenômenos físicos, sociais ou psicológicos. Durkheim descobrira que a mitologia pode servir a funções sociais práticas, e Freud mostrara que os mitos são expressões do inconsciente coletivo. Entretanto, à medida que foi passando o novo século, tornou-se claro que alguma coisa significativa estava faltando em suas teorias. Como entomologistas que estudam borboletas, eles haviam coligido, dissecado, classificado e comparado os mitos do mundo, mas, no processo, tinham passado por alto, ou eliminado, o princípio vivificante do objeto do seu estudo um princípio que seria definido pela geração seguinte de mitólogos como o sentido do sagrado.

O Retorno do Sagrado Nas poucas últimas décadas, muitos psicólogos, antropólogos e historiadores da religião abandonaram os enfoques redutores de Durkheim e Freud. Entre os dois sábios e o público em geral há uma crescente - posto que ainda não universal - valorização dos mitos de povos antigos e indígenas no sentido de que eles não eram apenas instrumentos sociais ou aberrações psicológicas coletivas, mas, em lugar disso, meios para transmitir verdades universais. Nesta concepção emergente, os mitos são portas para um reino da experiência que era, e é, não só real como também profundamente significativa. Essa nova abordagem radical do mito deve muito à obra de psicanalistas como Carl Jung. À semelhança de Freud, seu antigo

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mentor, Jung via nos mitos passagens para, e do, inconsciente coletivo. Mas ao passo que Freud tendia a ver o inconsciente com desconfiança e até horror, e a desprezar a religião em todas as suas formas, Jung via o inconsciente como um reino essencialmente benéfico e considerava a experiência religiosa como fundamentalmente terapêutica. Via os mitos como "revelações originais da psique pré-consciente, afirmações involuntárias a respeito de processos psíquicos inconscientes." Para Jung, "a mitologia de uma tribo é a sua religião viva, cuja perda, sempre, e em toda a parte, até entre os civilizados, é uma catástrofe moral". Durante o estudo de seus próprios sonhos e fantasias, aos quais concedia livre expressão, Jung notou imagens estranhas, que pareciam relacionar-se com textos medievais herméticos e alquímicos descurados, os quais passou a estudar profundamente. A partir dessas experiências, desenvolveu a teoria dos arquétipos, que são padrões instintivos, universais, da psique coletiva - o Herói, o Velho Sábio, a Grande Mãe e assim por diante - que se expressam de maneira semelhante nas imagens dos sonhos e no comportamento das pessoas em toda a parte. Para Jung, os personagens e ações do mito são simples expressões de arquétipos universais. "A consciência coletiva," escreveu, "contém toda a herança espiritual da evolução da humanidade, renascida na estrutura cerebral de cada indivíduo." Durante a sua longa carreira, Jung contribuiu com diversos estudos importantes de tradições arcaicas e orientais e exerceu considerável influência no trabalho de muitos eruditos importantes - notadamente Joseph Campbell, cujos livros e artigos fizeram mais para popularizar o estudo da mitologia do que os de qualquer outro autor contemporâneo. Desenvolvimentos de estudos religiosos no século XX também desempenharam uma parte na evolução da atitude contemporânea diante do mito. Como vimos, o século XIX, em seu final, tendia a explicar a religião em termos sociais ou psicológicos. Em 1917, no entanto, o psicólogo Rudolf Otto publicou The Idea of the Holy [A Idéia do sagrado], em que deu ênfase à realidade e irredutibilidade

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fundamentais da experiência religiosa em todas as suas manifestações. Depois, nas décadas de 1930 e 1940, o filósofo René Guénon apontou para o que denominava a Tradição Primordial das verdades universais, que jazem no âmago de toda religião viva. De acordo com Guénon, todas as tradições são caminhos para a compreensão prática de princípios espirituais inatos na vida dos seres humanos. Virando de ponta-cabeça o evolucionismo cultural do século XIX, Guénon protestou, em termos muito fortes, contra a perda da verdadeira espiritualidade no mundo moderno. "A prosperidade material do Ocidente é incontroversa", escreveu, "mas dificilmente será motivo de inveja. Com efeito, pode-se ir mais longe; mais cedo ou mais tarde esse desenvolvimento material excessivo ameaçará destruir o Ocidente se este não se recuperar em tempo e não pensar seriamente numa 'volta às origens'''. O historiador de religião romeno-americano Mircea Eliade aplicou a nova atitude para com a religião diretamente ao estudo da mitologia. Recusou-se a reduzir os mitos a significados econômicos, sociais, culturais, psicológicos ou políticos; ao invés disso, enfatizou o primado da experiência do sagrado em todas as tradições. Ademais, colocou as religiões tribais e as escriturais do Oriente e do Ocidente lado a lado (em lugar de arrumá-Ias numa seqüência evolutiva, como era costumeiro) a fim de revelar e esclarecer os seus motivos comuns. À semelhança de Jung, Eliade via temas míticos como arquétipos inconscientes. Indo mais longe ainda, identificou os dois temas centrais do mito mundial com a nostalgia de um Paraíso que se perdera em razão de uma tragédia primordial (a Queda), e o cenário iniciatório por cujo intermédio o mundo áureo original foi parcialmente restaurado. Tanto a religião primitiva quanto a escritural, de acordo com Eliade, traem: A Nostalgia do Paraíso, o desejo de recobrar o estado de liberdade e beatitude anterior "à Queda", o desejo de restaurar a comunicação entre a Terra e o Céu; numa palavra, de abolir todas as mudanças

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feitas, na própria estrutura do Cosmo e no modo humano de ser, pela disrupção primordial. A facilidade com que Eliade abrangeu ampla extensão de dados religiosos, sua capacidade de perceber os padrões universais, e o seu emprego de termos não-teológicos num estilo literário elegante e lúcido, tudo contribuiu para a sua profunda influência no estudo moderno do mito.

A Visão Mítica do Mundo Através do trabalho de Jung, Otto, Guénon, Campbell e Eliade flui uma corrente de respeito ao sentido do sagrado, tal e qual se expressa em todas as religiões e mitologias do mundo. Através dos seus escritos ganhamos algum sentido da visão do mundo dos antigos, na qual rochas, árvores, rios e nuvens eram partes vivas de um todo vivo; em que o Cosmo, vivo e consciente, partilhava da mesma força inteligente que a nós mesmos nos animava; e na qual seres humanos constituíam o elo entre o Céu e a Terra - entre a dimensão interior do espírito e o mundo exterior da forma. Através deles tornamos a familiarizar-nos com o contexto do pensamento antigo, em que cada evento era significativo e cada indivíduo sabia que sua vida era a materialização do princípio e do propósito. Na visão arcaica da realidade, até as atividades mais mundanas tinham uma significação dominante, e não eram exercidas como atos pessoais, privados, mas como parte de um drama cósmico. Para os antigos, o respeito ao sagrado derivava da consciência dos processos criativos da Natureza, e implicava uma hesitação em intrometer-se arbitrariamente neles. Para a consciência santificada, até o tempo e o espaço eram sagrados, e cada átomo da criação fazia parte de um coro jubiloso. No Tempo-da-Criação, de acordo com os mitos dos australianos, africanos e americanos nativos, os seres humanos tinham uma responsabilidade específica no conjunto da

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Natureza, que consistia em fornecer uma ponte viva entre os níveis do ser. Dizer que uma coisa ou um ato são sagrados é o mesmo que dizer que eles têm relevância num plano universal de valores e ideais, e são, portanto, um ponto de contato entre dois mundos. Para os antigos, tudo era sagrado, porque tudo tinha significação num contexto mundano também; a própria matéria era substância sagrada. O papel da humanidade estabelecido na idade paradisíaca dos primeiros antepassados - era compreender essa qualidade sagrada pela coordenação do tráfico entre o Céu e aTerra. Os povos antigos tinham um sentido agudo de responsabilidade, não somente para com a família ou a tribo, mas também para com o conjunto da vida. Os índios hopis do Sudoeste americano, por exemplo, conheciam o espírito da Terra como Maasauu. Diziam ter o propósito de ser aprendizes de Maasauu, administradores da Terra. Segundo os seus mitos, nos primeiros dias, Maasauu deixou este plano de existência, tendo dado aos hopis instruções para levarem a cabo cerimônias, a fim de manter a Terra em equilíbrio e intacto o Plano da Vida. Para os hopis, as suas cerimônias ainda são essenciais ao sustento de todas as coisas vivas do planeta. Há uma cerimônia para cada espécie de planta ou animal, e todo o ciclo delas continua por semanas a fio. Talvez seja compreensível o motivo por que a insistência universal na qualidade sagrada da vida foi descurada pelos mitólogos do século XIX, que, ao mesmo tempo, se rebelavam contra a própria herança religiosa e investigavam as poderosas filosofias novas do evolucionismo e do positivismo. Agora, contudo, os estudiosos começam a admitir que os conceitos religiosos dos antigos e dos povos tribais, mais do que meros estádios de um padrão evolutivo de crenças, já eram sistemas cosmológicos completos, sofisticados, funcionais e coerentes consigo mesmos. Entretanto, ao caracterizar as religiões tribais como sistemas de crença - até como sistemas complexos e compulsórios - não lhes transmite adequadamente a verdadeira profundidade. Para os povos

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tribais, a dimensão sagrada não era apenas um objeto de especulação, mas a realidade experimentada. Para eles, a divindade não era um conceito, senão um poder e unia inteligência imanentes, provindos de uma Fonte não-física, mas totalmente real. Um nativo do Orinoco, na América Latina, disse certa vez a um missionário: "O seu Deus fica fechado em casa, como se fosse velho e doente; o nosso está na floresta, nos campos e nas montanhas de Sipapu, de onde vem a chuva." O explorador Humboldt, depois de citar a observação do índio, acrescentou que os nativos da região tinham dificuldade para compreender as Igrejas e a arte religiosa dos europeus. "Nas margens do Orinoco não existem ídolos.” É difícil exagerar a importância deste reconhecimento cada vez maior, da parte dos psicólogos e antropólogos, da realidade da dimensão sagrada. Enquanto os pesquisadores lhe negaram a importância e basearam suas explicações inteiramente em termos terrenos, negou-se-nos efetivamente a possibilidade de compreender plenamente o mito ou tirar proveito dele. E o que foi pior, diminuindo o sentido sagrado, nós nos dissociamos de uma dimensão universal, intemporal da significação, cujo ponto de acesso jaz, profundo, no interior da psique humana, onde o individual e o coletivo, o antigo e o moderno se fundem de maneira indistinguível. Com o retorno do sagrado, abre-se diante de nós um mundo, ao mesmo tempo, prisco e primordial.

Mito: História ou Metáfora? Mas se muitos eruditos modernos afiançam que os mitos são a própria antítese das mentiras, isso não quer dizer que os mitos sejam agora, comumente, equiparados ao fato histórico. As autoridades já mencionadas - Jung e Campbell, especialmente - tendiam a ver os mitos, não como alegorias de processos internos de transformação espiritual - isto é, como histórias simbolicamente, mas não factualmente "verdadeiras".

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Muitos povos tribais, como os pawnees das planícies norte-americanas, estabeleciam nítida distinção entre histórias simbolicamente "verdadeiras" e histórias "falsas". Uma narrativa pode consistir em elementos inteiramente factuais, e, apesar disso, ser uma história "falsa" se foi tirada do contexto para marcar um ponto favorável aos interesses do narrador ou se se destina puramente a entreter. Outra história pode ser uma obra exclusiva de ficção, e, no entanto, recordar-nos situações que todos encontramos, e, arrastando-nos para a ação da narrativa, dizer-nos alguma coisa sobre nós mesmos e a operação do mundo que talvez ainda não tenhamos visto. Essa é uma história "verdadeira". Para tirar proveito de histórias verdadeiras precisamos estar acordados para mais de um nível de discurso. Quando lemos um mito americano nativo da criação do mundo de um pedaço de lodo trazido à superfície da terra por um rato-almiscarado, ou um mito boximane africano a respeito de Mantis roubando o fogo de Ostrich, inclinamo-nos a sorrir da singela coleção de imagens e podemos fechar a mente para o seu sentido. Mas os antigos e os povos tribais compartiam de um sentido agudo do símbolo, e somente cultivando em nós uma sensibilidade semelhante poderemos esperar compreender-Ihes os mitos. O etnólogo francês Marcel Griaule contou-nos como chegou a descobrir essa necessidade. Estava prestando atenção ao feiticeiro Ogotemmeli, dos dogons, que narrava um mito a respeito de um celeiro celeste, em cada um de cujos degraus muitos animais grandes estavam supostamente encarapitados. Griaule calculou as dimensões dos degraus e perguntou: "Como poderiam todos esses animais encontrar lugar num degrau de um cúbito de extensão por um cúbito de largura?" Ogotemmeli explicou cuidadosamente: "Tudo isso tem de ser dito com palavras, mas, no degrau tudo é símbolo - antílopes simbólicos, abutres simbólicos, hienas simbólicas... E qualquer número de símbolos pode encontrar lugar num degrau de um cúbito só." E, como conta Griaule, "para indicar a palavra 'símbolo', ele usou

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uma expressão composta, cujo sentido literal é 'palavra deste mundo inferior'''.

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Os mitos, portanto, servem para ligar duas realidades - a visível e a invisível, a Terra e o Céu - e o processo de relacionar mundos entre si é levado a efeito através da metáfora, do símbolo e da alegoria. Os tratamentos simbólicos dados pelos antigos aos anseios, medos e aspirações humanos universais servem de guias para a nossa experiência atual, tomando acessível o conteúdo do inconsciente pessoal e coletivo. A abordagem metafórica do mito logrou a atenção popular recentemente através das obras de psicólogos pós-junguianos. O livro He, She, and We, de Robert Johnson, e o livro Goddesses in Everywoman, de Jean Shinoda Bolen, educaram uma geração de leitores no uso dos mitos como pedras de toque do processo do descobrimento de si próprio. Mas ao passo que a corrente principal dos modernos estudos do mito - representada pelas obras de Jung e Campbell - flui ao longo do canal do alegorismo de Teágenes, existe também uma moderna corrente euemerista. Sustenta essa escola de pensamento que, pelo menos em alguns casos, os mitos podem conter mais do que um conteúdo metafórico que começaram como descrições de acontecimentos reais, e não são, portanto, apenas histórias "verdadeiras" num sentido alegórico, mas também histórias fatuais num sentido histórico. A moderna escola euemerista é representada notadamente por Immanuel Velikovski, segundo o qual as lendas mundiais de antigas catástrofes que abalaram a Terra fundavam-se em verdadeiros colapsos cósmicos, presenciados pelos nossos distantes ancestrais. Dir-se-ia, a princípio, que o mito e a história têm pouca coisa em comum. Afinal de contas, os mitos são narrativas das origens das coisas e acontecem na milagrosa Idade dos Deuses, ao passo que a história se preocupa com eventos que ocorrem no tempo humano comum. E, todavia, quando examinamos o mito e a história de perto, a linha divisória entre os dois torna-se ainda mais tênue e ambígua. A própria história, como disciplina, originou-se do mito: quando Heródoto, geralmente reconhecido como o primeiro historiador no sentido moderno, escreveu suas Investigações como narrativas factuais entre gregos e persas, deu-se ao trabalho de seguir a

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trajetória do conflito até as suas origens, a guerra entre deuses e titãs no Olimpo. Além disso, antropólogos e arqueólogos descobriram muitos casos em que os mitos escondem, sem sombra de dúvida, elementos do fato histórico. Por exemplo, os índios klamaths do Noroeste do Pacífico contam a história de uma antiga batalha entre um pássaro mágico e uma tartaruga mágica. Quando a tartaruga foi derrotada, o monte Mazama, em que estivera durante a batalha, desabou sobre ela. O seu sangue formou um lago, e o seu dorso emergiu do lago qual uma ilha. Hoje, o monte Mazama, que pode ter-se elevado outrora a 10.000 pés de altitude, é conhecido como a Cratera do Lago, e os geólogos dizem que os klamaths devem ter dado forma de mito à uma erupção vulcânica, que realmente se verificou há mais de 6.500 anos. De maneira semelhante, animais pré-históricos da Austrália, extintos há 10.000 ou 15.000 anos, são recordados no mito aborígine, juntamente com mudanças contemporâneas de clima e paisagem. Sem dúvida, quando a memória coletiva preserva a impressão de um evento, tende a fazê-Io de maneira "arquetípica", não levando em conta aspectos específicos que não correspondem a um padrão universal preexistente. Em inúmeros casos, nos tempos modernos, podemos realmente observar a metamorfose de uma figura histórica em herói mítico (como, por exemplo, em algumas biografias populares de Washington, Lincoln e Lenin). E, no entanto, o cerne fatual da narrativa, transformada em relato mitológico, indubitavelmente persiste, seja na biografia de um chefe político heróico, seja no histórico conto popular russo da invasão napoleônica, seja numa narrativa épica grega das guerras troianas. A história existe no mito tão seguramente quanto o "mito" persiste na história. A interpretação histórica do mito apresenta arqueólogos e antropólogos diante de um desafio único: até que ponto deve ser tomada literalmente uma narrativa tradicional? Eis aí um desafio que a maioria dos pesquisadores preferiria simplesmente evitar. Desde o século XVIII, os historiadores têm discutido a interpretação literal da Bíblia, e grande parte dos estudiosos do folclore parece ter sido presa

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do medo raramente proclamado - comum do princípio ao fim da academia - de que a validação histórica de qualquer mito possa abrir a porta a um retorno da ciência baseada na Bíblia. Sente-se a intensidade desse medo na declaração do antropólogo Robert Lowie de que não poderia "atribuir a tradições históricas nenhum tipo de valor em nenhum tipo de condições", e na determinação do antropólogo Edmund Leach de encarar os profetas e reis do Antigo Testamento como personagens puramente "míticos", sem nenhuma base nos fatos. Entretanto, é obviamente possível a uma história ser fatual e, ao mesmo tempo, "verdadeira" num sentido alegórico: um acontecimento histórico pode ser usado para ilustrar uma verdade universal. Através da fusão que provocam entre a memória e a moral, os mitos dessa casta tenqem a ser particularmente poderosos, e são sintetizados nas histórias das vidas dos fundadores das religiões mundiais. Me-taforistas extremados podem sustentar que Moisés, Jesus, Buda e Lao Tzu nunca existiram realmente, ao mesmo passo que os literalistas podem insistir na integridade fatual atédos mínimos pormenores das suas biografias tradicionais. A verdade, todavia, talvez resida em algum lugar entre as duas posições. Como veremos nos capítulos 8 e 9, os enfoques alegórico e histórico são instrumentos igualmente necessários em nossa análise do mito do Paraíso.

O Problema da Unidade Mítica Quer interpretemos os mitos como alegorias, quer os interpretemos como memórias históricas, depara-se-nos o que emerge como o grande problema do mito - a similaridade mundial dos temas míticos. Durante o século passado, os etnólogos registraram e cotejaram o folclore de centenas de culturas de todas as partes do mundo, e, nesse afã, notaram repetidamente o fato de que os mitos, em toda a parte, tendem a seguir um modelo comum. Joseph Campbell escreveu

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que os mitos do mundo "se parecem uns com os outros como dialetos da mesma língua". E, numa visão geral dos mitos da criação de todo o mundo, Raymond Van Over pergunta: "Por que tal similaridade de idéias e imagens míticas do princípio ao fim dessas culturas distantes? A discussão entre os estudiosos estendeu-se, por decênios, e continua até hoje. Nenhuma resposta definitiva parece ter-se revelado, mas as teorias abundam.” É possível, naturalmente, exagerar a extensão dessa unidade. Seria não somente uma super-simplificação, mas também uma grave deformação supor que não existem variedade nem nuanças entre os mitos das culturas do mundo. Em certo nível a variedade é pasmosa. Abrange, ao mesmo tempo, a visão cíclica do tempo dos hindus, como também os conceitos históricos lineares dos hebreus: as imagens arbóreas dos primeiros agricultores, e os deuses e animais dos caçadores primitivos; o dualismo do Avesta iraniano, e a teologia unitiva dos Upanichades hindus. E, contudo, até debaixo das mais divergentes tradições, não demoramos a descobrir similaridades temáticas subjacentes. Os hindus e os hebreus, os caçadores e os agricultores, todos voltavam os olhos para um Paraíso original, todos se lembravam de um Dilúvio de proporções mundiais, e todos acreditavam num Outro mundo não-físico. Como demonstraram Campbell e Eliade, na realidade existe apenas uma história, traduzida nas tradições e circunstâncias de miríades de povos. É o mito de um Tempo dos Primórdios, idílico e perdido, e da jornada de um herói a fim de restituir ao mundo a sua prístina condição de esplendor paradisíaco. Como veremos nos capítulos seguintes, os paralelos entre as descrições das várias culturas desse Tempo primordial, e da sua perda, são notáveis. Daí o problema: Por que haveriam os povos antigos, em sítios geograficamente remotos, em circunstâncias únicas, de chegar a tais crenças similares? São poucas, na realidade, as respostas possíveis à pergunta. Ou os temas fundamentais do mito estavam distribuídos entre os povos do mundo há muito tempo, através de um processo de empréstimo e difusão, antes talvez de terem esses povos migrado

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para suas atuais localizações, ou motivos similares ocorreram, de algum modo, independentemente, entre povos que já viviam longe uns dos outros. Se os temas se originaram independente e espontaneamente, devem tê-Io feito por causa de uma similaridade universal da psicologia humana, ou porque toda a humanidade participou de acontecimentos históricos reais, e provavelmente históri-cos, que se imprimiram na memória de cada cultura. Voltaremos ao problema da unidade mítica no Capítulo 3, onde examinaremos exemplos específicos do mito do Paraíso de várias culturas. Não tentaremos, porém, resolver o problema de uma vez e para sempre; antes, sugeriremos que todas as explicações acima podem ser em parte válidas, e ofereceremos um cenário provável que talvez explique os fatos tais como se deram. Mas agora, tendo examinado algumas questões primárias no estudo moderno da mitologia, estamos prontos para investigar os próprios mitos - as histórias universais de como o mundo veio a ser como é. Investigá-Ios-emos de acordo com a seqüência dos acontecimentos que eles descrevem: a Criação, o Paraíso e a Queda.

CAPÍTULO 2 No Princípio

Essas coisas são, na realidade, os pensamentos de todos os homens

em todas as idades e terras, não são originalmente minhas. Walt Whitman

Em toda mitologia, a Criação é o primeiro ato de um grandioso drama cósmico. Desenrola-se o drama por estádios através de uma Idade de Ouro, de paz e fartura, uma Queda ou período de degenerescência, e uma catástrofe que acarreta o fim da sagrada Idade dos Deuses e dá início à atual idade profana do mundo. Embora o item principal da nossa investigação seja o Paraíso original, não podemos realmente esperar compreender a fase central da grande seqüência mítica sem

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antes examinar o conjunto todo de que ela faz parte. E, assim, começamos o estudo do mito do Paraíso, onde devemos fazê-Io - no princípio - com a história universal da Criação. A vida espiritual de todos os povos antigos e tribais girava em torno da manutenção de ritmos e equilíbrios sagrados por intermédio de rituais destinados a recapitular a Criação, o derradeiro ato sagrado, que há de ser comemorado e repetido simbolicamente e em ocasiões significativas da vida do indivíduo e da vida coletiva da tribo. O processo criativo foi, a um tempo, fenômeno cósmico, histórico e modelo de plano e controle na vida de todos os dias, meio prático de harmonizar o Céu e a Terra. A história da Criação, portanto, teve um sentido universal e imediato: descreveu a natureza da realidade absoluta de um modo ao mesmo tempo transcendente (verdadeiro para todos os tempos e lugares) e imanente (verdadeiro aqui e agora). A Criação original assinalou o início da Idade dos Deuses. Eliade escreveu: "Fora impossível exagerar a tendência observável em toda sociedade, por mais altamente desenvolvida que seja - a trazer de volta aquele tempo, tempo mítico, o Grande Tempo." O Grande Tempo era o modelo de todos os tempos, de modo que as acessões de novos chefes ou reis, ritos de iniciação, casamentos, jogos, plantio, caça e, especialmente, comemorações do ano novo, todas eram ocasiões de reapresentação simbólica do que acontecera no princípio. Os aborígines da Austrália central praticavam rituais de circuncisão e faziam pinturas de "raios X" em cascas de árvores precisamente das maneiras que os seus Antepassados-Criadores lhes haviam ensinado no Tempo de Sonho. Os índios iuroques do norte da Califórnia executavam danças de renovação do mundo, que os Imortais lhes haviam revelado quando o mundo era jovem. E, consoante Joseph Epes Brown, autoridade moderna em religiões americanas nativas, as tribos Pima e Pipago do Sudoeste americano viam o ato de fazer cestas como: A recapitulação ritual do processo total da criação. A cesta completada é o universo numa imagem: e no processo de manufatura, a mulher desempenha realmente a parte do Criador. Similarmente, ao

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estabelecer a relação dinâmica recíproca entre a urdidura vertical e a trama horizontal, o tecelão navajo de cobertores participa de atos que imitam a criação do próprio universo.

Figuras Wandjina. Pintura em rocha da Austrália central. Os

Wandjinas eram seres-criadores ancestrais do AIcheringa, ou Tempo de Sonho, que deixaram suas semelhanças impressas em paredes de

cavernas antes de voltarem ao mundo do espírito Os antigos sábios hindus expunham o assunto com brevidade quintessencial: "Assim fizeram os deuses; assim fazem os homens". A nostalgia das origens, como diz Eliade, é o desejo "de recuperar a presença ativa dos deuses" e "viver o mundo tal como veio das mãos do Criador, fresco, puro e forte". Em toda cultura encontramos o mesmo anseio de reentrar no tempo sagrado em que os deuses estavam imediatamente presentes, criando e organizando o mundo. Existem milhares de mitos da Criação entre os povos do mundo, mas, como assinalaram Eliade e Campbell, são todos, na verdade, a

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mesma história contada de maneiras diferentes. Ao passo que algumas culturas dão ênfase ao papel de Deus Pai e relatam o mito desde uma perspectiva celeste, outras retratam um princípio feminino da Criação, a Mãe Terra. Mas até na descrição do processo a partir de pontos de vista diferentes, os antigos formularam variações sobre um outro de um punhado de temas: a Criação a partir do Nada, em que um Deus-Criador solitário produz o Céu e a Terra por meio de um pensamento ou de uma palavra; o mito do Ovo Cósmico, em que o Universo se desenrola a partir da interação dos princípios primordiais masculino e feminino; a história do Mergulhador da Terra, em que um representante do reino superior, espiritual, mergulha no caos não-formado e traz à superfície fragmentos de lodo, que crescem para for-mar o mundo inteiro; e o mito da Emergência, em que o Primeiro Povo se apresentou na luz do dia do ser físico, vindo de vários níveis do mundo subterrâneo. Estudaremos primeiro o modo com que cada uma dessas histórias do Grande Tempo da Criação exemplifica o processo criativo universal, e depois examinaremos os mitos de origem da humanidade no Paraíso primordial.

Fiat ex Nihilo No mito da Criação a partir do Nada, uma divindade todo-poderosa, habitando sozinha o vazio do espaço, faz que apareçam primeiro o Céu e depois a Terra. O método da criação, deliberado e ordenado, parte de um pensamento ou de uma palavra. A narrativa desse tipo m~is conhecida é a história hebraica da Criação, tirada do livro do Gênesis:

No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra, porém, era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o espírito de

Deus pairava por sobre as águas. Disse Deus: Haja luz; e houve luz. E

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viu Deus que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas. Chamou Deus à luz Dia, e às trevas, Noite.

Como mostraram os antropólogos Andrew Lang, Wilhelm Schmidt e Wilhelm Koppers, a idéia de um Criador original e único é universal e primordial. Entretanto, seria simplista não dar atenção às diferenças entre, por exemplo, o Jeová hebreu e o Brahma hindu: o primeiro é comumente considerado pessoal e inteiramente outro, enquanto o segundo é visto como imanente em todas as minúcias do universo criado, como o Tao de Lao Tzu: Existe alguma coisa anterior a todos os começos e fins, Que, não-movida e não-manifesta, nem começa nem acaba. Onipenetrante e inexaurível, é a fonte perpétua de tudo o mais... Quando sou forçado a descrevê-la, falo dela como a "Última Realidade". Mas ao passo que o princípio criativo pode ser descrito de maneira algo diferente em várias culturas, a sua singularidade e a sua qualidade de ser absoluto, não obstante, são universalmente reconhecidas. O Jeová hebreu existe sozinho antes da Criação do Céu e da Terra; o mesmo se dá com o deus egípcio Quepri, que afirma: "Quando vim a ser, o (próprio) ser veio a ser... antes que o céu viesse a ser, antes que a terra viesse a ser...” Em muitos relatos, o primeiro ato da Criação consiste na convocação da luz, como neste mito dos maoris da Nova Zelândia:

Io habitava o espaço de respirar da imensidade. O Universo estava no escuro, com água em toda a parte. Não havia o bruxuleio da aurora, nem claridade, nem luz.

E ele começou dizendo estas palavras - "A treva se torna uma treva possuidora da luz".

E imediatamente a luz apareceu. (Ele) então repetiu as mesmíssimas palavras deste modo.

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"Luz, torna-te uma luz possuidora de treva". No Gênesis, a Criação ocorre pelo som ou pela palavra. Esse tema se encontra também entre os egípcios, os celtas e os maias. O sacerdote maori refere-se às palavras de Io como: Os ditos antigos e originais As palavras antigas e originais A sabedoria cosmológica antiga e original (wananga), Que causou crescimento desde o vazio, O vazio que enche o espaço sem limite. No mito havaiano, o Grande Deus Kane existe, só, na profunda noite intensa. Ele primeiro faz surgir a luz, depois os céus, a seguir aTerra e o oceano, o Sol, a Lua e as estrelas. Os índios hopis, do Arizona, contam que Taiowa, o Criador, começou encarregando um subordinado do resto do processo da Criação: O primeiro mundo foi Tokpela [Espaço sem fim]. Mas primeiro, dizem, havia apenas o Criador, Taiowa. Tudo o mais era espaço sem fim. Não havia começo nem fim, nem tempo, nem forma, nem vida. Apenas um vazio incomensurável, que tinha seu começo e fim, tempo, forma e vida na mente de Taiowa, o Criador. Então ele, o infinito, concebeu o finito. Primeiro, criou Sótuknang para torná-Io manifesto, dizendo-Ihe: "Criei-te, o primeiro poder e instrumento como pessoa, para executar meu plano de vida no espaço sem fim. Sou teu Tio. És meu Sobrinho. Vai agora e estende os universos na ordem conveniente de modo que trabalhem harmoniosamente uns com os outros, de acordo com o meu plano". Sótuknang fez o que lhe foi ordenado. Do espaço sem fim, reuniu o que devia ser manifesto como substância sólida, e modelou-o em formas.

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Brahma, o Criador, olhando para as quatro direções.

O universo criado é produzido da não-coisa; isto é, não tem antecedente físico. Em vez disso, é precedido pelo Ser puro, a consciência não-diferenciada.

O Ovo Cósmico No mito do ovo cósmico, a Criação ocorre pela relação de princípios masculinos e femininos (ativos e receptivos) equilibrados, interagindo a partir de um estado de união primordial metaforicamente descrito como ovo. A unidade dos dois princípios sexuais é uma imagem de perfeição e de potência, vida e nascimento iminente. Para os chineses, o símbolo do ovo cósmico - o T'ai Chi Tu, ou Diagrama da

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Suprema última Verdade - era uma lembrança da profunda necessidade de equilibrar as forças yang (ativa) e yin (receptiva) da Natureza em toda ação, e em todos os aspectos da sociedade humana, em ordem a liberar o poder da Criação:

Os antigos japoneses, cuja cosmologia sofreu a influência da filosofia taoísta da China, diziam que: Antigamente, o Céu e a Terra ainda não estavam separados e o In e o Yo [os princípios masculino e feminino] ainda não estavam divididos. Formavam uma massa caótica, semelhante a um ovo, que tinha limites obscuramente definidos... A parte mais pura e mais clara difundiu-se finalmente e formou o Céu, ao passo que o elemento mais pesado e mais grosso acomodou-se e formou a Terra. O elemento mais fino tornou-se facilmente um corpo unido, mas a consolidação do elemento pesado e grosso realizou-se com dificuldade. O Céu, portanto, fez-se primeiro, e a Terra estabeleceu-se subseqüentemente. Depois disso, Seres Divinos produziram-se entre eles. Muitos mitos, que caracterizam a realidade primeva como caos ou água, incluem o simbolismo de um ovo como a fonte imediata de toda a vida, o ventre da Criação. Na tradição órfica grega, o Tempo (Cronos) cria o ovo de prata do Cosmo, do qual irrompe Fanes-Dioniso, que encerra os dois sexos e contém as sementes de todos os

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deuses. Um mito da criação mande, da África, descreve gêmeos de sexos opostos concebidos no "Ovo de Deus", que é também o "Ovo do Mundo". O texto hindu intitulado As leis de Manu afirma: Ele [que existe por si mesmo] desejando produzir seres de muitas espécies do seu próprio corpo, primeiro, com um pensamento, criou as águas e nelas colocou a sua semente. Esta [semente] tornou-se um ovo de ouro, de resplendor igual ao do sol: no [ovo] ele mesmo nasceu como Brahman, o progenitor do mundo inteiro... O divino residiu no ovo durante um ano, depois ele mesmo pelo pensamento [só por só] dividiu-o em duas metades: e das duas metades formou o Céu e a Terra, os oito pontos do horizonte, e a eterna morada das águas. No mito do Ovo Cósmico, o masculino e o feminino, o Céu e a Terra, o espírito e a forma estão num equilíbrio propositado, empenhados na divina interação criativa.

O Mergulhador da Terra O mito do Mergulhador da Terra conta a história da criação desde a perspectiva de uma forma representativa do mundo superior, que mergulha no caos primordial, em busca da primeira semente da ordem. O mito do Mergulhador da Terra conta que um ser divino (geralmente um animal) desce às profundezas da água a fim de trazer para cima pedaços de lodo, os quais, crescendo, formam toda a Terra ou até o Universo inteiro. Os mitos do Mergulhador da Terra são comuns entre as tribos ao norte dos Estados Unidos, cujas cosmologias apresentam um mundo superior original, habitado pelos Anciãos imortais, acima de um caos informe de água. O simbolismo dos mitos do Mergulhador da Terra é freqüentemente caprichoso: pinta-se amiúde o Mergulhador como um rato-almiscarado, um pato ou uma tartaruga. Entretanto, a despeito disso,

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o sentido fundamental dos mitos é profundo. A água é a realidade informe da qual surge a matéria, e a descida ao abismo é análoga ao batismo, no fato de ser, ao mesmo tempo, um ato de limpeza e de criação. "No princípio nada havia senão água", diz um mito dos hurões. De maneira semelhante, o Vishnu-Purana hindu fala de um caos original de águas. Ele, o Senhor, concluindo que dentro das águas jazia a terra, e sentindo-se desejoso de erguê-Ia. ... Ele, o sustentador do ser espiritual e material, mergulhou no oceano. A tribo maidu, da Califórnia, em seu mito de Criação, refere-se ao Mergulhador da Terra, a Tartaruga e a dois outros seres cósmicos, o Pai-da-Sociedade-Secreta e o Iniciado-da-Terra, misteriosa presença do alto: No princípio não havia sol, nem lua, nem estrelas. Tudo era escuro, e em toda a parte só havia água. Uma balsa veio flutuando sobre a água. Ela veio do norte, e nela havia duas pessoas, a Tartaruga e o Pai-da-Sociedade-Secreta. As águas fluíam muito depressa. Eis senão quando, do céu desceu uma corda de penas, e por ela veio o Iniciado-da-Terra. Quando ele chegou à ponta da corda, amarrou-a na proa da balsa, e pulou nela. Seu rosto estava coberto e nunca foi visto, mas o seu corpo brilhava como o sol. Ele sentou-se e durante muito tempo não falou nada. Afinal, a Tartaruga disse: "De onde você vem?" e o Iniciado-da-Terra respondeu: "Venho do alto". Depois a Tartaruga disse: "Irmão, você não pode fazer para mim um pouco de boa terra seca, de modo que eu possa, às vezes, sair da água?" ... O lniciado-da-Terra replicou: "Você quer um pouco de terra seca: pois bem, como vou arranjar um pouco de terra para fazê-Ia?" Respondeu a Tartaruga: "Se você atar uma rocha ao meu braço esquerdo, mergulharei à procura de alguma". O Iniciado-da-Terra fez o que a Tartaruga pediu, e, em seguida, estendendo a mão à sua volta, pegou a ponta de uma corda de um lugar qualquer, e amarrou-a na Tartaruga...

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A Tartaruga desapareceu por muito tempo. Ela partira havia seis anos; e, quando tornou a subir, estava coberta de limo verde, pois estivera todo o tempo lá embaixo. Quando chegou à superficie da água, a única terra que trazia era um pedacinho muito pequeno, debaixo das unhas; o resto fora levado pelas águas. O Iniciado-da-Terra pegou, com a mão direita, uma faca de pedra do sovaco esquerdo, e, com muito cuidado, raspou a terra que ficara sob as unhas da Tartaruga. Colocou-a na palma da mão, e fê-Ia rolar até deixá-Ia redonda; a terra tinha o tamanho de um seixo pequeno. Colocou-o na popa da balsa. De quando em quando, ia olhar para ela: a bola de terra não crescera nem um pouquinho. Na terceira vez em que foi vê-Ia, ela crescera tanto que podia ser abarcada com os braços. Na quarta vez que olhou, ela ficara do tamanho do mundo, a balsa estava encalhada na terra, e tudo à sua volta, até onde ele podia enxergar, eram montanhas. Na seqüência do mito, o Iniciado-da-Terra - o qual, mais que a Tartaruga, é a verdadeira figura do Criador da história - dá forma aos primeiros seres humanos: Pouco a pouco, foi aparecendo grande quantidade de pessoas. O Iniciado-da-Terra quisera ter tudo confortável e fácil para as pessoas, para que nenhuma tivesse que trabalhar. Todas as frutas eram fáceis de obter, e ninguém ficava doente nem morria. À medida que as pessoas se foram tornando numerosas, o lniciado-da-Terra já não vinha tantas vezes quanto antes... Ele se foi. Partiu de noite, e subiu às alturas. Aqui já vemos, como voltaremos a ver em muitos outros exemplos, o modelo universal do Paraíso, seguido pela separação entre o divino e o humano.

A Emergência O mito da Emergência concentra-se em torno do simbolismo da Mãe Terra, da qual emergem seres humanos através de vários estádios ou

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níveis do mundo inferior. Os mitos da Emergência encontram-se entre os nativos americanos hopis, navajos, pueblos e pawnees, e em certos grupos das ilhas do sul do Pacífico. No mito da Emergência, a Terra, fonte fértil do ser, encerra dentro em si mesma as essências e potências de toda a vida. Não se descreve o mundo inferior como um inferno, mas como um mundo anterior de existência, um Paraíso semelhante a um ventre. Tampouco se considera o mundo inferior uma caverna subterrânea literal, mas antes um lugar "para onde, ao morrer, voltaremos todos", outro plano de existência "sob" - isto é, subjacente - o mundo físico perceptível. O Sol ou o Grão, muitas vezes, é o agente de transformação e aceleração, conduzindo o Primeiro Povo para a luz. "Antes que o Mundo fosse estávamos todos dentro da Terra", começa um mito pawnee. "Mãe semente causou o movimento. Ela deu a vida.” Em parte, o mito da Emergência é uma metáfora da jornada desde um plano espiritual de existência para a manifestação no mundo material. Mas o mito também compendia o papel do feminino na Criação: é um símbolo e uma lembrança da Mãe primordial, da própria Terra, tal como era originalmente - fresca, nova, fértil, fonte de todas as formas, receptáculo de todas as sementes, fomentadora de toda a vida. A história é narrada desde a perspectiva da Criação, emergindo do ventre da Mãe Terra. Não somente são poucos os temas básicos expressos através de todas as centenas de mitologias do mundo, aparentemente independentes, como também esses poucos temas tendem a fluir juntos, como tributários da descrição do único processo criativo universal. À medida que nos familiarizamos com os arquétipos míticos da Criação, vemos, cada vez mais claramente, que todos procedem de uma única origem. Enquanto determinado mito pode estender-se especialmente sobre um episódio da grande História, somos, quase sempre, capazes de reconhecer outros episódios e elementos latentes em seus pormenores aparentemente sem importância. É quando vemos a História como um todo que todos os elementos e episódios têm sentido.

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No princípio há Um - uma Inteligência preexistente, só, e sem limites. O Um, em que estão unidas em perfeita harmonia as polaridades da existência, exercita um ato consciente de vontade e torna-se Dois - masculino e feminino, ativo e receptivo, Céu e Terra. Os Dois trabalham como parceiros iguais no encetar as pulsações cósmicas cíclicas, das quais emana toda a vida. A interação - poder-se-ia dizer sexual - recíproca dos Dois gera uma multiplicidade de seres divinos, cuja atividade ulterior, baseada nos mesmos princípios criativos, resulta no aparecimento de um Universo manifesto de extensão e pormenores infinitos. Os seres divinos mergulham no abismo áqüeo do caos e voltam com as primeiras sementes da forma física. Ligando-se a esses núcleos de substância, continuam a reunir material à sua volta e, gradativamente, emergem dos reinos interiores, invisíveis, da eternidade, para o mundo visível, tangível, do espaço e do tempo.

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O Jardim do Éden, de Lucas Cranach, o antigo (1530) Através desse processo grandioso, a Inteligência Una se diferencia numa miríade de seres autoconscientes encarnados em forma material. E, assim, gera-se um Universo de diversidade ilimitada, cada parte minúscula da qual se baseia numa singular Realidade final.

A Origem dos Seres Humanos Os mitos da origem dos seres humanos são, geralmente, de dois tipos: a criação a partir do barro ou do pó, e a descida do Céu. De vez em quando, o mesmo mito incorpora os dois temas, pois eles não são mutuamente excludentes nem contraditórios. Assim como os mitos do Mergulhador da Terra e o da Criação-do-Nada descrevem a Criação desde a perspectiva do Criador, ao passo que o mito da Emergência descreve o mesmo processo desde a visão do que foi criado, assim o

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mito da descida-do-Céu refere-se às origens humanas a partir do ponto de vista do divino, enquanto a história da criaçãoa-partir-do-barro descreve o processo de uma perspectiva terrena. A criação a partir do barro nos é familiar em virtude do relato do Gênesis (2: 7), em que o Senhor formou o homem "do pó da terra, e lhe inspirou nas narinas o sopro de vida; e o homem passou a ser alma vivente". Existem, porém, muitas variações do tema. Entre inúmeras tribos de índios sul-americanos, o primeiro homem é modelado com barro ou com madeira, não pelo Ser Supremo, mas por um herói cultural. Os miwoks da Califórnia dizem que o homem foi criado por uma comissão de animais, cada um dos quais desejava modelar um pedaço de argila à sua própria imagem. Os índios crows, das planícies do norte, dizem que o Grande desceu do Céu à Terra a.fim de modelar seres humanos com barro, e teve de repetir o processo três vezes antes de ser bem-sucedido. E, de acordo com os maoris da Nova Zelândia, o Criador, Tane, usou o próprio sangue para umedecer o barro. Em quase todas as variações da história da criação surgida do barro, o sopro da vida é uma característica comum. Por exemplo, de acordo com um mito do Havaí, Kane e Ku sopraram nas narinas e Lono no interior da boca de uma imagem de barro, a qual veio a se transformar num ser humano. Na história da Criação da Austrália, conta-se que Bunjil, o Todo-Poderoso das tribos do sudeste, confeccionou duas imagens de barro, uma masculina e a outra feminina, às quais modelou em pedaços de casca de árvore. Ele as contemplou, deu-se por satisfeito e dançou em volta delas para comemorar. Depois ele as deitou e soprou em seus ouvidos, narinas e bocas. Elas estremeceram e começaram a se erguer. Da mesma forma os nativos das ilhas Kei da Indonésia contam que seus antepassados foram criados do barro pelo seu Criador, Dooadlera, que com um sopro proporcionava vida a figuras terrenas. Em muitas línguas, as palavras que indicam "espírito" e "sopro" são idênticas. Os mitos da Criação-a-partir-do-barro supõem que o sopro dentro de nós - a essência do nosso ser, a nossa vida - é um dom

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divino, uma centelha de divindade. "Eu sou Osíris", declara o Deus do antigo Egito. "Entro e reapareço através de vós, decaio em vós, cresço em vós." A mensagem fundamental dos Upanichades hindus, da mesma forma, é que Atman (o Eu mais profundo do indivíduo) é idêntico a Brahman (causa final de Tudo-o-que-é). Tat twan asi - "Isto és tu" - talvez a frase mais famosa em sânscrito, é uma proclamação da unicidade fundamental de Deus e do homem, uma unicidade que finalmente se estende a toda a criação: Vós sois tudo... Ó eu de todos os seres! Desde o Criador (Brahmâ) até a haste de relva tudo é teu corpo, visível e invisível, dividido pelo espaço e pelo tempo... Ó Eu transcendental! Prostramo-nos diante de ti como a Causa das causas, a forma principal sem comparação, além da Natureza (Pradhâna) e do Intelecto... Prostramo-nos diante de ti, o sem nascimento, o indestrutível, És o sempre-presente dentro de todas as coisas, como o princípio intrínseco de tudo. Prostramo-nos diante de ti, resplendente Habitante permanentemente presente (Vâsudeva)! A semente de tudo o que é! Ao passo que a história da animação do barro da terra por um Criador todo-poderoso descreve a união do espírito e da matéria desde o ponto de vista da criação (a matéria recebendo o alento do espírito), a história da descida de seres espirituais à Terra, descrita às vezes, como se eles vestissem casacos de carne, narra o mesmo processo desde o ponto de vista celestial do Criador. De acordo com o clã molama dos zulus, os seus antepassados mais remotos foram um homem e uma mulher, que desceram do céu e pousaram num deter-minado morro. Idéia semelhante se encontra entre os wakuluwes, que

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vivem entre Niassa e Tanganica; dizem eles que o primeiro casal desceu do Céu e produziu os seus filhos com partes de seus corpos. Os exemplos que poderíamos citar são quase intermináveis: segundo um mito dos caraíbas da Venezuela: "A princípio a terra era muito macia... O primeiro homem, chamado Louquo, desceu do céu e, depois de viver na terra e produzir muitos filhos, regressou ao seu lar no céu. Quando morrem, os seus descendentes também sobem aos céus, e ali se transformam em estrelas." No Orinoco e na Guiana, na América Latina, encontramos uma tradição parecida: Há muito tempo, quando Warau vivia nas felizes terras de caça, acima do céu, Okonorote, jovem caçador, disparou uma flecha que errou o alvo e se perdeu; procurando por ela, encontrou o buraco pelo qual ela caíra; e, abatendo a vista, descortinou a terra lá embaixo, com florestas e savanas cheias de caça. Por meio de uma corda de algodão, visitou as terras embaixo e, quando regressou, os seus relatos foram de tal forma que induziram toda a tribo dos waraus a segui-Io até lá; mas uma infeliz [mulher], demasiado gorda para esgueirar-se pelo buraco, ficou entalada nele, e os waraus se viram, assim, impedidos de voltar algum dia ao mundo do Céu. Os índios omahas das planícies norte-americanas também acreditavam na preexistência celestial ou espiritual de seres humanos, antes do seu aparecimento na Terra em forma física. "No princípio", dizem eles, "todas as coisas estavam na mente de Wakonda.” Todas as criaturas, incluindo o homem, eram espíritos, que se moviam no espaço entre a terra e as estrelas (os céus). Estavam procurando um lugar onde pudessem existir corporeamente... Então, desceram à terra. Viram-na coberta de água. Flutuaram pelo ar rumo ao norte, ao leste, ao sul e ao oeste, e não encontraram nenhuma terra seca... De repente, do meio da água emergiu uma grande rocha, que explodiu em chamas, e as águas flutuaram no ar em nuvens. As hostes de espíritos desceram e tomaram-se carne e sangue. Alimentavam-se das sementes das relvas e dos frutos das árvores, e a terra vibrou

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com as suas expressões de alegria e gratidão a Wakonda, o criador de todas as coisas. Os malgaxes de Madagascar concordam em que, no princípio, os seres humanos e todas as criaturas viviam no céu com Deus. Entre os nativos da Oceania, as pessoas são freqüentemente mencionadas como descendentes de deuses que desceram à Terra para nela viver. Na Indonésia oriental, diz-se que os antepassados originais desceram do céu, que ficava antigamente mais próximo da Terra, por meio de uma árvore ou vinha. A idéia da origem celeste aparece também na ilha de Nias, ao ocidente. Os tobas bataques de Sumatra dizem que a humanidade descende de uma donzela divina, que desceu à Terra, e do herói celeste que a seguiu. Nas Célebes meridionais, segundo os bugis de Macáçar, existe a crença de que seu povo descendia do filho da divindade do Céu e suas seis esposas, do mesmo modo que os antigos gregos afirmavam que a humanidade descendia de Zeus e de suas esposas. Entre os ifugaos de Lução, também encontramos a crença numa descendência direta de divindades. Dizem os ifugaos de Quiangan que o primeiro filho de Wigan, chamado Kabigat, foi da região do céu, Hudog, para o Mundo da Terra. Mitos que atribuem uma origem divina à humanidade encontram-se também nas Carolinas, onde se diz que Ligobund desceu do Céu à Terra e ali deu à luz três filhos, que passaram a ser os antepassados do gênero humano. E a mitologia havaiana reconhece um período pré-humano, quando somente espíritos povoavam, primeiro o mar, depois a terra. Tanto a história do sopro de vida quanto a tradição dos antepassados divinos descrevem uma conexão original entre a humanidade e o mundo espiritual. E tanto uma quanto a outra supõem uma "intenção original da parte dos antepassados-Criadores. A compreensão de que a humanidade foi criada - ou desceu do Céu - para desempenhar um papel único no mundo é extremamente difundida. Joseph Epes Brown nota que, conforme a maioria das tradições norte-americanas, embora os humanos tenham sido criados por derradeiro entre todas as criaturas, são também o "eixo" e, portanto, num sentido, os primeiros. Pois se cada animal reflete aspectos particulares do Grande Espírito,

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os seres humanos, pelo contrário, incluem, dentro de si mesmos, todos os aspectos. pessa maneira, o ser humano é uma totalidade, que carrega o Universo em seu interior e tem, através do intelecto, a capacidade potencial de viver com uma consciência contínua dessa realidade. A humanidade é feita à imagem e semelhança de Deus, a fim de servir como os meios de expressão do Criador na Terra. O Criador habita o coração de cada ser humano. A consciência primeva de um vínculo sagrado entre a essência da humanidade e um Ser espiritual maior se reflete no canto navajo seguinte. A palavra hozhoni expressa a relação entre o macrocosmo e o microcosmo, entre o espírito da Terra e a humanidade: Hozhoni, hozhoni, hozhoni Hozhoni, hozhoni, hozhoni A Terra, sua vida sou eu, hozhoni, hozhoni A Terra, seus pés são meus pés, hozhoni, hozhoni A Terra, suas pernas são minhas pernas, hozhoni, hozhoni, hozhoni A Terra, seu corpo é o meu corpo, hozhoni, hozhoni A Terra, seus pensamentos são meus pensamentos, hozhoni, hozhoni A Terra, sua fala é minha fala, hozhoni, hozhoni A Terra, sua penugem é a minha penugem, hozhoni, hozhoni O céu, sua vida sou eu, hozhoni, hozhoni As montanhas, sua vida sou eu Montanha de chuva, sua vida sou eu Mulher-mutante, sua vida sou eu O Sol, sua vida sou eu Deus-falante, sua vida sou eu Deus da casa, sua vida sou eu Semente branca, sua vida sou eu Semente amarela, sua vida sou eu O besouro da semente, sua vida sou eu Hozhoni, hozhoni, hozhoni Hozhoni, hozhoni, hozhoni O feiticeiro dos lakotas (sioux), Alce Negro, expressou o mesmo pensamento com a sua eloqüência característica:

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A paz... penetra as almas dos homens quando eles compreendem o seu relacionamento, a sua unicidade, com o Universo e todos os seus poderes, e quando compreendem que, no centro do Universo, habita Wakan-Tanka, e que este centro está, realmente, em toda a parte, está dentro de cada um de nós. De acordo com a história da criação universal, o sentido de unicidade entre a espécie humana, a Divindade, a Natureza, o Cosmo, a princípio foi completo. Nos dias em que o mundo era desconhecido e novo, cheio de força e vitalidade, os seres humanos viviam num Paraíso mágico de bem-estar e abundância, em perfeita harmonia com Deus e com os animais. Era um tempo de que todas as pessoas, em todas as nações, se lembrariam com inveja e pesar.

CAPÍTULO 3 À Procura do Éden

E plantou o Senhor Deus um jardim 110 Éden, da banda do Oriente, e

pôs nele o homem que havia formado. Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e

também a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal... Tomou, pois, o Senhor Deus ao

homem o colocou no jardim do Éden para que o cultivasse e guardasse.

Gênesis 2:8, 9, 15 A idéia de que os primeiros seres humanos eram felizes, inocentes e sábios está tão difundida que poderíamos iniciar um estudo geográfico dos mitos do Paraíso virtualmente em qualquer sítio habitável, com qualquer grupo étnico. Não obstante, parece inevitável que comecemos a busca com o que é, disparado, o exemplo mais conhecido: a história do Éden perdido. Ao compararmos a narrativa hebraica com os mitos do Paraíso de outras culturas, manteremos em

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mente a pergunta formulada no fim do Capítulo 1: Originou-se o mito de uma região, espalhando-se dali para outros povos e lugares, por um processo de empréstimo e difusão, ou ele apareceu em muitas partes do mundo espontânea e independentemente? A história do Gênesis sobre Adão, Eva, o Jardim e a serpente inspirou gerações de teólogos e eruditos; seu conjunto de imagens faz parte da própria base da civilização ocidental. Carrega consigo a ressonância de milhões de recontagens. No entanto, a sua exposição, no princípio do cânon hebraico, é tão lacônico que requer apenas umas poucas sentenças para recontar. O Éden era um lugar cheio de árvores frutíferas, ouro e pedras preciosas. Era a fonte das águas doces da Terra; o rio que fluía através dele dividia-se em quatro correntes, que corriam para os quatro quadrantes do mundo. Deus colocou os primeiros seres humanos ali no Jardim do Éden para que o cultivassem e guardassem.

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Um Jardim do Paraíso cristão primitivo. Um cedro, cercado de pássaros voantes, é flanqueado por uma cabra selvagem, roseiras,

lírios e heras. Friso central de um mosaico, fim do século V d.C., Bitola, Museu de Heracléia

O texto do Gênesis parece ser a fusão de dois relatos. No primeiro (Gênesis 1:26, 27), homem e mulher são criados juntos. No segundo (Gênesis 2:7, 18-23), Deus faz apenas Adão, depois alivia a solidão do homem formando as feras e os pássaros e, finalmente, a primeira mulher, Eva. Mais adiante, o casal original vive nu e sem conhecer a vergonha, em harmonia um com o outro e com os animais. Por enquanto, não precisamos preocupar-nos com o significado da história. Em vez disso, examinemos o texto do Éden simplesmente como documento literário. Quem o escrevéu? De onde veio ele? E quando teve origem? Existem duas escolas de pensamento em relação a essas perguntas. Os comentadores fundamentalistas tratam a história do Éden como um relato factual e divinamente inspirado, registrado por Moisés há uns 3.500 anos, em que se descrevem eventos ocorridos uns 25 séculos antes. Conforme a crença ainda comum, todas as narrativas similares de outras tradições culturais devem ter sido empréstimos primitivos feitos à versão mosaica original, ou reminiscências truncadas, preservadas pelos descendentes espalhados dos filhos de Noé. Em suma, a história de Adão e Eva, tal como foi preservada no Gênesis, é vista como verdade literal, pura e simples. Por outro lado, a maioria dos estudiosos modernos de crítica bíblica tende a ver a história do Éden como um composto de textos escritos ou compilados por sacerdotes israelitas entre os séculos IX e IV a.C., histórias que, por sua vez, derivavam de mitos mesopotâmicos anteriores ou haviam sido inspirados por eles. Os modernos críticos literários, históricos e de textos procuram estabelecer os textos originais dos documentos bíblicos e chegar a conclusões acerca da sua estrutura, data e autoria na base da evidência interna

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(vocabulário, estilo e gênero) do confronto com outros textos e das provas arqueológicas correlatas. Embora, como veremos, essa abordagem ainda não tenha produzido uma resposta final à pergunta sobre as origens da história do Éden, fornece um ponto de ingresso - tão bom quanto outro qualquer para a pista do Paraíso.

Suméria e Dilmun No entender dos lingüistas, os hebreus provavelmente tomaram emprestada a palavra éden aos sumerianos, que ocuparam o vale do Tigre e do Eufrates desde, mais ou menos, o quinto até o terceiro milênio a.C. Para os sumerianos, éden significava "planície fértil". Mas a palavra pode ter até uma origem mais antiga. Em 1943, o assiriólogo Benno Landsberger formulou uma teoria segundo a qual os nomes sumerianos correspondentes a "Éden" e "Adão" tinham sido tomados emprestados de um grupo cultural mesopotâmico mais antigo, que ainda não tinha uma linguagem escrita, conhecido como o AI-Ubaid. Os ubaidis parecem ter fundado as mais antigas cidades mesopotâmicas meridionais, Eridu e Uruque, por volta do ano 5000 a.C., de acordo com a maioria dos registros. Visto que os próprios ubaidis não pareciam ter tido uma linguagem escrita, provavelmente nunca saberemos se foram, com efeito, a última fonte da narrativa bíblica do Éden. Mas nem a idéia de que os elementos da história do Gênesis derivam de fragmentos de primitivas epopéias literárias mesopotâmicas - tal como a aceita a maioria dos estudiosos bíblicos se prova com facilidade. O paralelo mais próximo da história do Éden, discernível nos textos sumerianos, é uma série de inscrições que descrevem uma terra situada a leste, chamada Dilmun. Conquanto o Éden bíblico e o Dilmun sumeriano tenham ambos uma localização oriental e sejam locais de paz e abundância, os estudiosos têm encontrado freqüentemente, para o seu desapontamento - mais dessemelhanças do que semelhanças entre os dois Paraísos míticos.

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Os sumerianos, aos quais, por muitas décadas, se creditou a invenção da civilização, eram uma cultura cercada de mistério. Enquanto se pode remontar às origens de outros povos antigos da região, até o tronco indo-iraniano ou semítico, os sumerianos constituíam um grupo isolado. Os seus documentos foram escritos no que os lingüistas denominam "linguagem isolada", significando com isso que ela não tinha nenhuma relação aparente com qualquer outro idioma co-nhecido. Quando apareceram no delta dos rios Tigre e Eufrates, por volta do ano de 4000 a.C., os sumerianos trouxeram consigo sua agricultura, escrita, metalurgia e comércio próprios, seus templos, padres e leis, além de uma literatura mitológica, que contava que o deus Enki e sua esposa haviam sido colocados na terra mágica de Dilmun, a fim de instituir "uma idade sem pecado de felicidade completa":

Aquele lugar era puro, aquele lugar era limpo. Em Dilmun o corvo não crocitava.

O milhano não gritava como um milhano. O leão não lacerava.

O lobo não devastava os cordeiros... Ninguém afugentava as pombas.

Os sumerianos tinham migrado para a Mesopotâmia. É possível, por conseguinte, que o mito de Dilmun seja uma descrição idealizada do seu lar anterior. Em alguns trechos descreve-se Dilmun como se tivesse existido num passado distante: Era uma vez, em que não havia cobra, não havia escorpião, Não havia

hiena, não havia leão Não havia cachorro selvagem, nem lobo, Não havia medo, nem terror, O homem não tinha rival.

Era uma vez.... Em que todo o universo, o povo em uníssono Louva Enlil numa língua

só.

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Em outras passagens, Dilmun é descrita como "terra dos vivos", reservada para os deuses, ou para os que, como Ziusudra (o equivalente mítico sumeriano de Noé), receberam "a vida qual um deus". Em outras ocasiões ainda, todavia, descreve-se Dilmun como um país com o qual a Suméria mantinha relações simultâneas de comércio. Muitos arqueólogos acreditam agora que Dilmun estava localizada nas ilhas de Bahrein e de Failaka, ou na costa oriental da Arábia Saudita, centros de comércio internacional no tempo em que a Suméria dominava a região. Entretanto, a caracterização de Dilmun como centro internacional de comércio dificilmente explicará por que era mencionado tão amiúde em termos mágicos e paradisíacos. Os babilônios, sucessores dos sumerianos, também situavam a sua "terra dos vivos" em Dilmun. Era ali a "morada dos imortais", onde Utnapishtim (o personagem babilônico de Noé) e sua esposa tiveram permissão para morar depois do Dilúvio. Em suma, os pesquisadores não chegaram a acordo algum no que concerne à localização ou até à natureza de Dilmun. Os paralelos gerais entre os textos do Éden e de Dilmun (que ambos descrevem como terra de paz e imortalidade) são uma prova escassamente convincente da sua origem comum. A história de Dilmun não partilha nem das dramatis personae nem da trama da narrativa do Éden; ali não há serpente, nem fruto proibido, nem um casal primordial. Paralelos muito próximos da história do Éden podem encontrar-se em mitos mais distantes. Na antiga Pérsia, ou Irã, por exemplo, encontramos a tradição de um antepassado universal reminiscente do bíblico Adão.

O Jardim Iraniano A própria palavra paraíso vem da palavra do Avestá (iraniano antigo) Pairi-daeza, que significa jardim murado ou fechado. O protótipo de todos esses jardins era o de Yima, o primeiro homem. Segundo o

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folclorista Albert Carnoy: "A história de Yima é o mais interessante e extenso dos mitos iranianos, e é certo que a lenda data de Ariano, ou, pelo menos, dos tempos indo-iranianos". Diz-se de Yima que "foi o mais glorioso de toda a espécie humana... e tão poderoso que deu a homens e feras a imortalidade". Finalmente, Yima tornou-se rei dos mortos entre os persas, no qual as almas boas se refugiavam durante a apocalíptica batalha final entre as forças do bem e do mal. O Jardim de Yima estava situado numa montanha mítica, a fonte da Água da Vida, onde cresciam árvores mágicas, incluindo a Árvore da Vida. A Idade de Yima foi um tempo de perfeição: No reinado de Yima, o valente, não havia calor nem frio, nem velhice nem morte, nem doença... Pai e filho caminhavam juntos, cada um deles parecendo ter quinze anos de idade, ou assim parecendo. No Avesta, livro sagrado do Zoroastrismo, o jardim de Yima, denominado Airyana Vaejo, era descrito como um sítio-perfeito com um clima suave. Mas a Idade de Yima acabou após o aparecimento de Angra Mainyu (Ahriman), a encarnação do mal, que fez um inverno catastrófico descer sobre a terra. O jardim original perdeu-se na neve e no gelo. A tradição de Yima dos iranianos assemelha-se, em diversos pormenores, à história hebraica do Éden. Ambas aludem a uma Árvore da Vida, a um Rio da Vida, a um homem original singular, (Adão/Yima), a um Jardim e a uma Queda. Culturalmente, todavia, os antigos iranianos tinham mais coisas em comum com os povos índicos do que com os sumerianos, babilônios ou hebreus. Concordam os estudiosos em que Yima era o equivalente iraniano do Yama hindu, o primeiro ser mortal e preparador do reino dos que partiam. Mas nenhuma ligação direta pode ser traçada entre Yima e o Adão do Gênesis.

A Era de Rá

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Em seu Myth and Symbol in Ancient Egypt [O mito e o símbolo no antigo Egito], R. T. Rundle Clark diz-nos que a mitologia egípcia difere fundamentalmente das outras literaturas do Oriente Médio: A maioria dos mitos egípcios é constituída de episódios curtos, que podem ser contados em uma ou duas sentenças. Não são relacionamentos duradouros que envolvam os personagens, como os que foram recuperados dos sumerianos contemporâneos da Mesopotâmia. Entretanto, como os sumerianos, os hebreus e os iranianos, os egípcios também tinham um mito próprio. Para os egípcios, toda a vida se afirmava na reconstituição dos acontecimentos do Primeiro Tempo (Tep Zepi), o qual, de acordo com Rundle Clark, constituía "uma idade de ouro de absoluta perfeição - antes que sobreviesssem a fúria ou o clamor, ou a porfia, ou o tumulto. Nem morte, nem doença, nem desastre ocorriam nessa época bem-aventurada, às vezes conhecida como o tempo de Rá (o deus do Sol)". Lenormant diz que: Entre os egípcios, o reino terrestre do deus Rá, que inaugurou a existência do mundo e da vida humana, foi uma Idade de Ouro, para a qual voltavam continuamente os olhos com pesar e cobiça: para proclamar a superioridade de qualquer coisa acima de tudo o que a imaginação apresenta, bastava afirmar que "nada parecido foi visto desde os dias do deus Rá". Um texto egípcio primitivo, a respeito dos deuses primevos, diz que: A ordem foi estabelecida no tempo deles e a verdade... veio do céu nos seus dias. Ela se uniu aos que estavam na terra. A terra vivia na abundância; os corpos estavam cheios; não havia ano de fome nas Duas Terras. As paredes não caíam; os espinhos não picavam no tempo dos Deuses Primevos.

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Consoante outro texto, "não havia iniqüidade na terra, nenhum crocodilo abocanhava, nenhuma cobra picava no tempo dos Primeiros Deuses". Rundle Clark enfatiza que a restauração parcial dessa Idade de Ouro era o principal objetivo do ritual da religião egípcia. A mitologia egípcia, no entanto, faz menção de poucas minúcias capazes de relacioná-Ia com a história do Paraíso bíblico. Entretanto, embora a influência dos motivos religiosos e mitológicos egípcios se possa encontrar na filosofia grega e na literatura gnóstica primitiva, ninguém indicou o Tep Zepi dos egípcios como protótipo do Éden dos hebreus.

O Deus-Sol Rá

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A Raça de Ouro Depois da narrativa bíblica do Éden, a história do Paraíso que exerceu o maior impacto sobre o mundo ocidental foi a lenda grega da Idade de Ouro. A expressão "Idade de Ouro" é uma tradução da frase latina de Ovídio aetas aurea, a qual, por sua vez, se refere ao tempo da "raça de ouro" descrita pelo poeta grego Hesíodo em sua epopéia moralizante, Os trabalhos e os dias. Escrevendo provavelmente no século VIII a.C., Hesíodo lamentava o estado de degenerescência da sociedade contemporânea, que barões venais e gananciosos governavam pela força, extraindo subornos e tributos da população rural. Embora profundamente pessimista em relação ao futuro - "Zeus destruirá esta geração de mortais" -, Hesíodo idealizava o passado mais remoto num trecho que geraria um sem-número de elaborações de gerações ulteriores de filósofos e poetas gregos e romanos, e milhares de análises e interpretações de gerações ainda mais próximas de eruditos europeus e americanos: Primeiro que tudo, tendo os deuses imortais seus lares no Olimpo, fizeram uma raça de ouro de homens mortais, que viviam no tempo de Crono, quando este era rei no céu. À semelhança dos deuses, viviam com o coração livre de tristezas e longe de trabalhos e pesares; tampouco eram sua sina a idade miserável, mas sempre de pés e mãos incansáveis, folgavam em festins, fora do alcance de todos os males. E quando morriam, era como se tivessem caído no sono. E todas as coisas boas eram suas. Pois a terra frutuosa lhes dava espontaneamente frutos abundantes sem limites. E eles viviam no bem-estar e na paz em suas terras com muitas coisas boas, ricos em rebanhos e amados dos deuses abençoados. Segundo Hesíodo, a Idade de Ouro foi seguida das Idades da Prata, do Bronze, dos Heróis e do Ferro, a última das quais é a presente, a idade mais decadente. Como os seus escritos figuram entre as primeiras fontes literárias sobreviventes da mitologia grega, talvez nunca saibamos se esse lavrador da Beócia inventou a história das

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Idades do Homem, ou se, como parece mais provável, ele estava apenas expondo para a posteridade uma crença já antiga. Em qualquer caso, a idéia da beatitude original dos seres humanos e sua subseqüente degeneração parece ter sido geralmente aceita como fato histórico pela maioria dos gregos e romanos. A diferença das mitologias da maioria das outras culturas antigas, a da Grécia foi registrada e comentada por muitos autores cujos nomes chegaram até nós. Talvez nunca saibamos quem escreveu as passagens sobre os yugas no mahabharata, mas a respeito da tradição grega da Idade de Ouro temos pronunciamentos de alguns dentre os mais famosos autores da Antigüidade.

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Árvore celestial egípcia, plantada nas "águas das profundezas", de

onde uma deusa distribui a comida e a bebida da imortalidade. Detalhe de uma pintura do século XIII a.C.

A filosofia ocidental tem uma dívida incalculável para com Platão, em cujas obras encontramos a corrente paradisíaca, clara e forte. Nas Leis, Platão escreve que "devemos fazer quanto pudermos para imitar a vida que se diz ter existido nos dias de Crono; e na medida em que o elemento imortal habita em nós, precisamos atentar para ele, assim

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na vida privada como na pública". Em O estadista, PIatão oferece o seu relato da história humana. Em linhas gerais, ela consiste num tempo de Paraíso, durante o qual o mundo está sob o governo de Deus; a separação entre o mundo e Deus; o ingresso do mal no mundo, seguido pela decadência e pela destruição; e, por fim, a idade atual, em que os humanos, apesar de fundamentalmente miseráveis, são capazes de civilizar-se de certo modo através dos dons de Prometeu. O neoplatônico Porfírio, do século III a.C., disse que o filósofo grego Dicearco, do fim do século IV a.C., falava de: Homens da mais primitiva das idades, aparentados com os deuses, que eram, de seu natural, os melhores e viviam a melhor vida, de modo que são considerados uma raça de ouro em comparação com os homens do tempo presente... Desses homens primevos diz ele que não tiravam a vida de nenhum animal... Dicearco conta-nos a espécie de vida da Idade de Crono: se ela tiver de ser aceita como tendo realmente existido, e não for apenas um conto ocioso, quando as duas partes demasiado míticas da história tiverem sido eliminadas, ela poderá ser reduzida a um sentido natural pelo uso da razão. Pois todas as coisas, então, ao que se presume, cresciam espontaneamente, visto que os próprios homens daquele tempo nada produziam, não tendo inventado nem a agricultura nem nenhuma outra arte. Por essa razão, viviam uma vida de lazer, sem cuidados nem trabalhos, e também - a ser aceita a doutrina dos médicos mais eminentes - sem doenças... E não havia guerras nem lutas entre eles; pois não existiam entre eles objetos de competição de tal valor que dessem a alguém motivo para procurar obtê-Ios por esses meios. Em tais condições, era toda a vida deles uma vida de lazer, sem cuidados acerca da satisfação de suas necessidades, de saúde, paz e amizade. Conseqüentemente, o modo de vida deles veio a ser naturalmente almejado por homens de tempos subseqüentes, que, mercê da grandeza dos seus desejos, se tinham tornado sujeitos a muitos males... Tudo isso, diz Dicearco, não é apenas asseverado por nós,

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mas pelos que investigaram, do começo ao fim, a história dos primeiros tempos. Os autores romanos clássicos, Ovídio, Cratino, Pausânias, Tibulo, Virgílio e Sêneca se estenderam livremente a respeito da história de Hesíodo sobre a raça de ouro original, dando sempre ênfase às qualidades que caracterizam os benefícios da vida simples, primitiva - liberdade, auto-suficiência e ausência de dependência da tecnologia e da organização social complexa. As Metamorfoses de Ovídio foram, séculos a fio, prato obrigatório de todas as escolas européias, e sua descrição da Idade de Ouro, no Livro 1, passou a ser a forma definitiva do mito para a Idade Média e para a Renascença: A primeira idade foi de ouro. Nela, a fé e a justiça eram queridas pelos homens por sua livre e espontânea vontade, sem juízes nem leis. Não existiam penalidades nem temores, nem palavras ameaçadoras inscritas no bronze imutável; tampouco a multidão suplicante temia as palavras do juiz, mas estava segura sem protetores. O pinheiro cortado nos topos das montanhas ainda não descia para as águas fluentes, a fim de visitar terras estrangeiras, nem fossos profundos circunvalavam a cidade, nem havia trombetas retas, nem cornos de bronze retorcido, nem elmos, nem espadas. Sem o uso de soldados, as pessoas, em segurança, gozavam do seu doce repouso. A própria terra, aliviada da enxada e não ferida pelo arado, dava todas as coisas livremente... A primavera era eterna... não lavrada, a terra produzia seus frutos e as pesadas espigas de trigo embranqueciam o campo não arado. Em outra parte, Ovídio se refere à pacífica amizade da própria Natureza, antes da degeneração da espécie humana. "Essa idade antiga", escreve ele: A que demos o nome de Áurea, foi abençoada com o fruto das árvores e das ervas que o solo produz, e não poluiu sua boca com sangue coalhado. As aves, em segurança, abriam caminho com as asas pelo

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ar, a lebre, sem temor, errava pelos campos e o peixe não era apanhado graças à sua falta de inteligência. Não havia armadilhas, ninguém tinha medo da traição, e tudo era cheio de paz. Como vimos, o mundo ocidental tem uma herança de pelo menos cinco tradições, aparentemente independentes, de um Paraíso original: o Jardim do Éden hebraico, o Dilmun sumeriano, o Jardim iraniano de Yima, o Tep Zepi egípcio e a Idade de Ouro grega. Não parece haver nenhuma ligação. que se possa descobrir entre nenhuma delas. Duas tradições, a hebraica e a grega, continuam a afeiçoar os valores e ideais ocidentais. Na segunda parte, analisaremos as duas tradições, particularmente sobre o desenvolvimento da literatura e da teoria social européias e americanas. Mas não foi só a civilização ocidental que o mito do Paraíso modelou; as grandes civilizações do Oriente também.

Os Paraísos do Oriente Os antigos bardos da Índia descreveram a Primeira Idade, a Krita Yuga, em termos semelhantes aos empregados por Hesíodo em sua história da raça de ouro. Os hindus recordam quatro yugas, ou idades: depois da Krita vieram a Treta, a Dvapara e a Kali. Como os gregos, os indianos acreditavam que a seqüência das idades segue um processo de degeneração moral, e diziam que estamos agora vivendo a ultima yuga, decadente e materialista. De acordo com a epopéia histórica, o Mahabharata: A Krita Yuga [Idade Perfeita] era assim nomeada porque havia apenas uma religião, e todos os homens eram santos: por conseguinte, não se exigia deles que celebrassem cerimônias religiosas. A santidade nunca diminuía, e o povo não decrescia. Não havia deuses na Krita Yuga, e nem demônios... Os homens não compravam nem vendiam;

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não havia pobres e não havia ricos; não existia a necessidade de trabalhar, porque tudo que os homens requeriam obtinham-no pela força de vontade; a virtude principal consistia na renúncia de todos os desejos mundanos. A Krita Yuga era sem doenças; não havia depreciação com o passar dos anos; não havia ódio, nem vaidade, nem nenhuma espécie de maus pensamentos; nenhuma tristeza, nenhum medo. Toda a espécie humana podia lograr a suprema beatitude. Existe uma passagem semelhante no Vaya Purana: Na idade de Krita os seres humanos se apropriavam do alimento produzido da essência da terra. ... Não os caracterizavam a retidão nem a iniqüidade; não os marcava nenhuma distinção. ... Cada qual era produzido com autoridade sobre si mesmo. ... Eles não sofriam impedimentos, nem susceptibilidades aos pares de opostos (como o prazer e a dor, o frio e o calor), e nenhum cansaço. Freqüentavam as montanhas e os mares, e não moravam em casas. Nunca se entristeciam, eram cheios da qualidade da bondade, e supremamente felizes; andavam de um lado para outro à vontade e viviam em contínuo deleite. ... Produzidas da essência da terra, as coisas que essas pessoas desejavam surgiam da terra em toda a parte e sempre, quando pensadas. A perfeição deles, ao mesmo tempo, produzia força e beleza e aniquilava a doença. Com corpos que não precisavam de embelezamento, gozavam da perpétua mocidade. ... Prevaleciam a verdade, o contentamento, a paciência, a satisfação, a felicidade e o domínio de si mesmo. ... Não existiam entre eles coisas como lucro ou perda, amizade ou inimizade, gosto ou aversão. Na China, voltamos a encontrar o mito do Paraíso temperado de acordo com as sensibilidades culturais locais, mas, sem embargo, caracterizando a primeira condição da humanidade como uma condição de bem-estar, fartura e liberdade. A filosofia taoísta, profundamente e, não raro, sardonicamente primitivista, permeou o

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pensamento chinês, pelo menos, durante dois milênios e meio. De acordo com os primeiros sábios taoístas, Lao Tzu e Chuang Tzu, a própria Natureza é sábia, e o homem inteligente sabe que não deve impor-lhe ritmos criativos. "A inteligência profunda". de acordo com Lao Tzu. "consiste no poder penetrante e impregnado de devolver a todas as coisas a sua harmonia original.” Em todos os escritos canônicos taoístas existe a implícita compreensão de que, na idade primitiva, "toda a criação gozava de um estado de felicidade..., todas as coisas cresciam sem trabalho; e uma fertilidade universal prevalecia". Segundo Lao Tzu: "Nos tempos primitivos, os homens inteligentes tinham uma compreensão intuitivamente penetrante da realidade que não poderia ser expressa em palavras." A identificação da inteligência com os caminhos da realidade, juntamente com a preocupação de devolver todas as coisas à sua harmonia original. são temas que trazem a marca da autenticidade, reemerguem no confucionismo e no zen-budismo, e representam o cerne da sabedoria chinesa. As tradições do Paraíso da Índia e da China apresentam algumas similaridades com as da Grécia antiga. Poderia ter havido uma influência direta de uma sobre as outras? A ser assim, essa influência deveria ter chegado cedo, provavelmente por volta dos primeiros desenvolvimento da agricultura, quando ocorriam grandes migrações. do começo ao fim da Europa, da Ásia e das Américas. Mas como isso se deu há tanto tempo, não há realmente nenhuma resposta definitiva à pergunta.

O Primitivismo entre os Primitivos Os povos civilizados sempre mantiveram mitos que glorificavam a vida feliz do passado distante, quando os seres humanos viviam em harmonia entre si, com os animais, e, na verdade, com toda a Natureza e todo o Cosmo. Mas tais recordações não se restringem às culturas civilizadas. Quando examinamos as tradições das tribos

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australianas, americanas nativas e africanas, muitas das quais conservaram uma existência simples de colhedores e caçadores até a era moderna, tornamos a encontrar os mitos do Paraíso com temas semelhantes: uma unidade interior com a Natureza, uma abundância anterior de alimentos, um modo simples e supremamente satisfatório de vida. Eliade comenta que: Os selvagens consideravam-se. nem mais nem menos do que se tivessem sido cristãos ocidentais, como seres num estado "decaído", em contraste com a situação fabulosamente feliz do passado. A sua condição atual não era a original: fora produzida por uma catástrofe ocorrida in illo tempore [naqueles tempos]. Antes do desastre, o homem levava uma vida que não diferia da de Adão antes de pecar. Na América do Norte, por exemplo, um mito cheyenne fala numa idade paradisíaca, quando os seres humanos andavam nus e inocentes, no meio de campos fartos. Depois dessa idade veio um tempo de dilúvio, guerra e fome, que se seguiu à dádiva do conhecimento. As tradições da costa ocidental se compõem, em grande parte, de narrativas do Primeiro Povo, varonil na forma e no proceder, mas que existiu antes da criação da espécie humana tal qual é atualmente constituída. A ordem atual começou com o encerramento catastrófico da idade do Primeiro Povo. Segundo os hopis, as pessoas, os pássaros e os animais da Primeira Idade, "todos sugavam o peito da Mãe Terra, que lhes dava o seu leite de relva, sementes, frutos e grãos, e todos se sentiam como se fossem um só, pessoas e animais". Histórias similares de uma comunidade do Primeiro Povo aparecem de uma ponta à outra da América Central e do Sul. "Num passado muito distante, tão distante que nem os avós dos nossos avós tinham nascido", dizem os caraíbas do Suriname: O mundo era muito diferente do que é hoje: as árvores estavam sempre dando frutos; os animais viviam em perfeita harmonia, e o

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pequeno aguti brincava, sem medo, com as barbas do jaguar; as serpentes, não tinham veneno; os rios fluíam mansamente, sem seca nem inundações; e até as águas das cascactas brilhavam delicadamente ao caírem das rochas altas. No Orinoco e na Guiana os nativos diziam que: No princípio deste mundo as aves e as feras foram criadas por Macunaíma - o grande espírito que nenhum homem vira. Naquele tempo, eles eram todos dotados do dom da fala. Sigu, filho de Macunaíma, foi encarregado de governá-Ios. Todos viviam juntos em harmonia e submetiam-se ao seu gracioso domínio. Os índios sul-americanos do Gran Chaco e da Amazônia dizem que, nos primeiros tempos, havia um lugar onde o trabalho era desconhecido; sem ser cultivados, os campos produziam comida abundante. Quando o povo ali envelhecia, não morria, mas, em vez disso, remoçava. Mas hoje, dizem, as pessoas já não se lembram do caminho para esse "Lugar Feliz". Os nativos australianos também têm uma tradição do Paraíso, que preservam em suas lembranças do "Tempo do Sonho", o qual, acreditam, ocorreu num passado indeterminado e distante. O Tempo de Sonho não é apenas a era dos antepassados primordiais do Criador; é também uma dimensão transcendente e mágica de existência acessível no presente através de estados alterados de consciência. Eliade escreveu: Os australianos entendem que os seus antepassados míticos viveram durante uma idade de ouro, num Paraíso primitivo, em que a caça abundava e as noções do bem e do mal eram praticamente desconhecidas. É esse mundo paradisíaco que os australianos tentam descrever, ao vivo, durante certos festivais, quando as leis e proibições são suspensas.

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Os aborígines acreditam implicitamente, e sem fazer perguntas, na superioridade dos seus antepassados do Tempo de Sonho, possuidores de muitos poderes milagrosos, que eles mesmos tinham perdido. As tribos da África central e meridional preservaram mitos de um tempo original, em que o Deus celestial e os seres humanos eram amigos, antes da separação entre o Céu e a Terra. Uma idade assim tipificada num adágio da tribo ngombe do Zaire: "No princípio, não havia homens na terra. As pessoas viviam no céu com Akongo e eram felizes." O etnólogo Paul Schebesta registrou a seguinte tradição dos pigmeus bambutis da África central: Depois de Deus haver criado o mundo e os homens, habitou entre eles. Chamou-Ihes seus filhos. Eles lhe deram o nome de pai. ... Ele se mostrou um bom pai para os homens, pois os colocou de tal jeito neste mundo que eles podiam viver sem muito esforço e eram, acima de tudo, livres de cuidados e medos. Nem os elementos nem os animais eram inimigos do homem e as substâncias dos alimentos cresciam, prontas, para a sua mão. Em suma, o mundo foi um paraíso enquanto Deus habitou entre os homens. Embora não fosse visível para eles, estava no meio deles e falava com eles. Sumariando os mitos africanos a respeito da Primeira Idade, escreveu o folclorista Herman Baumann: No entender dos nativos, tudo o que aconteceu na idade primeva era diferente de hoje: as pessoas viviam para sempre e nunca morriam; compreendiam a linguagem dos animais e viviam em paz com eles; não conheciam o trabalho e tinham comida em abundância, cuja colheita, feita sem esforço, lhes assegurava uma vida sem cuidados; não havia sexualidade e não havia reprodução - em resumo, eles nada conheciam de todos esses fatores e atitudes fundamentais, que hoje movem as pessoas.

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Só quando as pessoas se colocaram contra as outras criaturas Deus foi afastado e destruiu-se a harmonia original da Natureza. Baumann observa que, enquanto a tradição africana do Paraíso é notavelmente semelhante à dos hebreus, não existe a possibilidade de que ela tenha sido simplesmente tomada de empréstimo aos missionários. E o antropólogo Wilhelm Koppers concorda: "Estaremos provavelmente mais próximos da verdade se presumirmos que a versão da Bíblia, assim como as demais, deriva de uma fonte comum, mais antiga". A nossa busca nos levou da Mesopotâmia ao Irã, ao Egito, à Índia, à China, à Austrália, às Américas do Norte e do Sul e à África. Em toda a parte, encontramos essencialmente o mesmo mito - a história de uma era primordial, quando a humanidade e a Natureza gozavam de um estado de paz, felicidade e fartura. Quanto à nossa busca de um ponto geográfico de origem do mito, precisamos concluir que, se uma fonte cultural única existiu, a difusão cultural a partir dessa fonte deve ter ocorrido há tanto tempo que o processo de empréstimo é agora impossível de acompanhar. Não se podem interpretar tão facilmente os mitos como se eles se tivessem originado independentemente em muitas localizações. Em nosso estudo geográfico dos mitos do Paraíso, só levamos em consideração os contornos mais amplos da história; ainda quase nem tocamos nas imagens específicas, reiteradas em todas as inúmeras versões. A esses pormenores característicos, que examinaremos em seguida, deve o mito, em grande parte, o seu apelo profundo e universal.

CAPÍTULO 4 Imagens do Paraíso: Temas Comuns

A Natureza da Fantasia Visionária ou Imaginação, é muito pouco

conhecida, e a natureza eterna e a permanência de suas imagens sempre existentes é considerada menos permanente do que as coisas

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da Natureza Vegetativa e Generativa; entretanto, o Carvalho morre do mesmo jeito que a Alface, mas a sua Imagem e Individualidade

eternas nunca morrem, mas voltam à semente; do mesmo modo, a Imagem Contemplativa regressa à semente do Pensamento

Contemplativo. William Blake

O mito é a história da alma. William Irwin Thompson

Em muitas ilhas do Pacífico, encontramos mitos que correm paralelos à história do Éden do Gênesis com miudezas surpreendentes. Embora o contato com missionários tenha, indubitavelmente, tingido o folclore local, muita coisa da similaridade nas tradições é anterior ao convívio com os primeiros missionários, como sugere a seguinte passagem de Sir James Frazer do seu Folklore in the Old Testament [Folclore no Velho Testamento]: Conforme tradição amplamente aceita no Taiti, o primeiro casal humano foi feito por Taaroa, o deus principal. Dizem eles que, depois de haver formado o mundo, Taaroa, criou o homem da terra vermelha, que era também o alimento da humanidade, até ser produzida a fruta-pão. Mais tarde, dizem alguns, um belo dia, Taaroa chamou o homem pelo nome, e, quando este chegou, adormeceu-o. Enquanto ele dormia, o Criador tirou-lhe um dos ossos... e dele fez uma mulher, que deu ao homem por esposa, e o casal foi o progenitor do gênero humano. Observa Frazer que o missionário que registrou o mito presumiu tratar-se de um "mero recitativo do relato mosaico da criação, que eles teriam ouvido de algum europeu". Os taitianos, porém, insistiam em algo diferente. E Frazer comenta que a mesma tradição, que data do

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tempo das primeiras missões à ilha, tinha sido registrada não somente no Taiti, mas também em outras partes da Polinésia. Destarte, é mais que uma simples idéia geral de uma idade original de felicidade que aparece, cultura após cultura, em toda a parte do mundo. Temas específicos e indisfarçáveis caracterizam o mito do Paraíso todas as vezes em que o encontramos. Como escreveu, de uma feita, Wilheim Koppers, "por numerosas que sejam as variações nas minudências da história, existem elementos fundamentais que ocorrem sempre". Neste capítulo estudaremos os traços característicos do mito do Paraíso - a paisagem dos rios mágicos, das árvores, e das montanhas; a colocação tradicional da idade paradisíaca no princípio de uma série de idades do mundo, as capacidades milagrosas, o caráter prístino e a imortalidade do Primeiro Povo; a presença na Terra do Deus ou Deusa; e também a presença de uma ponte maravilhosa ligando o Céu e a Terra. Refletindo nessas imagens, entramos num mundo mergulhado em nostalgia e anseio. Aqui - em imagens verbais que parecem reaparecer inevitavelmente história após história, de pólo a pólo e de continente a continente - está a descrição universal, primordial do princípio feliz e inocente da humanidade.

A Paisagem Mágica Ao ingressar no mundo mítico do Paraíso, o que primeiro nos salta aos olhos é a sua paisagem única e notável: narrativa após narrativa encontramos uma descrição de quatro rios sagrados, juntamente com uma árvore mágica ej ou uma montanha cósmica. Os quatro rios sagrados - os quais, como vimos, aparecem destacadamente na história bíblica do Jardim do Éden aparecem também na história dos navajos da Idade dos Primórdios, quando o Primeiro Homem e a Primeira Mulher viviam numa terra paradisíaca destruída por uma catástrofe.

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"No seu centro", reza o mito, "havia uma fonte, da qual fluíam quatro rios, cada qual para um dos pontos cardeais.” Kwen-Iun, a montanha paradisíaca dos chineses, possuía, igualmente, uma fonte central da qual fluíam, "em direções opostas, os quatro grandes rios do mundo". A Edda escandinava refere-se a quatro rios que correm da fonte Hvergelmir, na terra dos deuses; e os calmuques siberianos lembram-se de quatro rios que emanam do Mar da Vida central primordial e demandam os quatro pontos da bússola. A tradição hindu também repete a imagem: de acordo com a Vishnu Purana, o Paraíso de Brahma é o sítio do qual correm quatro rios mágicos nas quatro direções. A idéia de uma árvore milagrosa, capaz de conferir imortalidade, é outro tema que encontramos repetido nas histórias do Paraíso de quase todas as culturas. O Avesta dos antigos iranianos conta-nos que Ahura Mazda, o Deus da Luz, plantou a árvore celestial haoma no mítico monte Haraiti, declarando: "Quem comer dela torna-se-á imortal." Na narrativa do Éden no Gênesis, há duas árvores, a Árvore da Vida e a Árvore da Ciência do Bem e do Mal. Os babilônios falavam numa Árvore da Vida e numa Árvore da Verdade, ambas localizadas na entrada oriental do Céu. No Gênesis, a Árvore da Ciência do Bem e do Mal fica no centro do Jardim; outras tradições fazem menção de uma "árvore do mundo", que é o axis mundi, ou pólo do mundo. Os povos altaicos da Ásia central referem-se a um abeto gigantesco, que tem as raízes enterradas no umbigo da Terra, e cujos ramos se erguem até o Céu. Os escandinavos chamavam à árvore cósmica Yggdrasil - o Pilar do Céu. E na Índia e na China, bem como entre inúmeras tribos norte-americanas, ouvimos falar num eixo cósmico, variamente descrito como árvore, poste ou pilar.

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A árvore cósmica dos escandlnavos, Yggdrasll, liga os três planos de

existência - Asgard, Midgard e Utgard Inúmeros povos falam também numa montanha cósmica no centro do Paraíso. Em algumas tradições - a egípcia, a iraniana e a esquimó, por exemplo - a montanha substitui a árvore central. Em outras, como a chinesa, a hindu e a siberiana, a montanha é o sítio no qual se diz que cresce a árvore. Os textos sumerianos parecem ligar o Paraíso perdido a uma montanha cósmica - um texto cita "a montanha de Dilmun, o lugar onde nasce o sol". As lendas da Índia localizam a origem da humanidade no monte Mero, o lar dos deuses e o lugar em que o Céu e a terra se encontram. Como ficou dito antes, os antigos chineses chamavam à montanha cósmica Kwen-lun, descrevendo-a como "uma estupenda montanha que sustenta o Céu" em cujo cimo

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jaz o lar celeste. Os finlandeses dizem que o Primeiro Homem surgiu, irradiando luz, sobre uma montanha cósmica, sítio do Paraíso original, fonte dos quatro rios que sustentam o mundo e local da primavera perpétua. As pirâmides do Egito, da Babilônia e do México foram interpretadas por Mircea Eliade como representações da montanha cósmica, cuja imagem se reflete também no monte Olimpo dos gregos, lar dos deuses.

Árvore da Vida e do Conhecimento, bronze, Índia. No tronco central, a

roda do lótus e do Sol é encimada por uma serpente de cinco cabeças. As figuras com cabeça de macaco agarram-se ao tronco,

flanqueado na base, por dois touros. Período Vigayanagar, 1336-1546

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A Árvore da Vida: desenho de um traje de xamã, de Goldl, no rio

Amur, Sibérla, final do século XIX

As Idades do Mundo

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Se a paisagem mágica fixa o Paraíso no espaço, sua posição no tempo é definida por sua colocação no início de uma série de idades do mundo. Já observamos as concepções gregas e hindus das idades ou yugas do mundo, respectivamente; existem também estreitos paralelos entre outras culturas. Os iranianos, por exemplo, conheciam quatro idades cósmicas, que, num livro masdeano perdido, o Sudkar-nask, são mencionadas como as idades de ouro, prata, aço e "misturada com ferro". Na concepção iraniana, como nas concepções grega e hindu, cada idade é um passo na deterioração do mundo, processo esse que está levando para uma purificação apocalíptica final. Os maias contavam suas idades do mundo como Sóis consecutivos - Sol da Água, Sol do Terremoto, Sol do Furacão e Sol do Fogo - consoante a natureza da catástrofe que encerrava a época. Os hopis também falavam de quatro mundos - Tokpela, Tokpa, Kuskurza e Túwaquchi - o primeiro dos quais é descrito em termos paradisíacos. Segundo sua criação do mundo Tokpela: As pessoas seguiam suas direções, eram felizes e começaram a multiplicar-se. Com a prisca sabedoria que lhes fora concedida, viam na terra uma entidade viva como elas mesmas. Ela era sua mãe; elas eram feitas da sua carne. ... Em sua sabedoria, elas também conheciam seu pai em dois aspectos. Ele era o Sol, o deus solar do seu universo. ... Entretanto, o seu era apenas o rosto através do qual olhava Taiowa, seu criador. ... Essas entidades universais eram seus verdadeiros pais, sendo os pais humanos meramente os instrumentos através dos quais se Ihes manifestava o poder. ... As primeiras pessoas, portanto, compreendiam o mistério da sua paternidade. Em sua sabedoria prístina, também compreendiam a própria estrutura e funções - a natureza do próprio homem. ... As primeiras pessoas não conheciam a doença. Só depois que o mal entrou no mundo elas adoeceram do corpo ou da cabeça.

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A Árvore do Universo. Da raspagem de um relevo na Câmara das

Oferendas, por Won Yong, China, 168 d.C.

Finalmente, algumas pessoas esqueceram ou deixaram de lado as leis do Grande Espírito, e o mundo Tokpela foi destruído. O mesmo destino, tiveram também, o segundo e o terceiro mundos. No sistema de idades dos lakotas (sioux), o mundo é protegido por um grande búfalo metafórico, que se posta na porta ocidental do Universo e retém as águas que periodicamente inundam a Terra. Todo ano o búfalo perde um pêlo de uma das pernas; em cada idade ele perde uma perna.

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Dois caprídeos alimentam-se da Árvore da Vida. Friso de Gordium, Frigia, século VI a.C.

Quando o búfalo perde todas as pernas o mundo é inundado e renovado. A paisagem do Paraíso e as idades do mundo proporcio-nam um cenário, no espaço e no tempo, para o desenrolar de uma história. E exatamente porque o cenário da história é um lugar e um tempo de paz e beleza definitivas, os seus heróis e heroínas - os antepassados míticos, os cidadãos da Idade de Ouro - são seres superiores e sábios.

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Relevo assírico: dois personagens reais adoram a árvore sagrada. Acima da árvore vê-se uma representação do deus alado do céu

A Idade dos Milagres e das Maravilhas

Virtualmente de acordo com todos os relatos, os seres humanos na idade paradisíaca possuíam qualidades e capacidades que só podem ser qualificadas de milagrosas. Sábios, oniscientes, capazes de comunicar-se facilmente não só uns com os outros, mas também com todas as outras coisas vivas, voavam pelo ar e brilhavam com uma luz visível.

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Em contraste com a visão contemporânea, que vê os primeiros humanos como obtusos e abrutalhados, os mitos os afirmam sábios. No folclore judaico, descreve-se Adão como tão sábio e tão belo de se ver que as criaturas da Terra o tomavam, por engano, pelo Criador, e, juntamente com os anjos do Céu, prostravam-se e cantavam: "Santo, santo, santo". Diz-se também que Deus revelou todo o futuro a Adão, bem como a geografia da Terra inteira. Nesses sentidos, Adão se parecia com Adapa, o Primeiro Homem babilônio, "aparelhado com vasta inteligência. ... O seu plano de sabedoria era o plano do céu". Os antigos maias descreviam de maneira semelhante as quatro Primeiras Pessoas como sábias e oniscientes. De acordo com o Popul Vuh, o livro maia da ciência e dos costumes, as pessoas da primeira idade eram tão perceptivas que, quando "erguiam os olhos ... o seu olhar abarcava tudo; sabiam todas as coisas; nada no céu nem na terra se escondia delas". Esses seres criados davam graças, dizendo: "Verdadeiramente, tu nos deste todos os movimentos e todos os talentos. Recebemos a existência, recebemos uma boca, um rosto; falamos, compreendemos, pensamos, caminhamos; percebemos e sabemos igualmente bem o que está longe e o que está perto; vemos todas as coisas, grandes e pequenas, no céu e sobre a terra. Graças te sejam dadas, a ti que nos criaste, ó Fazedor, ó Formador!" Mas os Fazedores não se agradavam de ouvir essas palavras. Na lenda maia, os Fazedores tinham medo de que as milagrosas Primeiras Pessoas fossem "como deuses"; por conseguinte, o Coração do Céu soprou uma nuvem sobre os olhos dos quatro homens originais, obscurecendo-lhes a visão. Dizem muitas tradições que os primeiros seres humanos falavam uma língua só. No Gênesis, como nos mitos dos chins e dos twyans da Indochina, todas as pessoas compreendiam as falas umas das outras, até que desmoronou uma torre ou escada construída na tentativa de alcançar o Céu. Os maias dizem também que as Primeiras Pessoas "tinham uma única linguagem". Algumas tradições vão mais além,

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dando a entender que, no Paraíso, a humanidade era telepática; segundo os hopis, por exemplo, as Primeiras Pessoas "sentiamse como se fossem uma só e compreendiam-se uma às outras, sem falar". Essa linguagem única parece ter-se estendido também ao reino animal. Quer se diga que os animais podiam falar como os humanos, quer se diga que os humanos estendiam a linguagem dos animais, o resultado, em cada caso, era um estado de confiança e amizade entre o homem e a fera. Afirmam as lendas judaicas que "em todos os sentidos, o mundo animal tinha uma relação com Adão diferente da relação que tinha com os seus descendentes. Não somente conhecia a linguagem do homem, mas também respeitava a imagem de Deus, e tinha medo do primeiro casal humano, e tudo isso mudou para o seu contrário depois da queda do homem". O contador de histórias grego Esopo escreveu melancolicamente que "durante o tempo da raça de ouro... os animais tinham fala articulada e conheciam o uso das palavras. E celebravam reuniões no meio das florestas; e as pedras falavam, e as agulhas dos pinheiros... e o pardal dirigia palavras sábias ao lavrador". A capacidade dos seres humanos e animais de se compreenderem uns aos outros resultou numa condição em que, no dizer do filósofo grego do século V a.C., Empédocles, "Todos eram delicados e obedientes aos homens, assim animais como aves, e ardiam de agradável afeição uns em relação aos outros.” No folclore africano, como nos mitos dos gregos antigos, a harmonia da humanidade com os animais reflete-se na dieta vegetariana do Primeiro Povo. Que os nossos primeiros antepassados evitavam a mortandade de animais para comer também está implícito na Bíblia: Deus diz a Adão e Eva: "Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento" (Gênesis 1:29). Só depois do Dilúvio é que Deus diz a Noé: "Tudo o que se move, e vive, servos-á para alimento; como vos dei a erva verde, tudo vos dou agora." Mas porque aos seres humanos

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é agora permitido matar e comer os animais, "Pavor e medo de vós virão sobre todos os animais da terra, e sobre todas as aves dos céus; tudo o que se move sobre a terra, e todos os peixes do mar." (Gênesis 9:2-3.) Inúmeras tradições dizem que o Primeiro Povo tinha a capacidade de voar, ou tinha acesso ao Céu por meio de uma corda, árvores, montanha, vinha ou escada. Os navajos, por exemplo, chamavam ao primeiro povo o "Povo do Espírito do Ar": Elas são pessoas dessemelhantes das pessoas de cinco dedos da superfície da terra, que vêm ao mundo hoje, vivem sobre a terra por algum tempo, morrem em idade avançada, e deixam o mundo. Elas são pessoas que viajam pelo ar e voam, célebres, como o vento.

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Pintura navajo com areias coloridas: a Árvore da Vida, com "trilha do

pólen" ou “caminho da bênção" estendendo-se no centro. Do lado direito esquerdo, o ziguezague masculino do raio; do lado direito, a

curva feminina do arco-íris; em cima, o pássaro da felicidade, representando a liberdade do vôo

Identicamente, segundo a cosmogonia de Jorai dos povos indígenas indochineses, os seres humanos originais viviam com o seu Deus, Oi Adei, e gozavam de uma existência imortal, em que voavam como pássaros. A epopéia indiana Mahabharata observa que na Krita Yuga os seres humanos "subiam ao céu e voltavam à terra a seu bel-prazer". Em alguns mitos, a subida para o céu tornava-se possível

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graças ao fogo ou à fumaça, a um arco-íris, a um raio de sol, às nuvens, a um pássaro fabuloso ou a uma cadeia de flechas. Os coriaques da Ásia central falam da era mítica do Grande Corvo, quando todas as pessoas iam facilmente para o Céu; agora, somente os xamãs podem fazê-Io. Os antigos egípcios utilizavam um pássaro para simbolizar o espírito humano liberto da servidão do mundo material, e em todas as culturas e eras o vôo e as asas são simbólicos da liberdade da condição paradisíaca. Outra qualidade miraculosa dos primeiros seres humanos era a sua luminosidade. Consoante a lenda, a carne deles, menos densa do que a nossa, libertava uma luz visível. Os apócrifos Livros de Adão e Eva - dos quais sobrevivem algumas versões e cuja maioria data, aproximadamente, do ano 200 a.C. - dizem que um dos primeiros efeitos notados pelo casal original, depois da sua expulsão do Jardim, foi a mudança na substância dos seus corpos: "Quando Adão olhou para a sua carne, que estava alterada, chorou amargamente, ele e Eva, pelo que tinham feito.” Os povos siberianos também acreditavam que os seres humanos que viveram antes da Queda eram luminosos. Quando o Primeiro Povo comeu do fruto proibido, o mundo em torno dele escureceu. No crer dos iranianos antigos, o Primeiro Homem era branco e brilhante; só mais tarde foi vencido pelos poderes das trevas. Os calmuques da Ásia Central concordam em que, durante o tempo do Paraíso; o Primeiro Povo lançava luz. Naqueles dias, não havia Sol nem Lua; entretanto, estes eram desnecessários, visto que os seres humanos alumiavam os lugares em que se encontravam com sua radiância natural. Mas quando comeram do fruto proibido, a sua luz extinguiu-se de todo, a Natureza ficou escura, e Deus criou o Sol e a Lua para atenuar a escuridão. Dizem os tibetanos que, nos primeiros dias do mundo, os deuses o habitavam e cintilavam como estrelas. Depois, quando comeram uma substância que a terra exsudava, os seus poderes entraram a declinar. As suas vidas se tornaram mais breves e, pouco a pouco, eles deslizaram para o egoísmo, a cobiça e a violência, de modo que os seres, que originalmente haviam sido

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deuses, se tornaram humanos, sujeitos ao desejo, ao sofrimento e à morte.

A Santidade de Caráter De acordo, outrossim, com todas as narrativas, as capacidades milagrosas do Primeiro Povo promanavam de um estado santificado de consciência. Os antepassados míticos eram santos sem pretensões à santidade, inocentes sem ser tolos ou ingênuos. Conforme o Mahabharata: Os santos de antanho, compartindo da natureza de Brahma, não se viam frustrados nos resultados a que visavam; eram religiosos e falavam verdade. ... E morriam quando o desejavam, sofriam poucos aborrecimentos, estavam livres da doença, realizavam todos os seus objetivos, não suportavam a opressão. Senhores de si e livres da inveja, contemplavam os deuses e os poderosos profetas. Os gregos e romanos também davam ênfase à santidade dos primeiros seres humanos. Em seus Anais, o historiador romano Tácito, do primeiro século, escreveu que: Os seres humanos mais antigos viviam sem maus desejos, sem culpa nem crime, e, por conseguinte, sem penalidades nem compulsões. Tampouco havia necessidade de recompensas, visto que, pela inclinação da própria natureza, eles seguiam caminhos virtuosos. Uma vez que nada se desejasse contra a moral, nada era proibido através do medo. Diziam os antigos chineses que, na primeira idade, não havia necessidade de leis nem de códigos morais, pois estes se relacionam com o "Caminho do Homem", ao passo que o povo da Idade de Ouro seguia, ao invés disso, o "Caminho do Céu (T'ien)". Suas ações,

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espontâneas, não requeriam esforços, como as da própria Natureza. O sábio taoísta Chuang Tzu escreveu: O Homem Verdadeiro dos tempos antigos não se rebelava contra a necessidade, não se orgulhava da fartura e não planejava os seus negócios. Sendo assim, não podia cometer erros nem arrepender-se deles, encontrava-se com o sucesso, mas não fazia disso um espetáculo. Sendo assim, subia aos lugares altos e não sentia medo, entrava na água e não se molhava, entrava no fogo e não se queimava. Terminada a Idade de Ouro, as pessoas começaram a julgar-se auto-suficientes, isoladas do divino e separadas, ao mesmo tempo, do Caminho do Céu e uns dos outros. Os grandes sábios de antanho renunciaram à sua dignidade real, e deram aos seres humanos o dúbio privilégio de se governarem. Foi então que os poderes milagrosos inatos das pessoas começaram a atrofiar-se, e elas se puseram a viver com os seus sentidos animais e a procurar "muitas invenções".

A Comunhão com a Divindade: os Pais Divinos No começo, segundo os mitos de cada continente, toda a humanidade se achava permanentemente na presença divina e continuamente em harmonia com a vontade divina. A insistência dos africanos em que, a princípio, Deus vivia na Terra com o povo, e a lembrança do Tempo de Sonho dos australianos, quando os Heróis Criadores caminhavam na terra, repetem a imagem bíblica de Adão e Eva passeando nus e sem sentir vergonha no Jardim com Deus. A tradição universal afirma a existência de um grande Ser espiritual, que algumas culturas identificaram com a vida e a consciência da própria Terra - Maasauu dos hopis, Geb dos egípcios, Gaia dos gregos. Outras culturas viam a divindade como um deus do céu onipotente - Ahura Mazda dos zoroastrianos, Jeová dos hebreus e

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Zeus dos gregos. Outras ainda falavam do Princípio criativo universal - Tao dos chineses, Wakan dos lakotas, Manitu dos algonquinos. Essa entidade ou princípio é maior do que qualquer humano, assim como o homem é maior do que uma célula em seu próprio corpo. Desse Grande, no interior de cuja presença envolvente vivemos e nos movemos, derivamos nosso próprio ser. Muitos povos primitivos sustentavam que na Idade de Ouro esse Ser estava encarnado na pessoa de um Rei do Mundo (o grego Crono, o chinês Huang-ti, o egípcio Rá) ou numa Divina Antepassada (a babilônica Ishtar, a egípcia Ísis, a Grande Mãe hindu). Muitas vezes as divindades masculinas e femininas eram pintadas juntas, como um casal divino (Ísis e Osíris no Egito, Tammuz e Ishtar na Babilônia, e Xiva e Parvati na Índia). O casal vivia no jardim ou cidade celeste, no topo da montanha cósmica, e presidia, com amor e sabedoria exemplares, os negócios dos seres humanos.

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Maat, a deusa da verdade. Baixo-relevo do túmulo de Seti I. Décima

nona dinastia. Museu Arqueológico de Florença Nos primeiros tempos históricos, os chineses, os japoneses, os mesopotâmios, os egípcios, os maias e um sem-número de outros povos encaravam seus monarcas como descendentes diretos dos Pais do Mundo, que governavam no Paraíso original. Como documentou o antropólogo A. M. Hocart, os primeiros reis e rainhas foram, sem exceção, sacerdotes e sacerdotisas. Na China, via-se o imperador como o elo humano entre o Céu e a Terra; ele estabelecia a ordem celeste nos negócios humanos. Da mesma forma, os faraós

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egípcios que, em alguns casos, eram mulheres - foram considerados encarnações de Maat. Essa palavra, embora seja amiúde traduzida por "verdade", carregava um sentido para os egípcios que os ocidentais modernos poderiam considerar equivalente a "integridade manifesta". Maat - personificada, às vezes, como deusa - era o termo usado para descrever o caráter da Criação original, a qualidade da Idade de Ouro. Em muitas tradições, o intercâmbio criativo do Céu e da Terra era simbolicamente representado no hieros gamos, ou casamento divino. O esposo hindu, até hoje, pode dizer à esposa, citando o Upanichade: "Eu sou o Céu; tu és a Terra" (dyaur aham, priviti tvam). Por intermédio do casamento do Rei do Mundo com a Rainha do Céu, as relações entre o homem e a mulher, a Natureza e o Cosmo revitalizavam-se, à medida que a força essencial do amor se liberava através da consciência coletiva da humanidade e se entranhava na Terra. O casal divino era uma representação ativa e uma personalização do processo criativo, e o mundo inteiro compartilhava das correntes de vida expressas através da sua união.

A Imortalidade Poucas coisas na Natureza parecem mais axiomáticas do que a inevitabilidade da morte. É notável, portanto, que um dos temas mais sistematicamente encontrados nos mitos do Paraíso seja o da imortalidade original dos seres humanos. Dizem-nos os mitos que a morte, em certo sentido, não é nada natural, senão o resultado do pecado o da feitiçaria. Dizem que a morte, longe de ser uma parte necessária da ordem da Natureza, originou-se de um erro, ou de um crime dos antepassados na Primeira Idade. Não fora esse crime ou equívoco primordial, e todos seríamos imortais. Nos mitos e no folclore de quase todas as culturas encontramos exemplos dessa crença. A Idade de Yima dos iranianos, como vimos, era um tempo em que "os homens nunca olhavam para a morte", e

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"pai e filho caminhavam juntos, e cada qual parecia não ter mais de quinze anos". De idêntica maneira, diziam os egípcios que nem a morte nem a doença eram conhecidas durante o Tempo de Rá. Os nativos de Vanuatu (Novas Hébridas) acreditam que, no começo dos tempos, as pessoas não morriam, mas lançavam fora a pele, como as cobras e, assim, renovavam a juventude. Quase todas as tribos da África central e do sul dizem que as pessoas foram imortais até ofenderem a Deus e obrigarem-no a recolher-se ao mundo do céu. Em mitos nos quais a imortalidade não se indica explicitamente, está implicada alguma coisa que lhe é próxima. Para os gregos, a Idade de Ouro era um tempo em que não havia doença nem velhice; igualmente, de acordo com os hindus, a Krita Yuga era um tempo "sem doença; não havia diminuição com o passar dos anos. ... Naqueles tempos, os homens viviam quanto queriam viver, e não tinham medo do [deus da Morte]." Os calmuques da Ásia central diziam que, no princípio, os seres humanos não eram imortais, mas podiam viver, pelo menos, uma época do mundo de 80.000 anos; a pouco e pouco, foi-se-Ihes reduzindo a longevidade, de modo que, atualmente, a perspectiva de vida deles é de apenas 60 anos. A Bíblia e as listas dos antigos reis da Babilônia registram ambas a longevidade decrescente dos seres humanos depois da Queda. Se os povos antigos consideravam a morte desnatural, inclinavam-se a aceitar idéias similares a respeito do seu antípoda biológico, o nascimento. Isso talvez ocorresse em resposta a um problema prático: Se não havia morte durante a Primeira Idade, o que impediria a população de aumentar de maneira incontrolável? Mas, fosse qual fosse a razão - quer se tratasse de uma invenção baseada na necessidade lógica, quer se tratasse da lembrança de alguma condição que em outro tempo realmente prevalecera - os antigos ligavam, não raro, a origem da morte à introdução da reprodução e do sexo em sua forma presente. Entre as tribos africanas, por exemplo, existe a idéia de que a reprodução da espécie humana é exigida pela morte. Antes de aparecer a morte, os seres humanos se reproduziam de maneira

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diferente, se é que se reproduziam. De acordo com vários midrashim (comentários sobre o Antigo Testamento, compostos entre o quarto e o quinto séculos) judaicos, Adão, no começo, foi andrógino - homem do lado esquerdo, mulher do lado direito. Ao que depois, Deus o dividiu em duas metades. Os primitivos gnósticos cristãos não somente asseveraram que o Primeiro Homem era andrógino, mas ensinavam ao mesmo tempo que a reunião dos princípios masculino e feminino é a essência da realização mística. Platão também descreveu o antepassado primevo da humanidade como um ser hermafrodita, esférico: no Banquete, o mito do andrógino divino se funde imperceptivelmente com o do Ovo Cósmico.

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A expulsão do Paraíso, de Giovanni di Paolo (aproximadamente 1445)

Paraísos Celestes e Terrenos

Em inúmeras culturas, a descrição da Idade de Ouro original é posta exatamente em paralelo com a história do Outro Mundo, para onde as almas viajam após a morte. Usa-se freqüentemente a mesma palavra para referir-se a ambos - como é o caso em inglês, em que a palavra

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paradise (paraíso) tanto se refere ao Éden quanto ao Céu. Na morada dos espíritos encontramos um palácio, ou jardim, semeado de jóias e cristais. Podemos encontrar, segundo o mito védico e o iraniano, uma montanha sagrada, e árvores carregadas de frutas preciosas. No Paraíso celeste não há tempestades, e o povo ali não sente fome nem sede. Tampouco envelhece: todos parecem perpetuamente jovens. O Midrash Konen dos judeus diz-nos até que a Árvore da Vida cresce em Gan'Eden, o mundo além da morte. A existência e a natureza do Paraíso do outro mundo constitui um dos grandes temas do mito e do folclore do mundo. Os aborígines da Austrália central chamam o Outro Mundo de Dowie; não está em algum lugar distante do espaço, mas está em torno de nós, e podemos estabelecer contato com ele a qualquer momento, em condições apropriadas. Os polinésios conheciam o Outro Mundo como Pulotu, reino mágico no meio do qual crescia uma árvore imensa, cujas folhas satisfaziam a todas as necessidades. Depois da morte fisica, reza a tradição, um rio conduzia o espírito, flutuando, até PuIotu: Todos flutuavam juntos, os bens e os malfavorecidos, os moços e os velhos, os sadios e os doentes, os chefes e o vulgo; não deviam olhar nem para a direita, nem para a esquerda, nem tentar alcançar o outro lado, e tampouco deviam olhar para trás. Semivivos, flutuavam até atingir Pulotu, onde se banhavam nas águas de Vaiola, quando todos se tornavam vivazes, brilhantes e vigorosos; as enfermidades se desvaneciam, e até os idosos voltavam a ser jovens. Tudo acontecia em Pulotu de maneira muito parecida com o que acontecia no mundo da vida, exceto que, aqui, os seus corpos, singularmente voláteis, eram capazes de subir à noite, tornando-se centelhas luminosas, ou vapores, revisitando os lares anteriores, mas recolhendo-se de novo, mal aurorescia, ao mato ou a Pulotu. O Paraíso original na Terra era uma materialização do Paraíso que agora só existe além dos portais da morte. Analogamente,

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considerava-se o Elísio do Outro Mundo dos gregos a réplica espiritualizada da condição outrora prevalecente no mundo físico. Em seu relato sobre o fim da Idade de Ouro, Hesíodo nos conta que Deus, depois de haver destronado Crono, baniu-o para as Ilhas dos Abençoados (o Outro Mundo) a fim de reinar sobre os heróis. Os mitos africanos transmitem essencialmente a mesma mensagem: o Paraíso não acabou: antes foi transposto para um lugar ou dimensão só acessível post mortem.

A Ponte do Arco-íris Consoante a tradição universal, o Paraíso terrestre original e o ainda existente Paraíso do Outro Mundo estavam, no início, unidos ou, de qualquer maneira, em estreita proximidade e comunicação. Os meios de ligação são descritos de várias formas em culturas diferentes - do modo mais vigoroso, talvez, como um arco-íris. Nas tradições do Japão, da Austrália e da Mesopotâmia, via-se o arco-íris como o remanescente de uma ponte que outrora existiu entre o Céu e a Terra, acessível a todas as pessoas. As sete cores do arco-íris eram os sete céus da religião hindu, mesopotâmica e judaica. Os centro-asiáticos decoravam os tambores xamânicos com vários arco-íris, que simbolizavam a jornada do xamã ao Outro Mundo. De idêntica maneira, os sete níveis do zigurate (pirâmide com degraus) babilônico eram pintados com as sete cores do arco-íris, e o sacerdote, ao escalar-se os andares, subia simbolicamente ao mundo cósmico dos deuses. A ponte do mundo primordial é alhures lembrada como escada ou corda. De acordo com as tradições tibetanas pré-budistas, chamadas Bon, existia originalmente uma corda que atava a Terra ao Céu e era usada pelos deuses para descer e vir encontrar-se com os seres humanos. Dizia-se que o primeiro rei do Tibete descera do Céu por meio de uma corda, e que os primeiros reis tibetanos não morreram, mas tornaram a subir ao Céu. Depois da Queda e da vinda da morte, quebrou-se o vínculo entre o Céu e a Terra. Depois que a

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corda foi cortada, só os espíritos podiam subir ao Céu. Em muitas práticas mágicas tibetanas, especialmente as de Bon, as pessoas tentam, ainda hoje, elevar-se por meio de uma corda mágica e acreditam que, por ocasião da morte, os piedosos são puxados para o Céu por uma corda invisível. A "corda mágica", que aparece nos mitos de culturas inumeráveis, pode ser parente da "corda de prata" bíblica. Segundo o Eclesiastes 12:6, esse elo etéreo entre o corpo espiritual e o físico só se desata com a morte. Desde que os antepassados originais eram todos capazes de viajar entre o Céu e a Terra, à vontade, o primeiro sinal de autoridade espiritual para santos, profetas e xamãs, em toda a história, tem sido a sua capacidade de emular o Primeiro Povo visitando o Outro Mundo. As histórias da subida de Moisés ao monte Sinai para falar com Jeová, a transfiguração de Jesus numa "alta montanha" e a iluminação de Buda debaixo da árvore Bodhi exemplificam o tema, amplamente difundido, da visita do Ungido ao Céu. Povos antigos e primitivos preocupavam-se, de maneira vital, não apenas com a existência do Outro Mundo, mas também com a relação entre aquela dimensão e a nossa, com os meios de conexão entre os dois mundos, e com as implicações dessas relações e conexões para os processos do nascimento e da morte. Acreditavam eles, universalmente, que a perda da imortalidade ocorreu mercê de uma ruptura na comunicação entre o Céu e a Terra. Como resultado de tal separação, de ordinário só temos consciência hoje de um plano de existência, o mundo físico dos sentidos. Sobre a natureza do Outro Mundo, só nos chegaram relatos esporádicos, de segunda mão, de místicos e xamãs. Para que se possa recuperar o estado paradisíaco, será preciso que o Céu e a Terra voltem a unir-se.

Continentes Perdidos A imagem do Paraíso existente numa ilha ou continente perdido talvez não esteja tão difundida quanto os outros temas míticos que

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examinamos neste capítulo, mas, sem embargo disso, é tão comum - e tão intrigante - que assegura a nossa atenção. No Timeu e no Criton, Platão transmite o que ele descreve como uma tradição antiga relativa ao império perdido de uma ilha paradisíaca - a Atlântida. Platão cita Sócrates, "o mais sábio dos Sete Sábios", que diz, estribado na autoridade de sacerdotes egípcios, que os deslocamentos dos corpos celestes produzem catástrofes na Terra, a intervalos recorrentes, por meio de inundações ou do fogo. Subsiste, costumeiramente, um pequeno remanescente de seres humanos, que reaprendem, aos poucos, as artes da civilização. Na descrição da civilização de Platão, que precedeu a destruição mais recente, ouvimos os tons e a cadência característicos - embora talvez se trate apenas de um eco - do primitivo canto de Hesíodo sobre a raça de ouro original: Por muitas gerações, enquanto durou neles a natureza divina, eles foram obedientes às leis, e bem dispostos em relação aos deuses, que eram seus parentes; pois possuíam espíritos ilustres e grandes em todos os sentidos, que uniam a delicadeza à sabedoria nos vários acasos da vida. ... Desprezavam tudo, exceto a virtude, pouco estimando a sua atual condição de vida, e carregando sem dificuldade a carga de ouro e de outras propriedades que possuíam; nem se embriagavam com o luxo, nem as riquezas os privavam do domínio de si mesmos, impossibilitando, por esse modo, a sua queda. Pelo contrário, na sobriedade da mente, viam com clareza que todas as boas coisas são aumentadas pela boa vontade mútua combinada com a virtude, ao passo que o amor a esses bens e a luta por eles destroem não somente os próprios bens, mas também a virtude com eIes. Mas o povo da Atlântida degenerou. A tendência moral divina, que fazia parte do seu caráter, foi-se diluindo cada vez mais, e a natureza humana prevaleceu. Aos poucos, tornaram-se avaros e imperialistas da espécie mais ambiciosa. A riqueza e o luxo dos atlantes foram a sua ruína: os deuses mandaram um dilúvio cataclísmico, e, no espaço

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de um dia e uma noite, o reino ilhéu submergiu e perdeu-se debaixo das águas. Existem diversas tradições européias de uma ilha perdida a oeste - entre elas, a de Avalon, dos galeses, a Antilia portuguesa, e a Ilha de St. Brendan (comum a sagas de muitas línguas, apareceu em mapas até o século XVIII). Mas também encontramos a idéia de uma pátria paradisíaca, destruída por cataclismas, nos mitos de culturas geograficamente muito distantes da Europa e dos países mediterrâneos. Os maias e os hopis mantinham tradições bem preservadas de um lar paradisíaco original, numa ilha ou continente que afundara. Quando Hernán Cortés desembarcou no México, o rei asteca Montezuma informou-o de que os antepassados dos nativos tinham vindo de um sítio distante, chamado Aztlan (que quer dizer "cercado pelas águas"), onde havia uma alta montanha e um jardim habitado pelos deuses. O livro do profeta Chilam Balam (um dos poucos textos maias subsistentes) refere-se ao primeiro povo do Iucatão, conhecido pelo nome de Ah-Canule ("Povo da Serpente"), que chegara em barcos, vindos do leste. O Popul Vuh também lhes descreve a jornada: Então chegaram; prepararam-se para partir e deixaram o Oriente. ... Cada uma das tribos continuava a aparelhar-se para ver a estrela que era arauto do sol (Vênus). Traziam no coração o sinal da aurora quando vieram do Oriente, e, com a mesma esperança, partiram de lá, daquela grande distância, segundo dizem agora os seus cânticos. Os hopis chamavam ao seu lar original Muia, ilha do Pacífico que os antepassados tinham deixado depois de alguma catástrofe da Natureza. Os próprios ilhéus do Pacífico têm histórias de um lar numa ilha paradisíaca perdida. Ao passo que os habitantes de Samoa dão à sua terra natal o nome de Mu, a maioria dos povos polinésios se lembra de um lugar chamado Hava-Iki, que também se perdeu num cataclisma. Consoante os mitos da criação do Havaí (nome que deriva

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de Hava-Iki), Kane, o Criador, deu a Kumuhonua, o primeiro homem, um belo jardim para viver. O jardim, chamado Kalana-i-hauola, situava-se na terra de Kahikihonua-kele ("a terra que foi embora"). Kane modelou uma esposa para Kumuhonua, tirando-a do seu lado direito; deu-se-Ihe o nome de Ke-ola-Ku-honua, ou Lalo-hana. No jardim paradisíaco, eles plantaram uma árvore sagrada, cujas maçãs causavam a morte se comidas por estrangeiros. Em outra tradição, descrevem-se os deuses Kane e Kanaloa como se vivessem em corpos humanos, num Paraíso localizado numa das doze ilhas míticas que se supunha existissem ao largo do grupo havaiano. Essas ilhas são freqüentemente mencionadas em antigos cantos e histórias, que datam de antes da última migração Paao do Taiti. Hoje em dia, chamam-se "ilhas perdidas" ou "ilhas escondidas pelos deuses". São consideradas sagradas e não se deve apontar para elas. Em outra história antiga, chamava-se à terra escondida de Kane, Paliuli. Mais uma vez, é o Paraíso original, onde foram afeiçoados os dois primeiros seres humanos, e onde viveram no começo. De acordo com os nativos, Paliuli está bem no fundo dos mares. O Paraíso perdeu-se debaixo das ondas. Neste capítulo notamos os traços característicos freqüentemente atribuídos ao Paraíso original, ou Idade de Ouro. Cumpre-nos enfatizar que nem todo mito contém todos esses elementos. Entretanto, existe um tema – até agora apenas tocado - que se pode, com segurança, denominar universal: em nenhuma tradição a Idade de Ouro dura para sempre. No dizer de todos os povos, o Paraíso conheceu um fim trágico. E é essa calamidade, cujas implicações atormentaram a raça humana em todo o correr da história, que examinaremos a seguir.

CAPÍTULO 5 A História Mais Triste

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Deus não fez a morte, e ele não se deleita na morte dos vivos; as forças geradoras do mundo são sadias e nelas não há veneno

destrutivo. A Sabedoria de SaIomão, 1:13, 14

Que é o mal? É o sofrimento, ou a causa do sofrimento? Em qualquer um dos casos, pode-se dizer que o mal é inerente à Natureza - à rapinagem, à decadência, à doença, à fome. Não obstante, em todas as culturas e idades as pessoas adotaram a crença de que no mundo humano existe outra espécie de mal, profundamente desnatural. Podemos procurar na Natureza a origem das tendências humanas para o desperdício, a guerra, a cobiça e os impulsos turbulentos para possuir, dominar e matar, mas nenhuma analogia clara se sugere. Os males da Natureza tendem a existir em equilíbrio, servindo a pilhagem e a fome para mitigar o excesso de população, ao passo que a versão do mal, aparentemente, não conhece limites. Desde os tempos mais recuados, os seres humanos acreditaram existir em si mesmos uma qualidade que os mantêm apartados dos animais - uma qualidade que se manifesta como um sentido de alienação e insuficiência, e como uma capacidade anormal para a destruição e a crueldade. Insistiam os povos antigos em que o mal, neste último sentido, nem sempre existiu, e atribuíram-lhe uma causa específica. Em seus mitos, o mal, que é peculiar à humanidade, se descreve como resultante da Queda - o trágico evento que acabou com a Idade de Ouro. Diziam eles que a natureza humana não é natural, porque foi deformada por algum erro ou malogro fundamental, que se perpetuou geração após geração. Toda religião começa com o reconhecimento de que a consciência humana foi separada da Fonte divina, de que se perdeu um sentido anterior de unidade com a base do Ser, e de que somente por um processo de purificação e transcendência podemos ser religados à dimensão sagrada. Seja a culpa judaico-cristã pelo pecado de Adão e

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Eva no Jardim, seja a nostalgia taoísta do tempo em que o Caminho do Céu ainda não fora corrompido pelos caminhos do homem, seja a tristeza dos africanos vendo os animais traídos pela humanidade, em toda a parte, na religião e no mito, há um reconhecimento de que nos afastamos de um estado original de sábia inocência e só poderemos voltar a ele através da resolução de alguma profunda discórdia interna. O que teria causado a Queda? Por que e como foi a Idade da Inocência levada ao fim? Essas perguntas deixaram perplexos teólogos e filósofos durante milênios, e não podemos esperar responder a elas de maneira definitiva em poucas páginas, embora devamos, pelo menos, formulá-Ias e examiná-Ias. Os próprios mitos não apresentam uma explanação direta, unificada; antes, ao descrever o que se diria uma mudança na polaridade fundamental da consciência humana, empregam uma variedade de imagens que parecem metáforas de algum acontecimento subjetivo, espiritual. Neste capítulo investigaremos a causa da Queda - descrita variadamente como desobediência, como a ingestão de um fruto proibido, e como amnésia espiritual - e os seus efeitos tanto sobre o modo de ser humano quanto sobre a própria estrutura do mundo.

A Mudança de Caráter Segundo quase todas as tradições, a Queda ocorreu em virtude de um aviltamento da qualidade do caráter manifestado pelos seres humanos. A natureza do processo de decadência é descrita de várias maneiras. Se quisermos penetrar o âmago da história, talvez seja melhor começar com as versões mais simples e mais facilmente compreendidas antes de passar às mais enigmáticas. O mito africano seguinte nos proporciona um ponto de partida adequado e pitoresco. De acordo com os barotses da Zâmbia, o Criador, Nyambi, vivia outrora na Terra com a esposa, Nasilele. Nyambi criara peixes, aves e animais, e o mundo estava pleno de vida. Mas uma criatura de

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Nyambi diferia de todas as outras: Kamonu, o primeiro homem. Kamonu era especial por ser capaz de imitar tudo o que Nyambi fazia. Se Nyambi estivesse fazendo alguma coisa de madeira, Kamonu fazia o mesmo. Se Nyambi estivesse criando alguma coisa de ferro, Kamonu trabalhava com ferro também. Esse estado de coisas continuou por algum tempo, servindo Kamonu de aprendiz de Nyambi, até que um dia Kamonu forjou uma lança e matou um antílope. Apesar do protesto de Nyambi, Kamonu continuou matando; percebendo que havia perdido o domínio da sua criatura, o Criador zangou-se. "Homem, você está agindo mal", disse Nyambi a Kamonu. "Estes são seus irmãos. Não os mate." Nyambi descobriu que já não podia confiar em Kamonu, e principiou a ficar com medo dele. Nyambi levou Kamonu para fora de Litoma, seu reino sagrado, mas Kamonu suplicou-lhe que o deixasse voltar. Nyambi deu ao homem um jardim para tratar, esperando, dessa maneira, mantê-Io feliz e fora de malfeitos. Mas quando o búfalo entrou, à noite, no jardim de Kamonu, este o atingiu com a lança, e quando outros animais chegaram perto, matou-os também. Volvido, porém, algum tempo, Kamonu descobriu que todas as coisas que amava o estavam deixando: o filho, o cão e um cântaro (sua única propriedade) tinham todos desaparecido. Dirigiu-se ao reino sagrado de Nyambi para relatar o que acontecera, e ali encontrou o filho, o cão e o cântaro que tinham fugido de Kamonu e regressado ao seu verdadeiro lar. Kamonu pediu a Nyambi que lhe desse poderes mágicos para poder conservar o que era seu implicando com isso que não tencionava mudar seu comportamento assassino, a verdadeira causa das suas perdas. Nyambi recusou. Em seguida, Nyambi reuniu os conselheiros para, juntos, discutirem o assunto. "Kamonu conhece bem demais o caminho para este lugar. Não teremos paz. Que faremos?" Nyambi tentou fugir de Kamonu mudando-se, primeiro, para uma ilha, e, depois, para o pico de uma alta montanha. Nesse intervalo, os descendentes de Kamonu se

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espalharam pela Terra, matando os animais e criando um barulho pavoroso. Nyambi decidiu afastar-se de todo em todo da Terra, e mandou pássaros à procura de um novo sítio para Litoma. Os pássaros não vingaram encontrar um lugar adequado. Mas a Aranha descobriu uma morada no céu para Nyambi e sua corte, e teceu um fio, que se estendia da Terra ao novo lar celeste. Depois que Nyambi e toda a sua corte subiram pelo fio, Nyambi cegou a Aranha, para que ela nunca pudesse encontrar o caminho para Litoma outra vez. Nesse ínterim, Kamonu e seus descendentes resolveram construir uma torre para alcançar Litoma. Abateram muitas árvores a fim de aproveitar os troncos e construíram a sua estrutura cada vez mais alta. Mas esta, finalmente, ficou muito pesada no topo e desmoronou e Kamonu nunca mais achou o caminho da morada de Nyambi. Mas todas as manhãs, quando o Sol se levantava, Kamonu saudava-o, dizendo: "Aqui está Nyambi." À noite, ele e seus descendentes saudavam igualmente a Luz, chamando-Ihe Nasilele, esposa de Nyambi. A história de Nyambi e Kamonu, como quase todos os mitos africanos da Queda, fala do desaparecimento de Deus no céu por causa da depravação humana. Dizem os ngobes que, no princípio, o Criador vivia na Terra, entre os seres humanos, mas, em razão da inclinação destes últimos para a briga, deixou-os falando sozinhos. Ninguém tornou a vê-Io depois disso, de modo que as pessoas não sabem como ele é. Em Angola, Nzambi é "o nome de um Deus grande, invisível, que fez todas as coisas e controla todas as coisas. ... Diz a tradição que os homens o ofenderam, e ele retirou deles a sua afeição". De idêntica maneira, conforme os mitos dos bantos e yaos da África equatorial do Sul, Deus, há muito tempo, se afastou em virtude de crueldade dos humanos. Dizem os bantos que, depois de haverem sido criados o primeiro homem e a primeira mulher por Mulungu:

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Todos os animais ficaram olhando, para ver o que as pessoas fariam. Estas esfregaram duas varetas uma na outra, de um jeito especial, e fizeram fogo. O fogo propagou-se pelo mato e rugiu através da floresta, e os animais tiveram de correr para escapar às chamas. As pessoas agarraram um búfalo, mataram-no, assaram-no no fogo e comeram-no. Depois, no dia seguinte, fizeram a mesma coisa. Todos os dias, acendiam fogueiras, matavam algum animal e comiam-no. "Estão queimando tudo!" disse Mulungu. "Estão matando o meu povo!” Todas as feras correram para a floresta e ali ficaram, o mais longe que puderam da humanidade. ... "Vou-me embora!" disse Mulungu. Desse modo, segundo os africanos, a crueldade das pessoas, a sua mania de brigar e a sua insensibilidade para com a Natureza causaram a Queda. Os nativos americanos concordam. Os iuroques da costa da Califórnia do norte dizem que, quando a Terra era nova, habitavam-na os Imortais, seres do tempo do mito, que viviam de acordo com a lei cósmica. Quando se criaram as pessoas, os Imortais se retiraram: "Enquanto o mundo propriamente dito permanecia perfeito e belo, os seres humanos tiveram a capacidade de violar e romper essa beleza, e deitar por terra o equilíbrio da Criação, principalmente através da sua cupidez." Da mesma forma, os hopis dizem que, muito depois do tempo da criação, as pessoas começaram a afastar-se das instruções do Grande Espírito: [Elas] começaram a dividir-se e a apartar-se uma das outras - as de raças e línguas diferentes, as que se lembravam do plano da criação e as que não se lembravam dele. Surgiu entre elas um ser formoso. ... em forma de serpente com uma cabeçorra, que as conduziu para mais longe ainda umas das outras e da sua sabedoria prístina. Elas passaram a desconfiar de tudo e de todas e a acusarem-se injustamente, até que se tornaram bravas e belicosas e se puseram a lutar entre si.

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Os povos índicos descrevem a fatídica mudança no caráter humano, dando realce à perda da santidade do Primeiro Povo: Na Trela Yuga [a segunda idade] tiveram início os sacrifícios, e. ... a virtude diminuiu um quarto. O gênero humano buscou a verdade e celebrou cerimônias religiosas; os homens obtiveram o que desejavam dando e fazendo. Na Dwapara Yuga. ... a religião diminuiu a metade. ... A Mente reduziu-se, a Verdade declinou, e chegaram o desejo, a doença e as calamidades; por causa disso, os homens tiveram de sofrer penalidades. Foi uma Idade decadente, à conta do prevalecimento do pecado. . Na Kali [atual] Yuga. ... subsiste apenas um quarto de virtude. O mundo está aflito, os homens voltam-se para a maldade; sobrevem a moléstia; todas as criaturas degeneram; logram-se efeitos contrários celebrando ritos sagrados; a mudança passa por todas as coisas. O poeta grego Hesíodo, em sua enumeração das idades do mundo, descreveu a degeneração da humanidade em termos parecidos: Então, os que moravam no Olimpo fizeram uma segunda geração. ... Eles não conseguiam deixar de pecar, nem de se agravarem uns aos outros, nem se conformavam com servir aos imortais. ... Pois agora, na verdade, é uma raça de ferro, e os homens nunca descansam da labuta e da tristeza durante o dia, nem de perecer à noite. Mais tarde, os filósofos gregos e romanos discutiram minudentemente a perda da auto-suficiência e da paz de espírito sofrida pelos seres humanos após o fim da Idade de Ouro. Em seu elogio de Diógenes, Máximo Tído escreveu: Buscando, assim, o prazer, caíram na miséria. Quando campeavam riquezas, sempre consideravam o que já tinham como pobreza em comparação com o que lhes faltava, e suas aquisições nunca chegavam à altura das suas ambições. Temendo a pobreza, eram

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incapazes de contentar-se com a suficiência; temendo a morte, não cuidavam da vida; procurando evitar a doença, nunca se abstinham das coisas que a causavam. Cheios de suspeitas mútuas, maquinavam contra a maioria dos seus semelhantes. ... Odiavam a tirania e eles mesmos desejavam tiranizar; censuravam os atos vis, mas não se abstinham deles. Admiravam a boa fortuna, mas não a virtude; amiseravam-se da desgraça, mas não evitavam a desonestidade. Quando a sorte estava do seu lado, eram audazes, mas quando ela se voltava contra eles, desesperavam-se. Declaravam que os mortos são felizes, mas agarravam-se à vida; por outro lado, odiavam-na, mas tinham medo de morrer. Denunciavam as guerras e eram incapazes de viver em paz. Abjetos na escravidão, eram insolentes na liberdade. Sob a democracia mostravam-se turbulentos, sob a tirania, tímidos. Desejavam filhos, mas descuravam deles quando os tinham. Rezavam para os deuses, como para seres capazes de assisti-los, e os desprezavam, como incapazes de punir; ou ainda, temiam-nos como poderes vingadores e juravam em falso, como se os deuses não existissem. Em resumo, quase todas as tradições atribuem a perda do Paraíso ao aparecimento de alguma trágica aberração na atitude ou no comportamento dos seres humanos. Ao passo que, na Idade de Ouro, "falavam a verdade" e eram "senhoras de si", vivendo "sem maus desejos, sem culpa nem crime", agora sucumbiam à suspeita, ao medo, à cupidez, à desconfiança e à violência. Mas como se verificou a mudança de caráter? Se bem dessem a entender que estavam descrevendo um acontecimento histórico, as descrições da causa da Queda, dos antigos, eram quase sempre forjadas em metáforas e alegorias. Como já se observou, entre essas histórias, os temas que mais freqüentemente se encontram são o da desobediência, o da ingestão de um fruto proibido e o do esquecimento (amnésia espiritual).

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Árvore enlaçada por uma cobra. De um relevo tírio. Atenas, Museu

Nacional

A Desobediência A idéia de que o primeiro povo cometeu um crime de desobediência é reiterada em inúmeros mitos. Na história do Éden, no Gênesis, o Senhor adverte Adão e Eva para não comerem da árvore da Ciência do Bem e do Mal. Mas a serpente, "mais sutil do que qualquer outro animal do campo", tenta Eva, dizendo: "É certo que não morrereis, porque Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, se vos abrirão os olhos, e sereis como deuses.”

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Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos, e desejável para dar entendimento, tomou um fruto e comeu, e deu um também ao marido, e ele comeu. Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram cintas para si (Gênesis 3:6-7). Os antigos gregos tinham duas histórias da Queda. A primeira estava contida na tradição das idades do mundo; na segunda, a origem do mal era atribuída às ações de uma mulher mortal. Pandora (cujo nome vem de duas palavras gregas, que significam "tudo" e "dádiva") recebeu dádivas de todos os deuses, entre as quais se incluíam não só a beleza e a graça, como também a capacidade de persuasão e de impostura. No tempo dela, os seres humanos levavam vidas felizes, pois todas as pragas e problemas tinham sido enfiados dentro de um jarro pelos deuses previdentes. Mas quando Pandora chegou à Terra, esquadrinhou tudo, e, finalmente, acabou dando com o jarro. Embora a tivessem avisado de que não devia abri-Io, deixou que a curiosidade levasse a melhor, e, erguendo a tampa, deixou cair inadvertidamente, uma horda de pragas sobre a humanidade. No mito seguinte, das Ilhas Gilbert, do Pacífico sul, a desobediência relaciona-se com o sexo. Nakaa, o juiz primordial, governava até os grandes deuses, os espíritos da Árvore de Matang. Vivia debaixo de uma montanha na terra paradisíaca de Matang, onde plantou dois pândanos, um no norte para os homens, outro no sul, para as mulheres, e todas as pessoas viviam, cada qual debaixo da sua própria árvore, imortais e eternas. Um dia, Nakaa reuniu todos eles para dizer-Ihes que ia embarcar numa viagem. Ordenou-Ihes que se dispersassem de novo, voltando cada qual para a sua própria árvore, o que eles fizeram, mas a vista dos outros os perturbara, e, finalmente, os homens juntaram-se às mulheres debaixo da árvore, e por isso os seus cabelos começaram a agrisalhar-se. Quando Nakaa regressou e viu o sinal da desobediência deles, expulsou-os para sempre de Matang.

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Nakaa deixou o povo escolher uma das árvores para levá-Ia consigo. Eles escolheram nesciamente, de modo que a árvore com que partiram tornou-se para eles a árvore da morte, enquanto a árvore da vida ficava com Nakaa em Matang. Ele disse-Ihes que os seus fantasmas o encontrariam na junção das terras dos vivos e dos mortos e seriam julgados por ele. Nakaa arrancou as folhas da árvore da morte, embrulhou nelas toda a sorte de enfermidades, e arremessou-as contra o povo quando este fugia de Matang. O etnólogo Paul Schebesta relata a seguinte tradição da Queda mantida pelos pigmeus bambutis do Zaire, em que não se especifica a natureza da desobediência: O "paraíso" em que Deus primeiro colocou o homem era a floresta primeva. Ele colocou-a à disposição do homem, juntamente com tudo o que ela produzia. Deus, entretanto, tinha dado também um mandamento, de cujo cumprimento ou descumprimento dependia o destino ulterior do homem, e ameaçara aplicar-lhe a punição mais severa se o homem desobedecesse. A criação inteira formaria uma liga contra o súdito rebelde. Animais, plantas e elementos, que tinham sido, até então, amigos e servos do homem, tornar-se-iam seus inimigos. Trabalhos e miséria, doença e morte seguiriam na esteira dessa rebeldia. Neste, como em tantos outros exemplos, o castigo - a morte, a necessidade de trabalhar e a perda da presença divina parece desproporcionado ao crime. Por um ato cuja natureza é obscura, ou que aparentemente equivale à incursão de uma criança ao prato de doces, toda a humanidade é condenada ao sofrimento, geração após geração. Entretanto, como é típico das histórias de desobediência, aqui se considera o castigo merecido. No dizer de Schebesta: Os mitos dos pigmeus não contêm expressões que indiquem ressentimento contra Deus por ter decretado tal punição pela transgressão da sua lei. As conseqüências, portanto, devem ter sido havidas por merecidas, e o mandamento original há de ter sido uma questão de grande importância.

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Tanto o mandamento divino quanto a desobediência humana, por mais fatidicamente significativos que sejam, ainda são ambíguos. À medida, porém, que examinamos outras imagens comuns nos mitos da Queda, começamos a perceber a natureza do crime.

O Fruto Proibido Muitos mitos descrevem a desobediência original como do fruto de uma árvore sagrada. O exemplo mais conhecido desse tema é o relato hebraico, em que Adão e Eva desobedecem a Jeová ao partilharem do fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. Em outros lugares, todavia, vamos encontrar paralelos espantosamente próximos da história do Gênesis. Os massais da Tanzânia dizem que o primeiro homem desceu do Céu, ao mesmo tempo que sua esposa emergiu da Terra. Foi-Ihes vedado comerem de certa árvore, mas a mulher se viu tentada a fazê-lo por uma serpente. Como castigo, ela e o marido foram obrigados a deixar o Paraíso.

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Impressão do chamado Selo da Tentação (2500 a.C.). À esquerda, a deusa sumeriana Gala Bau, que tem atrás de si a serpente,

representa o poder da Grande Mãe. À direita da árvore sagrada está sentado o filho-amante Dumuzi, o sempre-morrente, sempre-

ressurreto deus da vegetação, filho do Abismo, Senhor da Árvore da Vida. Museu Britânico

Conforme alguns mitos, a ingestão do fruto terreno diminui imediatamente os poderes dos seres celestiais. Uma versão do Nepal, por exemplo, diz que a Terra foi outrora habitada por moradores do céu, os quais, a certa altura, desejaram comer os frutos da Terra. Logo que os provaram, perderam a capacidade de retornar ao mundo superior. História semelhante, em que o grão substitui o fruto, é contada pelos birmaneses, segundo os quais os primeiros nove habitantes do mundo desceram dos céus e não tinham pecado nem sexo. A maneira, porém, que se acostumaram com o novo lar, seus apetites cresceram. Quando se puseram a comer determinada espécie de arroz, tornaram-se grosseiros e pesados. Incapazes de regressar ao bem-aventurado lar celeste, desenvolveram o sexo e ficaram sujeitos ao trabalho e ao sofrimento. Dali por diante, tiveram de trabalhar para viver, e, de vez em quando, lançavam mão do crime. Que fruto era esse, cuja ingestão pôs fim ao Paraíso? É evidente que não estamos falando aqui em maçãs ou peras comuns. A imagem, sem dúvida, era metafórica - profundamente metafórica, aliás, considerando-se-lhe a centralidade em relação à história. Ao passo que, na maior parte das vezes, adiamos o estudo do sentido do mito do Paraíso, deixando-o para mais adiante neste livro, no caso presente as imagens míticas exigem uma decifração preliminar. Em quase todas as línguas, usa-se a palavra fruto metaforicamente, para aludir ao resultado de todo processo criativo. O fruto é o produto final do ciclo vegetativo de reprodução e crescimento do qual dependemos para a nossa sobrevivência, e é, pois, natural que as pessoas, em todas as culturas, se refiram ao resultado final do trabalho humano, ou a toda atividade construtiva, como seu fruto.

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Visto que todos os processos criativos - desde o crescimento de uma árvore ou de um embrião até a invenção de uma nova tecnologia -começam invisivelmente e terminam com uma forma física completada, a imagem do fruto é metaforicamente aplicável a todo produto acabado. Comê-lo é colocar alguma coisa dentro de si mesmo e permitir-lhe tornar-se parte do próprio corpo. Mas existem processos emocionais, mentais e espirituais análogos: falamos em devorar literatura e deliciar-nos com a visão do ser amado. O que quer que nos fascine incorporamos mental e emocionalmente a nós mesmos. O comer do fruto místico, por conseguinte, foi uma fascinação ou união com o resultado, ou produto final, da criação, que é a forma manifesta das coisas. Adão e Eva foram administradores do processo criativo, intimados a tratar do Jardim e guardá-Io. A história supõe que os seres humanos se interessavam mais pelo processo integral da criação do que apenas pelos seus produtos finais. O jardineiro sábio - metafórico ou literal - cuida de todas as fases dos ciclos criativos à mão. Mas quando se deixa fascinar meramente pelo fruto, negligenciando ou deformando outras partes do processo, o continuum se desequilibra. Como estamos descobrindo hoje em todo o mundo, o lavrador que só se interessa por aumentar a colheita, e não faz caso da saúde do solo, acabará esgotando a terra e tirando-Ihe a capacidade de fornecer alimentos nutrientes. Esse ensinamento está explicitamente expresso assim em alguns mitos do Paraíso, como nos ensinamentos religiosos centrais da maioria das culturas. Muitas tribos americanas nativas (os hopis e os iuroques, por exemplo) nos contam que o Primeiro Povo recebeu instruções sobre as maneiras de manter o equilíbrio das forças da Natureza. A Queda ocorreu quando os seus antepassados abandonaram as responsabilidades da administração. De um modo ou de outro, quase todas as escrituras do mundo advertem contra a "doce e suave tendência para o pecado", como lhe chama o Bhagavad Gita, o desejo obsessivo de um produto final na forma. "Não desejes! não

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peças!" ordena Krishna. "Encontra a recompensa plena por fazer o certo no certo! Sejam o teu motivo as ações justas, e não o fruto que delas provém.” No iraniano antigo, Adão significa "eu", e no antigo sânscrito, idioma relacionado com ele, aham significa "eu" ou "o eu". O misticismo indo-iraniano diz que o eu puro, imaculado - Adão - decaiu da perfeição em suas habitações espirituais por causa da atração da Terra, que em todas as tradições ocidentais se equipara à forma física. Os gnósticos cristãos primitivos acreditavam da mesma forma que a consciência humana pertence inerentemente ao Céu, e que o mal resulta do envolvimento emocional do Eu celeste com o produto final terreno do processo criativo. De acordo com os escritos gnósticos atribuídos a Hermes Trismegisto, o homem, emanação da mente de Deus - Nous - ficou tragicamente enredado na matéria. Os Poimandres de Hermes contam que Nous, Pai de tudo, da Vida e da Luz, criou o homem à sua imagem. O homem desejava também ser criador, e isso foi permitido pelo Nous. Foram-lhe dados plenos poderes sobre o mundo das coisas criadas e sobre os animais irracionais, e ele revelou à Natureza a forma de Deus. A Natureza sorriu-lhe, amorosa, e ele, vendo-se refletido na Natureza, amou-a e desejou morar com ela. O desejo transformou-se imediatamente em realidade, e o homem se viu preso no mundo da forma e destituído da razão. Tendo recebido o amado dentro em si mesma, a Natureza abraçou-o completamente, e eles se fundiram, inflamados de amor. E é por isso que o homem, dentre todos os animais da terra, é duplo, mortal através do corpo, imortal através do Homem essencial. Pois embora seja imortal e tenha poder sobre todas as coisas, sofre o destino da mortalidade, estando sujeito ao Heimarmene [Destino]; embora estivesse acima da Harmonia [isto é, da lei das relações recíprocas entre o Cosmo e os princípios psicológicos dos seres humanos], tornou-se um escravo dentro da Harmonia; se bem fosse andrógino, tendo saído do Pai andrógino, e, insone, do insone, é vencido pelo amor e pelo sono.

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A ingestão do fruto proibido e outras metáforas empregadas na descrição da Queda dão a entender que a degeneração espiritual dos seres humanos se deveu ao seu excessivo envolvimento com o produto final da criação, o mundo manifesto das coisas e das formas. Além disso, quando examinamos as metáforas mais de perto, começamos a ver como e por que se acreditou que a fascinação da forma eclipsou o sentido original da identidade divina e da consciência do ofício administrativo da humanidade, no processo total da criação.

A Ciência do Bem e do Mal Como vimos, a narrativa do Gênesis atribui a Queda a comer do fruto de uma árvore específica - árvore da Ciência do Bem e do Mal. Essa árvore "era agradável aos olhos e desejável para dar entendimento." O ato de comer-lhe o fruto fez que se abrissem os olhos de Adão e Eva, "e eles perceberam que estavam nus". Então disse o Senhor Deus: "Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal; assim, para que não estenda a mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente." O Senhor Deus, por isso, o lançou fora do Jardim do Éden, a fim de lavrar a terra de que fora tomado. E, expulso o homem, colocou querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada flamejante, que girava em todos os sentidos, para guardar o caminho da árvore da vida (Gênesis 3:6-24). Poucas passagens na literatura mundial provocaram mais especulação do que esta. Por que era proibida árvore da ciência do Bem e do Mal? Poderíamos até pensar que Deus desejasse que os seres humanos permanecessem ignorantes. Essa interpretação inspirou seitas gnósticas, assim como filósofos do porte de Kant e Schiller, a sugerir que a serpente, na realidade, fora a benfeitora da humanidade, a portadora do conhecimento. Mas que espécie de conhecimento é esse? Será ele, como insinuaram muitos teólogos, o

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conhecimento do sexo (que leva o casal original a reconhecer a sua nudez), ou o conhecimento discriminativo geral do certo e do errado? A história supõe a existência de dois gêneros de mal - um inerente à Natureza, encerrado na própria árvore da Ciência, e um criado pelo ato de desobediência expresso no comer da árvore. É o último que leva Adão e Eva a esconderem-se da presença do Senhor. De mais disso, quando o Senhor chama Adão e pergunta: "Onde estás?", eles procuram fugir à responsabilidade. Adão põe a culpa em Eva, e Eva põe a culpa na serpente. Não tendo ninguém em quem pôr a culpa, a serpente recebe a primeira maldição. O primeiro gênero de mal - o que cresceu como fruto na árvore - é anterior à escolha moral. É o mal a que Jó se refere quando diz: "O quê? Receberemos o bem da mão de Deus, e não receberemos o mal?" A teologia hindu reconhece a complementaridade do bem e do mal pré-morais reverenciando igualmente Brahma, o Criador e Xiva, o Destruidor: As tradições dos nativos americanos, chineses e japoneses, em seus vários modos, também concordam em que, na Natureza, assim o crescimento como a decadência, a completude e a incompletude, existem como parceiros essenciais no processo criativo. O segundo gênero de mal - o mal moral, que é único da humanidade - nasce do julgamento das qualidades e pares de opostos inerentes à Natureza e do apego emocional a categorias e distinções. O existir no mundo fisico, em si mesmo e por si mesmo, de vez em quando produz sofrimento, mas é um sofrimento contido no fluxo e refluxo dos ciclos e processos naturais. Um sofrimento contido inteiramente no momento presente. A mente humana produz outro tipo de sofrimento, que tem por base a expectativa e a memória, a cobiça e o medo. É o sofrimento da separação e da alienação, nascido do apego da mente às suas próprias categorias artificiais de discriminação e à projeção que faz dessas categorias no mundo. Este segundo mal é desnatural; sua origem foi a Queda. A compreensão da natureza do ato de comer da árvore proibida aparece na literatura exegética judaico-cristã por via do gnóstico Evangelho de Filipe, em que o autor busca a origem da morte da

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tentativa do casal original de ganhar conhecimento dividindo a experiência em falsas categorias, que consistem em pares de contrários mutuamente excludentes: "Luz e treva, vida e morte, direita e esquerda, são irmãos um do outro. São inseparáveis." Mas é no hinduísmo, no budismo e no taoísmo que o erro fundamental - e as conseqüências psicológicas - da falsa discriminação se explicam mais claramente. Para os taoístas, por exemplo, a Idade de Ouro da Grande Unidade foi o tempo anterior àquele em que os seres humanos tinham conhecimento dos pares de opostos. Chuang Tzu escreve: O conhecimento dos antigos era perfeito. De que maneira era perfeito? Eles ainda não tinham consciência de que havia coisas. Este é o conhecimento mais perfeito; nada pode ser-lhe acrescentado. Depois, alguns perceberam que havia coisas, mas não perceberam que havia distinções entre elas. Quando o certo e o errado se tornaram manifestos, o Tao, em resultado disso, decaiu. Visto ser a feitura de falsas distinções o que produz a ilusão, então, a iluminação e a libertação - a experiência do Paraíso - devem nascer do abandono de categorias artificiais do julgamento humano e do apego emocional às qualidades da forma. No coração dos ensinamentos do Buda estão as Quatro Verdades Nobres, que afirmam que todo o sofrimento humano provém do desejo e do medo, baseados no apego à forma e nas fantasias da discriminação humana. A doutrina budista descreve o nirvana - a condição paradisíaca de paz, sabedoria e absorção na unicidade de todo o ser - como a condição natural da consciência humana antes de surgir o apego e depois da sua cessação. Conquanto o budismo não reconheça a Queda como acontecimento histórico, pode-se dizer que passagens como as seguintes (da Sutra Lankavatara) expressam a análise budista da natureza humana "caída" e como ela pode ser purificada:

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A falsa-imaginação ensina que coisas como a luz e a sombra, o longo e o curto, o preto e o branco são diferentes e devem ser discriminadas; mas elas não são independentes umas das outras; são apenas aspectos diferentes da mesma coisa, são termos de relação, não de realidade. As condições de existência não têm um caráter mutuamente excludente; na essência, as coisas não são duas, mas uma. ... Quando se põem de lado as aparências e os nomes, e cessa toda discriminação, o que sobra é a natureza verdadeira e essencial das coisas, e, como nada pode ser afirmado no tocante à natureza da essência, ela é chamada a "Qualidade essencial" da Realidade. Essa "Qualidade essencia" universal, não-diferenciada, inescrutável, é a única Realidade, mas é variamente caracterizada como Verdade, Essência da Mente, Inteligência Transcendental, Nobre Sabedoria etc. Mas a cessação da mente discriminativa não poderá ocorrer enquanto não se verificar uma mudança abrupta na sede mais profunda da consciência. O hábito mental de olhar para fora, por meio da mente discriminativa, para um mundo externo objetivo, precisa ser largado de mão, estabelecendo-se em seu lugar um novo hábito de compreender a própria Verdade dentro da mente intuitiva pela identificação com a própria Verdade. O apego e a falsa discriminação produzem uma condição em que a nossa consciência da plenitude e da magia do momento presente é afogada pelas maquinações intranqüilas da mente. Então, como diz o Gita, "a memória - traída deixa fugir o propósito nobre, e solapa a mente, até que o propósito, a mente e o homem estejam desfeitos".

O Esquecimento Uma imagem alegórica final da Queda está contida na metáfora do esquecimento. Consoante as tradições gnósticas, hindus e budistas, é o ato de esquecermos nossa identidade e propósito verdadeiros, pelo

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afastamento do mundo físico, que produz a miséria da condição decaída. Segundo a filosofia platônica, Lethe ("esquecimento") apagou não somente a memória temporal, mas também as Idéias - ou seja, o conhecimento absoluto dos princípios universais. No processo do nascimento, a alma esquece as Idéias, seu próprio passado e identidade, e o passado coletivo da espécie humana. Esse esquecimento, no entender de Platão, é a causa primária da ilusão e do sofrimento humanos. O mito central dos gnósticos cristãos primitivos, tal como está preservado nos Atos de Tomé, gira também em torno do esquecer e do recordar. Um príncipe do Oriente chega ao Egito procurando "a pérola única, que está no meio do mar, perto da serpente que respira alto". Os egípcios escravizam o príncipe e dão-Ihe comida que o faz esquecer quem é. "Esqueci-me de que era filho de reis, e pus-me a serviço do rei deles; e esqueci a pérola, por cuja causa meus pais me haviam mandado, e, mercê do fardo das opressões, jazi num sono profundo." Mas os pais, inteirados do seu cativeiro e da sua amnésia, mandaram-lhe uma carta: De teu pai, o rei dos reis, e de tua mãe, a senhora do Oriente, e de teu irmão, nosso segundo [em autoridade], depois de ti, nosso fIlho. Lembra-te de que és fIlho de reis! Vê a escravidão - a quem serves! Lembra-te da pérola, por cuja causa foste mandado para o Egito! A carta, transformada em águia, voa para o príncipe. Pousando ao lado dele, fala e volta a transformar-se em carta. Ao ouvir-lhe a voz e o som do seu roçagar, assustei-me e saí do meu sono. Tomei-a e beijei-a, e principiei a Iê-Ia; e de acordo com o que estava traçado em meu coração tinham sido escritas as palavras da minha carta. Lembrei-me de que era filho de pais reais, e minha nobre linhagem afirmava a sua natureza. Lembrei-me da pérola, por cuja causa eu fora mandado para o Egito, e principiei a encantar a terrível serpente que respirava alto. Fi-Ia dormir e deixei-a imersa num sono

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profundo, pronunciando sobre ela o nome de meu pai; apossei-me da pérola, e virei-me para voltar à casa de meu pai. A história pode ser vista como uma alegoria do processo de encarnação. Antes do nascimento, o espírito humano vive nos reinos eternos da luz, mas ao nascer - a jornada para o Egito - cai num sono de esquecimento. A pérola é o propósito pelo qual o espírito encarna; a serpente é a metáfora das poderosas inclinações da mente. A carta é a gnose - o conhecimento espiritual que traz a vigília e a recordação. Os gnósticos descrevem amiúde o esquecimento ontológico como um estado de sono ou embriaguez, em que a alma veio a cair por seu envolvimento com a forma. "Ardendo com o desejo de experimentar o corpo", o espírito esqueceu sua verdadeira natureza. "Esqueceu sua habitação original, seu verdadeiro centro, seu ser eterno.” Se as imagens do esquecimento e do sono são metáforas poderosas da Queda, o recordar e o acordar servem igualmente como descrições apropriadas da meta de todas as práticas espirituais em todo cenário cultural; o objetivo da meditação e do ritual é sempre recordar, acordar. O despertar implica uma volta à consciência da origem celestial da alma, e o mensageiro que o traz oferece vida, salvação e redenção. Um texto maniqueu exorta: "Desperta, alma de esplendor, do sono da embriaguez em que caíste. ... segue-me ao lugar da terra exaltada onde moras desde o princípio." A injunção não se limita a lembrar ao injungido quem é divinamente, mas também as instruções com as quais encarnou. "Não dormites nem durmas, e não te esqueças daquilo de que te encarregou o teu Senhor.” Estar "desperto" significa ter consciência do Céu enquanto se vive na Terra. O hinduísmo e o budismo encaravam o Eu verdadeiro (purusha) como expressão da base divina do Ser, individualizado em forma humana. O pecado consiste em esquecermos o nosso verdadeiro Eu; todo sofrimento dimana disso. O ensinamento central dos upanichades, Tat twam asi (Isto és tu) corresponde à carta, no mito

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gnóstico acima citado, enviada pelo Rei dos reis (Brahman) ao príncipe (Atman) a fim de recordar-lhe a herança real.

Os Efeitos da Queda Sejam quais forem as causas da Queda, os seus efeitos são descritos similarmente em quase todas as tradições. Com a desobediência, o apego e o esquecimento vem a perda de contato com a Fonte sagrada; a morte e a necessidade de reprodução; e limitações de várias espécies, como a perda da luminosidade e a capacidade de voar e comunicar-se com os animais. Os seres humanos precisam agora trabalhar a fim de obter o de que necessitam para sobreviver, precisam inventar tecnologias para compensar a diminuição de suas várias capacidades naturais, e precisam errar pela vida sem consciência da sua natureza, do seu propósito e do seu passado coletivo verdadeiros. De todos os resultados da Queda, o mais severo foi a perda da presença divina. Paul Schebesta escreve que, para os primeiros antepassados dos pigmeus: O que causou. ... o maior sofrimento foi a partida de Deus. Deus desapareceu. Retirou-se e deixou de ser perceptível. ... Na opinião dos pigmeus que falavam dessas coisas, o afastamento de Deus, sem sombra de dúvida, foi a maior catástrofe que já vitimou a humanidade; as outras conseqüências do pecado não foram tão sentidas. Em todas as tradições, assinala Eliade, o anseio do Paraíso, primeiro que tudo, é o anseio da comunhão imediata com a Divindade: "A nostalgia das origens é uma nostalgia religiosa. O homem deseja recobrar a presença ativa dos deuses.” Já passamos os olhos por diversos mitos que atribuem a origem da morte às transgressões dos primeiros seres humanos. Ao passo que os seres humanos viviam outrora para sempre, eram capazes de voar

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e visitavam o Céu à vontade, tornaram-se agora criaturas ligadas à terra, e na expressão de Eliade, "limitadas pela temporalidade, pelo sofrimento e pela morte". Os Livros de Adão e Eva contam que a própria carne do casal original se modificou. Antes da Queda, Adão e Eva brilhavam com uma luz visível; agora, tinham corpos densos, semelhantes aos dos animais. E, com efeito, quando Adão olhou para a sua carne, que estava alterada, chorou amargamente, ele e Eva, pelo que ambos tinham feito. ... E Adão disse a Eva: "Olha para os teus olhos, e para os meus, que antes contemplavam anjos no céu, glorificando; e eles, também, sem cessar. Mas agora não vemos como víamos: nossos olhos tornaram-se de carne: não podem ver da maneira com que viam antes." E Adão disse também a Eva: "Que é hoje o nosso corpo, comparado com o que era antigamente, quando morávamos no jardim?” Como o Primeiro Povo da tradição maia - que podia ver "igualmente bem o que está longe e o que está perto" - Adão e Eva tinham perdido a "natureza brilhante" que lhes permitira estender o olhar para abranger, com ele, o Céu e a Terra: Disse, então, o Senhor a Adão: Quando me eras sujeito, tinhas uma natureza brilhante dentro em ti, e, por esse motivo, podias ver coisas muito longe. Mas após a tua transgressão, tua natureza brilhante foi retirada de ti; e já não te foi dado ver coisas ao longe, mas apenas de perto, ao alcance da mão; segundo a capacidade da carne, que é abrutalhada. De acordo com o texto, o ser humano é leve por sua própria natureza: "Pois eu te fiz da luz; e queria fazer saírem de ti filhos da luz, e parecidos contigo.” E quando ele estava nos céus, nos reinos da luz, nada conhecia da treva. Mas transgrediu, e eu o fiz cair do céu na terra; e essa treva veio sobre ele. E em ti, ó Adão, enquanto estavas em Meu jardim, e eras obediente a Mim, a luz brilhante também descansou. Mas quando

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tive notícia da tua transgressão, privei-te da luz brilhante. Entretanto, graças à Minha misericórdia, não te transformei em treva, mas fiz teu corpo de carne, sobre o qual estendi esta pele, a fim de que ele pudesse suportar o frio e o calor. Nos mitos dos gregos, dos nativos americanos e dos africanos, a crueldade dos seres humanos levou-os a perder o direito à amizade com os animais. Mas então, tendo perdido os poderes divinos, as pessoas vêem-se reduzidas a um estado materialmente equivalente ao dos animais, com os quais já não podem comunicar-se. Fazia-se mister desenvolver substitutos para as suas capacidades mágicas anteriores, e esses substitutos assumem a forma de invenções e instituições - rudimentos da civilização. Os filósofos estóicos e cínicos gregos e romanos descrevem a emergência da civilização como um processo de declínio moral. Conta-nos Ovídio, por exemplo, que, depois de haver a humanidade perdido a áurea condição original: Irrompeu ... toda a sorte de males, e a vergonha fugiu, e a verdade e a fé. Em lugar delas vieram enganos, imposturas, aleivosias, e a força, e o maldito amor da posse. Estenderam-se velas ao vento, pois o marinheiro ainda não as conhecia. ... E a terra, até então propriedade comum, como a luz do sol e as brisas, e agrimensor cuidadoso marcava agora com linhas de divisas longamente estendidas. Não somente foram exigidos do solo rico cereais e alimentos necessários, mas os homens furaram as entranhas da terra, e desenterraram a riqueza que ela escondera e cobrira de escuridão estígia, incentivo para o mal. E agora se produziram o ferro nocivo e o ouro, mais nocivo ainda: e estes produziram a guerra - pois as guerras são travadas com ambos - e armas estrondosas foram arremessadas por mãos sujas de sangue. A inocência se fora. Os seres humanos se afastam, não somente dos deuses, mas também da Natureza, e vêem-se presos numa roda de medo e desejo, que propende para o mal e mina assim a memória

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como as forças vitais. Já conhecem o sentido embrutecedor da vergonha e da perda. Modificou-se-Ihes tanto a experiência subjetiva quanto a própria substância dos corpos físicos. Além do mais, o seu novo modo de existência destina-se a ter efeitos que vão muito além deles mesmos.

O Dilúvio Consoante as tradições de culturas inumeráveis, a mudança de caráter que avassalou a humanidade teve conseqüências catastróficas para o planeta inteiro. Os índios iuroques dizem que porque as pessoas infringiam constantemente a lei, a morte ameaçava sobreexceder a vida no mundo. À proporção que as violações da lei e as mortes aumentavam, o seu peso começou à mergulhar o disco da terra nos mares sobre os quais ela flutuava. Virtualmente todas as culturas se lembram, pelo menos, de uma destruição do mundo, associada, de ordinário, explicitamente à Queda. A história mais difundida desse tipo evoca um Dilúvio mundial, e de todas as histórias do Dilúvio, a mais familiar é a de Noé e sua arca: Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na Terra, e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração; então se arrependeu o Senhor de ter feito o homem na Terra, e isso lhe pesou no coração. Disse o Senhor: "Farei desaparecer da face da Terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves do céu dos céus; porque me arrependo de os haver feito" (Gênesis 6:5-7) Um homem, Noé, achou graça diante do Senhor. Deus lhe deu as dimensões de um barco, que ele construiu; para dentro dele levou sua família, e "de todo animal limpo. ... sete pares, macho e fêmea: mas dos animais imundos, um par. ... Também das aves do céu sete pares: macho e fêmea; para se conservar a semente sobre a face da terra".

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Depois se romperam as fontes do abismo e as comportas dos céus se abriram simultaneamente, e "houve copiosa chuva sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites. ... E pereceu toda carne que se movia sobre a terra, tanto de ave quanto de animais domésticos, e animais selváticos, e de todas as coisas que rastejam. ... e de todo homem". Mas Deus lembrou-se de Noé, e as chuvas diminuíram. Noé soltou um corvo e uma pomba à procura de terra seca. Quando a pomba voltou, sete dias depois, com uma folha de oliveira, Noé deixou a arca com sua família e fez uma oferenda. O Senhor prometeu que "enquanto durar a terra não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e calor, verão e inverno, dia e noite". Muitos estudiosos acreditam que a história babilônica de Utnapishtim, parte da epopéia de Gilgamés, é o protótipo do relato bíblico do Dilúvio. Na narrativa de Utnapishtim. como na história de Noé, o Dilúvio é produzido em razão da violência da humanidade. Enlil dá a Utnapishtim as dimensões do barco que ele deverá construir. Então:

Os anunnaki (juízes do mundo inferior) ergueram (suas) tochas alumiando a terra com o seu resplendor;

A cólera furiosa de Adad (deus das tempestades e do trovão) chega ao céu

(E) transforma em treva tudo o que era luz. (...) a terra ele quebrou (?) como um pote

Nenhum homem podia ver seu semelhante. As pessoas não podiam ser reconhecidas do céu..

(Até) os deuses ficaram aterrados com o dilúvio. Mais uma vez. "a semente de todas as criaturas vivas" é levada para o barco. Na versão babilônica, o Dilúvio dura sete dias; um corvo, uma pomba e uma andorinha são mandados à procura de terra. Depois de emergir do barco, Utnapishtim faz uma oferenda de agradecimento, e Enlil promete que nenhum dilúvio tornará a destruir o mundo. A seguir, Utnapishtim e sua esposa recebem uma bênção de Enlil.

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Os gregos lembravam-se de três dilúvios: o dilúvio que destruiu a Atlântida, o dilúvio de Deucalião e Pirra e o dilúvio de Ógiges. A respeito do cataclisma que destruiu a Atlântida só temos o relato de Platão; dos últimos dilúvios subsistem diversas versões. Consoante o mito grego, Deucalião era filho de Prometeu; desposou sua prima Pirra, filha de Epimeteu e Pandora. Quando Zeus decidiu destruir a raça humana (a Raça de Bronze de Hesíodo, violenta e corrupta), Prometeu aconselhou Deucalião a construir uma caixa e aparelhá-Ia com as necessidades da vida. Nela, Deucalião e Pirra sobreviveram, enquanto o resto da humanidade perecia. A versão mais amplamente lida do dilúvio de Deucalião talvez seja a de Ovídio: A uma ordem sua, as bocas das fontes se abriram Atirando ao mar as águas das montanhas. Sob o golpe do tridente de Netuno a terra tremeu, E abriu-se o caminho para um mar de água:

Onde havia terra os grandes rios arrasaram pomares, O milho não cortado, vilas, carneiros, homens e gado.

Dentro das águas. Até santuários e templos

Foram varridos, e se alguma casa de fazenda ou celeiro Ou palácio ainda se erguia em pé, as ondas

Trepavam nas portas e someiros, nos tetos e nas torres. Tudo se extinguia como perdido em águas vítreas,

Estradas, caminhos, vales, e morros mergulhavam no oceano, Era tudo um mar movamente sem praia.

Depois que o casal emergiu, ofereceu um sacrifício a Zeus e passou a repovoar a Terra. A civilização, porém, não reapareceu imediatamente: de acordo com Platão, "por muitas gerações os sobreviventes morreram sem poder expressar-se pela escrita". O dilúvio de Ógiges, o lendário rei de Tebas, na Beócia, foi de uma era diferente da de Deucalião. O cronista cristão primitivo Júlio Africano escreveu que "Ógiges. ... que foi salvo quando muitos pereceram, viveu na época do êxodo do povo do Egito, no tempo de Moisés".

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Nas tradições hindus, Manu, o Primeiro Homem, é avisado por um grande peixe de um Dilúvio iminente. Diz-lhe que construa um navio e coloque a bordo todos os tipos de sementes, juntamente com os sete Rishis (filhos nascidos da mente de Brahma e tradicionais compositores dos Vedas). Vieram as águas, e um peixe guia o barco até o pico mais alto dos Himalaias. "Neste, Manu amarra a arca. Depois sacrifica. Da oblação surge uma mulher. Os dois, então, criam de novo a humanidade.” Em sua versão da história da Queda, os ciganos da Transilvânia falam de um tempo em que as pessoas viviam para sempre e não conheciam moléstias nem preocupações. A comida era abundante, e os rios fluíam com leite e vinho. Não somente os seres humanos, mas também os animais viviam felizes e sem medo. Um dia, um estranho velho chegou ao lar de um casal, pedindo pousada. No dia seguinte, quando se preparava para partir, ele deu aos hospedeiros um jarro que continha um peixinho, dizendo: "Cuidem deste peixe; não o comam. Voltarei dentro de nove dias. Quando vocês me devolverem o peixe, eu os recompensarei.” A mulher queria comer o peixe, mas o marido não deixou. Entretanto, quando o marido estava fora de casa, a mulher sentiu fome. No momento em que ia colocar o peixe sobre os carvões ardentes, foi morta por um raio, e começou a chover. No nono dia, o homem estranho voltou e disse ao marido: "Você manteve a palavra não matando o peixe. Tome uma nova esposa, reúna a sua gente e construa um barco. Todos os homens e criaturas perecerão, mas você viverá. Leve consigo animais e sementes." Construiu-se o barco, e a chuva continuou por um ano. O homem, sua nova esposa, seus parentes e os animais sobreviveram, mas agora tinham de lutar para viver. A doença e a morte eram a sua sina, e eles só se multiplicaram muito lentamente.

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O Dilúvio, de Albrecht Dürer (1525). Uma página do seu livro de notas. Debaixo do desenho, o artista escreveu: Na noite entre quarta e

quinta-feira, depois de Pentecostes [30, 31 de maio] 1525, vi essa aparição em meu sono - as muitas e grandes águas que caíam do

céu. A primeira bateu na Terra cerca de quatro milhas de mim, com força terrível e um barulho tremendo, e rebentou e submergiu a terra toda. Fiquei com tanto medo que acordei. Depois caíram as outras águas e, ao caírem, eram muito poderosas, e havia muitas delas,

algumas mais longe, algumas mais perto. E elas caíam de uma altura tão grande que todas pareciam cair com igual lentidão. Mas quando a

primeira água que tocou a terra a havia quase atingido, caiu com tamanha rapidez, com vento e rugidos, e fiquei com tanto medo que,

ao acordar, todo o meu corpo tremia e durante muito tempo não pude

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tornar em mim. De sorte que, quando me levantei de manhã, pintei-o acima disto tal como o vi. Deus faz todas as coisas pelo melhor.

Albrecht Dürer. Das montanhas do Iunão, no sudoeste da China, os lolos - raça aborígine de pessoas que tinham uma escrita pictográfica própria, com que registraram lendas e cânticos - dizem que os divinos patriarcas, que ora vivem no céu, já moraram na Terra, onde viviam até idades muito avançadas. O mais famoso foi Tose-gu-dzih, que trouxe a morte ao mundo abrindo uma caixa proibida. Nessa época, os homens eram maus, e Tse-gu-dzih enviou-lhes um mensageiro encarregado de pedir-lhes um pouco de carne e sangue como tributo. Somente um homem, Du-mu, lhe satisfez o pedido. Tse-gudzih enfureceu-se e fechou as comportas da chuva, de modo que a água começou a subir para o céu. Mas Du-mu e seus quatro filhos foram reunidos num tronco oco, juntamente com lontras, patos selvagens e lampreias. Estes foram os únicos sobreviventes; dos filhos de Du-mu descendem todos os povos do mundo. Os aborígines da Austrália central dizem que, muitos séculos atrás, um Dilúvio desastroso trouxe fome para a terra. As pessoas e animais só sobreviviam agarrados aos cumes das montanhas. Quando as águas baixaram, os sobreviventes apelaram para o canibalismo. Então Baiame, o grande antepassado totêmico, resolveu encarnar para ensinar as pessoas a viverem em seu novo ambiente. Nas Américas, as tradições do Dilúvio estão muito difundidas, e, no caso dos mitos do Mergulhador da Terra, freqüentemente enredadas em histórias da Criação. Encontramos, não raro, um herói e diversos animais sobrevivendo ao Dilúvio numa jangada, da qual um, ou uma série de animais, é enviado para descobrir solo, vegetação ou um sítio de pouso numa montanha. Freqüentemente, a história continua descrevendo a construção de uma escada para o Céu, a confusão das línguas e a dispersão da humanidade. Os nativos norte-americanos adotavam a crença de que todas as pessoas se originaram juntas, no mesmo lugar, e só se disseminaram

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após o Dilúvio. Os chelahis do noroeste do Pacífico chamavam aos primeiros exploradores e comerciantes franceses o "povo trazido pela água", acreditando que fossem chelahis que tinham sido carregados para longe durante o grande Dilúvio e que agora regressavam. Afirmam os navajos terem sido avisados do Dilúvio iminente. Tiraram terra das montanhas dos quatro cantos do mundo e a colocaram no topo da montanha que se erguia no norte, e todos foram para lá, humanos e animais. As águas subiram, e a gente subiu mais alto. As pessoas plantaram um junco e entraram-lhe no oco; o junco crescia todas as noites, e cresceu tanto que chegou ao chão do mundo atual. Ali as pessoas encontraram um buraco, através do qual passaram para a superfície. Os índios papagos do Arizona preservam uma história da Criação, do Paraíso e da Queda, em que Montezuma e um coiote são os únicos sobreviventes: O Grande Espírito primeiro fez a terra e suas criaturas. Depois desceu e veio ver o que tinha feito. Cavando a terra que fizera, encontrou um pouco de argila. Levou-a consigo de volta para o céu e deixou-a cair no buraco que cavara. Imediatamente dali saiu um homem, na forma de Montezuma, o herói desta lenda. Com a sua ajuda saíram também todas as tribos índias em ordem. ... A paz e a felicidade [reinavam] no mundo nesses primeiros dias. Como o sol estivesse mais perto da terra do que está agora, todas as estações eram quentes, e ninguém usava roupas. Homens e animais partilhavam de uma língua comum, e todos eram irmãos. Eis senão quando uma pavorosa catástrofe despedaçou os dias de ouro. Um grande dilúvio destruiu toda a carne onde havia alento de vida, com exceção de Montezuma e de um coiote, seu amigo. O coiote profetizara a vinda do dilúvio, e Montezuma, seu amigo, acreditara nele. ...

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Os índios algonquinos diziam que, a princípio, a terra se achava em estado de paz e felicidade. Mas quanto uma poderosa cobra surgiu no meio das pessoas, estas se tornaram confusas e começaram a odiar-se umas às outras. A cobra resolveu destruir todos os seres vivos por meio do dilúvio. As águas espalharam sobre a terra e destruíram tudo o que estava vivo. Na Dha da Tartaruga morava Manabhozo, avô das coisas vivas; somente a sua oração vingou salvar algumas pessoas. De acordo com os havaianos: Doze gerações após o início da raça, na genealogia de Kumu-honua, durante a chamada Era-da-Derrubada (po-au-hulihia), ocorre o nome de N'u. ... Nesse tempo, sobreveio o dilúvio, conhecido como Kai-a-ka-hina-li'i, que se pode traduzir por "Mar causado por Kabinali'i" ou "Mar que fez os chefes (ali'i) caírem”. A idéia de que Nu'u construiu uma grande embarcação, em que sobreviveria ao Dilúvio, é provavelmente indígena, e não produto do contato com missionários: "Os velhos do Havaí disseram ter sido informados por seus pais de que toda a terra fora outrora inundada pelo mar, exceto um picozinho no Maunakea, onde dois seres humanos foram preservados da destruição, que havia dado cabo do resto, mas acrescentavam que nunca tinham ouvido falar em navio nem em Noé.” Diz-se também que, na ocasião do Dilúvio, uma antiga pátria chamada Hoahoamaitu submergiu debaixo das águas.

Outras Catástrofes Enquanto o Dilúvio é a catástrofe mais ampla e vividamente lembrada dos tempos antigos, a maioria das culturas conservou também tradições de outras destruições do mundo. Os gregos, por exemplo, acreditavam que as quatro idades do mundo, que já tinham expirado,

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haviam, todas elas, terminado numa catástrofe. Em sua Teogonia, Hesíodo descreveu assim o termo de uma das idades: "A Terra, doadora de vida, arrebentou-se em ardências. ... toda a terra ferveu. ... Dir-se-ia até que a Terra e o amplo Céu em cima dela se houvessem juntado; pois um estouro tão portentoso só teria ocorrido se a Terra tivesse sido violentamente arremessada à ruína, e o Céu, lá do alto, a estivesse arremessando para baixo.” Em seu Timeu, Platão relembra antiga reminiscência de catástrofes recorrentes; aqui, o sacerdote egípcio fala com Sólon de Atenas: "Sois todos jovens em vossas mentes", disse o sacerdote, "que não conservam provisões de velhas crenças baseadas em longas tradições, nenhum conhecimento encanecido pela velhice. A razão é esta. Houve e haverá, daqui por diante, muitas e diversas destruições da espécie humana, as maiores pelo fogo e pela água, embora outras, menores, se devam a inúmeras outras causas. ... convosco e com outros povos, repetidas vezes, a vida tem sido ultimamente enriquecida com letras e todas as outras necessidades da civilização, quando, mais uma vez, após o costumeiro período de anos, as torrentes do céu cairão qual pestilência, poupando apenas os rudes e os não-Ietrados dentre vós. ...” Como os gregos, os tibetanos e hindus também recordavam quatro idades completadas, cada uma das quais terminou em conflagração, dilúvio ou furacão. Os chineses chamavam ao período entre as destruições do mundo um "grande ano". Cada grande ano acaba "numa convulsão geral da natureza, o mar é arrancado do leito, as montanhas se atiram ao solo, os rios mudam o seu curso, arruínam-se os seres humanos e tudo o mais, e os antigos traços são apagados". Em quase todas as tradições relativas às idades do mundo, acredita-se que o fim da era é provocado pela corrupção da população humana. Os aruaques do Orinoco dizem que houve duas destruições da terra, uma pela água e outra pelo fogo. Ambas ocorreram porque os homens desobedeceram ao Habitante-do-Alto, Aiomun Kondi. Os aruaques também têm um herói à feição de Noé, Marerewana, que se salvou, e

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salvou a família durante o Dilúvio, amarrando sua canoa a uma grande árvore por meio de uma corda. Um dos primeiros exploradores da América Latina, Cardim, relatou: Dir-se-ia que esse povo não tivesse conhecimento dos primórdios e da criação do mundo, mas parece que tinha alguma notícia do dilúvio: mas como carece de escritos e letras, a notícia é obscura e confusa; pois eles dizem que as águas afogaram todos os homens, e que apenas um escapou, num Janipata, com a irmã, grávida de um filho, e dos dois houveram eles o seu princípio, a partir do qual deram de multiplicar-se e aumentar em número. No relato hopi dos quatro mundos, os três primeiros terminam em destruição. Quando o Primeiro Mundo está prestes a ser destruído, Sótuknang diz ao povo: Vocês irão para certo lugar. O seu Kopavi (centro vibratório no topo da cabeça) os conduzirá. Essa sabedoria interior lhes dará a vista para ver determinada nuvem, que vocês seguirão durante o dia, e determinada estrela, que seguirão durante a noite. Não levem nada consigo. A sua jornada só terminará quando a nuvem parar e a estrela parar. ... Quando estavam todos seguros e instalados, Taiowa ordenou a Sótuknang que destruísse o mundo. Sótuknang destruiu-o pelo fogo, porque o Clã do Fogo havia sido o seu chefe. Fez chover fogo sobre ele. Abriu os vulcões. O fogo veio de cima, de baixo, e de todos os lados, até que a terra, as águas, o ar, tudo se tornou num só elemento, o fogo, e nada sobrou a não ser o povo seguro no ventre da terra. O relato hopi da segunda destruição do mundo contém uma descrição do início de uma Idade do Gelo: Assim, de novo, como no Primeiro Mundo, Sótuknang chamou o Povo das Formigas a fim de abrir o seu mundo subterrâneo para o povo

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escolhido. Quando este se achava seguro debaixo da terra. Sótuknang ordenou aos gêmeos, Poqanghoya e Palongawhoya, que deixassem os seus postos na extremidade norte e na extremidade sul do eixo do mundo, onde estavam estacionados para manter a terra girando adequadamente. Apenas haviam os gêmeos abandonado suas posições, quando o mundo, sem ninguém para controlá-Io, desequilibrou-se, começou a girar sobre si mesmo feito um doido, depois deu duas cambalhotas. Montanhas mergulharam no mar com grande estrépito, mares e lagos derramaram-se sobre a terra; e, à maneira que entrava a girar através do espaço frio e sem vida, o mundo congelou-se, transformado em gelo sólido. Muitos povos antigos parecem ter acreditado que o Dilúvio e outras catástrofes estavam associados a mudanças nos movimentos do céu - e, por conseguinte, em termos astronômicos modernos, com alterações na direção axial e no movimento orbital da própria Terra. Platão escreveu no Timeu: Em certos períodos, o universo tem o seu atual movimento circular, e, em outros, gira na direção oposta. ... De todas as mudanças que se registram nos céus essa inversão é a maior e a mais completa. ... Verifica-se, nessa época grande destruição de animais em geral, e só uma pequena parte da raça humana sobrevive. Em seu livro, Hamlet's Mill, Giorgio de Santillana e Hertha von Dechend exploraram a base astronômica do mito e chegaram à conclusão de que: A teoria [dos antigos] a respeito de "como começou o mundo" parece envolver a ruptura de uma harmonia, uma espécie de "pecado original" cosmogônico, em conseqüência do qual o círculo da eclíptica (com o zodíaco) se inclinou num ângulo em relação ao equador, e os ciclos da mudança [as estações] passaram a existir.

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Muitas culturas antigas instituíram rituais e cerimônias com o propósito de prevenir outra catástrofe. Entre os índios iuroques, por exemplo, diz-se que: Sempre houve luta para manter o mundo equilibrado sobre as águas, os ritmos de abundância firmes, de acordo com a lei e a despeito das violações dela pelos seres humanos. Sabendo que isto seria assim, antes de saírem os wo gey [Imortais, ou seres do tempo do mito com espíritos puros] ensinaram a certas pessoas o que haviam de fazer para tornar a equilibrar o mundo quando o peso das violações humanas ficasse grande demais para ele. Outras culturas limitaram-se a memorizar as catástrofes, ou tentaram emular a sua capacidade de destruição através do sacrifício e da guerra ritual. O erudito do século XVIII Nicholas-Antoine Boulanger, depois de analisar as cosmologias dos antigos germânicos, gregos, judeus, árabes, hindus, chineses, japoneses, peruanos, mexicanos e caribes, concluiu que as cerimônias e mitos de todos esses povos resultavam, em grande parte, dos efeitos de catástrofes globais e do medo engendrado por elas. No entender de Boulanger, o medo foi transmitido de geração a geração: Ainda trememos hoje em conseqüência do dilúvio, e nossas instituições ainda nos passam os medos e as idéias apocalípticas de nossos primeiros pais. O terror sobrevive de raça para raça. ... A criança ficará perpetuamente apavorada com o que assusta os seus antepassados. Mais recentemente, o psicanalista Immanual Velikovski encontrou nas lembranças mundiais de cataclismas globais uma fonte dos sistemas coletivos de ilusão, os quais, como Freud e Jung já tinham concluído, afligem toda a raça humana. Em seu Mankind in Amnesia (1982),

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Velikovski traçou os efeitos psicológicos e sociais do antigo trauma de massa: A agitação e a trepidação que precedem as convulsôes globais, a destruição e o desespero que as acompanharam, e o horror da possível repetição, tudo isso causou uma variedade de reações, na base das quais estava a necessidade de esquecer, mas também o estímulo para emular. Astrólogos e astrônomos, bem como adivinhos, adivinhavam; conquistadores exceliam na devastação desumana e cruel, invocando e imitando modelos planetários. Profetas e videntes exortavam e sacerdotes propiciavam. Vale a pena notar brevemente a existência de evidência física - sinais das mudanças do nível do oceano, e das extinções simultâneas de grande número de espécies vegetais e animais - que dão a entender que ocorreram, de fato, destruições mundiais relativamente recentes. Geólogos e arqueólogos mostram-se geralmente indecisos a respeito da interpretação dessa evidência, e, não raro, referem-se a ela como "misteriosa". Para os mitólogos e psicólogos, porém, não há o que discutir: a memória da catástrofe é universal, e o terror persiste. Nestes cinco primeiros capítulos examinamos as histórias da Criação, do Paraíso, da Queda e da catástrofe, tais como foram contadas e recontadas na literatura e nas tradições orais de cada parte do mundo. Aqui, de acordo com os antigos sábios de todas as culturas, está a explanação da atual condição dos seres humanos, e do mundo. Mas o Paraíso não está inteiramente contido na mitologia. Aparece também em outros aspectos da cultura humana. E se é objeto de um nostálgico pesar, é também o combustível de um anseio revolucionário e profético. Portanto, voltaremos a nossa atenção, em seguida, para as erupções da imagem paradisíaca na profecia, na literatura e no pensamento utópico, à proporção que progredirmos de um estudo das memórias de um Paraíso original para visões do seu retorno final.

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CAPÍTULO 6 A Profecia: O Paraíso Antigo e o Paraíso Futuro

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Porque agora, vemos como em espelho, obscuramente, então

veremos face a face: agora conheço em parte; então conhecerei como também sou conhecido.

I Corintios 13:12 Paraíso não é apenas a matéria de memórias míticas. Virtualmente, as pessoas de toda civilização e cultura tribal, em todas as eras, alimentaram sonhos de um mundo de ouro por vir. Nas culturas religiosas, as visões do Paraíso assumiram a forma de profecias, ao passo que, no Ocidente secular moderno, propenderam a expressar-se em obras literárias de ficção ou poéticas, e em teorias sociais utópicas. Na Segunda Parte examinaremos essas várias manifestações da visão do Paraíso, começando com as profecias de uma volta final à Idade de Ouro.

No Fim como no Princípio Profetas de todas as tradições espirituais imaginaram um fim dramático para o atual estado de coisas humanas, e uma renovação geral do mundo. O termo escatologia, referente a doutrinas do fim da história e do mundo por vir, foi originalmente aplicado às profecias judaicas e cristãs do juízo Final e do aparecimento do Reino paradisíaco de Cristo, mas historiadores da religião costumam usá-Io agora também com referência a temas semelhantes em outras tradições. A especulação escatológica parece medrar em tempos de crise. E se bem as imagens variem - desde a antecipação dos pigmeus de Malaca de um grande dilúvio final, da qual se erguerão, milagrosamente, os ossos dos homens e viverão de novo, até a doutrina marxista do derradeiro triunfo revolucionário do proletariado numa comunidade comunista paradisíaca - a mensagem fundamental é notavelmente constante. O declínio moral ou espiritual da

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Humanidade terá de culminar, em fim de contas, numa catarse de dimensões cataclísmicas, da qual emergirá a semente de uma idade restaurada de paz e perfeição. Esta semente é freqüentemente personificada na pessoa de um messias, ou herói cultural reencarnado. Num texto babilônio primitivo já podemos discernir os elementos essenciais das últimas e mais familiares escatologias hebraicas e cristãs: haverá sinais no Céu, e o mundo se abismará em confusão: "As pessoas venderão seus filhos por ouro, o marido abandonará a mulher, a mulher abandonará o marido". Mas essa era de caos será seguida de uma renovação universal, quando um Rei divino será entronizado. Os antigos iranianos acreditavam também numa confrontação final entre o bem e o mal, quando o último dos descendentes espirituais de Zoroastro surgirá para despertar os mortos e reabilitar a humanidade e a Natureza. Um incêndio devorador abrirá caminho para "um novo mundo, livre da velhice, da morte, da decomposição e da corrupção, que viverá eternamente, que crescerá eternamente, quando os mortos se levantarão, quando a imortalidade vier para os viventes, quando o mundo será inteiramente renovado". Os gregos e romanos tinham suas próprias escatologias - influenciadas, sem dúvida, pelas dos babilônios, hebreus e iranianos - às quais acrescentaram especulações acerca da recorrência de ciclos cósmicos. O escritor romano Nemésio, do século V, por exemplo, descreveu a crença, ainda corrente no seu tempo, relativa à destruição e renovação do mundo, periodicamente repetidas: Dizem os estóicos que os planetas serão restaurados para o mesmo signo zodiacal, assim em longitude como em latitude, como já aconteceu no princípio, quando o cosmo foi formado pela primeira vez; que, em determinados períodos de tempo, uma configuração e a destruição das coisas ocorrerão, e, mais uma vez, haverá uma

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reconstituição do cosmo, tal como era no princípio. E quando as estrelas se moverem da mesma maneira que antes, cada coisa que ocorreu no período anterior será, sem variações, levada a acontecer de novo. Na Écloga "Messiânica", Virgílio aludiu a uma concepção da futura repetição da Idade de Ouro, que se seguiria à era atual sem a destruição interveniente do mundo. Seu poema preservou fielmente as tradições literárias de Hesíodo e encontrou leitores entre os cristãos primitivos. A criança do futuro, segundo Virgílio: Nascerá para uma vida divina, e verá heróis misturando-se aos deuses, e ela mesma será vista entre eles, e governará um mundo restituído à paz pelas virtudes de seu pai. A ti, ó criança, a Terra, não cultivada, oferecerá teus primeiros brinquedos - acompanhando o rasto da hera com dedaleiras e o dos lírios com o acanto. ... A serpente desaparecerá, e desaparecerão as enganosas ervas peçonhentas. O bálsamo assírio será espargido sobre todas as beiras de estrada. Enceta tua grande carreira, querido filho dos deuses... o tempo agora está à mão. Vê como treme o mundo debaixo da sua abóbada maciça, as terras e a vastidão dos mares e o céu altaneiro: vê como tudo se alegra com a idade que vai nascer. À diferença de Virgílio, o nórdico teutônico profetizou que a renovação do mundo só viria após uma grande destruição. De acordo com as suas lendas, ragnarok, "o destino dos deuses", será precedido de um período de anarquia, em que os seres humanos perpetrarão todo o tipo de crimes hediondos. O céu, então, se abrirá, as estrelas cairão e as montanhas serão despedaçadas em terremotos. Todos os deuses morrerão, exceto Surtr, que fará seja a Terra envolvida pelas chamas, destruindo o gênero humano. À maneira que as chamas se erguerão para o Céu, a Terra afundará no mar. Mas, depois, ela se erguerá das águas, renovada, fresca e verde, para ser repovoada. As estrofes

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finais de Võluspá - a "Profecia da Sibila" - pintam uma imagem idílica do Paraíso restaurado:

Agora vejo de novo a terra Erguer-se, toda verde, das ondas outra vez;

As cataratas caem, a águia voa, E apanha o peixe debaixo dos rochedos.

Em ldavoll reúnem-se os deuses

E falam do terrível cinteiro da terra. E evocam o passado poderoso,

E as antigas runas do Soberano dos Deuses.

Maravilhosamente belas, mais uma vez, As mesas de ouro estarão no meio da relva,

Que os deuses houveram nos dias de antanho.

Os campos não semeados produzirão frutos maduros, Todos os males melhorarão, e Baldr voltará; ...

Mais bela do que o sol, vejo uma sala, Com teto de ouro, assentada no Gimli;

Ali habitarão os justos soberanos. E terão felicidade para sempre.

A crença na devastação do mundo pela água e pelo fogo antes da sua renovação também existia entre os celtas, muito antes da chegada do cristianismo. Documentos irlandeses nativos, por exemplo, atestam-no: a profecia da deusa da guerra Babd e a de Ferdertne em The Coloquy of the Two Sages lembram um pouco os contos de ragnarok no Völuspá nórdico em suas descrições do fogo que deu cabo do mundo. Os muçulmanos esperam o Dia do juízo Final, assunto de muitos suras, ou capítulos, do Corão. Nesse dia:

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Quando a Trombeta for soprada com um único sopro e a terra e as

montanhas forem erguidas e esmagadas com um só golpe. Então, nesse dia, o Terror sobrevirá, e o céu se partirá. ...

Nesse dia, ficareis expostos, nenhum segredo vosso será escondido. Então os "Companheiros da justiça" serão "trazidos para junto do Trono, no jardim das Delícias... recompensa pelo muito que trabalharam. Ali não ouvirão conversas ociosas, nem causa alguma de pecado, apenas o dito "Paz, Paz!" A seita Shia do Islã aguarda a chegada do mahdi, "o divinamente guiado", o oculto duodécimo imã, que reaparecerá nos Últimos Dias. E os drusos egípcios acreditam que o califa egípcio al-Hakim, que reinou durante o período de 996 a 1021, para eles o último profeta e encarnação divina, voltará no fim do mundo - que esperam ocorra no final do século XX. A doutrina das idades do mundo no Mahabharata não é sem paralelo nas passagens apocalípticas das literaturas iraniana, judaica, cristã e islâmica. O fim da atual Kali Yuga, a idade da destruição, é descrito da seguinte maneira: E quando os homens começarem a entrematar-se, e se tornarem perversos e selvagens, e sem nenhum respeito pela vida animal, a Yuga chegará ao fim. E até a primeira das melhores classes, afligida por salteadores, voará, como corvo, presa de terror, e partirá a grande velocidade, buscando refúgio em rios, montanhas e regiões inacessíveis. E sempre oprimida por maus governantes com cargas de impostos, a primeira dentre as melhores classes, nesses tempos terríveis, renunciará a toda paciência e cometerá atos impróprios. ... E o baixo se tornará alto, e o curso das coisas parecerá invertido. E, renunciando aos deuses, os homens adorarão ossos e outras relíquias depositadas em muros. ... Tudo isso ocorrerá no fim da Yuga, e sabei que estes são os sinais do fim da Yuga. E quando os homens se tornarem violentos e destituídos de virtude, e carnívoros, e propensos a bebidas embriagantes, a Yuga chegará ao fim. ... E o curso dos

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ventos será confuso e agitado, e um sem-número de meteoros surgirá subitamente no céu, prenunciando o mal. E o Sol aparecerá com seis outros da mesma espécie. E tudo em torno será estridor e tumulto, e em toda a parte haverá conflagrações. ... E fogueiras crepitarão de todos os lados. ... E, quando chegar o fim da Yuga, corvos e cobras e abutres e milhanos e outros animais e pássaros despedirão gritos medonhos e dissonantes. ... E as pessoas errarão sobre a Terra, exclamando: "Oh pai! Oh filho!" e outros gritos assustadores e dilacerantes. Mas O fim da Kali Yuga pressagia a recapitulação da Krita Yuga paradisíaca. Sempre - seja nas profecias orientais, seja nas ocidentais - o desmoronamento da velha ordem assinala a emergência de um Paraíso restaurado. Nichiren, professor religioso japonês do século XIII, predisse que "a idade de ouro, tais como foram as idades quando reinavam os reis sábios de outrora, realizar-se-á nesses últimos dias de degeneração e corrupção, no tempo da Última Lei". Dizem os tibetanos que estamos vivendo agora o fim de um período de 26.000 anos de trevas. Uma série de catástrofes globais, acompanhadas de lutas políticas, iniciará uma Purificação e uma nova era de espiritualidade e luz. A tradição Xambala do Tibete - preservada em numerosos textos sagrados e ensinamentos orais - fala num reino místico, escondido atrás de picos de neve, em algum lugar do norte. Ali, uma linha de reis iluminados guarda os ensinamentos mais secretos do budismo para um tempo em que toda a verdade do mundo exterior se tiver consumido em guerras e cobiça. Então, de acordo com a profecia, o rei de Xambala surgirá com um grande exército para destruir as forças do mal e instaurar uma Idade de Ouro. A batalha final se travará pouco depois que os bárbaros do mundo exterior voarem sobre as montanhas de neve protetoras em "veículos feitos de ferro", na tentativa de invadir Xambala.

Esperando o Milênio

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Se bem que a expectativa de convulsões cósmicas e miséria humana sem precedentes, conducentes ao retorno do Paraíso, seja quase universal, as profecias mais familiares aos ocidentais são as da tradição messiânica judaico-cristã. Com suas poderosas imagens de um apocalipse futuro e do alvorecer de uma idade de paz, a tradição profética no Ocidente modelou não só a religião, mas também os movimentos sociais e literários. Predisseram sistematicamente os profetas hebreus que, após uma grande catástrofe cósmica, que, ao mesmo tempo, poria em debandada os pagãos e purificaria o restante dos Filhos de Israel, os justos voltariam a reunir-se na terra de seus pais e Deus habitaria entre eles como governante e juiz. Floririam os desertos; a Luz brilharia como o Sol, e o resplendor do Sol aumentaria sete vezes; haveria grande cópia de todo o tipo de alimentos; a doença e a tristeza desapareceriam; as pessoas viveriam em alegria e paz perpétuas. Foi, mais ou menos, ao tempo do declínio da sua nação, iniciado no século VIII a.C., que os profetas hebreus começaram a profetizar que a restauração do Paraíso dependeria do aparecimento de um herói milagroso, o Messias. Embora fosse, a princípio, encarado como um poderoso monarca da descendência de Davi, que levaria o seu povo à vitória e à prosperidade, o Messias, mais tarde, foi retratado, em termos sobre-humanos, como Filho do Homem, que apareceria cavalgando as nuvens no Céu. De acordo com o Apocalipse de Baruque, siríaco, composto no século I d.C., o Messias só virá depois de um período de terríveis atribulações, no tempo do último e do mais opressor dos impérios. Destruirá o inimigo, aprisionando-lhe o chefe e levando-o, acorrentado, ao cume do monte Sião. O Messias inaugurará um reino de paz e uma idade de bem-aventurança, em que a fome, a dor, a violência e, finalmente, a própria morte serão abolidas. Compelidos pelo fascínio da crença no advento iminente do rei-salvador, os judeus

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moveram a sua guerra suicida contra os romanos, que terminou com a captura de Jerusalém e a destruição do Templo no ano 70 d.C. Muitos cristãos primitivos interpretaram os ditos de Jesus segundo a escatologia messiânica judaica então corrente, acreditado que o seu advento prognosticava um fim rápido e cataclísmico de todas as coisas. Suas profecias, vazadas na mesma linguagem da literatura apocalíptica do tempo, pouco fizeram para diminuir tais expectativas:

E certamente ouvireis falar em guerras e rumores de guerras; vede, não vos assusteis, pois é necessário assim acontecer, mas ainda não

é o fim. Porquanto se levantará nação contra nação, reino contra reino, e

haverá fomes e terremotos em diversos lugares. ... Porque nesse tempo haverá grande tribulação, como desde o princípio

do mundo até agora não tem havido, e nem haverá jamais. ... Logo em seguida à tribulação daqueles dias, o sol escurecerá, a lua

não dará a sua claridade, as estrelas cairão do firmamento e os poderes dos céus serão abalados.

Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem; todos os povos da terra se lamentarão, e verão o Filho do Homem vindo sobre as

nuvens do céu com poder e muita glória. E ele enviará os seus anjos, com grande clangor de trombeta, os

quais reunirão os seus escolhidos, dos quatro ventos, de uma a outra extremidade dos céus (Mateus 24;6,7,21, 29-31).

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São João diante de Deus e dos Anciãos, de Albrecht Dürer, da série

de xilogravuras Apocalipse (1498)

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Mas Jesus não aparecera como poderoso guerreiro, expulsando os opressores romanos e instaurando um reino judaico edênico, renovado. A primitiva igreja cristã viu-se, destarte, diante de um problema: muitas profecias de Ezequiel, Isaías e Daniel continuavam não cumpridas. Posto que o ungido tivesse vindo, os acontecimentos não se desenrolavam através de uma intervenção divina apocalíptica, mas de acordo com processos políticos e econômicos humanos familiares. Resolveu-se o problema através da doutrina do Segundo Advento: a nova idade, com efeito, aurorescera, mas não prevaleceria sobre os negócios humanos enquanto Jesus não tivesse voltado À Terra em poder e glória. A doutrina do segundo advento foi formulada na parte final do século I e incorporada no Livro da Revelação (Apocalipse), provavelmente o trecho de literatura profética mais influente na história. Combinando elementos judeus e cristãos num cenário escatológico poético e imensamente poderosos, o Apocalipse de João (como o livro era também conhecido) estabeleceu imagens e arquétipos - a Nova Jerusalém, a mulher vestida de Sol, o dragão, a fera de sete cabeças e dez chifres, o Cordeiro de pé no monte Sião, a meretriz de Babilônia, o mar de vidro, os sete candelabros de ouro, as quatro bestas e sete anjos - isso dominaria a imaginação profética por séculos a fio. O capítulo 20 da Revelação descreve Satanás amarrado e lançado num poço sem fundo, e mártires cristãos despertados dentre os mortos e reinando com Cristo por 1.000 anos num Paraíso restaurado. Depois desse Milênio acontecerá uma ressurreição geral dos mortos e o Juízo Final, quando aqueles, cujos nomes não figuram no Livro da Vida, serão lançados no lago de fogo. Então a Nova Jerusalém descerá do Céu:

Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.

Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo.

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Então ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de

Deus e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já

não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passarão.

E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas (Revelação 21:1-5).

O Livro da Revelação foi a expressão quitessencial da profunda corrente profética da qual dimanou o próprio cristianismo. Mas, à medida que a Igreja primitiva deixou de ser um grupo de visionários perseguidos para tornar-se a religião oficial do estado do império romano, o milenarismo, com suas visões do desbarato de toda autoridade temporal, passou a ser visto como uma doutrina perigosamente revolucionária e mística. O teólogo helênico Orígenes, do século III, foi o primeiro dos padres da Igreja a rejeitar uma interpretação literal das profecias apocalípticas da Revelação. A partir do seu tempo, o cristianismo dividiu-se entre os alegoristas do estabelecimento, que vêem o Milênio como um estado espiritual em que a Igreja entrou em Pentecostes, e inumeráveis seitas milenaristas radicais, que insistem em tomar as profecias bíblicas ao pé da letra. Da heresia montaniana do século II, às predições amplamente cridas do iminente alvorejar de uma idade de amor (originadas de Joaquim de Flora na Idade Média), ao milenarismo de Charles Taze Russell e das Testemunhas de Jeová em nossa própria era, a civilização ocidental tem sido periodicamente varrida por movimentos proféticos e messiânicos radicais. Hoje, visões de um Paraíso restaurado, baseadas nas profecias do Antigo e do Novo Testamento, continuam a afeiçoar a visão do mundo de milhões de cristãos em toda a parte. Os acontecimentos do século XX nada fizeram para amortecer tais expectativas, e o movimento milenarista nos Estados Unidos continua a crescer, à proporção que livros, revistas e programas de rádio e

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televisão, dedicados à interpretação da profecia bíblica, alimentam o agudo interesse de ampla audiência.

A Grande Purificação O pensamento apocalíptico não é, de maneira alguma, único nas religiões escriturais. Povos tribais, em todas as partes do mundo, preservaram suas próprias tradições não escritas falando do fim eventual do mundo presente, que será seguido pela restauração do Paraíso original. No correr dos últimos séculos, as antigas crenças indígenas foram aumentadas e transformadas pelo contato com missionários, e centenas de novos movimentos religiosos tribais - não raro de caráter dramaticamente escatológico apareceram. Embora seja, às vezes, difícil para os antropólogos distinguir entre elementos indígenas e elementos emprestados nas novas religiões, em quase todos os casos os próprios povos tribais acreditavam que suas profecias - antigas ou recentes - estão sendo cumpridas por acontecimentos que cercam a colisão de suas culturas, relativamente pequenas e indefesas, com o momento gargantuesco da civilização. É como se o mundo estivesse sendo despedaçado por forças sobrenaturais que preparassem o cenário para uma destruição universal final e o aparecimento de um modo de ser inteiramente novo. Em muitos casos, as convulsões culturais, que os povos tribais experimentaram durante os últimos séculos, parecem apenas confirmar as antigas profecias de um tempo em que os seres humanos se tornariam tão cúpidos que os deuses os destruiriam para dar lugar a uma nova Criação.

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Quetzalcoatl, a Serpente emplumada e deus civilizador dos toltecas,

foi associado ao planeta Vênus e considerado o deus da magia Segundo os habitantes das ilhas Andamão, o mundo chegará ao fim num grande terremoto, que destruirá a barreira entre o Céu e a Terra. Os espíritos dos mortos serão, então, reunidos às suas almas, e os seres humanos levarão vidas felizes, sem doenças, morte ou casamento. Mesmo agora, dizem eles, os espíritos impacientes do mundo inferior estão começando a sacudir as raízes da palmeira que sustenta a Terra, para acelerar-lhe o fim. Os aborígines da Austrália acreditam que o fim do mundo virá quando a Lei do Tempo de Sonho - o código de rituais estabelecido pelos Antepassados-Criadores - deixar de ser cumprida. Entre muitas tribos

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aborígines, os últimos membros iniciados nesses códigos de ritual estão ficando velhos, sem nenhum jovem iniciado para ocupar lhes o lugar. A Lei do Tempo de Sonho está sendo esquecida, e os anciãos pressagiam conseqüências terríveis para o mundo inteiro. Os habitantes das ilhas Mortlock, do Pacífico sul, predizem igualmente que, quando chegar o dia em que as pessoas deixarem de adorar a Boa Sorte-Criadora, quando moverem guerras e cometerem pecados, o Senhor do Mundo dará cabo delas. Tudo se arruinará; somente os deuses viverão em seu Paraíso celestial. Os pigmeus do Gabão, na África ocidental, dizem que, no princípio, Kmvum, o progenitor arquetípico da raça humana, vivia na Terra com toda a sua progênie numa Idade de Ouro. Mas o povo o traiu, e chegou o dia da separação. Asseveram os pigmeus que, no fim da idade atual, Kmvum retornará, trazendo consigo alegria, abundância e felicidade. Os tártaros altaicos acreditam, da mesma forma, que Tengere Kaira Khan, o "gracioso imperador do Céu", que antigamente vivia entre os homens, voltará no fim do mundo. Os toltecas e astecas da América Central lembravam-se das profecias de um padre nascido por volta do ano de 950 d.C., que consideravam a reencarnação de Quetzalcoatl, o qual aparece na mitologia deles, variamente, como herói cultural, figura de Cristo, e serpente emplumada celestial. Diz-se que o Quetzalcoatl primordial ensinou agricultura, astronomia, matemática e teologia aos maias no princípio da sua história. O Quetzalcoatl reencarnado do século X predisse aos toltecas que alguém como ele na aparência - barbudo e de pele clara - viria um dia do Oriente, ostentando um penacho de penas e roupas que brilhariam como o Sol, numa canoa de asas imensas. Em 1519, quando Hernán Cortés chegou numa caravela, exibindo uma armadura brilhante e um elmo emplumado, o imperador asteca Montezuma reconheceu imediatamente o cumprimento da profecia. Quetzalcoatl predissera que a chegada do homem branco barbudo daria início a um período de nove "infernos" - ciclos de cinqüenta e dois anos de trevas espirituais. No fim dos nove infernos,

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viria um tempo de depuração e purificação supremas, quando cidades e montanhas desabariam e a maior parte de mundo seria reduzida a cascalho pelo fogo. Quetzalcoatl prometeu voltar nesse tempo para encetar uma idade de Ouro de renovação espiritual. As tribos índias salish, do noroeste do Pacífico, dizem que, antes de haver deixado a Terra, o Deus-Criador prometeu voltar no fim dos tempos. O mundo, então, renascerá, e todos os seres humanos viverão juntos em paz e felicidade. A terra dos espíritos já não estará separada do mundo físico, e todas as coisas serão endireitadas. Consoante o mito pawnee, haverá uma terminação para toda a vida terrena, precedida de portentos horripilantes: a Lua ficará vermelha e o Sol morrerá. A Estrela do Norte presidirá à grande destruição. "Quando vier o tempo de todas as coisas terminarem", dizem os profetas pawnees, "o nosso povo se transformará em estrelinhas e voará para a Estrela do Sul, que é o lugar delas." Os profetas da tribo mesquakie prognosticaram a vinda de um tempo em que muitos animais seriam extintos e as pessoas se assentariam e ficariam olhando para uma caixa, vendo coisas acontecerem muito longe, e ouvindo vozes de pessoas que não estavam presentes. Esses videntes tribais previram inundações e terremotos como o meio de limpar a Terra de tudo o que os seres humanos fizeram, a fim de que a condição original do mundo pudesse ser restaurada. Dizem os hopis que os seus profetas, há muito tempo, preanunciaram a vinda de caixas com rodas, que rolariam sobre "cobras pretas", estendidas de um lado a outro da terra. Eles também falavam de "teias de aranha" especiais, por cujo intermédio as pessoas seriam capazes de comunicar-se através de longas distâncias. Os profetas hopis dizem que, dentro dos próximos decênios, a humanidade se destruirá, ou entrará numa nova idade espiritual, o Quinto Mundo. Prevêem guerras, fomes e desastres naturais como etapas da Grande Purificação. Como já se ressaltou, muitas escatologias tribais, de origem recente, apareceram como respostas a contatos com a civilização, e, particularmente, com os missionários cristãos. Famoso e trágico

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exemplo é o movimento da Dança Fantasma dos índios das planícies da América do Norte central. O movimento originou-se entre os paiutes, por volta de 1860, e foi-se estendendo para o oeste até, mais ou menos, 1873; um ressurgimento, inspirado por Wovoka, profeta-messias paiute, espalhou-se para leste no final da década de 1880 e culminou na chacina dos lakotas (sioux) em Wounded Knee Creek em 1890. Segundo os profetas do movimento, no tempo da sua realização a força espiritual inundaria a Terra. Os fiéis teriam de dançar por cinco dias, até ser induzido um transe profundo, e teriam de repetir o processo de seis em seis semanas. Os sacerdotes da dança curariam pelo toque e, dizia-se, eram capazes de ver o mundo do espírito. Conduzidos por Touro Sentado, os lakotas foram inteirados de que, através das ações da raça branca, o Grande Espírito os castigara, e que a libertação estava à mão. As suas fIleiras reduzidas seriam aumentadas pelos fantasmas dos antepassados, e as balas do homem branco já não seriam capazes de penetrar a carne índia. Foi esse sentido de invencibilidade que desencadeou o ataque suicida dos lakotas em Wounded Knee. James Mooney, etnólogo que escreveu ao tempo do movimento da Dança Fantasma, pintou-o da seguinte maneira: O grande princípio fundamental da doutrina da Dança Fantasma é que tempo virá em que toda a raça índia, vivos e mortos, será reunida numa terra regenerada, para viver uma vida de felicidade aborígine, livre para sempre da morte, da doença e da miséria. Sobre esse fundamento, cada tribo construiu uma estrutura proveniente da sua própria mitologia, e cada apóstolo e crente preencheu as minúcias segundo sua própria capacidade mental ou idéias de felicidade, com as adições que lhe acudiram no transe. A Dança Fantasma, de que muitas tribos (como a dos navajos e a dos hopis) não participaram, não foi o primeiro nem o último novo movimento escatológico americano nativo. As circunstâncias que lhe

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deram origem - pouco melhoraram. Os modernos líderes espirituais americanos nativos recordam com tristeza a tragédia de Wonded Knee e não têm nenhum desejo de ressuscitar as ilusões de invencibilidade guerreira, associada à Dança Fantasma. Entretanto, não podem senão reiterar a profecia fundamental que desencadeou o malfadado movimento: a cupidez e o coração empedernido do mundo moderno terá de morrer num tempo catártico de purifIcação, quando não só o povo branco, mas os índios também terão de enfrentar, en masse, os resultados de suas atitudes e ações. Depois disso, só se permitirá que a vida continue se as pessoas retornarem ao caminho sagrado original. Uma das mais eloqüentes enunciações modernas da visão americana nativa está contida nestas palavras do ancião hopi Dan Katchongva: Os hopis são a família deste continente, como outros são a família de outros continentes. Portanto, se os hopis forem votados à destruição, o mundo inteiro será destruído. Sabemos disso porque a mesma coisa aconteceu no outro mundo. Por conseguinte, se quisermos sobreviver, deveremos voltar ao modo de vida do princípio, o modo pacífico, e aceitar tudo o que o Criador estipulou para nós. Meu pai, Yukiuma, costumava contar-me que eu seria aquele que assumiria as funções de chefe neste tempo, porque pertenço ao [Clã do] Sol, o pai de todos os povos da Terra. Disseram-me que não cedesse, porque sou o primeiro. O Sol é o pai de todas as coisas vivas desde a primeira criação. E se eu for destruído, eu, do Clã do Sol, não haverá mais nenhuma coisa viva na Terra. Por isso me mantive firme. Espero que compreendam o que estou tentanto dizer-Ihes. Sou o Sol, o pai. Com o meu calor todas as coisas são criadas. Vocês são meus filhos, e estou muito preocupado com vocês. Rogo-lhes que se protejam de todo mal mas o meu coração se confrange ao vê-los deixar os meus braços protetores e destruir-se uns aos outros. Do seio de sua mãe, a Terra, vocês receberam nutrição, mas ela está tão perigosamente mal que não poderá dar-lhes alimento puro. Como há

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de ser? Vocês querem alegrar o coração de seu pai? Querem curar os males de sua mãe? Ou preferem abandonar-nos e deixar-nos com a tristeza, para sermos desintegrados? Não quero que este mundo seja destruído. Se o mundo for salvo, todos vocês serão salvos, e quem quer que tenha agüentado firme completará este plano conosco, de modo que todos seremos felizes de Maneira Pacífica. Um novo Paraíso está esperando, mas a humanidade precisa, primeiro, sofrer uma depuração catártica. Poucos profetas olharam para além do dia da PurifIcação para descrever os eventos da Idade de Ouro restaurada, pois o mundo futuro será inconcebível em termos do mundo presente. Com a volta do Paraíso, a história - como crônica de guerras e intrigas, maquinações e vilões - estará acabada. A Humanidade e a Natureza, o Céu e a Terra mais uma vez se ajuntarão em paz e harmonia, como um novo Início-dos-Tempos da Criação.

CAPÍTULO 7 O Paraíso como Força na Cultura Humana

... A Idade de Ouro, o mais improvável de todos os sonhos que já

existiram, mas o único pelo qual os homens deram a vida e toda a sua força, pelo qual profetas morreram e foram mortos, sem o qual os

povos não querem viver e não podem sequer morrer! Fiódor Dostoievski

A visão do Paraíso acende a imaginação humana como poucas outras idéias, imagens ou sonhos já o fizeram. Nosso maior desejo é de um estado em que todas as nossas interações se baseiem numa troca livre, mútua e nobre de amor. Toda a gente deseja estar numa condição de harmonia relaxada e, no entanto, íntima e premeditada, com o conjunto da vida. E assim é compreensível que a expressão quintessencial desses anseios, na imagem mítica do Paraíso, evoque

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naturalmente uma resposta profunda. É uma imagem de transcendência, radiância, vôo místico e união da espécie humana com a Divindade e a Natureza. Descreve e explica, a um tempo, a essência do mal humano, e culmina na imagem da jornada heróica que vai da condição humana decaída atual ao estado original de união perfeita. Neste capítulo estudaremos três das muitas maneiras com que a imagem paradisíaca configurou o curso da civilização. Primeiro, acompanharemos o tema do Paraíso na literatura ocidental da Idade Média até o presente. Depois, veremos como o anseio de um Paraíso terrestre produziu o fenômeno do sonho americano. Finalmente, seguiremos a corrente da visão edênica fluindo através das teorias e experiências sociais mais importantes da história.

O Paraíso na Literatura A literatura, como todas as formas de arte, geralmente se avalia criticamente em função da sutileza ou delicadeza com que é trabalhada. Mas somente as considerações formais pouco explicam por que um poema ou um romance alcançam a imortalidade ao mesmo tempo que outros caem no esquecimento. Um guia mais seguro para chegar à força da literatura é a sua capacidade de evocar e satisfazer anseios arque típicos universais. Confirmam essa maneira de ver os descobrimentos de uma escola relativamente nova de análise literária, conhecida como crítica arque típica ou mítica. Seus pioneiros, Maud Bodkin (autora de Archetypal Patterns in Poetry) e Northrop Frye (autor de Anatomy of Criticism), não procuraram a fonte da atração universal da literatura na forma ou no conteúdo por si só, mas nos padrões universais de imagens e narrativa, como os que modelaram os mitos e rituais antigos. E os padrões encontrados pelos críticos míticos saltam quase todos das imagens do Paraíso e de sua perda, ou da busca heróica da sua renovação. Em seus estudos minudentes e eruditos, os críticos míticos mostraram que grande parte da maior e mais profundamente

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comovente literatura da história deve seu poder de inspiração ao mito paradisíaco. O tema do Paraíso na literatura é tão vasto que não podemos esperar fazer-lhe justiça numas poucas páginas. A única solução é limitar o âmbito do nosso estudo, e, por conseguinte, escolhi um pequeno núcleo de exemplos tirados das literaturas européia e americana. A divina comédia de Dante Alighieri (1265-1321) é geralmente considerada a maior obra literária singular escrita em língua italiana. Poema épico de três grandes divisões - o Inferno, o Purgatório e o Paraíso - descreve a jornada imaginária de Dante, através do inferno e do tormento do pecado, para a montanha do purgatório, onde as almas lutam para aprender a virtude. Dali, Beatriz - em que Dante personificou a iluminação do outro mundo - conduz o poeta, através de nove céus, ao Empíreo, oniabrangente e ilimitado, onde lhe é consentida uma breve visão do próprio Deus:

Vindos do último corpóreo chegamos Ao Céu, que é luz sem corpo;

Luz intelectual repleta de amor; Amor da verdadeira felicidade, repleta de alegria Alegria, que transcende toda a doçura do deleite.

Na procura de palavras para transmitir a experiência do infinito, Dante se vale de imagens religiosas vívidas - derivadas, por certo, de fontes medievais cristãs, mas talvez também do folclore zoroastriano e islâmico, com os quais elas mantêm estreita semelhança. A descrição de Dante de uma jornada ao Paraíso foi, como mostrou Howard R. Patch em The Other World According to Descriptions in Medieval Literature (1950), uma reformulação magistral do que foi provavelmente o tema mais difundido na literatura e no folclore europeu da pré-Renascença. No romance, na alegoria e nos tratados didáticos, a imaginação medieval tentou, reiteradamente, descrever um jardim de delícias terreno ou do outro mundo, cheio de fontes e árvores carregadas de frutos, pássaros de canto suave, e

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pavilhões adornados de flores, cristais e jóias. A realização de Dante não se restringe ao seu poder de expressão literária, mas se estende também à sua capacidade de penetrar o âmago do anseio que lhe inundava o mundo. Ao fazê-Io, criou um poema que, aos olhos de quase todos os críticos literários dos três últimos séculos só encontrou igual depois do aparecimento do Paraíso perdido de Milton.

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O plano do monte do Purgatório de Dant Em sua obra suprema, o brilhante poeta inglês John Milton (1608-1674) colocou diante de si o problema do mal: por que, se existe, e é benevolente, permite Deus a tortura e a destruição da humanidade pela guerra, pela doença e pela fome? A resposta de Milton sumariava a visão espiritual da cristandade protestante. A humanidade sofre em razão de uma perversidade inata, originária do primeiro casal. Adão e Eva foram criados perfeitos e deu-se-Ihes uma liberdade cuja amplitude nenhum ser humano conheceu depois disso.

Não havia então a vergonha culpada, a vergonha desonesta... Assim passavam nus, sem evitar a vista

De Deus ou de anjo, pois não cogitavam no mal: Assim passava, de mãos dadas, o mais lindo par

Que desde então se encontrou nos abraços do amor, Adão, o mais belo dentre os homens desde então nascidos,

Seus filhos, a mais bela de suas filhas, Eva. Entretanto, nossos primeiros pais optaram pela ciência e pela morte, em lugar da obediência e da vida. Foi apenas uma punição apropriada privá-Ios Deus então da liberdade e expulsá-Ios do Jardim para morrerem num mundo que a sua própria transgressão tornara hostil. A futilidade e a tristeza da humanidade presente, aliás inexplicável num mundo criado por um Deus de misericórdia, são o resultado do crime original. Desejos maus atormentam os seres humanos por dentro, e a Natureza, que não perdoa, os ataca por fora. Todavia, com um procedimento sóbrio, integridade no viver, e a graça de Deus, os humanos podem esperar, de novo, atingir a liberdade de espírito e a perfeição da alma - embora apenas individualmente e em grau limitado. O impacto do poema de Milton sobre a literatura inglesa foi comparável ao impacto do poema de Dante sobre a italiana. Entre

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1700 e 1800, publicou-se o Paraíso perdido mais de cem vezes; em cqmpensação, no mesmo período, as obras de Shakespeare apareceram apenas em 50 edições. O próprio Milton sentia estar escrevendo - ou melhor, ditando, visto que cegara quando o poema foi composto - por inspiração direta. À qualidade dessa visão interior deve talvez o Paraíso perdido a sua continuada influência. Não muito depois da morte de Milton, um popular pregador batista, chamado John Bunyan (1628-1688), reformulou a busca do Paraíso na linguagem da Inglaterra puritana. O livro de Bunyan, The Pilgrim's Progress from This World to That Whitch Is to Come, era um retrato alegórico de sua própria jornada íntima, que começou na infância, como filho dissoluto de um latoeiro do interior, e abrangeu sua dramática conversão religiosa, seu sucesso como ministro, lutando como soldado do lado dos parlamentaristas na guerra civil, e sua prisão fInal - circunstância que Bunyan usou vantajosamente para escrever a sua obra-prima, a qual, no seu tempo, alcançou uma popularidade que só perdia para a da Bíblia. O principal personagem do romance é Cristiano simbolicamente o próprio Bunyan - que, no começo da história, se encontra carregado de pecados. Conhece um homem chamado Evangelist, que insta com ele para que deixe a Cidade da Destruição e parta em busca de uma luz distante, que o guiará para a Porta do Postigo, onde terá início a sua jornada. Obstinado e Flexível tentam demovê-Io de seguir esse caminho, mas os seus argumentos não surtem efeito. Flexível até se oferece para juntar-se a Cristiano, e, no caminho, caem os dois, no Charco do Desânimo, do qual escapam com dificuldade. Cristiano continua a encontra empecilhos criados por personagens como os senhores Feiticeiro Mundano (que vive na cidade de Esperteza Carnal), Legalidade, Civilidade, Simplório, Preguiçoso, Presunção, Formalista e Hipocrisia. Precisa escalar o Morro da DifIculdade e atravessar os vales da Humilhação e da Sombra da Morte. Finalmente, chega às Montanhas Deleitáveis, mas ainda tem de cruzar o Rio da Morte, antes de chegar à sua meta - a

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Cidade Celestial. A descrição do Céu, feita por Bunyan, é, ela própria, uma fonte de imagens paradisíacas: Construída de pérolas e pedras preciosas, suas ruas eram pavimentadas de ouro; de modo que, em razão da glória natural da Cidade, e dos raios do sol, que nela se refletiam, Cristiano se sentiu doente de desejo. Quando se aproximaram da Cidade, Cristiano e seu companheiro Esperançoso, toparam com "homens brilhantes" e deixaram para trás seus "trajes mortais". Vocês vão indo agora, disseram eles, para o paraíso de Deus, no qual verão árvore da Vida, e comerão dos frutos dela, que nunca murcham: e, quando chegarem lá, ser-lhes-ão dados mantos brancos, e os seus passeios e discursos serão todos os dias com o Rei, até todos os dias da eternidade. ... Naquele lugar vocês usarão coroas de ouro, e fruirão da vista e da visão perpétuas do Santo: pois ali "o verão como ele é". Os séculos XVIII e XIX viram a literatura afastar-se das imagens notoriamente bíblicas e seguir as descrições mais realistas e psicologicamente penetrantes da condição humana. Durante esse período, que abarcou a Idade da Razão e o aparecimento da escola romântica, registraram-se poucas tentativas de pintar o Paraíso diretamente. Em vez disso, os escritores lutaram com o problema universal do mal e a busca heróica do amor, da felicidade e da justiça. Essas tendências, exemplificadas nas obras de Defoe, Dickens e Melville, chegaram ao fim da visão do mundo paradisíaco nas obras do romancista russo Fiódor Dostoiévski. Dostoiévski, cujos estudos, em obras de ficção, da mente e do espírito humanos influenciaram não só a psicologia profunda mas também a fIlosofia existencial, teve uma vida desafortunada e cheia de lutas mesmo depois de ter chegado à sua própria marca não ortodoxa e mística de Cristianismo, quando ainda não completara quarenta anos

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de idade. Em seu conto "O sonho de um homem ridículo", trouxe à vida o mito do Paraíso como talvez nenhum outro autor moderno o tenha feito. O narrador da história está à beira do suicídio quando adormece numa poltrona e sonha haver dado um tiro na cabeça. Em lugar de experimentar dor, seguida do esquecimento, surpreende-se a presenciar as próprias exéquias e sepultamento. Do túmulo, é transportado por algum "ser escuro e desconhecido", através do espaço, para outro mundo, geograficamente parecido com a Terra, mas muito diferente em outros sentidos: De repente, praticamente sem notar como, vi-me nessa outra terra, à luz brilhante de um dia de sol, bela como o paraíso. ... Fulgia a relva com flores brilhantes e fragrantes. Os pássaros voavam em bandos pelo ar, e vinham empoleirar-se, destemerosos, nos meus ombros e braços, e batiam alegremente em mim com as bonitas asas palpitantes. E, finalmente, vi e conheci o povo dessa terra feliz. As pessoas vieram a mim espontaneamente, cercaram-me, beijaram-me. Os filhos do sol, os filhos do seu sol - oh, como eram belosl Eu nunca vira, em nossa própria terra, tanta beleza na humanidade. Somente talvez em nossos filhos, nos primeiros anos, se poderia encontrar um pálido e remoto reflexo dessa beleza. Os olhos dessa gente ditosa cintilavam com um brilho claro. Tinham o rosto radiante com a luz da razão, e uma serenidade plena, que vem da compreensão perfeita; não obstante, eram rostos alegres; nas palavras e na voz soava uma nota de alegria infantil. Desde o primeiro momento, desde o primeiro olhar que Ihes dirigi, compreendi tudo! Era a terra não maculada pela Queda; nela viviam pessoas que não tinham pecado. Viviam num paraíso como aquele em que, segundo todas as lendas da espécie humana, viveram nossos primeiros pais antes de pecar. Dostoiévski continua descrevendo o modo de vida dos habitantes desse Paraíso do mundo dos sonhos:

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Eles não tinham, por exemplo, uma ciência como a nossa. Logo, porém, compreendi que o seu conhecimento era obtido e alimentado por intuições diferentes das nossas na terra, e que as suas aspirações também eram muito dessemelhantes. Não desejavam nada e estavam em paz; não aspiravam ao conhecimento da vida, como nós ambicionamos compreendê-Ia, porque suas vidas eram cheias. Mas o seu conhecimento era mais elevado e mais profundo do que o nosso; pois a nossa ciência procura explicar o que é a vida, almeja compreendê-Ia em ordem a ensinar os outros a viverem, ao passo que eles, sem ciência, sabiam viver; e isso compreendi, embora não pudesse compreender-Ihes o conhecimento. Mostraram-me as suas árvores, e não pude entender o amor intenso com que olhavam para elas, como se estivessem conversando com criaturas da mesma espécie. E talvez eu não esteja enganado se disser que conversavam com elas. Sim, tinham encontrado a linguagem das árvores, e estou convencido de que estas os compreendiam. Olhavam para toda a natureza dessa maneira - para os animais que viviam em paz com eles e não os atacavam, mas os amavam, vencidos pelo seu amor. Apontavam para as estrelas e diziam-me alguma coisa a respeito delas que eu não compreendia, mas estou persuadido de que, de um modo ou de outro, mantinham contato com as estrelas, não somente em pensamento, mas também por meio de algum canal vivo. Não havia brigas, nem inveja entre eles, e nem mesmo sabiam o que significavam essas palavras. Seus filhos eram os filhos de todos, pois todos formavam uma só família. Dificilmente aparecia alguma enfermidade, embora houvesse morte; mas os velhos morriam pacificamente, como se estivessem adormecendo, distribuindo bênçãos e sorrisos aos que os cercavam para receber-Ihes o último adeus, com sorrisos brilhantes e afetuosos. Nunca vi sofrimento nem lágrimas nessas ocasiões, apenas amor, que antingia o ponto do êxtase, porém de um êxtase calmo, tornado perfeito e contemplativo. Dir-se-ia até que eles estivessem ainda em contato com os falecidos depois da morte, que não lhes contara a união terrena. Escassamente me compreendiam quando eu Ihes fazia perguntas sobre a

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imortalidade, mas estavam, evidentemente, tão convictos dela, sem refletir no assunto, que isso, para eles, não era pergunta que se fizesse. Não tinham templos, mas uma vida real e um sentido ininterrupto de identidade com todo o universo. O protagonista de Dostoiévski, inadvertidamente, produz uma Queda apresentando a mentira, a vergonha, a guerra, o crime e a escravidão - bem como a ciência, que tão-somente permite ao povo racionalizar os novos males. O narrador, quase louco, vê os resultados da corrupção, e, arrependido, prega o perdão e a redenção. Sua fórmula para o retorno da Idade de Ouro acha-se sintetizada na Regra de Ouro: "... num dia, numa hora, tudo será estabelecido imediatamente. O principal é amar aos outros como você ama a si próprio. ... Logo em seguida, descobrirá o que deve fazer". Se a descrição de um Paraíso terreno pareceu, às vezes, ingênua a leitores adultos, sofisticados, modernos, nunca deixou de ser, apesar disso, um expediente essencial na literatura infantil. Pensamos imediatamente na Cidade das Esmeraldas em O mágico de Oz, a Terra do Nunca de Peter Pan, e nos animais falantes em Through the Looking Class. O super-homem, como o sabem os leitores de histórias em quadrinhos e todos os freqüentadores de cinema, foi mandado para a Terra ainda bebê pelos pais do planeta paradisíaco Krypton, que se achava prestes a ser engolido por um cataclisma. Disfarçado no jornalista de modos suaves Clark Kent, o herói emprega os seus poderes de vôo e a sua visão de raios X para derrotar as forças do mal em prol da "verdade, da justiça e do estilo de vida americano". Algumas obras de ficção arquetípica, se bem deixem de alcançar a grandeza na literatura, mercê de imperfeições na forma ou no estilo, logram ampla popularidade. Um dos romances que mais se venderam na década de 1930 foi Horizonte Perdido, de James Hilton (que Frank Capra transformou num clássico do cinema). O cenário da história é um Paraíso himalaico, remoto e isolado, chamado Xangrilá, criado no início do século XVIII por um frade capuchinho, que, pouco antes de morrer, deu com o Vale da Luz Azul. Horizonte Perdido é a história de

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um herói do século XX, o qual, com seu irmão e um avião carregado de ingleses e americanos sofisticados, é levado para a cidade escondida. Volvido algum tempo, Conway compreende que está sendo preparado para ser o sucessor do agora velho frade capuchinho, que ainda preside a comunidade. Ao invés de aceitar o encargo, Conway decide escapar com o irmão, para quem Xangrilá é o inferno na Terra. A história acaba com a luta de Conway para voltar ao Paraíso. Grande parte da literatura popular das últimas décadas assumiu a forma de ficção científica, gênero que oferece ilimitada extensão para o relato de temas míticos. As viagens pelo espaço podem ser vistas como nova expressão do anseio imortal de um Paraíso fora dos limites da existência mundana. Na ficção científica encontramos amiúde descrições de planetas paradisíacos ou de mundos destruídos por catástrofes, que se seguem a algum declínio moral. Exemplos notáveis aparecem nas obras de Frank Herbert (Cod Emperor of Dune) e Ursula Le Guin (The Dispossessed). Dentro da vasta e irregular coleção de escritos da ficção científica, algumas das obras mais bem escritas e mais mitologicamente penetrantes são os romances de Doris Lessing. Shikasta (1981) fala de um planeta edênico, Rohanda, que sucumbe à desobediência e à resultante Moléstia Degenerativa. Lessing sopra vida nova nas imagens do antigo Paraíso; sua descrição de Rohanda evoca visões de Stonehenge e das pirâmides quando eram novas. Assim como os druidas e egípcios antigos erguiam seus monumentos para misturar e mediar as forças do Céu e da Terra, os rohandanos usavam suas cidades geométricas e alinhamentos de pedra para manter contato constante com a fonte cósmica da ordem e do controle, a estrela Canopo. A força de Canopo era continuamente dirigida a Rohanda. As forças novas, cada vez mais aprofundadas, de Rohanda eram continuamente dirigidas de volta a Canopo. Em virtude desse preciso e perfeito intercâmbio de emanações, o principal objetivo e alvo da galáxia eram

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fomentados - a criação dos sempre envolventes Filhos e Filhas do Propósito. Rohanda, contudo, mercê de uma falha interna, transforma-se em Shikasta. "Para identificar-nos como indivíduos - esta é a verdadeira essência da Moléstia Degenerativa, e cada um de nós, no Império de Canopo, aprende a avaliar-se apenas na medida em que está em harmonia com o plano."

Sonhos de um Paraíso Terreno A ficção transforma-se gradualmente em não-ficção. Durante milênios, pessoas de todas as culturas presumiram que, em alguma região geograficamente remota, existia realmente um sítio de beleza, paz e abundância, à espera de ser descoberto e explorado. Muitos autores gregos primitivos especializaram-se no gênero da narrativa fantástica do viajante: desde as viagens dos argonautas em busca do Velocino de Ouro, até as descrições de Hecateu e Diodoro Siculo dos hiperbóreos - raça que vivia num estado de Idade de Ouro num lugar "além do vento do norte" - os leitores se regalavam com histórias de jornadas a terras mágicas. Algumas eram relatos exagerados de expedições reais, em que se romanceava a existência primitiva de povos tribais como uma sobrevivência da Raça de Ouro de Hesíodo. Em outros casos, as histórias eram inteiramente fictícias - como, por exemplo, a descrição de Diodoro da viagem de lambulo a uma "ilha feliz" no sul, onde as pessoas, altas e belas, têm ossos de borracha e língua bífida, que lhes permite manter duas conversações ao mesmo tempo. Tais histórias de um Paraíso terreno ainda existente não são, de maneira alguma, um fenômeno exclusivo da cultura ocidental. Já notamos a lenda tibetana de Xambala, a qual, conforme a crença popular, está escondida num vale remoto nos Himalaias. Certos textos budistas afirmam conter instruções para ir ao reino perdido, enquanto outros descrevem o modo de vida e a forma de governo desse reino

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com pormenores complicados. De acordo com uma lenda, Xambala desmaterializou-se há muito tempo, quando todos os seus habitantes se tornaram iluminados, mas os reis Rigden de Xambala mantêm vigilância sobre o mundo e voltarão num momento estratégico para salvar o gênero humano da destruição. Estudiosos modernos dividem-se entre a crença de que Xambala é completamente mística, e a opinião de que ela corresponde a um dos reinos historicamente documentados da Ásia central. Algumas culturas tribais acreditam igualmente na existência continuada de um Paraíso terreno. As tribos guaranis do Brasil, por exemplo, lembram-se de um mundo anterior, totalmente destruído, e esperam que o mundo atual seja consumido num futuro próximo. Algumas tribos prevêem o fim pelo dilúvio, outras pelo fogo raivoso, outras ainda pela treva prolongada ou por monstros. Com essa expectativa em mente, algum tempo antes da chegada dos portugueses, os guaranis se puseram a migrar em busca da Terra-sem-Mal, na esperança de encontrá-Ia antes que chegasse a destruição. Essa meta mágica, "a terra onde a gente se esconde", é o único lugar seguro: uma terra sem medo, sem fome, sem doenças, sem morte. A Terra-sem-Mal, acreditam os guaranis, é difícil de alcançar, mas está seguramente localizada neste mundo. Em todo o transcorrer da Idade Média e avançando bem pela Idade das Descobertas, a maioria dos europeus confiava em que o bíblico Jardim do Éden ainda existia fisicamente. As autoridades debatiam a sua localização com todo o ardor. Santo Agostinho afiançava que ele ficava no topo de uma grande montanha, que quase encosta na Lua, e era, portanto, inacessível aos mortais. São Basílio escreveu, entusiasmado, sobre a pátria sagrada, elevada à "terceira região do ar" e cheia de todas as vistas e sons aprazíveis que se podem imaginar, onde o clima é uniformemente agradável, as flores sempre florescem, e as águas irrompem em fontes de cristal. Toda a Natureza goza de juventude e alegria perpétuas, e nada decai nem morre. Santo Ambrósio, cujos escritos no século IV obtiveram grande

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popularidade, compôs igualmente rapsódias a respeito do verdor e da beleza do Jardim ainda existente. Destarte, no século XV - quando as técnicas de navegação e construção de navios principiaram a ensejar viagens por mar cada vez mais longas, e os interesses econômicos e políticos entraram a fazer pressão no sentido de se descobrirem novas rotas comerciais - os exploradores tinham mais do que a economia em mente ao darem de velas para os confins da Terra. O maior dos descobridores, Cristóvão Colombo, estava aparentemente familiarizado com os escritos de Basílio e Ambrósio, e, consoante suas próprias declarações, em-preendeu as viagens mais por motivos religiosos do que por algum propósito econômico ou científico. Além disso, acreditava que as ilhas que descobriu estavam muito próximas das portas do Éden. Obcecava-o a profecia de Mateus 24:14, que diz: "E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações. Então virá o fim." Em seu Livro das profecias, escreveu que a conquista do novo continente e a conversão dos pagãos seriam os penúltimos acontecimentos conducentes à destruição do Anti-cristo e ao fim do mundo. Nesse drama apocalíptico, assumiu para si um papel não menor: "Deus me fez mensageiro do novo céu e da nova terra." Colombo disse ao Príncipe João que a localização do Paraíso lhe fora revelada, em cumprimento das profecias de Isaías: "Ele me mostrou o lugar onde encontrá-Io." A confusão entre o continente recém-descoberto e o Paraíso terreno não terminou com Colombo. Por toda a Europa fluiu uma profunda corrente de anseio pela renovação do cristianismo, e os decobrimentos do outro lado do Atlântico alimentaram a esperança de que um renascimento espiritual, longamente ambicionado, talvez fosse produzido pela migração ao Éden. Ulrich Hugwald, humanista utópico do século XVI, profetizou que, após a colonização da América, a humanidade retoraria "a Cristo, à Natureza, ao Paraíso" - a um estado sem guerra, sem escassez e sem luxo. Enquanto os exploradores católicos de Espanha e Portugal procuravam subjugar os "índios" pagãos, no cumprimento de profecias

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bíblicas, os representantes da Reforma protestante exultavam na crença de terem descoberto a terra prometida, onde a reforma da Igreja poderia ser completada e aperfeiçoada. Divulgou-se nas colônias a doutrina para ser o lugar do Segundo Advento de Cristo. O Milênio traria consigo uma transformação física do mundo. Como declarou o puritano Increase Mather, presidente da Harvard University entre 1685 e 1701: "Quando este reino de Cristo tiver enchido toda a terra, a terra será devolvida ao seu estado paradisíaco." Os primeiros colonos europeus, e as hordas de imigrantes que lhes sucederam jornadearam para o Novo Mundo na expectativa de recomeçar ali a vida, encontrar um novo começo. Tudo na América era considerado maior, mais forte e mais belo do que qualquer outra coisa no Velho Mundo decadente, não raro comparado ao Inferno. Os colonos consideravam-se o povo eleito, e a sua volta à simplicidade era um triunfo moral. "Quanto mais cultos e inteligentes vocês forem", escreveu Cotton Mather, "tanto mais prontos estarão para trabalhar por Satanás." A América proporcionava uma fuga da opressão e da extravagância da aristocracia européia, e uma oportunidade de retorno ao cristianismo purificado. Os colonos viam na inferioridade das suas roupas e da sua cultura, em confronto com as dos europeus, um sinal de superioridade moral. A fronteira, o mais rude e primitivo de todos os lugares, era, correspondentemente, o mais paradisíaco: as vastas florestas, os espaços abertos e a simplicidade tosca da vida dos pioneiros eram postos em contraste com os vícios demoníacos do ambiente urbano. O movimento evangelizador começou na fronteira e espalhou-se na direção do Leste, carregando consigo a convicção de que as iniqüidades urbanas, de origem européia, tinham causado o declínio do cristianismo; somente o regresso ao vigor e à simplicidade da "religião de antigamente" poderia ressuscitar o modo de vida edênico, moral, feliz. Muitos pioneiros americanos consideravam o industrialismo um mal europeu. Entretanto, outro modo de ver as coisas foi, aos poucos, ganhando preeminência: em vez de ameaçar a esperança de lograr

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um Paraíso terreno, as forças combinadas do capitalismo e da invenção científica passaram a ser vistas como garantia do seu cumprimento. Assim, no século XIX, a idéia de um progresso sem fim tornou-se uma espécie de religião por si mesma, que prometia o alcançamento final de uma Idade de Ouro, de lazer e riqueza para todos. O livro de J. A. Eltizer, de 1842, The Paradise within the Reach of All Men, by Power of Nature and Machinery expressava o novo sonho ianque - um modo de vida aperfeiçoado pela automação - numa linguagem que todo americano pudesse compreender. Entrementes, os filósofos e poetas americanos proporcionavam uma vazão mais sublime para os seus anseios adâmicoso Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau clamavam pelo retorno à inocência, que seria levado a cabo por um descartar-se das empoeiradas tradições espirituais e intelectuais da Europa, em favor de uma percepção renovada e imediata do universal e do sagrado. Walt Whitman, que se referia a si mesmo como "cantor dos cânticos adâmicos", declarou: "Divino sou, por dentro e por fora, e torno sagrado tudo o que toco." O passado estava morto, e à humanidade fora concedido um novo começo, um segundo primórdio no Paraíso da América. Na geração seguinte, entretanto, o Novo Mundo já estava chegando ao fim da fronteira, já começava a lutar contra as próprias instituições revolucionárias. Enquanto o sonho americano continuaria vivendo no século XX, seria agora seguido de perto pela suspeita de que o Paraíso, mais uma vez, lhe escapara das mãos.

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Peaceable Kingdom with Seated Lion, de Edward Hicks (1833-1834). Hicks, artista primitive Americano, pintava com freqüência asituação paradisiacal descrita em Isaías 11: “e o leopardo se deitará junto ao cabrito; o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e um pequenino os guiará”. Hiks encarava o tratado de William Penn com os índios como um evento que pressagiava o Milênio, visto por

ele como a volta ao “reino pacífico”

Utopia: O Paraíso Feito de Encomenda

Em suas tentativas de organizar os seus negócios coletivos, os seres humanos pãrecem cair sob a influência de dois impulsos psicológicos contrários. Um deles é o anseio do Paraíso - o anseio de um estado

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de felicidade, propósito e harmonia individuais e coletivos. Quando atinge um estado de excitação anormal, essa compulsão leva as pessoas à revolução, à reforma, a ousados experimentos sociais. O outro impulso é o desejo de estabilidade, poder e dominação. Quando se lhe dão rédeas largas, o segundo impulso parece resultar inevitavelmente em alguma espécie de despotismo. A maior parte da história pode ser vista como uma série de oscilações entre períodos de dominância relativa de um ou do outro impulso. E, às vezes - como foi o caso da França em 1793 e da Rússia em 1917 - as oscilações podem ser tão rápidas e violentas que se justificam o totalitarismo e a mortandade indiscriminada, em nome do amor e da fraternidade universais. Admite-se, de ordinário, que algumas formas de governo são inerentemente paradisíacas ou idealistas, ao passo que outras são inerentemente opressoras. Talvez fosse mais razoado sugerir que se pode descobrir a influência dos dois impulsos, o visionário e o burocrático, em todas as formas de ordem social. A monarquia, por exemplo, originou-se do modo de comemorar o reinado do Rei do Mundo da Idade de Ouro, e o monarca benevolente foi considerado o conduto das forças da vida. Mas, naturalmente, nas mãos de um autocrata megalomaníaco, a instituição da monarquia servirá, em vez disso, às forças da morte e da opressão. A democracia também teve primórdios idealistas como meio de realizar a liberdade e a igualdade sociais. De acordo com o ideal democrático, a natureza humana é fundamentalmente digna de confiança e, em lhe sendo dada a oportunidade, a maioria das pessoas tomará, coletivamente, decisões sábias e justas. Numa democracia, contudo, haverá sempre o perigo de que a nação tenda, moral e intelectualmente, para o seu mais baixo denominador comum, levando ao domínio de interesses especiais poderosos e de astutos demagogos. Mostra a história que na fase primeira, idealística, de uma ordem social, o impulso visionário tende a predominar. A promessa do Paraíso incendeia as emoções das massas, inspirando-as, não raro, a um profundo sacrifício pessoal. Mais cedo ou mais tarde, no entanto,

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um grupo qualquer encontra um modo de manipular o idealismo paradisíaco em favor dos seus próprios interesses. Os que estão no poder procuram, então, instilar no povo o medo de perder o que quer que lhe pareça ter ganho do Paraíso. A cupidez e o medo conduzem à corrupção e à burocracia, as quais, em seus extremos, semeiam os germes de outra evangelização visionária. Destarte, se desejarmos isolar e examinar o impulso paradisíaco na psique social, talvez o façamos melhor examinando as premissas idealistas que geram novas ordens sociais. E não existe nenhum meio mais instrutivo ou econômico de fazê-Io do que levar a cabo um estudo histórico dos sonhos e visões utópicas. A crença de que os seres humanos podem construir uma sociedade perfeita, se Ihes forem dadas previsão e indústria suficientes, tem preocupado pensadores desde os tempos dos gregos antigos. Em sua República, esboçou Platão a visão de um estado ideal governado por reis-filósofos, com a proteção militar de uma classe de guardiães. Seria uma república comunista, com todas as propriedades partilhadas, sem dar importância ao status do nascimento. Na República, o comunismo estende-se até ao casamento, sendo as esposas e os filhos mantidos em comum. Tudo é ordenado racionalmente, pela lei. Se se pode dizer que o tipo de sociedade concebido por Platão pressagia o nacional-socialismo, outra República anterior - escrita pelo filósofo estóico grego Zenão - prefigurava o anarquismo moderno, advogando a abolição do estado. Ensinava Zenão que as instituções humanas geram a indolência e a corrupção, e que o maior bem advém da cultivação, pelo indivíduo, da força de caráter. Se as pessoas viverem de acordo com os ditames do próprio sentido inato de razão e integridade, tudo correrá suavemente, sem necessidade de exércitos, governos ou leis. Platão e Zenão representavam, assim, os dois pólos do pensamento utópico - de um lado, a crença de que o Paraíso pode ser alcançado através de uma ordem social imposta; de outro, a crença de que a assunção da responsabilidade individual absoluta

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resultará num estado final de paz e consecução. Historicamente, a maior quantidade de utopistas seguiu Platão. A palavra utopia (do grego, com o significado duplo de "lugar bom" e de "nenhum lugar") foi cunhada por Thomas More (1478-1535) para título da sua narrativa fictícia sobre um estado imaginário em que a vida social é governada por princípios semelhantes aos advogados por Platão. O texto de Utopia foi escrito como se fosse o relato de um marinheiro português, Rafael Hythlodaye, que fizera três viagens ao Novo Mundo com Américo Vespúcio. Embora Hythlodaye faça referência a várias terras selvagens inexploradas, a peça central da narrativa é a descrição da ilha de Utopia, fundada pelo rei Utopos. A ilha contém cinqüenta e quatro cidades bem planejadas, cuja população se mantém constante, e onde as colheitas são controladas, a comida é distribuída livremente, o dinheiro e os ornamentos são desdenhados, toda a gente trabalha seis horas por dia, e a educação é compulsória. Escolhem-se os governantes no meio da classe instruída, pelo voto secreto, e as leis são tão poucas e tão simples que os advogados são desnecessários. O modo utópico de vida, no dizer de More: Proporciona não somente a base mais feliz para uma comunidade civilizada, mas também para uma comunidade que, com todas as probabilidades humanas, durará para sempre. Essa comunidade eliminou totalmente as causas primárias da ambição, do conflito político e de todas as coisas parecidas. Não há, portanto, perigo de dissensões internas, que destruíram tantas cidades inexpugnáveis. E enquanto houver unidade e boa administração em casa, por mais invejosos que se sintam os reis vizinhos, nunca poderão abalar, e muito menos destruir, o poder de Utopia. À diferença da República de Platão, a comunidade perfeita de More é descrita como se já existisse. A implicação é clara: a utopia será realizável se as pessoas quiserem fazê-Ia assim.

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Se bem a Utopia de More não pareça tão paradisíaca aos leitores modernos - afinal de contas, qual é a vantagem de um dia de trabalho de seis horas, perguntaríamos nós, quando a escravidão é permitida, o lazer é rigorosamente regulado e a veda-se às pessoas reunirem-se para discutir política? - foi considerada visionária em seu próprio tempo. Durante a Idade Média, toda a hierarquia social, do rei ao servo, era havida por divinamente ordenada e imutável. Após o aparecimento de Utopia, a teoria política abriu-se novamente àdiscussão. As pessoas entraram a perguntar se a desigualdade, a opressão e a pobreza eram, com efeito, parte do plano inescrutável de Deus, ou se podiam ser, ao invés disso, simples conseqüências da estupidez, da cobiça e do descaso humanos. Talvez a aplicação da razão e do engenho possibilitasse a criação, se não do Paraíso, pelo menos de uma nova ordem social, em que toda a gente viveria em melhores condições. Depois de More, proliferaram as fantasias e propostas utópicas. A não concluída Nova Atlântida de Francis Bacon (1627) foi uma tentativa de acrescentar tecnologia às atrações da utopia. Na ilha imaginária de Bensalem, a ciência é aplicada à natureza por uma sociedade douta denominada Casa de Salomão (segundo a qual foi mais tarde modelada a British Royal Society), e invenções como aviões, submarinos, rádio "e telefone fazem da ilha um sítio de tranqüilidade e fartura. É na comunidde ideal de Bacon que vemos a primeira expres-são da idéia moderna do progresso científico e tecnológico como o caminho do Paraíso. Por volta do fim do século XVIII, o sistema feudal desmoronara em quase toda a Europa, para ser substituído pelo capitalismo sem freios, que trouxe o seu conjunto único de oportunidades e males. A necessidade econômica forçava os camponeses a deixarem os campos e dirigirem-se para as cidades povoadas, onde competiam pelo aborrecido trabalho nas fábricas. Foi nesse contexto que o Conde Henri de Saint-Simon (1760-1825) estabeleceu as bases do socialismo com os seus escritos, que atacavam o individualismo sem peias. Como alternativa do laissez-faire econômico, ele propôs uma

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nova administração industrial. À semelhança de Bacon, Saint-Simon via a salvação no advento da ciência e da tecnologia e advogava o governo dos peritos científicos. A sociedade utópica futura funcionaria como imensa oficina, da qual o estado - como instituição coerciva - seria virtualmente eliminado. Karl Marx e Friedrich Engels, pais do comunismo, apropriaram-se das idéias de luta de classes de Saint-Simon e desenvolveram-nas. Chamaram às idéias de Saint-Simon socialismo utópico, para distingui-Ias do seu próprio socialismo científico, que tinha por base uma interpretação estritamente material da história. Sem embargo disso, o comunismo era claramente utópico em suas metas: Marx predizia que a luta entre proletários (a classe operária) e os que lhes impunham tarefas no moderno estado industrial redundaria, finalmente, na formação de uma sociedade socialista, em que os produtores associados cooperariam uns com os outros, livres de restrições econômicas e sociais. Dessa maneira, não somente a luta de classes, mas também a tirania da história seriam, ao cabo de contas, levadas a um fim. No fim da crítica que fez aos escritos do socialista Eugen Düring, Engels esboça a sua visão de como será a sociedade futura aperfeiçoada. O valor monetário já não terá conexão alguma com a distribuição dos bens, e a economia será coordenada pelo plano de produção; a divisão do trabalho desaparecerá com a "supressão do caráter capitalista da indústria moderna". Com fábricas localizadas em todo o país, a oposição entre os interesses urbanos e rurais se dissolverá, em benefício da indústria e da agricultura. No fim do processo, o próprio estado será abolido e a religião definhará. Como assinalou Bertrand Russel, o marxismo, a despeito do seu ateísmo dogmático, foi modelado pelo padrão messiânico da história. Nos escritos de Marx, o papel redentor do “justo", do "ungido" e do "inocente" dos escritos escatológicos cristãos é assumido pelo proletariado, cujos sofrimentos mudam o mundo. Marx prediz uma luta final entre o bem e o mal - personificados pelo proletariado e pelos capitalistas, respectivamente - análoga à do início do Milênio. No

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cânon comunista, o Paraíso é uma sociedade sem classes, na qual a maior parte do trabalho e feita por máquinas, e todos os bens são havidos em comum. No princípio do século XX, o número de propostas e fantasias utópicas, que se achavam no prelo, chegava às centenas, com a maioria dos escritores discutindo pormenorizadamente as idéias comunistas e tecnocráticas remontáveis a Platão, More e Bacon. Um tema que apareceu mais de uma vez foi o da engenharia biológica da raça humana, que se transformaria numa raça de patrícios sábios, talentosos e incorruptíveis. Outros teóricos identificaram o Paraíso com a cidade ideal, um Éden cosmopolita, que seria alcançado através de um projeto e uma engenharia iluminados. Mas todo esse entusiasmo pelas possibilidades da tecnologia como salvadora da humanidade provocou violenta reação contrária. Alguns autores começaram estudando a forma literária da contra-utopia. Exemplo notável disso foi o 1984 de George Orwell (publicado em 1948), em que toda a humanidade se consome sob o poder do derradeiro estado totalitário. Era a futura sociedade tecnológica - em que até a reprodução humana era supervisionada por máquinas e cientistas - realmente uma visão do Céu, ou seria, ao contrário, o próprio Inferno na Terra? De um modo ou de outro, o problema estendeu-se a todos os planos utópicos já concebidos: o Paradiso de uma pessoa é o Inferno de outra.

O Poder do Exemplo Enquanto alguns utopistas tentaram modificar a sociedade, através de uma revolução, de um plebiscito, ou de uma reforma, outros optaram pelo caminho tranqüilo de construir o modelo de uma comunidade ideal na esperança de influenciar o resto do mundo pelo exemplo. Distanciando-se da sociedade, esses experimentadores abriram para si mesmos a possibilidade de perseguir ideais muito mais radicais do que os que qualquer nação moderna poderia ser persuadida a aceitar voluntariamente. Ao passo que muitas comunidades buscaram uma

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experiência religiosa partilhada, através da contemplação e da meditação, outras se arvoraram em defensoras da igualdade dos sexos e das cores, e da abolição da propriedade privada ou das instituições da monogamia e do casamento. Ao mesmo tempo que algumas tentaram atingir um modo de vida mais natural por intermédio do nudismo ou do vegetarianismo, outras deram ênfase à não-violência ou ao desenvolvimento do caráter pelo trabalho e pela escrupulosa habilidade do artífice. De um modo ou de outro, explícita ou implicitamente, cada uma dessas experiências procurou realizar algum aspecto da visão arquetípica do Paraíso. Um dos primeiros experimentos sociais comunais de que se tem conhecimento foi a comunidade pitagórica, estabelecida no século VI a.C., em Crotona, no calcanhar da bota italiana. Além de ser um instituto de educação e uma academia de ciências, a escola de Pitágoras era uma cidadezinha-modelo, governada pelo Conselho dos Trezentos, uma espécie de ordem política, científica e religiosa, composta de iniciados, e cujo chefe reconhecido era o próprio Pitágoras. A, Ordem Pitagórica, que tinha por meta a iniciação de uma nova Idade de Ouro, de sabedoria e paz, foi tão bem-sucedida em governar que logrou o controle de quase todas as colônias gregas ocidentais. Onde quer que aparecessem Pitágoras e suas sociedades, a ordem e a concórdia se seguiam. Entretanto, por volta do ano 500 a.C., um homem chamado Cilão, expulso da escola de Crotona, organizou uma malta a cujas mãos morreram Pitágoras e quarenta líderes da Ordem. A própria Ordem sobreviveu por mais dois séculos antes de desaparecer. Mais ou menos na mesma época, na Índia, Gautama Buda e seus discípulos - os quais, por ocasião de sua morte, perfaziam o total de 1.200, de ambos os sexos e de todas as castas - estavam criando uma espécie de aldeia nômade utópica. Na estação chuvosa, permaneciam num lugar, ouvindo as palestras de Gautama e estudando, mas, no resto do ano, seguiam o mestre em suas viagens. O propósito de Buda e dos seus seguidores, no dizer de Nasaru, era "produzir em todo homem uma transformação interna completa pela

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autocultura e pela vitória sobre si mesmo". Se o Buda pudesse ser qualificado de utópico, pertenceria, claramente, à escola de Zenão. Após a morte do Buda, a comunidade continuou e formou a base do monarquismo budista. Os monges budistas foram os grandes civilizadores da China e do sudeste da Ásia: dirigiram o povo na transformação de regiões incultas em arrozais, na produção da arte, e no desenvolvimento da medicina, da ciência e da educação. Os essênios, irmandade religiosa que floresceu na Palestina por volta do século II a.C., até o fim do primeiro século d.C., tinham todas as propriedades em comum, faziam refeições juntos, em silêncio, e levavam vidas ascéticas de pureza ritualística, fora da sociedade. Como os pitagóricos, os essênios só admitiam os que se haviam qualificado mediante um processo de iniciação. O seu estilo de vida comunal foi exemplo para o de mosteiros cristãos ulteriores, o primeiro dos quais fundado pelo asceta Pacômio, da Tabaida. A partir do começo do século V, surgiram mosteiros por toda a Cristandade. Com o declínio do império romano, surgiram crises sociais de todo o gênero; paradoxalmente, embora fosse responsável pela destruição e supressão do antigo conhecimento espiritual e científico, a Igreja, de vez em quando, atuava também como preservadora. No mosteiro medieval, escreviam-se e copiavam-se livros, desenvolviam-se e mantinham-se ofícios e inventavam-se novas tecnologias. Os monges abriam escolas, distribuíam comida aos pobres e mercadejavam. Toda essa atividade era uma articulação do anseio do Paraíso: assim como os jardins murados dos monges se destinavam a relembrar o Jardim do Éden original, as catedrais e suas torres, que eles ajudavam a construir, destinavam-se a encarnar uma visão da celestial Cidade da Revelação.

A América Utópica Como já vimos, desde o tempo do seu descobrimento, e durante o período da sua colonização, a América foi objeto dos anelos paradisíacos de todo o mundo ocidental. Foi também a sede de vários

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experimentos comunais, em sua maioria de natureza religiosa, como as comunidades de Bruderhof - os menonistas e suas derivações subseqüentes, os huteritas e amish - e os quacres, os shakers e os mórmons. Todos esses grupos davam valor ao trabalho aturado e à simplicidade do estilo de vida. Ao passo que alguns floresciam apenas por alguns decênios, outros continuam a existir. Os amish da Pensilvânia, por exemplo, evitam a tecnologia agrícola moderna, com seus equipamentos caros e suas substâncias químicas, e, apesar disso, figuram entre os lavradores mais bem-sucedidos da América. Mas nem todas as comunidades experimentais americanas tinham base religiosa. No correr do século XIX, muitas das mais de 150 comunidades cooperativas, fundadas na América, foram tentativas de provar as teorias sociais dos teóricos utópicos europeus Robert Owen e Charles Fourier. Em seu livro A New View of Society, or Essays on the Principle of the Formation of the Human Character, o socialista britânico Owen enunciou a teoria de que o caráter é formado por influências ambientais desde os primeiros anos da infância. Uma sociedade perfeita, por conseguinte, deve começar com uma educação esclarecida. Owen advogava a subordinação das máquinas ao homem e o estabelecimento de aldeias de "unidade e cooperação", de cerca de 1.200 pessoas cada uma, em que a competição seria eliminada e as pessoas estariam livres para aprimorar-se física, mental e moralmente. Em 1825, Owen veio para a América com o propósito de pôr à prova suas teorias. Adquiriu o local de um experimento comunal anterior, Harmonie (comunidade religiosa fundada em 1815 por George Rapp), que lhe chegou às mãos completo, com uma cidade de 160 casas, um forno de tijolos refratários, e moinhos, vinhedos, e fábricas. Owen dirigiu-se então ao Congresso dos Estados Unidos, descrevendo suas teorias de reforma educacional e industrial e abrindo a comunidade de New Harmony a membros em perspectiva. Estes acudiram às centenas. Posto que os respondentes ao apelo de Owen formassem um grupo heterogêneo - consiste em idealistas e estudiosos, com não

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poucos fanáticos, mandriões e trapaceiros - a vida em New Harmony, durante algum tempo, foi idílica. Concertos, danças, discussões e conferências animavam o tempo de lazer dos habitantes. Um poema owenita expressava-lhes a visão paradisíaca partilhada:

Ah, logo virá o dia glorioso, Inscrito no cenho da Misericórdia, Quando a verdade rasgará o véu

Que agora cega as nações.

O rosto do homem aprenderá a sabedoria, E o erro cessará de reinar.

Voltarão os encantos da inocência, E tudo será novo outra vez.

Não tardou, contudo, que a comunidade sucumbisse a desavenças sobre as formas de decidir e o papel da religião. Conquanto as controvérsias se mantivessem num espírito "admirável", Owen retirou-se em 1828, tendo investido e perdido quase todos os seus bens. New Harmony só existira durante dois anos, mas, durante esse tempo, produzira o primeiro kindergarten, a primeira escola de comércio, à primeira biblioteca pública gratuita e a primeira escola pública sustentada pela comunidade nos Estados Unidos. Os cientistas que Owen trouxera da Europa - que haviam sofrido perseguições da Igreja em seus países natais e ambicionavam juntar-se ao experimento - trouxeram os primórdios de geologia, botânica, zoologia e química para a América. Nas décadas de 1840 e 1850, mais de duas dúzias de comunidades se instalaram nos Estados Unidos e no Canadá para pôr em execução as idéias do visionário social francês Charles Fourier. Fourier era um escritor prolífico, que tinha a capacidade de fazer as propostas mais chocantes parecerem plausíveis e até obrigatórias. Profetizou, por exemplo, que, quando a libertação da paixão humana finalmente unir o mundo numa ordem harmoniosa e não-coerciva, os oceanos se

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transformarão em limonada e os animais selvagens se transmudarão magicamente em antileões e antitigres, que servirão à humanidade. Fourier elaborou planos de comunidades-modelo em que o trabalho do escravo seria abolido e as pessoas seriam livres para desenvolver os seus talentos; poderiam, por exemplo, trabalhar em jardins de manhã e cantar na ópera à noite. Entre as experiências fourieristas inclui-se a Brook Farm em Massachusetts. Fundada em 1841 por um grupo de intelectuais e idealistas, dirigido pelo reverendo George Ripley, a comunidade, a princípio, foi um simples exercício em que se combinavam a educação e a indústria. Sua escola procurava preparar estudantes para a faculdade, oferecendo, ao mesmo tempo, empregos e experiência agrícola, ao lado de operários especializados. Ripley conseguiu atrair algumas das melhores cabeças da Nova Inglaterra como membros ou associados; entre elas se contavam Ralph Waldo Emerson, Bronson Alcott, Margaret Fuller e Nathaniel Hawthorne. Na maior parte dos cinco anos de sua existência, Brook Farm foi provavelmente a comunidade mais inteligente e esclarecida da Nova Inglaterra, assim como a mais feliz. À medida, porém, que Ripley a voltava cada vez mais para o fourierismo doutrinário, muitos dos seus apoiadores transcendentalistas recuaram. Em 1846 um incêndio destruiu a principal sala de reuniões, cuja construção já comprometera os recursos financeiros disponíveis. Os credores começaram a ficar impacientes, os residentes se foram e, passados alguns meses, a comunidade simplesmente se dissolveu. Os membros da Comunidade Oneida, iniciada no Estado de Nova Iorque em 1848 por John Humphrey Noyes, denominavam-se "perfeccionistas", acreditando que o verdadeiro socialismo nunca poderia ser logrado sem religião. Consideravam o egoísmo e a inveja os males maiores e a propriedade e as responsabilidades comuns o jeito de extirpar a exclusividade. O princípio estendia-se ao próprio casamento. Ensinavam que a dedicação a um único esposo gerava a possessividade. Como alternativa, a comunidade desenvolveu um sistema de "casamento complexo", que lembrava algumas propostas

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de Platão na República. As palavras de uma canção de Oneida expressavam o sentido de comunalidade completa que lhes impregnava as atividades:

Construímos um edifício senhorial para nós Em nossa formosa plantação

E todos temos um lar E uma só relação de família

Por deferência ao sentimento público, o casamento complexo foi desativado em 1879, e a comunidade deixou de perfilhar a filosofia perfeccionista. Incorporada a uma sociedade anônima em 1880, a Oneida ainda opera como indústria bem-sucedida.

O Novo Espírito Comunal O início do século XX assistiu a um intervalo na formação de comunidades alternativas. Os preços das terras, mais elevados na primeira década, tornaram tais experiências mais difíceis de organizar. Depois veio a Primeira Guerra Mundial, seguida pela década cínica e hedonista de 1920. Na de 1840, quando Emerson escreveu que "não há homem de cultura que não tenha o esboço de uma nova comunidade no bolso do colete", parecia haver muito espaço e muito tempo para a experimentação individualista. Agora a atenção do público se fixara nos problemas e oportunidades da sociedade como um todo - a Grande Depressão, a marcha da tecnologia e os horrores de outra guerra mundial. Com a década de 1960, porém, veio o maior desabrochar de experimentos sociais visionários da história. Muitos, produtos da contracultura das drogas-e-revolução, formaram-se com pouca previsão séria. Alguns eram puras cooperativas econômicas, ao passo que outros provinham de uma filosofia espiritual universalista, cuja linhagem poderia ser seguida até o transcendentalismo de Emerson e os primeiros dias de Brook Farm.

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Uma das primeiras - e, sem dúvida, uma das mais altamente divulgadas - dentre as novas comunidades não foi iniciada na América, mas em Findhorn, na Escócia, em 1963. Inspirada inicialmente na orientação espiritualista recebida pelos fundadores, Peter e Eileen Caddy, localizou-se a comunidade num parque de caravanas, arenoso e desagradável, fora de uma pequena aldeia costeira. Após vários anos de mera sobrevivência, o grupo original de três adultos e duas crianças começou tentando estabelecer comunicação com os espíritos locais da Natureza. Logo depois, o seu jardim estava produzindo vegetais gigantescos, celebrados em artigos de jornais e revistas e num livro popular, The Magic of Findhom, de Paul Hawken. Os buscadores espirituais afluíram a Findhorn, vindos de todas as partes do mundo, logo se descreveu a comunidade como a capital da cultura New Age planetária. Os que acudiram a Findhorn no princípio da década de 1970 levaram muito idealismo, mas nem sempre o mesmo compromisso ou disposição para perseverar. Os subseqüentes e crescentes sofrimentos da comunidade acarretaram mudanças na chefia, bem como desilusão para muitos dos que tinham acorrido atraídos pelas narrativas romantizadas da imprensa. Pouco a pouco, no entanto, ocorreu um processo natural de triagem e, hoje, Findhorn é estável e próspera. Seguindo o exemplo de Findhorn, surgiu uma pletora de comunidades hippies e da New Age, a maioria localizada na América do Norte, mas algumas também na Europa, Austrália e Nova Zelândia. A maior foi The Farm, baseada na filosofia zen rural de Stephen Gaskin, antigo professor universitário de Los Angeles que, em 1973, Ievou a sua classe noturna das segundas-feiras para um passeio permanente pelo campo até o Tennessee. Viajando em velhos ônibus escolares, pintados com emblemas psicodélicos, os cabeludos peregrinos paravam em cidades e vilas ao longo do caminho. Ali, em reuniões improvisadas no campo, Gaskin falava, músicos tocavam e jarros de chá de peiote eram passados aos ouvintes.

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Quando chegaram à nesga de terra que haviam adquiri do perto de Summertown, no Tennessee, os californianos cujas fileiras estavam agora inchadas pelos hippies entusiásticos que se tinham juntado à caravana ao longo do caminhocomeçaram a erguer uma aldeia, que incluía instalações apropriadas à impressão e à distribuição dos livros de Gaskin. The Farm, que logo se gabou de contar com uma população de 1.100 habitantes, encetou também um programa fora dos limites da aldeia, que incluía uma banda excursionista de rock-and-roll, e turmas de socorro em casos de desastres, enviadas à Guatemala e à Cidade de Nova Iorque. Nos últimos anos, a população de The Farm decresceu consideravelmente, e hoje orça por 200 a 300 almas. Uma das mais férteis dentre as comunidades espirituais experimentais do século XX é a Sunrise Ranch, fundada em 1945 por Lloyd Meeker (1908-1954), visionário que possuía modesta educação formal mas uma riqueza de experiência em motivar e inspirar pessoas. Meeker, que usava o pseudônimo de Uranda, experimentou uma dramática transformação pessoal em 1932, que, mais tarde, descreveu como a dissolução de sua personalidade humana, gerada hereditária e ambientalmente, e a revelação de uma fonte interna transcendente de conhecimento absoluto. Passou os doze anos seguintes viajando de um lado para outro da América do Norte, espalhando a sua mensagem de renovação espiritual e juntando seguidores numa associação conhecida pelo nome de Emissários da Luz Divina. Percebendo a utilidade potencial de uma instalação permanente, onde pudessem dar expressão prática à sua visão, Uranda e seu nucleozinho de associados, em 1945, compraram uma fazenda desolada, abandonada, perto de Loveland, no Colorado. O seu propósito expresso era plantar a semente do Éden restaurado. A comunidade de Sunrise Ranch recebeu escassa atenção pública e, em razão disso, cresceu lenta, mas solidamente. Com o passar dos anos, os Emissários fundaram onze comunidades-irmãs na América do Norte, Europa, Austrália e na África. Hoje, Sunrise Ranch tem uma população estável de 150 pessoas, que vivem numa propriedade

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milagrosamente revitalizada, quartel-general das organizações internacionais consagradas à demonstração de princípios espirituais na agricultura, educação, negócios, saúde e nas artes da comunicação. Recentemente, a revista Newsweek calculou que existem atualmente umas 3.000 comunidades cooperativas intencionais nos Estados Unidos. Extrapolando os estudos estatísticos dos experimentos comunais passados, podemos predizer com segurança que a maioria das experiências atuais não persistirá por mais de um a três anos antes de dissolver-se. Se o bom êxito de uma comunidade tiver de ser medido simplesmente pela longevidade, a vasta maioria acabará sendo considerada um fracasso. Entretanto, a dissolução de uma comunidade, como entidade, pode não significar malogro para os indivíduos nela envolvidos. O esforço para criar e manter uma comunidade intencional, nem que seja por uns poucos anos, traz consigo uma espécie de experiência, inatingível no ambiente urbano ordinário. Na melhor das hipóteses, a vida comunal oferece a oportunidade de íntima associação com uns poucos amigos que compartem de um compromisso de viver sempre segundo a sua visão mais elevada. O que faz algumas comunidades florescer e outras dissolver-se? Há umas poucas questões essenciais que surgem, inevitavelmente, em todo grupo comunal - questões de chefia e de tomada de decisões, de divisão do trabalho, e de distribuição dos bens materiais - cuja resolução requer um compromisso vigente da parte dos egos de todas as pessoas envolvidas. As comunidades que sobrevivem por mais tempo são aquelas cujos membros, de um modo ou de outro, transcendem as próprias necessidades e os próprios medos pelo bem de todos. Na grande maioria dos casos, a motivação deles surge de uma visão paradisíaca compartilhada e um sentido compartilhado do sagrado. Todo estudo sociológico de comunidades cooperativas chega essencialmente à mesma conclusão: quando a visão morre, morre a comunidade.

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Seja qual for a maneira por que meçamos os seus sucessos individuais, as comunidades intencionais terão, em todo o caso, proporcionado laboratórios para o descobrimento e a busca pioneira de um modo paradisíaco de vida, e beneficiaram o conjunto da sociedade de um sem-número de modos. Desde os pitagóricos e o seu profundo efeito sobre a filosofia grega e a teoria política à comunidade de seguidores do Buda e a propagação do seu modo pacífico e contemplativo de vida por toda a Ásia, às vezes estufas culturais dos mosteiros medievos, à influência dos fourieristas e owenistas da América do século XIX sobre o desenvolvimento das instituições públicas, às comunas da Idade Nova do presente, as comunidades experimentais têm sido uma força histórica tranqüila, mas potente, e exercido uma influência sobre a civilização inteiramente desproporcional ao número de pessoas envolvidas. Vimos o quanto é penetrante e profunda a memória de uma Idade de Ouro; vimos também o quanto é compelente a visão do seu retorno. Temos ainda, todavia, de penetrar o âmago desses sonhos arquetípicos. A imagem estereotipada do Paraíso é um foco perene de anseios humanos. Mas, de onde ela vem? E o que significa?

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Capítulo 8 O Paraíso como História

Eles não têm roupas de lã, nem de linho, nem de algodão, porque não precisam de roupa alguma. Também não têm bens particulares; todas

as coisas são em comum. Vivem juntos sem Rei, sem Imperador e cada qual é Senhor de si mesmo. ... Além disso, não têm Igrejas e não

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obedecem a nenhuma lei, e, no entanto, não são idólatras. Que posso dizer, senão que eles vivem de acordo com a natureza?

Américo Vespúcio Deparam-se-nos alguns fatos extraordinários. Encontramos virtualmente em toda cultura da Terra um mito que conta o modo com que a humanidade apareceu num tempo de paz, felicidade e poder milagroso e, mercê de algum erro ou falha, degenerou e chegou à sua condição atual. Além disso, quase todas as tribos e nações veneram os ditos de algum antigo profeta, que predisse que o mundo humano corrupto será um dia consumido num cataclisma purificador, a fim de abrir caminho para uma Idade de Ouro renovada. E, como se as similaridades de todos esses mitos e profecias antigas já não fossem assaz notáveis, surge diante de nós o fato adicional de que grande parte da maior literatura da nossa civilização e muitas de suas mais inspiradoras teorias e experiências sociais parecem tirar vitalidade e fascínio das memórias e visões misteriosas do Paraíso. Mas qual o significado dessas histórias? São elas, com efeito - como dão a entender que o são - rememo rações e predições de acontecimentos históricos, ou são, em vez disso, alegorias que descrevem algum sutil processo espiritual ou psicológico? Está claro que não somos os primeiros a meditar sobre a origem e o sentido dos mitos e profecias universais do Paraíso e, assim, podemos agora analisar as opiniões de estudiosos e cientistas que nos precederam. Não tentaremos fazer aqui um estudo exaustivo, senão familiarizar-nos com as principais avenidas de interpretação que foram abertas, pelos séculos afora, por teólogos, psicólogos, mitólogos e arqueólogos. Neste capítulo, investigaremos o possível conteúdo histórico dos mitos através das investigações de arqueólogos e antropólogos. No capítulo seguinte, examinaremos algumas das principais interpretações alegóricas aplicadas à história do Paraíso. Em seguida, tendo um conhecimento prático assim dos mitos como do que os outros

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disseram sobre eles, estaremos em condições de examinar o Paraíso de uma perspectiva aberta recentemente por novas e ainda controvertidas descobertas a respeito das fronteiras da consciência humana.

Aconteceu Realmente? Seria a história sagrada uma história fatual? Houve uma verdadeira Idade de Ouro, houve uma Queda, e as catástrofes globais ocorreram dentro da esfera da memória humana? Na Primeira Parte analisamos certo tipo de evidência - a da mitologia comparada - a qual, em virtude da sua coerência peculiar de cultura para cultura, sugere, pelo menos, a possibilidade de um Paraíso histórico. Mas poucos de nós baseamos nossas idéias do passado na mitologia. Que outra evidência existe, e o que nos conta ela? Talvez a melhor maneira de provar a realidade da Ida de de Ouro seja desvelar a evidência arqueológica inequívo ca - ruínas de cidades de cristal, com ruas de ouro juncadas de restos de deusas e deuses, cujos corpos, milagrosamente preservados, ainda desprendem lampejos de luz. Não manterei o leitor na expectativa: não se descobriram cidades assim. Mas que podemos realisticamente esperar encontrar? O que os arqueólogos já acharam? Os seus descobrimentos descartam ou sustentam uma interpretação paradisíaca da história? Embora os artefatos físicos sejam importantes como evidência, não são os únicos vestígios não-mitológicos de uma Idade de Ouro que podemos esperar descobrir. É possível investigar também a existência de artefatos culturais. Poderiam sobreviver, em qualquer cultura do mundo, aspectos de um modo de vida original, paradisíaco? Sugerem, acaso, os estudos antropológicos de sociedades "primitivas" , por exemplo, que elas, de certo modo, são remanescentes de um Éden pré-histórico? Toda investigação da relação entre o mito e a história abre um campo de idéias a um só tempo sagradas e seculares a respeito do passado

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para serem reavaliadas, de sorte que o assunto que estamos examinando é sensível e controvertido. De todos os campos da ciência, a paleoantropologia - estudo do que eram os seres humanos no passado distante - é talvez o mais especulativo. Os gêneros de dados crus que temos à mão podem, quase sempre, ser interpretados de várias maneiras diferentes. Portanto, em nosso estudo da evidência de um Paraíso histórico, levaremos em conta tantas opiniões divergentes quanto possível. E embora comecemos com um olhar dirigido ao que os arqueólogos mais tradicionais dizem sobre a possibilidade de uma Idade de Ouro passada, levaremos em conta outrossim opiniões que, encaradas do ponto de vista do atual consenso científico, são rematadas heresias.

A Arqueologia Bíblica Os arqueólogos relutam geralmente em fazer uso de fontes míticas como guia da pesquisa. Entretanto, graças à sua imensa popularidade, uma peça da literatura antiga - a Bíblia - revelou-se uma exceção a essa regra não escrita. Arqueólogos bíblicos de meia dúzia de países vêm fazendo escavações por todo o Oriente Próximo há mais de um século, e muitos achados significativos têm resultado das suas investigações o descobrimento dos muros de Jericó, a escavação das cavalariças de Salomão em Megido e a descoberta dos textos de Nag Hammadi e dos rolos do Mar Morto, para citarmos apenas alguns. Esses achados confirmaram repetidamente a historicidade dos eventos e personagens, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. De acordo com o especialista em Bíblia de Harvard, William F. Albright: "A arqueologia... corroborou finalmente a tradição bíblica de maneira não incerta." Uma vez que os arqueólogos investigaram quase todos os sítios nomeados na Bíblia, poder-se-ia esperar que a primeira localização geográfica mencionada no Gênesis - o jardim do Éden - fornecesse descobertas importantes. Não é esse o caso, porém, e não é difícil ver por que os arqueólogos voltam de mãos vazias. Afinal de contas, que deveriam eles procurar? Não há

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nada no Gênesis que nos autorize a presumir que Adão e Eva deixaram para trás paredes, cerâmica, ou até alguns instrumentos. A recuperação de artefatos edênicos está quase totalmente fora de cogitação; o mais que podemos esperar fazer é localizar o próprio sítio com base em qualquer indício proporcionado pelo Gênesis. Mas até isso é problemático. Descreve-se a situação geográfica do jardim apenas em função de quatro rios:

E saía um rio do Éden para regar o jardim, repartindo-se em quatro braços. O primeiro chama-se Pisom; é o que rodeia a terra de Havilá, onde há ouro. O ouro dessa terra é bom; também se encontram lá o

bdélio e a pedra de ônix. O segundo rio chama-se Giom; é o que circunda a terra de Cuxe. O nome do terceiro é Hiddekel; é o que

corre pelo oriente da Assíria. E o quarto é o Eufrates (Gênesis 2:10-14)

Três dos nomes desses rios são pouco familiares. O Hiddekel é usualmente interpretado como sendo o Tigre, e o Giom, que "circunda a terra de Cuxe", tem sido freqüentemente atribuído ao Nilo. O historiador judeu Flávio Josefo, do século I d.C., entendia que o quarto rio, o Pisom, era o Ganges. Nesse caso, o Éden teria abarcado toda a região que vai da África oriental ao meio da Ásia. Mas a identificação do Giom não deixa de apresentar dificuldades - por exemplo, os tradutores da versão autorizada parecem ter-se equivocado ao traduzir o hebreu Kush (Cuxe) por "Etiópia". Em resultado disso, estudiosos subseqüentes entenderam que só o Tigre (Hiddekel) e o Eufrates tinham identificação certa, o que deixou as identidades de Giom e Pisom no escuro. Apesar disso, durante todo o último século, pululam as teorias. No início do século XX, a maioria dos estudiosos pusera de lado o problema de localizar os rios do Éden e, em lugar disso, concentrou-se na análise do próprio texto bíblico, ajudada pelo descobrimento e tradução de documentos sumerianos e acádicos. Como vimos no Capítulo 3, muitos estudiosos liberais da Bíblia adotaram a teoria de

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que a história do Éden derivou de uma fonte mesopotâmia, talvez dos textos do Dilmun dos sumerianos. Esse ponto de vista foi fortalecido à proporção que se descobriram paralelos mais e mais numerosos entre a literatura bíblica e a sumeriana. À semelhança dos antigos hebreus, os sumerianos falavam da emergência do mundo de um mar primevo; da criação de seres humanos a partir do barro; de um Dilúvio universal; da rivalidade entre dois irmãos primordiais; e de uma torre erguida para o céu, cuja destruição ocasionou a dispersão da humanidade. Dessa maneira, enquanto as similaridades entre o Éden hebraico e o Dilmun sumeriano eram contestáveis, muitos eruditos simplesmente presumiram que, localizando Dilmun, encontrariam o Éden também. Mas a própria identificação de Dilmun era um problema: enquanto alguns pesquisadores proclamavam havê-Io descoberto em Bahrein, ou na costa ocidental do Golfo Pérsico, outras autoridades sugeriram áreas tão afastadas quanto o Paquistão e a Índia. Em resumo, a equiparação tentada entre o Éden e Dilmun não resolveu coisa alguma. Recentemente, contudo, a passagem do Gênesis que descreve os quatro rios do Éden inspirou outra série de especulações e pesquisas. Em 1980, depois de uma década de trabalhos de campo na Arábia Saudita, o arqueólogo Juris Zarins, da Universidade do Sudoeste do Estado de Missouri, decidiu consagrar-se ao velho problema de localizar o jardim original. Zarins começou com o relato textual, e depois se familiarizou com a geologia e a hidrologia do Oriente Próximo e com os padrões de linguagem dos antigos habitantes. Mas o seu indício crucial viria da tecnologia da era espacial: imagens da exploração via satélite mostram que o Tigre e o Eufrates foram outrora encontrados por dois outros rios, um dos quais está hoje represado, e o outro é um leito seco. Além disso, o vale em que os rios se encontravam era antigamente rico em bdélio, uma goma-resina aromática, e ouro, que ainda estava sendo extraído até a década de 1950. Como já vimos, essas duas substâncias são mencionadas no Gênesis. Estribado na nova evidência, Zarins concluiu que o Éden era uma área relativamente pequena, ao sul do lugar em que os quatro

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rios se encontram, região agora coberta pela ponta do Golfo Pérsico. Concordam os paleontologistas em que, por volta de 5000-6000 a.C., a Mesopotâmia meridional era o sonho de um forrageador. Embora a região houvesse sido anteriormente árida, ocorriam nela agora chuvas copiosas e abundante vida vegetal e animal. A agricultura tinha sido I desenvolvida havia, pelo menos, dois milênios, e povoamentos estavam aparecendo no vale. À medida que o clima mudou, e as pessoas abriram a migrar para a região, deve ter surgido a competição entre os agricultores e os caçadores-colhedores pela terra fértil. Zarins formula uma teoria segundo a qual o mito do Éden apareceu naquela era de competição e mudança: "Toda a história do jardim do Éden... poderia ter sido vista como representando o ponto de vista dos caçadores-colhedores.” Foi o resultado da tensão entre os dois grupos, a colisão das duas maneiras de vida. Herdeiros de uma liberalidade natural, Adão e Eva tinham tudo o que precisavam. Mas pecaram e foram expulsos. Como pecaram? Desafiando a própria onipotência de Deus. Ao fazê-Io, representavam os agricultores, novos ricos que insistiam em assumir o comando das coisas, contando com os seus conhecimentos e com as próprias habilidades, em vez de contarem com a Sua liberalidade. Na história do Éden encontramos Adão e Eva nus e destituídos de vergonha, comendo os frutos das árvores. Será preciso estender ou torcer pouco a história para lê-Ia como descrição da vida dos primitivos forrageadores. Afinal de contas, só depois da Queda Deus mandou Adão lavrar a terra. O autor do trecho parece estar-nos dizendo que os seres humanos eram inocentes e felizes enquanto viviam simplesmente da liberalidade da natureza. Depois que começaram a comer o fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal - depois que começaram a submeter os ciclos da natureza em seu próprio benefício - a inocência se perdeu. Só então o casal original simbólico compreendeu a sua nudez e foi expulso do Paraíso.

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De Forrageadores e Agricultores A idéia de que se pode considerar edênica a vida pré-agrícola parece estranha primeiro para os que cresceram crentes na desejabilidade e na inevitabilidade do progresso tecnológico. Nós, no mundo civilizado, aprendemos a pensar que a agricultura foi o maior avanço na sociedade humana pré-histórica: libertando os seres humanos da dependência de uma fonte incerta de alimentos, possibilitou o desenvolvimento das artes e das ciências. A nossa imagem estereotipada dos forrageadores primitivos é de bandos de selvagens, semimortos de fome, geralmente exaustos pela procura de raízes e bagas, caçando animais selvagens, empenhados em excursões sanguinárias periódicas pelos campos uns dos outros, e vivendo em supersticioso terror das forças naturais, caprichosas e misteriosas, que lhes controlavam a vida. Ao invés disso, os mitos retratavam a existência do Primeiro Povo como supremamente feliz. O que mais surpreende é que as descobertas recentes de antropólogos e arqueólogos tendam a sustentar a visão primitivista em lugar da visão progressivista. Não só em virtude dos estudos arqueológicos de sítios antigos, mas também dos estudos etnológicos de povos colhedores-e-caçadores (como os boximanes da África e os aborígines da Austrália), os pesquisadores estão achando que a agricultura pode ter sido, como diz o fisiologista Jared Diamond: "o pior erro da história da raça humana". Vemos a prova em que se fundou essa afirmação nos estudos comparativos da dieta e da nutrição, por exemplo. A maioria das sociedades agrícolas tende a adotar a dieta baseada numa relativa pouquidade de alimentos - geralmente, duas ou três colheitas de grãos feculentos que, por si sós, não proporcionam variedade nem equlíbrio suficientes de substâncias nutrientes. Os forrageadores, por outro lado, sabem como obter ampla variedade de alimentos. Os boximanes Kung do Deserto de Kalahari, por exemplo, consomem, mais ou menos, umas setenta e cinco plantas selvagens diferentes; os aborígines da região de Cape York, na Austrália, há umas poucas

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gerações, conheciam, pelo menos, 140 espécies edíveis. Os paleopatologistas, que estudam evidências de moléstias em restos humanos pré-históricos, descobriram que os esqueletos de antigos caçadores-colhedores tendem a ser maiores e mais robustos e a exibir menor número de sinais de moléstia degenerativa e decadência de dentes de que os dos agricultores subseqüentes. Igualmente, no que tange à questão do trabalho e tempo de lazer, a agricultura pode ter sido um passo dado para trás. Como assinalou o antropólogo Marshall Sahlins, da Universidade de Michigan, em seu Stone Age Economics, e como o antropólogo Marvin Harris confirmou em seu Cannibals and Kings: The Origins of Cultures, os colhedores-caçadores só dedicam de doze a vinte horas por semana à obtenção de comida. O resto do tempo é gasto com a família e os amigos, a arte, a música e a narração de histórias. O antropólogo australiano Max Charlesworth escreve que: Embora, do ponto de vista tecnológico e material, a cultura aborígine seja de extrema simplicidade, religiosa e espiritualmente é de extrema complexidade e sutileza. Com efeito, provou-se que os aborígines escolhem deliberadamente uma tecnologia e um estilo de vida econômica simples, de modo que possam voltar-se à elaboração de uma vida social e religiosa rica e intricada. Além disso, entre as atividades dos povos primitivos podemos imaginar que o trabalho - o forragear e o caçar tendem a ser considerados como sagrados e altamente aprazíveis, e são cercados pelo espírito de aventura. De fato, entre muitas tribos é difícil encontrar alguma idéia indígena que corresponda ao nosso conceito civilizado de "trabalho". Escreve o antropólogo Elman R. Service: Pensamos num tempo de trabalhar e num tempo de folgar, e, [queixamo-nos] da falta de tempo para todo o lazer e descanso que desejamos. Em todas as comunidades primitivas que visitei, o tempo

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de trabalho se mistura com o de folga ou, melhor, ninguém distingue realmente [entre] os dois. Visto que dificilmente poderemos dizer que a agricultura libertou os seres humanos do trabalho desnecessário, tampouco se poderá dizer que ela foi responsável pelo florescimento das artes. Se o tempo de lazer é a chave da alta cultura, os forrageadores deveriam ter tido tempo suficiente para edificar catedrais e escrever sinfonias, se o tivessem querido. Mas a chave de formas mais complexas de expressão artística não é, na verdade, tanto o tempo de lazer quanto uma organização social esmerada. É impossível imaginar um Beethoven, por exemplo, sem um piano, uma orquestra sinfônica, e um editor sem uma impressora; ora, todas essas coisas são produtos da civilização industrial. Não é desarrazoado supor, portanto, que tenha havido Beethovens e Tolstois aborígines, que deram contribuições significativas para as suas culturas, mas de maneiras que o mundo civilizado ainda não pode apreciar: os seus esforços e consecuções não foram preservados por meio da escrita ou do artefato, mas, em compensação, foram tecidos numa tradição oral. As tradições orais dos povos tribais são ricas e complexas, e revelam, não raro, profunda compreensão das operações da Natureza e da mente humana. Até agora, os antropólogos só compreenderam os aspectos superficiais dessas tradições, atrapalhados pelas diferenças de linguagem e dos estilos de pensar. Os nomes dos fundadores e modeladores dessas tradições orais tribais, na maioria dos casos, estão perdidos. A agricultura tornou a habitação em cidades e a estratificação social não apenas possível mas também, através da centralização da estocagem de alimentos e da divisão de trabalho, virtualmente necessária. De acordo com o pensar de Sahlins e Harris, as implicações dessa organização e especialização não são de todo em todo benéficas. Um dos resultados foi a criação de profundas divisões de classes. Aos poucos, tornou-se praticável a uns poucos indivíduos viverem dos alimentos tirados ou exigidos de outros a título de tributo.

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E com a diferenciação das classes e ocupações sociais veio uma perda da autonomia pessoal. À maneira que as pessoas se tornaram mais dependentes do trabalho alheio para o seu sustento, a sobrevivência do indivíduo passou a depender, cada vez mais, da sociedade como um todo. Outro resultado da introdução da agricultura foi o desenvolvimento do conceito de propriedade. Os povos primitivos têm dificuldade para compreender o sistema civilizado de propriedade da terra, visto que não são proprietários de terra; pelo contrário, a terra os "possui". Para esses povos, a terra não é tão-somente o solo ou as divisas territoriais, mas também os espíritos dos lugares sagrados, e dos animais e plantas associados a esses lugares. O povo é uma parte da terra e não pode imaginar-se alienado dela. Não tendo o conceito de propriedade, os povos tribais não praticam o comércio no sentido em que o praticam os povos civilizados. Os ganenses nativos, por exemplo, simplesmente dão, sem pensar no que poderão receber em troca; o ato de dar, por si só, traz honra. Uma atitude assim pode ser frustrante para missionários e antropólogos civilizados: o nativo que considera o dar natural é uma bênção para o doador, não se sente inclinado a dizer "obrigado". Entre os povos tribais estudados por antropólogos, não existe guerra no sentido mecanizado ou impessoal em que a conhecemos. Diz o antropólogo Stanley Diamond: "O contraste não está apenas no fator exponencial da tecnologia que multiplica um impulso humano homicida constante; na sociedade primitiva, tirar uma vida era uma ocasião; em nossa fase da civilização, tornou-se uma compulsão abstrata, ideológica. '“ O historiador cultural Lewis Mumford escreveu: O mais conspícuo nas escavações neolíticas é... a completa ausência de armas, embora não faltem instrumentos e potes. Essa evidência, se bem seja apenas negativa, está difundida. Entre os povos caçadores, como os boximanes, as pinturas de cavernas mais antigas não mostram representação alguma de lutas mortais, ao passo que

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pinturas ulteriores, contemporâneas da monarquia, mostrem cenas desse tipo. Confirmam a observação de Mumford os sítios de todos os continentes habitados. Conta-nos o arqueólogo W. J. Perry que é um erro, tão profundo quanto universal, pensar que os homens na fase de coleta de alimentos eram dados a lutar. ... Todos os fatos disponíveis que temos mostram que o estádio de coleta de alimentos da história há de ter sido um estádio de paz perfeita. Os estudos dos artefatos da idade paleolítica não revelam nenhum sinal definitivo de guerra humana. Em alguns povos tribais, essa inocência da guerra se manteve até tempos recentes. O explorador e escritor Sir Laurens Van der Post fala de uma tradição boximane africana, segundo a qual teria havido outrora uma guerra entre as suas tribos, uma guerra tão terrível que, finalmente, um homem foi morto. Os grupos de boximanes envolvidos ficaram tão envergonhados do que acontecera que traçaram uma linha no deserto e concordaram em nunca atravessá-Ia, porque se sentiam indignos de partilhar a companhia uns dos outros dali por diante. Em face dos estudos dirigidos ou citados por Sahlins, Diamond e Harris, só podemos concluir que as sociedades primitivas colhedoras de alimentos proporcionavam uma boa alimentação, numa comunidade estável e afetiva; relações de sustentação, multifacetadas, durante toda a vida; e o desfio de um envolvimento constante e direto com a natureza. Os caçadores-colhedores não somente exibiam, de um modo geral, boa saúde, grande sensibilidade estética e uma atitude amistosa e pacífica em relação aos outros, como também muitos antropólogos entendem que eles devem ter sido ecologistas intuitivos. Para citar apenas um exemplo, até há poucos decênios, os aborígines da Austrália ateavam fogo livremente no mato ao saírem em suas migrações sazonais - prática que os colonos europeus os obrigaram a abandonar. Agora, entretanto, os ecologistas australianos estão descobrindo que os fogos dos aborígines são essenciais à reprodução dos eucaliptos indígenas, cujas sementes só

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se abrem quando o calor é intenso. Todas essas qualidades dos pré-agricultores - sua saúde física e psicológica, a simplicidade da sua tecnologia e organização social e o seu íntimo relacionamento com o mundo natural - são reminiscências de descrições míticas do Primeiro Povo. Poderíamos indagar por que foi adotada a agricultura, em vista de suas desvantagens práticas e da resistência cultural e espiritual que ela deve ter evocado. Os pesquisadores só podem especular, como a agricultura alimenta maior número de pessoas - se bem que num nível mais pobre de nutrição -, talvez o crescimento não controlado da população, com a conseqüente oneração das fontes de alimentos, obrigasse certos grupos isolados a recorrer à lavoura. A ser assim, não podemos deixar de imaginar se a própria crise populacional primodial não poderia ter sido resultado de alguma desarmonia sutil entre a humanidade e o resto da Natureza. Podemos apenas tecer conjeturas sobre se não teria sido apenas uma alienação inicial assim da natureza que teria dado origem ao mito universal da Queda.

O Paraíso como Jardim Nem todos os comentadores que voltam os olhos para um Paraíso da Idade da Pedra concordam em que o crescimento da agricultura foi a ruína da humanidade. Em The Recovery of Culture, volume evocativamente belo publicado em 1949, o horticultor Henry Bailey Stevens elaborou uma teoria segundo a qual a Idade de Ouro foi um período de muitos milênios - que durou, mais ou menos, até 5.000 anos atrás, durante o qual os seres humanos viveram em paz e harmonia, alterando, cuidadosos, espécies selvagens de grãos e árvores frutíferas. Stevens citou descobrimentos arqueológicos que mostram que a guerra é uma invenção humana relativamente recente, e que, antes do período em que começaram a fazer armas, as pessoas estavam muito mais interessadas em arte, religião e na domesticação de plantas. Há milhares de anos, o trigo, o arroz, o painço, a cevada, a aveia e o milho, assim como a maçã, a banana, a

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laranja, a toranja, o limão, a azeitona, o figo, o morango, a tâmara, o abricó, a noz, a avelã e a amêndoa, tiveram o seu estado selvagem dramaticamente modificado, e as pessoas que levaram a efeito esses milagres de transformação no início do período neolítico devem ter sido horticultores de primeira ordem. De acordo com Stevens, a Queda não veio com a invenção da agricultura, mas com a invasão de pastores nômades, cuja vida era dedicada ao trato e a alimentação de animais de corte. "Os povos que tomaram o poder das mãos dos pacíficos horticultores eram guardadores de rebanhos e manadas", escreveu Stevens. "Isso significava lã, couros e leite. Também significava carne. O homem entrara nos negócios como açougueiro." Stevens afirma que foi a criação de animais que fez a diferença. Enquanto os caçava, o homem não passava de outro animal de rapina - parte do equilíbrio natural que mantinha a vida animal sob controle. Mas quando criava e protegia vastas manadas de gado, atirava uma carga intolerável sobre os recursos da terra, que vem pagando, com a guerra, desde então. A tese de Stevens recentemente recebeu apoio - e uma mudança feminina de ênfase - da obra da douta ativista Riane Eisler, cujo livro The Chalice and the Blade [O cálice e a espada] pressupõe 20.000 anos de parceiragem entre homens e mulheres numa sociedade primariamente hortícula. Como Stevens, Eisler toma por base dos seus argumentos descobrimentos arqueológicos na Europa e no Oriente Médio, que põem em cheque suposições mantidas por muito tempo. A nova evidência, que se tem acumulado desde os primeiros decênios deste século, mostra que, muito antes do surgimento da cultura sumeriana na Mesopotâmia, havia gente em cidades instaladas por toda a Velha Europa (do Egeu e do Adriático ao sul da Polônia e ao oeste da Ucrânia) que praticava a agricultura, trabalhava o metal e empregava uma escrita simples para a maioria dos propósitos religiosos. Diz Eisler: "Sabemos agora que não houve um

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só berço da civilização, mas diversos, todos os quais datam de milênios antes do que previamente se conhecia - até o neolítico." Assim como no tempo de Colombo, o descobrimento de que a terra não é plana tornou possível o encontro de um surpreendente mundo novo que lá estivera o tempo todo, os descobrimentos arqueológicos - derivados do que o arqueólogo britânico James Melaart cognomina de verdadeira revolução arqueológica - abrem o mundo pasmoso do nosso passado oculto. Revelam um longo período de paz e prosperidade, quando a nossa evolução social, tecnológica e cultural se dirigia para cima: muitos milhares de anos, quando todas as tecnologias básicas, sobre as quais se construiu a civilização, foram desenvolvidas em sociedades que não eram dominadas pelo macho, violentas e hierárquicas. Naqueles dias, segundo Eisler, as relações humanas se baseavam na paz, na cooperação e na assistência mútua. Em Catal Huyuk, no que é hoje a Turquia oriental, os murais e esculturas do maior povoamento neolítico já escavado não contêm cenas de lutas nem de guerras; fortificações e armas militares também estão ausentes. De idêntica maneira, conforme C. C. McCown, as escavações neolíticas em Teleilat el-Ghassul, no Vale do Jordão, não apresenta "provas de que o lugar possuía algum sistema de defesa". Além disso, tais povoamentos não mostram sinais de dominação masculina - os túmulos, por exemplo, de mulheres e homens eram aproximadamente iguais no tamanho e nas provisões - e existem poucos sinais da rígida e hierárquica estrutura social que caracterizou as civilizações subseqüentes na Mesopotâmia. Escreve Eisler: "O que encontramos em toda a parte - nos santuários e nas casas, nas pinturas de paredes, nos motivos decorativos em vasos, nas esculturas, nas estatuetas roliças de barro e nos baixos-relevos - é uma rica coleção de símbolos da natureza." Os motivos decorativos retratam o Sol, a água, as serpentes, e as borboletas, e, escreve Eisler, "em toda a parte... imagens da Deusa". As ruínas mais dramáticas desse período

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pacífico e criativo foram, provavelmente, as achadas na ilha de Creta. Ali, durante o período minóico - aproximadamente, 4000-1500 a.C., segundo a maioria dos historiadores - "pela derradeira vez na história registrada, um espírito de harmonia entre mulheres e homens, como participantes alegres e iguais da vida, parece ter prevalecido". Em seu apogeu, a Creta minóica tinha uma cultura altamente desenvolvida, com escrita, governo centralizado e cidades que ostentavam viadutos, ruas pavimentadas, canos de água, fontes, reservatórios, palácios, pátios e jardins. A civilização aqui não parece ter trazido consigo governos autocráticos nem profundas divisões de classes. "Até entre as classes dirigentes a ambição parece ter sido desconhecida; em parte alguma se nos depara o nome de um autor preso a uma obra-de-arte, nem o registro dos feitos de um soberano." Entretanto, em Creta - ou alhures, durante toda a Antiga Cultura - principiaram a ocorrer mudanças catastróficas há cerca de 5.000 anos. Ao mesmo tempo que as catástrofes da natureza (uma seqüência de terremotos e ondas gigantescas, provocadas por maremotos), invasores do norte assolaram as cidades e vilas indefesas da ilha e puseram fim, de repente, à vida pacífica dos habitantes. Os recém-chegados eram tribos de pastores nômades, cuja vida se passava na criação e matança de animais e numa guerra quase constante. Na Índia, os invasores eram conhecidos por arianos; e na Grécia, aqueus e dórios. "A única coisa que todos tinham em comum", de acordo com Eisler, "era um modelo dominador de organização social: um sistema social em que a dominação masculina, a violência masculina e uma estrutura social geralmente hierárquica e autoritária constituía a norma." Com a invasão dos pastores, a evolução humana sofreu uma "regressão maciça", afirma Eisler. Haverá, sem dúvida alguma, os que sustentarão que, por se haver registrado na pré-história a mudança de uma associação para um modelo dominador de sociedade, este deve ter sido adaptável. Entretanto, o argumento de que, por ter acontecido na evolução,

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alguma coisa era adaptável não se sustenta - como a extinção dos dinossauros evidencia amplamente. Tudo aquilo de que nos lembramos como história humana, no dizer de Eisler, esgotou-se no contexto de modelos sociais e psicológicos tragicamente deturpados, que se formaram num ponto crucial decisivo, quando a catástrofe e a invasão puseram fim à pacífica Idade de Ouro da associação entre mulheres e homens, e entre a humanidade e a natureza.

O Paraíso Paleolítico Eisler e Stevens são de opinião que a Idade de Ouro continuou até cerca de 5.000 anos atrás (e, segundo Eisler, em Creta até 3.500 anos atrás). Sahlins, Harris e Diamond diriam que o Paraíso terminou com a invenção da agricultura por volta de 10.000 anos atrás, mas que algumas tribos primitivas persistiram no estado "de ouro" até o presente. O estudo comparado da mitologia apresenta um fato importante, que nos obriga a reconsiderar ambas as opiniões. Como já vimos, os mitos do Paraíso não se restringem aos povos agrícolas; tribos de colhedores e caçadores também têm histórias de uma Idade da Inocência original. Se a Queda se referisse à primeira aparição da agricultura ou a eventos subseqüentes, a presença dos mitos do Paraíso entre povos pré-agrícolas seria inexplicável. O fato de manterem os colhedores de alimentos suas próprias versões da história do Paraíso dá a entender que a linha divisória espiritual, relembrada como a Queda, deve ter ocorrido antes do desenvolvimento da agricultura - e, por conseqüência, antes dos primórdios da sociedade horticultural descrita por Eisler e Stevens. A sociedade pacífica da Velha Europa talvez representasse a sobrevivência de alguns aspectos de um tempo anterior, e até mais feliz, precisamente como as poucas sociedades de colheita e caça ainda fazem, à sua maneira.

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Mas se a Idade de Ouro floresceu antes do advento da cultura da Velha Europa e do desenvolvimento da agricultura, deve ter existido no período paleolítico, ou Velha Idade da Pedra. Esse período, que se estendeu (segundo a maioria dos paleoantropólogos) de cerca de 500.000 anos até por volta de 12.000 anos atrás, é um mistério quase completo. Segundo Stanley Diamond: Sabemos quase nada em relação às origens das então formas de linguagem, da organização social, da religião, e assim por diante, então existentes; a maioria dos aspectos formativos, não-materiais, da cultura permanecem inacessíveis a nós. O estudo dos povos primitivos contemporâneos não projeta muita luz sobre esses assuntos. Enquanto alguns antropólogos encaram os povos tribais sobreviventes da África, da Austrália, da Ásia, da Oceânia e das Américas como representantes da cultura neolítica, todas as autoridades concordam virtualmente em que não há culturas "fósseis" representando a humanidade, como havia na era paleolítica. Os mitos do Paraíso dos povos primitivos (e, por inferência, os dos povos civilizados também) devem, portanto, referir-se a um estado de existência que desapareceu completamente. Conquanto a evidência arqueológica revele pouca coisa a respeito da sociedade humana antes do período neolítico, as provas paleontológicas proporcionam pistas intrigantes do ambiente do tempo. Os fósseis mostram que a própria Terra era, em certos sentidos, paradisíaca antes do limite entre o paleolítico e o neolítico. Os paleontologistas sabem que, no final da época plistocênica (contemporânea do período paleolítico) havia maior variedade de espécies em todos os continentes, incluindo a África. P. S. Martin escreve que as extensões prístinas do Oeste americano foram "outrora partilhadas por elefantes, camelos, cavalos, preguiças, extintos bisões e antílopes quadricórneos". A Austrália também perdeu

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a maior parte dos seus grandes herbívoros mais ou menos nessa época - "de um dia para outro", em termos paleontológicos ou geológicos. Antes das extinções ocorridas no fim do plistoceno, cuja causa ainda é motivo de controvérsias, o nosso mundo era um lugar muitíssimo diferente. Seriam os mitos do Paraíso lembranças dessa época, quando os animais eram mais abundantes e as plantas selvagens comestíveis mais copiosas? Se quisermos correlacionar os mitos do Paraíso com um tempo de abundância biológica, teremos de colocar a Idade de Ouro muito mais atrás no tempo, antes do encerramento do plistoceno. Se o fizermos, não poderemos deixar de perguntar se as extinções do fim do plistoceno não eram, de certo modo, relembradas em mitos da Queda. Talvez essas extinções fossem causadas por alguma vasta catástrofe da natureza, que também resultou na destruição de populações ilhoas, e, destarte, em histórias de grandes inundações e continentes afundados. Provas de uma destruição dessa ordem existem, mas são de natureza controvertida. Nos últimos 150 anos, a ciência da geologia foi dominada pela doutrina da uniformidade, que assevera que todas as formações rochosas, hoje visíveis, são o resultado de processos graduais, uniformes, que ainda podemos observar em ação, como a erosão e a acumulação de sedimentos. O uniformitarismo, que exclui, efetivamente, todas as teorias de catástrofes globais, alcançou o predomínio no início do século XIX, não porque fosse sustentado por provas irresistíveis, senão porque certos modeladores influentes da opinião científica desejavam separar a geologia da tradição bíblica do Grande Dilúvio. Até recentemente, portanto, a discussão científica de catátrofes globais praticamente não existiu nos círculos do establishment. Immanuel Velikovski e outros teóricos, que insistiam em chamar a atenção para a evidência de cataclismas globais, foram metidos a ridículo. No entanto, evidências de catástrofes universais existem. A última geração de geólogos está empregando, com o máximo cuidado,

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uma forma diluída de "neocatastrofismo" para explicar certos fenômenos, aliás misteriosos, como a extinção dos dinossauros e o início das Idades do Gelo. Ainda assim, sinais de catástrofes globais dentro da idade da espécie humana - sinais que poderiam ser usados pelos fundamentalistas cristãos para secundar a interpretação literal da história de Noé na Bíblia, ou pelos teóricos da Atlântida para validar-lhes a interpretação literal da narrativa de Platão da destruição da ilha-continente perdida ainda não estão sendo levadas em conta pela ciência institucional. Não temos espaço aqui para examinar minuciosamente nem o catastrofismo em geral nem a hipótese de continente perdidos em particular. Entretanto, ambos são relevantes para a seqüência da história mítica: se mitos de extensão universal de pátrias perdidas, destruídas pelo dilúvio ou pelo fogo, tivessem de obter validação histórica a partir das provas da geologia, os mitos igualmente universais do Paraíso e da Queda tornar-se-iam também candidatos óbvios à reconstrução histórica. Justifica-se, pois, um rápido exame dessas provas.

Atlântida e Mu Como vimos no Capítulo 3, os mitos de muitas culturas descrevem a perda da pátria paradisíaca como um continente ora afundado, e a descrição da Atlântida de PIatão parece repetir a história da Idade de Ouro escrita por Hesíodo. Localizava-se, pois, o Jardim do Éden, onde agora só existe o oceano? Embora o assunto da Atlântida esteja fora dos limites das academias institucionais, alguns pesquisadores capazes encontraram uma prova geológica, arqueológica e antropológica plausível da existência anterior de pelo menos um continente recém-submerso. O dr. M. Klionova, da URSS, relatou, em 1963, que rochas extraídas de uma profundidade de 6.600 pés a sessenta milhas ao norte dos Açores, mostraram ter sido expostas à atmosfera uns 17.000 anos antes. Encontrou-se areia de praia - que só se forma ao longo de linhas da

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costa - a uma profundidade de milhares de pés na parte do Atlântico situado entre a América e a Inglaterra, e sedimentos na Crista do Atlântico Médio revelam remanescentes de plantas de água doce, o que prova que a crista, em outro tempo, estava acima do nível do mar. Em 1975, explorando a Crista do Atlântico Médio, cientistas marinhos encontraram fósseis e pedras calcárias que continham quantidades substanciais de água de chuva, o que indica, mais uma vez, que a crista, antigamente, se erguia acima da superfície. E, em todos os oceanos do mundo há indícios de que, 11.500 anos atrás, mais ou menos, súbito fluxo de água gelada forçou criaturas do fundo do mar a se adaptarem tão depressa que formaram uma linha de tempo fóssil para classificar núcleos sedimentares. Os teóricos da Atlântida insistem em que esse fluxo gelado foi o dilúvio que destruiu o continente mítico. Achados arqueológicos, possivelmente relacionados com a Atlântida, foram encontrados do outro lado do Estreito da Flórida, entre Miami e a ilha de Bimini, longe da Crista do Atlântico Médio. Desde 1956, diversos grupos de exploradores avistaram e fotografaram artefatos submersos, incluindo colunas com caneluras, uma rua, a possível plataforma de um templo, e uma cabeça estilizada de mármore. Para o coronel James Churchward, aventureiro inveterado e autor do livro controvertido The Lost Continent of Mu (1931), a história do Jardim do Éden não era uma lembrança deturpada da Atlântida, mas da vida idílica da espécie humana em Mu, continente afundado no Oceano Pacífico. Provas descobertas desde o tempo de Churchward deram-lhe à teoria - que se fundava em suas traduções de tabuinhas da Índia e do México - um apoio intrigante. O cientista soviético V. V. Belousov escreve em The Geological Structure of the Oceans: "Pode-se afirmar que, muito recentemente, em parte até na idade do homem, o Oceano Pacífico cresceu consideravelmente à custa de grandes pedaços de continentes, os quais, juntamente com suas jovens cadeias de montanhas, foram inundados por ele. Os cumes dessas montanhas vêem-se nas grinaldas de ilhas da Ásia Oriental." E George H. Cronwell, num ensaio apresentado no Décimo Congresso

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Mundial do Pacífico, fez menção da descoberta de carvão e flora antiga na Ilha Rapa (a sudoeste da Ilha Mangareva), "que enseja testemunho irrefutável de que houve um continente naquela parte do oceano". Segundo Platão, a destruição da Atlântida verificou-se por volta de 10.000 a.C. Essa data aproximada aparece também nos escritos de povos antigos do outro lado do Atlântico. O erudito meso-americano do século XIX, Charles Etienne Brasseur de Bourbourg, como o seu sucessor Augustus Le Plongeon, leu em documentos maias primitivos relatos, ou coisa que o valha, de uma pátria ilhoa oceânica destruída numa grande convulsão terrestre. De acordo com Brasseur de Bourbourg e Le Plongeon, o Codex Troano maia fixa a data do cataclisma em 9937 a.C. Como observamos antes, geólogos e paleontólogos datam o fim da época plistocênica e o princípio da holocênica, em que ora vivemos, aproximadamente no ano 10.000 a.C. Foi então que a última grande Idade do Gelo terminou, os níveis dos mares mudaram, e ocorreram extinções muito difundidas da flora e da fauna. Os cientistas, outrossim, de um modo geral, não concordam sobre a causa de todos esses eventos; cada um deles é considerado um mistério. Claro está que os proponentes da hipótese dos continentes perdidos dizem que o dilúvio, as mudanças climáticas e as extinções resultaram do cataclisma que destruiu Atlântida e/ou Mu. A evidência geológica e arqueológica da existência de Mu e da Atlântida é inconcludente. Durante treze anos de exploração, o dr. Maurice Ewing, da Universidade de Columbia, não encontrou sinais de cidades perdidas na Crista do Atlântico Médio. Mas, como assinala Ralph Franklin Walworth: "Localizar pequenos fragmentos de uma cidade sepultada debaixo de jardas de lodo e vasa naquelas condições é o mesmo que tentar localizar uma arrasada e sepulta Peoria, em Illinois, cruzando o meio-oeste, numa noite nevoenta e carregada de nuvens, a bordo de um dirigível, arrastando uma câmara fotográfica, presa na ponta de uma corda de três milhas de comprimento." O fato é que ainda não temos dados geológicos e

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arqueológicos suficientes para confirmar ou eliminar a hipótese dos continentes perdidos. A evidência antropológica da existência da Atlântida e de Mu é igualmente inconcludente, embora tantalizante. A idéia de uma fonte desaparecida de cultura humana pareceria extravagante e desnecessária se pudéssemos remontar às origens humanas na base de suposições ortodoxas e dados disponíveis, mas este não é o caso. Existem imensas lacunas em nossa compreensão. Escreve o antropólogo J. B. Birdsell: "A terra de origem dos tipos vivos de populações modernas continua desconhecida. O seu aparecimento em áreas marginais, como a Austrália... apresenta problema reais que os dados existentes não podem resolver." E, de acordo com outro antropólogo, Björn Kurtén: Não há transição conhecida dos homens de Neandertal aos que ostentam uma aparência essencialmente moderna, denominados homens de Cro-Magnon. De mais a mais, esses novos europeus não são um tipo qualquer de homo sapiens "generalizado", mas pertencem claramente à raça caucasóide, ou , branca. Nessa data primitiva, portanto, o homem já se dividira em raças distintas. Assim como os primeiros homens modernos na China são, reconhecíveis como mongolóides, os da Austrália são relacionados aos aborígines australianos vivos, e os primeiros sul-africanos parecem estar ligados aos boximanes. De onde vieram todos eles? É evidente que a falta de uma evidência-chave na visão de consenso das origens humanas não prova a validade de nenhuma teoria alternativa. Mas o reconhecimento de lacunas e inconsistências deixa, pelo menos, a porta aberta para novas reflexões. Como disse, certa vez, James Clerk Maxwell: "Um estado de ignorância inteiramente consciente... é o prelúdio de todo avanço real do conhecimento.”

Anomalias Arqueológicas

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As anomalias são fenômenos que não podem ser explicados pelas teorias científicas atuais. Por razões óbvias, a maioria dos defensores do status quo na ciência sente-se mal diante das anomalias e, freqüentemente, lhes nega a existência ou tenta racionalizá-Ias. Os hereges científicos, porém, amam as anomalias, coligem-nas, e chamam a atenção para elas sempre que podem fazê-Io. Como o filósofo da ciência, Thomas Kuhn, assinalou, é o acúmulo de anomalias que acaba forçando o abandono de velhos paradigmas científicos e a instalação de novos. Este foi o caso, por exemplo, no princípio do século XIX, quando as autoridades científicas do dia sustentavam a crença de que os meteoros não podem cair do céu porque, para começar, no céu não há pedras. Relatos difundidos da queda de meteoros eram então considerados praticamente como o são hoje as visões de OVNI’s. Mas depois que um número suficiente de pedras caiu - e depois de ter sido visto por milhares de pessoas, incluindo cientistas - o baluarte das autoridades da negação simplesmente desabou. As anomalias são definidas pela natureza das teorias atualmente adotadas; o que é anômalo para uma teoria pode ser aceitável para outra. Há três décadas, na América, toda prova geológica da corrente continental era considerada anômala. Hoje em dia, qualquer evidência que contestasse a teoria da corrente continental seria reconhecida como anômala. Na arqueologia e na antropologia, o paradigma atual - que reinou por mais de um século - é que a cultura humana evolveu unidirecionalmente do "primitivo" para o "avançado". Qualquer evidência que contradiga este ponto de vista, por definição, é uma anomalia. Neste caso, as anomalias são legião. Em cada continente há terraplenagens, artefatos e remanescentes humanos que não se enquadram no paradigma atual porque são demasiado velhos, demasiado avançados, ou simplesmente porque estão no lugar errado. Assim, por exemplo, encontraram-se na América artefatos e restos humanos de dezenas de milhares de anos, velhos demais para se ajustarem às teorias atuais sobre como e quando o Novo Mundo foi

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habitado pela primeira vez. Objetos obviamente feitos por humanos têm sido descobertos encerrados em pedaços sólidos de carvão ou de pedra. Poderíamos estender-nos indefinidamente; há tantas anomalias desse gênero, de fato, que alguns cientistas gastam toda a sua carreira coligindo-as e estudando-as. Os estudiosos de anomalias arqueológicas notam, com freqüência, a existência de um modelo peculiar. Para onde quer que olhemos, as realizações científicas, artísticas e de engenharia dos antigos parecem ter alcançado o auge muito cedo, tendo, em seguida, sofrido um declínio. Na Bretanha, os romanos construíram estradas sobre um pavimento muito mais antigo, de origem desconhecida, mas, não raro, de construção superior; na América, os esquimós estiveram, outrora, familiarizados com trabalhos em metal, mas parecem ter sido, mais tarde, separados da origem da sua cultura referente ao metal; e, no Egito, algumas das primeiras pirâmides mostram maior habilidade de engenharia e consecução científica do que os monumentos de qualquer dinastia ulterior. Muitas obras da alvenaria ciclópica de sítios na América, na Europa e na Ásia, de idade e proveniência desconhecidas, dão testemunho de uma habilidade e de uma força impressionantes. O famoso muro de Sacsayhuaman, no Peru, por exemplo, consiste em blocos de pedra que, em alguns casos, pesam centenas de toneladas, ajustados com uma precisão muito maior do que a que encontramos na maioria das estruturas de pedra modernas. Num caso depois do outro, os remanescentes mais velhos de pedra são os mais grandiosos e os mais perfeitamente executados; em confronto com eles, o que veio depois não passou de imitações grosseiras. Com base nessa evidência, diversos arqueólogos e historiadores independentes foram levados a contestar a opinião ortodoxa de que a espécie humana evolveu uniformemente a partir de um estado de barbarismo nos últimos 10.000 anos, e concluíram, em vez disso, que a nossa atual civilização deve ter começado no início de uma descida de um cume anterior. Por exemplo, depois de estudar, durante vinte anos, os monumentos do antigo Egito em primeira mão, o filósofo e

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matemático alsaciano R. A. Schwaller de Lubicz concluiu que a ciência, a medicina, a matemática e a astronomia egípcias estavam muito mais adiantadas do que o admitiram os egiptólogos modernos. Afiançou De Lubicz que todas as realizações daquela civilização fluíam de uma filosofia profunda das relações recíprocas entre os números, a geometria e o espírito humano - filosofia inacessível aos egiptólogos modernos por sua incapacidade de seguir antigos estilos de pensamento. Além disso, concluiu que, visto revelarem esses textos e monumentos primitivos tal filosofia em sua forma mais pura, a civilização egípcia deve ter sido um legado de alguma cultura anterior, até mais adiantada. De Lubicz identificou a cultura anterior, perdida, com as lendas da Atlântida e da Idade de Ouro. Em seus livros populares, City of Revelation e The New View over Atlantis, o historiador John Michell argumentou, similarmente, que misteriosos monumentos pré-históricos em todo o mundo "foram projetados de acordo com um plano de proporção, em unidades de mensuração idênticas em toda a parte". Estas, afirma Michell, são "relíquias de uma ciência elementar anterior, baseada em princípios que agora ignoramos". Em The New View over Atlantis, ele propõe que: Em algum período, milhares de anos atrás, quase todos os cantos do mundo eram visitados por gente que tinha uma tarefa especial para cumprir. Com a ajuda de alguma força espantosa, por meio da qual podia cortar e erguer blocos enormes de pedra, essa gente criou vastos instrumentos astronômicos, círculos de pilares erectos, pirâmides, túneis subterrâneos, plataformas ciclópicas de pedra, todos ligados uns aos outros por uma rede de pistas e alinhamentos, cujo curso de horizonte a horizonte era assinalado por pedras, túmulos e aterros. As pistas retas, os muros e túmulos, os círculos de pedra e as pirâmides de origem desconhecida parecem a Michell provas de um modo de vida que não corresponde a nenhuma de nossas idéias

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preconcebidas a respeito do que constitui uma cultura "avançada" ou "primitiva". A gente que construiu esse sistema global não pertencia, pura e simplesmente, a uma Idade da Pedra primitiva, que habitava um Paraíso inocente, mas ignorante, nem era constituída de tecnólogos no sentido em que o somos. A nossa tecnologia destina-se a promover o conforto e a conveniência dos homens, ao passo que a daquela gente parece ter sido da Terra e para a Terra - isto é, voltada à nutrição do planeta e à coordenação de ciclos terrenos de germinação e crescimento com os ritmos do Cosmo. Todos os monumentos megalíticos da Europa e da América, como os monumentos do antigo Egito, parecem ter sido construídos com propósitos religiosos. Astronomicamente alinhados, visavam todos a encerrar com precisão as relações recíprocas geométricas e numéricas, como a seção áurea e o número pi (3,1416...), que governam a geração e o desenvolvimento dos organismos vivos. As anomalias da pré-história, autênticas e numerosas, continuam a roer a base das teorias atuais da evolução cultural humana. O paradigma histórico presente acha-se em maus lençóis, e os fatos não nos apresentam uma alternativa clara, facilmente assimilável pelo pensamento atual. Ao contrário, elas sugerem possibilidades que nos frustram continuamente o desejo de explicações simples, lineares. De modo geral, as anomalias sugerem uma interpretação mítica da história - supõem a Queda de uma Idade da Sabedoria universal anterior, separada da idade presente por catástrofes da Natureza. Entretanto, a construção de um paradigma mítico da história apresenta seus próprios problemas. Ao passo que o mito descreve o Paraíso em termos não-tecnológicos, os primeiros monumentos dos egípcios e construtores megalíticos anunciam um estádio de desenvolvimento em que os seres humanos tinham, a um tempo, tecnologia e formas complexas de organização social. Talvez a própria Atlântida - cujo legado os egípcios e os construtores megalíticos receberam, segundo Lubicz e Michell - fosse um remanescente degenerado de uma idade de milagres, em que a tecnologia era desnecessária. Claro está que é impossível provar uma idéia como

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essa tomando por base pedras e ossos. Mas a evidência arqueológica da pré-história é tão fragmentária que o melhor sistema de interpretação talvez seja o mais ilimitado. E tal sistema, se os historiadores e arqueólogos fossem segui-Io, admitiria, pelo menos, a possibilidade de um Paraíso histórico.

Os Limites do Conhecimento Histórico Tendemos a esquecer que a arqueologia, como ciência, data, quando muito, de um século, e que, na verdade, só depois do fim da Segunda Guerra Mundial, as escavações sistemáticas - em oposição à aquisição acidental de antigüidades - começaram a ser empreendidas. Além disso, em grande parte por causa da juventude da ciência, e também por causa de certos hábitos de pensamento por ela trazidos do século XIX, a arqueologia continua a ser, hoje, ao mesmo tempo, um fenômeno cultural e uma atividade científica objetiva. Escreve o antropólogo Patrick Pender-Cudlip: Quase todos os historiadores e antropólogos partilham de certas idéias sobre possibilidade e probabilidade, e essas idéias, mais do que outra coisa qualquer, determinam o modo com que eles distinguem o mito da história ... nenhum relato possui uma qualidade inerente que o torna histórico; não se torna histórico por ser verdadeiro, mas por ser aceito como tal. Inversamente, um relato não-histórico ou "mito" (no sentido popular da palavra) não é, por força, inverídico, mas simplesmente considerado inverídico. Nem o mito nem a história tem alguma existência "objetiva" à parte da sociedade. Os historiadores, em diferentes sociedades, reconstroem o passado de maneiras diferentes por diferentes razões, usando critérios diferentes para distinguir entre o fato e a ficção, critérios produzidos por seu ambiente cultural. O arqueólogo Humphrey Case concorda: "A arqueologia é ... um corpo de mitos e lendas para os nossos tempos, tão inspiradores,

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consoladores, interessantes e fugidios quanto as do passado." E a antropóloga Alice Kehoe escreve: "Insinuou-se lentamente nas ciências sociais a compreensão de que essas disciplinas [antropologia e arqueologia], tanto quanto a filosofia religiosa ou a política, encerram axiomas e valores embutidos em ideologias." Começamos este capítulo com o propósito de comparar a evidência da arqueologia e da antropologia com duas versões da história e pré-história humanas - o quadro padrão, unidirecional e evolutivo, e o mítico cenário de uma Idade de Ouro seguida de um declínio geral. Ao termo da nossa busca, talvez sejamos capazes de perceber melhor o que a evidência não mostra, do que o que ela mostra. Sem embargo disso, recapitulemos o que descobrimos. Vimos que embora as tentativas dos arqueólogos bíblicos para localizar o Jardim do Éden possam ter sido bem-sucedidas num sentido limitado, no fato de parecer a história do Gênesis referir-se geograficamente à área em que os rios Tigre e Eufrates se encontram, pouco fizeram para iluminar as fontes dos mitos do Paraíso de outras culturas. Notamos a crença de alguns antropólogos de que os mitos de uma Idade de Ouro se referem ao modo de vida dos caçadores-colhedores, que prevaleceu antes da invenção da agricultura. Percebemos também o fato paradoxal de que os povos tribais, que mantiveram um modo não-agrícola de vida na era moderna, também voltam os olhos para um tempo perdido de inocência e fartura, como fazem os povos civilizados. Estudamos recentes achados arqueológicos que sugerem que, em algumas partes do mundo (Creta, a Velha Europa e o Oriente Próximo), o princípio do período neolítico foi um tempo de paz e criatividade gerais, durante o qual os seres humanos desenvolveram a horticultura num grau só igualado no século presente. Examinamos à pressa o registro paleontológico, que mostra que houve interrupções catastróficas há uns 10.000 anos, durante as quais grande número de espécies animais foram subitamente extintas. Vimos que essas catástrofes podem estar relacionadas com os mitos de continentes perdidos.

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Finalmente, notamos a existência de um sem-número de anomalias arqueológicas, que sugerem - a alguns teóricos, pelo menos - que muitos milhares de anos atrás existia uma civilização com uma espécie de ciência avançada, que diferia da nossa ciência e tecnologia assim no método como no propósito. Rigorosamente falando, não se pode dizer que a evidência elimine alguma teoria - nem a visão consensual corrente da pré-história, nem mesmo as alternativas mais extravagantes, como, por exemplo, a hipótese dos continentes perdidos. Ela não prova nem desaprova, em nenhum sentido absoluto, a existência histórica da mítica Idade de Ouro. Entretanto, não podemos escapar à tendência geral dos dados que investigamos. No fim do período paleolítico e no começo do período neolítico, os seres humanos tinham capacidades técnicas, valores e um modo de vida que as teorias atuais não explicam. Esse foi, evidentemente, um tempo de tremenda criatividade, embora essa criatividade fosse dirigida para projetos de paz e cooperação tão difundidas que parecem milagrosas vistas pelos nossos padrões atuais. O cenário mítico do Paraíso, da Queda e da catástrofe ainda não compreende um paradigma científico plenamente desenvolvido, capaz de explicar todos os dados arqueológicos e antropológicos existentes. Proporciona, contudo, a semente da qual pode emergir um paradigma assim. Se emergirá ou não, depende da boa vontade dos cientistas de largarem o seu controle sobre o paradigma corrente de evolução cultural e de encararem toda a evidência com novos olhos. Como acabamos de ver, o mito do Paraíso pode representar uma lembrança quase histórica de acontecimentos reais. Mas como vimos no Capítulo 1, há duas maneiras básicas de se encarar o mito: como história e como metáfora. Portanto, precisamos considerar a possibilidade de ser a narrativa universal do Paraíso outra coisa ou algo mais do que história - de poderem ter as imagens contidas no mito dimensões de significado sem nenhuma relação com pedras, ossos e artefatos. Será possível que o mito do Paraíso, além de

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qualquer significação histórica que possa ter, seja também uma alegoria, uma história usada por povos antigos para transmitir uma mensagem psicológica ou teológica? A ser assim, que mensagem é essa?

CAPÍTULO 9 O Paraíso como Metáfora

Porque os princípios que fundamentam o universo são, em toda a

parte, os mesmos, a analogia é um meio mais exato, e, ao cabo de contas, mais "científico” para chegar à compreensão de fenômenos do que a simples mensuração. Por isso, todos os ensinamentos sagrados utilizam paráboIas, analogias, mitos e símbolos em lugar de fatos. Os

fatos não ajudam a compreensão. John Anthony West

Os povos antigos e tribais amavam a metáfora. Em seu mundo, tudo significava alguma outra coisa. No dizer do antropólogo australiano W. E. H. Stanner, "Para os aborígines, o mundo é um vasto sistema de sinais, e o seu pensamento está impregnado de simbolismo". A respeito dos nativos americanos, Jamake Highwater escreve que eles usam o simbolismo em sua arte a fim de pintar a essência - oposta à mera aparência - do objeto que está sendo representado. Nossas línguas modernas, em boa parte, são resíduos da consciência mítica e consistem em milhares de palavras e expressões derivadas de metáforas antigas. A própria palavra expressão significa "o que é espremido para fora; espírito quer dizer "sopro" ou "vento"; e a palavra ligar significa "tecer junto". De mais a mais, como observou o filósofo da língua Owen Barfield, "Quanto mais retrocedemos no tempo, tanto mais metafórica vemos que se torna a língua". Não há dúvida, pois, de que uma história tão antiga e tão difundida quanto o mito do Paraíso perdido há de encerrar profundos sentidos metafóricos. Mas quais

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são, precisamente, esses sentidos? Neste capítulo analisaremos a questão, examinando, em poucas palavras, as principais interpretações alegóricas aplicadas à história do Paraíso no correr da História. À luz das investigações arqueológicas e antropológicas que empreendemos no último capítulo, podemos começar perguntando: a interpretação metafórica exclui a interpretação histórica? Como veremos, a resposta é: não necessariamente. Algumas interpretações metafóricas dão espaço ao conteúdo histórico do mito; outras, não. Por amor à ilustração, todavia, iniciemos o nosso apanhado de interpretações e intérpretes com um exemplo de pura alegoria.

Os Velhos e Bons Tempos Talvez a explicação mais imediatamente óbvia do mito do Paraíso é que se trata simplesmente da expressão alegorizada de um anseio pelos "velhos e bons tempos" - anelo que todos conhecemos e empregamos numa ocasião ou outra. Não é apenas o mortificado homem de escritório dos dias de hoje que pensa: "O mundo era um lugar melhor na minha mocidade". Encontramos o mesmo sentimento expresso até pelos primeiros autores clássicos, os quais, como já vimos, freqüentemente se queixavam da degradação geral da antiga sociedade. "Aqueles, sim, é que eram os bons tempos", suspira cada geração quando alcança a meia-idade. Em seu livro Longing for Paradise, o psicanalista Mario Jacoby apresenta uma versão aprimorada e sofisticada da explicação dos velhos e bons tempos ao sugerir que os mitos da Idade de Ouro perdida não passam de uma expressão da nostalgia universal do passado. Além disso, pondera que esses anseios não têm nenhuma base histórica real: "O mundo harmonioso que agora se considera perdido... na realidade nunca existiu.“ Nós nos projetamos para trás, para os Anos Dourados, a Belle Époque, em Paris, o tempo dos Wandervögel, a cidade medieval, a

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Antiguidade Clássica, ou a vida "antes da Queda". O mundo da totalidade existe principalmente em retrospecto, como compensação para o mundo ameaçado e fragmentado em que vivemos agora. "Que delícia é ser criançal" só pode ser dito por um adulto que, olhando para trás, idealiza a inocência e a segurança pretensas da infância. A explicação dos velhos e bons tempos é intuitivamente óbvia, e dirige-se ao anelo psicológico universal que a história do Paraíso focaliza tão intensamente. Mas é também superficial. Embora existam, os "mitos" dos velhos e bons tempos tendem a ser relativamente triviais e efêmeros, como os exemplos de Jacoby da Belle Époque, dos Anos Dourados, e assim por diante. Depois de algumas gerações, a nostalgia da "cidade medieval" ou da "Antiguidade Clássica" só ocorre entre historiadores. Claro está que a narrativa universal da Idade de Ouro perdida é de um estrato muito mais profundo que a espécie de nostalgia do "quando eu era criança" que inspira romances, filmes e novelas de televisão a respeito dos velhos e bons tempos que se foram. Os mitos do Primeiro Povo têm uma potência suficiente para ter-Ihes assegurado a sobrevivência por diversos milênios, e eles possuem elementos temáticos característicos, profundamente compactos, e intensamente significativos. Enquanto os exemplos deJacoby estão ligados à cultura, o Paraíso é universal. Ademais, todos os mitos antigos do Paraíso se propõem não só descrever um tempo genericamente melhor, mas também o primeiro tempo, um tempo perfeito; não somente de qualquer era primitiva, mas também de uma idade específica de primórdios mágicos. Não se tratava apenas de um tempo em que os animais eram mais abundantes, mas um tempo em que animais e humanos compreendiam a fala uns dos outros; não somente um tempo em que as pessoas eram felizes e a vida mais fácil, mas um tempo em que não havia morte nem doença, e os seres humanos conversavam intimamente com Deus face a face. Em suma, a interpretação dos velhos e bons tempos só tem sucesso quando passa por cima das minudências das imagens, personagens e ação míticas. Em

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compensação, outras interpretações se concentram nos pormenores, mas à custa de estreitar o próprio foco a fim de incluir tão-só um único. exemplo da narrativa.

O Sexo e a Queda A maioria dos estudiosos no mito do Paraíso restringiu sua atenção a uma única versão, a história do Éden no Gênesis. Sem dúvida alguma, o maior corpo de comentários sobre as imagens paradisíacas não foi gerado por folcloristas, mas por exegetas judeus-cristãos. Os primeiros padres da Igreja se preocupavam com o simbolismo do Éden. Fílon, o Judeu, que viveu em Alexandria no século I, descreveu os frutos do Jardim como as virtudes da alma, e a atividade do Jardim como a observância dos mandamentos divinos. Os quatro rios eram as quatro virtudes da prudência, do domínio de si mesmo, da coragem e da justiça. Nesse ínterim, Orígenes, Irineu e Cipriano, que viveram nos séculos II e III, interpretam o relato do Gênesis da vida no Éden como uma descrição da Igreja antes do crime, interpretação adotada, mais tarde, por Agostinho: "O Paraíso é a Igreja; os quatros rios do Paraíso são os quatro evangelhos; as árvores frutíferas, os santos e o fruto, suas obras; a árvore da vida é o santo dos santos, Cristo”. Para os primeiros teólogos cristãos, o símbolo mais significativo da história foi o fruto proibido da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. O padre da Igreja grega do século IV, Atanásio, referiu que, enquanto alguns contemporâneos presumiam que o fruto havia sido um figo, outros sustentavam que se tratava de um fruto "espiritual" - algum pensamento ou atitude importante. Ele notou, contudo, a existência de um terceiro grupo, cujos membros viam no fruto proibido o encanto sexual de Eva. Foi essa última interpretação que teve a influência mais penetrante e duradouro. Antes da Queda, o casal original andava nu e não conhecia a vergonha; mas depois de comerem da árvore proibida, os dois se advertiram, de repente, da sua nudez e confeccionaram aventais de folha de figueira para se cobrirem. Pela primeira vez, experimentaram

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a culpa e a vergonha. A história da perda da inocência no Jardim primordial parece uma descrição da perda da inocência amiúde experimentada por crianças ao atingirem a puberdade. Seguramente - aos olhos de gerações de teólogos isso quer dizer que o próprio crime dever ter tido alguma relação com o conhecimento do sexo. A equiparação da Queda ao sexo pode ser atribuída, um século e meio antes da era cristã, ao filósofo judeu Aristóbolo, para quem Adão e Eva significavam a razão e a sensualidade, respectivamente, ao mesmo tempo que a serpente representava o desejo sexual. Foi uma corrente de pensamento que se mostrou irresistível a inúmeros intérpretes cristãos subseqüentes (como, por exemplo, Clemente de Alexandria e Ireneu, bispo de Lião) que concordaram em enxergar na Queda uma união sexual. Ensinava São Jerônimo que, antes da Queda, Adão e Eva eram "virgens no Paraíso", e que, portanto, "todo o comércio sexual é imundo". O teólogo do século XVII Adrian Beverland, em seu Original Sin [Pecado original], afiançava que a maçã era o símbolo do amor sexual, e que a palvara arbor [árvore] equivalia a membrum virile [órgão masculino]. A Queda não foi nem mais nem menos que o descobrimento do sexo. O crime original foi um ato de sedução, e toda a culpa cabe a Eva. Mas se Eva, a primeira mulher e "mãe de todos os vivos", merecia ser censurada pela perda do Paraíso, que tem isso a ver com todas as outras mulheres subseqüentes e com a própria natureza, com a qual Eva sempre foi identificada? Gerações de teólogos, interpretando o Gênesis através dos olhos de Aristóbulo e Beverland, chegaram à conclusão de que, visto haver a mulher, de acordo com a história, iniciado a Queda, ela é, portanto, inerentemente má - uma tentadora que precisa ser disciplinada e mortificada. Tertuliano, teólogo do século III, talvez tenha atingido o ápice da misoginia quando escreveu: E não sabeis que sois, cada uma de vós, uma Eva? A sentença de Deus sobre o vosso sexo vive nesta idade: a culpa, por necessidade, precisa viver também. Vós sois a porta do diabo; sois a desseladora da árvore proibida; sois a primeira desertora da lei divina; vós sois

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quem o persuadiu de que o diabo não era tão valente que se atrevesse a atacar. Destruístes tão facilmente a imagem de Deus, o homem. A mulher é a mãe de todos os vivos e, assim, se identifica com a natureza, e sendo também a agente da Queda. Por conseguinte, a própria natureza é corrupta e decaída. De acordo com essa concepção, enunciada pela primeira vez por Agostinho, o mundo não só decaiu do seu estado prístino como concordam todas as tradições do Paraíso - mas, de certo modo, partilha da culpa e do mal da humanidade, e especialmente do sexo feminino. O corpo humano, como parte da natureza decaída, é mau também, e a fruição do corpo é suspeita, se não for positivamente pecaminosa. Será provavelmente inútil tentar determinar se a criminosa ambivalência da civilização ocidental tocante à sensualidade e ao sexo, e o seu desdém moral da natureza indomada, resultou da censura coletiva de todo o sexo feminino pela Queda, ou se a causou. Seja como for, tais atitudes não são partilhadas por culturas cujas histórias do Paraíso assumem a forma da enumeração de uma série de idades do mundo. Na Índia, por exemplo, não se atribui a degeneração da humanidade descrita na tradição dos yuga nem às mulheres, nem aos homens; no hinduísmo, a santidade da feminilidade, da sensualidade e da natureza é exaltada na literatura religiosa canônica e na arte erótica dos templos. A civilização ocidental tem duas cabeças, no sentido de que tira sua inspiração mítica de duas histórias do Paraíso, a hebraica e a grega. Os gregos e os romanos antigos descreviam, às vezes, o reino de Crono/Saturno em termos moralistas, mas nunca antinaturistas, de modo que a tradição da Idade de Ouro jamais adguiriu os revestimentos puritanos associados à narrativa do Éden. Com efeito, os poetas naturalistas primitivistas da Contra-Renascença - Pierre de Ronsard, Torquato Tasso e John Donne - chegaram a exaltar a Idade de Ouro como um tempo de livre expressão do impulso sexual, um tempo em que o amor não tinha "regimento", quando os seres

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humanos eram livres para seguir os seus instintos naturais essencialmente saudáveis. "Como eram felizes os nossos Avós de antanho", exclama Donne, "para os quais não era crime a pluralidade do amor!" Conquanto a equiparação da Queda com a sexualidade ainda tenha expositores entre estudiosos modernos e sérios da Bíblia, Howard N. Wallace encerra o seu estudo exaustivo da evidência e da interpretação textuais concluindo que a expressão "a ciência do bem e do mal" em Gênesis 2 com certeza não se referia especificamente ao sexo, senão à "ciência universal", incluindo todos os aspectos da cultura e da civilização. Mas a interpretação sexual tem exercido efeito incalculável nas vidas de gerações de ocidentais, e continua a ser um tema proeminente nos sermões de pregadores fundamentalistas. Além disso, uma idéia correlata - a de que todo o sofrimento psicológico da humanidade pode ser atribuído a tensões sexuais - teve sua própria e ampla esfera de influência nos campos ostensivamente seculares da psicanálise e da psicoterapia.

O Complexo de Édipo Sigmund Freud não publicou uma análise do mito do Paraíso. Nada obstante, acreditava que as ilusões coletivas da humanidade "devem o seu poder ao elemento de verdade histórica que trouxeram da repressão do passado esquecido e primevo". Essa "verdade histórica" foi o drama edípico original, em que os filhos crescidos da era paleolítica presumivelmente matavam os pais a fim de possuir as mães. De acordo com o fundador da psicanálise, o grande crime pelo qual a humanidade toda tem sofrido no transcorrer das idades não foi o sexo por si mesmo, porém o assassínio motivado pela concupiscência incestuosa. Freud, provavelmente, teria equiparado o Paraíso com o período anterior ao parricídio original. Esta, pelo menos, é a linha de pensamento seguida por diversos seguidores seus. Em Myth and Guilt [Mito e culpa], por exemplo, o analista freudiano Theodor Reik

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interpretou a árvore sagrada como um totem arcaico e o crime de Adão como matar e comer o pai/deus da tribo. Observando a saturabilidade do culto da árvore nos tempos antigos, Reik asseverou que a árvore não era o lar do deus, mas o próprio deus: "Não há dúvida de que o deus dos hebreus foi outrora concebido como árvore sagrada". De mais disso, ele identificou a árvore-deus com o pai da tribo. O crime do Primeiro Povo consistiu em "comer da árvore" - isto é, em matar e comer o “cabeça” da família primeva. Para Reik, o parricídio canibalístico edípico é a origem de todos os tabus de alimentos encontrados com tanta freqüência nas culturas primitivas. É a verdadeira fonte do sentido patológico de culpa subseqüente da humanidade. Seria ocioso repetir aqui todos os argumentos pró e contra a teoria edípica. Talvez seja suficiente notar que há pouca evidência antropológica ou arqueológica que nos permita afirmar que o parricídio foi, algum dia, difundido, e muito menos universal. Em que pese a isto, os freudianos conseguiram interpretar virtualmente todos os aspectos da cultura primitiva em função dessa teoria. Géza Róheim, por exemplo, remata um artigo intitulado "As mulheres e a vida na Austrália central" com o seguinte comentário: "Encontramos o complexo de Édipo, transformado pela repressão em ansiedade, na raiz de todas as suas crenças sobrenaturais". Expectativas teóricas, quando mantidas com entusiasmo, tendem a confirmar-se na mente do pesquisador, até mesmo na ausência de provas. Como comenta o antropólogo W. E. H. Stanner (com referência específica à teoria de Édipo): "A antropologia tem fornecido muitas provas de que a suposição e o método podem dominar de tal maneira o esforço do descobrimento que o verdadeiro descobrimento não é possível." Para fazer justiça a Freud, no entanto, temos de notar que partes de sua obra sugerem outra interpretação, puramente metafórica, da história do Paraíso.

O Paraíso como Infância

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A analogia é óbvia: se substituirmos a história de toda a humanidade pela vida do invidíduo, não seria a Idade de Ouro equivalente à infância? Foi isto, em essência, o que Freud propôs em sua teoria do desenvolvimento da personalidade - que a infância é um paraíso perdido, desmantelado pela impossibilidade da livre indulgência continuada, concedida ao impulso para o prazer. Consciente ou inconscientemente, os pais impõem inibições culturais à psique em formação da criança pequena, e a aplicação dessas inibições é experimentada pela criança como o Inferno, ou, em termos mitológicos, como a Queda. Embora Freud não sublinhasse as implicações míticas ou históricas do seu esboço do desenvolvimento infantil, um dos seus primeiros colaboradores, Carl Jung, continuou incorporando o conceito do Paraíso-como-infância à sua teoria dos arquétipos. Para Jung, o Paraíso é o aspecto positivo da mãe arquetípica, a fonte da segurança e da nutrição do infante. As expressões "Mãe Natureza" e "Mãe Terra" exemplificam ambas o arquétipo; de fato, a palavra inglesa matter (matéria) deriva da palavra latina que significa mãe (mater). O Jardim murado do Paraíso, o sítio de paz e fartura, é o símbolo de uma condição em que existe completa harmonia com a Mãe Natureza. Para Jung, a lembrança universalmente compartilhada das primeiras fases da infância - em que se dá livre curso aos impulsos e sentimentos, e mãe e filho estão ligados tão intimamente que formam uma realidade unitária - é a base da qual surgiram todos os símbolos e imagens do Paraíso. Entretanto, a idéia de interpretar o mito do Paraíso como analogia do relacionamento entre mãe e filho não apareceu com Freud e Jung. Suas raízes, na realidade, chegam, pelo menos, até os gnósticos do século I. Simão Mago, cujas opiniões estão preservadas (sem dúvida de forma deturpada) na Refutação de todas as heresias de Santo Hipólito, ensinava que o Jardim do Éden não era um lugar geográfico, mas uma metáfora de ventre: "Se Deus forma o homem no ventre de sua mãe - isto é, no Paraíso - seja então o ventre o Paraíso e o pós-

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nascimento, o Éden, 'um rio que flui do Éden, a fim de irrigar o Paraíso'. Esse rio é o umbigo." Mas Jung desenvolveu a analogia de um modo novo: a Queda não é o nascimento - a partida do ventre do Paraíso - mas o crescimento da psique independente do infante, que precisa aprender, aos poucos, a ver a mãe como pessoa separada, com limitações humanas e existência independente. A Queda representa qualquer perturbação do relacionamento primevo; como tal, é inevitável e necessária, mas será também causa de neurose se for experimentada demasiado cedo ou demasiado traumaticamente. A interpretação do mito do Paraíso como projeção inconsciente de lembranças da infância gira em torno de uma questão importante: Pode a confusa rememoração de estados psiológicos individuais ser transformada em mitos que pretendam descrever acontecimentos históricos? Eis aí um problema que não pode estar ligado a uma solução simples ou inequívoca. E ainda que suponhamos a resposta afirmativa, ainda não teremos eliminado a possibilidade de o mito esconder outras dimensões de significado. O conceito do Paraíso-como-infância é, essencialmente, um desenvolvimento da hipótese dos velhos e bons tempos: ajuda a explicar o apelo perene do mito, mas talvez não seja suficiente para explicar-lhe a origem. Apesar disso, quando o ampliamos para incluir nele um componente histórico, o conceito passa a ser um argumento formidável.

A Evolução da Consciência Invertamos a analogia que traçamos no início da seção anterior e substituamos o indivíduo pela humanidade. Será possível que a humanidade como um todo tenha conhecido uma experiência relativa ao desenvolvimento análoga à de toda criança? Terá a nossa espécie conhecido uma infância paradisíaca coletiva e um desmame e separação coletivas, em que a natureza desempenha a parte de Mãe Universal? Será possível, em outras palavras, que o Paraíso e a

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Queda sejam descrições alegorizadas dos primeiros estádios da evolução da consciência humana coletiva? A idéia remonta, pelo menos, a dois séculos. Immanuel Kant, em suas Conjecturas sobre os Primórdios da História Humana, interpretou a Queda como o atingimento da maioridade com o desenvolvimento da razão e do livre-arbítrio. De maneira semelhante, Hegel via a história como o processo, experimentado pelo espírito, do pleno desenvolvimento de suas capacidades, ambições etc.: a natureza é o espírito caído na matéria, e a evolução é o método do espírito para libertar-se. O Paraíso, condição primordial anterior à descida do espírito, destinava-se a ficar para trás. Friedrich Schiller, seguindo a mesma corrente de pensamento, entendia ser a narrativa do Éden contida no Gênesis um relato do modo com que a humanidade se elevou da inconsciência para a razão. A desobediência do primeiro casal em relação ao mandamento divino foi o afastamento inicial do instinto, por parte da humanidade, um "passo gigantesco de progresso". Schiller escreveu que: A defecção do instinto, levada a efeito pela humanidade, que” trouxe o mal moral à Criação, mas apenas com o propósito de tornar ali possível o bem moral, é, sem dúvida, o mais afortunado, o maior evento na história humana. ... O homem transmudou-se de criatura de inocência em criatura criminosa, de perfeito tutelado da natureza em ser moral imperfeito, de instrumento feliz em artista infeliz. Seguindo as pegadas filosóficas de Kant e Hegel, vários escritores modernos expandiram a concepção evolutiva do mito do Paraíso em reconstruções amadurecidas das origens e do desenvolvimento da consciência humana. Ernst Cassirer, Nicholas Berdyaev, Jean Gebser, Erich Neumann, Carl Sagan e Ken Wilber esboçaram planos circunstanciados de desenvolvimento, em que a Idade de Ouro representa um platô primitivo no entendimento humano. A consciência edênica, segundo Wilber, era uma "unidade primeva natural... dominada pela natureza inconsciente, pela fisiologia, pelos instintos,

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pela simples percepção, pelas sensações e emoções". Neumann escreveu sobre isso como o tempo em que "o germe do ego ainda habita o pleroma, a 'plenitude' do Deus não formado, e dorme na beatitude do Paraíso". Nessa condição coletivamente infantil: [O homem] nada em seus instintos como um animal. Envolvido e sustentado pela grande Mãe Natureza, embalado em seus braços, é entregue a ela para o bem ou para o mal dela. Nada é ele mesmo; tudo é o mundo. O mundo o abriga e alimenta, enquanto ele escassamente quer e age. Sem fazer nada, inerte no inconsciente, apenas estando lá no mundo inexaurível e crepuscular, todas as suas necessidades supridas, sem esforço, pela grande alimentadora - tal é o seu primeiro e beatífico estado. Tradições orais antigas e documentos religiosos sugerem, de fato, que a humanidade arcaica experimentava o mundo de maneira diferente da que experimenta hoje a maioria das pessoas. O mundo era cheio de deuses, espíritos e poderes mágicos; todo símbolo extraía a eficácia da sua representação de uma realidade mais alta, invisível. Onde somos racionais, eles eram não-racionais: ao mesmo passo que nos preocupamos com economia, política e ciência, eles viviam obcecados pelo ritual e pelo mito. Pergunta-se: Era a mudança fundamental do modo de ser arcaico para o moderno necessária e apropriada ao desenvolvimento? Vale dizer, é a nossa maneira de pensar e de viver inerentemente melhor e mais altamente desenvolvida que a dos antigos, ou é apenas diferente? Podemos, naturalmente, tender a aceitar a primeira hipótese, mas a aceitação é surpreendentemente difícil de sustentar com a evidência, sejam quais forem os critérios uniformes e objetivos. Somos nós, por exemplo, mais felizes, mais saudáveis e mais inteligentes do que os antigos? Como vimos no último capítulo, muitos antropólogos duvidam de que seja esse o caso. É possível que os teóricos da evolução da consciência tenham tirado mais conclusões do que as realmente asseguradas pela evidência.

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Quem poderá dizer quais foram os motivos e os processos de pensamento que orientaram nossos antepassados primordiais, quando etnólogos das últimas décadas subestimaram tanto a inteligência e consecuções culturais de povos tribais que ainda podiam ser visitados e entrevistados em carne e osso? A consciência humana modificou-se de maneiras fundamentais no correr dos milênios, e a evolução representou, sem dúvida, parte significativa nessas modificações. Mas não é permissível perguntar se, além da evolução, sofremos também um processo tangencial de decadência moral, como os mitos insistem universalmente em afirmar? O verdadeiro problema com o conceito da evolução-da-consciência é que ele despreza - e até nega - a mensagem essencial que os antigos parecem estar tentando transmitir-nos. Eles não se referem à Queda como a um estádio necessário de desenvolvimento, mas como a um desastre. Não deram a entender que tivemos de renunciar ao Paraíso a fim de ganhar alguma coisa mais valiosa, mas, ao contrário, lamentaram que o que perdemos - a presença divina, a unidade do Céu e da Terra - é mais precioso do que tudo o que poderíamos, algum dia, esperar ganhar. A idéia de que a história do Paraíso descreve um tempo em que a humanidade conheceu um estado de consciência fundamentalmente diferente daquele que compartimos comumente hoje não contradiz a mensagem dos mitos - muito pelo contrário. Será possível, então, desenvolver essa idéia à luz das modernas descobertas antropológicas e psicológicas, de modo que respeite o âmago da mensagem dos antigos?

O Paraíso como União Mística A equiparação do Paraíso ao estado infantil é atraente porque relaciona efetivamente uma condição desconhecida de percepção (Paraíso) com uma condição conhecida (a infância). Mas será a infância o único estado "de ouro" conhecido ou conhecível de consciência? Manifestamente, não é. Místicos, profetas e santos de

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todas as tradições falam-nos de reinos de experiência mágicos, pacíficos e jubilosos, caracterizados pela unicidade, pelo conhecimento e pela luz. Até recentemente, os psicólogos não mediram esforços para explicar essas experiências como imaginação ou ilusão patológica. Entretanto, como se observou no capítulo I, existe entre os psicólogos e mitólogos uma nova escola de pensamento, de acordo com a qual a dimensão sagrada não é apenas real, mas também a fonte necessária de alimentação espiritual e inspiração, assim para os indivíduos como para as culturas. E como também se observou no citado capítulo, dois dos primeiros e mais destacados expositores da nova escola de pensamento foram Mircea Eliade e Joseph Campbell. É para as perspectivas deles que agora nos voltamos. Consoante um dos temas recorrentes nos livros de Eliade, a experiência religiosa é uma janela para uma realidade "mais elevada" do que o mundo físico, mental e emocional em que a humanidade moderna passa os seus dias. Essa qualidade mais elevada caracteriza-se pelas qualidades subjetivas do Paraíso - paz, criatividade, poder e união extática com o divino. Escreve Eliade que toda cultura histórica considerou a condição humana como estando sob um fascínio temporário de limitação e separação desnatural, e que o primeiro propósito de toda religião tem sido o de ajustar o indivíduo e a sociedade a livrar-se desse fascínio. Em The Sacred and the Profane [O sagrado e o Profano], ele escreve que: A existência do homo religiosus, em especial do primitivo, está aberta para o mundo; ao viver, o homem religioso nunca está só, pois parte do mundo vive com ele. Mas não podemos dizer, como o fez Hegel, que o homem primitivo está "sepultado na natureza", que ainda não se encontrou como distinto da natureza, como ele mesmo. O hindu que, abraçando a esposa, declara que ela é a Terra e ele é o Céu, está, ao mesmo tempo, plenamente consciente da sua humanidade e da humanidade dela.

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Alhures, na mesma obra, ele nos diz que seria igualmente errado presumir que o "homem religioso" estava na posição infantil de ser incapaz de assumir a responsabilidade por uma existência independente da Mãe Natureza: Pelo contrário... ele assume, corajosamente, responsabilidades imensas - por exemplo, a de colaborar na criação do cosmo, ou a de criar o seu próprio mundo, ou a de assegurar a vida de plantas e animais. É uma responsabilidade no Plano cósmico, em contraposição às responsabilidades morais, sociais, ou históricas, as únicas consideradas válidas nas civilizações modernas. Não é a humanidade antiga, senão a moderna que está adormecida, inconsciente, ou é infantil, segundo Eliade. Para os povos antigos e primitivos: Os símbolos despertam a experiência individual e transmitem-na num ato espiritual, na compreensão metafisica do mundo. Na presença de qualquer árvore, símbolo do mundo das árvores e imagem da vida cósmica, o homem das sociedades pré-modernas pode atingir a espiritualidade mais elevada, pois, compreendendo o símbolo, consegue viver o universal. Em compensação, as "mitologias particulares" de sonho e fantasia do homem moderno: Nunca se elevam ao status ontológico de mitos, precisamente porque não são experimentados pelo homem todo, e, portanto, não transformam uma situação particular numa situação paradigmática. Da mesma forma, as ansiedades do homem moderno, suas experiências em sonho ou em imaginação... não... proporcionam a base de um sistema de comportamento.

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Por conseguinte, a pessoa moderna "racional", conquanto ainda alimentada, até certo ponto, pela atividade do inconsciente, é incapaz de atingir "uma experiência e uma visão propriamente religiosa do mundo". Eliade viu, na árvore e na montanha do Paraíso, símbolos de ascensão e conexão, de comunicação entre o Céu e a Terra. Correlacionou símbolos de ascensão e vôo com tradições orais e escriturais, e concluiu que todos são expressões de uma compulsão para transcender o plano ordinário, profano, da experiência, e para conhecer de novo o estado de união extática que existia no princípio, antes que a consciência humana caísse em seu nível atual. Seria absurdo minimizar as diferenças de conteúdo que diversificam exemplos de "vôo", "êxtase" e "ascensão". Mas seria igualmente absurdo não reconhecer a correspondência de estrutura que emerge de tais comparações. ... Em cada nível de cultura, e apesar dos seus contextos religiosos e históricos, amplamente diferentes, o simbolismo do "vôo" expressa invariavelmente a abolição da condição humana, a transcendência e a liberdade. Eliade tratou de modo semelhante a imagem dos ritos do Paraíso e da Água da Vida: "a água viva, as fontes de juventude, a Água da Vida, e o resto, são todas formas mitológicas da mesma realidade metafisica e religiosa: a vida, a força e a eternidade estão contidas na água". Joseph Campbell também descreveu o Paraíso como um modo de consciência natural, satisfatório, estranho à humanidade moderna. O propósito da prática espiritual é recuperar aquela condição prístina de percepção. Como disse CampbelI, em entrevista concedida ao jornalista de televisão Bill Moyers: "Voltar ao jardim é o objetivo de muitas religiões". A Queda, no pensar de Campbell, foi e é ocasionada pelas maquinações do ego humano separado - a voz dentro de nós que promove, infatigavelmente, os interesses "do eu, do mim e do meu" acima dos interesses do processo criativo vivo de que somos expressões individualizadas. Nós nos alienamos desse processo, e

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tentamos, ansiosos, dirigir o curso do rio da vida, de preferência a ceder à sua sabedoria e ao seu poder inatos. "Somos mantidos fora do jardim", diz Campbell, "pelo nosso próprio medo e desejo em relação ao que pensamos sejam os deuses da nossa vida". O Paraíso - o estado imaculado da mente e da emoção, objetivo de toda técnica espiritual - é imediatamente acessível a todo ser humano, conforme Campbell. Todos nós o provamos em algum ponto de nossa vida, todas as vezes que nos permitimos estar plenamente acordados no momento presente. "A diferença entre o viver de todos os dias e o viver tais momentos de êxtase é a diferença entre estar fora e dentro do jardim. Passamos pelo medo e pelo desejo, passamos pelos pares de opostos... rumo à transcendência." Eliade e Campbell abriram uma via promissora de interpretação. O seu reconhecimento da realidade do sagrado ilumina o fundamento comum de todas as religiões. Além disso, a sua caracterização dos mitos do Paraíso como descrições de níveis extáticos de percepção convida a uma discussão dos achados experimentais da psicologia dos estados alternados de consciência. Dentro em breve empreenderemos tal discussão. Às vezes, o enfoque mais simples e mais direto de um problema é o melhor, e, às vezes, no entanto, é o que vemos por derradeiro. Nesse caso, o enfoque mais direto da história universal da Idade de Ouro seria, sem dúvida, perguntar: E se o mito do Paraíso significar simplesmente o que ele diz - que houve um tempo em que os seres humanos partilhavam de um estado de ser em que conheciam a união com toda a vida e possuíam capacidades mágicas, e que esse estado de ser, de um modo ou de outro, tragicamente se perdeu? Vimos no capítulo anterior que os descobrimentos da arqueologia e da antropologia não descartam, de maneira alguma, a possibilidade de uma Idade de Ouro histórica. Vimos, pelo contrário, que o cenário mítico do Paraíso, da Queda e da catástrofe pode oferecer as bases de um novo paradigma histórico, capaz de integrar a provisão de anomalias que se acumulam em torno do atual paradigma puramente evolutivo. Neste capítulo, analisamos os possíveis significados

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psicológicos e teológicos do mito do Paraíso. Concluímos que a via de interpretação mais promissora é aquela em que se vê o mito referindo-se à experiência anteriormente universal de um estado de consciência fundamentalmente diferente do que hoje se considera "normal" - uma consciência de união extática, mística. Tais abordagens históricas e metafóricas não são contraditórias. Ambas convergem numa idéia simples e surpreendente: Houve realmente uma Idade de Ouro. E era um tempo em que, como insiste o mito, os seres humanos, sábios e inocentes, privavam com Deus e com a Natureza ao mesmo tempo, numa profundidade que dificilmente poderemos compreender. Previna-se, porém, o leitor: a despeito da sua simplicidade e da evidência em seu favor, a idéia que acabaremos de formular é tão radical do ponto de vista do consenso científico atual que atinge as raias da heresia. A contemplação de um Paraíso histórico de qualquer variedade é academicamente impopular, para dizer o mínimo. Pode ser incômoda também. Muitas pessoas acham deprimente pensar que o nosso modo de ser moderno é deficiente em comparação com o de povos antigos. Como veremos, entretanto, esse reconhecimento talvez nos dê a chave que abre uma porta para um estado beatífico de percepção - um estado que, de acordo com a concepção do mundo civilizada, "racional", nem sequer existe.

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CAPÍTULO 10 Desdobrando Imagens: O Espelho do Mito

Os antigos voltavam sua vida à manutenção do equilíbrio do universo:

a coisas grandes, imensas, coisas [misteriosas]. Xamã esquimó Najagneq

Virada e examinada por muitos ângulos, a história do Paraíso atua como uma espécie de espelho mágico, que não reflete para nós a nossa aparência imediata, mas nossa natureza essencial - quem somos e de onde viemos. Embora o mito fale ao cerne eterno da nossa identidade final, isso não quer dizer que vemos necessariamente nele o que outros antes de nós já viram. O conteúdo básico do mito pode ser mais ou menos dado, mas, à maneira que vamos conhecendo mais a respeito da mente e do espírito humanos, podemos começar a perceber padrões significativos em nossa imagem refletida onde antes só víamos formas borradas. Os recentes desenvolvimentos em psicologia, religião comparada, antropologia e arqueologia, por exemplo, não podem deixar de influir em nossa resposta à imagem universal do Paraíso e à nossa capacidade de compreender-lhe os reflexos calidoscópicos de nossa natureza mais íntima. Neste capítulo faremos uso do espelho do mito, a fim de estudar as implicações da tese que propusemos no fim da Terceira Parte - a de que a Idade de Ouro realmente existiu, e que era um tempo em que toda a humanidade partilhava de um estado místico de consciência. Nossos estudos procurarão responder a uma série de perguntas que essa tese naturalmente sugere. Primeira, que nova informação nos ministra o mito acerca da natureza da experiência mítica, e o que o nosso conhecimento de estados místicos e religiosos nos conta a respeito do mito do Paraíso?

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Uma segunda linha de investigação relaciona-se com a natureza da Queda. Se o Paraíso é caracterizado por uma consciência unitiva partilhada, como e por que se perdeu essa consciência? Os místicos no correr dos séculos disseram-nos que o principal impedimento à experiência do Paraíso é a atitude de alienação em relação ao fluxo da vida, atitude que traz consigo tanto a cobiça quanto o sofrimento. Muitos psicólogos e estudiosos de religião comparada equiparam essa atitude habitual ao ego humano e ao modo egocêntrico de funcionamento. O que o mito universal da Queda nos conta sobre a natureza do ego, e o que o nosso conhecimento psicológico e religioso do ego nos diz a respeito da Queda? Xamãs, santos e iogues têm sido conhecidos por controlar poderes milagrosos, reminiscentes dos poderes do lendário Primeiro Povo. Assim sendo, podemos também perguntar: O que o mito nos diz quanto à natureza e ao sentido dos milagres religiosos? E o que o estudo de capacidades paranormais nos conta acerca do mito do Paraíso? Finalmente, formularemos uma pergunta relativa à nossa conceituação do passado. A história, qual a conhecemos, foi escrita de um ponto de vista progressivista. Virtualmente, todos os historiadores começam com a presunção de que as pessoas estão hoje em melhores condições do que as dos seus distantes antepassados, e quanto mais para trás lançarmos os olhos veremos que mais pobres, mais estúpidas e mais abrutalhadas eram as pessoas. Mas o que aconteceria se os dados históricos e arqueológicos fossem ordenados de uma perspectiva paradisíaca? Será possível reinterpretar a história no contexto da história do Paraíso? O que significa o mito para a nossa compreensão do desenvolvimento de civilizações e instituições? Quando pomos os olhos no espelho mágico do mito, perspectivas religiosas, psicológicas, antropológicas e históricas convergem para refocalizar a imagem primordial de um mundo de beleza e maravilha. Visto que a imagem no espelho ainda está nebulosa, precisaremos lembrar-nos de que nossas interpretações são especulativas. Sem

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embargo disso, de vez em quando, captamos vislumbres de luz que atravessam a névoa e iluminam uma prisca e eterna memória - memória que parece viver dentro de nossas próprias células.

A Mente Original O estudo psicológico de estados alternados de consciência ainda está na infância, mas já desvendou vasta fronteira. Sabemos agora que o nível da percepção vigilante, que consideramos normal, é apenas parte de uma série infinda de estados conscientes potenciais. Assim como existem condições psicológicas subnormais, em que o indivíduo é isolado, retirado e incapacitado de interagir com o ambiente ou de funcionar efetivamente dentro dele, existem também estados supranormais, em que o indivíduo atinge poderes e percepções usualmente inacessíveis, de modo que o momento presente se torna uma janela para a possibilidade ilimitada. Já vimos que as qualidades de inocência e poder criativo, universalmente atribuídas ao Primeiro Povo, não sugerem uma condição psicológica infantil ou subnormal, mas uma condição supernormal. Mas supernormal de que maneira? Tomados em conjunto, poderão os antigos mitos e os achados da psicologia moderna (particularmente a psicologia da religião e dos estados alterados de consciência) dar-nos alguma idéia do que era realmente a consciência paradisíaca? Em 1901, o médico psiquiatra Richard Maurice Bucke publicou o seu estudo clássico intitulado Cosmic Consciousness [Consciência Cósmica], em que descreveu, em linhas gerais, as experiências de cinqüenta homens e mulheres cuja vida era assinalada por um clarão resplandecente de introvisão, seguido de um processo de transformação interior. A consciência cósmica, de acordo com Bucke, é "uma forma mais elevada de consciência do que a possuída pelo homem comum". É "a consciência do cosmo, isto é, da vida e da ordem do universo". Com isto vem uma "iluminação intelectual", uma "exaltação moral, um sentimento indescritível de elevação, exaltação e

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júbilo, e uma aceleração do sentido moral", juntamente com "um sentido de imortalidade, uma consciência da vida eterna, não a convicção de que a terá, mas a consciência de que já a tem". Em 1902, o psicólogo William James publicou outro estudo clássico ao longo das mesmas linhas, The Varieties of Religious Experience [As Variedades da Experiência Religiosa]. Confirmando a afirmação de Bucke sobre a existência de condições de percepção tão fundamentalmente diferentes da consciência desperta normal quanto a última é diferente do sono, James tentou classificar os estados místicos em níveis e categorias distintos. Segundo ele, todos têm duas características em comum: a inefabilidade - ou seja, desafiam a expressão, de modo que não se pode fazer com palavras nenhum relato adequado do seu conteúdo; e uma qualidade noética - a saber, eles parecem aos que os experimentam estados de conhecimento. São, escreveu James, "estados de introvisão nas profundezas da verdade, não sondados pelo intelecto discursivo". Mais recentemente, em 1975, o psiquiatra Stanley Dean esboçou as características do que ele denomina "ultraconsciência": 1. O início é anunciado por uma percepção de luz ofuscante, que inunda o cérebro e enche a mente. No Oriente chama se a isso "esplendor brahmânico". Walt Whitman refere-se a ela como a uma luz inefável - "luz rara, inenarrável, que alumia a própria luz" - além de todos os sinais, descrições, idiomas. Dante escreve que ela é capaz de "trans-humanizar o homem num deus...". 2. O indivíduo banha-se em emoções de alegria, êxtase, triunfo, grandeza, temor reverente e assombro - êxtase tão arrebatador que quase parece um orgasmo superpsíquico. 3. Ocorre uma iluminação intelectual totalmente impossível de descrever. Num lampejo intuitivo, tem-se a percepção do sentido e do curso do universo, a identificação e a fusão com a Criação, o infinito e a mortalidade, uma profundeza além da profundeza de sentido

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revelado - em suma, uma concepção do Supereu tão onipotente que a religião a interpretou como Deus... 4. Há um sentimento de amor transcendental e compaixão por todas as coisas vivas. 5. O medo da morte desprende-se como um casaco velho; o sofrimento físico e mental se desvanece. Há uma acentuação do vigor e da atividade mentais e físicos, um rejuvenescimento e uma prolongação da vida... 6. Há uma reapreciação das coisas materiais da vida, uma acentuada apreciação da beleza, uma compreensão da falta de importância das riquezas e da abundância, comparadas com os tesouros da ultraconsciência. 7. Verifica-se extraordinário aceleramento do intelecto, um descobrimento do gênio latente. Entretanto, longe de ser um estado passivo, semelhante ao sonho, dota o indivíduo de poderes tão extensos que são capazes de influir no curso da história. 8. Há um sentido de missão. A revelação é tão comovente e profunda que o indivíduo, não podendo contê-la dentro em si mesmo, é levado a partilhá-Ia com todos os seus semelhantes. 9. Ocorre na personalidade uma mudança carismática - uma radiância interna e externa, como se fosse carregada de um poder divinamente inspirado, uma força magnética que atrai e inspira os outros com lealdade e fé inabaláveis. 10. Há um súbito e gradativo desenvolvimento de talentos psíquicos extraordinários, como a clarividência, a percepção extra-sensorial, a telepatia, a precognição, a cura psíquica, etc.

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A experiência mística descrita por Bucke, James e Dean - tão claramente reminiscente de descrições míticas da natureza e da experiência do Primeiro Povo - foi conhecida de muita gente no mundo moderno, mas, de ordinário, só por alguns momentos numa vida inteira. Podemos apenas imaginar o que seria, para toda uma sociedade, compartir da abertura do coração, do sentimento de união com a vida, que as grandes almas da história provaram, mas numa base universalmente compartilhada e constante. O resultado talvez fosse uma espécie de mente coletiva. Como vimos no Capítulo 3, o mito do Paraíso parece implicar a existência primordial de uma mente unificada, que abarca toda a humanidade. As tradições hebraicas, indochinesas e maias, por exemplo, falam da linguagem original única, também partilhada com os animais. A lenda hopi do Primeiro Povo diz que eles "se sentiam como se fossem um só e se compreendiam uns aos outros sem falar". A mente original parece ter sido uma espécie de teia viva, pulsante, de interligação telepática, através de cujos fios fluía uma corrente de amor universal. Figuremos o que teria sido viver num mundo em que o sentido de perfeita harmonia, que, às vezes, conhecemos com os nossos amigos mais íntimos, fosse universal. Numa condição assim de confiança mútua - um mundo sem segredos e sem medos - não haveria ódio nem incompreensão. Em nossa sociedade atual, gastam-se quantidades incalculáveis de energia humana para controlar os resultados de nossas sensações de isolamento. Combatemos as ansiedades com drogas e distrações, ou expressamo-Ias por meio da competição, do crime e da guerra. Num mundo telepático, toda a energia, agora dada à luta, ao litígio e aos esforços de paz, seria liberada para a comemoração e o fomento de nossas conexões inatas com o Céu e a Terra. A mente original parece ter incluído mais do que a própria humanidade. O sentido da unidade universal está descrito nos mitos como se se estendesse ao resto da natureza e mais além. O antropólogo Roger Wescott, que contribuiu para a literatura dos

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estados de consciência5 e é um dos poucos na profissão que estudaram extensamente a mitologia do Paraíso, escreve: Visto que, ainda hoje, muitas pessoas sentem ter, pelo menos de vez em quando, mas comunhão espiritual imediata com muitas espécies de plantas e animais, é pouco provável que as mentes mais instáveis dos nossos antepassados paradisíacos a tivessem menos. Com efeito, eles podem ter tratado com consciências, em cuja própria existência achamos difícil acreditar, e muito menos experimentar. Tais consciências poderiam ter estado associadas - senão ligadas - a fenômenos inorgânicos de toda a sorte, dos minerais a estrelas. Além do mais, muitas tradições míticas concorrem no asseverar que, na Idade de Ouro, os seres humanos se associavam, fácil e freqüentemente, com seres desencarnados ou apenas intermitentemente encarnados, que iam desde as apavorantes divindades cósmicas até os espíritos locais brincalhões. Os mitos do Paraíso parecem dizer que a experiência da unidade universal é a condição natural, saudável da consciência humana, e que o costumeiro estado com que quase todos nós estamos familiarizados - o da separação egocêntrica, com todas as suas ramifIcações - é desnatural e mórbido. A idéia de que a consciência mística ou paradisíaca é inata e natural concorda também com os ensinamentos de quase todas as tradições religiosas. No budismo, por exemplo, a condição fundamental de união com o centro de todo o Ser chama-se natureza de Buda, essência da mente, ou mente original. Identifica-se com a consciência pura, presente em todos, conquanto na maioria das pessoas esteja mascarada pela ilusão da separação. Da mesma forma, a tradição hindu sustenta que o eu individual (Atman) é, na verdade, idêntico ao Eu Universal (Brahma), sendo este o caso para toda a gente. A iluminação não é a criação de uma forma de consciência fundamentalmente nova; antes, é o que acontece automaticamente quando conseguimos dispersar certas ilusões comuns.

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Encontramos, em essência, a mesma compreensão expressa - embora com menos freqüência - na tradição cristã. Para o monge dominicano do século XIV, Meister Eckhart, por exemplo, a "centelha divina" é propriedade de todos os seres humanos. Sempre que uma pessoa, interiorizando-se, deixa para trás as sensações, os pensamentos e as imagens da consciência superficial, realiza-se a união divina. Se a experiência individual da consciência cósmica é profundamente exaltante, jubilosa e edificante, só poderemos, provavelmente, começar a imaginar a profundeza do êxtase que teria caracterizado a consciência paradisíaca original, universalmente partilhada. Mas todas as nossas especulações a respeito da qualidade subjetiva do estado edênico de percepção - e especular é tudo o que nos resta no momento - só compõem o problema: Como e por que se perdeu tal modo satisfatório de ser?

O Ego e a Queda Como vimos no Capítulo 5, a despeito das numerosas descrições da tragédia primeva da Queda, fornecidas pelas várias mitologias do mundo, o evento retém um elemento de mistério. Se pudermos reunir o mito e a psicologia para esclarecer a natureza do Paraíso, poderemos fazer o mesmo com o evento principal que acabou encerrando a Idade de Ouro? Quase todas as religiões distinguem entre dois modos de ser, ou condições de percepção fundamentais. Um dos modos caracteriza-se pela ausência de necessidades e medos pessoais e pelo reconhecimento da interligação de todas as coisas; expressa-se em atitudes de responsabilidade, tranqüilidade, altruísmo e compaixão. Essa condição se identifica, de um lado, com o objeto de toda a devoção e prática religiosas, e, de outro, com o estado original da humanidade no Paraíso. O segundo modo básico de ser consiste na assunção da autonomia individual, proveniente de Deus e da Natureza; expressa-se nas atitudes de carência, medo, arrogância,

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dominação e censura. Como vimos, alguns psicólogos modernos, assim como muitos filósofos religiosos, identificam esse modo de consciência com o ego: quanto mais egocêntricos nos tornamos, menores probabilidades temos de perceber e apreciar a base unificada do ser, de que jorra toda a diversidade. Os mitos do Paraíso e da Queda parecem estar-nos dizendo que a tragédia primeva consistiu na transferência do foco da consciência humana coletiva da condição de unicida de e participação para a de separação, ganância e medo. A Queda, em suma, foi o aparecimento inicial do ego humano. A compreensão desses dois modos de ser essenciais é fundamental não só para o mito e para a religião, mas também para a psicologia. Todas as religiões do mundo, de um modo ou de outro, equiparam virtualmente a presença do ego à ilusão, ao sofrimento e à morte, e associam a experiência da unidade universal, ou união divina, à liberação, à criatividade, à vida e à bem-aventurança. Descobrimentos recentes em psicologia e medicina tendem a confirmar esses truísmos religiosos. Experimentos médicos têm mostrado, consistentemente, que as atitudes mentais e os estados emocionais exercem significativa influência sobre a saúde. Os estados emocionais associados à separação egoísta - cólera, culpa e sentimentos de isolamento - tendem a reduzir os níveis das substâncias químicas do corpo que servem de elevar o limiar da dor (endorfinas) e mantêm a imunidade à infecção (imunoglobulinas). As emoções associadas à transferência do ego - por exemplo, a empatia, o perdão e a educação produzem níveis mais altos dessas substâncias químicas críticas do corpo. Numa investigação, estudantes de universidade para os quais foi exibido um filme da detentora do Prêmio Nobel da Paz, Irmã Teresa, tratando de doentes e moribundos, em Calcutá, experimentaram aumentos imediatos de imunoglobulina salivar. Tais descobrimentos sugerem que, se houve uma idade de consciência mística partilhada, deve ter havido igualmente um tempo de relativa saúde e ausência de dor.

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A equiparação da Queda com a origem do ego também ajuda a esclarecer, e, por sua vez, é por ela esclarecida, a metáfora mítica do fruto proibido. Como se observou no Capítulo 5, a história da ingestão do fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal pode ser vista como uma alegoria que descreve o que acontece quando os seres humanos permitem seja o seu comportamento governado por carências ou medos obsessivos. Quando focalizamos egoisticamente nossa atenção em nossos próprios desejos pessoais, tornamo-nos menos sensíveis às necessidades dos modelos sociais e ecológicos mais amplos à nossa volta. Visamos metas e produtos finais, mas não fazemos caso das implicações mais extensas de nossos atos. Chegamos a imaginar que nos é possível colher o fruto "bom" da árvore e deixar o fruto "mau". Imaginamos, por exemplo, que podemos continuar abatendo florestas para fazer lenha sem jamais desfalcá-Ias de árvores. Porque a nossa absorção em nossas próprias carências nos levou a não dar atenção aos efeitos inevitáveis dos nossos atos, esses efeitos, quando se fazem sentir, parecem arbitrários e imerecidos. Começamos a imaginar que estamos vivendo num mundo hostil, o medo toma conta de nós, e os nossos sentimentos de isolamento se intensificam. O modo egóico de ser é hoje considerado tão inconteste por quase todo o mundo que é amiúde equiparado à natureza humana. Tornou-se parte do nosso direito hereditário, uma gaiola dentro da qual nascemos e da qual ninguém - aparentemente - consegue escapar de todo. Como vimos no Capítulo 9, alguns filósofos (incluindo Kant, Hegel e Jung) sustentaram que o desenvolvimento do ego era uma parte necssária da evolução humana. Os mitos insistem em outra coisa. O argumento favorável à concepção mítica foi expresso, com clareza e introvisão características, pelo filósofo Alan Watts em seu Psychotherapy East and West [Psicoterapia no Oriente e no Ocidente]: A teoria de Jung da evolução da consciência e do ego...leva-o a enxergar o modo egocêntrico de consciência como um passo

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universal e historicamente necessário no desenvolvimento da humanidade. É o mecanismo problemático, mas essencial, para regular os instintos primordiais do pântano e da caverna, para elevar a humanidade acima do nível meramente animal. Deveríamos, porém, atentar para outra alternativa: a de que a bestialidade peculiar ao homem tem pouco a ver com as bestas; que as suas irracionalidades, apetites desordenados, histerias de massa e feitos de violência e cruel dade chocantes não são, de forma alguma, historicamente regressivos. ... Acaso a prática da psicoterapia, em contraposição à teoria, não o confirma repetidamente? O indivíduo perturbado não é tanto o retrocesso histórico em que a força suficiente do ego deixou de desenvolver-se, de um modo ou de outro, quanto é a vítima de um excesso de ego, de um isolamento individual exagerado. De mais disso, não deveríamos presumir que o desenvolvimento do ego é a base universalmente necessária da consciência e da inteligência. As estruturas neutras do "tear encantado", o cérebro, do qual depende a inteligência, não são, de certo, criações deliberadas de nenhum ego consciente, e não se dissolvem em pasta quando se vê que o ego é fictício - por um ato de inteligência. Seguir-se-ia daí, portanto, que, quando o ego se dispersa, não há "invasão" da consciência levada a cabo pelo conteúdo primordial do pântano e da mata. Em vez disso, há introvisão: a percepção de um padrão inteiramente novo de relações, comparável a um descobrimento científico ou artístico. A pesquisa médica e psicológica dá a entender que as atitudes do ego humano isolado são mórbidas. Além disso, as grandes tradições espirituais do mundo nos dizem que o ego é desnecessário e artificial. Se a criação do ego não foi uma necessidade evolutiva, por que aconteceu? Como poderia desandar o que já era perfeito? Desejamos, naturalmente, uma resposta racional, significativa para a pergunta. No entanto, é possível que não exista nenhuma resposta racional. Talvez a Queda tenha sido apenas um equívoco.

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Equívocos acontecem; se bem nosso corpo, por exemplo, tenda a funcionar eficazmente e a consertar-se em caso de doença ou acidente, a doença e o acidente são possíveis. Todo sistema complexo é capaz de funcionar mal. Entretanto, os desequilíbrios, de ordinário, acabam sendo corrigidos, sobretudo em sistemas biológicos. A natureza absorve os produtos da desintegração e cria de novo. Não é possível que o complexo sistema da consciência humana tenha simplesmente funcionado mal? Ao passo que, em termos humanos, esse mau funcionamento pareça catastrófico, em termos cósmicos pode ser uma condição relativamente local e temporária, que será finalmente equilibrada e neutralizada no fluxo e refluxo de ciclos maiores (embora da nossa perspectiva atual dificilmente poderemos imaginar como isso é possível). Se a natureza ontológica da Queda se torna mais clara à maneira que o mito e a psicologia se refletem um ao outro, os pormenores históricos do evento podem permanecer nebulosos para sempre. Talvez o ego se tenha originado de uma experiência aberrante, que envolvesse os pensamentos e ações independentes de uns poucos indivíduos. A atitude isolada pode ter-se parecido com o progresso para os envolvidos. Quem poderia ter conhecido a conseqüência final?

A Sobrevivência do Milagroso Como vimos no Capítulo 3, os mitos de todas as culturas descrevem o Primeiro Tempo como uma idade de milagres e maravilhas em que as pessoas refulgiam com sua luz e possuíam a capacidade de conversar com animais e voar. Muitos intérpretes dos mitos do Paraíso deixam de lado essas imagens por demasiado problemáticas. Para nós, contudo, são pistas importantes. Como é que a nossa tese projeta luz sobre a natureza e o significado de fenômenos milagrosos? E com o que contribui para a compreensão do mito um estudo de poderes e percepções paranormais? Seria demasiado simples encarar os milagres do Primeiro Povo como metáfora pura. Podemos ver a capacidade mágica de voar, por

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exemplo, como metáfora da habilidade de obter acesso a níveis transcendentes de consciência, e podemos enxergar a luminosidade do Primeiro Povo como uma "luz interior", que Ihes permitia "ver" as obras do Cosmo e da Natureza. Mas o estudo antropológico de povos tribais e o estudo comparado de religiões sugere outra possibilidade, mais intrigante: talvez as capacidades milagrosas do Primeiro Povo fossem objetivamente reais. Os chamados milagres - exibição de capacidades humanas inexplicáveis em função do nosso atual conhecimento científico - não são desconhecidos do mundo histórico, pós-paradisíaco, e quase sempre se associam a estados místicos de consciência. Ademais, encontramos descrições do exercício de capacidades "impossíveis" em todos os continentes e em todos os períodos da história. Para os africanos, os aborígines e os nativos americanos, a capacidade do xamã ou do feiticeiro de entender-se com espíritos animais e, em certos casos, de voar é lendária. O "homem talentoso" australiano, por exemplo, é capaz de convocar um animal "familiar" para assisti-Io, e dizem até que é capaz de transformar-se em um animal. Domina os elementos, cura doenças, torna-se invisível, move-se pelo ar, ou corre rapidamente sem tocar o chão com os pés. E existem provas de que notícias dessa capacidade, ainda que às vezes exageradas, não são totalmente imaginárias. Eliade escreve: "grande número de documentos etnográficos já colocou fora de dúvida a autenticidade desses fenômenos". Exemplos de capacidades milagrosas, confirmadas, de outras culturas tribais incluem a clarividência e a telepatia entre os camãs de Tonga; clarividência entre os zulus; levitação e comunicação com espíritos animais entre os feiticeiros dos nativos americanos; e profecia e clarividência em sonhos entre os pigmeus. Uma discussão de todos os poderes paranormais seria aqui descabida. Em lugar disso, concentrar-nos-emos em relatos que parecem ecoar descrições míticas das três principais capacidades ou características milagrosas atribuídas ao Primeiro Povo.

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A capacidade de entender-se com animais está preservada nas tradições xamânicas de quase todas as culturas tribais. Uma parte notável do ritual de iniciação do xamã é o encontro com um animal, que se torna seu espírito familiar, revelando-Ihe conhecimentos secretos, que, não raro, incluem a linguagem dos animais. Entre os índios da América Central, o espírito animal guardião é conhecido como nagual. Escreve o antropólogo Áke Hultkranz que o "elo estreito e íntimo” entre o humano e o nagual - que é "às vezes o representante espiritual generalizado de toda uma espécie animal, outras vezes um simples animal real" - se expressa na capacidade do xamã de transformar-se nesse animal familiar. Relações semelhantes entre humanos e espíritos animais foram descritas pelo antropólogo australiano A. P. Elkin em seu estudo dos "homens de grau elevado" aborígines. O animal totêmico "avisa a réplica humana do perigo, e chega a prestar-lhe serviços, como obter informações sobre eventos a distância". Eliade sumaria a situação dizendo que "a amizade com os animais, o conhecimento da sua linguagem e a transformação em animal são outros tantos sinais de que o xamã restabeleceu a situação 'paradisíaca' perdida no aurorescer do tempo". Existem pessoas em sociedades civilizadas que revelaram uma capacidade semelhante de comunicar-se com os animais. Esta, por exemplo, foi atribuída a certo número de santos cristãos, incluindo São Francisco de Assis. Em 1954, Allen Boone publicou o livro clássico Kinship with All Life [Parentesco com toda a vida], em que referiu suas experiências de profunda comunhão com membros de várias espécies - comunhão baseada no respeito, nas brincadeiras e na expressão de nobreza de caráter. Mais recentemente, o cientista John Lilly e o músico Jim Nollman escreveram sobre os seus experimentos bem-sucedidos de comunicação com golfinhos. Lilly e Nollman chegaram à conclusão de que níveis profundos de comunicação com animais estão abertos a quem tiver paciência e abertura de coração, suficientes.

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Como se observou, a capacidade de voar é também amplamente imputada a feiticeiros e xamãs em sociedades tribais. O funcionário Ray Kelly do departamento australiano de Parques e Incêndios é um iniciado em segundo grau dos Bhunguttis e havido pelo maior conhecedor dos "homens talentosos" do que qualquer outra pessoa no nordeste da Austrália. Kelly diz que, antes da disrupção da cultura aborígine pelos colonos brancos, havia quatro graus de iniciação, e que era no quarto que os iniciados aprendiam a voar. Dez por cento dos aborígines, no máximo, atingiam esse grau. As chacinas da década de 1860 e a subseqüente atividade dos missionários entre os aborígines suspenderam as iniciações, com poucas exceções. Diz Kelly que o último dos "homens talentosos" do quarto grau deve ter morrido há coisa de vinte anos. Um tio, que alcançara o terceiro grau, contou-lhe ter visto um homem do quarto grau "voar de uma montanha para outra". O poder do vôo mágico não é desconhecido entre os povos civilizados - onde, mais uma vez, está quase sempre associado a estados religiosos ou místicos de percepção. Existe uma tradição entre os chineses, por exemplo, segundo a qual os sábios e alquimistas taoístas eram capazes de erguer-se no ar. Na Índia, também, a tradição do vôo mágico é antiga e difundida: para os iogues, a levitação é apenas um dos siddhis (poderes milagrosos) que podem ser conseguidos através de exercícios espirituais. E, para o budista, o vôo é uma capacidade natural do arhat (o iluminado). Afirma-se ainda que certos santos cristãos levitaram; um exemplo é São José de Cupertino, que viveu no século XVII. Conta uma testemunha: "Ele ergueu-se no espaço, no meio da igreja, voou como um passarinho até o altar-mor, onde abraçou o tabernáculo. ... Às vezes, também, era visto voando para o altar de São Francisco e para o da Virgem do Grotello". Até o mito da luminosidade original dos seres humanos tem correspondências na experiência e tradições, tanto dos povos tribais quanto dos povos civilizados. De acordo com o etnólogo Knud Rasmussen, os xamãs esquimós relatam uma experiência mística de:

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Uma luz misteriosa que o xamã sente, repentinamente, no corpo, dentro da cabeça, no interior do cérebro, um farol inexplicável, um fogo luminoso, que lhe permite ver no escuro, literal e metaforicamente falando, pois ele pode agora, até de olhos fechados, ver no escuro e perceber coisas e acontecimentos porvindouros, que estão ocultos dos outros. Várias figuras religiosas históricas, segundo se diz, fulgiram literalmente. Entre elas figura Moisés, quando desceu do Monte Sinai; Jesus, na transfiguração; e diversos santos cristãos. Diz-se, por exemplo, que quando o Aba Sisoes jazia em seu leito de morte, com os padres sentados ao redor: Seu rosto começou a brilhar como o sol. E ele disse aos outros: "Aqui está o Aba Antônio chegando". E, pouco depois: "Aqui está o grupo de profetas", e o rosto lhe brilhou ainda mais. Depois disse: "Aqui está o grupo dos apóstolos", e a luz do seu rosto ficou ainda mais brilhante. Em seguida, Sisoès "exalou o último suspiro, e foi como o clarão de um relâmpago". Nas religiões de povos civilizados, os milagres são amiúde associados ao grande refinamento de caráter e vistos como prova da presença divina. Nas sociedades tribais, são reconhecidos como lembretes da condição paradisíaca original da humanidade e da natureza. Segundo Eliade, o xamã inicia o seu transe, durante o qual se executam os seus feitos milagrosos, a fim de "abolir esta condição humana - isto é, as conseqüências da 'queda' - e reentrar na condição do homem primordial, tal como é descrita nos mitos paradisíacos". Mas a capacidade dos xamãs de chamarem de volta a condição original, milagrosa, vem diminuindo, geração após geração. Eliade escreve que "os chukchees, os coriaques e os tongans, bem como os selk'nams da Terra do Fogo, concordam em que os 'velhos xamãs' tinham poderes muito maiores, e que o xamanismo hoje está em declínio. Os iacutes

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relembram com saudade o tempo em que o xamã voava diretamente para o céu". Em resumo, tanto nas tradições xamânicas de povos tribais, quanto nas tradições religiosas escriturais do Oriente e do Ocidente, encontramos relatos de capacidades supernormais, reminiscentes dos poderes milagrosos do Primeiro Povo. Isto sugere não só que as descrições míticas das maravilhas da Idade de Ouro podem ser mais do que simples metáforas, mas também que a transformação espiritual da condição humana decaída atual traz consigo a volta do estado paradisíaco, incluindo a transcendência de muitas limitações físicas comumente aceitas.

Revisionando a História Conforme a tradição universal, nós, seres humanos, trocamos a alegre e milagrosa experiência da unidade universal pela condição alienada da separação egóica. De um ponto de vista psicológico e espiritual, isso dificilmente soará como progresso. Não obstante, a maioria dos estudiosos encara a história humana como uma longa série de aprimoramentos gradativos, conducentes à nossa civilização industrial presente, que, para eles, é a meta desejável e inevitável da evolução cultural.

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Adam and Eve Sleeping [Adão e Eva dormindo], de William Blake

(1808). Uma das doze Ilustrações para o Paraíso perdido de Milton. Adão e Eva dormem pacificamente no Jardim do Éden, antes da

Queda, velados pelos anjos Ituriel e Zefan, que acabam de descobrir Satanás, como um sapo escarrapachado, perto do ouvido de Eva,

tentando-a num sonho.

Será possível reescrever a história desde a perspectiva paradisíaca? Para fazê-Io item por item seriam precisos alguns volumes. Teríamos de examinar a origem e o desenvolvimento da religião, da economia, da teoria política, da Ciência e da tecnologia, observando o modo com

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que os dados históricos se realinham quando vistos como desenvolvimentos pós-paradisíacos. Ao passo que um projeto dessa natureza é obviamente pouco prático aqui, pode-se fazer, todavia, o mais breve dos exórdios. O que se segue é um exercício especulativo inicial num revisionamento paradisíaco da história. Talvez o melhor lugar para começar seja imediatamente antes do começo da própria história - a saber, pouco depois do colapso da cultura unitária original. Após a devastação da natureza e da sociedade humana registrada nos mitos da Queda e das subseqüentes catástrofes naturais, várias gerações devem ter vivido na mais absoluta confusão. Gradualmente, grupos de sobreviventes se teriam abandado, e, dependendo do sítio em que estavam e de quais haviam sido as suas experiências, deveriam ter começado a construir culturas rudimentares. A partir desse ponto, descreverei um curso hipotético de acontecimentos, reconstruídos com a ajuda de dados históricos e arqueológicos. Eis aí o que pode ter acontecido: Alguns grupos maiores, em áres relativamente hospitaleiras, permaneceram estacionários e desenvolveram sociedades pacíficas, dedicadas à horticultura. Estes foram os povos que domesticaram todas as nossas atuais colheitas de alimentos e edificaram as cidades pacíficas recentemente escavadas na Velha Europa e no Oriente Próximo. Outros grupos, menores, de sobreviventes em áreas mais devastadas foram forçados a perambular em busca de alimento. Por que a vegetação era escassa, tiveram de subsistir da caça e, finalmente, do pastoreio de animais. Inteiramente aterrorizados pelos elementos desencadeados, os pastores nômades puseram-se a adorar um deus celeste de terror e a infligir compulsivamente os seus medos terríficos a todas as culturas nascentes com as quais lhes sucedia entrar em contato. Estas eram as tribos do norte, cujas conquistas instilariam um caráter agressivo e belicoso nos fundamentos da civilização. As pessoas lembravam-se vagamente dos representantes divinos, que haviam presidido a Idade de Ouro, e, onde quer e como quer que se

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reunissem, olhavam naturalmente para os chefes que melhor exemplificavam as qualidades paradisíacas de caráter. Entretanto, sobretudo entre as tribos nômades, um estado acentuado de medo exigia um estilo duro e autocrático de liderança. Destarte, desde o quarto até o segundo milênios a.C., à medida que os nômades invadiam as cidades dos horticultores sedentários, nasceram as cidades-estado militares, socialmente estratificadas. Na proporção em que os chefes das cidades-estado eram movidos pelo medo, pela ganância, pela fome de poder, o governo, aos poucos, se tornou uma entidade secular, cujos objetivos principais eram a proteção e a extensão dos privilégios materiais. As leis e o crime apareceram simultaneamente. Ao passo que a organização se tomava mais complexa, tornou-se necessário controlar o comportamento cada vez mais irracional de algumas pessoas - mas as penalidades impostas e as compulsões instituídas só serviram para restringir as ações naturais, espontâneas, de que todas as pessoas eram ainda capazes. Em todas as sociedades e em quase todas as gerações, surgiram uns poucos indivíduos extraordinários, capazes de reaver e exemplificar a consciência paradisíaca, que serviam como padres, profetas, ou xamãs, preservando o mito e o ritual e exercitando capacidades psíquicas e de cura. Proporcionaram estabilidade e propósito às suas comunidades e um elo vital entre a Natureza e o Céu. Mas se bem as pessoas pudessem reverenciar os ditos dos que tinham sido divinamente ungidos, já não se podiam compreender plenamente certas idéias e termos. Quando os líderes espirituais empregavam as palavras Céu, Paraíso e espírito, as pessoas, muitas vezes, só logravam a compreensão tateando. Lembranças esvoaçavam momentaneamente e depois morriam. Teorias e dogmas proliferavam à proporção que o próprio clero perdia contato, pouco a pouco, com a dimensão paradisíaca da consciência; as pessoas faziam comparações e combatiam interpretações. A maioria das culturas degenerou em culto aos antepassados, o qual apenas parodiava a lembrança evanescente do Céu e da Idade de Ouro.

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Assim, na maioria dos casos, as religiões - todas as quais comemoram a existência anterior de um Paraíso terreno e tentam reviver o estado beatífico de consciência experimentado, em outro tempo, por todas as pessoas - tornaram-se meros códigos de dogmas, a respeito dos quais os seres humanos brigaram interminavelmente. No princípio não havia conceito algum de propriedade privada. Posto seja especulativo, este pensamento, sem embargo, é conforme a tudo o que sabemos das culturas primevas, e sugere que o dinheiro não surgiu como um símbolo de posse material, senão como meio de conter e transmitir certa substância espiritual - uma energia de vida e de cura rotineiramente investida na matéria pela humanidade paradisíaca. À medida, porém, que diminuiu a percepão da dimensão espiritual e as trocas foram cada vez mais motivadas pela carência material, os símbolos que facilitavam essas transações tornaram-se mais e mais abstratos: em lugar de usar objetos e substâncias carregados de energia, inerentemente valiosos, as pessoas puseram-se a usar símbolos inertes, convenientes. Com as coisas físicas representadas por símbolos monetários abstratos, intrinsecamente sem valor, os objetos materiais podiam ser manipulados interminavelmente sem consideração pela sua singularidade, pelo seu lugar dentro de um contexto mais amplo, ou pelo seu significado e finalidade inerentes. A praça do mercado passou a existir como meio de equiparação - e, daí, de desconsagração - de todas as coisas: dez unidades monetárias, no valor de uma vaca, podiam ser trocadas por dez unidades no valor de determinada quantidade de ferro, dez unidades no valor do trabalho humano, e assim por diante. Desse modo, o dinheiro, que começara como símbolo da substância do Céu investida na Terra, pouco a pouco foi se tornando um meio de degradação e escravização das pessoas e de rapina e desconsagração do planeta. Na Primeira Idade, o conhecimento era inseparável da sabedoria, a qual talvez se defina melhor como o sentido da conveniência das coisas. O conhecimento era de conjuntos, de interação orgânica, e do giro de sistemas dentro de sistemas. Mas à maneira que os seres

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humanos perderam a percepção da sua identidade e propósito, também perderam o conhecimento das operações da natureza. Procuraram reaver o conhecimento perdido, mas o seu motivo para a reaquisição era o desejo de dominar egoisticamente os processos da natureza, e o método usado foi a análise - a fragmentação e o dilaceramento de conjuntos. O conhecimento, assim, divorciou-se da sabedoria. Assim como o uso de símbolos monetários abstratos serviu para desconsagrar a natureza, o mesmo fez a busca do conhecimento analítico. Finalmente, descobriu-se que a maneira mais eficiente de analisar e dominar a natureza é negar-lhe todo e qualquer atributo não-físico. Daí que, através da análise, tornou-se possível conhecer cada vez mais sobre cada vez menos, e utilizar esse conhecimento sem nenhum interesse pelos valores espirituais. À proporção que a consciência humana perdeu o contato com a sua fonte interna, celeste, de poder, a tecnologia emergiu como um poder substituto. Sua primeira aparição registrou-se qual magia congenial e invocação de seres espirituais para mudar a natureza em benefício dos homens. Entretanto, como a percepção humana foi-se restringindo cada vez mais ao mundo material, apareceram tecnologias puramente mecânicas. Com o casamento entre a ciência e a tecnologia, tornou-se possível transformar a energia armazenada na madeira, no carvão, ou no óleo em exibições impressionantes de poder, de modo que um indivíduo, fazendo uso de máquinas, podia fazer o trabalho de centenas. Tão impressionantes eram essas capacidades que os descobrimentos tecnológicos entraram a criar novos desejos - por exemplo, do transporte e da comunicação mais rápidos, de um luxo maior e de conveniências de toda a casta. Tais desejos logo se tornaram em necessidades. Entrementes, poucos notaram que o trato da máquina tecnológica passou a desviar cada vez mais a atenção das pessoas de suas relações com a natureza e de umas com as outras. Por intermédio da tecnologia, as pessoas puderam construir um ambiente artificial, em que se viram completamente isoladas, por suas próprias criações, de

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todo o contato com as pulsações cíclicas do Cosmo e com as profundas e terrenas necessidades da Natureza. As lembranças do Céu e do Paraíso não se limitaram a desaparecer e decair, mas foram ativamente negadas. A crise avultou, ameaçadora, mas poucos se dispuseram a fazer alguma coisa para evitá-Ia. Subsistiu apenas um sopro incômodo de lembrança - e uma antiga profecia de um tempo de purificação, quando o mundo artificial, inventado pelos homens, seria levado embora, e divinos representantes retornariam para instaurar uma nova Idade de Ouro. Até agora, usamos o espelho do mito para ver o passado. O que vimos pode ter importantes implicações para a compreensão do potencial humano, para o entendimento das causas fundamentais da nossa angústia individual e social, e para a remodelagem dos fundamentos da história. Mas se olharmos mais profundamente no espelho, veremos a imagem de um Paraíso que ainda está conosco e dentro de nós, e cuja presença inelutável transcende o próprio tempo.

CAPÍTULO 11 O Paraíso Agora: Entre o Céu e a Terra

O Celeste está no interior, o humano está no exterior. A Virtude reside no Celeste. Compreenda as ações do Céu e do homem, baseie-se no Céu, tome a sua posição na virtude, e, então, embora você se apresse ou recue, se incline ou se retese, poderá voltar ao essencial e falar de

definitivo. Chuang Tzu

Não há morte, apenas uma troca de mundos.

Chefe Seattle

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Vimos no Capítulo 4 que um sem-número de tradições coloca o Paraíso não só no princípio da história, mas também em outra dimensão ainda persistente da existência - o Outro Mundo, para o qual os antigos povos acreditavam estar destinados a ir após a morte. Originalmente, de acordo com o mito, o Paraíso terreno e o Paraíso do Outro Mundo estavam ligados por uma ponte de arco-íris. O Primeiro Povo, descrito como imortal, era capaz, ao que se dizia, de ascender ao Céu à vontade. Mais tarde, a ponte do arco-íris (ou uma corda ou escada primordial, que servia para ligar os dois mundos) foi cortada ou retirada, e, desde então, as pessoas raramente têm obtido acesso ao Paraíso celeste enquanto ainda fisicamente vivas. Conquanto a imortalidade e o Outro Mundo sejam essenciais à narrativa do Paraíso universal, e apareçam em quase todas as versões, parecem apresentar os maiores problemas para uma interpretação histórica do mito. Afinal, não é a idéia do Outro Mundo imaginação pura, e a da imortalidade mero faz-de-conta? No correr dos três últimos capítulos confrontamos os achados da psicologia, da antropologia e da arqueologia com o conteúdo do mito do Paraíso. Ao fazê-Io, descobrimos que a evidência moderna não elimina a possibilidade de um Paraíso histórico. Na realidade, os descobrimentos da ciência podem ser usados para esclarecer a nossa compreensão das imagens míticas, ao mesmo tempo que os próprios mitos sugerem novas maneiras de entender alguns dados da ciência. Neste capítulo investigaremos algumas descobertas recentes da psicologia, relacionadas com as questões da morte e da imortalidade. Outrossim, a ciência e o mito se refletem um sobre o outro para fornecer uma imagem mais clara. Como alguns dados científicos que já citamos, os descobrimentos sobre os quais pretendemos agora refletir são inconcludentes e controvertidos. Não obstante, relacionam-se não só com o mito do Paraíso, mas também com as questões fundamentais da existência humana.

A Experiência da Quase-Morte

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Em anos recentes, novas técnicas em cuidados sanitários de emergência têm resultado num aumento significativo do número de pessoas salvas quando já estão à beira da morte. Freqüentemente, um paciente ressuscitado recorda uma experiência de paz, júbilo e de comunhão telepática com seres de luz. Diversos médicos e psicólogos, intrigados pela freqüência e similaridade de tais relatos, decidiram-se a investigá-Ios. Dois dos primeiros estudos publicados sobre experiências de quase-morte foram os livros populares de Raymond Moody Life after Life [Vida após a vida] e Reflections on Life after Life [Reflexões sobre a vida após a vida]. Filósofo e psiquiatra, Moody descobriu que as histórias de experiências de quase-morte tendem a concordar com a seguinte descrição generalizada: Um homem está morrendo, e, ao atingir o ponto de maior angústia física, ouve o médico pronunciá-Io morto. Começa a ouvir um barulho incômodo, um toque de campainha, ou um zumbido, e, ao mesmo tempo, sente-se mover muito rapidamente através de um longo túnel. Depois disso acha-se, de repente, fora do corpo físico, mas ainda no ambiente físico imediato, e enxerga o próprio corpo à distância, como se fosse um espectador. Assiste à tentativa de ressuscitação do seu privilegiado ponto de observação, num estado de perturbação emocional. Volvido algum tempo, cobra ânimo e acostuma-se melhor à sua estranha condição. Nota que ainda tem um "corpo", mas de natureza e com poderes muito diferentes dos do corpo físico que deixou para trás. Logo começam a acontecer outras coisas. Outros vêm encontrar-se com ele e ajudá-Io. Vê, de relance, os espíritos de parentes e amigos que já morreram, e um espírito caloroso e quente de uma espécie que nunca encontrou até entâo - um ser de luz - aparece à sua frente. Esse ser faz-lhe uma pergunta, não verbalmente, para fazê-Io avaliar a sua vida, e ajuda-o mostrando-Ihe um apanhado instantâneo e panorâmico dos principais acontecimentos de sua existência. Em algum ponto, descobre-se chegando perto de

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uma espécie de barreira ou fronteira, que representa, aparentemente, o limite entre a vida terrena e a próxima vida. Entretanto, descobre que precisa voltar à Terra, que o momento da sua morte ainda não chegou. Nesse ponto, resiste, pois agora, empenhado em experiências no pós-vida, não quer retornar. Sente-se dominado por intensos sentimentos de alegria, amor e paz. Todavia, a despeito da sua atitude, de um modo ou de outro, reúne-se ao corpo fisico, e vive. Mais tarde, tenta contar a outros a sua experiência, mas tem dificuldade para fazê-lo. Em primeiro lugar, não encontra palavras humanas adequadas à descrição desses episódios extraterrenos. Descobre também que outros fazem troça dele, de modo que deixa de contar aos demais. Mesmo assim, a experiência lhe afeta profundamente a vida, sobretudo as opiniões a respeito da morte e da relação dela com a vida. As narrativas de experiências de quase-morte, como os mitos do Paraíso terreno ou do outro mundo, nos descrevem um reino de amor e paz, povoado de seres radiantes, oniscientes, cuja comunicação é telepática e completa. A força desses paralelos - e a intensidade pessoal da experiência tornam-se ainda mais aparentes quando examinamos um relato especifico em primeira mão. Depois de um desastre de automóvel, quase fatal, em 1976, o antropólogo Patrick Gallagher ficou em estado de coma durante algumas semanas. A sua experiência de quase-morte foi extensa e vívida, típica do que os pesquisadores denominam uma experiência "central". Aqui estão alguns dos pontos mais expressivos da sua notável história: Não somente me libertei da gravidade, mas também de todas as outras restrições humanas. Eu podia voar, e voar tão bem que me sentia transformado. ... Em seguida, dei com a visão de uma árvore escura à minha frente, vazia de toda a luz, que percebi ser a entrada de um túnel. ...

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Finalmente, avistei uma luz circular a distância... amarelo-alaranjada, de beleza total. ... Quando saí do túnel, entrei numa área ofuscantemente bela. ... Era um espaço completo, ou seja... total e perfeitamente iluminado. ... Vi [ali] certo número de pessoas, algumas das quais estavam vestidas e algumas não. As roupas, que se diriam transparentes, eram decorativas, mas não... defensivas. ... As próprias pessoas eram também graciosamente belas. ... Todas as que ali se achavam, como fiquei sabendo no momento em que cheguei, pareciam possuir um conhecimento tão radiante, transfigurante e ideal quanto a luz resplandecente. E eu o possuía também. ... Percebi que tudo o que devia fazer era aproximar-me de uma pessoa interessante e, com extrema facilidade e quase de inopino, compreender-lhe a essência. Para fazê-Io completamente bastava um rápido olhar... dirigido aos olhos da pessoa, sem nenhuma fala... o resultado era uma troca pefeita de conhecimentos. As palavras não proporcionam sequer uma sugestão desse conhecimento universal. Sem reflexão nem palavras, eu conheci-os tão integralmente quanto eles me conheciam e, por fim, compreendi por que, no dizer dos poetas, os olhos são a janela da alma. ... Também percebi que a luz iluminativa nunca cessaria: ninguém tinha necessidade de dormir. ... Percebi também que todas as pessoas presentes se achavam num estado de perfeita compaixão em relação a toda a gente e a todas as coisas. ... Estávamos livres das invenções que os historiadores afirmam com freqüência serem as causas da guerra e de outros conflitos, incluindo a terra, o alimento e o abrigo. O único axioma era o amor. Essas condições ideais produziram um estado fenomenal, pois não estava presente nem o ódio nem qualquer outra paixão conturbadora - apenas a presença total do amor. ... Entendi que era muito possível voltar à minha vida terrestre, e senti falta... de meus filhos, minha esposa, e muitos outros. Decidi regressar, embora soubesse também que o preço da passagem seria gargantuesco: aceitando as necessidades e desvantagens biológicas, fisiológicas e fisicas do meu corpo, assim como a perda, exceto uma

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esquírola, do meu conhecimento luminoso. Nada sei sobre nenhum aspecto da viagem de volta, mas, assim que decidi voltar e perdi o TUDO do que sempre desejara ser ou saber, eu estava lá. Se as lembranças de Gallagher fossem reexpressas apenas ligeiramente, de modo que parecessem vir de alguma fonte antiga, poderíamos imaginar estar lendo outro mito do Paraíso. Sua experiência verificou-se num lugar bonito, semelhante a um jardim; ele conheceu pessoas radiantes, com as quais partilhou de imediata compreensão telepática; e assim o lugar como os seus habitantes estavam impregnados de uma sensação de paz, inocência e amor.

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A ascensão dos bem-aventurados, de Hieronymus Bosch

(aproximadamente no ano de 1500). Em sua pintura da ascensão dos bem-aventurados ao Céu, Bosch utilizou imagens semelhantes às que são descritas pelos modernos sujeitos a experiências de quase-morte:

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eles se aproximam de uma luz brilhante, depois de passar por um longo túnel em que os espíritos flutuam, livres e sem peso.

Existem, literalmente, centenas de milhares de pessoas, vivas ainda hoje, que fizeram uma viagem semelhante ao Paraíso do Outro Mundo e voltaram para contá-Ia. O especialista em inquéritos de opinião pública, George Gallup Jr. descobriu que, praticamente, 5% da população adulta da América do Norte tiveram uma experiência de quase-morte. Ainda mais notável do que a freqüência das experiências é o seu impacto sobre as vidas humanas. Quando solicitados a comparar a experiência de quase-morte com sonhos de que se lembram, os sujeitos dão ênfase à qualidade distintamente anti-sonhadora da experiência. Com efeito, um comentário ouvido com freqüência é que a realidade desperta comum parece um sonho em comparação com a experiência de quase-morte: "Senti como se eu estivesse acordado pela primeira vez na vida." Além disso, a experiência parece, em quase todos os casos, resultar numa drástica e imediata reorientação de valores. Notando essa tendência, o psicólogo Kenneth Ring fez um levantamento de vinte e seis experiências de quase-morte a fim de avaliar, sistematicamente, mudanças de atitude e de valores depois da experiência. Em seu livro Heading Toward Omega [Caminhando para Omega], ele conclui: Depois de uma experiência de quase-morte, os indivíduos tendem a mostrar maior apreço pela vida e mais consideração e amor aos semelhantes, ao mesmo passo que o interesse por status pessoal e posses materiais diminui. A maioria dos sujeitos de experiências de quase-morte também declara que vive depois da experiência com um sentido aumentado de propósito espiritual, e, em certos casos, procura uma compreensão mais profunda do sentido essencial da vida. Além disso, os relatos pessoais tendem a ser corroborados por outras pessoas em condições de observar o comportamento do sujeito da experiência de quase-morte.

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Outros estudos demonstraram que as experiências tendem a ser semelhantes na estrutura básica, sem impedimento da prática e das convicções religiosas do sujeito. Tanto os ateus quanto os devotos freqüentadores de igrejas têm a mesma probabilidade de passar por uma experiência de quase-morte, e experimentar um túnel, um ser de luz, e assim por diante. Entretanto, os antecedentes culturais parecem colorir a interpretação da experiência feita pelo sujeito: o cristão pode encarar o Ser de Luz como Jesus, por exemplo, ao passo que o muçulmano pode compreendê-lo como mensageiro de Alá. Quase toda a gente que estuda o fenômeno da experiência de quase-morte se vê, no fim de contas, diante da questão de saber se as experiências são alucinações inteiramente subjetivas, ou prova da existência objetiva de uma pós-vida paradisíaca. A maioria dos cientistas adota a primeira. Para a ciência positivista, a consciência é um produto de processos eletroquímicos do cérebro; quando o cérebro morre, cessa a consciência. Mas, como admitirão inúmeros cientistas, essa conclusão - ou suposição, que é o que ela é - pode ser apenas marginalmente responsável por provar ou desaprovar de acordo com a evidência material. As pesquisas feitas não descartam, de maneira alguma, a idéia de que a consciência pode existir separada do cérebro; pelo contrário. A evidência é tal que o neurocirurgião pioneiro Wilder Penfield, depois de ver malogradas suas tentativas de explicar a consciência por meio dos processos eletroquímicos do cérebro, concluiu, no fim da carreira, que a mente deve ter uma existência independente do cérebro físico. A conclusão de Penfield é sustentada pela existência de certa classe de fenômenos de quase-morte, denominados visões autoscópicas. Muitos sujeitos de experiências de quase-morte referem que, enquanto flutuavam para cima e para fora de suas formas físicas inertes, viam pormenores do ambiente que não poderiam ter percebido por intermédio dos sentidos físicos - pormenores que seriam, ao depois, corroborados por outros. Em seu livro Recollections of Death [Lembranças da Morte], o cardiologista Michael Sabom minudencia várias experiências autoscópicas, confirmadas

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independentemente. Tenta explicar a exatidão aparente da informação adquirida pelos sujeitos durante a experiência de quase-morte "por um conhecimento geral anterior, por informações transmitidas por outro indivíduo, e por percepções físicas de visão e de audição durante a semiconsciência". Nota que "se descobriu que as miudezas dessas percepções eram precisas em todos os casos em que estava à mão a evidência corroborativa", e conclui que nenhum dos modelos de explicações é apropriado para explicar a acurácia das informações trazidas de "fora do corpo". Sabom examina também a série de explanações fisiológicas e psicológicas do fenômeno das experiências de quase-morte: alucinações baseadas na expectativa; fabricação consciente; liberação de endorfinas no cérebro; despersonalização e outros fenômenos psicológicos conhecidos por produzirem alucinações; efeitos de drogas e anestésicos; e ataque do lobo temporal. Ele não acha nenhuma dessas explicações suficientes e conclui: Estou... ciente de que meus argumentos contra as explicações mais tradicionais das experiências de quase-morte... não provam ipso facto que a proposta fora-do-corpo é correta. Outras explicações para a experiência autoscópica de quase-morte explicações que não investiguei - poderão, de certo, acabar explicando todos esses descobrimentos. Acredito, porém, que as observações ... relativas à experiência autoscópica de quase-morte indicam que essa experiência não pode ser levianamente descurada, como se fosse uma invenção mental, e que se deve dar uma consideração científica séria a explicações alternativas, talvez menos tradicionais. Dessa maneira, pouco pode fazer a ciência para responder à pergunta fundamental da existência humana: Têm a mente, a alma ou o espírito existência separada do corpo? Existe outro reino de existência, um Paraíso do Outro Mundo, que seja objetivamente real e não apenas produto da imaginação humana? É difícil imaginar algum avanço técnico ou metodológico que permita aos cientistas resolver essas

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questões de uma vez por todas. Mas conquanto a ciência física possa dizer-nos muito pouca coisa sobre a existência ou a natureza do Paraíso celeste, outras vias de investigação - como a religião comparada e a mitologia - talvez ainda encerrem pistas interessantes.

Idéias da Vida Após a Morte As características da experiência de quase-morte, que os pesquisadores modernos acham tão interessantes, já eram bem conhecidas dos antigos tibetanos, que compilaram um relato circunstanciado da passagem do espírito entre os reinos, num livro a que deram o nome de Bardo Thodol (habitualmente traduzido por O Livro dos mortos). Atribuído ao fundador do budismo tibetano, o texto descreve as entradas para os níveis de experiência, depois da morte, encontradas pela alma ou espírito no estado intermediário (bardo) entre as encarnações. Consoante o Bardo Thodol, a alma do falecido tende a demorar-se ao redor do corpo vários dias depois da morte. Durante esse período e depois dele, a alma experimenta, por seu turno, três fases de bardo. A inicial, Chikhai Bardo, caracteriza-se por visões de um Ser de Luz Clara numa formosa paisagem. O livro tibetano dos mortos aconselha a consciência moribunda a identificar-se com a luz e deixar que feneça todo o apego à personalidade anterior. Se for incapaz de fazê-Io, seguirá para a segunda fase, Chonyid Bardo, em que começa a vestir-se com um corpo psiquicamente projetado, semelhante ao seu corpo físico anterior. A consciência encontra sete seres divinos; se for incapaz de identificar-se com nenhum deles, vê-se diante de sete demônios aterradores. O livro tibetano dos mortos aconselha a alma a encarar esses seres grotescos como projeções de seu próprio subconsciente e a observá-Ios sem receio. Na terceira fase, Sidpa Bardo, a alma adquire a capacidade de mover-se livre e instantaneamente pelo mundo físico; vê a família de luto e tenta, em vão, convencer os membros de que ela não morreu. Erra

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sozinha, infeliz, até avistar o Senhor do Outro Mundo, que veio julgá-Ia; depois de uma revista passada à sua vida, sente a tortura dos demônios de seus próprios medos e desejos. O livro tibetano dos mortos não é uma descrição de céus e infernos eternos, mas um catálogo cronológico das dimensões da realidade que a alma, ou espírito, visita entre a morte e o renascimento. A maioria das experiências de quase-morte ocorre mais em questão de segundos ou minutos do que de dias, de sorte que - presumindo-se estarem os sujeitos da experiência de quase-morte e os antigos tibetanos descrevendo a mesma experiência - toda a seqüência de fenômenos habitualmente relatados numa experiência de quase-morte está provavelmente contida no primeiro bardo. Inúmeras tradições - sobretudo na Ásia - fazem distinção entre alma e espírito. Às vezes, como acontece entre os yukagirs, descreve-se o ser humano como detentor de três "almas": a primeira, associada ao corpo físico, a segunda, à personalidade humana, e uma terceira de origem cósmica, cujo lar se situa nos reinos celestiais. As duas primeiras almas são capazes de manter-se fora do corpo por intervalos mais compridos ou mais curtos, mas, finalmente, entram em decadência. Só a alma cósmica, ou espírito, é imortal. Esta alma, fonte final de identidade humana, renasce em outro corpo, o qual, durante o curso da vida, desenvolve nova personalidade. O budismo maaianà ensina a doutrina do Trikaya ou "Três corpos" - o Dharmakaya, ou cerne absoluto do ser, a Luz Clara do Vazio; o Sambhogakaya, o Corpo da Bem-aventurança Espiritual, manifestação celeste do Absoluto no mundo do espaço e do tempo; e o Nirmanakaya, o corpo material em que o Eu está encarnado. O livro tibetano dos mortos descreve a Luz Clara como "sutil, cintilante, ofuscante, gloriosa e radiantemente instigadora de pasmo reverente". O texto insiste com a personalidade humana para que "não se deixe intimidar por ela, nem aterrar, nem assustar. Esta é a radiância de tua própria natureza verdadeira, raramente consegue fazê-lo, tendo-se tornado dependente de respostas ambiental e hereditariamente condicionadas ao mundo material - desejo e medo - durante a vida.

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Em lugar de erguer-se para a unidade com o Eu final, entrega-se a vários infernos desintegradores. De acordo com O Livro Tibetano dos Mortos, os reinos visitados pela alma não são, objetivamente, reais nem irreais em nossos termos costumeiros de referência. A paisagem do outro Mundo é uma projeção mental da alma humana, embora cada reino pós-morte esteja sujeito ao próprio conjunto interno de leis e regularidades, análogas às do mundo físico, porém diferentes delas.

A Experiência de Quase-Morte como Forma de Experiência Mística

Os mitos do Paraíso insistem em que a consciência "áurea" de amor e união telepática foi outrora conhecida dos seres humanos na carne. Podemos visionar a situação como sendo algo semelhante a uma experiência contínua, em plena vigília, de quase-morte - sem trauma físico - partilhada simultaneamente por toda a população. Será possível um estado dessa natureza? Pondo de lado os mitos, haverá alguma coisa que nos leve a presumir que o outro Mundo paradisíaco é acessível a pessoas que estão vivas, bem, e conscientes? Lá para o fim de sua descrição e interpretação da experiência de quase-morte em Heading toward Omega, Kenneth Ring faz a seguinte ousada declaração: O que ocorre durante uma experiência de quase-morte nada tem que ver inerentemente, com a morte ou com a transição para a morte. ... A experiência da quase-morte... há de ser olhada como membro de uma família de experiências místicas correlatas, que sempre estiveram conosco, mais do que um descobrimento recente de pesquisadores modernos, que vieram investigar o fenômeno do morrer. Ring é levado a essa conclusão pela similaridade de todos os aspectos da experiência de quase-morte com as experiências de

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profetas, místicos e santos em todo o correr da história. Encontros com seres de luz, visões de paisagens celestes e mudanças súbitas, dramáticas de valores têm sido conhecidos de inúmeras pessoas, que não se encontravam em circunstâncias que lhes ameaçassem a vida. Algumas dessas pessoas continuaram a viver e transformaram-se em líderes carismáticos, cujas visões estão registradas na literatura sagrada das religiões do mundo. Na maior parte das vezes, contudo, os que têm experiências místicas profundas simplesmente votam o restante da vida à contemplação e ao serviço. Da similaridade das descrições do estado de iluminação mística - como as fornecidas por Bucke, James e Dean (veja o Capítulo 10) - aos relatos em primeira mão de sensações e percepções ocorridas durnte a experiência de quase-morte, só nos resta concluir, com Ring, que ambos são membros de uma família de experiências correlatas. É discutível que a experiência de quase-morte seja prova da sobrevivência além da morte física, mas é, sem sombra de dúvida, um tipo de experiência potencialmente acessível a toda a gente. Se chamarmos à luz transcendental e à paisagem celestial evidências do Paraíso, será possível a seres humanos no presente conhecerem a experiência do Paraíso, qual foi descrita nos mitos antigos, enquanto ainda estiverem vivos na Terra. Apesar disso, o fato de verificar-se a experiência paradisíaca tão predizivelmente quando as pessoas estão à beira da morte, não pode menos de sugerir-nos a existência de alguma vínculo profundo entre a consciência mística e o Além profundamente misterioso. As histórias da Idade de Ouro em que uma ponte de arco-íris servia de ligar dois mundos parecem relações de um tempo em que os processos de nascimento e morte não eram tão misteriosos quanto agora. Ainda hoje dizem os esquimós que "o nascimento e a morte... são menos um começo e um fim do que episódios da vida. Os corpos são apenas instrumentos das almas - as almas é que são as suas 'donas"'. O mito universal da imortalidade do Primeiro Povo pode referir-se simplesmente a um tempo em que a vida se equiparava mais à vida

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do espírito do que à vida do corpo, e era, portanto, experimentada como se fosse eterna.

Imaginação ou Realidade? Os mitos do Outro Mundo paradisíaco são, às vezes, tão esquisitos ou tão fantasiosamente enfeitados que é fácil ver neles invenções de seres humanos que buscam uma fuga imaginária do dilema do nada eterno. A maioria dos antropólogos adotou a opinião de que, quando os povos primitivos enfrentavam o paradoxo final da existência e da não-existência, como Arthur Koestler escreveu em Life after Death [Vida após a morte]: "Suas mentes ficavam transtornadas e saturavam a atmosfera de fantasmas dos mortos e outras presenças invisíveis. que eram, na melhor das hipóteses, inescrutáveis, porém malévolas na maioria, e tinham de ser aplacadas por rituais grotescos." Muitos rejeitariam o Céu como não tendo lugar no mundo natural. Mas pode aparecer - como aparece para os emergentes de experiências de quase-morte - como mais real do que o que comumente se nos afigura realidade. Será puramente imaginário o Paraíso do Outro Mundo? Ou será um reino natural de experiência, do qual, de um modo ou de outro, nos excluímos? Nossa linguagem concreta, materialista, é incapaz de descrever ou definir o que não é inteiramente objetivo nem meramente imaginário. Entretanto, por mais esquiva que seja a visão profética para se contemplar, não podemos deixar de lado a sua dimensão mítica. Em momentos de crise decisiva, na iminência da morte, o que supúnhamos fosse mais real e concreto se vai, e o Outro Mundo - que antes parecera inexistente - toma-se, subitamente, mais intenso do que o terá sido, alguma vez, a experiência dos nossos sentidos. Nós, ocidentais modernos, temos feito o possível para banir os reinos subjetivos e viver inteiramente num mundo material, objetivo, Reprimido, o conteúdo do inconsciente investe conosco nas compulsões irracionais da loucura e da profecia. Entrementes, o mundo acordado, objetivo, libertado das suas amarras subterrâneas,

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passa a ser a pior espécie de pesadelo. Os psicólogos. com exceção de Jung e seus seguidores. têm tendido a encarar o mundo interior como uma coleção de imagens abstraídas da realidade fisica. Quase todos os sonhos parecem ser apenas a mente inconsciente empenhada em limpar a casa, reunir fragmentos de emoções e pensamentos que sobraram da estada de um dia no mundo material. Mas há, de vez em quando. sonhos perturbadores de nível muito mais profundo - sonhos proféticos, ou sonhos de voar e de falar com seres angélicos - que não têm a sua origem no mundo mundano, mas em algum lugar inteiramente diferente. Já nos esquecemos de como interpretar estes últimos sonhos, e hesitamos até em reconhecê-Ios. Os tibetanos talvez tenham chegado mais perto da solução das contradições aparentes da psicologia do Paraíso com a sua descrição dos reinos do bardo da alma, como se fossem projetados mentalmente, mas sendo reais mesmo assim. Num sentido, até a nossa experiência do mundo fisico é auto criada: duas pessoas nas mesmas circunstâncias podem vê-Ia de maneiras diferentes. Não obstante, tendemos todos a concordar em que existe um mundo finalmente real "lá fora", com regras e limites inerentes, independente das nossas interpretações e crenças. A darmos algum peso às observações dos maiores sábios da história, precisamos também estar dispostos a refletir na possibilidade de que, além dos bardos da existência depois da morte, mentalmente projetados, existe uma Fonte interior, finalmente real, de identidade, sentido e propósito que pouco se incomoda com as nossas convicções religiosas a respeito da sua existência ou inexistência. Pode ser que o mundo objetivo de forma física e esta Fonte interior final estejam separados por um sem-número de estados de emoção e pensamento, condicionados pelo medo e pelo desejo - e pode ser que neste continuum esteja incluída a nossa consciência desperta "normal". Quando o véu de ilusão, mantido pelos estados de emoção, se torna mais tênue - como acontece em momentos extremos - podemos captar um vislumbre de um Ser de Luz, que é a Fonte

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interior final. Nesse momento de unidade com a Fonte há paz, segurança e inefável conhecimento. E esse é o Paraíso.

CAPÍTULO 12 Para Voltar ao Jardim

Pode ser que alguma raizinha da árvore sagrada ainda esteja viva.

Alimente-a, para que ela possa deitar folhas, florescer e encher-se de pássaros canoros.

Alce Negro A consciência edênica pode ser recuperável por indivíduos em raros momentos de introvisão espiritual. Talvez quase todo o mundo tenha uma visão fugaz do Paraíso, em algum instante, no decorrer de sua vida. Mas é também possível, para todos nós juntos, viver no Jardim outra vez - voltar e ficar lá? Este último capítulo oferecerá duas razões para pensar que sim. Veremos, além disso, como os sinais de tensão e desintegração nos fundamentos da nossa atual civilização, juntamente com alguns desenvolvimentos intrigantes nas extremidades crescentes da sociedade, dão a entender que uma nova Idade de Ouro está lutando para nascer.

A Atingibilidade do Paraíso A antropologia e a arqueologia talvez não provem (embora, decerto, não a negue) a existência anterior de uma Idade de Ouro - isto é, de uma cultura unitária em que as pessoas eram universal e continuamente telepáticas, viviam na intimidade da natureza e possuíam poderes milagrosos. Mas, como vimos no Capítulo 8, descobrimentos antropológicos e arqueológicos mostraram, quase sem nenhuma sombra de dúvida, que dois dos aspectos mais destrutivos da civilização (o emprego e a justificação da violência

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como meio de mudança social, e o desejo de dominar outros seres humanos e a natureza) só foram adquiridos recentemente. Os achados dos arqueólogos mostram que, no passado, os seres humanos viviam - e, portanto, em princípio, são capazes de viver - em paz e harmonia, não só entre eles mesmos, mas também com a natureza. Além disso, a psicologia sugere que tanto é atingível uma condição subjetiva de unidade, paz e inocência, quanto este é o modo natural e saudável da consciência humana. Se o corpo humano funciona melhor na ausência dos estados-do-ego de culpa, medo e ressentimento (como as experiências médicas mostram que o faz), o fato de estarmos vivendo num mundo baseado no ego, em que o Paraíso é a experiência excepcional, há de ser, por conseguinte, um estado de coisas inusitado e temporário. Se fomos capazes de viver no Paraíso outrora, devemos ser capazes de fazê-Io outra vez. E se o modo de vida mais natural e saudável, ao alcance dos seres humanos, é definido pela expressão das qualidades paradisíacas essenciais de caráter e pela experiência subseqüente de harmonia universal, o que é natural deve ser, em princípio, atingível. Em outras palavras, podemos estar destinados a viver no Paraíso. Por que, então, presumimos rotineiramente que o Paraíso está além do nosso alcance? Talvez seja, em parte, porque temos um conceito não-realista do que esse estado é ou deve ser. Inclinamo-nos a pensar no Paraíso como um lugar ou tempo em que todos os desejos humanos são satisfeitos; e como os desejos das pessoas tendem a conflitar uns com os outros, presumimos, portanto, que o Paraíso nunca poderia existir realmente. Mas o Paraíso do mito e da visão não é um estado em que os desejos pessoais conflitantes são todos, de um jeito ou de outro, satisfeitos. Antes, é um estado em que todos os desejos e motivos humanos são completamente incluídos dentro de um propósito criativo maior. Se os desejos individuais são satisfeitos no Paraíso, isso só acontece porque o desejo avassalador de todos os indivíduos é que o acordo consumado da Natureza e do Cosmo seja alimentado e mantido.

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Os habitantes do Paraíso - quer nos mitos da Primeira Idade, quer nas visões da quase-morte - caracterizam-se universalmente por sua expressão de valores específicos e qualidades de caráter. E, como mostrou Aldous Huxley (entre outros), um estudo comparado das religiões do mundo revela que esses valores e qualidades - honestidade, compaixão e amor - são universais e inatos. Tenha sido ou não uma realidade histórica, o Paraíso existe no presente eterno como imagem que expressa o nosso sentido mais profundo do que é direito e verdadeiro em relação a nós mesmos. Visto por esse prisma, o Paraíso pode ser considerado como se exercesse uma função específica, um propósito de vida embutido no circuito da consciência humana. Todos os organismos biológicos, incluindo os seres humanos, contêm elementos de propósito. Sabemos, por exemplo, que o padrão das moléculas do DNA em nossas células governa o propósito básico do nosso corpo físico. Talvez contenhamos também, dentro de nós, um programa neurológico ou psíquico que visa à perfeição das relações sociais e espirituais entre nós, o Cosmo e a Natureza - um propósito de unidade telepática e comunhão entre as espécies, que representa a meta em cuja direção nossa experiência individual e coletiva tende, naturalmente, a desenrolar-se. Em não havendo interferências significativas, o propósito inerente às moléculas de DNA em nossas células se expressa automática e acuradamente na formação do nosso corpo físico. O mesmo talvez seja potencialmente verdadeiro em relação ao propósito neurológico do Paraíso: contanto que não se lhe bloqueie a expressão, o padrão de unidade com as correntes universais da vida, assim como das capacidades milagrosas, deveria refletir-se automática e precisamente em nossa experiência ordinária. Atualmente, porém, não se refletem. Como vimos, quase todas as tradições espirituais do mundo concordam em que o propósito paradisíaco inato está sendo cerceado em sua expressão por certos padrões, agora universais, de atitude, pensamento e comportamento.

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Advertências do Inconsciente Coletivo Quando divergimos do modo com que devíamos funcionar, a natureza nos manda sinais de advertência. Por exemplo, quando comemos alimentos que somos incapazes de digerir, nosso estômago rebela-se; quando usamos nossos membros em atividades a que eles não foram destinados, nossos músculos e ossos protestam. Quando fazemos essas coisas habitualmente em excesso, estamos sujeitos a receber não somente sinais externos em forma de dor, acidentes ou moléstia, mas podemos também receber alguns sinais externos, que assumem, não raro, a forma de pesadelos e premonições, por cujo intermédio a própria sabedoria inconsciente do corpo tenta alertar-nos e influir em nosso comportamento. Se isto é verdade para nós individualmente, talvez também o seja para a humanidade coletivamente - isto é, se a humanidade está pondo de lado um propósito paradisíaco inato (visionando um mundo caracterizado pelo artificialismo, pela separação e pela supressão da natureza, e trabalhando para ele), então deveríamos esperar estar recebendo advertências externas e internas. No nível coletivo, tais advertências externas podem assumir a forma da guerra, da degradação ambiental, da fome, ou da peste; os sinais de advertência interna surgem como visões, que ocorrem amplamente, de acontecimentos apocalípticos. Como Normam Cohn mostrou em The Pursuit of the Millenium, as visões apocalípticas tenderam a aparecer em profusão durante períodos históricos de opressão política e religiosa, sublevação social, guerra e pestilência. Os profetas hebreus viveram numa idade de derrota e cativeiro; Jesus viveu no auge do Império Romano decadente e opressor; e os movimentos milenários medievais pareciam sempre florescer em lugares e épocas de dificuldades insólitas. Vemos a mesma associação entre a visão apocalíptica e a tensão social entre os povos tribais: na América do Norte, na África e nas ilhas do Pacífico, os novos movimentos espirituais, surgidos no transcorrer do último século em resposta ao ataque violento da

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civilização, têm apresentado, invariavelmente, um caráter profético e milenário. Existem muitas razões para pensar que a civilização ocidental contemporânea está-se aproximando de um período de máxima divergência do ideal paradisíaco. Em vez da simplicidade, da inocência e da capacidade de trabalhar em harmonia com processos naturais, a civilização industrial dá valor à sofisticação, à abstração, à concentração das riquezas e à completa subjugação da natureza. Esses valores não surgiram de repente nem recentemente; ao contrário, podem ser acompanhados até os primórdios da própria civilização. Mas parecemos estar presenciando a culminação da sua influência. E, à medida que compreendemos as implicações finais de tendências à longo prazo, que conduzem à centralização do poder social, à dominação tecnológica da natureza, e à fragmentação da consciência humana, vemo-nos no que parece ser uma colisão de percurso com uma realidade mais profunda. Distinguimos os sinais externos que aparecem em toda a parte à nossa volta. Ouvimos falar, por exemplo, da morte de milhares de lagos e florestas produzida pela chuva ácida. Enquanto o adelgaçamento da camada de ozônio cria uma epidemia de câncer da pele, descobrimos simultaneamente que um efeito de estufa - criado pelo dióxido de carbono liberado na queima de combustíveis fósseis - está alterando os padrões de clima globais. Ouvimos falar no desaparecimento de dezenas de milhares de espécies, em resultado do corte definitivo de florestas de chuva, e da perda de milhões de toneladas de camadas superficiais do solo, insubstituíveis, à conta das práticas agrícolas mecanizadas modernas. Estes e outros sinais de advertência pressagiam catástrofes realmente apocalípticas, catástrofes que só poderão ser evitadas se se tomarem medidas imediatas para alterar o nosso relacionamento fundamental com o ambiente natural. Ao mesmo tempo, estamos vendo uma erupção sem precedentes do que poderia ser interpretado como sinais de advertência internos, psíquicos. As duas últimas décadas viram números cada vez maiores

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de pessoas voltarem-se para o fundamentalismo milenariano, em busca de um sentido de significação e propósito. Os fundamentalistas cristãos olham para o fim iminente do mundo, a destruição dos infiéis, e a restauração de um Paraíso terreno caracterizado por todas as qualidades do Éden original - paz, felicidade e, acima de tudo, oportunidade de viver na imediata presença do Senhor. Mas ao passo que o mileniarismo fundamentalista extrai visões escriturais apocalípticas de eras passadas, estamos também cercados de proclamações proféticas, novas e originais. O cenário apocalíptico clássico - a batalha final entre as forças do bem e do mal, seguida do advento de uma condição restaurada de paz e beatitude - aparece, por exemplo, em entrechos de ficção científica e nas predições psíquicas de Edgar Cayce e dos "abridores de canais" da década de 1980. Além disso, as experiências de quase-morte estão dando a sua própria contribuição para o que equivale a uma explosão de profecias apocalípticas. Depois de levar a efeito os estudos sobre as experiências de quase-morte, Kenneth Ring começou a ouvir relatos de visões proféticas acerca do futuro da humanidade, e decidiu coligi-Ios e cotejá-Ios. Ring descobriu que as visões proféticas parecem ocorrer com mais freqüência durante as experiências centrais de quase-morte, e que existe uma "similaridade impressionante" entre elas. Em Heading toward Omega, Ring compendia os elementos comuns da visão profética clássica: Existe, primeiro que tudo, um sentido de ter um conhecimento total, mas, especificamente, temos consciência de ver a inteireza da evolução e da história da Terra, desde o princípio até o final dos tempos. O cenário futuro, no entanto, é habitualmente de curta duração, e raro se estende muito além do início do século XXI. Relatam os indivíduos que, nesse decênio, haverá uma incidência crescente de terremotos, atividades vulcânicas e mudanças geofisicas geralmente maciças. Haverá perturbações delas resultantes nos padrões de clima e no suprimento de alimentos. O sistema econômico

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do mundo entrará em colapso, e a possibilidade de guerra ou acidente nuclear é muito grande (os respondedores não estão de acordo quanto à ocorrência de uma catástrofe nuclear). Todos esses eventos são mais transitórios do que finais, e serão seguidos de uma nova era da história, caracterizada pela fraternidade humana, pelo amor universal e pela paz mundial. Se bem muitos morram, a Terra viverá. Ring cita, em seguida, diversos relatos de visões proféticas. O seguinte é de uma mulher cuja experiência de quase-morte se verificou em 1967: A visão do futuro, recebida durante minha experiência de quase-morte, foi de tremenda sublevação no mundo, em conseqüência da nossa ignorãncia geral da "verdadeira" realidade. Fui informada de que a humanidade estava infringindo as leis do universo, e, por causa disso, viria a sofrer. O sofrimento não se devia à vingança de um Deus indignado, mas, antes, à dor que podemos experimentar em decorrência do nosso desafio arrogante da lei da gravidade. Seria uma depuração educacional inevitável da terra, que subiria pelo corpo dos seus habitantes, os quais tentariam esconder-se cegamente nas instituições da lei, da ciência e da religião. Disseram-me que a humanidade estava sendo consumida pelos cânceres da arrogância, do materialismo, do racismo, do chauvinismo e do pensamento separatista. Vi a sensatez tansformada em insensatez, e a calamidade, afinal, convertida em providência. No fim desse período geral de transição, a humanidade "nasceria de novo", com um novo sentido do seu lugar no universo. O processo de nascimento, porém, como em todos os reinos, seria excrudantemente doloroso. A humanidade emergeria humilhada, mas educada, pacífica e, por fim, unificada. Ring tentou encontrar uma explicação racional para os padrões notavelmente coerentes das imagens das visões proféticas que coligira. Seriam essas experiências projeções de medos

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inconscientes? Ou, talvez, os indivíduos que perceberam estar morrendo não generalizariam a experiência como sendo "a morte do mundo"? Ring chegou à conclusão de que nenhuma dessas explanações era convincente: Por que não uma varidade maior de cenários do futuro do globo? As visões proféticas são tão consistentes que não podem ser projeções pessoais. Poderiam ser, então, erupções dos arquétipos inconscientes de Jung? Essa explicação, no entender de Ring, era mais plausível, mas ele ainda não se sentia à vontade com a especificidade e o caráter paranormal das visões proféticas. Depois de examinar todas as explicações que pôde engenhar, viu-se Ring apenas com a interpretação dos próprios sujeitos das experiências de quase-morte, que insistiam em que as visões poféticas eram, de fato, exatamente o que pareciam ser - profecias inspiradas de acontecimentos futuros. A ser este o caso, por que se atira a humanidade para um dia cataclísmico de ajuste de contas? Ring invoca uma metáfora moderadora: sugere ele que a humanidade está-se aproximando - e preparando-se subsconscientemente para isso de uma experiência coletiva de quase-morte. Como já tivemos ocasião de observar, os sujeitos de experiências de quase-morte experimentam, quase invariavelmente, súbita e radical reestruturação de valores. Um comentário típico é este: "O meu interesse pela riqueza material e minha cobiça de posses foram substituídos pela compreensão espiritual e pelo desejo apaixonado de ver melhorarem as condições do mundo." Em todo o correr da história, os reformadores morais procuraram exortar a humanidade a modificar seus valores coletivos e recuperar seu sentido do sagrado. Em que pese aos êxitos ocasionais e temporários, tais exortações, de um modo geral, foram desprezadas. Parecemos convencidos de que a ganância e a agressão são constantes, somente restringíveis pela força da lei. Mas a hipótese de Ring supõe que a natureza humana, quando se vê frente a frente com o aniquilamento, pode dissolver-se e revelar uma natureza mais profunda, uma natureza que esteve escondida durante milênios atrás do véu do ego humano.

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Os russos têm um dito: "O camponês só faz o sinal da cruz quando ouve o trovão." Isto é, as pessoas só tendem a fazer mudanças básicas de atitude e comportamento quando se vêem de costas para a parede. A observação parece tão verdadeira em relação à sociedade como um todo quanto o é em relação aos indivíduos. Muitas vezes, somente uma crise nos faz ver os resultados de um hábito destrutivo. No caso da humanidade do fim do século XX, o comportamento habitual (e o despertar potencial) chegou a um nível crítico e está na base de todas as nossas realidades sociais, econômicas, científicas e políticas. Essa crise é muito maior do que uma simples inconveniência séria, ou mesmo do que uma catástrofe na escala da Grande Depressão ou das duas guerras mundiais. Profetas religiosos e futurólogos científicos visionam ambos o que equivale ao fim de todo o nosso modo de vida, e, concebivelmente - no caso de um conflito nuclear total ou da destruição irreversível do meio ambiente - a morte da própria raça humana. Recordamos as profecias dos povos tribais relativas a uma grande Purificação, que limpará o mundo da depravação humana, mas também reunirá o Céu e a Terra, anunciando uma nova idade de espiritualidade e luz. Será isto o que todos estamos, inconscientemente, trabalhando por conseguir?

A Nova Cultura Os fundamentalistas cristãos acreditam que o apocalipse é inevitável. Os ativistas sociais e os utopistas, por outro lado, acreditam que podemos evitar o Armagedon operando uma transição gradual e pacífica das atitudes e presunções da civilização industrial moderna, para um modo de vida regenerativo e pacífico. De acordo com este último modo de ver, o apocalipse só virá se nos recusarmos a trabalhar, consciente ou coletivamente, pela reforma construtiva de nossas instituições presentes. Mas quer a humanidade rume para uma transição pacífica, quer caminhe para uma purificação apocalíptica, o curso de ação dos que

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estão comprometidos com um resultado paradisíaco é o mesmo: começar deliberadamente a plantar as sementes de uma nova cultura, baseada em valores espirituais universais. Uma transição pacífica pode ser preferível a um cataclisma humanamente produzido, mas só se verifica em resultado de mudanças nas atitudes e ações dos indiví-duos. Entretanto, se for inevitável um período de purificação global, a massa da humanidade exigirá modelos de integridade e estabilidade para os quais possa orientar-se quando ocorrerem as comoções, se houver alguma coisa para ser construída depois do período de purificação. Como Marilyn Ferguson, Willis Harman e outros agudos observadores das tendências sociais nos disseram durante a última década, as sementes de uma nova cultura já estão aparecendo. Essa nova cultura não é o plano de nenhuma organização ou agência humana específica, mas está-se erguendo espontaneamente, num milhar de maneiras impredizíveis, através dos esforços de pessoas que, na maior parte dos casos, não têm idéia da interligação - e muito menos das implicações míticas ou arquetípicas - das suas ações. Uma das sementes está representada no interesse difundido e crescente pela ecologia e pelo ambientalismo. Ao passo que o interesse de muitas pessoas pelas questões ambientais pode ser motivado simplesmente pelo interesse próprio - o desejo de escapar ao desastre - a contemplação da interligação dos sistemas da natureza parece deflagar inevitavelmente concepções radicalmente novas da nossa relação adequada com o resto da biosfera. À proporção que nos tornamos cônscios das implicações dos princípios básicos da ecologia, atitudes herdadas de exploração tendem a dar lugar a atitudes de cooperação e aprovisionamento. Finalmente, as pessoas que abraçam o ambientalismo parecem ser levadas de volta à antiga concepção de que a Terra não está aqui apenas para satisfazer as necessidades e desejos humanos; senão, pelo contrário, que nós, seres humanos, aqui estamos para alimentar e aprovisionar a Terra.

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Outro presságio do tipo de mudança criativa, que pode conduzir à emergência de uma nova cultura paradisíaca, é o interesse crescente por religiões nativas e mitologia comparada. A própria palavra religião vem do latim religare, que significa "ligar de novo". A religião sempre foi o modo com que a humanidade procura recuperar alguma coisa perdida. É a expressão de um anelo universal, que ambiciona um estado de inocência e completude - estado projetado no passado, no futuro, ou em outra dimensão da existência, mas que, apesar disso, sempre se sentiu real e inato, se bem que um tanto afastado da nossa experiência comum. O objetivo da religião é sempre a recuperação da presença divina e o retorno do mundo milagroso do Paraíso. O novo renascimento espiritual das duas últimas décadas parece estar dirigido para a própria essência da experiência religiosa. Ao mesmo tempo que se abebera das tradições nativas americanas, cristãs místicas, sufistas e budistas (entre outras) existentes, seu objetivo final é o ressurgimento do espírito do qual todos os sistemas de revelação derivam o seu sentido. Os tipos de mudanças fundamentais em valores e atitudes, que estamos considerando, propendem a ocorrer primeiro nos pormenores da vida das pessoas, e só mais tarde se refletem na linha de conduta pública. Em seus relacionamentos mais íntimos, por exemplo, muitas pessoas estão descobrindo o que é passar de um modo dominante/submisso, baseado na necessidade e no medo, para um modo de parceria, baseado no sentido partilhado de um propósito mais elevado. Em suas vocações mundanas, as pessoas descobrem que os velhos valores e motivos, centrados na necessidade econômica e no impulso competitivo, são pressionantes e insatisfatórios. À medida que ganha predominância o desejo inato de elevação, santificação e alimentação, muitas pessoas mudam de carreira, não raro trocando um salário maior por um meio mais satisfatório de contribuir para a vida dos outros. Para alguns, a mudança de valores é sutil; para outros, a busca do Paraíso transmuda-se numa paixão oniabrangente. Como se notou num capítulo anterior, milhares de comunidades utopistas foram

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fundadas nos últimos vinte anos, particularmente na América do Norte. Muitas delas são verdadeiras estufas, onde germinam as sementes da nova cultura, fomentando estilos de vida pioneiros, fundados na consciência ecológica, e em novos meios de revelar e reconhecer o sagrado. Tais comunidades proporcionam um meio de explorar a mudança através do comprometimento total do tempo e dos recursos das pessoas envolvidas. Em última análise, entretanto, todo indivíduo, toda ação ou movimento social, que favorecem os valores da unidade, da paz e do respeito aos processos naturais, representam sementes da nova cultura. Por enquanto, é muito provável que não conheçamos em suas minudências o aspecto que terá a nova cultura quando, e se, a transição tiver sido feita. Não será, por certo, uma reprodução exata do Paraíso terreno original. Embora a nossa permanência na consciência egocêntrica tenha sido necessária à nossa evolução, ou não passou de um erro trágico, a experiência nos terá ensinado uma lição momentosa. Podemos regressar à inocência, mas esta não será a mesma inocência que teríamos conhecido se nunca tivesse ocorrido a Queda. Tampouco podemos predizer com precisão a natureza da nova cultura, extrapolando simplesmente as tendências presentes: os desenvolvimentos que acabamos de ponderar podem estar conduzindo na direção de um estado paradisíaco renovado, mas ainda não passam de sementes. Seja qual for o critério usado, a magnitude da transformação requerida para que a humanidade, como um todo, volte a um estado de ser integrado, regenerativo, é imensa. Mal encetamos o processo.

Compreendendo o Paraíso Paradoxalmente, enquanto a transição para uma nova cultura é um projeto de vastas proporções, pode ser que ela só seja levada a cabo através de mudanças nas atitudes e valores de indivíduos de ambos os sexos - mudanças virtualmente invisíveis para o conjunto da sociedade. Como, então, poderemos, você e eu, realmente levar a

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cabo essas mudanças em nosso modo de ver as coisas e em nosso comportamento, de maneira que realizemos o Paraíso em nossa própria vida, aqui e agora, e, por essa forma, contribuamos para a criação da nova cultura? A civilização é construída de compromissos e trocas. Diariamente comprometemos a integridade, a intimidade, a empatia e a honestidade por um milhar de razões aparentemente válidas, e nos sentimos apoiados, ao fazê-Io, pelo exemplo e pelo incitamento de outros. Tornamos a nossa vida complexa e abstrata. Parecemos viver para servir aos nossos inventos destinados a poupar trabalho. Muitos de nós estamos dispostos a dedicar grande proporção de nossas horas de vigília a tarefas intrinsecamente sem sentido em troca do poder econômico. Em algum ponto precisamos perguntar se isso é realmente justificável. A volta ao Paraíso requer que examinemos com sinceridade a nossa vida, e, quando nos vemos agindo de maneiras que contradizem nossos valores mais profundos, que mudemos de direção - não retrocedendo para algum passado místico, mas interiorizando-nos e buscando a nossa visão mais elevada de amor e verdade. Precisamos estar dispostos a deixar a participação nos meca nismos do mundo humano à medida que aprendermos a simplificar, santificar e celebrar cada aspecto da vida. O processo de transformação não precisa ser árduo. Na realidade, em alguns sentidos ele é mais um jogo do que um trabalho - embora não seja um jogo de ganhar ou perder de adultos civilizados, porém o jogo espontâneo, mutuamente confiante, experimental e o extático das crianças pequenas e dos animais selvagens. No dizer do psicólogo O. Fred Donaldson, "O jogo é o triunfo da natureza sobre a cultura." Se o Paraíso é o nosso estado de ser natural, a força mais profunda e compulsiva existente no cerne do inconsciente coletivo é uma força que sempre nos empurra para esse estado de equilíbrio. Enquanto trabalhamos deliberadamente para um futuro caracterizado pelo respeito e zelo da Natureza, e para alimentar o amor, o perdão, a compaixão, e a celebração em nós mesmos e uns nos outros, nossos esforços conscientes ressoam seguindo o padrão no âmago do nosso

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ser. O Céu e a Natureza apressam-se a voltar a uma condição de equilíbrio e consenso. Também é verdade que, enquanto nos movemos no processo de transformação, estamos trabalhando contra o condicionamento social, que tende continuamente a separarnos uns dos outros e da mesma base do nosso próprio ser. Daí a necessidade da busca espiritual, que, em todas as aparências, é essencialmente um processo de romper a crosta do ego, que nos impede de experimentar e revelar nosso próprio caráter paradisíaco inato. Essa busca não é nova e nem sem precedentes. Não é nem mais nem menos do que ajornada do herói arquetípico, identificado por Joseph Campbell como o centro de todas as tradições míticas. Toda cultura se recorda de homens e mulheres exemplares, que realizaram transformações internas, e deixaram instruções com o auxílio das quais outros podem fazer o mesmo. Conquanto os pormenores possam diferir, todos os exemplares espirituais concordam no tocante aos largos lineamentos do processo. Este consiste, primeiro, numa retirada do mundo tal qual é, e num ato deliberado, de purificação. Segue-se um período de integração, dentro do sistema de valores espirituais universais. O processo culmina numa realização final da unidade com o Princípio fundamental de tudo o que é. Embora as minúcias do processo sejam individuais, o esboço essencial da jornada é sempre o mesmo, como o é a sua meta: o Paraíso - a realização da unidade com o Céu e a Natureza. A busca heróica, em essência, é uma jornada simbólica, que representa o desdobramento progressivo do caráter e do destino transcendentes do herói. Jesus e o Buda são figuras que levaram a efeito a profunda transformação interior graças a qual uma porta se abriu entre os mundos, e a sociedade humana foi levada a uma condição parcial ou temporariamente restaurada. Finalmente, os registros de suas vidas são metáforas do que deve ocorrer na experiência de quem quer que encete a busca. No mito de cada herói, a primeira fase da jornada consiste simplesmente em ouvir o chamado e responder a ele. O herói, ou

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heroína, precisa compreender que o mundo necessita de tratamento, e que as suas ações farão diferença para outros. Para o Buda, o chamado veio quando, aos trinta anos de idade, viu, pela primeira vez, a doença, a velhice e a morte. Ficou tão comovido com o sofrimento que presenciava que se afastou em silêncio da esposa e dos filhos adormecidos, a fim de procurar a chave da libertação da condição humana universal. Para Jesus, a primeira percepção do chamado veio quando ele tinha apenas doze anos de idade. Deixou os pais e passou três dias no templo entre os doutores, discutindo teologia. Quando os pais, preocupados, enfim o encontraram, disse simplesmente: "Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?” À proporção que erguemos a atenção acima das nossas carências e medos condicionados pelo tempo suficiente para darmos tento dos propósitos de um Todo maior, vemos de súbito que a nossa vida poderia ter um sentido que está além do conforto e da satisfação pessoal. O chamado pode ser pressentido debilmente, ou pode clangorar. Em qualquer caso, será preciso tomar a decisão consciente de ouvi-Io ou dispensá-Io. Não ter conhecimento do chamado é morrer para os propósitos da vida. Mas para ouvir e aceitar o desafio do chamado, será necessária a disposição de deixar para trás os carris que nos foram estabelecidos pela hereditariedade e pelo ambiente, e explorar territórios não familiares. Não podemos entrar no Paraíso sem nos descartarmos do nosso ambiente cultural ou psíquico atual. A segunda fase da busca envolve o acordo com um dragão, um demônio ou um inimigo. Vendo o sofrimento, buscamos a sua causa, e as causas do sofrimento humano são inúmeras. No princípio da fase, podemos ver um dragão fora de nós mesmos - fonte imediata de injustiça e crueldade. Podemos concluir que o dragão está encerrado numa filosofia que detestamos, ou numa pessoa cujos atos parecem causar sofrimento a outros. Muitos indivíduos fixam-se nessa fase da busca e negam-se a prosseguir. Passam a vida combatendo os demônios do mundo, os quais, mesmo quando aparentemente mortos, parecem formar novas cabeças e voltar para atormentá-Ios de novo.

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Enquanto continuarmos combatendo demônios externos, seremos incapazes de trazer plenamente a paz ao nosso mundo. Por fim, se continuarmos fiéis ao chamado - se continuarmos a ouvir - chegaremos a compreender que o verdadeiro dragão está dentro de nós: todos os problemas do nosso mundo foram produzidos por tendências presentes em nós. Enquanto nossos dragões internos não forem enfrentados, e a menos que o sejam, nem a mais valorosa batalha externa produzirá frutos plenos. Alguns dos grandes heróis da literatura religiosa parecem tê-Io compreendido desde o princípio. Tanto Jesus quanto o Buda, por exemplo, sabiam, desde o princípio, que a vitória que buscavam era um triunfo sobre as suas próprias naturezas inferiores. Gandhi, por outro lado, iniciou sua carreira com a crença de que o dragão consistia inteiramente no racismo posto em prática pelo governo; e só aos poucos veio a enxergar, em suas próprias atitudes e comportamento, o campo de batalha das forças do bem e do mal. Assim que se reconhece o dragão como força interna, começa uma espécie diferente de batalha. Essa fase do processo, em que o herói luta com os próprios demônios internos, não parece especialmente paradisíaca. Envolve a exposição de nossas fraquezas e a renúncia a apegos pessoais. Dir-se-á, paradoxalmente, que só podemos chegar ao Paraíso se estivermos dispostos a passar pelo inferno. Mas esse conflito também precisa chegar a um fim. A resolução da batalha com o demônio interno está representada na história das tentações deJesus no deserto. Antes de Jesus dar início ao seu ministério público, e depois de haver jejuado no deserto por quarenta dias, o Diabo apareceu-lhe. Primeiro, o Diabo ofereceu-lhe pão, simbolizando a satisfação pessoal no nível físico; em seguida, desafiou a autoridade de Jesus; e, por fim, ofereceu-lhe os reinos do mundo, "se, prostrado, me adorares". Mas Jesus, recusando o desejo físico, a necessidade de provar-se e a ambição pessoal como motivos para o seu comportamento, replicou: "Retira-te, Satanás!" Para ele, o demônio se fora.

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Diz uma história semelhante do Buda que, enquanto estava sentado debaixo da árvore Bodhi, imediatamente antes de atingir a iluminação, veio tentá-Io o deus-demônio Mara. Em meio à violência e aos oferecimentos de prazer e poder, ele sentou-se e permaneceu calmo, "como um leão sentado no meio de bois". Mara e seus exércitos, frustrados, saíram amargando a derrota. O dragão ou demônio só pode ser plenamente domado por meio de um trabalho interior sistemático, por um período de anos. Entretanto, a transformação essencial que acaba vindo possui uma qualidade instantânea: a qualquer momento ocorre uma súbita mudança de estado e o Paraíso estápresente, nem que seja por um instante. O herói não doma o dragão pelejando com ele, mas recusando-se a pelejar com ele enfrentando-o, mantendo-se corajosamente firme, e expressando o caráter da inocência e do amor. Subitamente o herói percebe que o Paraíso estivera lá durante o tempo todo, sem ser notado. Mesmo depois de haver atingido momentaneamente a percepção paradisíaca, o herói ainda precisa aprender a sustentar e comunicar esse estado. A partir desse ponto, tem a certeza de haver conhecido a condição verdadeira e natural da consciência humana - a pérola de grande valor, pela qual a pessoa prudente venderá tudo o que possui (Mateus 13:46). Depois de haver desenvolvido a capacidade de manter consistentemente a consciência paradisíaca, o herói volta ao mundo terrestre com um bálsamo curativo. Tendo encontrado o Céu, precisa partilhá-Io - o que significa partilhar-se, partilhar o seu estado de ser. Para o indivíduo, o regresso é a culminação da jornada, mas a busca não estará completa enquanto o mundo não tiver sido restaurado.

Epílogo O Paraíso terrestre existiu realmente alguma vez, ou é produto da imaginação humana? Mesmo agora, no fim da nossa investigação, precisamos reconhecer que este é um problema que talvez nunca seja

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resolvido por arqueólogos ou antropólogos. De um lado, é impossível provar a realidade histórica de uma Idade de Ouro só por intermédio de provas físicas; por outro lado, a evidência material não elimina, de maneira alguma, a possibilidade, e as provas menos tangíveis do mito e da cultura simplesmente não nos permitirão dispensá-Ia. Claro está que a resposta que aceitarmos depende, em grande parte, da nossa definição do que era o Paraíso, ou do que deveria ser. Os mitos e tradições dos antigos não retratam o Éden como uma espécie de Paraíso tecnológico que a nossa civilização atual tende a projetar no futuro. Se a Idade de Ouro realmente existiu, deve ter sido, ao contrário, como os chineses a descrevem, uma Idade de Virtude Perfeita - uma idade em que: Eles eram honrados e corretos, sem saber que o ser assim é honradez; amavam-se uns aos outros, sem saber que o fazer assim era benevolência; eram sinceros e leais de coração, sem saber que isso era lealdade; cumpriam seus compromissos, sem saber que o fazê-Io era ter boa fé; em seus simples movimentos empregavam os serviços uns dos outros, sem pensar que estavam dando ou recebendo alguma dádiva. Por conseguinte, suas ações não deixavam traços, e não havia registro dos seus negócios. É evidente que pode haver traços das ações do Primeiro Povo em misteriosos megálitos antigos, e algum registro dos seus assuntos no mito e na lenda. Mas estas são pistas fragmentárias e efêmeras. E, no entanto, a visão do Paraíso - deformada, incompreendida, ou até imaginária - insinuou-se, de certo modo, no cerne vital de todo movimento religioso, na literatura e nos ideais sociais de toda cultura. Seja qual for a origem do mito - realidade histórica ou ilusão de massa ele tem vida própria no inconsciente coletivo. A tese principal aqui apresentada - que, na realidade, é apenas uma representação, em termos modernos, do que os mestres espirituais vêem dizendo há milênios - é que a memória do Paraíso representa um anseio, inato e univesal, por um estado de ser natural e totalmente

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satisfatório, mas do qual, de um jeito ou de outro, nós nos excluímos. Talvez a pista nova mais útil para esse estado perdido de ser esteja contida no estudo moderno dos estados alterados de consciência, e, em particular, da experiência da quase-morte. Como vimos, a essência do Paraíso equivale ao que várias tradições denominaram nirvana, êxtase, união divina e consciência cósmica. É a condição da ausência do ego humano separado com todas as suas defesas, agressões e categorias de julgamento. Essa interpretação pode parecer óbvia, mas só recentemente os desenvolvimentos de várias disciplinas a fIzeram assim. No campo da psicologia, por exemplo, o estudo sistemático de estados alternados de consciência só começou realmente neste século, e os maiores avanços só ocorreram nos últimos vinte anos. No campo da antropologia, só nas últimas décadas viemos a respeitar a sabedoria dos povos tribais e a levar-Ihes a sério as crenças a respeito da natureza da realidade. O campo da religião comparada - que abriu uma vista para as similaridades fundamentais entre os ensinamentos centrais de todas as tradições espirituais - só agora começou igualmente a atingir a maioridade. Todos esses desenvolvimentos convergem para o mesmo ponto, permitindo-nos deixar para trás não só as idéias religiosas dogmáticas da Idade Média, mas também as suposições evolutivas simplistas do século passado. Estamos, assim, livres para alcançar uma nova visão, tanto do passado mítico, quanto também das nossas possibilidades milagrosas no presente e no futuro. Um dos meus propósitos ao escrever este livro foi juntar os mitos principais do Paraíso, da Queda, da catástrofe e da purifIcação. Outro, porém, foi evocar a contextura e o matiz da visão espiritual do mundo de povos antigos e tribais. A perspectiva deles, tão em desacordo com o nosso jeito moder no de olhar para as coisas, pode conter alguns dos próprios elementos de que nós, na civilização pós-industrial, precisamos para construir uma cultura sustentável, regenerativa. Estamos vivendo num mundo estático, que nos concede um tempo infInito para uma preguiçosa discussão acadêmica, mas num mundo

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que solapa furiosamente a própria viabilidade biológica. Perdemos o sentido de proporção, o sentido da justeza das coisas, e o sentido de estarmos contidos no interior de um Conhecer maior, que fornece à nossa vida um contexto significativo, e diante do qual somos responsáveis, não só pelas nossas ações mas também pelos nossos motivos e valores. Perdemos, em suma, o sentido do sagrado. O mito do Paraíso é o relato da perda da dimensão sagrada, da perda da inocência. E se ele contiver pistas que nos ajudem a compreender por que chegamos a essa precária conjuntura da história e o que podemos fazer para recobrar o que deixamos para trás, talvez então valha a pena empreender uma recontagem da história. Seja como for, o momento da recontagem parece ter um signifIcado próprio quase apocalíptico. Muitas gerações sentiram estar assistindo à culminação da história, mas nunca nenhuma geração teve melhores razões para sentir-se dessa maneira. Talvez estejamos vivendo mesmo no tempo profetizado em cada tradição, quando o mito profano da história humana e o mundo milagroso do mito estão prestes a reunirse, de um modo ou de outro. Parecemos, com efeito, ter-nos afastado muito do estado de inocência e comunhão com a natureza, descrito nos mitos do Paraíso. O esvaziamento da camada de ozônio da Terra, a poluição da água e do ar, a perda da camada superficial do solo e da cobertura de florestas, o efeito estufa e as extinções em massa das espécies, tudo isso fala de um modo de existência tragicamente fora de contato com o pulso do planeta em que vivemos. E o crescimento do crime, da doença mental e do abuso de drogas parecem assinalar algum profundo alheamento da sociedade das aspirações nutritivas do espírito humano. O mundo está cheio de problemas políticos, econômicos, sociais e ambientais complexos. Mas não podemos esperar resolver esses problemas sem nos dirigirmos primeiro aos valores e motivos que os produziram. E como abordaremos a clarificação dos valores e motivos humanos? Devemos, sem dúvida, olhar para a própria psique humana - o reino misterioso cujos poderes e dinâmica supra-racionais

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encontram expressão, primeiro, em mitos, sonhos e visões. Defrontamonos, portanto, com a probabilidade, aparentemente paradoxal, de que o exame de histórias antigas e pretensamente irracionais pode ser uma das buscas mais práticas ao nosso alcance no mundo moderno. Se estivermos dispostos a tornar-nos outra vez parceiros do Céu e da Natureza na realização de um plano já existente, que transcende os propósitos humanos centrados em si mesmos, a memória e a visão talvez possam convergir num Paraíso compreendido, em que as tensões que ora nos atormentam - tensões entre a humanidade e a natureza, o coração e a mente - podem dissolver-se num espírito de acordo universal. Se pudermos ouvir uma voz vinda da fonte eterna de mitos e sonhos, e obedecer a ela, poderá abrir-se diante de nós uma idade não de conforto e prosperidade tecnologicamente construídos, mas de princípios milagrosos - um novo Tempo de Criação. E talvez seja apenas o poder misterioso da própria Criação que nos permitirá sobreviver, e, por fim, viver plenamente.

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