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CADERNOS DE HISTÓRIA Cad. hist. Belo Horizonte v. 1 n. 1 p. 1-51 out. 1995

1647-6315-1-PB.pdf

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  • CADERNOS DE HISTRIA

    Cad. hist. Belo Horizonte v. 1 n. 1 p. 1-51 out. 1995

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS

    ReitorProf. Pe. Geraldo Magela Teixeira

    Pr-reitora de Execuo AdministrativaProf. ngela Maria Marques Cupertino

    Pr-reitor de ExtensoProf. Bonifcio Jos Teixeira

    Pr-reitor de GraduaoProf. Djalma Francisco Carvalho

    Pr-reitora de Pesquisa e de Ps-graduaoProf. La Guimares Souki

    Chefe do Departamento de HistriaProf Maria Mascarenhas de Andrade

    Colegiado de Coordenao DidticaProf Carla Ferretti SantiagoProf. Carlos Evangelista VerianoProf Heloisa Guaracy MachadoProf Maria Mascarenhas de Andrade (Coordenadora)

    Tiragem1000 exemplares

    EDIES PUCMGPontifcia Universidade Catlica de Minas GeraisPr-reitoria de ExtensoAv. Dom Jos Gaspar, 500 Corao EucarsticoCaixa postal: 1686 Tel: (031) 319.1220 Fax: (031) 319.112930535-610 Belo Horizonte Minas Gerais Brasil

  • SUMRIO

    Apresentao ......................................................................................................................... 5

    De res publica e de repblica: o significado histrico de um conceitoHeloisa Guaracy Machado ....................................................................................................... 7

    Vivendo a liberdade: fugas e estratgias no cotidiano escravista mineiroLiana Maria Reis ..................................................................................................................... 17

    Aparncias e aparies esttica barroca a imagem ocultaMnica Eustquio Fonseca ...................................................................................................... 24

    A massa desvelada: comentrio sobre quatro estudos e umaperspectiva de anlise histricaEduardo Frana Paiva .............................................................................................................. 28

    A pintura de tectos de perspectiva arquitectnica noPortugal joanino (1706-1750)Vitor SerroMagno Mello ........................................................................................................................... 34

    Crise ideolgica e produo intelectual: esquemas depensamento prprio a uma situao histricaHelenice Rodrigues da Silva .................................................................................................... 45

    Cad. hist. Belo Horizonte v. 1 n. 1 p. 1-51 out. 1995

  • Conselho EditorialProf. Carlos Fico (Dept de Histria UFOP)Prof Eliana Fonseca Stefani (Dept de Sociologia PUCMG)Prof. Dr. Francisco Iglsias ( Faculdade de Cincias Econmicas UFMG)Prof Liana Maria Reis (Dept de Histria PUCMG)Prof Dr Maria do Carmo Lana Figueiredo (Dept de Letras PUCMG)Prof Dr Maria Efignia Lage de Rezende (Dept de Histria UFMG)

    Coordenao EditorialProf Heloisa Guaracy Machado

    Coordenao GrficaCoordenadoria de Comunicao Social da PUCMG

    RevisoVirgnia Mata Machado

    FICHA CATALOGRFICA(Preparada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade

    Catlica de Minas Gerais)

    Cadernos de Histria. v. 1, n. 1, out.1995 Belo Horizonte: PUCMG,1995

    v.

    Anual

    1. Histria Peridicos. I. Pontifcia Universidade Catlicade Minas Gerais. Departamento de Histria.

    CDU: 98 (05)

  • APRESENTAO

    Este o primeiro nmero dos Cadernos de Histria, do Departamento de Hist-ria da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, que inaugura uma no-va fase de publicaes anuais dos trabalhos de seus professores e de pesqui-sadores convidados.

    Os seis artigos constantes do presente nmero apresentam uma variedade te-

    mtica dentro do vis histrico comum. So estudos sobre movimentos de resistncia

    social popular ou escrava ou sobre movimentos estticos como o barroco e o pe-

    rodo joanino portugus e, ainda, sobre o conceito de Repblica ou sobre a elite in-

    telectual francesa, perpassando a Antigidade Clssica, a Europa pr-industrial e a Eu-

    ropa moderna, a Frana contempornea e as Minas Gerais no tempo do Imprio.

    Dois desses artigos nos foram enviados da Frana e Portugal, onde os seus au-

    tores esto radicados, em funo de compromissos acadmico-profissionais. Optamos

    por manter tais textos nos limites de sua forma original, reproduzindo-os na ntegra,

    embora com algum prejuzo do padro normativo estabelecido para os demais. Assim,

    o artigo A Pintura de Tectos de Perspectiva Arquitectnica no Portugal Joanino, por

    exemplo, guarda a especificidade do idioma portugus corrente em Portugal, respei-

    tando as diferenas de ordem lingstica relativas ao mesmo idioma, no Brasil. Por ou-

    tro lado, o ensaio Crise Ideolgica e Produo Intelectual: Esquemas de Pensamento

    Prprio a uma Situao Histrica traz referncias bibliogrficas de ordem geral, sem

    se fazer acompanhar pelas notas de referncia, como a praxe.

    O Departamento de Histria se sente gratificado por apresentar comunidade

    acadmica uma produo resultante do empenho em ampliar suas atividades, organi-

    zadas num projeto poltico-pedaggico que procura conciliar os interesses da gradua-

    o, da Instituio e da sociedade no seu conjunto. Entendemos que os campos do en-

    sino, da pesquisa e da extenso compem um elo indissocivel na cadeia da produo

    e distribuio do conhecimento histrico, numa interao permanente que pressupe

  • mtuas contribuies. Nesse sentido, o Departamento desenvolve um projeto coletivo

    de pesquisa que rene, numa temtica comum, estudos particulares de alguns profes-

    sores, os quais, aliados a outros trabalhos em andamento, ou em fase de implementao,

    devero fornecer farto material para as futuras edies.

    Entendemos, tambm, que a produo do conhecimento cientfico deve estar

    de acordo com a tendncia interdisciplinar que caracteriza a esfera acadmica na atua-

    lidade. Assim, elegemos um conselho editorial diversificado no que se refere sua for-

    mao bsica e sua vinculao institucional. Buscamos o suporte de um corpo de peso,

    capaz de uma avaliao crtica consistente, quer pela sua renomada competncia pro-

    fissional, quer pela sua iseno. E que, pela sua composio ecltica, viesse somar as di-

    ferentes vises em proveito da anlise e do julgamento dos textos submetidos seleo.

    Isso se confirmou na prtica, pois algumas sugestes valiosas foram consideradas na

    resoluo dos impasses naturais aos processos desse tipo. Tendo como componentes do

    conselho quatro historiadores, com as suas sub-especialidades, uma sociloga e uma

    literata, sentimo-nos mais vontade para aceitar a publicao dos textos referente s

    disciplinas vizinhas.

    Por ltimo, faz-se necessrio registrar que os artigos reunidos neste caderno so

    de exclusiva responsabilidade dos seus autores, no que se refere aos temas abordados

    e s opinies emitidas.

    Heloisa Guaracy MachadoCoordenadora Editorial

  • Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 7-15, out. 1995 7

    De Res Publica e de Repblica: o significado histrico de um conceito

    DE RES PUBLICA E DE REPBLICA:O SIGNIFICADO HISTRICO

    DE UM CONCEITO

    Heloisa Guaracy MachadoDepartamento de Histria da PUCMG(*)

    (*) Este artigo o resultado de uma palestra proferida no simpsio sobre o Centenrio da Repblica Brasileira, promovido pelo Departamentode Histria da PUCMG, em 1989, em conjunto com a professora Ana Maria Coutinho.

    RESUMO

    O debate sobre a RepblicaBrasileira requer a anlise do con-ceito de Repblica como umaconstruo social e simblica deum contexto histrico especfico.

    O artigo visa recolocar o con-ceito Repblica no seu locus ori-ginal, isto , a Antigidade Cls-sica, indicando os seus pres-supostos bsicos lanados napolis grega e o momento de suaelaborao formal no mbito dacivitas romana.

    A creditamos que a discusso a respei-to da Repblica brasileira deva se ini-ciar por uma reflexo sobre o concei-to Repblica, do ponto de vista histrico. Istoimplica uma anlise em torno de trs eixos b-sicos e intimamente relacionados, como pro-curaremos demonstrar ao longo da exposio:a definio do termo Repblica; a insero doconceito no seu contexto original o mundo

    greco-romano buscando apreender as condies materiais e mentaisque permitiram a sua emergncia ou consolidao; e, finalmente a ca-racterizao da produo poltico-ideolgica da sociedade clssica, naperspectiva da longa durao, salientando os aspectos que a distan-ciam e a aproximam do mundo moderno e contemporneo. Nesse sentido,

  • Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 7-15, out. 19958

    Heloisa Guaracy Machado

    que ecoam no nosso presente. Arecuperao do dilogo entre omundo greco-romano e a mo-dernidade (aqui englobando omundo contemporneo) signifi-ca promover um exerccio deautoconhecimento e ampliaoda crtica poltica e social, atra-vs da investigao cuidadosa decertos postulados ideolgicos,nas condies em que eles forampostos inicialmente.

    Trabalhar o significado doconceito de Repblica , nessesentido, inscrev-lo no tempolongo da histria, buscando aspermanncias entre uma cultu-ra e outra, entre momentos cro-nologicamente distintos. en-tend-lo como um elementosimblico que, tornado objeto deanlise, nos conduz a uma com-preenso melhor no s do gru-po particular que o construiu a sociedade greco-romana masde todos aqueles que o elegeramcomo modelo poltico. As heran-as culturais clssicas no devemser consideradas meras sobre-vivncias de uma sociedade re-mota e amorfa, condenada aodesaparecimento; ao contrrio,elas constituem vivncias vigo-rosas, sempre renovadas no de-correr da dinmica histrica, cujaatualizao vai refletir as especi-ficidades de contextos sociais di-ferenciados, que obedecem aracionalidades distintas. Nopodemos comparar stricto sensusociedades pr-industriais, comoo mundo greco-romano, e a so-ciedade brasileira, inserida nosquadros do capitalismo interna-cional; sabido que cada cultu-ra deve ser considerada na suapeculiaridade, o que torna impe-rativa a elaborao de um cam-po terico coerente sobre o mun-

    visamos destacar alguns pontospara uma reflexo sobre o tema,abrindo o leque das discusses a esserespeito, sem qualquer pretenso deesgotar o assunto.

    Um conceito, na sua acepouniversal, uma representaomental de um objeto, por meiode suas caractersticas gerais.Todo conceito remete a uma ex-presso lingstica uma sen-tena, uma palavra, como Rep-blica carregada de um conte-do semntico que s pode seravaliado na sua relao com ou-tros termos ou com o contextocultural. Linguagem e cultura seimplicam mutuamente de modoque a linguagem deve ser con-cebida como um elemento inte-grante da vida social e quotidia-na, ainda que ela no seja capazde traduzir a realidade em suaplenitude. Visto desta forma, oconceito um importante mate-rial para a anlise histrica, poisele parte de um cdigo simb-lico e lingstico, expresso numsistema de signos construdossocialmente e amplamente reco-nhecidos pelos membros de umacomunidade. A descodificaodesse sistema nos permite a re-construo do imaginrio cole-tivo, das ideologias, dos hbitose valores relativos sociedadeque o engendrou e s suas for-mas de permanncia em outroscontextos histricos.

    O Novo Dicionrio da Ln-gua Portuguesa o DicionrioAurlio indica a filiao etimo-lgica do termo Repblica com olatim res pblica, isto , coisa p-blica, evidenciando que as ra-zes histricas dessa palavra tocontempornea e, ao mesmotempo, muito antiga remontamao mundo latino e, por extenso,

    Grcia, substrato da culturaromana.

    Na verdade, no deveramosignorar, como ocorre muitas ve-zes, que os fundamentos polti-cos, jurdicos e filosficos domundo ocidental e, por conse-guinte, do Brasil, foram edifica-dos no mbito da tradio greco-romano-judaico-crist. A surgi-ram e se afirmaram os processosracionais de organizao comu-nitria que deram origem s no-es de cidadania e participao,aos princpios filosficos e ticosde conduta, s primeiras leis es-critas, s regras consagradas dodireito romano e, naturalmente, experincia republicana.

    Incorporadas definitivamente civilizao ocidental, tais criaesso de tal forma atuantes no nos-so cotidiano poltico, social emental que s nos resta admitira sua atualidade. A cultura gre-co-romana est presente mui-to mais do que os artefatos, tex-tos e monumentos que nos legou na herana cultural que per-meia o nosso quotidiano, oscomportamentos, as crenas e asformas de organizao comuni-tria, atravs das reinterpreta-es de um modelo gerado numtempo remoto, mas que conti-nua inspirando o modo de vidaatual.

    A importncia do conceito Re-pblica na prtica poltica ociden-tal exemplo dessa vitalidade,pois nenhum elemento simbli-co pode subsistir apartado darealidade fenomnica. Um vo-cbulo, nessas condies, se tor-naria letra morta, rapidamente.

    No raro, nos voltamos parao passado clssico e o interroga-mos, sobre os nossos dilemas,buscando ouvir aquelas vozes

  • Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 7-15, out. 1995 9

    De Res Publica e de Repblica: o significado histrico de um conceito

    do antigo. Por outro lado, nopodemos subestimar as evidn-cias de que existe um encontro se-creto, marcado entre as geraes pre-cedentes e a nossa, como diriaBenjamin (1986, p.223).

    Essas questes foram coloca-das pela Nova Histria, sobretu-do a partir dos anos 60, e, em es-pecial, pela Histria das Menta-lidades, que trata da psicologiacoletiva, fazendo fronteira coma psicanlise, mas no se confun-dindo com ela. As mentalida-des se ocupam das estruturasmentais de base, da maneira desentir e pensar de um povo, deum grupo, nos seus traos maisgerais (e no estritamente racio-nais), subjacentes realidadematerial, mas a esta necessaria-mente ligados. A sua investiga-o no se coloca na esfera dosfenmenos sociais objetivos, masse dirige representao dessesfenmenos, expressos nos docu-mentos e monumentos constru-dos a partir do imaginrio cole-tivo. Na linha proposta porGeorges Duby e Jacques Le Goff,as mentalidades so colocadasno centro do corpo social, utili-zadas como o meio de esclareci-mento do real. Nesse caso, elasesto assentadas numa totalida-de histrica que inclui, simulta-neamente, a civilizao material(o trabalho, a economia, as leis)e os aspectos espirituais (sonhos,mitos, crenas, representaes),articuladas numa mesma estru-tura e integradas no movimen-to histrico global.

    Assim, cada sociedade parti-cular, cada micro-histria inte-grada numa durao global, re-cuperando a idia bsica da his-tria como processo (social) e,dessa forma, preservando a pr-

    pria historicidade, do ponto devista de sua capacidade de sn-tese. As mentalidades procu-ram aproximar aspectos como asrepresentaes simblicas e asprticas conscientes, a micro-his-tria e a macro-histria, mesmoconsiderando as dificuldadesdessa proposta, a exemplo doque afirma Le Goff:

    a histria das mentalidades (...) si-tua-se no ponto da fuso do indivi-dual e do coletivo, do longo tempo edo quotidiano, do inconsciente e dointencional, do estrutural e doconjuntural (...); a histria das men-talidades no pode ser feita sem es-tar estreitamente ligada histriados sistemas culturais, sistemas devalores, de equipamento intelectualno seio dos quais as mentalidades soelaboradas, viveram e evoluram.(Le Goff, 1976, p. 76)

    O bero da respublica: Acidade-estadoaristocrtica

    De acordo com o Novo Dicio-nrio Aurlio, o termo Repblica definido como uma organizaopoltica de um Estado com vistas aservir coisa pblica, ao interessecomum. A poltica compreen-dida como mtodos e tticas for-mais e informais, como o gover-no conduzido e as decises sotomadas e, ainda, a ideologia do-minante situa-se entre as ativi-dades mais excepcionais domundo clssico. Com efeito, elafoi uma inveno grega, ou tal-vez, invenes separadas dosgregos, etruscos e/ou romanos,no mbito da cidade-Estado

    uma comunidade auto-governa-da, composta de um centro cvi-co e/ou econmico (o centro ur-bano) e um territrio adjacente,do qual tirava seus meios de sub-sistncia. Por ser pequena emrea e populao, convencio-nou-se denomin-la cidade-Esta-do. O regime da cidade-Estado,nas suas variantes, existiu naGrcia, entre os sculos VIII e IVa.C. e na Roma republicana, en-tre os sculos VI e I a.C.

    As marcas da cultura gregaimpregnaram inegavelmente, omundo romano, embora seja di-fcil avaliar com preciso a exten-so desse fenmeno. Guardadasas especificidades de cada uma(instituies e desenvolvimentodiferenciados), podemos dizerque as duas culturas esto liga-das por laos de similitude esubstanciais continuidades. Se-gundo Moses Finley, a prpriaclassificao de cidade-Estado suben-tende a existncia de elementos co-muns suficientes para justificar afuso de Grcia e Roma pelo menoscomo ponto de partida. (Finley,1983, p. 23). Assim, a anlise re-ferente s cidades gregas nospermite conhecer, em parte, oprocesso vivenciado por Roma,alguns sculos depois.

    A princpio, Grcia e Romaeram notavelmente parecidas nasua organizao: eram comuni-dades agrrias, em que os confli-tos sociais, to centrais na fase ar-caica, ocorriam regular e exclu-sivamente entre os credores aris-tocrticos proprietrios e os de-vedores camponeses. A aristo-cracia detinha o monoplio dopoder e da autoridade, tanto for-malmente quanto de fato. Tam-bm possua a maior parte da ri-queza, isto , o controle dos re-

  • Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 7-15, out. 199510

    Heloisa Guaracy Machado

    cursos produtivos e da mo-de-obra, utilizados na aquisio dearmamentos e de cavalos, na im-portao de metais, na constru-o de navios e de obras pbli-cas. Seu sistema social estrati-ficado e hierrquico permitia, noentanto, a incorporao dos ci-dados(*) de segunda categoria(camponeses, artesos e comer-ciantes) comunidade poltica.E mesmo os conflitos poltico-sociais, s vezes graves, no im-pediram a experincia de algunssculos de existncia estvel,alm de um forte sentimento deidentidade entre os cidados,com foros inequvocos de legiti-midade, assegurados por meca-nismos ideolgicos, como a reli-gio e a crena na lei.

    A cidade-Estado considera-da a espinha dorsal da socieda-de clssica, o elemento catalisa-dor sem o qual essa civilizaopermaneceria ininteligvel. Deacordo com Ciro Flamarion Car-doso,

    foi uma novidade sem precedentese de enorme alcance o fato de que,num determinado perodo da hist-ria da Antigidade, camponeses, ar-tesos, pequenos comerciantes eeventualmente, mesmo cidados to-talmente desprovidos de recursos te-nham podido participar do governode suas comunidades, mesmo de for-ma limitada. Cidadania, participa-o poltica, democracia: eis a no-es bsicas e atuais que foram ven-tiladas pela primeira vez no mundodas cidades-Estados antigas. (Car-doso, 1985, p. 74).

    Mas a cidade grega, em espe-cial, parece ter lanado os fun-damentos polticos que nortea-riam as geraes subsequentes.

    O prprio termo poltica vem depolis que, no sentido clssico, sig-nificava um estado que se go-vernava a si mesmo. Assim,

    o fenmeno geogrfico e poltico as-sociavam-se de tal modo que, na ln-gua grega, polis era ao mesmo tem-po uma expresso geogrfica e umaexpresso poltica, designando tan-to o lugar da cidade, quanto a popu-lao submetida a sua soberania.(Peanha, 1979, p.VI).

    A formao da polis aristocr-tica, em parte da Grcia, corres-pondeu constituio de um no-vo ethos, resultante das transfor-maes demogrficas, econmi-cas e sociais, quando as relaesde parentesco, de cunho tribal emonrquico foram absorvidaspelas relaes de vizinhana, decarter urbano, no sculo VIIIa.C. A polis um artefato cons-trudo pelo homem e sua sim-ples presena pressupe umcontrole tcnico da natureza. Nalinguagem filosfica poderamosdizer que ela representa a pas-sagem do mito ao logos: o discur-so mtico (ou mgico), cuja or-dem era explicada por fatores so-brenaturais, integrados s orga-nizaes gentlicas, tribais e emi-nentemente rurais, foi suplanta-do pelo discurso cientfico logos que explicava a realidade atra-vs de princpios racionais e na-turais, imanentes realidade f-sica. Dito de outro modo, a cida-de grega desenvolveu um prin-cpio implcito de coerncia ra-cional, que tornava mais fcil razo consciente aplicar-se so-luo dos problemas da associa-o poltica.

    O regime da cidade promo-

    veu grandes alteraes no direi-to primitivo, baseado na religioe controlado pela nobreza desangue, a quem era atribudauma estreita ligao com os an-cestrais mticos ou hericos, oque a credenciaria como intr-prete das vontades dos deuses.A primeira dessas alteraes foia publicizao das leis, que per-deram o seu carter de canto sa-grado e misterioso, reveladoapenas ao grupo privilegiado. Ainscrio do Cdigo de Drconnos muros de Atenas, no sculoVII a.C., marca uma poca nahistria do direito, mesmo con-siderando a tendncia claramen-te aristocrtica do cdigo. Modi-ficaram-se, ento, a natureza dalei e seu fundamento: esta pas-sava ao domnio pblico, sendosancionada pela cidade. Pressi-onados pela plebe armada, oschefes aristocrticos tiveram deabrir mo do poder de determi-nar, segundo a sua vontade, asfrmulas que deveriam pautar avida social e poltica. Estabele-ceu-se uma relao direta entreo Estado e o cidado comumque, tendo acesso lei, podia in-voc-la e mover ao em justia.

    Novas regras vieram gover-nar a sociedade, ainda que te-nham sido conservados muitosaspectos da antiga organizaogentlica e a religio se mantives-se como pano de fundo. O prin-cpio regulador das instituiespassou a ser o interesse pblico,superior s vontades individu-ais: aquilo que os gregos chama-ram to koinon e que os latinos,dois sculos mais tarde, chama-riam res publica, suplantou a ve-

    (*) Elementos do sexo masculino, maiores de 18 anos, devidamente registrados. Na cidade grega aristocrtica exigia-se, ainda, que um dospais tivesse nascido na cidade, diferentemente de Roma, onde o conceito de cidadania era mais fluido.

  • Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 7-15, out. 1995 11

    De Res Publica e de Repblica: o significado histrico de um conceito

    lha religio. A nova ordem ele-geu o sufrgio o principal instru-mento do governo, das institui-es, e regra do direito. As anti-gas constituies absolutas eimutveis, calcadas nos ditamesdo culto religioso, foram substi-tudas por leis fixadas, mas flex-veis, suportes da legitimidadepoltica. Perguntaram a Slon,grande legislador da fase arcai-ca ateniense se ele julgava haverdado sua ptria a melhor cons-tituio: No, respondeu ele, masaquela que melhor lhe convm.(Coulanges,1981, p. 28)

    Algumas cidades gregas leva-ram esse princpio o interessecomum ao seu expoente mxi-mo, ou seja, prtica democr-tica. Em Atenas, expresso mai-or da democracia, no resta d-vida de que o debate foi cont-nuo, intenso e pblico. Pela pri-meira vez na histria, o governopassara a ser exercido pelo con-junto de cidados o demos que, participando diretamenteda Assemblia Popular, decidia,atravs do voto, os destinos dapolis. A Assemblia era a princi-pal instituio do regime: os con-selhos e as magistraturas lheeram subordinados. No exercciodo direito cvico, dois conceitoseram fundamentais: isonomia,igualdade (dos cidados) pe-rante a lei e isegoria, direito igualde falar na Assemblia. A demo-cracia , por excelncia, o gover-no da discusso, e a liberdade deexpresso era um direito de nas-cena em Atenas.

    Nem todas as cidades-Esta-dos gregas atingiram a democra-cia, permanecendo oligrquicas(em alguns casos, monrquicas),como aconteceria tambm fu-tura Roma republicana. O de-

    senvolvimento romano foi deuma ordem bem diferente, qua-litativa e quantitativamente fa-lando. sabido que a lideranapoltica foi monopolizada pelosetor mais rico da cidadania du-rante a era da cidade-Estado, atmesmo sob o regime democrti-co. Mas em Roma esse aspectofoi muito mais acentuado, comuma camada relativamente pe-quena auto-perpetuada no po-der. O Senado o conselho ro-mano era exclusivamente aris-tocrtico e constitua a principalinstituio romana, restando Assemblia popular (o principalrgo da democracia grega) umplano secundrio na estruturapoltica. Enquanto em Atenas asdecises dependiam da aprova-o da maioria dos cidados (aprpria essncia do regime de-mocrtico), em Roma, qualquerao governamental dependiada anuncia do Senado aristo-crtico, como atesta o senatusconsultum ultimum:

    O Senado se arrogava o direito dedeterminar quando existia um esta-do de emergncia de tal gravidadeque justificava a suspenso dos di-reitos fundamentais dos cidados ro-manos: em suma, o Senado identifi-cou-se com a res publica. (Finley,1983, p. 15).

    Nas assemblias romanas nohavia debate, apenas uma vota-o para aprovar ou rejeitar osprojetos de lei que o magistradoapresentava de antemo. Os tri-bunais de justia eram solida-mente reservados elite polti-ca, no lembrando em nada osjris populares de Atenas. Comofoi que a elite romana conseguiurestringir a tal ponto a participa-o popular, apesar da incluso,na comunidade poltica, de cam-

    poneses, residentes urbanos e,mesmo de estrangeiros, umalonga histria que no cabe des-crever no momento.

    Importa-nos salientar, comouma primeira constatao poss-vel, que a configurao da prti-ca poltica est necessariamentevinculada ao advento da cidade,ao regime aristocrtico e a umquadro institucional de certacomplexidade, mais adequados novas exigncias trazidas pelavida urbana e aos mltiplos in-teresses de sua populao.

    Dos fundamentos elaboraodo conceitores publica

    A despeito da associao fre-qentemente estabelecida entreexerccio poltico e democracia,verificamos que no h uma re-lao unvoca entre ambos, doponto de vista histrico. A cida-de-Estado de Roma (diferente-mente de algumas cidades gre-gas) no s desconheceu a de-mocracia, como conduziu a suaRepblica at o Imprio desp-tico. A Repblica nasceu e se de-senvolveu em solo aristocrtico,o que no invalida o carter doavano histrico ocorrido com asua instalao. Isto porque a or-dem republicana se sustentavaatravs de regras predominante-mente laicas, racionais e cons-trudas socialmente, configuran-do um grau de elaborao bemmais sofisticado, se comparado

  • Cad. de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 7-15, out. 199512

    Heloisa Guaracy Machado

    simplicidade da estruturamonrquica, sagrada e mtica.

    No entanto, as cidades demo-crticas e aquelas aristocrticaseram regidas por uma ideologia,comum, at certo ponto, s duasformas de regime. Assim, a pro-posio interminavelmente afir-mada por gregos e romanos que a condio essencial parauma verdadeira polis e para avida boa pressupe o gover-no pelas leis, no pelos homens.Essa pretenso virtude defen-dida por Plato na sua obraPolitia, mais conhecida como ARepblica devido, provavel-mente, s tradues romanasposteriores. Democracia e oli-garquia compartilhavam essamesma pretenso. Mas devemosesclarecer que o critrio que exi-gia leis fixas e publicamente co-nhecidas era marcado por umraciocnio eminentemente prti-co e pela prudncia: a crena nointeresse comum significava a pro-messa de estabilidade, a capaci-dade de evitar o conflito fre-qente e sua forma extrema, aguerra civil.

    O princpio do interesse co-mum base da teoria poltica gre-ga iria nortear o pensamentoromano e toda reflexo polticaocidental. A reflexo poltica seiniciou, efetivamente, com osgregos, cuja mentalidade foiprofundamente marcada peloracionalismo. Diferentemente deseus contemporneos orientais,cuja viso de mundo era rigoro-samente ditada pela religio, osgregos trilharam o caminho dopensamento intelectual, procu-rando apreender a realidade sobo ponto de vista da razo, e es-peculando sobre tudo aquilo quelhes causava espanto e admira-

    o. Ainda assim no podemosnos esquecer de que, conformeassinala Finley, todo ato pblicona Antigidade era precedido deuma tentativa de obter apoio sobre-natural, atravs de preces, sacrifci-os e promessas (Finley, 1983, p.114), inclusive na Grcia e emRoma.

    Plato e Aristteles foram osprimeiros pensadores sistemti-cos e os primeiros tericos pol-ticos autnticos da Antigidade.Os primeiros a tentarem umadescrio completa e coerente daorganizao ideal da sociedade,assente na metafsica, na episte-mologia, na psicologia e na ti-ca. Eles trabalharam e escreve-ram num nvel de abstrao, re-finamento e generalizao filo-sfica to elevado, que, freqen-temente, colocava-se fora do al-cance de seus compatriotas.

    Na reflexo poltica grega, oEstado era concebido como umaassociao tica para a busca davirtude, como tambm um ins-trumento de justia. A cinciapoltica, nesse caso, deveria de-terminar o que era o Bem paraa sociedade, concretizado atra-vs da ao poltica. A Repbli-ca de Plato reflete bem esse es-prito, trazendo uma preocupa-o em salvaguardar o princpiovital do interesse comum, seria-mente abalado com a crise da de-mocracia (no sculo IV a.C.) e olento esfacelamento de suas ins-tituies. Plato aponta comoprincipal malefcio do regimedemocrtico a manipulao daAssemblia por demagogos que,com sua oratria brilhante, mo-nopolizavam os debates e obti-nham os votos necessrios paraaprovao de seus projetos e desuas ambies pessoais. Dessa

    forma, A Repblica platnicaapresentava solues para oaperfeioamento do sistema, in-dicando, entre outras, a criaode uma classe especializada degovernantes e um rgo para arealizao do bem comum. A Re-pblica funcionava como umaespcie de manual para o Esta-dista, papel reservado aos filso-fos, na diviso de funes esta-belecida por Plato. Esse cunhoprtico pode ser sempre encontra-do no pensamento grego. ComoAristteles, Plato buscava o Es-tado ideal em que os conflitos fos-sem transcendidos no interesse davida boa para todos, mas insistiaem afirmar que nenhum Estado,passado ou presente, atingira ouse aproximara desse objetivo.

    Os gregos foram muito lidosem Roma e o modelo democr-tico chegou mesmo a servir deinspirao para alguns legislado-res e tribunos, como os Gracos,embora sua implementao es-barrasse nos ditames da estrutu-ra aristocrtica. Como j foi res-saltado anteriormente, a Rep-blica romana permaneceu aris-tocrtica ao longo de sua hist-ria, no tendo a mesma necessi-dade de enfrentar o complexoquebra-cabea de disposiesconstitucionais, que caracteriza-ram a democracia grega. Talvezpor isso os romanos jamais te-nham desenvolvido a teoria e adiscusso polticas de forma toexuberante como ocorrera na Pe-nnsula Balcnica.

    Foi somente no sculo I a.C.(quando a Repblica agonizava),com Ccero, que Roma pde pre-senciar uma reflexo poltica dognero da que os gregos tinhamestado familiarizados desde osculo V. Ccero estabeleceu os

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    De Res Publica e de Repblica: o significado histrico de um conceito

    fundamentos da Repblica, cal-ados, a exemplo das cidadesgregas, no princpio do interessecomum, embora se distinguissedaquelas na execuo prtica doconceito. A sua obra dileta, DeRes Publica, pelo ttulo e pelaforma dialogada, revela a marcado texto homnimo de Plato. Aobra inclui comentrios sobre ofuncionamento e o esprito dosistema poltico romano, notada-mente os mtodos pelos quais aplebe era to completamentemantida sob controle. Nela en-contramos a definio clssica deRepblica, citada nos livros I e III:

    pois a Repblica coisa do povo,considerando tal, no todos os ho-mens de qualquer modo congrega-dos, mas a reunio que tem seu fun-damento no consentimento jurdicoe na utilidade comum (...) aquilo quetem o seu funcionamento na igual-dade dos direitos e na comunho deinteresses (...) a coisa pblica ver-dadeiramente coisa do povo, sempreque administrada com justia e sa-bedoria. (Ccero, 1932, p. 45-143)

    O vocbulo povo se refere,nesse caso, exclusivamente aoconjunto dos cidados na posseplena dos seus direitos cvicos.O termo Repblica, ou Res Publi-ca, tem o significado de coisa p-blica. Nos Dicionrios Latino-Portugus e Latino-VernculoRes tratado como coisa, objeto,ser, e Publica, palavra feminina,traz o sentido original de mere-triz, ou seja, aquela que perten-ce a todos. As formas publicus, pu-blicum correspondem ao que geral, ordinrio, vulgar, do queconcerne ao povo e ao bem co-mum. Essas noes, ao que pa-rece, se constituram em oposi-o aos privilgios polticos deuma elite religiosa que domina-

    ra por muito tempo os destinosda comunidade, quando estaainda era conduzida sob o signodo sagrado e do mistrio.

    O conceito res publica, ao con-trrio, sugere um momento deabertura da participao cvica,simbolizada na formulao deuma terminologia claramentepopular, cujo significado, pro-fundamente arraigado nas men-talidades, gozava de ampla res-sonncia na cultura romana.Como afirmamos anteriormen-te, a vitalidade de um conceitodepende de sua integrao naprxis social. Mas, em solo roma-no, a marcha da consolidao dacidadania pobre e de suas reivin-dicaes no teve prossegui-mento, tendo sido interrompidaem algum momento de sua his-tria.

    Os seus fundamentos bsicos,no entanto, eram os mesmos quehaviam inspirado a democraciagrega; os critrios eram seme-lhantes e o princpio do gover-no da lei se mantinha. A grandelinha divisria entre as cidades-Estados democrticas e oligr-quicas girava mais em torno desuas formas de governo e a con-duo da poltica, do que sobreos princpios que as norteavam.

    Diante do exposto, torna-sepossvel uma segunda constata-o: a estrutura republicana grega, mas o conceito Republica romano. Os gregos introduzi-ram os mecanismos essenciais aofuncionamento da Repblica: oregime da lei, a noo de cida-dania, a eleio dos magistradospela Assemblia, o carter cole-giado e rotativo dos cargos p-blicos, noes essas capitaneadaspelo princpio do interesse co-mum, que sustentava a legitimi-

    dade poltica e o arcabouo ins-titucional. Couberam aos roma-nos a criao da terminologia respublica e a sistematizao do con-ceito, fazendo da civitas latinauma experincia republicanaefetiva, calcada na idia funda-mental do interesse comum.

    Os princpiosda res publica namodernidade

    A concepo moderna de Re-pblica que atravessa a con-temporaneidade preserva par-te dos princpios originais men-cionados, conforme indica a de-finio atual, encontrada no No-vo Dicionrio Aurlio: a Rep-blica uma organizao polticade um Estado com vista a servir aointeresse comum, ou ainda, umsistema de governo em que um ouvrios indivduos eleitos pelo povoexercem o poder supremo por tempodeterminado. Parece que o gran-de diferencial entre a concepoclssica e a moderna est no seufundamento tico. A polis grega,ncleo original da reflexo pol-tica, era uma sociedade funda-mentada numa tica coletiva. Ointeresse comum e o bem comumforam tratados como uma coisas. O Estado, confundido com ogoverno, tinha, para Aristteles,um estatuto ontolgico, imbu-do de esprito moral, no se re-sumindo a uma composio defunes. A racionalidade polti-ca clssica era essencialmenteteleolgica: as teorias, de Platoa Ccero, trazem o finalismo daidia do Bem. A melhor constitui-o seria, nesse caso, aquela que

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    Heloisa Guaracy Machado

    ordenasse as condies mais ade-quadas para a realizao de umfim a justia, na cidade unin-do a cincia do Bem e a ao pol-tica, a tica e a poltica, segundo amesma razo.

    Essa associao se desfez, deacordo com o Padre HenriqueVaz, na teoria poltica moderna.Maquiavel, a exemplo de Plato,descreveu certas regras de aopara o chefe de Estado, o Prnci-pe, com a finalidade de consoli-dar o seu poder. Mas O Prncipe expresso da mentalidade vei-culada pela Renascena, no con-texto de afirmao do individu-alismo burgus e do sentimentonacionalista no traz as razesde ordem moral do tipo grego,pois o objetivo bsico se tornaraa obteno de uma eficcia dosresultados, perseguida no exer-ccio do poder. A poltica passoua ser identificada com a tcnicado poder:

    O fazer e o produzir se tornaramfins em si, submetendo todos os mei-os e rejeitando os fins propriamenteticos. (Vaz, 1983, p.9).

    Por conseguinte, podemos di-zer, na forma de uma constataofinal, que a idia da vida polticano Ocidente moderno no pderenunciar aos princpios funda-mentais da herana clssica: a le-gitimidade, a realizao da justi-a e o interesse comum. Tais prin-cpios esto presentes no modelodemocrtico burgus, que carac-teriza grande parte das Repbli-cas Ocidentais contemporneas.Mas aqui eles seguem uma orien-tao distinta, desviando-se dopostulado tico original.

    Alguns tericos atribuem aesse hiato a responsabilidade, aomenos parcial, dos sintomas decrise generalizada por que pas-sa a sociedade ocidental, agrava-

    da, nos ltimos anos, pelos con-flitos polticos, tnicos, religiosose scio-econmicos. HannahArendt, por exemplo, no seu li-vro Entre o Passado e o Futuroaponta para o impasse do pen-samento contemporneo, decor-rente da dissoluo dos padresclssicos greco-romanos e a suatransformao em valores fun-cionais. Segundo a autora, como advento da modernidade, osconceitos formulados na tradi-o clssica se apartaram da rea-lidade fenomnica, tornandoformas ocas as palavras-chavesda linguagem poltica, o que gerauma profunda lacuna, a ser, ne-cessariamente, corrigida. Porisso, ela prope o resgate de par-te dessa tradio, numa novaperspectiva metodolgica, quepromova a circularidade entrefatos e teorias, retornando a cer-tos conceitos bsicos tais comoliberdade e justia, autoridade e ra-zo, responsabilidade e virtude, po-der e glria (Arendt, 1972, p. 41).Esse exerccio intelectual pode-ria contribuir para o alargamen-to da reflexo poltica do sculoXX, atravs da insero de per-guntas relevantes no quadro dereferncia da perplexidade con-tempornea.

    No Brasil, esse impasse atin-ge contornos muito exacerbados,haja vista a gratuidade de certasfalas poltico-partidrias, em quea consistncia cede lugar a umaretrica oportunista. No Estadobrasileiro os postulados demo-crticos se afirmam no plano dodiscurso e da teoria, principal-mente: a prtica poltica pareceestar mais prxima do modelorepublicano clssico-romano,voltada para os interesses priva-dos de uma elite econmica eburocrtica, que ignoram a gran-de massa de excludos, aviltadosnos seus direitos de participao

    poltica efetiva e de igualdade deoportunidades. Esse panoramase expressa no arcasmo dos nos-sos quadros institucionais, tradi-cionalmente marcados pelo fisi-ologismo, pelo nepotismo e ou-tras posturas discutveis, numcontexto dramtico de crise so-cial e econmica agudas. Trata-se tambm de uma crise ticaque exige uma redefinio dosvalores e das regras para umaao poltica eficiente, conscien-te e conhecedora das demandaspblicas mais urgentes. Uma ta-refa que ainda se encontra na suafase embrionria de implemen-tao e que envolve a sociedadebrasileira no seu conjunto, ouseja, a sociedade poltica e a so-ciedade civil.

    O redimensionamento da Re-pblica brasileira requer, na di-reo indicada por HannahArendt, um aprofundamento ra-dical do conceito Repblica e deseu fundamento tico, do senti-do coletivo nele implcito, ou se-ja, a realizao da justia social edo interesse comum dos cidados.Quem sabe, num futuro prxi-mo, possamos fazer da nossa Respublica uma democracia de fato,a servio das necessidades damaioria de uma populao, demodo a integr-la no exercciopleno da cidadania.

    O tema extenso, complexoe no se esgota nas considera-es levantadas. Todavia, quere-mos crer, valendo-nos das pala-vras de Ciro Flamarion Cardo-so, que

    Os exemplos apresentados devemter sido suficientes para mostrar quea temtica da cidade-Estado e sua ra-cionalidade intrnseca constitui oponto focal do conjunto de estudos epesquisas que se voltam para a elu-cidao da histria da AntigidadeClssica.

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    De Res Publica e de Repblica: o significado histrico de um conceito

    Entre ns, no Brasil, a atual conjun-tura poltica tem provocado um novointeresse por tal histria, por ter sidoa civilizao da cidade-Estado a pri-meira a se colocar as questes relati-vas legitimidade do poder, parti-cipao e democracia. As respostasque lhes deu diferem das que hoje sopropostas, mas o fato de t-las for-mulado pela primeira vez, garantem-lhe uma atualidade reconhecida desculo em sculo. (Cardoso, 1985,p. 80).

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    Liana Maria Reis

    VIVENDO A LIBERDADE: FUGAS EESTRATGIAS NO COTIDIANO

    ESCRAVISTA MINEIRO

    Liana Maria ReisDepartamento de Histria da PUCMG

    Os anos de 1980 e 1990 marcam umimportante momento da produohistoriogrfica brasileira acerca daescravido. Essa produo vem tomando no-vas direes, buscando resgatar as vrias ativi-dades econmicas informais dos escravos e sua

    RESUMO

    O objetivo do artigo resga-tar as estratgias cotidianas for-jadas pelos escravos na provnciamineira entre os anos 1850 a1888, atravs da anlise dosanncios de fuga registrados novrios peridicos da poca.

    insero no sistema econmico em geral; vem tambm discutindo aflexibilidade do escravismo (no meio rural e urbano) no que se referes novas formas em que se estabeleceram as relaes senhor/escravo:negociaes ou acordos sistmicos. Esses estudos acabam suscitando erevendo questes tais como a violncia, o paternalismo e o processo dereificao do escravo, rompendo com determinados esteretipos cria-dos, segundo os quais ora o escravo era visto como ser totalmente pas-sivo, submisso e incapaz de reagir dominao e explorao s quaisestava submetido, ora percebido como ser totalmente inconformado erebelde. Muitos estudiosos buscam resgatar o cotidiano das relaessociais escravistas atravs da anlise de novas fontes, reconstituindo

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    Vivendo a liberdade: fugas e estratgias no cotidiano escravista mineiro

    as aes, percepes prprias, es-tratgias e mecanismos de lutaconstrudos, no dia-a-dia, pelosescravos e alforriados no contex-to escravista brasileiro(1). Segun-do Maria Helena Machado

    a historiografia da escravido esfor-a-se hoje para superar as vises pes-simistas a respeito do escravo e doliberto, mergulhando nas fontes do-cumentais que permitem reconstruira realidade da escravido no neces-sariamente sob um ponto de vista he-rico, mas realista. (Machado,1988, p.160)

    Neste artigo pretendemoscontribuir para o resgate das es-tratgias cotidianas forjadas pe-los escravos no contexto provin-cial mineiro, particularmente noperodo compreendido entre osanos de 1850 a 1888. Partiremosda anlise dos anncios de fugade escravos publicados nos jor-nais da provncia de Minas Ge-rais(2), os quais possibilitam iden-tificar as formas de luta e meca-nismos de defesa e sobrevivnciaconstrudos pelos cativos na bus-ca de sua liberdade.

    Impulso paraa fuga

    A especificidade do desenvol-vimento da economia mineirano sculo XIX, caracterizada poruma base produtiva agrria di-

    versificada e a predominncia dapequena e mdia posse de escra-vos o que ampliava a base so-cial de sustentao do prpriosistema escravista demandavaa concentrao de cativos nomeio rural.(3) Novas fontes cons-tituem apenas amostragens, po-rm so significativas. Dos 620anncios de fugas individuaispublicados em 70 ttulos de peri-dicos(4),189 (30,48 %) ocorreramno meio urbano e 431 (69,52 %)no meio rural, sugerindo a mai-or utilizao da fora de traba-lho escrava nos setores agrriose atividades afins.

    sabido que a fuga represen-tava uma ameaa radical ao sis-tema na medida em que impe-dia a extrao do trabalho exce-dente, objetivo bsico do escra-vismo, desestruturando o pro-cesso de produo e negando odireito de propriedade(5). Entre-tanto, para o entendimento dosignificado histrico da fuga esuas mltiplas implicaes nadinmica social, faz-se necess-rio considerar que os diversosatos de rebeldia escrava tiverampesos polticos distintos nos di-ferentes momentos do desenvol-vimento do sistema escravista.No perodo aqui tratado, concor-damos com a afirmao de Ade-mir Gebara para quem, dentreoutros protestos

    as fugas foram um fator de impor-tncia fundamental para forar a

    precipitao final do processo detransio para o trabalho livre. Istose daria porque, no podendo ser afuga considerada uma atividade cri-minosa stricto sensu, ela acabariapor impor o envolvimento, de formacrescente, de setores livres da popu-lao e, com isso, sua represso pas-saria a depender tanto do apoio dacomunidade, quanto da extenso darepresso a outros setores da popu-lao que no o escravo. (Gebara,1988, p.123).

    Os anncios de fuga demons-tram claramente esta participa-o da comunidade na localiza-o do fugitivo, ao mesmo tem-po em que informam a existn-cia de laos de solidariedade oude interesses econmicos estabe-lecidos entre escravos e demaisindivduos daquela sociedade. o que fica evidenciado atravs dapalavra consta, indicando in-formaes dadas ao senhor so-bre o paradeiro do cativo.

    sabido que a fuga, sendouma contradio do escravismo,pois sua ocorrncia originava-seda prpria existncia do escravo,poderia ser motivada por razesdiversas. A separao dos fami-liares pode ter sido o motivo dafuga do escravo Francisco, criou-lo de 35 anos, que andava sem-pre de alpercatas por soffer cravosnos ps. Gostava de andar comtropa, mas tinha desembaraopara qualquer servio, e provavel-mente era escravo de aluguel prtica muito usual na provn-

    (1) Destacamos, entre outros, os trabalhos de LARA (1988), ALGRANTI (1988), SILVA e REIS (1989) e CHALHOUB (1990).(2) Os jornais consultados pertencem ao acervo do Arquivo Pblico Mineiro.(3) No decorrer do sculo a populao provincial cresceu consideravelmente. Em 1831/40 a populao livre somava 75.477, enquanto a

    escrava era de 34.384, nmeros que sobem, em 1872, para 1.669.276 e 370.459, respectivamente. (LIBBY, 1988, p. 367).(4) So jornais de diversas regies da Provincia e de vrias tendncias polticas que compem a Seo de Jornais Avulsos do Arquivo Pblico

    Mineiro.(5) Segundo SILVA (1989, p. 62) a unidade bsica da resistncia no sistema escravista, seu aspecto tpico foram as fugas, o abandono do trabalho um

    desafio radical, um ataque frontal e deliberado ao direito de propriedade.

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    Liana Maria Reis

    cia mineira(6) pois dizia o ann-cio que Francisco esteve empre-gado oito annos na companhia domorro de SantAnna.Ele era bas-tante prosa e presumia-se forro,indicativo de um costume doescravo de passar-se por alforria-do quando fugia, o que poderiaexplicar o fato de o proprietrioquerer livrar-se do fugitivo aoinformar que logo que o referidoescravo fosse preso e aparecen-do comprador, ele seria vendidopor preo razovel. Segundo ain-da o anncio, supunha-se queFrancisco tomasse a direco doCarangolla pelo facto de l ter ir-mos(7). O ncleo familiar oumesmo a comunidade na qualfora criado, constitua uma pro-teo ao cativo fora da lei, umasegurana da permanncia dacondio de fugitivo.

    A venda do escravo para re-gies longnquas de sua terra na-tal poderia tambm ser uma for-te razo para a fuga. Adelino, decr retinta fugiu em finais doano de 1881 da fazenda Arapoca,freguesia de So Jos dAlm Pa-raba, municpio de Mar de Es-panha, e dizia o anncio que era

    a quarta vez que foge e em todasellas tem procurado o centro da pro-vncia de Minas, para chegar a Bahiae dalli ao Cear, donde filho.(8)

    Em outros casos, a mudanade proprietrio motivava a rea-o escrava. Assim, Claudiano

    desapareceu ao Dr. Joo das Cha-gas Andrade no dia 25 de maiode 1856. Ele havia sido compra-do ao Sr. Joo Inocncio de Fariae fugio por no querer hir com onovo senhor, que o comprou.(9) Bas-tante curioso foi o fato ocorridoem 26 de junho de 1867 na fa-zenda de Joaquim Antnio deAlmeida Gama, localizada naFloresta da freguesia da cidadede Leopoldina. Naquela dataapareceu ali Joo, crioulo de 25anos, boa pronncia, dizendoque era escravo da Sr D. JoanaSoares Policena, moradora do lu-gar denominado Vacalo, adian-te da cidade de Conceio do Ser-ro. No anncio colocado por Ga-ma no Noticiador de Minas, deOuro Preto, datado de 22 de ou-tubro de 1868, o escravo Joocontava sua estria. Dizia ele

    que veio em companhia de RobertoAlvarez Ferreira, morador no arrai-al da Abobreira, e que no municpiode Cantagallo, fugia delle supondoque o queria vender, e que havia devoltar para a caza de sua Sr, e quepromettia no fugir, at que ella omandasse buscar.(10)

    Diante disto, Joaquim Gamapediu providncias ao delegadode seu municpio, o qual deixouo escravo nesta fazenda para evitardespezas a Sr. E embora o dele-gado tivesse por trs vezes ofici-alizado o fato ao delegado da ci-dade do Serro para comunicar

    com a proprietria do escravo,at aquele momento nada haviasido resolvido, levando Gama apublicar o anncio, esperandoque a dita Sr, ou quem direito tiverao mencionado escravo o mandas-se buscar.

    No sabemos o motivo peloqual Joo acompanhava Ferreira talvez tivesse sido alugado pa-ra exercer alguma tarefa ou aju-dar na viagem. possvel queRoberto Alvarez tivesse real-mente ordem da proprietria pa-ra vend-lo ou desejava aprovei-tar-se da ocasio para vend-lopor conta prpria. Suposio fal-sa ou verdadeira do escravo que,estrategicamente, evadiu-se,procurando auxlio de um fazen-deiro, possivelmente tambmproprietrio de escravos e defen-sor do direito de propriedade,como forma de impedir sua pro-vvel venda.

    Entretanto, o anncio termi-nava com um recado para a SrD. Joana: se ela quisesse vendero cativo, mandasse pessa autho-rizada, porque naquela fregueziahavia quem quisesse compr-lo,(11)

    o que poderia gerar nova fugade Joo, diante de sua recusa deter novo senhor.

    Seja por qual motivo fosse, afuga sinalizava para o cativo apossibilidade de construo deuma nova vida e mesmo a cons-tituio de um ncleo familiar,ainda que juridicamente o fugi-

    (6) Em Minas Gerais alugar escravos era uma prtica usada desde o sculo XVIII, tendo se expandido ao longo do sculo XIX, principalmenteaps o trmino do trfico negreiro, devido alta dos preos de cativos. O setor agrcola parece ter sido aquele que mais se beneficiou como sistema de aluguel de escravos, e a Zona da Mata (produtora de caf) a regio da provincia que concentrava maior nmero de escravosjornaleiros no ltimo quartel do sculo passado (LIBBY, 1988, p.95).

    (7) Dirio de Minas, Ouro Preto, 5/9/1877, p. 4.(8) Liberal Mineiro, Ouro Preto, 5/1/1882, p. 4.(9) O Bom Senso, Ouro Preto, 2/06/1856, p. 4. LARA (1988) chama a ateno para casos ocorridos no Rio de Janeiro, onde escravos interferiam

    em sua prpria venda.(10) Noticiador de Minas, Ouro Preto, 22/10/1868, p. 3.(11) ibidem, p. 3.

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    Vivendo a liberdade: fugas e estratgias no cotidiano escravista mineiro

    tivo permanecesse escravo, cor-rendo o risco de ser reconheci-do e preso a qualquer momen-to. Muitas vezes o sucesso da fu-ga, expresso na sua durao, eragarantido pela mobilidade docativo, que poderia circular maislivremente pelas regies, execu-tando variadas atividades.

    Estratgiascotidianas

    No transcorrer do tempo, oescravismo sofreu transforma-es e adaptaes no que se re-fere s formas de explorao eocupao da fora de trabalhoescrava, como o sistema de alu-guel. Esse sistema, amplamenteutilizado no Brasil e EstadosUnidos, era uma forma de tra-balho praticada tanto no campocomo na cidade e facultava aosescravos alugarem seu prpriotempo e fora de trabalho semintermedirios, vivendo em liber-dade (Algranti, 1988, p.49/50).Isto acarretava problemas gravespara a administrao provincial(particularmente no meio urba-no), cuja funo era zelar pelamanuteno da ordem social.Tarefa difcil para os administra-dores pblicos, incluindo osagentes da represso, pois torna-va-se complicado identificar areal condio social do indivduonos ncleos urbanos provinciaismineiros, como veremos adian-te. ilustrativo o caso de JooAfricano, que fugiu da fazenda

    em Ponte Alta nos ltimos diasdo ano de 1874, onde se achavatrabalhando por offcio de pedreiro.Acreditamos que esse escravofosse alugado, pois constava, noanncio de sua fuga, que Joolevou a quantia de 80.$000 emdinheiro possivelmente o pre-o da execuo da tarefa exercida e sahio dizendo que ia procurarservio; entretanto, no appare-ceo mais. O proprietrio descon-fiava que o fugitivo se dirigio cidade de Barbacena onde tem conhe-cimento.(12)

    Esse exemplo mostra a mobi-lidade do escravo ao sair porconta prpria e procurar servi-o, provavelmente em lugaresonde ele era conhecido, ou tinhaamigos e parentes, ou mesmoonde havia trabalhado. Isto de-monstra a flexibilidade do siste-ma escravista no que tange abertura de campos de possibi-lidades para o escravo, permitin-do-lhe escolher como ocupar seutempo, garantindo sua sobrevi-vncia e, em momentos propci-os, sua liberdade, ainda que tem-porria.

    Seria de se presumir que, porsua condio de escravos, os fu-gitivos fossem indivduos tristo-nhos, mal-humorados, acabru-nhados. Nossos dados, porm,falam de fujes alegres, falantes,prosas, polticos, mesmo tendosinais de castigo pelo corpo,muitas vezes em funo de ou-tras fugidas. Essas caractersticascomportamentais poderiam aju-dar o escravo em seus contatospessoais, especialmente quando

    associadas a algum tipo de saberou especializao, o que possibi-litava a sobrevivncia e o suces-so da fuga. Vicente, mulato corde rapadura, escravo do padreAmador de Barros Mello, mora-dor na freguesia de Ouro Fino,mesmo tendo signais de castigonas ndegas, era tocador de vio-la, alegre e risonho. Constavaque ele havia fugido novamen-te no dia 10 de abril de 1856 eque, quando isto ocorria, Vicen-te andava de carapua ou lenona cabea, alm de mudar onome, sendo conhecido em algunslugares da provncia, e da de SoPaulo por Juca, e Zeca pio, em ou-tros por Jos Amaro, e Jos Baptista,etc., tendo-se casado na penltimafugida, em que andou nove annos emvrios pontos da provincia minei-ra. O escravo entendia de arre-ar, ferrar, de adornar, e de fazerlombilhos, e tranar de laos, etc., decarpinteiro, alfaiate, e alguma cousade ler e escrever, e de ajudar a missa,etc(13). Esse conhecimento vastopara trabalhar em vrios ofciospossibilitava ao fugitivo manter-se durante anos, por conta pr-pria, inserido no mercado de tra-balho, provavelmente estabele-cendo contratos sob bases noescravistas(14). Por outro lado, aestratgia de mudana de nomescontribua para dificultar suaidentificao e manter o sucessodas fugas, levando Vicente, in-clusive, a contrair matrimnioem uma dessas ocasies, em queficou nove anos foragido. Quan-to ao uso da carapua ou lenona cabea, vale lembrar a possi-

    (12) Dirio de Minas, Ouro Preto, 21/1/1875, p. 4.(13) O Bom Senso, Ouro Preto, 5/6/1856, p. 6.(14) Sobre o impacto social das fugas na constituio do mercado de trabalho livre na provncia mineira ver REIS (1991).

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    Liana Maria Reis

    bilidade de se tratar de um me-canismo de identidade culturalafricana. As variedades de arran-jos utilizados pelos africanos eseus descendentes no Brasilcorrespondiam variedade deprocedncias regionais africanase poderiam significar simbolica-mente proteo. (Freyre, 1979,p. 113).

    No seria toa, portanto, ouso que Vicente fazia do adere-o cabea: servia para atrair aproteo de divindades (resis-tncia cultural religiosa), garan-tindo a vitria de suas fugidasto prolongadas, a despeito dastentativas de captur-lo. No dia15 de maio do mesmo ano de1856, Vicente fora atacado poruma escolta na freguesia de SoJos de Jaguari,

    a que resistio com uma faca, e umagarruxa dando fogo na escolta, e comquanto fosse ferido na cabea e bra-o, todavia escapou-se deixando napeleja at o chapo, e na caza em quese curou, gabou-se que tinha desabu-ssado a dita escolta, e o mesmo hiriafazendo para as partes de Prasunun-ga, para onde consta ter-se dirigi-do(15).

    Alm de enfrentar a escoltacom as armas de que dispunha,a atitude de Vicente em gabar-se do feito escapulindo mesmoferido expressava a sua valen-tia e tenacidade, bem como a fra-gilidade e incompetncia do cor-po de policiais no cumprimentodo dever. Na realidade, tratava-se de um desafio aos indivduos

    que representavam o poder ins-titucional, cuja funo era man-ter a ordem social e reprimir osinfratores das leis, criminosos eescravos fugidos.

    O policiamento da provinciamineira constituiu um graveproblema para as autoridades,ao longo do sculo, e as tentati-vas encontradas para sua reso-luo, como a criao das Guar-das Municipais (1873), no sur-tiam os resultados esperados. Noano de 1875, o delegado de Pol-cia, Antnio Soares de Alberga-ria, chamava a ateno do Presi-dente da Provncia para a crisedas Guardas Municipais. Almda falta de armamento e di-ficuldades de transporte paraagilizar a sua ao, a experinciahavia demonstrado ser imposs-vel a organizao completa dasesquadras municipais. Isso por-que, segundo o delegado, s seofferecem, em regra, para esse servi-o indivduos que, mais que todos,preciso ser policiados.(16)

    E conclua Albergaria: duran-te o ano de 1874 a fora policialda provncia foi composta de pe-sima gente, desarmada e sem a m-nima disciplina.(17)

    Essa situao, entretanto, pa-rece no ter se modificado aolongo dos anos de 1870 e 1880 enossos dados revelam o possvelestabelecimento de relaes deamizade e solidariedade entreescravos fugidos e ex-policiais,bem como a tentativa, em algunscasos bem-sucedida, de entrada

    daqueles nas Guardas Munici-pais. Em 1884, um escravo fugiuda cidade de Santa Luzia do Sa-bar em companhia de um ex-sol-dado, de nome Manoel Alves (vulgoPassarinho), em demanda do Cur-velo(18). Um ano antes, o escravoJos, de 24 anos, fugiu da cidadede Formiga, tendo sido visto emSo Joo Del Rei, constando oupresumindo-se que ele preten-dia assentar praa no corpo de po-lcia ou exrcito(19). J Cipriano,cativo do cnego Antnio Cha-ves, que fugiu da cidade de Mon-tes Claros, em 1866, conseguiuintegrar o corpo policial da capi-tal da provncia. Dizia o ann-cio de sua fuga:

    Consta que vai com o nome de Ma-noel Francisco, com o qual fugio deS. Paulo em 1862, e assentou praana tropa de linha de Ouro Preto, co-mo recruta, sendo em 1863 reivindi-cado por seo senhor. Consta que dese-ja assentar praa; e natural que sejarecrutado. Leva caminho dOuroPreto, e ate a Conceio teve-se dellenotcias.(20)

    Novamente percebe-se que amudana de nome era a estrat-gia de defesa usual dos escravos,e que naquele momento a pos-sibilidade de confirmar a veraci-dade da identificao do indiv-duo era extremamente limitada,mesmo se tratando da incorpo-rao num corpo policial. Estecaso vem reafirmar as palavrasdo delegado Albergaria, no quetange aos integrantes da polciamineira.

    (15) O Bom Senso, Ouro Preto, 5/6/1856, p. 6.(16) Apud Relatrio do Presidente da Provncia Pedro Vicente de Azevedo, Secretaria de Polcia de Minas, 20/17/1875, Apenso 1, p.5.(17) Idem, ibidem, p. 5.(18) Liberal Mineiro, Ouro Preto, 6/6/1884, p. 3.(19) Colombo, Campanha, 31/8/1883, p. 4.(20) Dirio de Minas, Ouro Preto, 3/2/1867, p. 3.

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    Vivendo a liberdade: fugas e estratgias no cotidiano escravista mineiro

    Porm, outras estratgias desobrevivncia foram amplamen-te utilizadas pelos fugitivos, al-gumas com requintes de criati-vidade e sagacidade.

    A escrava Joaquina da NaoMonjolo fugiu de Ouro Preto em1867, juntamente com o escravoCamilo e foram

    encontrados pedindo esmollas emCatas Altas de Matto Dentro e Pon-te Nova, a negra fingindo-se cega eo negro guiando-a, e dizio a todosque lhes perguntavo de onde vi-nham, que desta cidade, e que seosenhor os tinha forrado(21).

    Outros cativos utilizavam re-cursos curiosos de sobrevivn-cia, como o africano Manoel (Na-o Congo) que se fingia muitohumilde, mas era bastante sagazpara illudir.(22) Ou como o escra-vo Cludio, que fugiu da cidadede Queluz, em 1874, sendo bemcivilisado, tendo boa figura epodendo com facilidade (...) pas-sar por forro.(23) interessanteobservar a distino socialmen-te feita da figura do escravo e doliberto. O alforriado era percebi-do como indivduo mais ci-vilisado, ocupando, de fato, umlugar diferenciado e superior aocativo na estrutura social, embo-ra na prtica fosse tambm vistopela administrao e pela socie-dade (principalmente se negro)como elemento cujos passos de-veriam ser controlados e vigia-dos, particularmente se estabe-lecesse relaes perigosas (dequalquer ordem) com escravos.

    No raro, os cativos, para fu-gir da perseguio policial e con-tinuar na clandestinidade, opta-vam por um outro recurso: a fal-sificao de documentos. Zaca-rias, crioulo fula, que fugiu deItabira do Mato Dentro no anode 1878, costumava mudar o no-me quando se evadia e sempreobtinha passaporte falso.(24) Damesma forma, o escravo Cndi-do, h oito anos fugido da fazen-da do termo da cidade de Piran-ga, possua carta ou documentosfalsos,(25) o que lhe garantia en-ganar as batidas policiais e o su-cesso da fuga. Esses falsos docu-mentos poderiam ser desde car-tas de alforria at autorizaodos senhores para a viagem oua execuo de determinadas ta-refas em outras regies.

    A existncia no plantel escra-vo de indivduos alfabetizadospoderia facilitar a aquisio des-ses tipos de documentos, umavez que a prpria condio decativo e fugitivo criava redes desociabilidade e solidariedade en-tre eles, constituindo, por suavez, estratgias de resistncia,ainda que provisrias. Tendo fu-gido da fazenda Barra do Turvo,municpio da cidade do Piranga,em 1886, o escravo Antnio

    esteve na cidade da Itabira onde tra-balhou em servio de pedras para oSr. Jos Maria Pimenta, com o nomede Jos Antnio em companhia deum outro escravo que foi preso na-quella cidade; consta ter seguido pa-ra a Lagoa Dourada com destino acidade do Serro.(26)

    Uma vez preso o colega, An-tnio retirou-se para outras re-gies, prevenindo-se contra asua identificao e conseqenteaprisionamento. Alguns escra-vos, mesmo quando presos, nodesistiam de tentar novas fugi-das, como o africano ManoelMendanha que se evadiu deuma fazenda em Porto Novo daCunha em fins de novembro de1876. Como falasse bem, pare-cia crioulo e tinha sinais deaoites e pega espalhados pelocorpo: elle a primeira vez que fu-giu foi preso em S. Joo Baptista deMinas Novas, e tornou a fugir 2vez e foi preso em Catas Altas na fa-zenda de um dos Srs. Drumonds.Seu Senhor mandou busc-lo eelle evadio-se nas immediaes doPorto Novo e tinha costume dedizer que forro.(27)

    Na luta pela liberdade, os fu-gitivos esmeravam-se na cons-truo cotidiana de mecanismosde resistncia, num jogo de so-brevivncia no qual tudo valia:mudar de nome, fingir-se humil-de e deficiente, ser civilizado, va-lente, usar a fora das armas, ar-riscar novas fugidas, falsificardocumentos e, sobretudo, pas-sar-se por alforriado. Tudo eravlido para garantir a sonhadaliberdade. Liberdade arriscada edifcil de ser mantida numa so-ciedade na qual eram persegui-dos, vigiados e marginalizados,mas que, contraditoriamente,tambm os incorporava vidaeconmica e social.

    (21) Dirio de Minas, Ouro Preto, 19/7/1867, p. 3.(22) O Bem Pblico, Ouro Preto, 6/12/1860, p. 4.(23) Dirio de Minas, Ouro Preto, 22/3/1875, p. 4.(24) A Provncia de Minas, Ouro Preto, 26/4/1883, p. 4.(25) ibidem, 19/4/1883, p. 4.(26) ibidem, 30/5/1886, p. 4.(27) A Actualidade, Ouro Preto, 18/6/1878, p. 3.

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    Liana Maria Reis

    Se a anlise da estrutura efuncionamento do escravismopermite verificar a existncia deum processo de reificao do es-cravo, o resgate do cotidiano es-cravista possibilita perceber co-mo homens e mulheres, subme-tidos escravido, gerenciavamsuas vivncias, ainda que limita-das estruturalmente.

    As reflexes sobre as experi-ncias dirias dos escravos, ori-ginadas da leitura das fontesdocumentais, evidenciam agen-tes histricos nada passivos, aocontrrio, espertos, inteligentes,determinados. Sujeitos com per-cepes prprias, forjadores devrias estratgias, fazendo esco-lhas que atendiam a seus inte-resses pessoais. No heris ou v-timas, mas indivduos que sou-beram, diante das oportunida-des surgidas, optar por cami-nhos que eles imaginavam queos conduziriam a uma vida me-lhor.

    A fuga era um dos mecanis-mos adotados pelos escravos nabusca da sonhada liberdade.No a melhor liberdade, aque-la conseguida juridicamente,

    que lhe garantia um lugar lega-lizado na estrutura social, masa liberdade possvel. Podemosaventar a hiptese de que emcasos de sucesso da fuga, a per-manncia na clandestinidadeseria a melhor soluo para ofugitivo. Isto porque nem sem-pre possuir peclio suficientepara comprar a carta de alforriaera sinnimo de liberdade, con-siderando uma sociedade carac-terizada pela pequena e mdiaposse de escravos, com a minei-ra. Nesta realidade, possuir cati-vos, ainda que em nmero redu-zido, era condio bsica de so-brevivncia para os senhores egarantia de status social. Nestecaso, no deveria ser raro pro-prietrios se negarem a concedera carta de alforria, mesmo medi-ante pagamento. Soma-se a istoo aumento do preo do escravono ps-1850, fortalecendo a ne-cessidade de manuteno doplantel escravista existente. Poroutro lado, o fugitivo, ainda quevivendo uma situao de in-segurana, conseguia trabalhar,conhecer pessoas e lugares,constituir ncleo familiar pr-

    prio e, acima de tudo, passar-sepor forro.

    O sistema de aluguel, propi-ciando lucros para o senhor,abria caminhos para maior auto-nomia escrava no que se refere mobilidade e liberdade de cir-culao, permitindo ao cativoestabelecer contatos com indiv-duos das diversas condies so-ciais, base de muitas estratgiasde luta e projetos de liberdade.

    As autoridades administrati-vas, embora atentas aos proble-mas originados dessas relaesperigosas estabelecidas entreescravos e demais agentes hist-ricos, no conseguiram impedira construo de redes de socia-bilidade e solidariedade entre osindivduos, mesmo os fora dalei.

    As iniciativas particulares eoriginais prprias dos escravoseram criadas em suas experin-cias dirias, na tentativa de alar-gar o campo de possibilidadespara a melhoria de suas condi-es de existncia concreta e pa-ra a conquista de uma liberdadevivenciada: uma liberdade his-toricamente possvel.

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    Vivendo a liberdade: fugas e estratgias no cotidiano escravista mineiro

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    Mnica Eustquio Fonseca

    APARNCIAS E APARIES ESTTICABARROCA A IMAGEM OCULTA

    Mnica Eustquio FonsecaDepartamento de Histria da PUCMG

    Apesar de o Barroco ser exaustivamen-te tratado, sob os mais diferentes n-gulos de viso, ainda restam ins-tigantes campos nos quais podemos trabalhar.Um deles o tratamento que o Barroco d ima-gem.

    Quando se diz imagem, indiretamente es-t-se falando tambm do olhar, porque a ima-gem subentende o olhar. Para os olhos que novem no h imagem, pelo menos no a ima-gem real, fsica, concreta que nos dada peloolhar.

    Aqui, tomamos emprestado a FerreiraGullar uma tentativa de compreenso, uma ver-

    RESUMO

    Cinco artistas, quatro europeuse um brasileiro, servem como fon-tes de referncia para a elabora-o de um tipo de leitura sobre aesttica barroca. Esta implica aconfigurao de dimenses que li-dam com o objeto oculto. A tra-jetria assim construda instituium espao ilusionista que tendea nos induzir a dimenses nocapturveis na imediaticidade doolhar. Sendo assim, a imagem pro-posta pelo barroco estabelece umaacessibilidade hierarquizada, quetem seu ponto de consecuo noacionamento da racionalidade, aqual se ope a uma percepo pu-ramente sensorial e a radicaliza.

    O objetivo desse trabalho es-tabelecer a aproximao dos pro-psitos expressivos adotados poresses artistas e encontrar os re-cursos formais de que se servempara chegar a seus fins.

    tente interpretativa atravs da qual podemos encontrar dois tipos deolhares no Barroco: um olhar que chamaremos de fsico, este que aca-bamos de citar, que nos oferece a possibilidade de apreender o mundo

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    Aparncias e aparies Esttica barroca A imagem oculta

    e a sua realidade visual; e umolhar metafrico, aquele que vaialm da realidade aparente, quepenetra num universo oculto ereconstri o mundo e a realida-de mesma a partir dessa desco-berta.

    A viso o olhar um ele-mento essencial quando se tratade apreender o fenmeno dasartes plsticas, e no caso do Bar-roco, ele fundamental, j que sobre ele e atravs dele que seconstitui a esttica do Barroco.

    A importncia da viso naapreenso da realidade e a suautilizao como fundamentopara a construo de um deter-minado tipo de olhar relacio-nam-se ao fato de que a percep-o do homem histrica.

    O Barroco um modo de ver a reali-dade, que surge num determinadomomento da histria da visualidade.Atravs da histria, o homem apren-de a ver, criou modos de ver que desa-pareceram e inventou outros modos(Gullar, 1988, p. 218).

    Assim vemos o mundo comnossa noo da histria, enquan-to indivduos e enquanto huma-nidade. E no preciso que co-mecemos tudo outra vez, j queo fundo da histria sobre o qualexistimos e nos construmos nospermite avanar sobre a experi-ncia pregressa.

    Utilizando-nos dos funda-mentos conceituais de Wllflin,apelamos ao olhar renascentistapara podermos entender commais propriedade o olhar barro-co e da atingir o seu jogo deimagem, aquela imagem que nossensibiliza fisicamente o olhar eaquela que o nosso olhar meta-frico constri, a imagem poten-cial que permanece oculta.

    A Renascena introduz umolhar decisivo na Histria da Ar-te, na histria da experincia es-ttica do homem. Naquele mo-mento o homem, por uma sriede razes, constri um espaoharmnico, objetivo, racional. ORenascimento introduz umamudana substantiva; ele intro-duz o mundo moderno, carre-gado de novos valores da racio-nalidade, uma certa libertaodo homem em relao supers-tio e ao domnio religioso. Ohomem constri por si mesmosua experincia do mundo e pa-ra isso se serve da racionalidadede que depositrio. Cria um es-pao de razo. Na esttica doRenascimento, a perspectiva oinstrumento bsico dessa novaviso. No perodo medieval, adimenso perspectiva era de ou-tra natureza: o espao quase semprofundidade apresentava-aeventualmente ambgua, ela notinha a clareza nem a racionali-dade que passa a ter com o Re-nascimento.

    O Barroco surge no sculoXVII, inconsciente de si mesmomas resultado de uma tentativaderradeira de expressar a gran-deza do homem. Para alguns cr-ticos e historiadores de arte dosculo XVIII, era absurdo e demau gosto. Era visto como umacoisa desorganizada, irregular,exibicionista, sinnimo de tudoque se considerava como antiar-tstico, no esttico. Somente osculo XIX resgata o Barrococomo expresso esttica vlida ecomo fenmeno esttico de altaqualificao.

    Assim, enquanto a Renascen-a se caracteriza pelo equilbrio,pela harmonia, pela racionalida-de das construes espaciais, si-

    metria e clareza, o Barroco exa-tamente o contrrio: a irregu-laridade, a assimetria, a paixo, odelrio, o inesperado e o oculto.

    A validao do Barroco comofenmeno esttico se deu ape-nas quando o tipo de olhar queele construiu sobre as coisas domundo tornou-se compreens-vel. Isso s aconteceu na pocamoderna no final do sculo XIX,depois do Impressionismo. S aModernidade foi capaz de acei-t-lo e compreend-lo como fe-nmeno decorrente das mlti-plas variveis que dominaram acivilizao ocidental, resultadodo intenso trnsito e intercm-bio de formas entre as naes. Aconfigurao espacial que o Bar-roco prope quebra toda a pers-pectiva central que havia sidoimplantada com a Renascena.A Renascena coloca a obra di-ante da visibilidade de um es-pectador imvel, num ponto devista determinado. O Barroconos faz olhar suas figuras de v-rios ngulos, elas se mexem, vo-am sobre ns e se entortam, sedeslocam em amplas diagonaispara o espao interior ou saltamsobre ns. Na perspectiva renas-centista, o mundo est enqua-drado dentro da cena, dentro datela. No Barroco estabelece-seuma conexo, uma continuida-de entre o espao da obra e o es-pao real. O olhar em si umelemento importante dessa co-nexo. Em Velzquez especial-mente, os olhos brincam conos-co, nos buscam, convidam, se-duzem e atravs deles aden-tramos aquele universo virtual.H, assim, um comprometimen-to maior com a realidade impor-tante para a compreenso da vi-so barroca.

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    Mnica Eustquio Fonseca

    O sentido do real dependebasicamente do olhar, mas tan-to a realidade como a irrealidadenos so dadas pelo olhar, muitomais que qualquer outro senti-do. O Barroco trabalha com a ilu-so, uma esttica que caminhaao encontro de um espao ilu-sionista atravs da iluso do olhar,o trompe-loeil. Assim, se

    precisamente porque pela viso, pelo olhar que eu apreendo e assen-to os termos da realidade (que) a arteque trabalha com a iluso desse sen-tido chega a violentar a noo de rea-lidade com eficcia. (Gullar: 1988,p. 221)

    Atravs de um recurso ilusio-nista, o Barroco cria a dupla di-menso do olhar e, recorrendoa um jogo de imagens, monta oduplo espao do que visvel,apreensvel pelo olhar fsico, e oque oculto mas induzido a servisto pelo olhar metafrico. Naverdade, o espectador constria imagem que no est dada,percorre um espao que oscilaentre o real e o imaginrio e queatua sobre ns com a realidadedas coisas verdadeiras.

    Vrios instrumentos formaisforam utilizados pelos diferen-tes artistas que comungaramesse olhar vertiginoso-ilusionis-ta. Apresentaremos alguns des-ses artistas, tentando destacar,na medida do possvel, as carac-tersticas de cada um. Como oque nos interessa perceber osentido do visvel e do oculto naimagem barroca, valer-nos-emosem cada artista daquele elemen-to chave que nos permitir essaabordagem particular de suaobra.

    O uso das relaesespaciaisA construodo jogo

    Trabalharemos com artistaseuropeus mas falaremos umpouco tambm de um artistamoderno brasileiro, criado e for-mado na tradio europia, eque, de regresso ao Brasil e, emespecial, aps sua transfernciapara Minas Gerais, assumiu aidentidade da linguagem visualde Minas, que a linguagem dasmontanhas, da sinuosidade dotraado topogrfico. Esse artis-ta Alberto da Veiga Guignard.A curva o trao das Minas, e tambm o do Barroco. Falaremosento de Guignard, de Caravag-gio, de Vermeer, de Velzquez ede Rembrandt.

    Cada um deles tem a sua ma-neira prpria de exercer a dico-tomia sobre a realidade que con-figura a esttica barroca. Cara-vaggio vai levar at as ltimasconseqncias o efeito de luz esombra, que buscou em Ticiano.Estabelece-se uma nova relaoentre as figuras e o espao. Oefeito de luz realisticamente tra-tado imerge reas imensas daobra em zonas da mais absolutasombra. Resulta da uma ilumi-nao fantstica onde a luz e asombra destacam o que deve sercontado e os volumes saltam aosnossos olhos. Caravaggio, atra-vs do uso de uma luz particu-lar, imprime no espectador todoo impacto visual dos corpos s-lidos, da massa dos objetos, ain-da que estejam ocultos. So acaracterizao corprea e o ca-

    rter esttico que prevalecemcomo elemento visual em Cara-vaggio.

    Em Rembrandt, o centro deinteresse no o contraste masa gradao. Tambm ele vai jo-gar com a luz e criar um espaoem volta da figura, maior do queem Caravaggio. A articulaoentre figura/espao/iluminao dada a partir da figura, ela ocentro irradiador, ao mesmotempo dada a conhecer pela pe-numbra circundante. Os corposde Rembrandt so aparncias reve-ladas por penumbras (Venturi:1968, p. 110). Toda a sua materia-lidade e peso so excludos, soimagens de paixes. Os corposso espirituais e no materiais,luzes que so sombras. Rem-brandt no pinta o que v mas oque imagina ver. Sua pintura uma vibrao csmica, a formado invisvel! Ento pergunto:por ser invisvel, ser um ser me-nos real? A realidade (de Rem-brandt) sentida e se torna for-ma de sentimento, sua visibili-dade s real atravs do olhar -sentimento do artista. Da ser di-luda a forma plstica e nos de-pararmos com uma iluminao.

    Outro aspecto da dimensoilusionista desenvolvida peloBarroco e que se mostra impor-tante para a compreenso dedois dos nossos artistas o sen-so intimista que atravessa gran-de parte dessas obras. Intimistasforam Velzquez e Vermeer, estemais do que nenhum outro.

    Vermeer levou a sua viso darealidade dimenso interior dohomem. No s o homem no in-terior de seu mundo privadomas, sobretudo, no interior desi mesmo. Assim, a casa, a mu-lher, o quarto, a janela vista de

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    Aparncias e aparies Esttica barroca A imagem oculta

    dentro so os temas preferidosdesse artista. Assim, o silnciopairando, imagem retratada,vista pelo artista, que objetode nosso olhar. Quando olha-mos para Vermeer, olhamos parao silncio, ntimo, imensido en-tre quatro paredes, s vezes co-nectado ao mundo atravs deuma fresta de janela, uma corti-na levantada que deixa desenro-lar a cena diante de nosso olhar.

    A viso que Vermeer nostransmite o rigor sbio, arqui-tetural, de uma espiritualidadesecreta.

    No h obra mais apropria-da do que As Meninas para quepossamos falar de Velzquez.No h palavra mais apropria-da que a de Michel Foucaultpara descobrir As Meninas:

    O pintor emerge da tela... Fixa umponto invisvel... Ele reina no mardessas duas visibilidades incompat-veis: a tela reserva e o ponto invis-vel.

    O olhar do pintor, dirigido para forado quadro, ao vazio que lhe faz face,aceita todos os modelos.O olhar soberano do pintor define opercurso at o lugar invisvel do mo-delo e at a figura provavelmenteesboada na tela virada.Olhamo-nos (modelo virtual quesomos) olhados pelo pintor e torna-dos visveis a seus olhos pela mesmaluz que no-lo faz ver. (Foucault:1987, p. 19, 20, 21).

    Em Velzquez a invisibilida-de do objeto chega ao seu re-quinte: ele no mostra aquiloque v (vale lembrar que o pin-tor retratado na obra o prprioVelzquez) e, colocados no lugardaquilo que visto, somos con-fundidos como participantesdaquele espetculo diante doqual jamais construiremos certezas.

    Segundo Frederico de Mo-rais, o Barroco mais que umestilo de arte, um estilo de vi-da, um comportamento. A pr-pria paisagem mineira essen-cialmente barroca:

    No jogo de iluses do Barroco, ascidades nunca se mostram de uma svez, mas se deixam brincar de escon-de-esconde, com fugas e contrafugas,caminhos e descaminhos. Depois devolteios e volutas, ela se mostra ge-nerosa e bela, no efeito tico dos te-lhados e nas torres de igrejas. (Mo-rais: 1974, p.72).

    Guignard abraou essa paisa-gem e inventariou seus bens. As-sumindo o jogo infantil de escon-de-esconde, lanou suas alvasigrejas, seus trens de ferro, napaisagem que confundia terra ecu, ora verde-azulada, ora cin-za-esverdeada e fez do grandesilncio das montanhas seu per-sonagem, ao mesmo tempo pre-sente e ausente, visvel e invis-vel que percorremos movidospela necessidade da descoberta:personagem oculto que jamaisse revela por inteiro. Nossosolhos descansam em Minas.

    Referncias bibliogrficas

    BAZIN, Germain. Barroco e Rococ. So Paulo: Martins Fontes, 1993. (Coleo A).FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. So Paulo: Martins Fontes, 1987.GULLAR, Ferreira. Barroco: olhar e vertigem. In: NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. So Paulo: Cia das Letras, 1988.MORAIS, Frederico. Guignard. Rio de Janeiro: Centro de Artes Novo Mundo, 1974.VENTURI, Lionello. Para compreender a pintura, de Ediotto a Chagall. Lisboa: Editorial Estudio-Cor, 1968.WLLFLIN, Henrich. Conceitos fundamentais da histria da arte: o problema da evoluo dos estilos na arte mais

    recente. So Paulo: Martins Fontes, 1984.

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    Eduardo Frana Paiva

    A MASSA DESVELADA: COMENTRIOSOBRE QUATRO ESTUDOS E

    UMA PERSPECTIVA DEANLISE HISTRICA

    Eduardo Frana PaivaDepartamento de Histria das Faculdades

    Integradas Newton Paiva

    Quatro estudos

    Os textos-base deste comentrio foramproduzidos nos anos 60 e 70, porhistoriadores que gozam de grandeprestgio no cenrio historiogrfico atual. Emordem cronolgica de publicao, so eles: Amultido na histria; estudo dos movimentospopulares na Frana e na Inglaterra 1730-1848,de George Rud;(1) La economia moral de lamultitud en la Inglaterra del siglo XVIII, deE. P. Thompson;(2) Ritos de violncia, de

    RESUMO:

    Este artigo fruto de reflexessobre a participao popular nosprocessos de transformao naHistria. Um dos principais ob-jetivos problematizar a utiliza-o inflexvel de paradigmas deanlise pouco adaptveis inves-tigao de processos ricos, comple-xos e desconhecidos pela historio-grafia. Trata-se de identificar ebuscar compreender as variadasformas de resistncia empregadaspor populares, coletiva e indivi-dualmente. Isso significa, portan-to, reconhec-los como agenteshistricos, impedir sua reduo aopapel de vtimas indefesas e res-gatar a identidade cultural quepermeou sua atuao.

    Natalie Zemon Davis(3) e Histria do medo no Ocidente; 1300-1800,uma cidade sitiada, de Jean Delumeau.(4)

    (1) O texto foi originalmente publicado em ingls: RUD, George. The Crow in History, 1730-1848. New York, 1664.(2) Originalmente publicado em ingls: THOMPSON, E.P. The moral economy of the English crowd in the eighteenth century. Past and

    Present, Oxford, n. 50, p. 76-136, 1971.(3) Originalmente publicado em ingls: DAVIS, Natalie Zemon. The rites of violence: religious riot in sixteenth-century France. Past and

    Present, Oxford, n. 59, p. 51- 91, 1973.(4) Originalmente publicado em francs: DELUMEAU, Jean. Lapeur en Occident (XIV-XVIII sicles): une cit assige. Paris, Fayard, 1978.

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    A massa desvelada: comentrio sobre quatro estudos e uma perspectiva de anlise histrica

    Outros textos desses e de ou-tros autores, como Charles Tilly,Christopher Hill e Eric J. Hobs-bawm, poderiam, dadas as se-melhanas na linha de anlise,integrar essa lista, mas isto sig-nificaria extrapolar os limites ini-cialmente imaginados para estetrabalho.

    Entre os quatro historiadoresescolhidos, dois tm suas ativi-dades mais ligadas ao que seconvencionou chamar de revi-sionismo marxista: George Rude E.P. Thompson. Rud, desde osanos 50, engajara-se entre os quepreconizavam novas interpreta-es marxistas para a HistriaSocial, passando a vislumbrar ahistria vinda de baixo. Thom-pson, ex-membro do Partido Co-munista Ingls, coloca-se seme-lhantemente nos mesmos qua-dros revisionistas, preocupando-se com uma histria trabalhistabaseada nas atividades dos tra-balhadores e no nas institui-es. Em 1963 publica sua obramais importante, The making ofthe English working class(5), on-de j aparecem a redefinio doconceito de classe social e a con-cepo de cultura enquanto for-a de transformao da histria,negando o reducionismo econo-micista comum naqueles tem-pos.

    Natalie Davis e Jean Delu-meau tm ligaes mais estreitascom a linha de pensamento dosAnnales e com a histoire des men-talits, embora Davis tenha ini-ciado suas atividades mais vol-tada ao marxismo, integrando,em seguida, o j referido movi-mento revisionista. Ela, assim co-mo Thompson, parte da cultura

    para compreender o processohistrico e, mais do que ele, re-corre Antropologia na busca deum arcabouo conceitual quepossa auxiliar sua anlise. Delu-meau, por sua vez, percebe omedo como componente (talvezum dos menos estudados) da es-trutura social, determinante dastransformaes histricas.

    Utilizando-se de caminhos svezes semelhantes, esses histo-riadores vo analisar a atuaohistrica da multido, sobretudona Europa, entre os sculos XVIe XIX, buscando demonstrar suadecisiva participao no proces-so de construo daquelas soci-edades. O resgate da participa-o coletiva de populares en-quanto agentes histricos pois,uma das caractersticas que per-mitem a incluso desses autoresnum mesmo grupo.

    A perspectiva deanlise histrica

    No final dos anos 50, umanova viso de Histria procura-va trazer para o primeiro planoda anlise os grupos que, embo-ra tivessem concretamente atua-do, deixaram poucos registros desuas intervenes sociais e per-maneciam annimos. Homens emulheres de diferentes condi-es sociais, idades, crenas reli-giosas e identidades culturais,precisavam ser resgatados comoagentes histricos e, para tanto,era necessrio explicitar as nu-merosas maneiras encontradaspor eles para se fazerem constru-

    tores de seu prprio tempo. Nes-te sentido, os caminhos percor-ridos pelos estudiosos foram di-versos e muitas vezes influenci-ados por concepes tericas an-teriores. Elementos dos para-digmas durkheimiano e marxia-no foram retomados, assim co-mo o pensamento dos Annales,dos antroplogos funcionalistas(Malinowski, Radcliffe-Brown,Evans-Pritchard) e at mesmo asociologia de Gilberto Freyre.Outros caminhos foram abertospelo revisionismo marxista in-gls e pela nouvelle histoire fran-cesa. Em seu conjunto, as altera-es metodolgicas processadasdeterminaram a reviso da bibli-ografia anterior e a formulaode um novo tratamento para aas fontes primrias, ampliandoa variedade dos registros hist-ricos passveis de consulta e pro-movendo o reexame da docu-mentao j conhecida.

    A recuperao dos movimen-tos de massa da Europa pr-in-dustrial, sobretudo na Inglater-ra e na Frana, um reflexo dasnovas preocupaes dos histori-adores e est presente nos qua-tro textos aqui analisados. Deuma forma geral, os motins, re-belies e insurreies estudadosso vistos dentro de um deter-minado padro de acontecimen-tos comum ao perodo anterior efetiva industrializao das so-ciedades e irrevogvel centra-lizao do Estado Moderno. Nemsempre recorrendo violncia ena maior parte das vezes apre-sentando uma certa organizao,mesmo que precria, os movi-mentos populares comeam aser investigados sob novos par-

    (5) A traduo brasileira de 1987.

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    Eduardo Frana Paiva

    metros e passam a ser diferenci-ados da tradicional imagem daturba de assassinos, saqueadorese vagabundos. Contudo, o es-pontaneismo entendido comoa inexistncia de prvia organi-zao e da no conscincia dosalvos a serem atingidos to-mado como caracterstica ima-nente daqueles movimentos. Es-ta frmula, entretanto, torna-seincoerente diante da identifica-o, feita pelos autores, de lide-ranas entre os grupos insatisfei-tos. Delumeau, por exemplo,aponta os artesos, padres e pre-gadores como os chefes da mul-tido e afirma que ela no agesem chefes e s adquire segurana le-vada por eles (Delumeau, 1990,p. 191). Ao mesmo tempo emque o potencial em si da multi-do subestimado, o esponta-nesmo passa a ser um conceitoquestionvel. As influncias re-cebidas pelas massas antes dassublevaes so presumveis,mas superficialmente analisa-das.

    Outro ponto em comum ademonstrao de que as esferaseconmica e poltica so incapa-zes de, sozinhas, explicar os mo-vimentos de massa. As tradiesconstituem-se em um elementofundamental das anlises. Sejasob a forma de crenas ge