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Livros Livros Rev Bras Psiquiatr. 2005;27(2):168-9 168 Cartas a um jovem terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos Contardo Calligaris. Rio de Janeiro: Campus; 2004. ISBN 85-352-1493-3 Vários autores recorrem ao formato “cartas” ao escrever um livro. Lembrem de “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Ma- ria Rilke, ou de “As ligações perigosas”, de Choderlos de Laclos, que o próprio Calligaris cita numa anedota ao final do livro. É uma forma segura de manter a atenção do leitor, não só pelo interesse voyeurista que desperta, como pela simplicidade da linguagem que o estilo pede. Nas cartas, Calligaris se dirige a dois jovens em início de carreira e procura dar-lhes uma noção do que é e do que não é ser terapeuta. Aborda temas polêmicos (como é de seu esti- lo) e trata também de questões clássicas tais como o que deve ser o setting, o que seria cura em psicoterapia, o que fazer com o amor transferencial, etc. Dentre os temas polêmicos, trata da eterna questão psicoterapia versus neurociências, sendo que fala da psicoterapia na sua vertente analítica, assim como da própria psicanálise. É interessante que aqui se possa falar um pouco dessa abordagem, já que a maioria das publica- ções recentes na literatura psiquiátrica se refere à psicoterapia de orientação cognitiva e/ou comportamental. O autor diz aber- tamente que, na prática, se é muitas vezes cognitivista ou behaviorista, ou seja, não se é analista 100% do tempo. E não descarta, portanto, a necessidade de se informar de téc- nicas outras ainda que se queira utilizar a psicanálise como método ou teoria explicativa do funcionamento psíquico. Pen- samos que essa postura é uma faca de dois gumes. Por um lado, é um alívio alguém falar às claras daquilo que muitos profissionais pensam e fazem, mas não dizem abertamente, talvez por medo das suas instituições de origem ou pela ade- são excessivamente rígida aos cânones do referencial teórico de predileção. Por outro, a um profissional em início de car- reira pode dar a noção equivocada de que as coisas são mais simples do que na realidade podem ser. Uma das utilidades da leitura para os jovens terapeutas, sejam das áreas psiquiátrica ou psicológica, é que o livro ten- ta dar uma noção da importância de cada uma delas, sem discriminação e sem conflitos. Calligaris nos dá como exem- plo um paciente deprimido que, uma vez medicado, pode vol- tar a ter condições de participar ativamente de sua psicoterapia, ao contrário do que pensam alguns profissionais “biológicos” (que atribuem a melhora exclusivamente à medicação) e dos seus correspondentes psicanalíticos na ortodoxia, que muitas vezes são contra a medicação por pensar que esta não cura, apenas “anestesia o sintoma”. Talvez a parte mais interessante do livro seja a crítica que faz do distanciamento apresentado pelo discurso psicanalítico em algumas instituições em relação ao que deveria ser o seu objeto: o trabalho com o paciente. É justamente aí que está o seu maior mérito: situa a terapia no consultório, ocorrendo entre duas pessoas, uma querendo se livrar de alguma forma de sofrimento e outra procurando viver do trabalho de cuidar dessa pessoa. Pode parecer óbvio, mas não é freqüente que textos técnicos tratem de assuntos como “O que fazer para ter mais pacientes?”, “O que dizer ao paciente sobre a terapia no início do tratamento?” ou “E se o paciente me dá sono?”, mesmo que essas perguntas sejam assíduas entre as preocupações não só dos iniciantes. Nesse particular, o livro de Calligaris ganha por não ser “técnico”. Assim, cremos que o livro, de fácil e rápida leitura, poderia até ser indicado, não como obra básica, evidentemente, mas como leitura auxiliar pelos cursos, nem que seja para desen- cadear e ampliar um debate que é saudável, necessário e que remeta às obras de referência, num tempo em que fórmulas mágicas são procuradas. Uma coisa continua certa: quer para o terapeuta médico, quer para o terapeuta psicólogo, o cami- nho não é fácil e o entendimento dessas pequenas coisas, se não consegue torná-lo menos árduo, pelo menos alerta para que certas dificuldades requerem, além da técnica, sensibili- dade e intuição. Ana Gabriela Hounie Ana Gabriela Hounie Ana Gabriela Hounie Ana Gabriela Hounie Ana Gabriela Hounie Projeto Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo (PROTOC) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Cláudio Augusto Duque Cláudio Augusto Duque Cláudio Augusto Duque Cláudio Augusto Duque Cláudio Augusto Duque Sociedade Psicanalítica de Pernambuco

168 LivrosLivros - SciELOCartas a um jovem terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos Contardo Calligaris. Rio de Janeiro: Campus; 2004. ISBN 85-352-1493-3 Vários

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Page 1: 168 LivrosLivros - SciELOCartas a um jovem terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos Contardo Calligaris. Rio de Janeiro: Campus; 2004. ISBN 85-352-1493-3 Vários

LivrosLivros

Rev Bras Psiquiatr. 2005;27(2):168-9

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Cartas a um jovem terapeuta: reflexõespara psicoterapeutas, aspirantes ecuriososContardo Calligaris. Rio de Janeiro: Campus; 2004.ISBN 85-352-1493-3

Vários autores recorrem ao formato “cartas” ao escrever umlivro. Lembrem de “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Ma-ria Rilke, ou de “As ligações perigosas”, de Choderlos de Laclos,que o próprio Calligaris cita numa anedota ao final do livro. Éuma forma segura de manter a atenção do leitor, não só pelointeresse voyeurista que desperta, como pela simplicidade dalinguagem que o estilo pede.

Nas cartas, Calligaris se dirige a dois jovens em início decarreira e procura dar-lhes uma noção do que é e do que nãoé ser terapeuta. Aborda temas polêmicos (como é de seu esti-lo) e trata também de questões clássicas tais como o que deveser o setting, o que seria cura em psicoterapia, o que fazercom o amor transferencial, etc. Dentre os temas polêmicos,trata da eterna questão psicoterapia versus neurociências, sendoque fala da psicoterapia na sua vertente analítica, assim comoda própria psicanálise. É interessante que aqui se possa falarum pouco dessa abordagem, já que a maioria das publica-ções recentes na literatura psiquiátrica se refere à psicoterapiade orientação cognitiva e/ou comportamental. O autor diz aber-tamente que, na prática, se é muitas vezes cognitivista oubehaviorista, ou seja, não se é analista 100% do tempo. Enão descarta, portanto, a necessidade de se informar de téc-nicas outras ainda que se queira utilizar a psicanálise comométodo ou teoria explicativa do funcionamento psíquico. Pen-samos que essa postura é uma faca de dois gumes. Por umlado, é um alívio alguém falar às claras daquilo que muitosprofissionais pensam e fazem, mas não dizem abertamente,talvez por medo das suas instituições de origem ou pela ade-são excessivamente rígida aos cânones do referencial teóricode predileção. Por outro, a um profissional em início de car-reira pode dar a noção equivocada de que as coisas são maissimples do que na realidade podem ser.

Uma das utilidades da leitura para os jovens terapeutas,sejam das áreas psiquiátrica ou psicológica, é que o livro ten-ta dar uma noção da importância de cada uma delas, semdiscriminação e sem conflitos. Calligaris nos dá como exem-plo um paciente deprimido que, uma vez medicado, pode vol-tar a ter condições de participar ativamente de sua psicoterapia,ao contrário do que pensam alguns profissionais “biológicos”(que atribuem a melhora exclusivamente à medicação) e dosseus correspondentes psicanalíticos na ortodoxia, que muitasvezes são contra a medicação por pensar que esta não cura,apenas “anestesia o sintoma”.

Talvez a parte mais interessante do livro seja a crítica quefaz do distanciamento apresentado pelo discurso psicanalíticoem algumas instituições em relação ao que deveria ser o seuobjeto: o trabalho com o paciente. É justamente aí que está oseu maior mérito: situa a terapia no consultório, ocorrendoentre duas pessoas, uma querendo se livrar de alguma formade sofrimento e outra procurando viver do trabalho de cuidar

dessa pessoa. Pode parecer óbvio, mas não é freqüente quetextos técnicos tratem de assuntos como “O que fazer para termais pacientes?”, “O que dizer ao paciente sobre a terapia noinício do tratamento?” ou “E se o paciente me dá sono?”, mesmoque essas perguntas sejam assíduas entre as preocupaçõesnão só dos iniciantes. Nesse particular, o livro de Calligarisganha por não ser “técnico”.

Assim, cremos que o livro, de fácil e rápida leitura, poderiaaté ser indicado, não como obra básica, evidentemente, mascomo leitura auxiliar pelos cursos, nem que seja para desen-cadear e ampliar um debate que é saudável, necessário e queremeta às obras de referência, num tempo em que fórmulasmágicas são procuradas. Uma coisa continua certa: quer parao terapeuta médico, quer para o terapeuta psicólogo, o cami-nho não é fácil e o entendimento dessas pequenas coisas, senão consegue torná-lo menos árduo, pelo menos alerta paraque certas dificuldades requerem, além da técnica, sensibili-dade e intuição.

Ana Gabriela HounieAna Gabriela HounieAna Gabriela HounieAna Gabriela HounieAna Gabriela HounieProjeto Transtornos do Espectro Obsessivo-Compulsivo(PROTOC) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicasda Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo(FMUSP)

Cláudio Augusto DuqueCláudio Augusto DuqueCláudio Augusto DuqueCláudio Augusto DuqueCláudio Augusto DuqueSociedade Psicanalítica de Pernambuco

Resenhas_rev04.p65 12/5/2005, 19:48168