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    Nmero XVII Volume II dezembro de 2014

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    A AUTONOMIA DA RAZO E SEU SENTIDO TEOLGICO:

    O DEBATE ENTRE HABERMAS E RATZINGER SOBRE

    RAZO E RELIGIO

    Jrg Dierken**

    RESUMO:Neste artigo, o reconhecido professor e pensador alemo nas reas da teologia, filosofiae tica, Jrg Dierken, procede a uma anlise e comparao meticulosas entre o pensamento de JosefRatzinger e Jrgen Habermas no tocante ao tema da autonomia da razo na modernidade, com a

    concomitante explorao de seu possvel sentido teolgico. Sem identificar-se, em ltima anlise,com nenhuma das duas perspectivas, Dierken implicitamente oferece uma alternativa de leiturageral no que concerne ao debate sobre f e razo protagonizado h alguns anos pelos dois

    pensadores constantes do ttulo. Nisso o autor retoma e desenvolve sobretudo o conceito desubjetividade gestado pelo idealismo alemo, indagando sobre seu sentido de transcendncia.Apenas a ttulo de esclarecimento, os tradutores deixam claro aos leitores que neste artigo (o Papa)Josef Ratzinger abordado de maneira crtica e como pensador, parte de sua posio de autoridadeno mbito do catolicismo.

    Palavras-chave: Modernidade; Razo; Religio; Subjetividade; Jrgen Habermas; Josef Ratzinger

    ABSTRACT: In the following paper the by now renowned German professor and thinker comingfrom the areas of theology, philosophy, and ethics, Jrg Dierken, proceeds to offer a detailedanalysis of, and comparison between, the thought of both Josef Ratzinger and Jrgen Habermasconcerning the broader issue of the autonomy of reason in modernitywith an ensuing explorationof its possible theological meaning. Though in the last analysis not following either of the suggestedapproaches, Dierken implicitly offers an alternative general reading of the debate on faith and

    reason which, some years ago, had both thinkers as protagonists. He does this by reoccupying and

    developing further the concept of subjectivity brought forward by German idealism as it opens upa sense of transcendence. Just as an aside, the translators want to make clear that in this paper (Pope)Josef Ratzinger is dealt with in a critical manner and as a thinker, quite apart from his position ofauthority in the context of world Catholicism.

    Keywords: Modernity; Reason; Religion; Subjectivity; Jrgen Habermas; Josef Ratzinger

    *Traduo de Lus H. Dreher (UFJF-CNPq-PPM IV) e Davison Schaeffer de Oliveira (Doutorando narea de concentrao Filosofia da Religio, PPCIR-UFJF). Publicao original: DIERKEN, Jrg.Die Autonomie der Vernunft und ihr theologischer Sinn. Zur Habermas-Ratzinger-Debatte berVernunft und Religion. In: SCHWEITZER, Friedrich (Org.) Kommunikation ber Grenzen.Kongressband des XIII. Europischen Kongresses fr Theologie 2008 in Wien. Gtersloh:Gtersloher Verlagshaus, 2009, p. 644-656.

    ** Professor (Teologia Sistemtica e tica) na Faculdade de Teologia da Martin-Luther-Universitt

    Halle-Wittenberg, RFA.

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    1 - Razo e religio (I), ou: construindo alianas via patologias e descarrilamentos da

    modernidade

    A histria da relao entre razo e religio oferece material para uma hermenutica da suspeita.

    Isso vale em todo caso para a modernidade ocidental com precedentes na histria que se

    estendem at os incios, na Antiguidade, da crtica do mito pela tradio de razo europeia. O

    mais tardar com as primeiras experincias modernas de conflitos confessionais sangrentos

    dentro de uma ordem social religiosamente fundada, mas tambm com o sucesso da pesquisa

    da natureza e da tcnica pela ligao entre matemtica e empiria aqum do dogma, passou a

    crescer a distncia da razo frente religio. Aqui, o espectro se estende desde a recusa

    polmica da religio como obscurantismo, superstio e fraude piedosa at estratgias dedemarcar crenas purificadas enquanto veculo de ensino e progresso. Por seu turno, da parte

    da religio, no faltam observaes mordazes de crtica da razoapesar das grandes snteses

    entre platonismorespectivamente, aristotelismoe cristianismo na Antiguidade tardia e na

    Idade Mdia. Mas fundar a f sob o signo do absurdo deixa aps si marcas permanentes, e,

    quando at mesma a independncia divina diante de seus prprios decretos passa a operar como

    comprovao do poder absoluto de Deus, tem-se por resultado a divindade e a racionalidade

    entrando em concorrncia. E depois que os conflitos entre razo e religio alcanaram seu zniteno contexto do Esclarecimento (Aufklrung), o significado do tema parecia desvanecer-se para

    todo um ciclo de cultura. Uma secularidade cada vez mais auto-evidente e uma racionalidade

    cientfica distante da religio superaram em muito, do ponto de vista de seus efeitos, as grandes

    snteses ps-iluministas entre religio e razo especulativa.

    Por isso tudo chama bastante ateno quando, do quadrante eclesistico mais

    proeminente, veementemente se acentua a concordncia entre razo e religio. A ofensiva

    miditica de Joseph Ratzinger, quer como cardeal1, quer como Papa, conjurou repetidas vezes

    uma unidade entre cristianismo e razo. No seu cerne, ambos seriam inseparveis, porque Deus

    mesmo enquanto fundamento racional originrio de todo real, [enquanto] razo criadora a

    partir da qual surgiu o mundo e no qual ele se espelha, logos e, com isso, sentido, razo

    e palavra2. As fontes do cristianismo no seriam foras irracionais como poesia ou poltica

    1 E prefeito da Congregao para a Doutrina da F.

    2 Cf. RATZINGER, J. Cardeal. Auf der Suche nach Frieden, in:FAZ[=Frankfurter Allgemeine Zeitung],

    11.06.2004. Formulaes semelhantes encontram-se j no livro de RATZINGER, J. Cardeal.Wendezeit fr Europa? Diagnosen und Prognosen zur Lage von Kirche und Welt, 2. ed.

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    tampouco como mito, magia ou sentimento. Pelo contrrio, sua origem convergiria, na

    Antiguidade, com o esclarecimento racional3. Esta correlacionalidade entre razo e f, razo e

    religio, permitiria e exigiria hoje a discusso com patologiasde ambos os lados4

    . Estasdizem respeito, por um lado, a uma razo reduzida ao cientificismo com seu etos de

    configurao tecnicista do mundo; e, por outro, a formas de religio pervertidas pelo

    fundamentalismo, com sua tendncia subjugao violenta de tudo que diferente. Ratzinger

    ilustra o primeiro aspecto com uma compreenso do mundo pela qual a natureza em si mesma

    contingente, assemelhando-se, por isso, a um jogo de foras arbitrrias. A partir daqui se daria

    apenas um passo bem curto rumo a programas de produo de seres humanos orientados por

    interesses circunstanciais e cegos. Algo similar valeria para a substituio da justia por umarbtrio plenipotencirio nos casos em que o direito e a poltica no mais se pautam pela razo

    do direito natural. Os fenmenos mais crassos no tocante s patologias da religio so, no

    entender do Papa, o terror e a violncia, por mais que sejam motivados por uma oposio,

    legtima aos seus olhos, ao cinismo frvolo da ordem desprovida de amarras morais do Ocidente

    capitalista.

    Espanta at mais que esta determinao papal da religio enquanto razo o fato de a

    crtica implcita encontrar adeso da parte de um pensamento ps-metafsicodistanciado da

    religio5. Em sua crtica de uma modernidade descarrilada, Jrgen Habermas se v numa

    Einsiedeln/Freiburg: 1992, p. 76; depois disso, in: PAPA BENTO XVI. Enzyklika Deus caritas est(=SECRETARIAT DER DEUTSCHEN BISCHOFSKONFERENZ [Hg.] Verlautbarungen desApostolischen Stuhls Nr. 171, Bonn: 2006; cf: FAZ 26.01.2006; cf. tambm: Enzyklika Spe salvi(=SECRETARIAT DER DEUTSCHEN BISCHOFSKONFERENZ [Hg.] Verlautbarungen desApostolischen Stuhls Nr. 179, 3. ed. Bonn: 2008), par. 23; e depois disso, a assim chamadaRegensburger Rede: Glaube, Vernunft und Universitt. Erinnerungen und Reflexionen, in:SECRETARIAT DER DEUTSCHEN BISCHOFSKONFERENZ [Hg.] Apostolische Reise Seiner

    Heiligkeit Papst Benedikt XVI. nach Mnchen, Alttting und Regensburg. 9. bis 14. September 2006Predigten, Ansprachen, Grussworte, Verlautbarungen des Apostolischen Stuhls, Nr. 174, Bonn:2006, p. 72-84, principalmente p. 75s; Ansprache von Papst Benedikt XVI. an das Kardinalkollegiumund die Mitglieder der Rmischen Kurie beim Weihnachtsempfang 2005, = SECRETARIAT DERDEUTSCHEN BISCHOFSKONFERENZ [Hg.] Verlautbarungen des Apostolischen Stuhls Nr. 172,Bonn: 2006; alm de outros mais.

    3 Cf., de modo exemplar RATZINGER, J. Cardeal. Der angezweifelte Wahrheitsanspruch, in: FAZ08.01.2000.

    4 RATZINGER, J. Cardeal. Was die Welt zusammenhlt. Vorpolitische moralische Grundlagen einesfreiheitlichen Staates, in: HABERMAS, J. Dialektik der Skularisierung. Vernunft und Religion,Freiburg 2005, p. 39-60, principalmente p. 57.

    5 Cf. a palavra-chave em HABERMAS, J.Der philosophische Diskurs der Moderne. Zwlf Vorlesungen,

    3. ed. Frankfurt/M.: 1989.

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    proximidade com Joseph Ratzinger6. No mbito operativo ele chegaria a consequncias

    semelhantes7. Assim, sua ocupao com o tema f e saber motivado pelo impulso de

    mobilizar a razo moderna contra o derrotismo que nela prpria viceja8

    . O derrotismoconsistiria, por um lado, num aguamento ps-moderno da dialtica do esclarecimento, no

    qual pretenses racionais repentinamente se convertem em irracionalismos; por outro,

    identificar-se-ia com naturalismos crdulos na cincia, tendo nisso, como linha de fuga, uma

    ameaa da natureza humana marcada por um tecnicismo aplicado ao humano9. Contraposta a

    isso, a razo prtica teria de manter desperta uma conscincia daquilo que faz falta, daquilo

    que clama aos cus 10. Por isso, aos descarrilamentos modernos haveria que contrapor os

    mandamentosreligiosos [da] moral da justia

    , com seus motivos que promovem aresoluo

    pelo agir solidrio 11. Ao passo que as consequncias da dialtica do esclarecimento

    unicamente poderiam ser exitosamente enfrentadas pelos princpios racionais fracos do

    pensamento ps-metafsico, a perda da solidariedade social indicaria tambm razo

    procedural razes para comportar-se com disposio de aprender diante das tradies

    religiosas12. Pois esta perda tambm diz respeito coordenao da ao, focalizada por uma

    razo republicano-comunicativa, acerca de valores, normas e um uso da linguagem orientado

    ao entendimento comum, coordenao esta suplantada pelo mercado, pelo poder e pela

    administrao. A disposio de aprender da razo se aplica aos potenciais excedentes da

    articulao religiosa na linguagem e por imagens seja no sentido utpico de representaes

    6 Cf. Vorpolitische Grundlagen des demokratischen Rechtsstaates? von J. Habermas zu derDiskussion mit J. Ratzinger, reimpresso in: HABERMAS, J. Zwischen Naturalismus und Religion.Philosophische Aufstze, Frankfurt/M.: 2005, p. 106-118, principalmente p. 106; Cf. tambm p. 111;de igual modo, o artigo Die Grenze zwischen Glauben und Wissen. Zur Wirkungsgeschichte undaktuellen Bedeutung von Kants Religionsphilosophie, p. 216-257, principalmente p. 218, 247, etpassim.

    7 Cf. SCHULLER, F. Prefcio, in: HABERMAS, J.; RATZINGER, J. Cardeal. Dialektik, loc. cit. (ver nota4), p. 7-14, principalmente p. 13.

    8 HABERMAS, J. Ein Bewusstsein von dem, was fehlt, in: REDER, M.; SCHMIDT , J. (Hg.)EinBewusstsein von dem, was fehlt. Eine Diskussion mit Jrgen Habermas, Frankfurt a. M.: 2008, p.26-36, principalmente p. 30.

    9 Cf. HABERMAS, J. Bewusstsein (vide nota 8), 30; cf. tambm: Id. Die Zukunft der menschlichenNatur. Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik? Frankfurt a. M.: 2001.

    10. HABERMAS, J.Bewusstsein (vide nota 8), p. 31.

    11 Ibid., p.30.

    12 HABERMAS, J. Grundlagen, loc. cit. (assim como na nota 6), p. 115 et passim; cf. Id. Bewusstsein ,

    loc. cit. (vide nota 8), p. 30 s.

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    salvficas, seja no sentido de uma crtica ao tempo presente por meio da descrio da injustia

    e do sofrimento. Tais potenciais teriam de traduzir-se, por meio do pensamento ps-metafsico,

    em razes discursiva e publicamente ponderveis, mesmo que o Habermas tardio em suadisposio de aprender tambm conhea limites da tradutibilidadediante da caracterstica

    obstrutiva das articulaes religiosas13. Ao mesmo tempo, ele insiste num dever de

    argumentao tambm da parte dos crentes em formas acessveis a todos os cidados14. Para

    Habermas, a traduo das simbolizaes religiosas na linguagem de uma comunicao

    pblica, acompanhada de respeito diante de seus excedentes semntico-pragmticos, o modus

    operandide uma secularizao que no aniquila 15. Seu outro lado est em que as pessoas

    religiosas, com o reconhecimento concomitante da ordem de direito e da racionalidadecientfica, tambm tomam parte num projeto de traduo que avana, justamente por isso,

    condio de mote contraposto caricatura fundamentalista da religio16. Assim como o Papa,

    Habermas exige alianas entre razo e religio diante do descarrilamento da modernidade. Elas

    possibilitam traduzir reciprocamente determinaes contrrias da relao entre razo e religio.

    Ora, alianas num papel corretivo com concomitante tradutibilidade entre razo e

    religio pressupem pontos em comum sem uma igualdade completa. A religio precisa

    implicar, de alguma maneira, contedos de razo; do contrrio, ela no serve de corretivo em

    nome da razo. E a razo precisa indicar uma abertura, arraigada nela mesma, para a religio;

    de no ser assim, apenas entrariam em considerao escaramuas polmicas, j em vista das

    pretenses de validade. Uma identidade simples fica excluda a despeito da concordncia no

    aspecto operativo tendo em vista a diferente coordenao entre razo e religio. Enquanto

    Habermas insiste numa diferena remanescente entre f e saber e atribui religio seu

    significado cultural na modernidade devido justamente sua estranheza, Ratzinger, em ltima

    anlise, no conhece nenhuma funo da razo que fosse independente da religio e de sua f

    em Deus. E enquanto Habermas explicita a diferena entre f e saber a partir da perspectiva da

    razo, para o Papa a perspectiva da f em Deus normativa para a unidade daqueles termos.

    13 Cf. HABERMAS, J. Religion in der ffentlichkeit. Kognitive Voraussetzungen fr den ffentlichenVernunftgebrauch religiser und skularer Brger, in:Naturalismus, loc. cit. (vide nota 6), p. 119-154, principalmente p. 141ss et passim.

    14 Cf. HABERMAS, J. Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 136.

    15 HABERMAS, J. Glauben und Wissen, Frankfurt/M. 2001, p. 29.

    16 Ibid. (vide nota 13).

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    Tal f se v na melhor das hipteses factualmente, porm no por princpio, como uma

    perspectiva entre outras. J a razo ps-metafsica unicamente conhece a diferena entre f e

    saber como diferena racional no caso em que a f permanece um outro que lhe estranho.

    2 - Razo e religio (II), ou: oposies sistemticas por meio de perspectivas de

    coordenao distintas

    A intuio fundamental da equiparao papal entre Deus, f e razo17poderia consistir em falar

    a partir de uma efetividadedo racional. Por causa dela, a criatividade divina identificada com

    a razo articulada; por causa dela as estruturas do mundo criado so descritas, at mesmo nonvel da matria, como perpassadas pela razo e perceptveis pela cincia racional; e, por causa

    dela, vigora um direito natural cunhado pela razo enquanto diretriz para toda ordem poltica18.

    Esta equiparao seria perceptvel em diversos graus de captao racional tanto da teoria como

    da prtica. Nisso apareceria, em suas nuanas, uma analogia entre razo criatural, racionalidade

    do criado e racionalidade dos atos do esprito humano. Em ltima anlise, saberia a respeito

    disso a f, que por seu turno racional por seguir a manifestao da razo divina na histria da

    revelao19. Nesta concepo, no pode haver uma autonomia da razo aqum do Deus da

    razo. Deus j sempre est para as duas mais excelentes realizaes da razo: a ordenao do

    particular num todo universal, imagem prototpica da eternidade e consumao; e atividade

    espontnea e criativa do que livre como sua contraparte originria20. Nisso participam a razo

    humana e a f de um modo derivadoquando as coisas no tomam um rumo patolgico. Nesse

    ltimo caso, cabe f uma funo corretiva diante da razo deficitria em virtude de sua

    prpria participao na razo.

    17 Ela se acha nas linhas da EnzyklikaFides et ratio deJoo Paulo II, e ali ainda radicalizada; cf. JooPaulo II, Enzyklika Fides et ratio, 14 de setembro de 1998 (= SECRETARIAT DER DEUTSCHENBISCHOFSKONFERENZ [HG.] Verlautbarungen des Apostolischen Stuhls Nr. 135, Bonn: 1998.Para o tema, cf.: DIERKEN, J. Selbstbewusstsein individueller Freiheit. ReligionstheoretischeErkundungen in protestantischer Perspektive, Tbingen: 2005, p. 397ss.

    18 Cf. RATZINGER, J. Welt, loc. cit. (assim como na nota 4), p. 42ss.; 56ss.; cf. tambm RegensburgerRede, loc. cit. (vide nota 2), p. 81, 83 et passim.

    19 Esta f acompanha sempre o amor prtico, cf. PAPA BENTO XVI.Deus caritas est, loc. cit. (vide nota2).

    20 PAPA BENTO XVI.Spe salvi, loc. cit. (vide nota 2), especialmente p. 12, 18, 23, 31.

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    A intuio fundamental embalada num conceito ontoteolgico, a saber, falar a partir de

    uma efetividade precedente do racional, pode reivindicar certa plausibilidade. A alternativa de

    um processo de efetivao da razo por sua vez desprovido de razo, atravs de umaautoproduo arbitrria, no necessariamente mais plausvel. A emergncia arbitrria da razo

    aumenta a demanda por fundamentar validade. Poderia ser esta a razo, antes mesmo das

    peculiaridades de um estilo de pensamento, por que o Papa intelectual coloca outras concepes

    de razo sob a suspeita geral de um relativismo irracional. Isto diz respeito em particular s

    modernas concepes da razo sob o signo do ceticismo e da falsificao, da contingncia e da

    relatividade e de uma focalizao na subjetividade com sua tendncia articulao simblica

    em imagens e signos

    21

    . Sem que se cause prejuzo a possveis momentos de verdade destasintenes, levanta-se a pergunta sobre como se deve estimar o teor de razo da crtica

    promovida pelo prprio Papa. Por mais absurda que possa parecer esta questo para uma forma

    de pensar que desde sempre j v fundada, por um caminho ontoteolgico, a efetividade da

    razo racional, ocorre que ela acaba por se aguar quando se pergunta pelo statusepistmico

    deste enunciado ontolgico. Pelo menos no bojo do discurso com posies contrrias no

    Deus como tal, e sim seu mensageiro, que alis reivindica linguagem, signos e ideias, quem traz

    sua posio a efetividade ontoteolgica da razo contra alternativas relativistas. claro que

    este mensageiro dificilmente se v numa posio de alteridade diante de Deus. Corresponde a

    tal atitude justamente a ideia da encarnao, em cuja continuidade o prprio magistrio eclesial

    se acha. Sendo, porm, assim, ofusca-se a posio do finito, por mais que ela j esteja sempre

    includa no gesto da crtica a outras posies. Este motivo tambm se acha por trs da crtica

    deselenizao do cristianismo. Pois esta ltima dirigia, em suas duas primeiras ondas, o foco

    para os momentos de finitude da f, em contraste com um saber ontoteologicamente

    assegurado22. O impulso reformatrio acentuava a f do corao eda conscincia, e a teologia

    liberal abriu-se s descobertas crticas da razo histrica. Para Ratzinger, isso apenas levou a

    uma transposio da razo dimenso subjetiva, e com isso ao que individual e arbitrrio23.

    O ponto de rotao e o ponto angular desse processo seria Kant, como o Papa acentua repetidas

    21 Cf., e de modo exemplar, o dilogo com J. Cardeal RatzingerinFAZ, 08. 03. 2000.

    22 PAPA BENTO XVI. Regensburger Rede, loc. cit. (vide nota 2), p. 78 ss.

    23 PAPA BENTO XVI. Regensburger Rede, loc. cit. (vide nota 2), p. 81.

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    vezes em sua caracterizao errnea da filosofia transcendental24. A terceira onda de

    deselenizao estaria dada com a atual relativizao do lugar cultural do cristianismo, visando

    o interesse de novas inculturaes do Evangelho. Mesmo admitido o enorme significadohistrico-cultural da helenizao, esta crtica supe uma elevao, para alm de todas e

    quaisquer contingncias, da forma helenista do ser cristo. Algo de semelhante vale para a

    Igreja romana como efetividade da Igreja na ideia de Deus 25, ofuscando-se, assim, a

    historicidade contingente de Roma. bem verdade que se acham, em Ratzinger, alguns temas

    recorrentes que vo na direo oposta da figura fundamental esboada. Destes temas fazem

    parte: a teoria personalista do ofcio papal26; o cruzamento de uma f nutrida na vida com uma

    esperana que justamente no se torna saber; alm de uma prontido de incluir na crticatambm tradies prprias, como a do escotismo27. Ainda assim, o tom basicamente

    ontoteolgico que dissolve diante da vista a finitude de toda explicao humana, tambm a de

    uma razo divinizada, imprime os traos bsicos ao tipo, personificado pelo Papa, de definio

    das relaes entre razo e religiorespectivamente teologia.

    Em contraposio a esta equiparaosubstancialistaentre Deus, razo e f, o conceito

    proceduralistade razo autnoma de Habermas insiste na persistente diferena entre f e saber,

    teologia e filosofia28. Na medida em que esta razo no abrange a ambas, mas, na racionalidade

    que lhe prpria de uma traduopara as formas culturalmente consolidadas de uma ordem

    24 A polmica do Papa desconsidera que a revoluo copernicana de Kant vale para a estrutura dasubjetividade tanto na referncia terica quanto prtica, e que ela surge justamente com base emcritrios de validade universal. Esta polmica distorce tambm o clebre bon motde Kant sobre asupresso (Aufhebung) do saber para dar lugar f enquanto uma supresso do pensamento, cf.PAPA BENTOXVI. Regensburger Rede, loc. cit. (vide nota 2), p. 79. Kant se torna, deste modo, natestemunha principal de um fidesmo inimigo do pensamento e subjetivo. Que esta no umainterpretao sria de Kant acentua tambm, pelo lado catlico benevolente, cf. RICKEN, S. J., F.Nachmetaphysische Vernunft und Religion, in: REDER, M.; SCHMIDT, J. (Hg.),Bewusstsein, loc.

    cit. (vide nota 8), p. 69-78, 74.25RATZINGER, J.Cardeal. Die grosse Gottesidee Kirche ist keine Schwrmerei, in:FAZ22.12.2000.

    26 Cf. RATZINGER, J. Cardeal. Der Stellvertreter Christi (1977), in:FAZ22.04.2005. A este contextopertence tambm a circunstncia de que Bento XVI publicou seu livro Jesus von Nazareth sob onome de RATZINGER, Joseph (=Erste Teil. Von der Taufe im Jordam bis zu seiner Verklrung,Freiburg: 2007).

    27 Cf. de modo exemplar, PAPA BENTO XVI. Regensburger Rede, loc. cit. (vide nota 2), 77.

    28 Cf. HABERMAS, J. Grundlagen, loc. cit. (vide nota 6), p. 118; Id., Religion, loc. cit. (vide nota 11), p.147; Id., Die Grenze zwischen Glauben und Wissen. Zur Wirkungsgeschichte und aktuellenBedeutung von Kants Religionsphilosophie, in: Id.,Naturalismus, loc. cit. (vide nota 6), p. 216-257,aqui p. 216ss, principalmente p. 252ss; Id., Religise Toleranz als Schrittmacher kultureller Rechte,

    in: Id.,Naturalismus, loc. cit. (vide nota 6), 258-278, principalmente p. 271 et passim.

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    liberal comunicativa, faz referncia a ambas, ela preserva a peculiaridade da razo autnoma

    sem elev-la por cima de sua finitude29. Tal posio comporta o ponto teologicamente sagaz de

    que a peculiaridade da f igualmente reconhecida: seja nos termos de uma filosofia da histria,no sentido de uma resistente prolongao da era axial da histria da humanidade para dentro

    da modernidade racionalista; seja em termos de um diagnstico da cultura, no sentido de uma

    adoo de potenciais semnticos que no tiveram sua validade esgotada e que j consoante sua

    autocompreenso se devem alteridade da revelao divina; seja, por fim, em termos polticos,

    como respeito ao direito da dimenso subjetiva da convico prpria de cada um. Este

    reconhecimento do elemento religioso enquanto outro da razo30em ltima anlise, opaco

    corresponde ao fato de que a razo procedural produz equivalentes funcionais no evento dotraduzir. Eles culminam nos diversos aspectos corretivospelos quais a alteridade do religioso

    transposta para um mbito de resistncias contra as tendncias de descarrilamento da

    modernidade liberal. Por um lado, isto possibilitado por figuras religiosas fundantes segundo

    as quais a aceitao da origem da razo a partir de um outro ao modo de um destino culmina

    em uma converso da razo a partir da razo 31; e, por outro lado, pela apropriao racional

    de potenciais de articulao ainda vlidos que prometem compensar uma deficincia

    formulada como necessidade da razo32. Na medida em que ambos os aspectos interferem

    funcionalmente um no outro, a razo procedural pode comportar-se diante da religio no s

    agnosticamente 33, mas tambm como razo disposta a aprender, compreendendo-se

    igualmente como traduo salvfica34. A razo procedural se serve virtuosamente de um

    procedimento de crtica recproca, de produo de equilbrioe de limitao, a fim de fazer

    valer pretenses de validade religiosas e seculares contra tendncias de descarrilamento da

    modernidade. Nisso a razo procedural cobra sua validadea partir do elemento ftico, a saber,

    29 Cf. especialmente HABERMAS, J. Religion, loc. cit. (vide nota 11), 119ss.

    30 Cf. HABERMAS, J. Bewusstsein, loc. cit. (vide nota 8), 29; Id., Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 150.

    31 Cf. HABERMAS, J. Grundlagen, loc. cit. (vide nota 6), p. 113.

    32 HABERMAS, J. Grenze, loc. cit. (vide nota 26), p. 231. Cf. zur Bedeutung religiserArtikulationspotentiale, Id., Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 137; Id., Toleranz, loc. cit. (vide nota26), p. 231; 235ss et passim; cf., no tocante figura da apropriao de contedos religiosos a partirde uma necessidade da razo, o trecho da interpretao de Kant de Habermas, Id., Grenze, loc. cit.(vide nota 26), p. 219; 224 et passim.

    33 HABERMAS, J. Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 149.

    34 HABERMAS, J. Grenze, loc. cit. (vide nota 26), p. 237; cf. p. 255.

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    a partir das ameaas da sociedade ps-secular, contra as quais a primeira vai perfilando seu

    papel de tradutora35. Pelo menos de um ponto de vista filosfico-religioso, esta razo mostra-

    se abstinente diante de reflexes prprias de validade36

    .Tem-se, assim, que a razo habermasiana mal chega a desenvolver categorias para dar

    conta de uma logicidade internada religiomuito embora a religio tivesse de possuir uma

    racionalidade interna se que deve conter, em sua alteridade opaca, qualquer fora de atrao

    para uma necessidade prpria da razo ps-metafsica. Algo de semelhante vale com vistas

    sensibilidade guiada pela razo frente s foras de articulao da religio cuja validade

    estaria ainda por esgotar-se, particularmente no que diz respeito salvao e sua ausncia entre

    a lembrana de um sofrimento que j no pode ser reparado e a esperana pela reconciliao,como fontes de solidariedade. Malgrado isso, a religio permanece categorialmenteencerrada

    diante da razo, inclusive naquela dimenso desta ltima em que ela est disposta a aprender e

    na qual no , meramente, agnstica. Isso se revela o mais tardar na relao ambivalente da

    razo de Habermas com a teologia enquanto reintegrao reflexiva da religio. Por um lado,

    Habermas acentua o significado da teologia para um esclarecimento interno da religio -

    particularmente no tocante a aspectos pertinentes filosofia da histria, diagnose da cultura e

    a prticas polticas37. A religio seria motivada a tal reintegrao teolgica pela razo secular,

    assim como, inversamente, o pensamento ps-metafsico pode avanar explicitamente

    posio de contraparte da conscincia religiosa que se tornou reflexiva38. Por outro lado, a razo

    procedural permanece a uma distncia confortvel da conscincia religiosa reflexiva. Acentua-

    se, contra uma traduo das perspectivas divinas s humanas, a sua incomensurabilidade.

    Posies ortodoxas minimizam o perigo de que motivos religiosos insinuem-se para dentro da

    filosofia e faam com que esta se torne religiosa39. A partir da herana kantiana, no

    Schleiermacher, e sim Kierkegaard que se acha mais prximo da razo autnoma de

    35 Cf. ibid., p. 249.

    36 Isso obviamente no exclui o fato de que a razo ps-metafsica efetue tal reflexo da validade emlgica procedural, em aspectos de teoria da comunicao, de filosofia social e filosofia da histria.Estes mostram com toda clareza as respectivas contribuies de Habermas. Todavia, atravs disso oproblema da reflexo filosfico-religiosa sobre a validade no resolvido, mas apenas adiado.

    37 Cf. HABERMAS, J.Naturalismus, loc. cit. (vide nota 6), p. 10; Id., Religion, loc. cit. (vide nota 11), p.143.

    38 Cf. HABERMAS, J. Religion, loc. cit. (vide nota 11), p. 146ss.

    39 Cf. HABERMAS, J. Grenze, loc. cit. (vide nota 26), p. 252.

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    Habermas40. Em absoluta conformidade com isso, a razo autnoma de Habermas justifica a

    irracionalidade teolgica do escotismo como pressuposto para a racionalidade secular da

    modernidade41

    . Por isso, as apropriaes reflexivas da religio so colocadas sob a suspeita deque da religio surgiria uma filosofia da religiode modo semelhante como, da f, surgiria o

    pensamento42. Pode-se estar inclinado a compreender esta forte tese anti-filosfico-religiosa

    enquanto reverso de uma razo fraca do ponto de vista filosfico-religioso, j por tratar-se de

    uma razo que delega questes de validade facticidade do traduzir. Segundo esta leitura, a

    dimenso da efetividade do racional portanto: de sua validade acentuada pelo Papa se

    anunciaria numa surpreendente troca de posies e papis. Em termos teolgicos, pode-se ficar

    tentado a ver o enfoque no pecado e no sofrimento, na reconciliao e na redeno

    aqui,porm, vinculado a um acento metdico em figuras crticascomo herana da religio judaica

    da contrafacticidade e da theologia crucis protestante, numa contraposio lgica

    ontoteolgica da encarnao43. Seja como for: caso se divisem em seu conjunto os contornos

    das posies de Habermas e Ratzinger, ento se poderia tentar preservar, a uma s vez como

    pensador e como crente, como cidado e cristo44, a inteno hermenutica do ato de traduzir.

    Nisso se focalizaria, com Habermas, a dupla diferena criticamente acentuada entre ambas as

    dimenses justamente enquanto sentido teolgico da autonomia daperformancefinita da razo,

    sem que a efetividademelhor: validade qual exorta Ratzinger seja encoberta no interior

    da religio.

    40 Ibid., p. 241ss; 251ss.41 Cf. HABERMAS, J. Bewusstsein, loc. cit. (vide nota 8), p. 35.

    42 Cf. a rplica de Habermas a uma contribuio de Ch. DANZ, Religion zwischen Aneignung und Kritik.berlegungen zur Religionstheorie von Jrgen Habermas, in: LANGTHALER, R.; NAGL-DOCETAL,H.(Hg.) Glauben und Wissen. Ein Symposium mit Jrgen Habermas, Wien: 2007, p. 9-31:HABERMAS, J. Replik auf Einwnde, Reaktion auf Anregungen, ibid., p. 366-414, principalmente p.370ss.

    43 interessante como isso se deixa acompanhar por certas reservas contra a razo prostituta emquestes de religio; s que, agora, por aquelas reservas que so nutridas pela razo e no pela f.

    44 Cf. SCHMIDT, Th. M. Religiser Diskurs und diskursive Religion in der postskularen Gesellschaft,in: LANGTHALER, R.; NAGL-DOCETAL, H. (Hg.) Glauben und Wissen, loc. cit. (vide nota 42), p.

    322-340, particularmente p.339ss.

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    3 - Transcendncia como assunto da razo dialtica e suas formas religiosas de articulao

    Se a diferena entre saber e f deve ser preservada sem retirar a religio do campo de atuaoda razo, tem-se que os atos (Vollzge) da razo finita se disponibilizam desde j para

    exploraes filosfico-religiosas. Deixar de considerar esse trao cartesiano-kantiano

    fundamental em favor de uma teonomia direta da razo acarreta o preo de encobrir o lugar

    epistmico reivindicado para a explicao tanto de Deus, quanto da razo. A razo e seus

    contedos no so simples itens dados, mas, tambm quando devem dar conta da constituio

    de um mundo fundada em Deus, esto referidos a atividades mentais. Eles so sempre parae

    atravsde

    atualizaes dasubjetividade humana.

    Documentam este achado as negociaesintersubjetivas de questes controversas sobre a objetividade tpica das coisas ou acerca do agir

    coordenado. A subjetividade se torna manifesta nas relaes da intersubjetividade e na

    verdade perante dissensos e diferenas. O mais tardar na resistncia diante de interpelaes de

    outros chega a mostrar-se a atividade subjetiva espontnea. A resistncia no pode provir

    daquilo contra o que ela mesma se volta. E, no entanto, ela irrompe justamente nesse ponto e

    comunicada intersubjetivamente. Ambas as coisas so possveis, pois a atividade subjetiva

    espontnea45 exibe ao mesmo tempo uma dimenso reflexiva; esta diferencia, de forma

    igualmente originria com a retroao ao eu do ato de conscincia, entre este eu (Selbst) e seu

    outro. Com isso est estruturalmente posta no horizonte a autonomia da razo: uma atividade

    espontnea que acompanhada de uma referncia de tipo diferenciador- ordenador a outro, e

    que somente por meio disso deixa tornar-se apreensvel o eu da atividade. desta relao

    fundamental entre atualizao do eu e alteridade que depende a efetividade da razono que

    finito. A partir daqui deixam-se traar linhas para a tarefa de integrao da razo, mas tambm

    para a capacidade diferenciadora do entendimento. As dimenses fundamentais da razo

    assim como do entendimento enquanto elemento abrangem as relaes complexas entre

    subjetividade e objetividade, mas tambm entre subjetividade e intersubjetividade no campo

    limtrofe do conhecer e do querer.

    Por mais que o eu sempre possa somente achar-se institudo em sua espontaneidade

    diferente do que outro, e por mais que ele j por isso seja finito por si mesmo, tanto mais se

    45 Ela a base para a autoconservao, a partir da qual, por exemplo, na forma de interesses

    intersubjetivos que exigem negociao, resulta no conflito um elemento em comum.

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    d o caso de que sua atividade reflexiva, na qual ele capaz de apreender os mais diversos

    contedos como seus, acompanhada de um sentido para a unidade. A constituio de regras

    e a ordenao tornam-se, com isso, compreensveis enquanto realizaes fundamentais darazo autnoma46. Em vista do seu lugar finito, o sentido de unidade ordenador implica uma

    tendncia para a universalizao: ele se estende sempre a algo mais. Este transcender imanente

    da razo exibe uma orientao completude (Ganzheit). Tal completude se acha em direo

    oposta da espontaneidade da atualizao da subjetividadeat o ponto mximo do no no

    conflito intersubjetivo. Tambm nisso se mostra um transcender interno da razo, a saber, da

    espontaneidade para a incondicionalidademarcada por validade ltima. Por isso, liberdadee

    completudecunham

    as caractersticas fundamentais e tensionadas de um pensamento que, como

    consequncia de tal transcendncia, chega a ideias47. A liberdade aqui a cifra para a alteridade

    e a contingncia, a completude o para a regra e a relacionalidade. A razo autnoma esbarra

    em tais ideias quando no evita o incmodo de questes resultantes da mensurao prpria de

    seus limites. Por meio do pensar em ideias, a metafsica crtica permanece uma tarefa da razo

    no terreno da subjetividade. Sabedor de que s ideias no correspondem objetos coisificados,

    este pensamento serve ao entender-se da razo em sua atualizao, no servindo, contudo, sua

    assegurao ontolgica prvia a todo e qualquer uso. Por isso, tal metafsica crtica enquanto

    pensamento em ideias implica um trao como que ps-metafsico. Ele remete a razo de volta

    ao seu ponto de partida no finito e impede a monopolizao de uma forma simplria de

    explicao da razo, por exemplo, a conceitual-contemplativa. O teor racional da razo se exibe

    no lugar do outro de si mesma. Isso permite traar, na prpria razo, linhas e circuitos bem

    aterrados na direo de formas religiosas. A religio est justamente para isso: para o ato de

    comunicar em formas finitas, mais precisamente simblicasque se devem forte contingncia

    de mediaes histricas e de afetos do mundo da vida, a orientao da vida finita subjetiva na

    sua referncia a contedos ideativos. Nesta orientao com o auxlio de um pensar em ideias

    46 Por esta razo desvia-se do ponto essencial uma interpretao que identifica a guinada para o sujeitoguinada esta ligada modernidade, especialmente a Kant com arbitrariedade subjetivista.

    47 Caso se apreenda esta relao de tenso em seu nexo sistemtico e se desenvolva uma concepo deum Absoluto para o pensamento em ideias, -se conduzido ideia de que o Absoluto , justamentepor isso, o outro de si mesmo. Sem dvida, esta ideia hegeliana cum grano salis dificilmente sedeixa apreender num saber positivo e contemplativo, impelindo, pelo contrrio, a uma explicaonegativo-teolgica. Com isso, o no no no-saber douto corresponde ao momento de negao nafigura do outro de si mesmo. Para isso, cf.: DIERKEN, J. Selbstbezug und Alteritt. Subjektivittzwischen Individualitt und Intersubjetivitt und der Gottesgedanke im Gesprch mit Dieter

    Henrich, in: Wiener Jahrbuch Philosophie, 2009.

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    simbolizadas tampouco ela possui qualquer monoplio, como bem mostra a velha disputa com

    a filosofia ou com concorrentes mais recentes como a cincia, a arte, a poltica, etc. No

    entanto, a diferenciao na religio entre pensar em ideias e saber emprico abre, ela prpria, oespao para articulaes simblicas; mas com isso este prprio diferenciar sequer consegue

    livrar-se de tocar em tais articulaes. Por isso mesmo, a fronteira entre filosofia e religio no

    deve ser fixada definitivamente, por mais que a filosofia possua uma tendncia unidade de

    forma e contedo arraigada em sua retroao reflexiva, ao passo que a religio tende, antes, a

    demorar-se na manifestao da diferena de forma e contedo em sistemas simblicos

    historicamente mediados. Nesta relao aberta para com a religio, a filosofia pode contribuir,

    atravs da diferenciao de saber e crer orientada pela razo, na tarefa de indicar a razo nareligio. Mas para tanto no tem condies um uso meramente tcnico da razo em questes

    religiosas, por exemplo, no sentido de uma sistematizao explicativa externa.

    Temas exemplares da filosofia da religio48 dizem respeito, por exemplo, a formas

    fundamentais da simbolizao do que criaturalinclusive do ser-institudo contingente tpico

    da prpria razo em sua atualizao. Tanto a f na criao quanto na eternidade tem aqui, de

    forma proeminente, o seu lugar. Mas tambm figuras de unidade do todo (Alleinheit) enquanto

    horizonte para uma multiplicidade mundana e uma pluralidade de pessoas. Ao lado disso,

    entram em cena as formas fundamentais nas quais se torna temtico o carter de

    incondicionalidade da liberdade humana. Elas dizem respeito imagem e responsabilidade

    do ser humano que tanto semelhante a Deus quanto a ele contraposto. No seu campo de

    abrangncia se acha, com a conscincia do pecado, a capacidade de diferenciar entre bem e mal.

    Ela liga uma dimenso do contrafctico com uma validade superior a todo o fctico, que se

    manifesta no juzo crtico sobre o falso. Com a distncia do que fcticoque inclui tambm

    o juzo sobre si mesmaconectam-se aspectos do tema da liberdade e da completude no lugar

    prprio da vida finita: sem a ideia de uma ordem que deva ser, desmantela-se o no do prprio

    juzo crtico. Nesta ordem que abrange algo de outro e os outros, precisa incluir-se o eu em

    virtude da sua prpria liberdade. Seu querer, cujo contedo somente surge na comunicao com

    outros enquanto elementos de ordem, entrelaa o eu nesta mesma ordem. A crtica como parte

    da comunicao intersubjetiva o lado inverso desse processo. A atualizao da ordem

    48 Esta formulao tomada de emprstimo a um ttulo de livro de W. Jaeschke, e, com ela, obviamentes se focaliza a filosofia da religio de Hegel, cf. JAESCHKE, W.Die Vernunft in der Religion. Studien

    zur Grundlegung der Religionsphilosophie Hegels, Stuttgart: 1986.

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    simultaneamente sua permanente correo. Esta concepo pragmtico-procedural de uma

    ordem dinmica a partir do eu, o qual adquire seus contornos por meio de traos de alteridade

    e que se insere em negociaes comunicativas, de modo algum arbitrria por mais que acomunicao dos eus suceda ou se demore em simbolizaes contingentes. De maneira

    clssica, tal concepo se designa, de resto, com o ttulo de uma religio do espritoque ao

    mesmo tempo mais do que uma religio meramente estatutria.

    O delineamento por ns obtido da razo filosoficamente apreensvel na religio do

    esprito permite adotar o momento de crtica acentuado tanto por Ratzinger como por Habermas

    nos pontos j salientados. A crtica torna-se acessvel de modo filosfico-religioso atravs de

    relaes recprocas de tipo comunicativo-procedural que vo desde a autorreferncia e aalteridade at o ponto do noenquanto ponto limtrofe, no sendo pensada apenas atravs da

    opacidade religiosa. Deste modo, a crtica, enquanto emblema da razo na modernidade,

    retirada daquele canto em que aparece como mero antdoto contra patologias das quais a

    verdadeira substncia da razo permaneceria imune. E, contudo, tal delineamento comporta, ele

    mesmo, dois problemas reciprocamente imbricados. Por um lado, ele no adquirido num

    percurso atravs da multiplicidade contingente de constelaes religioso-culturais com a

    exceo das posies criticadas. Por outro lado, sua fora persuasiva deve, ela mesma, atribuir-

    se contingncia de desdobramentos na histria do pensamento sem, com isso, perder a

    pretenso implcita normatividade, que j est posta junto com a crtica. Enquanto o primeiro

    problema poderia ser sanado num outro arranjo de acesso a ele, o segundo inevitvel.

    No a razo pura, mas somente as constelaes religioso-culturais chegam a oferecer o

    material para simbolizaessejam estas estticas, religiosas ou filosficas. Trocas de papis,

    que chegam at o ponto das mais crassas antteses s simbolizaes, so o outro lado da moeda.

    Tambm naturalismos cientificistas implicam uma pretenso de incondicionalidade num

    vrtice totalitrio; do mesmo modo, linhas sociotcnicas de ao que solapam regulaes

    normativas da vida em comum no deixam de visar uma contranormatividade. Se quanto a isso

    se reage com a crtica, ento sua racionalidade se deixa fundamentar com a coao no coagida

    do melhor argumento no conflito religioso-cultural. Tal conflito posto conjuntamente com a

    pluralidade de simbolizaes. Mas com isso se entra no campo dos debates em torno de ideias

    polticas e sobre polticas de religio. A metafsica crtica se traslada para filosofia da religio,

    esta para a filosofia social, e para prxis da poltica. Em todos estes campos h que testar se

    alianas tticas como aquelas entre Ratzinger e Habermas podem se tornar comprovadas no

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    tempo tendo em vista as diferenas estratgicas nas coisas da razo. Este teste leva a uma

    disputa em torno da razo na religio que, no melhor dos casos, deve conduzir-se

    racionalmente, e que representa, ela mesma, uma parte da histria da formao da razo nolugar do seu outro.

    Disso, a cultura da religio s tem a ganhar. Pois a religio se deixa acompanhar por

    posicionamentos diferenciados. Uma solene piedade existencial algo diferente de uma crtica

    profeticamente suscitada daquilo que vai pelo mundo. Simultaneamente, podem-se encontrar

    combinaes surpreendentes no s no debate entre Ratzinger e Habermas. Assim, por

    exemplo, a certificao existencial baseada numa teologia da criao pode reverter em

    programas ticos de salvamento do mundo nos termos de um ativismo ecolgico. De modoinverso, uma igreja da liberdade pode deixar a f na justificaoemudecer na direo de um

    pensamento de cotas de xito a partir de uma economia planejada. Tais posicionamentos e

    combinaes desafiam o uso do juzo racional. Ele pode deixar-se dirigir pelo seguinte critrio:

    em que medida esto a subjacentes os motivos da liberdade e da completude, que, atuando em

    direo contrria, pressionam integrao atravs da traduo?Com isso torna-se inevitvel

    iluminar tambm os aspectos excludos de determinados tipos, seus pontos cegos, por assim

    dizer. Todo e qualquer posicionamento que decorre da liberdade do prprio querer exclui uma

    multiplicidade de outras possibilidades combinatrias. A razo nas coisas da religio pode

    sondar em que medida estas possibilidades se introduzem, como partes de um todo

    inapreensvel, naquilo que lhe prprio e isto seja no paradoxo de que a partir do prprio

    impulso de liberdade sempre se quer posies unilaterais, das quais, todavia, faz parte o saber

    de no serem, elas mesmas, o todo. Isto tambm vale para um arcabouo categorial filosfico-

    religioso para a descrio da religioe da razo. E, no obstante, tal arcabouo indispensvel

    para o projeto da traduo de religio e razo. Isso porque ele possibilita faculdade de julgar

    proceder racionalmente em questes da religio tambm ali onde a religio, na plena

    segmentao de seu aparecer cultural, deixa que se torne questionvel se ela razo ou , antes,

    seu oposto. Sem razo, e na verdade sem razo autnoma, essa questo, central para uma

    comunicao alm-fronteirasque opera de modo hermeneuticamente tradutor, no se deixar

    nem mesmo colocar.