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Universidade Federal Fluminense UFF Instituto de Ciências Humanas e Filosofia ICHF Programa de Pós-Graduação em História PPGH-UFF Dissertação de Mestrado: Julio Florencio se torna Cortázar: o peronismo visto através da literatura, 1946-1956. Por Marco Antonio Serafim de Carvalho Orientador: Prof. Dr. Norberto Osvaldo Ferreras Niterói, Fevereiro de 2014.

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Universidade Federal Fluminense UFF Instituto de Cincias Humanas e Filosofia ICHF Programa de Ps-Graduao em Histria PPGH-UFF Dissertao de Mestrado: Julio Florencio se torna Cortzar: o peronismo visto atravs da literatura, 1946-1956. Por Marco Antonio Serafim de Carvalho Orientador: Prof. Dr. Norberto Osvaldo Ferreras Niteri, Fevereiro de 2014. Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat C331 Carvalho, MAS. Julio Florencio se torna Cortzar: o peronismo visto atravs da literatura, 1946-1956 / MAS Carvalho. 2014. 98 f. Orientador: Norberto Osvaldo Ferreras. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Histria, 2014. Bibliografia: f. 93-98. 1. Histria. 2. Cultura. 3. Literatura argentina. 4. Peronismo.I. Ferreras, Norberto Osvaldo. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo.

CDD 982.062

1 ndice Apresentao_________________________________________________ 03 Captulo 1 Esclarecimentos Terico-Metodolgicos_______________ 10 1.1 Sobre Histria e Histria Cultural____________________________ 12 1.2 O Novo Historicismo: possibilidades entre Histria e Literatura_____ 14 1.3 Sobre Representaes______________________________________ 23 Captulo 2 A construo do peronismo __________________________ 25 2.1 Juan Manuel de Rosas, peronista? ____________________________25 2.2 O Peronismo _____________________________________________ 28 2.3 Os anos 1940 na Argentina: a ascenso de Pern _________________ 33 2.4 O 17 de Outubro: monstruosidade ou lealdade? _________________36 2.5 As representaes em torno do peronismo _______________________40 Captulo 3 Julio Florencio, Julio Cortzar ________________________43 3.1 De Bruxelas a Mendoza: Julio Cortzar entre 1914 e 1945 ___________43 3.1.1 Cortzar em Mendoza, 1944-5: Universidade tomada ______ 46 3.2 Julio Cortzar e o Peronismo: Bestiario e El Examen _______________ 51 3.2.1 Bestiario _________________________________________________51 3.2.2 El Examen_______________________________________________ 68 Captulo 4 Concluses a partir de La banda, de Final del J uego, 1956 __ 83 Bibliografia ____________________________________________________ 93 2 Agradecimentos Noestivesozinho:aquiseexpressamminhagratidoecarinhoaosquefizerampartedeste processoconflituosoecheiodecontradieschamadocursodemestrado,entreosprimeirosmesesde 2012 e agora, fevereiro de 2014. Quero agradecer minha me, Iza Serafim, por no ter poupado esforos pormeusestudos.Temoscaminhadojuntoshtrintaanoseessepontodacaminhadatambmmrito dela. Agradeo Marcela Skaba, grande companheira, por ter sido nada convencional: acreditou quando ningum acreditava e esteve ao meu lado apesar de qualquer coisa, ou apesar de todo o resto: no faltou amor. Menciono tambm minhas irms, Rose e Silvia, pela presena, cuidado e invariavelmente, falta de silncio. Menciono tambm os Carvalho do Paran, tia Rosa e primos e demais tias e tios, e os Dondaque vieram do Friuli no incio do sc. XX: sem vocs no haveria algum aqui escrevendo estas linhas. Agradeo aos mestres quetive, com os quais aprendi sobreo ofcio de historiador tanto quanto sobre a vida, pessoas que tomaram parte em minha formao. O principal nome o de Norberto Osvaldo Ferreras,professor,orientadoreamigoquevemmeajudandoadesenvolvermelhorasideias,leiturase textos desde 2010, com entusiasmo, crticas e apoio. De Epistemologia da Histria a esta Dissertao, fica impressoaquioquantoagradeoaelepornossaparceriaepelotantoqueaprendicomesteprofessor argentino/brasileiro.Valeu,Norberto!AprofessoraGiselleVenanciopossibilitouqueaparteterica deste trabalho existisse da maneira como aqui se apresenta, agradeo pelas leituras estimuladas, do Novo Historicismo aRoger Chartier. ProfessoraCludiaBeltrodaRosa:nunca esquecereido quantobuscou soluesparaminhasituaocomplicadanagraduaonostemposdeUNIRIO.Obrigado,Professor Sebastio Jos Nacif, diretor do Colgio Itapuca, que no hesitou em me conceder bolsa de estudos entre 1998e2002.Eaindamedeuumdosmelhoresempregosquepudeter:trabalharemumaBiblioteca. ProfessoresMarioSchmidteCarlosMagno:irreverentesecontraditriosemsuasaulasnoItapuca,me influenciaram na escolha pela qual briguei para ter hoje na minha vida, a Histria. Agradeo amizade sincera de Augusto Csar, alvinegro e grande amigo, desde 2008. Agradeo ao ABUJA, emenciono os amigos Bruno Thomaz eRafaelGonalves,frentedeumgrupo deamigos queme acolheu com grande camaradagem, entre discusses historiogrficas, partidas de futebol, cerveja confraria, Amrica Latina e boas risadas. Avante, Abuja!AgradeoenormementeCoordenaodeAperfeioamentodePessoaldeNvelSuperior,a CAPES,pelaconcessodebolsa,desde2013.Foiessabolsaquepermitiuqueessetrabalhofosse empreendido,atravsdacompradelivrosedemaisitensnecessriossobrevivnciadeumps-graduando. Atravs dessa agncia, o governo do meu pas permitiu que essa pesquisa fosseconcretizada. Agradeo imensamente Universidade Federal Fluminense, a UFF, minha segunda casa de uns anos pra c:meuagradecimentoseestendeaosfuncionriosdeserviosgerais,seguranas,aosfuncionriosda SecretariaeCoordenaodoPPGH,aosfuncionriosdasCopiadoras,tantoosdaxeroxdoFalcioni quanto os da xerox do Marcelo. Obrigado s coordenadoras do PPGH, pela compreenso e pacincia. Inmemorian,agradeoaJulioCortzar,quefoitambmparamimumgrandeprofessornesse perodo; enormssimo Cronpio e escritor latino-americano que possibilitou este trabalho. Obrigado desde o emprego chatssimo com autocad do qual me salvava com seusCronpios Famas e Esperanzas, seor Largzar. Estud-lo uma forma de dizer: no estamos sozinhos por aqui. H toda uma Amrica Latina almdoBrasilequecontm,inclusive,atodosnsaqui.Salve,Xang!SalvenuestraAmricaylos nuestros! Niteri,19 de fevereirode2014. EstetrabalhodedicadoaAntonioJosdeCarvalho,quesempremetrazia livros e revistas. 3 Apresentao Whatistheflawinjustrunningaway?/Runningaway fixeseverything!/HowcanI?Oh,whyshouldIstay?/ Justtoviewthetriumphofdisintegration/Victoriesof devastation? Se nos perguntamos nesse ponto exato do sculo XXI, 2014, sobre quem Julio Cortzar(anoemquesecompletamcemanosdeseunascimento),nofaltaro respostasqueapontempara:Rayuela,(noBrasil,Ojogodaamarelinha)seumais clebrelivro,publicadoem1963equefezpartedochamadoboomdaliteratura latino-americana1. Em Rayuela, o autor delega ao leitor a conduo da narrativa, como selhepropusessedeumjogojqueaestruturanarrativadesseromance completamente fragmentada, como um jogo estrutural onde no se repetea linearidade subjacente leitura de um romance convencional, uma incoerncia proposital em que o leitor escolhe por quaiscaptulos seguir; outra referncia possvel ofilmeBlow-Up, de 1966, dirigido pelo diretor italiano Michelangelo Antonioni, cujo roteiro assinado pelo prprio Antonioni e por Tonino Guerra, roteirista italiano baseado no conto Las babasdeldiablo,dolivroLasarmassecretas,publicadopelaeditoraargentina Sudamericana em 1959.Contudo, essas no so, de modo algum, respostas satisfatrias.O que se entende aolerottulodesteestudo?QuemJulioFlorencio?EquemJulioCortzar?A concepo e a execuodesse trabalho podem ser entendidascomo umapossibilidade, entrevrias,derespostaaessapergunta.Podemosdeixarexplicadodesdejqueo objetivoderesponderaessaperguntapartiudahistoriografiaeprocurousedistanciarde soarcomoumabiografiapautadaemumaperspectival'hommeetl'oeuvreeprocurou construir,dopontodevistahistoriogrfico,avisodemundodeumsujeito,viso bastanteproblemticaepovoadaporcontradies:atravsdaperseguiodeuma trajetriaindividuallocalizadabuscou-secompreendercomoumfenmenopolticoe social, o peronismo,foi lido. Esta pesquisa se concentra no estudo de textos publicados enopublicadosdoescritorargentinoJulioCortzarentreosanosde1946e1955, assim como textos crticos, artigos, ensaios e anlise da correspondncia do escritor.

1Umexpressivofenmenocultural,queabrangeocrescimentoeredimensionamentodomercado editorial e a renovao esttica apresentada pelas obras envolvidas, entre as quais figura Rayuela. Sobre o fenmeno, cf. HARSS, Luis. Los Nuestros. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 1978. 4 Asociedadeargentinaqueapareceaquiaparecerecortadaemtemporalidadee espaodefinidos:osanosemqueestevenapresidnciadaNaoArgentinaogeneral Juan Domingo Pern, com cujo sobrenome se nomeou um fenmeno poltico e social.O peronismo,enquantoidentidadepolticaesocial,apareceem1945,emborajfosse construdo desde ogolpe de Estado ocorrido em4 de junho de 1943, empreendido por uma faco interna do Exrcito dentro da qual figura Pern. O militar comeou a ganhar espaonocenriopolticoargentinofrentedoDepartamentoNacionaldeTrabalho, quelogoseriaelevadocategoriadeSecretariaeapartirdaPerncresceriaem importncia e influncia, como veremos adiante.Entender o nascimento do peronismo crucial para entender o Julio Cortzar do perodo e queaqui nottulo deste trabalho chamamos Julio Florencio, utilizando seu nomedomeio,indicandocomissoaintenodematiz-lo,realizandoumabuscapor umsujeitoqueconstruaasimesmoemmeioprpriaincompreensoemrelaoao que ocorria na esfera scio-poltica em seu pas naqueles anos. Por no compreender e por no sentir-se vontade em tomar parte nas fileiras do antiperonismo liberal de seu grupodereferncia(osintelectuaisemtornodarevistaSur2,dirigidapelaescritora argentinaVictoriaOcampo),preferedeixaropas,antesmesmodaseleies presidenciaisrealizadasemnovembrode1951,dasquaissaivencedor,paramaisum mandato, Juan Domingo Pern.CortzarentoembarcaparaaFrana,paraondevaiapsseraprovadopara assumirumabolsadeestudosoferecidapelogovernofrancs.Umavezinstaladona Europa, Cortzar se mantm trabalhando em um depsito de livros, brevemente atuando como locutor em uma rdio francesa que transmitia programas em espanhol e realizando trabalhosdetraduocontratadospelaUNESCO(UnitedNationsEducational, ScientificandCulturalOrganization),cujasedeficaemParis,cidadenaqualmorou com Aurora Bernrdez, tradutora argentina que conhecera em 1948, em Buenos Aires, e com quem se casa em agosto de 1953.NaFrana,ondedesenvolveriaamaiorpartedasuacarreiraliterria, Cortzaresteveemmaiorcontatocomasagitaespolticas,comoastensesentre argelinos e franceses pela independncia da Arglia e as repercusses do Maio de 1968;

2 A Revista Sur circulou entre 1931 e 1992. Foi fundada por Victoria Ocampo e contou com colaboraes dediversosescritoresargentinos,comoJorgeLuisBorges,AdolfoBioyCasares,SilvinaOcampo, Leopoldo Marechal, Eduardo Mallea, entre outros. 5 aolongodosanos1960,apsvisitarCubaetomarconhecimentosobreosefeitosda Revoluo Cubana no pas, Cortzar tornaria mais acentuada sua viso sobre a poltica e isso ficaria ntido em seus trabalhos publicados nos anos 1970, como o caso de Libro deManuel(publicadoem1973pelaEditorialSudamericana).Nele,apresentaum experimentalismoestticonaconstruodotexto(recorrendoacolagens,inseresde artigosjornalsticos,grficos,poemas,maisumavezemfavordadesconstruoda linearidade),eemsuanarrativa,discorresobreumgrupodeguerrilheiroslatino-americanos instalados em Paris (um grupo chamado La Joda), com planos de sequestrar um diplomata. A ideia central trazida consistia em mostrar que aquelas notas recortadas dosjornaiseseuscomentriosseriamlidosumdia,nofuturo,porManuel(entoum beb) sobre o que acontecia naqueles seus anos iniciais de vida.Podemos tambm destacar nesse perodo seu entusiasmo pela Unidad Popular e pelaeleiodeSalvadorAllende.Posteriormenteseenvolvecomaresistnciachilena aps o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, empreendido pelas foras armadas chilenaseencabeadopelogeneralAugustoPinochet.Nodecorrerdadcadade1970 Cortzarconsolidaseuengajamentopolticoincorporando-se,juntoaoutros intelectuais,ssessesdoTribunalRussellIInaItliaenaBlgica(posteriormente tambmconhecidoporTribunaldelosPueblos),comoobjetivodeinvestigare denunciarosabusosaosdireitoshumanoscometidospelosregimesautoritriosna AmericaLatina.CortzarseaproximadaUnidadePopularnoChileedogovernode SalvadorAllende;seenvolvecomaResistnciaChilenaapsogolpede11de setembro de 1973, que colocou o general Augusto Pinochet no poder.Outrolivroquedestacademaneiraaindamaisacentuadasuaadesoaum projetopolticoNicaraguatanviolentamentedulce,publicadoem1983eque compreendetextossobresuasvisitasNicarguaeseuencantopelascausasda RevoluoSandinista.Suaexperinciadeconvivnciaentreosnicasculminariamno livro, abundante de impresses sobre o cotidiano nicaraguense to logo da derrubada da ditadura de Anastasio Somoza Debayle3 pelas foras daFrente Sandinista de Liberacin Nacional (FSLN), em 1979. O livro composto por textos escritos entre 1976 e 1983. PalavrasdeJulio,ementrevistaaojornalistaErnestoGonzlezBermejoem 1977, sobre a confluncia entre a atividade poltica e a literria:

3 Um dos filhos do ditador Anastasio Somoza Garca, que governou o pas no perodo entre1936 e 1956. Somoza Debayle foi presidente da Nicargua no perodo 1967-1972 e 1974-1979. 6 (...)MesmoquandofaoliteraturadecontedopolticocomoOLivrode Manuel, por exemplo , fao literatura. O que eu simplesmente fao colocar oveculoliterrio,nodireiaservio,masemumadireoquepossaser politicamentetil.Parece-mequeesteocasodoLivrodeManuel.4 (BERMEJO, 2002, p. 106) Nestes livros, a poltica no paira como background, mas como motor narrativo, comorazoprimeira,emdetrimentodaexcessivapreocupaoestticaqueorientava Cortzar em seus primeiros trabalhos.EssebrevehistricosobreCortzarservepradestacarqueabuscaaqui empreendida teve como objetivo resgatar escritos diversos para entender no o Cortzar clebreeengajadopoliticamentedesseperodo,masexaminaraexperinciahumana envolvidanatrajetriadeumhomemcomum,quehaviatrabalhadocomoprofessor secundaristaemcidadesafastadasdacapital,naprovnciadeBuenosAires,comoSan CarlosdeBolvareChivilcoy(entreosanosde1937e1944);comodocente universitrio na Universidad Nacional de Cuyo (UNCU), na cidade de Mendoza (entre 1944e1945)eretornandocapitalcomogerentedaCmaraArgentinadelLibro (exerce o cargo entre 1946 e 1949) e tradutor pblico de francs e ingls, atividade cuja flexibilidadepermiteaJuliodedicar-sesatividadesdeescritaaolongodosanos subsequentes.Diz o prprio Cortzar, em entrevista dada a Toms Eloy Martnez, sobre o perodo:De1946a1951,vidaportenha,solitriaeindependente;convencidodeser umsolteiroirredutvel,amigodemuitopoucagente,melmano,leitorem tempointegral,apaixonadoporcinema,burguesinhocegoatudoquepassava mais alm da esfera do esttico. Tradutor pblico nacional. Grande ofcio para umavidacomoaminhanessemomento,egoistamentesolitriae independente (DE SOLA, 1968, p. 10) 5 Aescolhaporesteautorsejustificapelapercepodequeseusescritosno perodorecortado,1946-1956,apesardecarregadosderepresentaessobrea sociedade, poltica e cultura daquele momento, esto muito distantes de qualquer tipo de compromissopoltico,pormapresentandoumposicionamentocomplexoecheiode

4 BERMEJO, Ernesto Gonzlez. Conversas com Cortzar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 106. 5TrechodeumacartadeJulioenviadaGracieladeSola,datadade4denovembrode1963,in:DE SOLA, Graciela. Julio Cortzar y el hombrenuevo. Buenos Aires: Sudamericana, 1968, p. 10. 7 nuancesemrelaoaoperonismo.Seriamuitoempobrecedorreduziraposiode Cortzarnestesescritossomenteenquantoantiperonista.Otermonodcontade abarcarafaltadelinearidadeeaincoernciadealgumasdasescolhasfeitaspor Cortzar.Eoprpriotermoantiperonismo,demodogeral,nopodeserencarado comestabilidadeepreciso,jqueoantiperonismoreuniu,inicialmente,correntes contraditriasentresicomoSocialistas,Comunistas,conservadoresdoPartido Demcrata Nacional e a Unin Cvica Radical (UCR). Este ltimofoi um partido criado em 1891 e que chegara ao governo pela primeira vez em 1916, com a vitria de Hiplito Yrigoyen.Nesteanohaviamsidorealizadasasprimeiraseleiespresidenciaiscom voto universal, secreto e obrigatrio, de acordo com a lei eleitoral sancionada em 1912, durante o governo do presidente Roque Sanz Pea (1910-1914). Portanto,entenderaposiodeCortzardiantedoqueaconteciaemseupas passoupeloexamedaquiloquefoiescritoporeletantoquantoporaquiloquese escreveu sobre ele: nesse caso encontrei Cortzar figurando como objeto em anlises de crticosliterrioscomoBeatrizSarlo,JaimeAlazraki,AndrsAvellaneda,Sal Yurkievich,SalSosnowski,MarioGoloboff,RicardoPiglia,CarlosGamerro,David Vias, etc.Sobre o que Cortzar havia escrito, algumas consideraes devem ser feitas. At 1946, sua produo literria se resumia a alguns contos que escrevera entre 1937 e 1945 equeseriamreunidospeloprprioJulioemumvolumechamadoLaotraorilla,mas quesseriapublicadocinquentaanosdepois,em1995.Algunsdessescontosforam publicadosemrevistasdeChivilcoy,MendozaeBuenosAires.Haviapublicadoum livrodepoemas:Presencia,publicadoem1938porumapequenagrfica-editora chamada El Biblifilo (o mercado editorialargentino conheceriagrandeexpanso aps 1939,comoveremosaolongodotrabalho),emtiragemde250exemplareseassinado sob o pseudnimo Julio Denis. Em 1946, publica o conto Casa Tomada em uma edio da revista literria Los Anales de Buenos Aires, cujo diretor era Jorge Luis Borges; com efeito, Borges no foi quem primeiro publicou Cortzar, mas certo que publicar um conto em uma revista da capitalcomaaprovaodeBorges(eilustraesdesuairm,NorahBorges)j comeava a fazer circular, ainda que timidamente, o nome de Julio Cortzar pelo meio literrio.Nomesmoano,tempublicadoumestudoacadmico,Laurnagriegaenla poesadeJohnKeats,pelaRevistadeEstudiosClasicosdaUNCU.Em1947,o 8 contoBestiariosaiporLosAnalesdeBuenosAires,revistapelaqualtambmsai,no mesmo ano, um poema dramtico em cinco atos, Los Reyes. Entre 1948 e 1953 colabora regularmente com as revistas Sur, Realidad e Cabalgata, de Buenos Aires.Em1949,publicaemlivroapeaLosreyes.Nestemesmoanoescreveum romance,Divertimento.Em1950,escreveoutroromance:ElExamen.Estesdois ltimos romances s seriam publicados aps a morte de Cortzar, respectivamente, em 1988e1986.Em1951,tempublicadoporumagrandeeditoraolivroBestiario6,com oitocontos,equesaipelaSudamericana.BestiariorepresentaaentradadeJulio, efetivamente, em um mercado editorial, diferentemente do que ocorrera comPresencia e Los Reyes, que foram editados muito mais para um crculo restrito e muito particular, de amigosprximos.Seporumladochamaatenoquefosseeditadodemaneiramais profissional,pelaSudamericana,poroutroladonotamosqueolivronorepercutiu muitoemtermosdevendasecirculao,comoinformaGloriaLopzLlovet,netade Antonio Llauss, fundador da Editora: (...) cujo hoje clebre Bestiario s vendeu em princpio duzentos exemplares, motivopeloqualficouempilhadonasprateleirasdodepsitoduranteonze anos (...) (LLOVET, p. 41, 2004) 7 Portanto,seescolhasforamfeitas,recortesforamfeitos.Estetrabalhocentra suasanlisesnoromanceElExamen(1950)emportugus,OExameFinal8eem algunscontosdoslivrosBestiario(1951)eFinaldelJuego(1956),porqueneles encontram-sealusesintensasArgentinadoprimeiroperonismo,ouseja,pode-se fazerumapanhadodavisodeJuliosobreofenmenopolticoesocialqueento emergiaeseconsolidavaequeprotagonizariadisputasereuniriasolidariedadesao longodasdcadasseguintesnasociedadeargentina,incluindoadcadaemquese produzestetrabalho.Busca-seaquimostrarairrupodoperonismonaescrita cortazariana. OCortzarquesemanifestaemElExamen,BestiarioeFinaldelJuegoreflete, poroutrolado,umprocessodeamadurecimentoqueenvolveuasexperinciasno magistrioecomopoderlocaldascidadesemqueesteve,asdisputaslocaiseos reflexosdapolticanacionalnaUniversidadeNacionaldeCuyo,olharesnostlgicos

6CORTZAR, Julio. Bestiario. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2013. 7LLOVET,GloriaLpez.Sudamericana:AntonioLpezLlauss,umeditorconlospiesenlatierra. Buenos Aires: Editorial Dunken, 2004. 8 CORTZAR, Julio. O Exame Final. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1996. 9 sobre a infncia e, para alm da influncia dos poetas e demais escritores vinculados ao romantismoingls(JohnKeats,porexemplo),aosimbolismofrancs(Charles Baudelaire,ArthurRimbaud,StphaneMallarm)mostramuitodainflunciade escritoresrio-platensescomoJorgeLuisBorges,FelisbertoHernndez,Horacio Quiroga, Macedonio Fernndez e Roberto Arlt, alm pela grande admirao pelo norte-americano Edgar Allan Poe. O livro Final del Juegosai pela Ed. Los Presentes, do Mxico, em 1956.Desse livroserlevadoemconsideraoocontoLaBanda,contoquetrazpossibilidadesde leituraqueodistanciam,emrelaovisocortazarianapresentenosdoislivros anteriores, em relao s mudanas postas em cena por conta do peronismo.OlivrosainoanoseguinteautodenominadaRevoluoLibertadora,golpe de estado levado a cabo em entre junho e setembro de 1955,que incluiu um bombardeio sobreaPlazadeMayoquevitimoumaisde300pessoas.Mesmoexiladoecomo peronismoproscritonopas,Pernmanteriasuainfluncianocenriopolticoe regressariaaopasapsaseleiesdemarode1973,vencidasporHctorCmpora, queconvocanovaseleiesemseguida.AssimcomoHiplitoYrigoyen,enquanto viveu, Pern no perdeu eleies: vence o pleito com grande margem de votos sobre o candidato derrotado, Ricardo Balbn, da UCR (Balbn fora tambm derrotado por Pern nas eleies presidenciais de 1951). Seu terceiro mandato foi cumprido entre outubro de 1973 e 1 de julho de 1974, quando falece vitimado por um ataque cardaco. Paraqueseexpliqueottulodotrabalho,precisodestacarqueJuliooptou, inicialmente,porassinarseusescritoscomoJulioF.oucomopseudnimoJulio Denis; o prprio processo de transio interior at que assinasse como Julio Cortzar ocorreaolongodesuasexperinciascomadocncia,comaescrita,comasrelaes que estabelece nos variados crculos de convivncia; por isso, ao ser mencionado Julio Florencionottulonosebuscasimplesmenteporestabelecerumadivisorgidaem suatrajetriaapartirdestecritrio,odomomentoemquemudasuaassinatura,mas busca-se dar nfase em um perodo de sua trajetria que comea, ento, a se afirmar em suasposiesdiantedasociedadeediantedeseusobjetivosenquantoescritor.Atento para a ressalva de que chamando-o Julio Florencio, o fao para evocar as experincias de um sujeito que no figurava dentro de um cnone literrio, contrapondo-o, com o uso deFlorencio,umafuno-autorpresentesobonomeJulioCortzar automaticamente associado Rayuela, ao boom latino-americano, a Blow-Up, etc.10 Captulo 1 Esclarecimentos Terico-Metodolgicos Logicamenteque,quandofalamosderecortes,tratamosdeumprocedimento metodolgico ao qual recorre o historiador para proceder a uma investigao; portanto, recortararealidade,adespeitodaarbitrariedadequeessaaopossater,indicamuito mais um modus operandi epistemolgico do que um instantneo tomadode uma poca dada.Ouseja,ajustaroenfoqueenvolvefazerescolhasedelimitaes;seadmitimos queoofciodohistoriador,demodogeral,marcadopelainvestigaosobrea atividadehumanaatravsdotempo,dadurao,temosqueentendertambmqueo passado no uma entidade monoltica e constante; o prprio fazer historiogrfico se apresentacomoumaformaderepresentao9,algoquemediaumaausnciaqueno podeserrecuperadatalcomoexistiuoriginalmente.Masfragmentosdarealidade podemsersondadoseversespodemserconstrudas.Sendoassim,devemosterem mente que o veculo dominante nesse trnsito de impresses, verificaes e indcios de realidadesvividassed,crucialmente,pormeiodotexto,dapalavraescrita.atravs da palavra escrita que buscamos alcanar o vivido, construmos relatos, buscamos dar a ver,servindo-nosdosrastros,dashistriasverdadeiras,talcomonoslembraCarlo Ginzburg10; colocadas tais premissas, cabe perguntar: o ofcio historiogrfico, enquanto narrativa, se encontraria ento em posio semelhante do texto de fico?Podemos nos questionar sobre se tudo aquilo que lemos em uma obra de fico consiste, obrigatoriamente, em um amontoado de mentiras mais ou menos verossmeis oquevariariadeacordocomoestilo,poca,autor,etc.Quandonosdeparamoscom umanarrativadefico(nocasoparticulardesteestudo,otextoliterrioemprosa) realizamosumaoperaodesuspensodadescrena(expressoutilizadapela primeira vez por S. T. Coleridge, em 1817, em Biographia Literaria11), que representa

9 Sobre o conceito de representao falaremos dele no primeiro captulo deste trabalho, tendo em vista a contribuio terica do historiador francs Roger Chartier. 10GINZBURG,Carlo.Ofioeosrastros:verdadeiro,falso,fictcio.SoPaulo:CompanhiadasLetras, 2007, Introduo (pp. 7-14). 11SamuelTaylorColeridge(1772-1834),crticoliterrioepoetainglsligadoaoromantismoingls. BiographiaLiterariafoiacessadoapartirdolink: http://www.classicistranieri.com/coleridge/6/0/8/6081/6081-h/6081-h.htm, acessado em janeiro de 2014. 11 um acordo entre nosso juzo de leitura e aquilo que narrado, resultando na aceitao, por parte do leitor, daquele mundo particular encerrado pela narrativa trazida pelo livro. Como nos explica Umberto Eco: aceitamos o acordo ficcional efingimos que o que narrado de fato aconteceu 12. Poroutrolado,tratando-sedanarraohistrica,devemosapontaralgumas distinesemrelaonarrativaficcional:emboraemambososcasossetratede modalidadesnarrativas,nahistoriografiaexistemorientaesdiferentesdasque norteiam a produo de textos de fico: trabalha-se com um estatuto de veracidade. Se porumladopodemosconsiderar,grossomodo,ambostiposdenarrativasenquanto representaesdarealidade,aespecificidadedanarrativahistricaresideemsua pretensodeverdade,emprocederaumainvestigaoquebusqueeapresenteprovas, ou seja, existe um mtodo envolvido na produo historiogrfica que o que sustenta a baseepistemolgicapresentenaquiloquechamamosofciodohistoriador.Quando falamos sobre provas, temos em vista que elas resultamda maneira como cotejamos as fontes que temos em mos; cientes de que os documentos envolvidos em uma pesquisa no so autossuficientes em sua significao e compreenso, cabe ao historiador cercar seuobjetodeestudoemquestionamentoseolharesvariados,semesquecerdodilogo compesquisasepesquisadoresqueoantecederam,paraqueconstruasuaprpria narrativa. E o ofcio se completa no reconhecimento dos pares e do pblico, em meio a umarededepublicaesespecficas,associaes,ncleosdepesquisa,gruposde trabalho, enfim, um campo que no cessa em se movimentar interna e externamente. E convm no esquecermos sobre um dos motores desse movimento: somos todos leitores antes, durante e depois de qualquer de nossos escritos.

12 ECO, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Fico. So Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 81. Obs.: grifo mantido do original. 12 1.1 Sobre Histria e Cultura: a Histria Cultural Apertando um pouco mais o enfoque, podemos instalar a problemtica do estudo aqui apresentado como sendo de grande afinidade com a Histria Cultural. Essa filiao aqui posicionada no implica em priorizar unicamente a dimenso cultural da realidade argentinaestudada,preterindodaanliseasdimensespoltica,socialoueconmica. Nosetratadeumabuscamonolticapelacultura,queumconceitoextremamente polissmicoedeusomuitovariado,umtermoquetemsuaprpriahistoricidade.Por essemotivo,porhaverumpanoramatodiversoquandofalamosemcultura,sefaz necessriotraarondeapesquisavaisesituarnocampohistoriogrfico,paramelhor compreensododiscursoedosreferenciaisterico-metodolgicosapresentados. precisoafirmarqueosreferenciaisapresentadospossibilitaramqueoobjetoestudado (Julio Cortzar e seus escritos durante os primeiros momentos do peronismo no poder, naArgentinadosanos1940e1950)sedesenvolvesse,fosseencaradoporuma variedade de ngulos, problematizado e tratado.Uso o verbo encarar porque a teoria cumpriu aqui a funo de construir e reconstruir o olhar sobre o objeto; a partir de quais perspectivas,apartirdequaisintenes,dequeposicionamentos?Possodizerque muitasdestasquestesforamalimentadaspelaslentesdaHistriaCultural,campo historiogrficoemqueesseestudobuscaseinserirporcontadeseuinteressenas representaes. Detodomodo,faz-searessalvadequeessatentativadesituar historiograficamenteoestudonobuscateceramarrasesquemticasmuitorgidas,e sim expor com maior clareza os dilogos que esta pesquisa busca estabelecer dentro do campodaHistria.AprpriahistriadaHistriaCulturalexigequefalemosde movimentos,guinadasemudanasemseuinterior,jqueumdomniodaHistria sempreemdilogocomoutrosdomniose,nocasodesteestudo,comaHistria Poltica, a Histria do Imaginrio. Seexaminarmosalgumasdasposiesencontradasnasrepresentaessobrea sociedadeargentinanoslivrosdeCortzaraquiestudados,podemosperceberjuzos, valoraessobreatoressociais,sobreespaofsicodeterminado(acidadedeBuenos Aires)esobredisputassimblicasporesteespao;osvaloresveiculadosnas representaesliterriasnoaparecemcomoresultadounvocodaapreciao 13 individual. H uma noo de pertencimento social, de classe, por trs de uma valorao como a que associa um elemento popular a um monstro13, no contexto da Argentina dos anos 1940-50; portanto, levar em considerao uma noo de classe social muito til paraaanlise.OhistoriadorEdwardPalmerThompson,porexemplo,ressignificaa noodeclassesocialepossibilitaaosdemaishistoriadoresdaculturapopulartomar porobjetoefontenoaquiloqueestivessenasuperfcie,comoinstituies, indivduosilustres,cnonesliterrios,masoquetivessesidosilenciado,esquecido, marginalizado,masaindaassimmaterializadoemdiscursos,panfletos,cartasoque contribuiu enormemente para que se redefinisse o prprio conceito de cultura quando falamos de Histria Cultural.Aqueestamosnosreferindo?Certamentequeosanos1960complexificarame enriqueceramessedebate;dopontodevistahistoriogrfico,osesquemaspropostos pelasmacroexplicaesdarealidadecomeavamaruir,poissuastotalizaesjno serviam para dar conta de rearranjos polticos, econmicos, sociais e culturais no mundo posteriorIIGuerraMundial:achamadacrisedosparadigmasmarxistaeoda perspectivadaEscoladosAnnales14.AsegundageraodaEscoladosAnnales,que destacava a importncia das estruturas, da longa durao e defendia uma Histria Total encontravanohistoriadorFernandBraudelsuamaiorreferncia.Braudelpublicaem 1949suateseOMediterrneoeoMundoMediterrniconapocadeFelipeII15e assume efetivamente a direo dos Annales em 1956, ano em que falece Lucien Febvre; suaobraesuaposiooestabeleciamentocomonoapenasomaisimportante historiadorfrancs,mastambmomaispoderoso 16.Erajustamenteessahistria estruturaldefendidaporBraudelqueiasendodesencantada,inclusivepelos historiadores marxistas britnicos (como por exemplo o j citado E. P. Thompson) que entodedicaramseusestudosanlisedenovosobjetos,abrindocaminhopranovos rumos epistemolgicos ao longo da dcada de 1960.

13TalcomoocorrenocontoLaspuertasdelcielo,umdosquesoobjetodaanlisedestetrabalho.O conto faz parte do livro Bestiario (CORTZAR, 2013, pp. 99-117).14O nome Annales decorre da revista fundada por Bloch e Febvre enquanto professores da Universidade deEstrasburgo,em1929:AnnalesdHistoireconomiqueetSociale.MarcBlocheLucienFebvre, integrantesdaprimeirageraodehistoriadoresdessacorrente,opunham-seaoespritohistoricistade LeopoldVonRankeeseusseguidoreseaopositivismoobjetivistacalcadoamplamentenorigor documental, caso dos historiadores metdicos (tambm tomados por positivistas) Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos.15 BRAUDEL, Fernand. O Mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Filipe II. So Paulo: Ed. Martins Fontes, 1984, 2v. 16BURKE,Peter.ARevoluoFrancesadaHistoriografia:aEscoladosAnnales(1929-1989).So Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 39. 14 Outropontoderenovaoemovimentoepistemolgicofoiachamadavirada antropolgicaocorrida nos anos 1970 e o aparecimento da Nova Histria Cultural, nos anos1980;oestruturalismodeLvi-Strauss(AntropologiaEstrutural,1958)fora influenteparaasegundageraodosAnnales,noinciodosanos1970aaproximao entreAntropologiaeHistriaajudouaredefinirmaisumavezosrumosdosestudos historiogrficos.Clifford Geertz, em A Interpretao das Culturas17 (1973) acrescenta ainda mais polissemiapresentenoconceitodeculturadistanciando-sedaproposiodo britnicoEdwardBurnettTylor(PrimitiveCulture:researchesintothedevelopmentof mythology,philosophy,religion,art,andcustom,1871),deculturaenquanto conhecimento, crena, arte, moral, lei e costume, propondo uma teoria interpretativa das culturas,quedeveriamserentendidasemsuapluralidadeecomotexto,emsua dramaticidadeparticulareemsuasdimensessimblicas;Geertzdeixavaclarosua prefernciapeloempricojnoprefciodolivroreferido:(...)essesensaiossomais estudosempricosdoqueindagaestericas,poissinto-mepoucovontadequando medistanciodasimediaesdavidasocial18.AcontribuiodeGeertzpodeser percebidaemsuagrandeinflunciaparaotrabalhodehistoriadoresculturaiscomo RobertDarnton(Ograndemassacredegatos,1984)que,porsuavez,temgrande influnciaparaacomposiodestetrabalhoehistoriadoresculturaisliterrioscomo Stephen Greenblatt, figura de proa na corrente conhecida por Novo Historicismo, outra destacadainflunciatericadestesestudosaquiapresentados.Pelaimportnciadessa correntetericaparaesteestudo,calcadonaanlisedeobrasliterrias,algumas observaes podem e devem ser feitas. 1.2O Novo Historicismo: possibilidades entre Histria e Literatura Este trabalho, que tem por objeto a anlise de obras literrias, recebeu sua maior influncia terica em um dos seminrios obrigatrios do currculo do curso de mestrado, um seminrio sobre intelectuais, prticas letradas e projetos editoriais, estudos inseridos

17 GEERTZ, Clifford. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. 18 Ibid., Prefcio, p. vii. 15 nombitodaHistriaCultural.AutilizaodoNovoHistoricismoenquanto perspectivatericapassapelaconcepodaobraliterriacomoumobjetoculturalque temsuaprpriahistoricidadeeque,dessamaneira,estligadasquestessociais, culturais,econmicasdapocaemquefoiproduzida.ummtododeanlisecrtica quebuscaentenderosobjetosculturaisemsuaressonncia,ouseja,entend-losde acordo com as foras culturais a que esto atrelados.OtermoNovoHistoricismo(quejcontacomcercadetrintaanos)remetea umaquebraemrelaoaovelhohistoricismo(aindaqueocontrapontoentre relativismoesingularidadesejaumaconsonnciaentreambascorrentes)noquediz respeitoideiadequealiteraturafigurasseenquantoreflexodeumahistria,esta entendidaemseusentidomaismonolticoenacionalpossvelhajavistoqueo historicismo, dentro da Historiografia, aparece, no sculo XIX, ligado ao romantismo e valorizao dos Estados nacionais pelo que tinham de mais particular.Sobre a escolha pelo termo novo historicismo: Algunsanosatrs,comaintenodesinalizarumafastamentodaanlise formaledescontextualizadaquedominouonewcriticismo,utilizeiotermo novo historicismo para descrever o interesse pelo engaste de objetos culturais nas contingncias dahistria, e o termo conseguiu certa aceitao. Mas, como amaioria dos rtulos, tambm este enganador. O novo historicismo, como o SacroImprioRomano,desmenteconstantementeseuprprionome19. (GREENBLATT, 1991, p. 245) Porm, delimitar conceitualmente o Novo Historicismo enquanto sistema terico tarefadaqualseeximematmesmodoisdeseusprincipaisprecursores,oacima referidoStephenGreenblatteCatherineGallagher,emAprticadoNovo Historicismo20.Osautoresbuscamesclarecer,naintroduodolivro,queoNovo Historicismoteriaoecletismometodolgicocomoprincipalorientao,nacontramo deumabuscapelaprpriaafirmaoenquantosistematerico,levandoadeduzirque GreenblatteGallagheradvogavammaisemcausadainterdisciplinaridadeesesituam muitomaisprximosdeumapolifoniabakhtinianadoquedeumarigidezdoutrinria, sistemtica,queconduzissehistoriadoresculturaisecrticosliterriosemsuas

19GREENBLATT,Stephen.ONovoHistoricismo:ressonnciaeencantamento.RevistaEstudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n.8, 1991, pp. 244-261. 20GALLAGHER,Catherine;GREENBLATT,Stephen.AprticadoNovoHistoricismo.SoPaulo: EDUSC, 2005. 16 pesquisas.Umeventoevidencia,naprtica,alinhadepensamentodeGallaghere Greenblatt,quejuntamentecomSvetlanaAlpersedemaispesquisadores,fundamem 1983operidicoRepresentations,queassinalaamaterialidadedoNovoHistoricismo enquantoperspectivaterico-metodolgica:adeclaraoeditorialnoforaescritae essa lacuna que fora conscientemente deixada ali. E essa era, sem dvida, uma tomada de posio marcante. Greenblatt e Gallagher elucidam este ponto: Atarefadecompreenderdepende,pois,nodaextraodeumconjunto abstratodeprincpio,emuitomenosdaaplicaodeummodeloterico,mas sim de um encontro com o singular, o especfico, o individual. Boapartedissoecoavademaneiravigorosaosimpulsosepercepesque animavamoperidicoRepresentations:ofascniopeloparticular,a curiosidadeampla,arecusadenormasestticasuniversaisearesistnciaa formularumprogramatericoabrangente.(GALLAGHER& GREENBLATT, 2005, p.17) Sobreafiliaotericanovohistoricista,estabrevementemapeadacomo sendoconstitudaemmaiorpartepelasinflunciasdateoriainterpretativadaculturae deCliffordGeertzesuadescriodensa;pelofoconaanlisedosdiscursose,em algumapartenoromantismoalemodosculoXVIII,cujorepresentantemais destacadoporGreenblattJohannGottfriedvonHerder,noquedizrespeitosideias destequantoaorelativismoculturaleafirmaodadiversidade;osautores reproduzem trecho de Herder que confirma essa consonncia: Afelicidadenodependedeumacoroadelouros,davisodeumrebanho bendito, de um carregamento de navio ou deum estandarte capturado, mas da alma que precisa disso, aspira a isso, alcana isso e nada mais deseja alcanar. Cadanaotemdentrodesimesmaseuprpriocentrodefelicidade... (HERDER apud GALLAGHER & GREENBLATT, 2005, p. 17) Deacordocomaperspectivanovohistoricista,aemergnciadeumaobrano revelaporsisseusignificadoesuacompreenso,sendosuaprpriaemergnciao ponto onde recai o foco de anlise, para que se compreenda sua aceitao no meio social emquefoipossibilitadaeproduzida,suareceptividade,suacrticaesuainserono mercado. 17 A literatura no entendida como arte pelo que tem de transcendental, de forma atemporal,maspelassuaobedincialeidagravidade,dinmicademercado,s pressesdeinstituies,dopoderemsuasdiversasinstncias,enfim,aomundo material. Enquanto historiadores da cultura, os novos historicistas, ao guardarem a ideia deculturacomotextoeaquipercebemosumresultadodaaproximaocoma antropologia de Geertz e os estudos culturais no campo da Histria (verificada nos anos 1970 e 1980) abrem possibilidades, porque a partir desse pressuposto podemos buscar indciosechavesdeentendimentoapartirdoexamedocorpodotexto,doparatexto editorial,doatodeeditorao,dopapeldoeditoredacirculaodoslivros,almda possibilidadedebuscar,naquiloquenoestescrito,naslacunas,oqueosautores estudados por ns no lograriam capturar por falta de distanciamento de si prprios e de sua poca (GALLAGHER & GREENBLATT, 2005,p.19).Essamesmaideiadeculturacomotextopermitequeseamplieoescopoeas possibilidades documentais, com por exemplo, no entendimento de textos no-literrios como objetos culturais que podem ser lidos e interpretados como tais. Esses textos no-literrios tm a justificativa em seu interesse e relevncia no fato de que no receberam tratamento esttico, convenes e figuras de linguagem e retrica prprias da escrita de fico e, no entanto, atuam como possibilidades de construo de um contexto em torno da obra literria examinada. Outro efeito que deve ser destacado pode ser entendido atravs do que os autores chamaram de mercadode aes literrio,onde cujas aes teriam seu valor fixado nadimensosimblica.Ora,seadmitimosaexistnciadoscnonesesuainfluncia, figurandocomoobjetosdegrandemagnitudenocampoliterrio,tambmdevemos admitirqueumsemnmerodeoutrasobras,porumasriedefatores,notiverama mesma colocao nesse mercado simblico fato que poderia nos levar a crer que se sua cotao nesse mercado simblico baixa; essa cotao poderia ser um indicativo da supostaqualidadeinferiordaobrae,portanto,ajustificativadequeestaobramenor esteja distante da obra de primeira grandeza o mesmo podendo ser aplicado a funo-autorassociadaobra:ognioeofracassadosedistinguemporumabismo.Ouseja, nohcomoentenderaemergnciadoscnonessemlevaremconsideraoa emergnciadetextosdeoutranaturezasimultaneamenteaotextoliterrio,a prpriarelaodestecomoutrasdamesmanatureza,masditasmenoresou seletivamente esquecidas pela crtica especializada, por instituies. A perspectiva novo 18 historicistabuscaentenderotextoliterrioemsuainteraocomumaredeamplade fatores,objetos,prticaseestruturaes,emumavisomuitomaisafavorda diversidade do que a que reduz a obra literriacomo produto exclusivo dagenialidade individual.Osautoresvinculadosaonovohistoricismofazematodotempoaressalva dequenopretendemsomentedesconstruirederrubarmonumentosliterriosmas, principalmente,examinaroprocessoatravsdoqualcertasobrasascendemaum Olimpoliterrioeoutrasorbitammargemdessemesmolugarsimblico,ounem isso, ficam fadadas ao silncio, ainda mais distantes da margem. Sendo assim, em termos de filiao historiogrfica, situamos os estudos do Novo Historicismoemdeterminadopontodahistriadaspossibilidadesapresentadaspela Histria Cultural, com sua origem decorrendo da virada antropolgica, particularmente pelascontribuiesdeCliffordGeertz(inspiraoparaoshistoriadoresculturaisdas geraes mais recentes, especialmente nos EUA, como veremos adiante), especialmente por sua teoria interpretativa da cultura, que difere, por exemplo, das oposies binrias doestruturalismodeClaudeLvi-Strauss,bastantevisitadoporhistoriadoresfranceses nasdcadasde1960e1970,comoJacquesLeGoffeEmmanuelLeRoyLadurie.A prprialeituraeconceituaodeculturaparaGeertzpodeservirparaquepossamos entender tamanha consonncia entre o Novo Historicismo e a antropologia geertziana: De qualquer forma, o conceito de cultura ao qual eu me atenho (...) denota um padrodesignificadostransmitidohistoricamente,incorporadoemsmbolos, um sistema de concepes herdadas expressas em formas simblicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relao vida(GEERTZ, 2008, p. 66) Geertzescreveuetnografiassobreacultura(ouculturas,emsuapluralidade) balinesa, destacando a interpretao das brigas de galo em Bali, apontando essa prtica enquantoumdramafilosfico,umfragmentoapartirdoqualpossvelentendere analisaraculturabalinesa.NoentendimentodeGeertz,asbrigasdegaloabordadas comoumesportenosomostradascomoumreflexodaculturadeBali,mascomo uma percepo dos balineses sobre a prpria experincia de ser balins. 19 Aliteraturaconsolida-seentoumobjetodeestudobastantevlidoparaa historiografia,tomando-seemcontaaanlisedodiscurso;noporqueodiscurso literrio,enquantorepresentaodarealidade,devaservircomouminstantneodo vivido,doreal,estabilizadoesuspensoemdiacronia;odiscursonoarealidade, embora seja de grande interesse pra esta pesquisa o que dito (e o que no dito, o que seevitadizer)sobrearealidadeemquefoiproduzidoequeajudaaproduzir.Deque maneira?Desada,atravsdoindivduoqueoconcebeu:odiscursonascee circulacarregadodevalores,limitadoemotivadopelaprpriaexperinciaindividual; sendooindivduoumsersocialporprincpio,assimportadoredifusordecultura simultaneamenteformadoretambmconformadoporela:asinterdies comportamentais,osbloqueios,asnormatizaeseacirculaodecdigossimblicos variadospodemserverificadosnodiscursoliterrioestandoamarcadasua possibilidade de contribuio como objeto e fonte para os estudos histricos.O tanto de indivduo e sociedade contidos no discurso literrio o que interessa essapesquisaparaquesejapossvelfazerproblematizaes:ascontradies,os questionamentos,osenfrentamentossimblicosemateriais.Paraisso,a contextualizaonodevebuscarsertotalizante,massebeneficiardomximode instnciasqueconseguirrelacionardialogicamente,comoporexemplo:levando-seem conta, numa anlise, as relaes guardadas entre os estremecimentos do clima poltico e asconsequnciasnoterrenodaculturaetambmocaminhoinverso:os estremecimentosculturaisqueressoaramnoterrenodopoltico;importamais estabelecerinterconexes,enxergarpontosdecontato,estaratentoparafazercomque falem os objetos de estudo, especialmente com relao s vozes presentes nos textos. justamenteaqueresideamaterialidadedotextotrabalhado,quandoointerpretamos criticamentedentrodascontextualizaespossveis,semdeixardeentenderqueoato daescrita,dapublicaoedarecepo(pontosemqueserealizaaexperinciada leitura,comoumtodo)soatospolticos,emquepesamideologiasentendendoque inclusive sua ausncia um ato poltico e relaes de poder, seja no que concerne aos embatesnointeriordocampoespecficodeondeseenunciaodiscurso,sejano questionamento, oposio ou legitimao do poder institucional. Seporumladotemosodiscursoliterriotomadoenquantorepresentaoda realidade(cuidandodeguardar,sim,seuestatutodeficcionalidade),podemosindagar quantoquiloque,dentrodasperspectivasjapresentadas,conferehistoricidade 20 literatura: qual o estatuto por trs dos escritos que utilizamos para produzir, com efeito, umacontextualizaodoliterrio?AinflunciadoNovoHistoricismosejustifica paraaconcepodestetrabalhoporqueapontaosestudosliterriosnadireoda Histria, que em sua textualidade, pode ser entendida de maneira plural; alm disso, esta correntetericaestimulaohistoriadoraseguirporumadireoemquesediluem determinadasfronteiras,talcomodizumautornova-iorquinovinculadoaoNovo Historicismo, Harold Aram Veeser: (...) o Novo Historicismo deu aos estudiosos novas oportunidades de cruzar os limites que separam histria, antropologia, arte, poltica, literatura e economia, Eleatacouadoutrinadano-interfernciaqueproibiaoshumanistasdese intrometerem em questes de poltica, poder, na verdade, em todas as questes que afetam a vida prtica das pessoas (...)(VEESER, 1989, p. ix)21 Tracemosoquepodemosenxergaremcomumcomaconstruoliterria:a Histria avana e se expande enquanto campo do conhecimento humano atravs de sua escrita,queamaterialidadediscursivadapesquisaempreendida.Nessecaso,o processodeescritatomaporbaseaconvencionalidade,queestabeleceelos comunicativoscomaquiloquejfoiescrito,grossomodo,eaquiloqueserumdia escrito: por mais original e revolucionrio que seja um texto historiogrfico, ele dialoga comantecessoresecoetneos,sejaparareafirm-losourefut-los,totalou parcialmente.Assim,aquestonarrativanosetornaumaquestomenornesse processo;emboradifiradaLiteraturaemsuascondiesdeexistnciaeproduo,a Histria , tambm, construo textual.Antesdeapanharograndetermoquediferenciaessescampos(Literaturae Histria), podemos lembrar, com o auxlio de Carlo Ginzburg, que se dedica a examinar os desdobramentos metodolgicos envolvidos na escrita da Histria22 a partir do exame de fontes de autores e temporalidades distintas que evidenciam um topos historiogrfico semelhante: uma conspirao judaica contra cristos quefracassa e resulta em suicdio em massa, transparecendo nos relatos a avidez judaica como efeito moral da narrativa, conclusivamente. Dessa maneira, Ginzburg atenta para as dificuldades provocadas pelos testemunhosepelaformacomquesocotejados;daperguntar-se:quantohde realidade,objetivamente,emumanarrativahistoriogrfica?Ora,pautaraquesto

21 VEESER, Harold Aram (Ed.). The New Historicism. New York: Routledge, 1989,Introduction. 22GINZBURG,Carlo.Ofioeosrastros:verdadeiro,falso,fictcio.SoPaulo:CompanhiadasLetras, 2007. p. 210-230. 21 puramentepelabuscadaobjetividadeparecedepoucavaliaparanortearapesquisa histrica.Poroutrolado,admitiroestatutodeveracidade,crtica,verificaoe processamentodefontescomqueoperaaHistriaeseuMtodoadmitirtratar-sede umacinciahumana,cujaconstruotextualerigormetodolgicofazempartedeseu estatutodecientificidade.Estaramosentodiantedeumimpasse?Aexcessiva preocupaocomaformaversusorigorquedevegarantiraintegridadedofundo,do contedo? As dicotomias, vistas enquanto categoria analtica, nos ajudam a operar sobre os processosqueexaminamos(eoestudocentradonaArgentinaperonistavistapela produoliterriadeumsujeitodeterminadotrazemumasriededicotomias,como servistomaisadiante),atravsdousodacomparao,daverificaoedadistino entre polos inconciliveis; porm, mais uma vez aqui se faz a ressalva de que a anlise quelevaemconsideraoadicotomiadevetom-lacomopontodeentradada discusso,introdutriadodebate,jamaisseuextrato,seufim;adicotomiapodeservir depontodepartidaparaoexamedeumarealidade,sempretendo-seemvistaa complexidadeenvolvidaemconstruirumtextosobredeterminadarealidade;setemos claro, como j foi dito, que a realidade inapreensvel em sua totalidade, temos tambm muitoclaroquenenhumtipodereducionismonosajudaaconstruiranlisessobrea sociedade,deacordocomaspreocupaesdenossadisciplina,aHistria.MarcBloch fazumasntesequesemostramuitoproveitosaparaacompreensodaquesto levantada pela relao entre o texto literrio e o texto historiogrfico: Docarterdahistriacomoconhecimentodoshomensdecorresuaposio especficaemrelaoaoproblemadaexpresso.Serumacincia?ouuma arte?(...)cadacinciatemsuaestticadelinguagem,quelheprpria.Os fatoshumanosso,poressncia,fenmenosmuitodelicados,entreosquais muitos escapam medida matemtica. Para bem traduzi-los, portanto para bem penetr-los (pois ser que secompreende algumavez perfeitamente o que no sesabedizer?),umagrandefinessedelinguagem,umacorcorretanotom verbal so necessrias. (...) o contraste , em suma, o mesmo que entre a tarefa dooperriofresadoreadoluthier:ambostrabalhamnomilmetro;maso fresadorusainstrumentosmecnicosdepreciso;oluthierguia-se,antesde tudopelasensibilidadedosouvidosedosdedos.Noseriabomnemqueo fresador se contentasse com o empirismo do luthier, nem que este pretendesse 22 imitar o fresador. Ser possvel negar que haja, como o tato das mos, um das palavras?(BLOCH, 2007, pp. 54-55). Trazemos Bloch questo como maneira de avanar para alm do embate entre oobjetivismopositivistacalcadonaexcessivaautoridadedocumentaleaconcepoda Histriaenquantoexpressoartstica,talcomonaposiodefendidaporBenedetto Croce no ensaio La storia ridotta sotto il concetto generale de arte [A histria reduzida aoconceitogeraldearte](1893) 23equeinfluenciariaasposiesdeHaydenWhite (Meta-Histria,1973)nadefesadequeanarrativahistricatemgrandeparcelade retricaedepoesiaemsuacomposio;observemosqueWhiteescrevededentrode um movimento conhecido por virada lingustica, criticando fortemente o cientificismo daHistriacujorepresentantemaisemblemticopodeservistoemLeopoldVon Ranke, durante o sculo XIX, e sua defesa do rigor metodolgico para que o historiador descrevesseosfatostaiscomoaconteceram(wieeseigentlichgewesen) 24,assim comoparaoshistoriadoresdaAntiguidade,casodeHerdotodeHalicarnassoe Tucdides,fazerver,tornarclaroofato,oacontecimento,deacordocomosentido daquilo que tomavam por enargeia, que vem de enarges, tangvel, claro 25. Hayden White e tambm Dominick LaCapra so de utilidade para a proposta destapesquisanoquetangessuaspropostasdequeabuscadesenfreadapela objetividadenodevenortearaescritahistoriogrfica;suapreocupaocomuma histria-narrativatambmencontraaquiboaacolhida,desdequeorigorcientficono devasersacrificadopelaconstruotextual,demodoque,paraestapesquisa,se acredita que o mtodo e o mtier do historiador se beneficiam de um cuidado estilstico, desdequeissonosignifiqueoaprisionamentodohistoriadoraamarrasdegneroe retrica, como se a linguagem importasse mais do que a problematizao levantada pela pesquisa. De todo modo, no se trata, aqui, de reduzir o trabalho do historiador a uma questotextual 26,jqueoquesepretendeaquinoumabuscadotextopelotexto emsimesmo,nocasodoexamedaliteratura,ousequertomaraproduo historiogrfica por meraatuao discursiva, semparaleloalgumcom a materialidadee com a realidade. E para que no se perca de vista: (...) os autores no escrevem livros:

23Cf.GINZBURG,Op.Cit,Captulo11UnusTesisoextermniodosjudeuseoprincpiode realidade, pp. 217-230) 24 Cf. BLOCH. Op. Cit., Captulo IV A anlise histrica, p. 125. 25 Cf. GINZBURG. Op. Cit., pp. 18-20. 26PEIXOTO,MariadoRosriodaCunha.SabereseSaboresouConversassobreHistriae Literatura. Histria e Perspectivas, Uberlndia (45): 15-33, jul./dez. 2011. p. 22. 23 no,elesescrevemtextosqueoutrostransformamemobjetosimpressos 27.Paraque fiquem mais ntidas as direes da busca aqui empreendida, preciso falar sobre o papel das representaes. 1.3 - Sobre Representaes O prprio conceito de representao, entendido dentro da proposta da Histria Culturaldeinvestigarasmaneiraspelasquaisarealidadesocialconstrudae textualizada,talcomoocolocaRogerChartier,fundamentalparaoestudodotexto literrio:Asrepresentaesdomundosocialassimconstrudas,emboraaspirem universalidadedeumdiagnsticofundadonarazo,sosempredeterminadas pelosinteressesdegrupoqueasforjam.Da,paracadacaso,onecessrio relacionamento dos discursos proferidos com a posio de quem os utiliza. As percepesdosocialnosodeformaalgumadiscursosneutros:produzem estratgiasepraticas(sociais,escolares,polticas)quetendemaimporuma autoridadecustadeoutros,porelasmenosprezados,alegitimarumprojeto reformadorouajustificar,paraosprpriosindivduos,assuasescolhase condutas.(...)Aslutasderepresentaestmtantaimportnciacomoaslutas econmicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impe, ou tenta impor, a sua concepo do mundo social, os valores que so os seus, e o seu domnio.(CHARTIER, pp. 16-17, 1988)28 Oconceitoderepresentao,ento,secorrelacionaemconsonnciacoma ideia de cultura apresentada pela historiadora gacha Sandra Pesavento:A cultura ainda uma forma de leitura e traduo da realidade que se mostra de forma simblica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos s palavras, scoisas,saeseaosatoressociaisapresentam-sedeformacifrada, portandojumsignificadoeumaapreciaovalorativa.Aculturauma

27CHARTIER,Roger.beiradafalsia:aHistriaentreincertezaseinquietude.PortoAlegre:Ed. UFRGS, 2002, p.71.28 CHARTIER, Roger. A Histria Cultural entre Prticas e Representaes. Algs (POR): Difel, 1988. 24 traduodomundoemsignificados,nooreflexodessarealidade (PESAVENTO, p. 46, 2006) 29 Quandotomamosumlivrodeficocomoobjetodeanlise,encontramosali formasnarrativasquesoconstrudastomandoporbasearealidade,aindaqueno signifiquemoucorrespondamprpriarealidadeosambientes,ospersonagens,suas interaes,asrelaescausais,osacontecimentos,osdesfechos.Oquetemosaliso entendimentos de realidade construdos pelos autores, no que contribuem para isso suas relaessociais,asimpressesquecadaumtemdopoder,dasinstituies,asvises construdassobreapoltica,sobreseuprpriopas,cidade,sobreapercepoquetm do mundo, em suma. So construes simblicas que atribuem sentido ao real.Existeumaformadecompreensodaliteraturaenquantocomosinnimode belasletras,dealtacultura;estaterminologiaestabeleceumadivisoentrealtae baixacultura,diferenciaoestaqueCarloGinzburgdesmontaaoreconstruiro imaginrioparticulardeummoleirofriulanodosculoXVI,DomenicoScandella,o Menocchio, a partir do estudo de seus depoimentos Inquisio. Ginzburg oferece ao leitorareconstruodaexperinciadeleituraedasociabilidadedeMenocchioque, quandoinquirido,apresentoudiantedeseusinquisidoresperspectivasecrenasque construiudemaneirasofisticada,conjugandoumatradiocamponesadaqualfazia parteaalgunslivrosqueleraealgunsdilogosquetravara.Apesquisaintensivade Ginzburg sobre fontes relacionadas a um nico sujeito recria de forma bastante ampla e consistente maneiras de agir e pensar de uma localidade determinada, sem descuidar de esclarecer e explicar sobre as presses de um contexto macro, os efeitos sobre a vida de umhomemcomumdeprocessoshistricoscomoaReformaea Contrarreforma30.AnalisandoamaneirapelaqualMenocchioconstruasuasvisesde mundo,Ginzburgendossou,compropriedade,aperspectivabakhtinianade circularidadecultural;valoresesaberescirculavamhorizontalmente,eaculturada classesubalternatantosealimentavaquantoforneciaelementosparaaconstruoda cultura da classe dominante em uma retroalimentao simultnea.Desse modo, a Micro-HistriarealizadaporGinzburgofereceutambmumaorientaometodolgicapara quesebuscasseinvestigar,nestapesquisa,sobreaArgentinaperonistaatravsda

29 PESAVENTO, Sandra Maria.Cultura e Representaes, uma trajetria.Anos 90, Porto Alegre, v. 13, n. 23/24, p.45-58, jan./dez. 2006. 30 Cf. GINZBURG, Carlo.O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisio. So Paulo: Companhia das Letras, 2006. 25 maneiraqueeravistaporCortzar,levandoemcontaromance,contos,cartaseartigos escritos entre 1946 e 1956. Captulo 2 A construo do Peronismo 2.1 - Juan Manuel de Rosas, peronista? Antesdefalarmossobreaascensodoperonismo,vamosretrocederaosculo anterior aos eventos examinados para observar alguns pontos do processo de construo doEstadonacionalargentino,construdoaolongodosculoXIX:deVice-Reinosob tutelaespanhola,passandoconformaopolticaeterritorialconhecidacomo ProvnciasUnidasdoRiodaPrata,em1810.Atentonohaviamenoauma unidade ou projeto de nao sob o nome Argentina: Refletindo as dificuldades em relao identidade, o prprio vocabulrio que possibilitapensaranaoargentinanosedesenvolveudemaneiratranquila. Oadjetivoargentinaaparece,em1602,quandoMartindelBarcoCentenera escreveArgentinaylaconquistadelRiodelaPlata.Emseusversos, argentinaumaformalatinizadadesefazerrefernciaregiodoPrata.O substantivoArgentinacomea,porsuavez,aserutilizado,apartirde1801, naspginasdoprimeiroperidicodopas,TelgrafoArgentino.(...) Progressivamente, amplia-seareferncia parao territrio banhado pelo rio da Prata, ou seja, as provncias do litoral, o que exclui o interior. (...) S em 1827, quando sancionada a Constituio unitria, que ironicamente nunca entra em vigor,urgeacombinao,quepersisteathoje,deRepblica Argentina.(RICUPERO, 2007, p. 216) 31 AolongodetodoosculoXIX,ainstabilidadepoltica.Efoimarcadapela oposioentreunitrios,defensoresdeumgovernocentralizado,efederalistas, partidrios de uma ideia de nao em que pesasse mais a autonomia das provncias.Cadagrupotraziaseusprojetosdenaoesuasdissensesinternas,comoa oposioentreJuanBautistaAlberdifavorvelaodesenvolvimentonacionalnos

31RICUPERO,Bernardo.AsNaesdoRomantismoArgentino,inMDER,MariaElisa; PAMPLONA, Marco A. (Orgs.). Revolues de independncias e nacionalismos nas Amricas Regio doPrataeChile.SoPaulo:PazeTerra,2007.Segundoindicaodoautor,verAngelRosenblat.El nombre de la Argentina. Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1964. 26 moldes do modelo norte-americano e do protagonismo da sociedade civil em relao sociedade poltica e Domingo Faustino Sarmiento, autor deFacundo ocivilizacin y barbrie en las pampas argentinas (1845), obra em que ressalta suas impresses sobre a figuradogauchoargentino:habitantedaregiodospampas,errante,tantoquantoa prpriaregioquehabitava;paraSarmiento,oespritodospampasrepresentavao atraso e teria sido soprado sobre os caudilhos, especialmente, Juan Manuel de Rosas,o maior deles para Sarmiento.Rosasfoiumfederalistaqueestevefrentedopasatravsdogovernode BuenosAires.Oscaudilhoseramdominantesnocenriopolticodapoca,apoiados pelos estancieiros da regio do Prata, pecuaristas que tinham comogrande consumidor da carne e do couro que produziam, por exemplo, o Imprio do Brasil. A historiografia naArgentinaganhaforaapsaderrotadeRosasnaBatalhadeMonteCaseros,em3 defevereirode1852.Esteeventoassinalouavitriadasforasunitriassobreo exrcitodaConfederacinArgentinaeofimdogovernodeJuanManueldeRosas, derrotado pelas foras enviadas pelo Imprio do Brasil, pelo Uruguai e pelas provncias argentinas de Corrientes e Entre Ros, governadas ento, respectivamente, por Benjamn Virasoro e Justo Jos de Urquiza. Em 1851, ou seja, exatos cem anos antes de Bestiario, Urquiza,exortava,emseuPronunciamentodeUrquizacontraRosas,osentrerrianos embuscadeapoiocausaunitriaepelarepulsaJuanManueldeRosas.Como dissemos,ahistoriografiadevisliberalseconcentrouemproduzirumaimagem bastantenegativadeRosas,comonocasodavisodohistoriadorargentinoVicente FidelLpez,queseriaMinistrodaFazendaduranteapresidnciadeCarlosPellegrini (1890-92).NocasodoFacundodeSarmientoadicotomiajsefazpresentenottulo, estabelecendo polos que convivem num mesmo territrio, civilizao e barbrie, sendo estaltimadecorrente,paraSarmiento,deumaimposiodascondiesnaturaisda geografia argentina como condicionante do comportamento deplorvel, incivilizado, do gaucho.Ouseja,Sarmientoestabelecepremissasdeterministaspartindodageografia argentinaparajustificarabarbrie;opeavastidodospampaspotencialidade presentenosrios,paraeleosbraosnaturaisdoprogresso,amaiorddivaquea Providnciapoderiadaraumpovoequeogauchoargentinodesdenha (SARMIENTO,1999,p.23).Curiosamente,quandoescreveuFacundo,Sarmiento nuncahaviaestadoemBuenosAires,tendocirculadopelaprovnciaemquenascera, San Juan, e em exlio pelo Chile, onde Facundo foi escrito. 27 Sendoassim,obreveexemplodadoaquicomFacundoemblemticono sentido de lanar mo de uma postura baseada na polarizao, apresenta uma dicotomia jnosmomentosiniciaisdoprocessodeconstruonacionaldaArgentina.A publicaodeFacundopodeserentendidacomodecisivaporconterumprojeto poltico, crtico do governo de Rosas, cujo grande aliado, Facundo Quiroga, d nome ao livro e objeto da repulsa do unitarista Sarmiento que viria a ser eleito presidente da RepblicaArgentinaem1868,unificadadesdeomandatoanterior(1862-68),de BartolomMitre.ApolticaautoritriadeRosas,aperseguioaseusopositores, poderia ser vista quando do encerramento das atividades do Salo Literrio, movimento que reunia os jovens intelectuais daquela que ficaria conhecida como Gerao de 37. NomesmoplanodeoposioaRosas,selevantaramtambmosescritores Hilrio Ascasubi, autor de um poema em que descreve a truculncia das foras rosistas32 ante um gaucho unitrio, em La Refalosa, e um dos primeiros escritores a estabelecer a poesia gauchesca (ao falarmos dessa tradio literria, no podemos faz-lo sem citar o rio-platensedeMontevideoBartolomHidalgo,fundadordaliteraturadoRioda Prata, de acordo com Juan Jos Saer33).Esteban Echeverra, porsua vez, escreveria o conto El Matadero, que exerceria enorme influncia sobrea elaborao de um conto argentino do final dosanos 1940, e queservistomaisadiante,Lafiestadelmonstruo,escritoporJorgeLuisBorgese Adolfo Bioy Casares e que traz como epgrafe um trecho de La Refalosa de Ascasubi: Aquempiezasuaflicin 34.EmElMatadero,Echeverraqueeraassduo frequentadordoSaloLiterriojogacomoselementospresentesnaviolnciada dcadade1830,emqueatorturaeosassassinatospolticoseramprticascomuns, levadosacabopelaMazorcadeRosas,segundoseupontodevista.Noconto,uma inundaoprovocaescassezdecarneemBuenosAires.OgovernodoRestaurador (Rosas) envia cinquenta novilhos gordos no dcimo-sexto dia da escassez, vspera da sexta-feira santa 35. Associando a atividade do matadouro aos federalistas e seus motes de Viva a Federao e Morram os selvagens unitrios 36, e descrevendo a matana sendoobservadapelopovo,nofinaldocontoumjovemunitriointerpeladoporum

32 Rosas contava com sua polcia poltica para reprimir os unitrios que lhe dirigiam oposio; a Sociedad Popular Restauradora era seu brao armado e era popularmente conhecida como la Mazorca. 33 SAER, Juan Jos. La Narracin-Objeto. Buenos Aires: Seix Barral, 1999, p. 102. 34BORGES,JorgeLuis&CASARES,AdolfoBioy.Lafiestadelmonstruo,in:Nuevoscuentosde Bustos Domecq. Madrid: Ediciones Siruela, 1987, p. 101. 35 ECHEVERRA, Esteban. O matadouro. In: COSTA, Flavio Moreira da (Org.). Os melhores contos da Amrica Latina. Rio de janeiro: Editora Agir, 2008. 36 Ibidem, p. 51. 28 juiz federalista e o dilogo encerra tenso e h a presena de ofensas ao juiz, por parte do unitrio, que fazem meno natureza animalesca daqueles que estavam do lado do Restaurador: (...) Essas so suas armas, infames. O lobo, o tigre, a pantera tambm so fortes como vocs! Deveriam andar como eles, de quatro.37. Porfim,ounitriorebentaderaivaeosanguejorradeseucorpo,frustrando os federalistas que se divertiriam com sua tortura e morte. Assim,temospublicaesdeautorescomoSarmiento,AscasubieEcheverra em posio de antagonismo ao regime de Rosas e lanando mo de dicotomias bastante prximas,carregandofortementenastintasdodeterminismo,daviolnciaeda tiraniaatravs de simbologias e metforas como barbrie e matadouro, em oposio civilizao que os autores julgavam existir nos EUA de Fenimore Cooper, simblica e fisicamente distante dos pampas argentinos.Essa demonstrao deembate de posies viarepresentao literria, nosculo XIX,foiexpostajustamenteporqueamemriaemtornodeRosaseSarmientoseria retomadaepositivada,assimcomoaassociaoentrePerneRosas.Orevisionismo ocorridonahistoriografiaargentinaacabariaporrecuperarastrajetriasdeFacundo Quiroga e Juan Manuel de Rosas, que passariam a ser entendidos mais em suas posies de defensores de um projeto nacional em meio uma diversidade de presses exercidas por conflitos internos e externos, de forma que esse entendimento mais matizado sobre suastrajetriasfoimuitomaisbenficohistoriografiaargentinadoqueo procedimentoliberaldeengessamentodessessujeitosdeformasimplriaesimplista enquanto tiranos e caudilhos associados ao atraso nacional. 2.2 O Peronismo Decreto-Ley 4161, de 5 de marzo de 1956 Art. 1Queda prohibida en todo el territorio de la Nacin:

37 Ibidem, p. 58. 29 a) La utilizacin, con fines de afirmacin ideolgica peronista, efectuada pblicamente, o propaganda peronista38, por cualquier persona, ya se trate de individuos aislados o grupos de individuos, asociaciones, sindicatos, partidos polticos, sociedades, personas jurdicas pblicas o privadas de las imgenes, smbolos, signos, expresiones significativas, doctrinas artculos y obras artsticas, que pretendan tal carcter o pudieran ser tenidas por alguien como tales pertenecientes o empleados por los individuos representativos u organismos del peronismo. Se considerar especialmente violatoria de esta disposicin la utilizacin de la fotografa retrato o escultura de los funcionarios peronistas o sus parientes, el escudo y la bandera peronista, el nombre propio del presidente depuesto el de sus parientes, las expresiones "peronismo", "peronista", "justicialismo","justicialista", "tercera posicin", la abreviatura PP, las fechas exaltadas por el rgimen depuesto, las composiciones musicales "Marcha de los Muchachos Peronista"y "Evita Capitana 39o fragmentos de las mismas, y los discursosdel presidente depuesto o su esposa o fragmentos de los mismos. b) La utilizacin, por las personas y con los fines establecidos en el inciso anterior, de las imgenes, smbolos, signos, expresiones significativas, doctrina artculos y obras artsticas que pretendan tal carcter o pudieran ser tenidas por alguien como tales creados o por crearse, que de alguna manera cupieran ser referidos a los individuos representativos, organismos o ideologa del peronismo. (...) Art. 3 El que infrinja el presente decreto-ley ser penado: a) Con prisin de treinta das a seis aos y multa de m$n: 500 a m$n. 1.000.00040; b) Adems, con inhabilitacin absoluta por doble tiempo del de la condena para desempearse como funcionario pblico o dirigente poltico o gremial; c) Adems, con clausura por quince das, y en caso de reincidencia, clausura definitiva cuando se trate de empresas comerciales. Cuando la infraccin sea imputable a una persona colectiva, la condena podr llevar como pena accesoria la disolucin.41

38 Grifos e destaques meus. 39 Marchas tradicionais conhecidas popularmente nas vozes de, respectivamente, Hugo del Carril e Nelly Omar;apresentambaseharmnicaemeldicaidntica,apenascomalgumasalteraesnasrespectivas letras.NorefrodaMarchaPeronista,temosnorefro:Pern,Pern,qugrandesos!MiGeneral, cuantovals!Pern,Pern,granconductor,soselprimertrabajador!,aopassoqueemEvita CapitanaorefroEvaPern,tucoraznnosacompaasincesar!Teprometemosnuestroamorcon juramento de lealtad 40Peso Moneda Nacional, moeda vigente at o ano de 1969. 41Acessado em , em julho de 2013. 30 O que vemos acima reproduzido um fragmento da Constituio Argentina, um decreto-lei que entra em vigor no ano de 1956, aps o quarto golpe de Estado ocorrido na Repblica Argentina: a chamada Revoluo Libertadora, ocorrida em setembro de 1955. Podemos falar na quarta ocorrncia de um golpe na Argentina se entendemos que oprimeirogolpeoquedepeopresidenteeleitoHiplitoYrigoyen,em1930;o segundo,em1943,foiprotagonizadoporumafaconointeriordoExrcito,oGOU (sobre o qual se falar mais adiante); o terceiro ocorreuem fevereiro de 1944, quando o presidentePedroPabloRamrezfoidestitudodocargosemanasapsromperrelaes diplomticas com Alemanha e Japo, dando lugar ao general Edelmiro Farrell.O Golpe de 1955 assinala a derrubada de Juan Domingo Pern da presidncia da NaoArgentina.Pernperderaapoiosimportantesaolongodeseusegundomandato (1951-55),sendomuitoemblemticodofinaldesteseuembateabertocomaIgreja, anteriormente uma aliada, ao longo dos anos 1940, especialmente aps o golpe de 1943.O que se pretende, ao abrir este captulo com trechos de um decreto-lei de maro de1956justamenteapresentaradimensoenvolvidaporessatradiopoltico-culturalconhecidaporperonismo.Operonismotranscendeuoformatodeidentidade polticaemobilizoupaixes,dios,discussesacirradas,semeteupelocampoda cultura, dividiu, fragmentou, mas tambm reuniu.Estefragmento,estepedaodeleireproduzido,umarepresentaodofuror iconoclastadaRevoluoLibertadora,quearrasoucomossmboloseimagensdo peronismo,tentandoapagardamemriacoletivatodovestgioqueevocasseatirania deposta (e neste caso se fala sobre interditar o discurso, a palavra escrita e falada, que evocasse o peronismo, assim como tambm se referia aos quadros do presidente que se encontravam em bares, leiterias, etc.); a misso patritica exigia executar as esfinges comoumexorcismolibertadordeseupotencialefeitotaumatrgico 42.Ouseja,como noslembraoantroplogoargentinoFedericoNeiburg,ofimdogovernoperonistaeo

42 GEN, Marcela. Un mundo feliz. Las representaciones de los trabajadores en el primerperonismo(1946-1955).BuenosAires:FCE,2005.Ostrechoscitadossopartedeumresumoda dissertaodemestradodaautora.Acessadoem , julho de 2013.31 exliodo lderpareciamcolocarsuabasesocialnumasituaodedisponibilidadepara novas adeses43. E o governo posterior tinha noo da dimenso alcanada pelo peronismo; essas interdies,aotentaremsufocarofenmeno,lheconferirammaiorintensidade:o peronismo,proscrito,seguiuproduzindoefeitossignificativosnasurnas.Em1957,o novo governo promove eleies para implementar uma reforma constitucional.NaseleiesparaaConstituinte,aquantidadedevotosassinaladosembranco chamaateno:foram2.115.861votos,representando24,31%dopleito,ficando frentedaUninCvicaRadicaldelPueblo,com24,20%dosvotos(2.106.524)44.Isso mostraoquantooespectropolticoargentinodoperodonofoicapazdeatenderas expectativaseanseiosdemilhesdeperonistascujaprefernciapolticaseencontrava na clandestinidade;a maioria obtida pelos votos em branco mostra, acima de tudo, um forte indcio de insatisfao com as alternativas polticas possveis. Aanlisesobreoperodo1946-1956fazcomquesejapossvelidentificarnos escritoslevantadosmatizesideolgicos,vanguardismoestticoecrticasocialemum momentoquentidoomovimentodeexpansodomercadoeditorialedaproduo literria;aesseprocessopodemosestabelecercomomarcosimportantes:a)o crescimento demogrfico, em que pesem enormemente as entradas dos imigrantes entre 1869e1914(apopulaoargentinapassaradecercade1,8milhesem1869paraa cifradequase8milhesem191445)eanfasenaeducaopblicaelaicacujo representante mais emblemtico foi o presidente Domingo Faustino Sarmiento (cumpriu seumandatoentre1868e1874);b)significativaexpansodaculturaletrada,coma reformauniversitriade1918,empreendidaporHiplitoYrigoyen,equerepresentou algum avano em desconstruir a elitizao em torno do acesso e mobilidade no mundo acadmico;c)aexpansodematrculasnoensinomdioeaexpansouniversitria, aliadosaumapolticaeditorialqueofereceulivrosapreosmdicos,noquechamou LuisAlbertoRomerodeumaempreitadacultural,noperodoquelocalizano

43NEIBURG,Federico.Osintelectuaiseainvenodoperonismo:estudosdeAntropologiaSociale Cultural. So Paulo; EdUSP, 1997, p. 19. 44 PIRRO, Julio Csar Meln. Los nmeros del Recuento. El primer test electoral del peronismo en laProscripcin. Acessado em , em julho de 2013. 45PINTO,JulioPimentel.Umamemriadomundo:fico,memriaehistriaemJorgeLuisBorges. So Paulo: Estao Liberdade: FAPESP, 1998, p. 50. 32 entreguerrasou,comoelemesmodizentreosurgimentodoradicalismo46eodo peronismo47.Comoexemplodaconsolidaoeexpansodeumasociedade leitorapodemos assinalar o surgimento de colees literrias, ainda nos anos 1920, como JoyasLiterarias(organizadapelotipgrafoedirigentesindicalLuisBernard)ouLas GrandeObrasyLosIntelectuales,responsveisporcolocartrabalhadoresemcontato comlivrosdemileZola,VictorHugo,LonTolstoieAnatoleFrance,porexemplo, romancesprpriosdeumrealismoquetinhacomocontedoumvishumanistae problemas sociais.Caractersticamarcantedoperonismoqueostrabalhadorespassassemater suas demandas ouvidas e atendidas pelo Estado atravs da via sindical, ao passo que as classesdominantessemostrassemreceosasfrenteaessanovaconstruohegemnica. Porm, esta uma posio que pode ser matizada. Para que no nos apoiemos em uma visosimplistadofenmenopolticoesocialsobreoqualtratamos,operonismo, importante estabelecer que a classe trabalhadora argentina j se apresentava organizada desde antes do golpe de 4 de junho de 1943.DeacordocomdadosdaDireoNacionaldoTrabalho,de1941,Miguel MurmiseJuanCarlosPortantierodemonstramqueasorganizaessindicais experimentaramumcrescimentosignificativoentre1936e1940;em1936,369.969 trabalhadoresapareciamnasestatsticascomosindicalizados,aopassoque,em1940, essenmerosaltavapara472.412,umaumentodequase28%emumespaodecinco anos. Os autores explicam que antes do peronismo: (...)desenvolveu-senasociedadeargentinaumprocessodecrescimento capitalistasemintervencionismosocialequeestasituaodeterminoua configuraodeumaumentodereivindicaestipicamenteoperrias,que abarcavamoconjuntodaclassetrabalhadora,exignciasqueosindicalismo tratoudesatisfazersemxito,atque,entre1944e1946,emdecorrnciade

46Maneira dese referir correntepoltica vinculada UCR(Unin Cvica Radical), partido que, como dito anteriormente, fez oposio ao peronismo nas eleies presidenciais de 1946 e 1951. 47ROMERO,LuisAlberto.BuenosAires:librosbaratosyculturadelossectorespopulares,In: ARMUS,D.(Org.).Mundourbanoyculturapopular.EstudiosdeHistoriaSocialArgentina.Buenos Aires: Sudamericana, 1990, pp. 39-67. 33 polticasestataisdefinidas,essasriereivindicativafoiencontrandosoluo (...) 48(MURMIS & PORTANTIERO, 1973, pp. 66-67) A CGT (Conferderacin General del Trabajo) foi organizada em 1930 a partir deacordosentresocialistasesindicalistasrevolucionriosjuntamenteacomunistase surgeapartirdoagrupamentodeorganizaessindicaispreexistentescomoaUSA (UninSindicalArgentina,fundadaem1922)eaCOA(ConfederacinObrera Argentina,fundadaem1926).AUSAsurgiraapartirdeumaorganizaoaindamais antiga, de 1901, a FORA (Federacin Obrera Regional Argentina). Ao longo do incio do sculo XX, o anarquismo de finais do sculo XIX cedia espao para o sindicalismo como interlocutor privilegiado do Estado, tal como nos diz o historiador argentino Juan Suriano49. 2.3 -Os anos 1940 na Argentina: a ascenso de Pern EscreveraBorgessobreSarmientoqueeleeraaluzdeMayoeohorrorde Rosas/eooutrohorroreossecretosdiasdominuciosofuturo,almdeseralgum quesegueodiando,amandoecombatendo,sendopercebidoinclusivenasalbasde setembro,inesquecveis,queningumconseguenarrar 50umarefernciadeBorges aoeventoqueassinalouaderrubadadePerndopoder,achamadaRevoluo Libertadora, j mencionada anteriormentee querepresentou um golpe de Estado cujo desfecho se deu precisamente em setembro de 1955. Aps alguns meses de turbulentos confrontosinternos,Pernperderaforamesmonointeriordasforasarmadas,como mostra o levante da Marinha que culminou no bombardeio da Plaza de Mayo, realizado emjunhodomesmoano,cujoobjetivoeraeliminaroentopresidenteatravsdeum ataquedirecionadoCasaRosada,sededapresidnciadopas.OsaviesdaArmada Argentina bombardearam a Casa Rosada, a praa, o Ministrio de Guerra e at mesmo o

48MURMIS,Miguel&PORTANTIERO,JuanCarlos.Estudossobreasorigensdoperonismo.So Paulo: Editora Brasiliense, 1973, pp. 66-67. 49SURIANO,Juan.CulturaepolticaanarquistaemBuenosAiresnocomeodosculoXX,in: AZEVEDO,Cecliaetal.(Org.).CulturaPoltica,MemriaeHistoriografia.RiodeJaneiro:Editora FGV, 2009. 50 Sarmiento, in: BORGES, Jorge Luis. O outro, o mesmo. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 105. 34 bairrodeOlivos,nagrandeBuenosAires,ondeselocalizaaresidnciapresidencial. MaisdetrezentaspessoasforammortaseoExrcito,lealaPern,terminoupor controlarasituao.Em23desetembrode1955,seapresentoucomopresidente provisrio do pas o general Eduardo Lonardi que havia participado de uma tentativa fracassadadegolpecontraPernemsetembrode1951,juntoaogeneralBenjamn Menndez.Com essa aluso, Borges associa a imagem de Pern derrotado a Rosas, e faz a memria de Sarmiento ecoar justaposta ao violento golpe de 1955. E como aparecera Juan Domingo Pern frente da presidncia do pas? PernpassaraaconheceropodermaisdepertoapsumgolpedeEstado empreendidopeloGOU(GrupodelosOficialesUnidos),umafacodemilitaresdo Exrcito que buscaram intervir no cenrio poltico, mesmo que no trouxessem consigo umprojetopolticodefinido.RamnCastillofoipresidenteentre1942e1943,masj ocupavaocargodesde1940,enquantovice-presidentenomandatodeRobertoOrtz, quesofriadediabeteseperdeuaviso,vindoaserlicenciadodocargoatseu falecimento, em julho de 1942, pouco depois de ter renunciado presidncia, em junho. OrtzhaviadefinidoaposturadeneutralidadedaArgentinalogoqueos primeirosconflitosrelacionadosIIGuerraeclodemnaEuropaeessaposturafoi mantidaporseusucessor,RamnCastillo.Noinciode1943,jseiniciavamas articulaes pelas eleies51 e o falecimento de figuras de peso no cenrio poltico, tais como:MarceloTorcuatodeAlvear(ligadoaoradicalismoantipersonalista,fora presidente entre 1922 e 192852) em maro de 1942 eAgustn Pedro Justo, em janeiro de 1943.Emmarode1942,osconservadoresreunidosnaConcordanciasedestacaram naseleieslegislativas;aescassezdenomesfezcomqueRamnCastilloindicasse Robustiano Patrn Costas, empresrio do setor aucareiro que havia sido governador de Salta (1913-1916) e senador da Nao pela mesma provncia (1938-1943).AindicaodeCostascomocandidatoconservadoracirrounimos;o radicalismojhaviaperdidohumadcadaseultimograndeexpoente,Hiplito

51RobertoOrtzforaosegundopresidenteeleitoem1937pelaConcordancia,umaalianapoltica surgidaem1931quereuniaoPartidoDemcrataNacional(conservador),aUninCvicaRadical Antipersonalista (em oposio influncia que exercia a persona de Hiplito Yrigoyen, um dos principais nomesdoradicalismonaArgentina)eoPartidoSocialistaIndependiente.Oprimeiropresidenteeleito pela Concordancia fora Agustn P. Justo, presidente no perodo 1932-1938. 52 Como estabelecido desde a Constituio de 1853, os mandatos presidenciais duravam seis anos. 35 Yrigoyen,falecidoem1933.OradicalismoantipersonalistaperderaAlvear.Dessa maneira,onomedoministrodaGuerradopresidenteCastillo,PedroPabloRamrez, comeava a ser ventilado por setores do radicalismo. Os coronis do Exrcito reunidos emtornodoGOUjvislumbravamumainterveno,massemchegaraumnomeque os representasse; quando Ramn Castillo, temeroso, pediu a Ramrez que entregasse seu cargofrentedoMinistriodaGuerra,oGrupodelosOficialesUnidosentendeuque era a hora mais adequada para a ao, ainda quecom certo improviso e sem rosto e/ou projeto poltico. Sendoassim,em4dejunhode1943,oExrcitoderrubavadapresidncia Ramn Castillo, ltimo presidente do perodo que ficou conhecido por Dcada Infame nahistoriografiaargentina:terminologiaconstrudacomumpropsitopolticomuito claro,propiciandoterrenoparaconstruodememriaqueexaltasseaquelesdiasde 1943comoumaoposioquesefezmaisdoquenecessriaemimpor-seaosgovernos da dcada anterior, a de 1930, em que os argentinos estiveram s voltas com a prtica de eleiesfraudulentasesubservinciaaocapitalestrangeiro53.Assumiaapresidnciao generalArturoRawson,querenunciaemfavordogeneralPedroPabloRamrezjno dia 7 de junho. Dessa maneira, Ramrez pula do cargo de ministro para o de presidente emquestodealgunsdias;EdelmiroJulinFarrell,entopassaaocuparavice-presidncia e acumula tambm a pasta do Ministrio da Guerra de Ramrez, e tinha por secretrioJuan Domingo Pern. Logoemseguida,PernocupouocargoderesponsvelpelaDireoNacional doTrabalho,poucodepoistornadaSecretariaNacionaldoTrabalhoePrevidncia, sendofiguradestacadaporseubomtrnsitoeboaarticulaoentreaslideranas sindicaiseaclasseoperria;angariavaemtornodesicadavezmaisaceitaodas classespopulares,emquepesetambmsuacarismticafiguraealeituraquefezda posioqueocupava,naquelemomento:inclinadosnecessidadesdostrabalhadores argentinos, fazendo sempre presente o ideal de Justia Social em sua atuao poltica,

53No ano de1933, duranteachamadadcadainfame nahistoriografiaargentina, esob o mandato do general Agustn P. Justo (1932-38), o vice-presidente Julio Argentino PascualRoca, o Julito (filho do presidenteJulioArgentinoRoca,queforapresidentedopasemdoismomentos:entre1880-86eentre 1898-1904),assinaumacordocomercialcomoministrodocomrcioingls,WalterRunciman,noque ficouconhecidocomoPactoRoca-Runciman,umtratadoquebeneficioumuitomaisosinteressesdo capitalbritnicodoqueaeconomiaargentina,sendoumacordoquelimitouasvantagensdaproduo argentinadecarnesemvirtudedeumcontrolemaiordessemercadopelaGr-Bretanha,almde concesses comerciais para empresas britnicas de outros ramos, como transporte. 36 deslocando o trabalhador para o protagonismo das aes do regime; o decreto 33.302/43 garantiaaostrabalhadoresindenizaoemcasodedemisso;estatutostrabalhistas foramcriados,assimcomodemaisinstituiesdeensinoeassistncia.Houveum aumentobrutalnasindicalizaodetrabalhadoresetambmumaintensamigraode trabalhadoresdocampoparaacidade;oEstadoargentinosesaamelhornamediao entre capital e trabalho,acordos coletivos eramfirmados e benefcios eram outorgados atravs da Secretaria de Trabalho. 2.4 -O 17 de outubro de 1945: monstruosidade ou lealdade? Um evento marcante representa a dimenso da aceitao de Pern por parte dos trabalhadoresargentinos,emumademonstraoqueimpressionapelaintensidade apresentadaepelossujeitosnelaenvolvidos:o17deoutubrode1945.Como mencionado,Perntornara-sedestacadonocenriopolticonacionalporseuempenho emseposicionarprximoaossindicatosetrabalhadores,possibilitandodireitos trabalhistassobaformadelegislaoemostrandoboadisposioemapresentaro Estadoargentinocomomediadordasrelaesetensesentreempresariadoe operariado. A sociedadecivil tomava parte no acirramento da polarizaoem torno do coronelsindicalista:em12dejulhode1945umamultidodetrabalhadoresbradouo nomedePernpelascallesDiagonalNorteeFlorida,pedindo-ocomocandidato presidnciadopas.AaplicaodalegislaosocialdePernincomodaraossetores conservadores e em 19 de setembro ocorre uma reao manifestao popular de julho: a Marcha da Constituio e da Liberdade passava pelo Congresso Nacional e seguia at o distinto bairro de classe alta, Recoleta.O conservadorismo nas alas internas do Exrcito via com preocupao tamanha popularidadeetamanhoestreitamentodosecretriodotrabalhocomascamadas populares(hajavistoamanifestaopopulardejulho)eseufortalecimentonocenrio poltico, especialmente porque, em 1944, aps a ocorrncia de um golpe no interior do golpe, o presidente Pedro Pablo Ramrez substitudo pelo general Edelmiro Farrell. O que ento ocorre que o GOU, no mbito da diviso provocada na sociedade argentina porcontadaIIGuerraMundial,posicionava-sefavorvelaoEixo,quejmostrava sinaisdesuaderrocadaantesinvestidasdasforasaliadas.Intensificava-se,assim,a 37 pressoexercidapeloDepartamentodeEstadodosEUAcontraaneutralidade argentina;assimqueRamrezromperelaescomospasesdoEixo,depostopelos oficiais germanfilos no interior do GOU, que conduz Edelmiro Farrell presidncia. Com a ascenso deFarrell, Pern acumula os cargos de secretrio de Trabalho, vice-presidenteeministrodaGuerra.Prestigiadoeatuandoentocommaior visibilidade,Pernpassaasofreroposionointeriordacpuladirigente.Ogeneral Eduardovalos,influentedesdeaconformaodoGOU,vcompreocupaoa ascensodePernnointeriordoaparelhoestatalenocenriopoltico,epressionao presidente Farrell a intervir, temeroso da influncia que Pern angariava em torno de si.Nosprimeirosdiasdomsdeoutubrode1945,Farrellpedearennciados cargos ocupados por Pern, ordenando que o coronel fosse trasladado ilha de Martn Garca, no Rio da Prata. Alegando problemas de sade, Pern consegue ser em seguida transferido para oHospital Militar Central,emBuenos Aires.Mesmoafastado de suas funesdentronoaparelhodeEstado,Pernmobilizavagruposoperriose trabalhadorescadavezmaisdispostosaenfrentamentosemtornodoqueaatuaode Pernrepresentavaparadiversossetoresdotrabalhonasociedadeargentina.O presidenteEdelmiroFarrell,decretandoaprisodoseuex-secretrio,viceeministro, buscavacomissoneutralizaroefeitomobilizadordaretricabemarticuladadeJuan DomingoPern,masoefeitoqueresultariadaquiloestava,certamente,muitoalmde suas expectativas. No dia 17 de outubro, a Plaza de Mayo foi tomada por uma multido que pedia pela libertao de Pern. O historiador argentino Luis Alberto Romero chama a ateno paraumdetalhe:emboraamultidoquedeucorpoMarchadaConstituioe Liberdade fosse numericamente maior do que a concentrao em frente Casa Rosada, merecedestaquenestaltimaapresenamassivadeoperriosetrabalhadores organizados,noquechamoudecomposiodefinitivamenteoperria 54. AcrescentandoumaressalvaaoquedisseRomero,pode-sedizerqueoquemais chamouatenonofoisomenteaquestoemtermosdeclassesocial,masobservar que essa mesma composio definitivamente operria significava uma pluralidade de origensdentrodageografiaargentina:trabalhadoresorganizadosdasdemaisprovncias dopasocupavamumespaogeogrfico(aPlazadeMayo,localimportantepela

54ROMERO,LuisAlberto.HistriaContemporneadaArgentina.RiodeJaneiro: JorgeZaharEditora, 2006, p. 95. 38 proximidade com a Casa de Governo nacional) que fora ocupado pelas classes mdias e pelas associaes operriasem mobilizaes anteriores; ou seja, se admitimos que a casa estavasendotomada,essaaoestavasendoempreendidaportrabalhadoresqueno pertenciam ao espao que iam, ento, ocupando. Diantedetamanhademonstraodeadeso,JuanDomingoPerndiscursaria multido naquele dia 17 de outubro e nos dias seguintes tomaria decises que acabariam porfaz-loelementocentralnaconfiguraopolticanacional:desposariaEvaDuarte (entoumaatrizdemedianodestaquenoradioteatroargentinomasquesetornaria figura-chavenaconformaoedifusodaquiloqueconhecemosporperonismo),e decidiriaporconcorrerpresidnciadaArgentina,naseleiesqueseriamrealizadas em 24 de fevereiro de 1946.Sobreaseleiespresidenciaisde1946,dizosocilogoargentinoAlejandro Horowicz: AvitriaeleitoraldePernpulverizouseusantagonistaspolticos(...)Na eleio mais limpa de toda a histria poltica argentina os democrticos haviam sidoincapazesdevencer,apesardaenormidadedemeioscomquehaviam contado.(...)OsdefensoresdaU.D.[UnioDemocrtica],assimcomoseus integrantes,nosouberamexplicarento(comonosabemexplicaragora) porque foram derrotados, ano ser com ahabitual cnica malevolncia racista queatribuiclasseoperria,aoscabecitasnegras,asomatotaldas traies55 (HOROWICZ, 2011, p. 113) O17deOutubro 56,peloeventoquerepresentaepelasimbologiaaele associada,umadataqueestpresentenamemriaconstrudapelosperonistascomo sendo o evento fundador desta tradio poltica, inventada a partir da conjuntura scio-polticaoportuna,oqueincluiaatuaoeocrescimentodeJuanPernnocenrio poltico, para o que contribui tambm uma organizao sindical preexistente e anterior a 1945;a data em que se funda o peronismo poltico foiapropriada sob a denominaoda de la lealtadpor peronistas e comoda de las patas em la fuentepor antiperonistas.

55 HOROWICZ, Alejandro. Los Cuatro Peronismos. Buenos Aires: Edhasa, 2011. 56PLOTKIN,MarianoBen.Eldaqueseinventelperonismo:laconstruccindel17deoctubre. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2012. 39 Oquehavianessaconjunturaeraumpanoramadeinstabilidadepolticae institucional,classestrabalhadorasansiosasedeterminadasemterantigas reivindicaesfinalmenteatendidasenuancesdeorgulhonacionalistaemmeios represliasdosEUAfrenteneutralidadeargentinaduranteaIIGuerra;icnicado posicionamentonorte-americanoquantoArgentinaapresenadoembaixadornorte-americanoSpruileBraden,totalmentecontrrioascensopolticadePern,porseu bomdilogocomaslideranassindicaisepelasimpatiaqueocoronelnutriapelos regimes autoritrios da Europa ocidental ao longo do conflito mundial. Ou seja, Braden, enquanto norte-americano, buscava interferir na disputa poltica argentina se colocando comoumrepresentantedosvaloresdademocracialiberal,posiotambmdefendida pelaUninDemocrtica,coalizodepartidosemoposioaoperonismo.Masesse antagonismo serviria muito mais estratgia poltica do argentino: Braden o Pern!, dizia o slogan da campanha presidencial para as eleies de fevereiro de 1946. Com este motecriava-seumapeloporumposicionamento:aescolhaporPernrepresentando uma postura nacionalista, construda em oposio presena imperialista dos EUA no paseassociadafiguradeBradenedosdemocrticos.Nestaconjuntura,o nacionalismo parecia ser a sada para superar os males expostos pelos governoseleitos deformafraudulentanadcadade1930,cujamemriatraumticafiguravacomo dcadainfame,emquepesasseasubmissoaocapitalbritnicoeestadunidense, como j vimos. Seoperonismo,enquantomovimentosocialepolticotemsuadatade nascimento, o 17 de outubro de 1945,j o antiperonismo no pode ter uma cronologia toprecisa,poiscrescemedidaemquePernseprojetanocenriopoltico.Um detalhe importante que, se h uma identidade antiperonista, ela construda a partir de uma identidade bastante mobilizadora naquele momento histrico: o antifascismo. O 17 deoutubroesuademonstraodealianapoltica,deumabasesocialaoredorde Pern,fezcomqueantifascistasenxergassemaqueleeventocomooannciodo fascismonaArgentina.AhistoriadoraargentinaFlaviaFioruccinosauxiliaaentender melhor a esta etapa inicial da posio antiperonista: Somuitosostestemunhosquedocontadequeoantifascismoporesses temposumaidentidademuito convidativasetransformoumuito rapidamente emantiperonismo,sobretudodepoisdo17deoutubro,quandoPernse 40 converteu para os antifascistas na encarnao do fascismo criollo(FIORUCCI, 2011, p.23)57 Eaautoraprossegue,citandoumaentrevistadeMaraRosaOliver(ensasta argentinaeumadasfundadorasdarevistaSur):Segundoela,algicaerasimples: PernhaviaestadocomoadidomilitarnaItlia,ogrupodecoronis,oGOUera germanfilo, conhecamos a mentalidadecastrense, ento dissemos, bom, agora vamos ter isso por aqui 58 (Ibid. p. 23). A Unio Democrtica aparece como frmula partidria da aglutinao em torno doantiperonismoedoantifascismo,elanaosnomesdeJosPascualTamborini (ligadoaoradicalismoantipersonalistaeministrodoInteriornogovernoMarceloT. Alvear,etambmtendocumpridomandatoscomodeputadoesenador)paraa presidnciaeEnriqueMosca(haviasidogovernadordaprovnciadeMendozae deputado)paraavice-presidncia.JuanDomingoPernganharaaseleiesde1946, por uma vantagem de pouco mais de 300 mil votos (a frmula Pern-Hortensio Quijano obteve a marca de 1.527.231 votos contra 1.207.15559 obtidos pela Unio Democrtica), ecomosuportedoPartidoLaborista,formapartidriacriadaapartirdo17de outubro e dissolvido aps se integrar ao Partido Peronista e logo Partido Justicialista, criado em 1947. 2.5- As representaes em torno do peronismo Muito embora as discusses em torno do peronismo comeassem a se produzir a partirdo17deoutubrode1945,comovimos,comcuidadoquedevemosanalisaro vispolticodosescritosliterriossobreofenmeno:nopodemosestrangulara realidade para faz-la caber na teoria, na memria e no memorialismo.

57 FIORUCCI, Flavia. Intelectuales y Peronismo, 1945-1955. Buenos Aires: Biblos, 2011. 58 O trecho se refere a uma entrevista de Mara Rosa Oliver a Leandro Gutirrez, 6 e 13 de maio de 1971, Arquivo de Histria Oral do Instituto Di Tella.