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INFERNO TROPICAL Detalhes de fotografia de Augusto Malta retratando grupo posando em frente à entrada de uma vila, 1906. Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. O RIO DE JANEIRO, NO INÍCIO DO SÉCULO XX, era uma cidade sitiada. A precariedade dos serviços públicos e as péssimas condições de vida, moradia e trabalho mergulharam a capital numa situação de calamidade sanitária. Navios oriundos do exterior passavam ao largo do porto carioca, condição assegurada previamente pelas companhias de navegação; a imigração estava ameaçada e o crédito do país abalado. As doenças infecciosas grassavam: peste, varíola, tuberculose, malária. Causava especial preocupação a febre amarela, que angariara para o Rio a reputação de túmulo dos estrangeiros. Enquanto a elite refugiava-se em Petrópolis no verão, levas inteiras de imigrantes caíam vitimados pela doença. Tal era sua virulência que provocou o adiamento para junho do carnaval de 1892. De 1897 a 1906, 4 mil estrangeiros morreram do mal amarílico. Ficou famoso o caso do caça-torpedeiros italiano Lombardia, que chegara à capital brasileira em outubro de 1895. Conta Rui Barbosa: "Dois meses mais tarde, em janeiro, adoece de febre amarela um de seus tripulantes, daí a dias outro, no seguinte mais três, posteriormente 15... A 16 de março os doentes são 240 e, destes, 134 mortes... De uma guarnição de 240 pessoas, mal se salvam 106". EM 1900, O RIO CONTAVA COM 691.565 HABITANTES. As condições de vida vinham se degradando desde o final do século XIX. O rápido crescimento populacional, devido ao afluxo de ex-escravos, de trabalhadores expulsos pela crise do café do Vale do Paraíba e imigrantes fugindo das lavouras, agravou os problemas sociais e econômicos. A maioria dos funcionários públicos ganhava entre 60 e 300 mil réis; os empregados domésticos – 25% da população – 30 mil réis por mês, quando recebiam salário. Para obter uma renda de 50 mil réis, um operário precisava trabalhar de 12 a 16 horas por dia, inclusive aos sábados e, pelo menos, dois domingos por mês. Quem era pobre residia nas áreas centrais da cidade, nos cortiços, estalagens ou casas de cômodo. Uma dependência numa casa de cômodos custava entre 20 e 25 mil réis. Pagava-se por mês 40 mil réis para morar num cortiço e 100 mil réis por um quarto melhor com pensão. Aos miseráveis, restavam as favelas. Rio de Janeiro antes da grande reforma urbana do início do século XX. Foto de Marc Ferrez. Acervo Casa de Oswaldo Cruz (RJ). "A cidade é um monstro onde as epidemias se albergam dançando sabats magníficos, aldeia melancólica de prédios velhos e acaçapados, a descascar pelos rebocos, vielas sólidas cheirando mal..." Luis Edmundo

1906. Acervo Arquivo Geral Malta retratando grupo posando ... · PDF filetinham viva a memória das revoluções liberais de 1848, que ... substituir os infectos rios da parte baixa

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Page 1: 1906. Acervo Arquivo Geral Malta retratando grupo posando ... · PDF filetinham viva a memória das revoluções liberais de 1848, que ... substituir os infectos rios da parte baixa

� INFERNO TROPICAL

Detalhes de fotografia de AugustoMalta retratando grupo posando em frente à entrada de uma vila,1906. Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

O RIO DE JANEIRO, NO INÍCIO DO SÉCULO XX, era uma cidade sitiada. A precariedade dos

serviços públicos e as péssimas condições de vida, moradia e trabalhomergulharam a capital numa situação de calamidade sanitária. Naviosoriundos do exterior passavam ao largo do porto carioca, condiçãoassegurada previamente pelas companhias de navegação; a imigraçãoestava ameaçada e o crédito do país abalado.

As doenças infecciosas grassavam: peste, varíola, tuberculose, malária.Causava especial preocupação a febre amarela, que angariara para o Rio a reputação de túmulo dos estrangeiros. Enquanto a elite refugiava-seem Petrópolis no verão, levas inteiras de imigrantes caíam vitimados peladoença. Tal era sua virulência que provocou o adiamento para junho docarnaval de 1892. De 1897 a 1906, 4 mil estrangeiros morreram do malamarílico. Ficou famoso o caso do caça-torpedeiros italiano Lombardia,que chegara à capital brasileira em outubro de 1895. Conta Rui Barbosa:

"Dois meses mais tarde, em janeiro, adoece de febre amarela um de seus tripulantes, daí a dias outro, no seguinte mais três,posteriormente 15... A 16 de março os doentes são 240 e, destes, 134 mortes... De uma guarnição de 240 pessoas, mal se salvam 106".

EM 1900, O RIO CONTAVA COM 691.565 HABITANTES. As condições de vida vinham

se degradando desde o final do século XIX. O rápido crescimentopopulacional, devido ao afluxo de ex-escravos, de trabalhadores expulsos pela crise do café do Vale do Paraíba e imigrantes fugindo das lavouras, agravou os problemas sociais e econômicos.

A maioria dos funcionários públicos ganhava entre 60 e 300 mil réis; os empregados domésticos – 25% da população – 30 mil réis por mês, quando recebiam salário. Para obter umarenda de 50 mil réis, um operário precisava trabalhar de 12 a 16 horas por dia, inclusive aos sábados e, pelo menos, dois domingos por mês.

Quem era pobre residia nas áreas centrais da cidade, nos cortiços, estalagens ou casas de cômodo. Uma dependência numa casa de cômodos custava entre 20 e 25 mil réis. Pagava-se por mês 40 mil réis para morar num cortiço e 100 mil réis por um quarto melhor com pensão. Aos miseráveis, restavam as favelas.

Rio de Janeiro antes da grande reforma urbana do início do século XX. Foto de Marc Ferrez. Acervo Casa de Oswaldo Cruz (RJ).

"A cidade é um monstro onde as epidemias se albergam dançando sabats magníficos, aldeiamelancólica de prédios velhos e acaçapados, a descascar pelos rebocos, vielas sólidas cheirando mal..."

Luis Edmundo

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“O meu programa de governo vai ser muito simples. Vou limitar-me quase exclusivamente a duas coisas: o saneamento e o melhoramento do Porto do Rio de Janeiro.”

Rodrigues Alves

RODRIGUES ALVES ASSUMIU O GOVERNO, EM 1902, recebido com extrema

frieza pela população carioca. Representava a consolidação dapolítica dos governadores, da hegemonia paulista e dos privilégios aos

cafeicultores. Encontrava as finanças recuperadas, graças a uma política desaneamento que elevou às alturas os impostos, o desemprego, a carestia,provocando um clima de tensão social. Estavam em crise setores vitais para a economia da cidade: a indústria, o comércio e os serviços públicos.

Para sanear e modernizar a cidade, visando garantir o livre fluxo dos investimentos estrangeiros, nomeou como prefeito Francisco Pereira Passos, dando-lhe carta branca, através de lei que reorganizava o Distrito Federal. A nova legislação adiava por seis meses as eleiçõespara a Câmara Municipal e proibia as autoridades judiciárias derevogarem ou suspenderem os atos do novo prefeito.

EM CONDIÇÕES DE VIDA TÃO PRECÁRIAS, a população,

com freqüência, explodia em quebra-quebras. Em junhode 1901, o povo protestava contra o aumento das tarifasde bonde e a péssima qualidade dos serviços, depredandovários veículos, num conflito que resultou em mortos eferidos. O ano seguinte foi marcado por violento levantecontra o aumento da carne e novos ataques contra os bondes.

Ao mesmo tempo, os operários começavam a se organizar eensaiavam suas primeiras greves, buscando a redução da jornada de trabalho e melhores salários. Em 1900, cocheiros insurgiram-se por três dias contra um novoregulamento. Em 1901, tecelões da Fábrica Industrial paralisaram suas atividades. Em 1903, cerca de 25 mil operários de várias categoriasentraram em greve e asmanifestações de 1º de Maiolevaram para as ruas da cidadeaproximadamente 10 mil pessoas.

� UMA CIDADE EM CONFLITO

Cena de fábrica no início do século XX. Acervo particular.

Ao centro, Rodrigues Alves.

Antigo Convento da Ajuda, atual Cinelândia, 1905. Foto de Augusto Malta. Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

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� O BOTA-ABAIXO

“...enfeixando nas mãos de um só homem essa autoridade, ela poderá ser senhor absoluto desta capital, um ditadorinsuportável, poderá criar para todos os seus habitantes uma situação intolerável de opressão e vexames.”

Rui Barbosa

PARA A MODERNIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO, Pereira Passos inspirou-se na reforma urbana

de Paris, realizada por Georges Haussmann, que acompanhara de perto enquanto adido à legação brasileira na capital francesa.

Nomeado por Napoleão III, Haussmann iniciou seu projeto numaconjuntura política de reação. Recém-restauradas, as monarquias aindatinham viva a memória das revoluções liberais de 1848, queconvulsionaram a Europa.

A reforma buscava, dentre seus objetivos, neutralizar o proletariadorevolucionário de Paris, impedindo novos motins populares.Assim, rasgou, no centro da cidade, um conjunto de largas avenidas,

destruindo os quarteirões populares e as ruas tortuosas que, desde a Revolução Francesa, vinham sendo o palco das famosasbarricadas do povo parisiense.

Além de atender a razões de ordem sanitária e permitir a livre circulação necessária para a grande indústria, largas avenidas e praças abertas ao grande público, canalizações de água e esgotos e mercados públicos transformaram Paris num modelo de metrópoleindustrial moderna imitada em todo o mundo.

FACILITAR A LIVRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS, substituir as "ignóbeis vielas" por

ruas amplas e arborizadas, encurtar as distâncias – esses eram os objetivos de Pereira Passos, estabelecidos no plano de melhoramentos da Prefeitura. E ainda: “...promover melhores condições estéticas ehigiênicas para as construções urbanas, proporcionar aos grandescoletores das canalizações subterrâneas mais facilidade de colocação e visita, substituir os infectos rios da parte baixa dos arrabaldes por galerias estanques, sanear, embelezar, melhorar enfim a nossa maltratada capital."

Era o Bota-Abaixo! Passos derrubou casas, arrasou morros, canalizou rios, abriu praças e rasgou a cidade com suas amplas avenidas: a Beira-Mar, unindo o centro aos bairros de Botafogo e do Catete, a Salvador de Sá, a Mem de Sá, a nova Avenida do Cais (mais tarde, Rodrigues Alves), a do Mangue (Francisco Bicalho). O alargamento das ruas deu origem a artérias que ligavam a orla marítima do centro (atual Praça XV) aos largos do Estácio e do Matadouro (Praça da Bandeira).

Foto de Pereira Passos.

Acima, planta dos melhoramentos projetados pelo prefeito Pereira Passos, 1902/1906.Acervo Casa de Oswaldo Cruz.

Abaixo, obras de alargamento da Rua Larga de São Joaquim, atual Marechal Floriano. Foto de Augusto Malta. Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

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A ESPINHA DORSAL DE SEU PROJETO ERA A NOVA AVENIDA CENTRAL, mais tarde

denominada Rio Branco. Seu traçado rompia o coração da Cidade Velha e obrigou o arrasamento de parte dos Morros do Castelo e São Bento.Logo, tornou-se o centro da vida elegante, alterando a fisionomia e oscostumes da cidade. Para seus edifícios imponentes, deslocaram-se ocomércio sofisticado, os cafés, as confeitarias e os restaurantes chiques e a sede de grandes jornais, empresas e clubes.

Mas a construção de uma capital moderna fizera vítimas. E quantasvítimas! Em 1905, as obras de Pereira Passos tinham provocado ademolição de cerca de 700 habitações coletivas, deixando desabrigadaspelo menos 14 mil pessoas. A população pobre fora empurrada para a periferia da cidade ou para os bairros distantes e mais degradados.Morros e mangues começaram a se encher de casebres feitos com tábuas de caixas de bacalhau.

“A cidade colonial, imunda, retrógrada, emperrada nas suas velhas tradições, estava soluçando no soluçar daquelesapodrecidos materiais que desabavam. Mas o hino claro das picaretas abafava esse protesto impotente.”

Olavo Bilac

NÃO BASTAVA REMODELAR A CIDADE, era preciso civilizar seus habitantes. Utilizando seus amplos poderes, Pereira Passos interferiu diretamente no cotidiano da população, alterando e disciplinando seus costumes.

Sua primeira medida foi proibir a venda de miúdos em tabuleiros e a ordenha de vacas em vias públicas, obrigando a vacinação destesanimais com tuberculina e definindo normas para fiscalização dosestábulos. Procurou extinguir a mendicância, internando, à força em asilos, os incapazes para o trabalho e encaminhando os outros,inclusive menores, à polícia.

Baniu a venda de bilhetes de loteria, estabeleceu licenças paraambulantes. Ordenou a captura e morte de cães vadios e instituiuimposto para quem tivesse esses animais dentro de casa. Proibiu a criação de porcos no quintal, a manutenção de hortas de comércio em zona urbana e a passagem pela cidade de cargueiros: tropas de animais, atrelados uns aos outros, transportando produtos hortigranjeiros.

E as proibições se sucediam: os fogos de artifício, as pipas e os balões, o candomblé e outros cultos de origem africana, o entrudo, as serenatas e a boemia.

� A “CIVILIZAÇÃO” DOS MORADORES

Inauguração do eixo da Avenida Central. Kosmos, setembro de 1904.Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa.

“Peixeiro”, de ArmandoPacheco, e “Dançarina de Macumba”, de autordesconhecido. Imagens de personagens do Rio deJaneiro, compiladas do livroO Rio de Janeiro do Meu Tempo,de Luiz Edmundo.

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