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1 1 Território, categoria analítica e operativa dos processos sociais vivenciados no campo: reflexões elaboradas a partir de um assentamento do Incra 1 Margarita Rosa Gaviria M. 2 Resumo Com base na análise do processo social vivenciado em um assentamento do Incra, neste artigo, trato, na parte introdutória, acerca dos pressupostos teóricos que levaram à adoção do território como referência de ação de políticas públicas e como eixo de análise das transformações no campo. Após a exposição do cenário no qual o território se destaca como noção operativa, discorro sobre suas possibilidades analíticas na abordagem de processos sociais vivenciados no campo. Nesse sentido, assinalo, em um primeiro momento, o contexto no qual os territórios são delimitados por fronteiras geográficas e físicas, fundamentados em um poder institucional. Posteriormente, abordo os territórios cujo fundamento de poder é social. Mostro como, nesse âmbito, identidades de diversa natureza (religiosa, produtiva e de origem) constituemse em componentes territoriais. Reflexões que revelam as ambigüidades e contradições inerentes ao processo identitário. Para desvendar os elementos que compõem os territórios sociais apóio me em representações do espaço e representações no espaço. Distinção através da qual abordo duas esferas de construção do território: 1) espaços de relações sociais (parentesco, origem social, família) por parte de pessoas que habitam a localidade; 2) as relações dos atores sociais com o espaço físico, sustentadas em concepções do espaço ( elaboradas em torno do meio ambiente, da natureza, da produção e do poder), que se traduzem em um determinado usufruto do mesmo. Por último, saliento a imbricação entre as noções de território e de fronteira, que me leva a destacar o caráter contingente e situacional dos territórios. 1 Tese de doutorado: “Identidades e Representações Sociais na Construção de Territórios em um asentamento do Incra em Paraty (RJ)” defendida em 27/8/04 no CPDA (UFRRJ). 2 Margarita Rosa Gaviria Mejia, antropóloga, mestre em antropologia social (Museu Nacional, UFRJ), doutora em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA, UFRRJ). Atualmente vinculada pelo Programa PRODOC da Capes ao Curso de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

,1998) · Margarita Rosa Gaviria Mejia, antropóloga, mestre em antropologia social (Museu Nacional, UFRJ), doutora em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA, UFRRJ). Atualmente

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Território, categoria analítica e operativa dos processos sociais vivenciados no campo: reflexões elaboradas a partir de um assentamento

do Incra 1

Margarita Rosa Gaviria M. 2

Resumo

Com base na análise do processo social vivenciado em um assentamento do

Incra, neste artigo, trato, na parte introdutória, acerca dos pressupostos

teóricos que levaram à adoção do território como referência de ação de

políticas públicas e como eixo de análise das transformações no campo. Após

a exposição do cenário no qual o território se destaca como noção operativa,

discorro sobre suas possibilidades analíticas na abordagem de processos

sociais vivenciados no campo. Nesse sentido, assinalo, em um primeiro

momento, o contexto no qual os territórios são delimitados por fronteiras

geográficas e físicas, fundamentados em um poder institucional.

Posteriormente, abordo os territórios cujo fundamento de poder é social.

Mostro como, nesse âmbito, identidades de diversa natureza (religiosa,

produtiva e de origem) constituem­se em componentes territoriais. Reflexões

que revelam as ambigüidades e contradições inerentes ao processo identitário.

Para desvendar os elementos que compõem os territórios sociais apóio­

me em representações do espaço e representações no espaço. Distinção através da qual abordo duas esferas de construção do território: 1) espaços de

relações sociais (parentesco, origem social, família) por parte de pessoas que

habitam a localidade; 2) as relações dos atores sociais com o espaço físico,

sustentadas em concepções do espaço ( elaboradas em torno do meio

ambiente, da natureza, da produção e do poder), que se traduzem em um

determinado usufruto do mesmo. Por último, saliento a imbricação entre as

noções de território e de fronteira, que me leva a destacar o caráter contingente

e situacional dos territórios.

1 Tese de doutorado: “Identidades e Representações Sociais na Construção de Territórios em um asentamento do Incra em Paraty (RJ)” defendida em 27/8/04 no CPDA (UFRRJ).

2 Margarita Rosa Gaviria Mejia, antropóloga, mestre em antropologia social (Museu Nacional, UFRJ), doutora em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA, UFRRJ). Atualmente vinculada pelo Programa PRODOC da Capes ao Curso de Pós Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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A introdução do território na análise das mudanças no campo.

Um exame atento à produção acadêmica sobre o meio rural permite

observar a pluralidade de sentidos conferidos à noção do rural. Dependendo da

perspectiva de análise pode estar referido a um espaço físico, a um espaço

social, a um estilo de vida, à agricultura e/ou a outras atividades econômicas, à

natureza, a um espaço de turismo e lazer. Em suma, os diversos conteúdos do

rural podem estar centrados no cultural, no ocupacional ou no ecológico (Duran

,1998) 3 .

Nas deliberações acerca do rural, dois postulados importantes estão

imbricados. Um, que um dos significados do rural, a agricultura, é uma categoria

polissêmica, tem um conteúdo econômico, cultural e social. Sendo valorizada,

não apenas como um setor da economia, mas por sua dimensão imaterial, como

modo de vida. Remetendo­nos ao pronunciamento de Goodman e Watts (1994),

em sua referência à Inglaterra dos anos 80, argumentamos que a agricultura é

cada vez mais residual em termos de investimento econômico, no entanto,

continua tendo importante presença social e ideológica na elaboração das

representações do rural. Quer dizer, a atividade agrícola exerce um papel

simbólico muito importante nas comunidades rurais.

Outro postulado diz respeito à relação rural­urbano. Contrariamente a uma

visão dicotômica, olha­se para o rural com ênfase nas relações decorrentes de

sua integração com o urbano em termos populacionais, de valores e ocupações,

entre outros. Estes universos estão em comunicação permanente, veiculada

pela mobilidade física e social dos atores sociais entre espaços diversos.

Através da mobilização rural­urbano­rural intercambiam­se informações, valores

e culturas.

Nesta ordem de idéias, o rural e o urbano contêm diferenças

classificatórias mutuamente relacionadas, pois as referências físicas,

econômicas e culturais de ambos universos estão interconectadas, e com base

nelas afirmam­se identidades (Wanderley, 2000; Remy, 1993). Nos termos de

Rambaud (1969) e Chamboredon (1980), o processo de “urbanização do espaço

rural” em vez de atenuar as diferenças, reforça as identidades e particularidades

3 Este autor apóia­se em Ceña (1992) para sua argumentação.

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apoiadas no pertencimento ao local. Identidades que se sustentam em aspectos

sociais, culturais e naturais do modo de vida no campo.

A alusão à diversidade de significados do rural, à dimensão imaterial da

agricultura e à visão não dicotômica da relação rural­urbano se insere no atual

debate sobre o desenvolvimento rural, elaborado com o intuito de erradicar a

pobreza rural e promover a participação dos atores sociais nas políticas

públicas, a sustentabilidade ambiental e o fortalecimento da agricultura familiar.

Objetiva­se, portanto, exortar mudanças de ordem econômica, social e ambiental

no meio rural. Tal como assinala Schneider (2004), as considerações nas quais

se sustenta esse debate são construídas em um contexto intelectual e político

que procura repensar o desenvolvimento rural nos termos em que tinha sido

moldado. Isto é, pelo crescimento econômico planejado e implementado por

regiões, quando as regiões eram definidas por marcas geográficas dos espaços

e serviam de parâmetro de avaliação do usufruto dos recursos feitos pelos

homens e dos rendimentos gerados pelos mesmos. Media­se a taxa de

crescimento econômico através do PIB e da renda per capita. No entanto, o

anacronismo da idéia do desenvolvimento restrito ao crescimento econômico é

superado, ao mesmo tempo em que cobra maior importância a participação dos

atores sociais nos programas implantados e há um reconhecimento à

diversidade de caminhos que seguem os processos.

Visando uma mudança na implementação de políticas públicas, abre­se

um conglomerado de ações e estratégias com o intuito de favorecer a

reprodução social e econômica das famílias rurais, contexto no qual o território

se torna em referência para a atuação do Estado na formulação de políticas

públicas. Cria­se, no Brasil, dentro do Ministério do Desenvolvimento Agrário,

uma Secretaria de Desenvolvimento Territorial, no âmbito da qual o território é

uma noção operativa (Schneider, 2004).

Concomitantemente a esse processo, nas discussões teóricas acerca do

desenvolvimento rural opta­se por pensá­lo em termos territoriais. Através da

abordagem territorial busca­se apreender a heterogeneidade econômica, social

e cultural dos espaços, independentemente da classificação nas categorias

“rural” ou “urbana”, construída sob hegemonias pretensamente

homogeneizantes.

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Em suma, o discernimento sobre a introdução do território como noção

que operacionaliza a aplicabilidade das políticas públicas no desenvolvimento

rural acontece paralelamente às reflexões sobre seu valor heurístico na análise

do processo vivenciado pelos atores sociais no meio rural. Elaboramos então

este artigo, interessados em trazer elementos que possam contribuir à discussão

dos recursos analíticos que oferece o território para o exame das transformações

econômicas, sociais e culturais em curso, no mundo rural. Transformações

observadas a partir de mudanças nas representações do rural, que se refletem

na diversidade de concepções e práticas e no perfil do universo social que habita

os espaços tidos como rurais 4 . Assim, os sentidos do “rural” modificam­se no

espaço e no tempo.

Nossas reflexões foram construídas com base no exame de um processo

social vivenciado pelos atores sociais que interagem num assentamento do Incra

(Taquari) em Paraty (RJ). Criado em 1983 para beneficiar os posseiros da

fazenda Taquari, mas, por influência de fatores internos e externos ao mesmo,

apresenta diversas peculiaridades que o diferenciam dos demais assentamentos

do Incra na região 5 . É reconhecido oficialmente como um assentamento do Incra

desde 1983, porém, por questões judiciais, esse projeto ficou parado por mais

de uma década . Além disso, no momento da criação, uma parte de sua área foi

delimitada no Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB) 6 . Ambos os fatos

levaram à intervenção governamental na localidade, através do Incra e do IBDF,

e têm contribuído para o desencadeamento de um processo social peculiar.

O vazio institucional deixado pelo Incra, por doze anos, e os atrativos

turísticos do PNSB, do município e da região estimularam a migração para a

localidade de diversos atores sociais. Em Taquari convivem, junto com os

4 Questão abordada na tese de doutorado da autora deste artigo, sendo que, o foco na pesquisa que subsidiou a tese não era na qualificação de um espaço tido como rural, mas na análise de um processo social. 5 Taquari é um dos três assentamentos do Incra no município de Paraty, os quais apresentam características e história comuns, localizados entre a estrada e a Serra, um contíguo ao outro. Se as origens dos assentamentos de reforma agrária englobam situações diferenciadas, no caso desses assentamentos, trata­se da regularização fundiária em terras ocupadas por posseiros há várias décadas. Nenhuma das áreas dos assentamentos está na faixa entre o mar e a estrada pois, na desapropriação, optou­se por deixar aquela área para os donos da fazenda). Assim, indo do Rio de Janeiro em direção a Paraty, pela BR 101, encontram­se do lado direito: primeiro, Taquari, depois, São Roque, e, em seguida, Barra Grande. 6 Com o objetivo de sustar os desmatamentos e recuperar áreas de vegetação sacrificadas, fruto da especulação imobiliária e da atividade turística, foi criado em Paraty, em 1971, o Parque Nacional da Serra da Bocaina (PNSB) 6 . Este Parque abrange parte dos municípios paulistas ­ Cunha, Bananal, Ubatuba e São José de Barreiro ­ e dos municípios fluminenses ­ Angra dos Reis e Paraty. No município de Paraty, localizam­se 41% da área do Parque (Brasil, 2002).

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beneficiários do Incra, atores sociais com formas de inserção social diferente.

Cenário social no qual se observam confrontos que resultam da disputa pela

forma de utilização do espaço e pelo controle de instâncias decisórias da vida

local, da qual participam órgãos governamentais como o Incra, o Ibama e a

Prefeitura de Paraty.

Uma vez que tomamos o processo de transformação vivenciado pelos

atores sociais no assentamento de Taquari como eixo da problemática e

procuramos meios de apreendê­lo, o território se revela uma noção de grande

utilidade, já que com base nela é possível delimitar fronteiras entre espaços

heterogêneos, examinar a dinâmica de composição e recomposição de espaços,

segundo interesses e valores diversos dos atores sociais.

Território: uma categoria de análise.

“Território”, ao igual que toda categoria sociológica, possui múltiplos

significados. Contudo, seu uso mais freqüente é para definir um espaço

delimitado fisicamente, em termos geográficos e populacionais, e reconhecido

institucionalmente. No caso analisado aqui, trata­se do território

“assentamento de Taquari”, que corresponde a uma área da Comunidade

Rural Taquari do município de Paraty, no Rio de Janeiro. Construído a partir da

luta dos posseiros de uma fazenda pelo direito a usufruírem da propriedade,

respaldados por órgãos governamentais e não governamentais (Incra,

Sindicato dos Trabalhadores Rurais, CPT, FETAG). Direito reivindicado sob

alegação dos posseiros serem “nascidos e criados” na terra ocupada e/ou por

levarem longo tempo de trabalho nela.

Nesse sentido, são três os componentes do território­assentamento: 1) a

área de terra delimitada, marcada por fronteiras geográficas precisas.

Corresponde a 958,74 hectares de terra, localizada entre o Parque Nacional da

Bocaina e a BR 101 ( estrada que liga os municípios de Angra dos Reis e

Paraty), a aproximadamente 20 kms da cidade de Paraty. Faz fronteira, por um

lado com o assentamento de São Roque, e por outro, com um núcleo 7 da

Comunidade de Taquari.

7 Núcleo é uma categoria utilizada pela administração municipal de Paraty para definir um concentrado de população em uma Comunidade Rural.

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2) O universo social, no início demandante e posteriormente benfeitor do

direito à terra, é composto por antigos posseiros da fazenda Taquari e/ou seus

descendentes, que participaram do processo que deu origem ao assentamento.

Alguns são “nascidos e criados” e outros provenientes de diversos estados

(São Paulo, Minas Gerais, Bahia). Contudo, no cadastro de 2001, o Incra inclui,

entre os beneficiários, aqueles que migraram para Taquari após a criação do

assentamento, durante o período de ausência do Instituto, por terem­se

apropriado ou comprado algumas áreas de terra. Trata­se de pessoas "de fora”

que começaram a chegar ao assentamento 10 ou 12 anos atrás.

Em 2001, os dados revelaram que, uma área 8 prevista para 60 famílias 9

estava com 270, das quais 83 tinham APO (autorização provisória de

ocupação) e 18, direito a crédito por possuir mais de 3 hectares. 10 Nesta

oportunidade, foram encontrados casos em que o assentado original residia no

local, mas ao fracionar o lote perdeu seus direitos perante o Incra, já que este

ficou abaixo da Fração Mínima de Parcelamento, estipulada pelo Incra como

lote de assentamento, perdendo os direitos como assentado (Gomes, 2002).

3) Outro elemento do constructo território­assentamento é sua

conformação institucional. O Incra, apoiado numa disposição jurídica e

ideológica, defende os direitos dos antigos posseiros da fazenda Taquari de

usufruírem produtivamente a terra. Nesse sentido, este Instituto exerce seu

poder definindo a área da fazenda a ser expropriada, em dimensão capaz de

solucionar o problema social, e expropria. Libera os recursos para o

pagamento do imóvel, determina que todos os moradores devem ser titulados

pelo órgão 11 , seleciona os beneficiários das terras expropriadas e impõe regras

de atuação na área.

Assim, a presença do Incra, através de seu projeto de assentamento,

cria uma nova relação dos antigos posseiros da fazenda Taquari com a terra

ocupada. É um projeto que se constrói determinando uma maneira específica

de usufruir da terra, expressa no esboço das expectativas do Instituto, quando

realiza a desapropriação em 1983, nos seguintes termos: “uma área destinada

8 Área de 958,7642 ha.; Perímetro 14.280.00 m. Definida em 5/2001. 9 Contam as casas como se fossem famílias. Estipula­se uma família por casa, seja ou não residente no assentamento. 10 Dados fornecidos pelo técnico do Incra que atua no assentamento. 11 Relatório do Incra, 15/6/1984.

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ao aproveitamento racional do solo agrícola com vistas a solucionar a situação

econômica e social dos colonos, devido aos problemas sofridos com a

especulação imobiliária” 12 . Então, o processo vivenciado por estes atores

sociais (Incra e posseiros) em relação, em um primeiro momento, à

desapropriação da fazenda Taquari, e no segundo, à apropriação da área,

induz a pensar na territorialização (construção de um território). Já que a

territorialização implica a reorganização do espaço físico e social, no caso

examinado alude à definição de quem usufruirá (universo social beneficiado), o

quê (tamanho da área de terra) e como será usufruído. Definição que acontece

sob o exercício de um poder institucional, que, no caso, compete ao Incra.

Quer dizer, o território­assentamento resulta da apropriação política e

administrativa do Estado ­representado pelo Incra­ sobre um espaço geográfico

e social delimitado, que se reflete num modo específico de gestão. Como

notaram Leite et alii (2004), um assentamento constitui­se, enquanto tal, em

um espaço diferenciado na relação com o Estado: é criado pelo Estado e está

sujeito à sua gestão e a sua ingerência.

O reconhecimento que os beneficiários fazem da gestão do Incra se

reflete na consideração a suas regras, bem seja acolhendo­se a elas ou

negando­as. Neste sentido, a territorialidade exprime o vínculo entre o cenário

social e a força dos poderes que organizam o quadro de funcionamento

político­administrativo. No exercício de poder, a administração política cria a

consciência dos espaços comuns e das estratégias a serem colocadas em obra

para agir coletivamente sobre um meio de vida. É nesse sentido que os

beneficiados do Incra, em Taquari, acionam sua condição de assentados para

receberem benefícios institucionais e usufruir das vantagens de serem

assentados.

Mas as fronteiras do território­assentamento, delimitadas pelo Incra e

reconhecidas por seus beneficiados não são fixas, em alguns contextos são

contestadas. Acontece quando os assentados ocupam áreas fora do perímetro

do assentamento delimitado pelo Incra, abrem espaços para a incorporação de

atores sociais com perfis diferentes ao deles, desenvolvem atividades

econômicas diversas (venda de lotes, os empreendimentos comerciais

12 Consta nos relatórios do Incra em 1983, sobre o processo de desapropriação da fazenda Taquari.

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particulares), sendo a agrícola uma entre outras. Esse processo leva à

construção de um território que vai além das fronteiras do assentamento, e a

força que leva a sua criação é assumida pelos beneficiários, sustentados no

poder que lhes confere o fato de serem “nascidos e criados” na área.

Fenômeno que nos coloca diante de dois territórios em confronto: um território

institucional, construído no exercício do poder do Incra sobre o assentamento,

e um território social, construído a partir da apropriação que os assentados

fazem da terra. Assim, ambos os atores sociais (Incra e beneficiários)

recorrem a dimensões de poder diferentes ­ social e institucional – como

elementos de fronteira do território.

Esses poderes representam componentes territoriais e são legitimados

simbolicamente no “papel” 13 pelos atores. Em um caso o “papel” demonstra a

legitimidade da ação do Incra na localidade e, no outro, dos beneficiados. Eles

recorrem ao significado do “papel” para sustentar suas reivindicações do poder

de atuação na localidade, conforme seus interesses sobre o usufruto da terra,

delimitada e qualificada como “assentamento”.

A situação aludida conduz a pensar que em Taquari o “assentamento” é

um território que se constrói e desconstrói na relação entre o Incra e seus

“beneficiários”. Atores que, mesmo em posições diferentes, colocam­se como

co­responsáveis e co­autores.

Dirigindo a atenção para o contexto no qual se ultrapassam os limites do

território­assentamento, quando o universo social é ampliado, pois a inserção

social como assentado é uma entre várias, e as práticas sociais, em geral, não

seguem os preceitos estipulados pelo Incra, deparamo­nos com diversos

territórios. Eles aludem a campos de relações sociais e a práticas

desenvolvidas nos espaços. Portanto, o território evoca espaços diferenciados

de relações sociais e de relações das pessoas com o espaço físico.

O território e as identidades

13 Chama a atenção o fato de que, tanto na discussão acerca da função do Incra no assentamento, seu poder e autonomia para atuar, como na luta da população para alcançar a autonomia para agir sobre suas áreas de terra, o elemento que valida uma ou outra situação é o "papel". Para cada um desses atores sociais (Incra e população beneficiária), o "papel" representa um instrumento da legalidade da ação sobre a área desapropriada, é um símbolo da autonomia para empreender ações nela.

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Situando a análise na heterogeneidade social, gerada a raiz das

múltiplas formas de inserção e das múltiplas atividades na localidade de

Taquari, quando a base geográfica é apenas um dos componentes territoriais,

refletimos, seguindo Raffestin (1986) e Barel (1986), sobre o caráter simbólico

dos elementos territoriais. Dessa perspectiva, o espaço geográfico e os

elementos materiais e imateriais são referenciais de elaboração simbólica, cujo

conteúdo varia conforme o contexto social e cultural.

Remetendo­nos a Taquari, observamos que a relação com o território

está mediada por uma simbologia cultural. Os nativos evocam um vínculo

natural com a terra pelo fato de serem “nascidos e criados”, alguns se referem

a uma ligação maternal por “ter o umbigo enterrado na terra”, que, desta ótica,

significa “ficar na terra para sempre e livres de maus costumes”. Simbolizando

assim, através desses discursos, a incorporação e identificação com um

território conformado por atores sociais que partilham de um passado comum,

gestado na localidade.

Um elemento simbólico marcante na construção do território dos

“nascidos e criados” é a banana, apontada como elemento constitutivo da

paisagem no passado da localidade. Estes atores sociais se remetem à

paisagem, caracterizada por plantações de banana, com uma lembrança

saudosa: “essa mata que tinha daqui para dentro era tudo banana”; “no Sertão

da pousada para cima era tudo bananal”; “era um bananal lindo, tiraram para

botar capim, isso aí é destruir nosso pedaço, porque quando tem bananal

conserva uma área e o pasto daqui resseca a terra”. Neste contexto, para os

nativos da localidade a paisagem simboliza vestígios de uma história local.

Já a paisagem para os “ de fora” simboliza, por um lado, sentimentos de

prazer, derivados do contato com a natureza, da moradia no campo. Por outro,

evoca um estilo de vida agrícola, valorizado pelas práticas agrícolas

desenvolvidas e pelo meio ambiente social e natural que a define.

Nesse sentido, os territórios não são criações arbitrárias, mas

construções elaboradas de acordo com um contexto social e cultural. Eles se

compõem e decompõem conforme as posições dos atores sociais, vivenciadas

na idéia de pertencimento ou de identificação com elementos culturais ou

materiais. A identidade, nestas circunstâncias, orienta o comportamento dos

atores sociais e dá sentido à mobilização.

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A natureza das relações sociais, que levam à construção ou

desconstrução dos territórios, é de afinidade e de alteridade. Isto é, a

territorialidade é também uma relação de alteridade (Raffestin, 1986), é uma

maneira de viver com os outros. Nas relações de alteridade, o Outro é tudo o exterior a ele mesmo. Os bens simbólicos e as percepções do espaço

constituem­se em recursos através dos quais os atores sociais sustentam as

diferenças, marcam a individualidade perante os outros. No simbolismo

encontra­se a fronteira entre os mundos da identidade e da diversidade.

Em outros termos, as diferenças culturais utilizadas para assumir

posições diante daqueles com que estão em processo de interação permanente

implicam na construção de um conjunto de relações sociais e espaciais que

conformam territórios. Para demarcar fronteiras sociais nas relações com outro ou o outro, e nas práticas cotidianas de inclusão e exclusão em territórios sociais são acionados os elementos identitários.

Tal como notaram Donnan e Wilsom (1999), em universos sociais onde

não reinam a unidade e a homogeneidade (como em Taquari), as fronteiras

culturais, definidas pelas noções de ruptura e de diferença cultural, são

provedoras de significados e modelos de ação. Na localidade, como notamos a

seguir, os atores sociais recorrem, principalmente, a diferenças expressas na

origem social (entre os “nascidos e criados” e os “de fora”), no âmbito da

produção (“viver da terra” e “não viver da terra”) ou no âmbito religioso (entre

“crentes” e “não crentes”). Os “nascidos e criados” e os “de fora”. No espaço físico e social de Taquari observo que, de um modo geral,

há uma divisão social entre os residentes moradores instalados na localidade

há duas ou três gerações: os “nascidos e criados” e os “de fora”. Inspirados na divisão social referida por Norbert Elias (2000) entre os “estabelecidos” e os

“outsiders”, percebemos que as categorias “nascidos e criados” e “de fora”

representam uma identidade social construída segundo a origem espacial.

“Nascidos e criados”, como seu próprio nome o indica, é a categoria

usada pelos que nasceram e se criaram na localidade de Taquari para se

identificar e se distinguir socialmente. Nesta categoria se inserem os gestores

das lutas pela terra que deram lugar ao assentamento: representam os antigos

posseiros da fazenda e/ou seus descendentes. Por outro lado, “de fora” é uma

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categoria de identificação social que designa e auto­designa aqueles atores

sociais de origem social diferente dos nativos. Entre os “de fora” há também

uma divisão social determinada pela origem espacial e pelo tipo de inserção na

rede de relações sociais. Distinguem­se os procedentes de outras zonas rurais,

os procedentes de zonas urbanas, os que têm residência secundária 14 e os

turistas. Vive da terra e não vive da terra O exame da identidade com a agricultura demonstra que esta não é

concebida, exclusivamente como uma prática econômica. Constata­se o

fenômeno assinalado em estudos sobre campesinato, e recentemente os de

multifuncionalidade na agricultura 15 , de que a agricultura, além de uma prática

produtiva em termos mercantis, é uma prática que denota classes de relações

tanto das pessoas entre si quanto destas com o ambiente. Deste ponto de

vista, analisa­se a agricultura pensando que a condição de produtores

agrícolas é uma das dimensões sociais. Nesse sentido, os indicadores da

identificação com a agricultura são diversos, entre eles, na localidade

estudada, destacam­se: a natureza das relações sociais, as concepções de

tempo e os valores morais ligados à produção e ao consumo de bens imateriais

e materiais. Como o assunto é extenso e o interesse aqui é o de salientar a

oposição estrutural, não vou me aprofundar sobre ele.

De um modo geral, focando a atenção nos elementos de identificação com

a agricultura em Taquari, a primeira questão que se coloca é a classificação

nativa entre quem “vive da terra” e quem “não vive da terra”. “Viver da terra” é

uma expressão local utilizada para descrever a situação em que o lavrador

obtém a sua subsistência do trabalho agrícola, sem desempenhar nenhuma

atividade fora da agricultura. Poderia se dizer que é uma situação ideal, pois na

realidade empírica não acontece. Distinguem­se, no entanto, os que

14 Uma das transformações na relação rural/urbana é que o meio rural passa a ser cena social secundária da população urbana. Ver Chamboredon (1987).

15 Através da noção de multifuncionalidade pretende­se destacar as funções não econômicas da agricultura. Assim, em pesquisas recentes sobre o tema, a noção de multifuncionalidade é apresentada como uma nova perspectiva de análise da agricultura familiar, que permite observar a interação entre famílias e territórios na dinâmica de reprodução social. Como realçam Carneiro e Maluf (2003: 21), “implica considerar os modos de vida das famílias rurais na sua integridade, e não apenas seus componentes econômicos, como também incorporar à análise a provisão de bens públicos por parte destes agricultores relacionados com o ambiente, com a segurança alimentar e com o patrimônio cultural”.

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desenvolvem práticas econômicas agrícolas como atividade principal e os que

as desenvolvem como atividade secundária. Crentes e não crentes Um ambiente social heterogêneo leva a que os atores sociais procurem

se unir a outros com quem compartilhar idéias e valores, que sustentam

posições de ordem religiosa e se revertem em outras esferas da sociedade.

Num plano geral, na localidade de Taquari, as diferenças sociais apontadas

podem ser observadas na divisão entre “crentes” e “não crentes”.

As identidades de cada uma das categorias sociais – “crente” e “não

crente” ­ se constroem de acordo com a participação religiosa, a qual é

evidente na adoção de certos comportamentos.

As crenças e símbolos servem para marcar diferenças. Interessam, pois,

como disse Novaes (1997), são matéria­prima para a construção de

identidades que motivam e respaldam as disputas pelas diferentes formas de

inserção na localidade. De acordo com Piault (2003), para compreender a

diversidade de crenças é preciso ligá­las às circunstâncias de sua constituição

e de sua prática. É importante ressaltar as motivações que conduzem a

organizar, “na sua diversidade e seu contexto” (p.373), crenças e

representações religiosas do mundo e dos atores sociais em seu seio. Ou seja,

a proposta consiste em apresentar as dinâmicas constitutivas das crenças, do

ponto de vista dos crentes e em relação ao esquema social que as determina

Na localidade de Taquari, as diferenças religiosas correspondem a

diversas vias exploradas pelas igrejas para se posicionar. Tais diferenças

foram examinadas a partir das concepções religiosas dos fiéis das diversas

igrejas.

Abordamos as formas de expressão de identidade religiosa apoiados no

argumento de Agier (2003) sobre o “coração da identidade”. 16 Para o autor, a

identidade é uma relação, em duplo sentido. Primeiro, uma relação entre

múltiplos indivíduos e um coletivo mediatizado por símbolos reconhecidos

como sendo comuns. Segundo, uma relação entre o “vivenciado” e o

“mostrado” do ritual na cena pública. Quando a identidade é posta à prova da

16 Ao descrever os carnavais do Ilê Ayê na Bahia e em Tumaco (Pacífico colombiano) mostra como, na conjugação de símbolos religiosos e étnico­culturais se cria uma identidade cultural instável e momentânea.

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representação, forma­se e transforma­se sob o olhar do outro. Encenam­se

atributos culturais específicos de uma identidade ante os outros. Sobre esse

duplo sentido da identidade, tratamos das identidades, primeiro dos “não

crentes” e depois dos “crentes”.

Os “não crentes” identificam­se com a religião católica, apesar de que

muitos não participam das atividades religiosas programadas por dita igreja 17 .

O que todos eles têm em comum, praticantes e não praticantes, é a valorização

das imagens religiosas. Contudo, a identidade religiosa dos “não crentes” é

construída numa relação de alteridade com os “crentes” em torno de três

questões: a tradição, o estilo de vida, e a liberdade.

Enquanto os não crentes sustentam sua identidade apoiados na tradição,

entre os crentes, a tendência é para a destradicionalização 18 . Isto é, o

processo identitário rompe com um alinhamento automático com a tradição.

Deste modo, a religião dos crentes constrói formas de identificação e atributos

identitários que geram orientações e instituem certos modos de intervenção

social (Birman, 2003:238). No universo social de Taquari, são “crentes” ou

evangélicos os atores sociais vinculados às igrejas: Batista, Assembléia,

Advenista e Deus é Amor. Destacam­se três elementos que sustentam a

identidade religiosa dos evangélicos: o poder de transformação, a organização

social em comunidade e o estilo de vida.

Enfim, aprofundar nos significados dos elementos culturais relativos a

cada um desses âmbitos (a origem, a agricultura e a religião), revelou a

multiplicidade de identidades e a complexidade que esta multiplicidade lhes

imprime ao cenário social. O cruzamento entre estas três formas de inserção

social permite ver que a definição de identidades gera ambigüidades, que

resultam do fato das pessoas interagirem com quem, em alguns contextos, se

identificam, mas que em outros, mantêm relações de alteridade. As relações

17 Segundo uma das encarregadas das pastorais da igreja católica, os freqüentadores desta igreja são em torno de 20 pessoas. 18 Os estudos sobre religião no Brasil revelam que a religião dos “crentes” cresceu significativamente nos anos 90 nos estratos populares (Novaes, 1997). Trata­se de uma tendência à “(neo)pentecostalização” do campo religioso no Brasil, analisada por Velho (1997). Este autor, apoiado na literatura sociológica sobre religião, interpreta este fenômeno como resultado da destradicionalização, identificada menos como uma quebra de tradição e “mais com a reflexividade e conseqüente perda de alinhamento automático com a tradição, o que seria aparentemente próprio da hermenêutica, que interrompe o pertencimento ao mundo por tradição a fim de significar” (p.55). Velho associa a “pentecostalização” com elementos vinculados à destradicionalização, tais como, a ênfase no presente, nas diferenças, na experimentação e no indivíduo.

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entre as pessoas são simultaneamente de identidade e de alteridade. Portanto,

a articulação com os outros através da identidade é parcial.

Estas observações apontam para o caráter reflexivo da identidade

postulado por Hall (2001), pois se vive em meio a uma diversidade cada vez

maior em termos de contatos, diferenças e disputas que colocam cada ator

diante dos outros individualmente e sem pertencimento fixo, exclusivo ou

definitivo, o que conduz à criação de uma identidade (individual ou coletiva)

múltipla, inacabada, instável, sempre experimentada, mais como uma busca do

que como um fato. O ator social assume identidades diferentes em diferentes

momentos, identidades contraditórias empurrando em diversas direções.

Então, em situações como a de Taquari, não estamos diante de uma comunidade homogênea e permanente, manifesta em todos os aspectos da vida social, mas diante de “territórios”construídos como estratégias de

organização social desenvolvidas em ambientes caracterizados pela

heterogeneidade social, econômica e cultural. Territórios aos quais propomos

uma aproximação.

As representações na construção de territórios

Para abordar a dimensão territorial dos processos sociais na localidade

de Taquari, analisamos as representações, já que os atores sociais se

posicionam no espaço de maneira reflexiva 19 . Melhor dizendo, as

representações são manipuladas para justificar as ações, as ações modificam

as representações e, nesta relação entre ações e representações do espaço e

no espaço, constroem­se territórios. Daí a necessidade, assinalada por Diegues

(1998), de analisar as representações que os sujeitos fazem de seu espaço,

pois com base nelas eles agem. São representações diferenciadas, que

significam ­ entre outras ­ que a percepção social do espaço não é feita

somente das representações das limitações materiais ao funcionamento da

economia, mas também de juízos de valor e de crenças.

Examinar o território implica em examinar os dispositivos sociais que

levam a que os atores sociais conheçam e sintam os limites de seus territórios

19 Desta perspectiva e seguindo Godelier (1984) , as idéias não são instâncias separadas das relações sociais. O pensar é colocar em movimento a matéria: a idéia é uma realidade sensível.

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e se reconheçam dentro deles. Quer dizer, o território denota um espaço que o

indivíduo conhece, onde se reconhece e é reconhecido. Fato que, como

assinala Tizon (1996), remete à noção de habitus de Bourdieu. De acordo com essa noção, as práticas, as representações e as classificações do espaço e

dos atores sociais nele, utilizando tipologias, resultam de um processo de

aprendizagem social, decorrente de um conhecimento adquirido socialmente

de maneira inconsciente. Deste modo, a territorialidade é uma dimensão

espacial do habitus, que se constitui e se vive de maneira inconsciente. Cada um, segundo as origens sócio­espaciais, posição social, status familiar e idade,

dispõe de um leque amplo de práticas e representações que marcam as

relações com os lugares, com suas raízes, e os novos arranjos nos espaços

freqüentados.

Em geral a territorialidade se constitui e se vive inconscientemente.

Apenas se transforma em elemento consciente da ação coletiva quando há

necessidade de marcar uma identidade social territorializada, uma vinculação

ao lugar, aparece. Quer dizer, o significado atribuído aos espaços praticados e

representados somente se revela de maneira consciente em situações

extremas, entre elas, quando se impõe a necessidade de se afirmar

territorializado para existir ou se defender diante de uma estratégia considerada

exógena. É frente à afirmação de um “nós” diante dos “outros” que o “meu”

exprime uma ancoragem territorial.

Tendo em conta a relação dialética implícita na construção do território ­

como espaço referido e referencial ao mesmo tempo ­ a escolha dos elementos

territoriais e as combinações são processos sociais. No exame das

representações, selecionamos alguns dos elementos que conformam os

territórios, observando as relações entre estes elementos (uns atuam sobre os

outros, modificando­se reciprocamente) e o sentido que lhes é atribuído

Inspirados em Barel (1986) ressaltamos que cada pessoa se habitua a

mais de um território. É raro que um único território seja suficiente para assumir

todas as dimensões da vida de um ator social. Há um multi­pertencimento

territorial. Os territórios são distintos por definição e por princípio de construção,

podem ser organizados hierarquicamente a partir de critérios diferentes, se

tocam, se interpenetram em certos pontos, porque têm elementos comuns.

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Este multi­pertencimento cria um fenômeno de superposição territorial, que

dificulta a possibilidade de delimitar com exatidão os limites.

A esta análise subjaz o pressuposto de que o multipertencimento

territorial se reflete socialmente em ambigüidades e contradições, próprias dos

processos sociais e das transformações no campo contemporâneo. No

ambiente diversificado de Taquari percebem­se confrontos entre territórios que

geram tensões e conflitos nas relações sociais. Para abordar a construção,

sobreposição e confronto entre territórios, na localidade estudada analisamos

as representações sob dois ângulos: um, das representações no espaço, e o outro, das representações do espaço.

As representações no espaço são construídas nos posicionamentos dos atores sociais na localidade fundamentados, principalmente em identidades

construídas em torno da origem social, da religião, da família ou do parentesco.

Percebe­se que, de um modo geral, as diferenças de origem social

constituem um referencial simbólico utilizado para definir a classe de inserção

na localidade. Deste modo, as diferenças de origem social (manifestas ao

classificar as pessoas em duas categorias sociais: os “nascidos e criados” e os

“de fora”), quando assinaladas para caracterizar a situação dos atores sociais

na localidade, tornam­se um componente territorial.

Em vista de que a localidade passou a ser ocupada por pessoas de

diversas origens sociais e o espaço foi apropriado socialmente de múltiplas

formas, os nativos aludem a sua condição de “nascidos e criados”, em

oposição aos “de fora”, para defender seu poder sobre a terra e seu direito a

usufruí­la. Da mesma forma que os povos judeus e negros Bonnemaison

(2002), em algumas circunstâncias, os “nascidos e criados” em Taquari

evocam o território como um paraíso perdido que procuram recriar inspirados

nas referências ao vínculo com a “terra”, ao passado agrícola, idealizado pela

abundância na produção e pela ideologia católica que o sustentava.

Na composição do território dos “nascidos e criados”, além da origem, os

significados do nome da família e do parentesco revelaram­se elementos

territoriais relevantes. A esse respeito é preciso examinar esta questão

reconhecendo os múltiplos significados e elementos contidos na “família”, as

conotações desta noção variam segundo a natureza do discurso em que é

nomeada, bem como, segundo o contexto social aludido através do termo.

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Significados que denotam valores, idéias e classes de relações; sendo a

referência ao “nome” e ao “parentesco” alguns dos indicadores destes valores

e classes de relações.

Com relação ao “nome de família”, pode­se dizer que para os “nascidos

e criados”, a diferença dos “de fora”, tem significado social. Ele está associado

a uma série de valores e a uma história de vida social construída em Taquari.

Representa personagens cujas ações incidiram sobre o rumo da localidade.

Em outras palavras, o nome de família é um elemento de fronteira, através dele

se alude a um contexto social no qual representa uma família (das pioneiras)

valorizada e respeitada, principalmente, pelo papel desempenhado por seus

membros (sejam eles vivos ou falecidos) no passado da localidade. Com efeito,

a menção ao nome das famílias dos “nascidos e criados” e pelos “nascidos e

criados” remete a um território em que este tem um significado particular,

elaborado ao longo dos anos, por várias gerações, a partir da convivência

social estabelecida desde o nascimento. A conotação social do nome de

família, portanto, refere­se a uma qualidade dos “nascidos e criados” em

Taquari que, quando é mencionada, reforça as fronteiras com os de “fora”.

Igualmente, entre os “nascidos e criados” é recorrente a afirmação, “aqui

tudo é família”. O exame do significado desta expressão revelou que, se em

alguns contextos da fala o termo “família” denotava uma representação ou um

valor, em outros, aludia a uma rede de relações sociais permeadas pelo

parentesco. A conotação da “família­parentesco” denota que, além do vínculo

social há um vínculo de sangue. Em certas circunstâncias, na afirmação, “aqui

tudo é família”, os atores sociais destacam o vínculo de parentesco que

permeia apenas as relações sociais entre os “nascidos e criados”.

Mesmo que a declaração “aqui tudo é família” remeta a uma totalidade,

ela não está referida ao conjunto da população, mas a um campo de relações

amplas e dispersas pela localidade, geralmente definidas como relações entre

parentes. Situação enunciada pelos “nascidos e criados” nos seguintes

termos:“..aqui a maioria são parentes, primos, têm primos que nem conheço”; “

aqui é engraçado, se você for falar entre a comunidade mesmo, os que não

são irmãos são primos, os que não são primos são cunhados, os que não são

cunhados são sobrinhos, é a família toda”.

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Mas como já foi reiterado em diversos apartes desta artigo, o universo

social de Taquari caracteriza­se pela diversidade, as origens dos atores sociais

são múltiplas, e nem todas as relações sociais que se estabelecem na

localidade são de parentesco. Geralmente, entre os “de fora”, nenhuma das

inserções sociais em Taquari se estabelece por parentesco. Portanto, quando

os “nascidos e criados” manifestam “aqui tudo é família” estão­se situando num

território onde os “de fora” não estão contemplados, em vista de que entre os

“de fora” e os “nascidos e criados” dificilmente existem vínculos familiares. É

nesse sentido que postulamos que o parentesco é um outro referencial

simbólico das fronteiras sociais dos “nascidos e criados” com os “de fora”.

Quanto às representações do espaço, elas apontam para as diversas formas de se colocar diante do espaço, são construídas a partir da percepção

do espaço, como unidade física, valorizado segundo o uso que se faz dela. Ou

seja, na análise das representações nos deparamos com diferentes lógicas de

relações que permeiam os usos dos espaços. Entre elas destacamos as

relativas ao meio ambiente, à natureza, à produção e ao poder. .

Meio ambiente. Dentro da lógica de usos do espaço, um elemento em torno do qual se

constrói um território é o meio ambiente que, seguindo a definição de Riviére

(2001), denota aquilo que está próximo fisicamente ou humanamente de uma

população, o meio paisagístico no qual se insere um habitat. Em outros termos, o meio ambiente corresponde ao cenário da natureza com o qual convivem os

atores sociais e como tal, constitui­se num bem coletivo. Porém, os critérios de

valor do meio ambiente não são unânimes entre os atores sociais. Dirigindo a

atenção para Taquari, em contextos onde os atores sociais relacionam­se com

o meio ambiente, estes lhe atribuem valores específicos e, a partir deles,

configuram regras e fronteiras para as práticas desenvolvidas no habitat da localidade. Refiro­me, neste estudo, às áreas de proteção ambiental dentro e

fora do Parque Nacional da Serra da Bocaina. Dentre estes atores sociais

estão o Ibama e a localidade, os quais, de uma perspectiva relacional,

assumem posições opostas entre si. Em primeiro lugar, a posição do Ibama é

velar pelo PNSB e pela Área de Proteção Ambiental de Taquari,

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fundamentando sua política ambiental naquilo que Diegues (1998:53) define

como “mito naturalista” 20 .

Sustentado neste “mito naturalista”, o Ibama age como um órgão

repressivo das atividades da população na área contemplada, exerce uma

fiscalização permanente. Multa e prende as pessoas que fazem

desmatamentos 21 , coloca em questão o direito ao acesso à natureza, tanto no

que se refere ao consumo de recursos naturais por parte dos caçadores,

lenhadores e agricultores, quanto em relação à sua utilização como potencial

turístico . Ao observar a posição do Ibama em relação ao PNSB, percebe­se

que este órgão desconhece a existência de preceitos locais que visam regular

o acesso aos recursos naturais como, por exemplo, o explicitado por um

agricultor ao se manifestar contra a proibição do Ibama de desmatar, para ele

desmatar não afeta o meio ambiente porque se “você derruba uma árvore,

nascem cinco”.

“ Natureza” um bem de consumo. A natureza é um dos componentes do meio ambiente. Em determinadas

situações representa um bem de consumo para as populações que moram ou

transitam pelo espaço rural. A apropriação da natureza como bem de consumo

usufruído no meio rural associa­se às representações do rural vinculado à idéia

de natureza. Em termos gerais, perpassa, através das subjetividades e

representações do espaço, a consideração da proximidade do espaço rural

com a natureza; num contexto em que a natureza, como afirma Mathieu (1990),

“não é apenas suporte da atividade agrícola, mas uma natureza

pluridimensional, onde os elementos, água, ar, terra....retomam importância,

tanto quanto a noção de ecossistema” (p.40).

A análise das representações do rural­natureza demonstra como as

propriedades e qualidades da natureza inerentes ao meio rural são reiteradas

pelos atores sociais para sustentar uma posição no espaço. Estas

20 O mito naturalista é uma representação simbólica pela qual existiriam áreas naturais intocadas e intocáveis pelo homem, apresentando componentes num estado “puro” até anterior ao aparecimento do homem. Esse mito supõe a incompatibilidade entre as ações de qualquer população e a conservação da natureza. 21 Um dos agricultores que tem lotes no Parque disse que a polícia o prendeu porque fez um desmatamento, mas ficou livre quando explicou que ele tinha arrancado um bananal velho plantado por ele.

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representações do rural­natureza, que definem uma apropriação específica do

espaço, levaram­nos a pensar na “natureza­bem de consumo” como um dos

componentes territoriais em Taquari, e nos introduziram à reflexão sobre a

superposição de qualificação de espaços. Assim, à representação do rural

como espaço de contemplação opõe­se a representação do rural como espaço

de produção. Produção. Em vista de que, em alguns contextos as representações do espaço

fundamentam­se no uso produtivo, parto do pressuposto de que a produção

constitui­se num outro elemento definidor de territórios dentro da lógica de usos

do espaço. Na destinação do espaço rural para a produção, se encaixam

lavradores, comerciantes, prestadores de serviços e o Incra 22 . À exceção do

Incra ­ que apenas prega (não desempenha) um determinado uso produtivo ­

os outros atores sociais, embora de formas diferentes, realizam práticas

produtivas no espaço. Um mesmo ator social faz usos diferentes do espaço,

em alguns momentos atua como lavrador, em outros presta serviços na

construção civil e assim por diante. Desta ótica assinalamos as práticas

produtivas em si, não as categorias sociais usadas para designar as práticas

produtivas no espaço, porque é em torno dos usos do espaço, das práticas no

espaço que focamos aqui a construção dos territórios. Poder. Na análise das representações do espaço, uma das questões que nos

colocamos é o exame do Incra, do Ibama e da Prefeitura como atores sociais

que exercem seu papel fundamentados no poder. Poder respaldado por um

aparato jurídico, e no caso considerado aqui, se expressa na definição de

limites e regras sobre o uso do espaço apoiados numa concepção de rural.

Nesse sentido, o exercício de poder dessas instituições, através de suas ações

(às vezes excessivas e opressivas), se reverte na construção de territórios.

Cada instituição, valendo­se do poder que lhe conferem as regras de direito (a

legislação que respalda sua atuação, o instituído), se consolida enquanto tal e

produz um discurso acerca do rural. Discurso que veicula uma concepção de

22 Acerca da posição do Incra não vou tratar agora, pois na continuação, dedico um capítulo inteiro ao assunto.

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rural, a qual, em alguns contextos, entra em confronto com outras.

Na esfera do poder institucional, trava­se, nos termos de Foucault,

uma “guerra” de forças, ou seja, uma disputa entre atores sociais, para os

quais a localidade é um espaço de legitimação de seu poder. As disputas

acontecem porque os atores sociais considerados se envolvem em uma luta

puramente simbólica para impor uma representação de rural, conforme seus

interesses. Eles impõem posições ideológicas, que são estratégias para

reforçar dentro da instituição e fora dela a legitimidade de dominação 23 . Deste

ótica, a construção do território envolve um controle, de caráter simbólico e

disciplinar, sobre as formas de ordenação do espaço.

Enfim, o foco no território a partir de um universo empírico permite

ressaltar diversas dimensões do espaço nas quais os territórios são

construídos, multiplicidade de elementos que podem ser abordados como

componentes territoriais e o multipertencimento territorial. Contudo, seguindo as

concepções de território de Haesbaert (2001) e voltando nossa atenção para

Taquari, afirmamos que nesse cenário há: territórios sócio­culturais construídos

em torno do parentesco, do passado da localidade e da relação dos nativos

com os “de fora”; territórios naturais, que se definem nas relações dos atores

sociais com o meio ambiente e a natureza; territórios de produção, que se

constroem na apropriação do espaço para a produção em diversas atividades

(agrícolas e extra­agrícolas); e territórios jurídico­políticos, construídos nos

espaços delimitados e controlados pelos órgãos governamentais ( Prefeitura,

Ibama e Incra) e pela população, onde estes atores sociais exercem seu poder.

Considerações finais

Para finalizar, vale a pena salientar o lugar da fronteira na discussão do

território. Interessa na medida em que ambas as noções estão imbricadas, pois

os elementos definidores da fronteira determinam a natureza do território. Assim,

por exemplo, quando o território é definido por parâmetros geográficos,

23 Para tratar sobre o poder, me inspiro em Bourdieu (1989). Para este autor, cada “classe” e “fração de classe”, está envolvida numa luta puramente simbólica para impor uma definição do mundo social conforme seus interesses. Elas impõem tomadas de posição ideológicas, que são estratégias de reprodução tendentes a reforçar dentro da classe e fora dela a crença na legitimidade de dominação.

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institucionais e por padrões normativos ­ como no território­assentamento, mencionado no início do artigo ­as fronteiras são fixas, e poderíamos dizer,

considerando a colocação do Incra, irrevogáveis. Já quando as identidades

constituem­se em componentes territoriais, as fronteiras dos territórios são

flexíveis, se constroem e desconstroem conforme a situação. A análise das

fronteiras revela, então, o caráter contingente dos territórios. Através dela

percebe­se que as especificidades dos territórios são contextuais e situacionais,

pois não são permanentes, nem abrangem, necessariamente, o conjunto da

população que habita uma área geográfica.

Deparamo­nos, portanto, com características diferenciadas nos

territórios, uns são mais fechados, outros mais híbridos, possibilitam maior

diálogo intercultural e a emergência de múltiplas formas de identidade.

Contudo, a fluidez das fronteiras é um fenômeno característico da

sociabilidade em localidades compostas por um universo social heterogêneo.

Heterogeneidade que observamos em Taquari a partir das diversas maneiras de

usufruir do componente material do espaço, quando examinamos práticas e

representações em torno de elementos de produção, consumo, preservação

ambiental e poder. Bem como, no exame da diversidade de formas de inserção

social, definidas por identidades construídas em torno de aspectos religiosos,

econômicos, políticos, de parentesco, etc. Nesse contexto, os territórios resultam

das diversas formas de identificação, articulação, confrontação e divisão. O jogo

constante de continuidades e descontinuidades territoriais que resultam da

mobilidade física e social dos atores nos indica outra característica das

fronteiras: sua arbitrariedade.

Então, quando se toma o território como referência de ação das políticas

públicas no meio rural, deve levar­se em conta que o território não denota

apenas um espaço físico, um elemento material. Ele é um espaço físico

carregado de simbolismo, expresso no conteúdo semântico dos elementos

materiais que o compõem, na natureza das relações sociais, nos valores e nas

identidades que se instauram no espaço e com o espaço. Essa dimensão

imaterial dos territórios deve ser considerada na execução dos projetos

imbricados nas políticas públicas. A criação de um assentamento, no caso de

Taquari, bem como qualquer outro programa de desenvolvimento, desenhados

para serem aplicados em áreas qualificadas operativamente de “territórios”,

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implica em um processo de territorialização. Ou seja, provoca mudanças na

relação que os atores sociais mantêm com o território, refletidas em

transformações em diversos âmbitos (social, econômico e cultural). Não só pela

natureza das ações das políticas públicas, mas também pelo posicionamento

dos atores sociais diante das políticas implantadas, estes acionam identidades

como forma de marcar fronteiras com o outro. É importante salientar, portanto,

que a territorialização não deve jamais ser entendida em direção de mão única,

dirigida externamente e homogeneizadora, pois sua atualização pelos atores

sociais conduz justamente ao contrário: à construção de identidades como forma

de reivindicar as diferenças ou afinidades com essas ações.

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