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1ª edição 2015 RIO DE JANEIRO S ÃO PAULO E D I T O R A R E C O R D

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Apresentação

O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro é promovido como o maior espetáculo da Terra. E tem motivos para reivin-dicar o título. São milhares de foliões, centenas de fantasias diferentes e dezenas de carros alegóricos que compõem ima-gens impressionantes, convenientes tanto para a televisão e a indústria do turismo, quanto para a autoestima da cidade e do país. Tanta exuberância é um banquete para os olhos.

No entanto, a visão é apenas um dos cinco sentidos. Numa festa sensual por natureza, melhor que todos eles sejam bem contemplados. Deixar a audição em segundo plano dá a sen-sação de que falta algo importante. O samba-enredo é funda-mental: por definição, porque o espetáculo é audiovisual; e por tradição, já que, antes de se destacarem pelas grandes alegorias, as escolas eram, sobretudo, espaços de produção musical.

Este livro desembarca no maior show da Terra cheio de euforia para destacar como o talento do compositor popular contribuiu para a glória do carnaval carioca. Não de forma isolada, já que, nas crônicas sobre os sambas-enredo, um a cada capítulo, estão as circunstâncias em que eles nasceram,

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cumpriram a sua finalidade na avenida e não chegaram ao fim porque são lembrados até hoje. Na minha visão, o contexto importa tanto quanto o texto. Por isso, não pretendo traçar um perfil estritamente musical nem instigar uma luta contra o predomínio do visual. Há registros de conflito de interesses entre compositor e carnavalesco, mas também dos momentos em que a criação de um complementa a do outro.

Escolhi quinze sambas não só pela sua qualidade em particular. Pesaram na minha decisão histórias interessantes que eles trazem. O mais antigo é de 1964; o mais recente, de 1993. Ou seja, apenas aqueles que se mostraram capazes de resistir na memória por pelo menos duas décadas. Na seleção há referências objetivas como o fato de terem levado notas máximas, ajudado a ganhar o título ou terem sido premiados. Há casos, entretanto, em que o mais curioso é justamente o samba entrar para a história mesmo após perder pontos e a escola ficar mal colocada. Nesses, principalmente, prevaleceu o meu gosto, tão subjetivo quanto o do leitor. Cada um tem a sua lista dos melhores.

O ponto de partida foi a série publicada no jornal O Globo em janeiro e fevereiro de 2013 homônima ao livro. Entrevistei compositores, carnavalescos e diretores de harmonia; vi vídeos de desfiles; consultei jornais, revistas, livros, arquivos e de-poimentos de sambistas ao Centro Cultural Cartola. Busquei toda a informação disponível, e o resultado é uma narrativa cuidadosa dos fatos, porém sem a pretensão de revelar “toda a verdade”. Muitas outras histórias ainda podem ser contadas sobre o mesmo assunto. Todas elas versões saborosas que comprovam a forte presença dos grandes sambas-enredo no imaginário brasileiro. É por isso que eles merecem estar aqui.

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1 Aquela aquarela mudou

Império Serrano, “Aquarela brasileira”, 1964

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Ahistória do Carnaval registra como uma efeméride que em, 1964, Ary Barroso, autor de “Aquarela do Brasil”,

morreu horas antes de o Império Serrano entrar na avenida Presidente Vargas com “Aquarela brasileira”, de Silas de Oliveira. O desfile teve temática semelhante à obra do com-positor nascido em Ubá, Minas Gerais, e torcedor fanático do Flamengo, o mesmo time do sambista imperiano. Uma coincidência dessas não poderia ser ignorada, da mesma forma que a passagem de um cometa pela Terra. Mas hou-ve algo tão ou mais surpreendente naquele ano: o samba--enredo da verde e branco — regravado por Martinho da Vila, Elza Soares, Dudu Nobre, Zeca Pagodinho e reeditado pelo Império no Carnaval de 2004, com a reverência devida apenas às unanimidades — não ganhou as notas máximas. No júri oficial, “O segundo casamento de dom Pedro I”, da Portela, foi o melhor, com um ponto a mais que o sambão da Serrinha.

Cinco décadas depois, ninguém tem dúvida quanto à bar-baridade que foi aquele julgamento. “Aquarela brasileira” é eterno, enquanto a música da Portela pode, sem polêmica, ser

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deixada de lado em antologias. Mais do que uma avaliação equivocada, foi um escândalo.

E havia um jornalista na época capaz de compartilhar a indignação da Serrinha por ser um imperiano de fé. Além de torcedor, José Carlos Rego tinha com a verde e branco relações de amizade, compadrio (era padrinho de Silas de Oliveira Jr.) e amorosas, porque namorou uma neta de Tia Eulália, fundadora.

Coube a ele assinar as reportagens mais veementes con-tra a injustiça. E com o espaço devido. Na capa da Última Hora de 17 de fevereiro de 1964, segunda-feira seguinte ao Carnaval, a segunda chamada com mais destaque — a primeira falava do aumento de servidores públicos — era “Samba protesta hoje contra o júri que premiou Portela”. Estava acima do texto: “As escolas de samba vão formalizar hoje perante o sr. Carlos Lacerda o seu protesto contra o julgamento que deu à Portela o título de campeã de 1964 e que injustiçou o autor do samba do Império Serrano, mestre Silas de Oliveira , autor da ‘Aquarela Brasileira’, que todo o povo cantou durante o desfile, e um dos mais fluentes poetas-sambistas das novas gerações...”

Silas caminhava para os cinquenta anos. Faria 48 em 4 de outubro de 1964. Por que foi chamado de sambista da nova geração? Talvez porque não fosse novo de idade, mas novidade para muita gente. Ainda não tinha conquistado o status capaz de tornar uma ousadia imensa tirar pontos da sua “Aquarela”.

Depois daquele Carnaval, ele só cresceu em talento, fama e prestígio até virar unanimidade. Em agosto de 1968, assinou com o portelense Walter Rosa a trilha do

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musical Dr. Getúlio, sua vida sua glória, dos imortais Dias Gomes e Ferreira Gullar, com Nelson Xavier, Tereza Rachel e Emiliano Queiroz no elenco. Estava ao lado da elite cultural e, certamente, a fama conquistada com o clássico “Os cinco bailes da história do Rio”, com Dona Ivone Lara e Bacalhau, de 1965, contribuiu para que fosse chamado a fazer o samba--enredo do espetáculo.

Para 1969, ele comporia, com Mano Décio e Manoel Fer-reira, “Heróis da liberdade”, eleito em enquete realizada pelo jornal O Globo em 2003 como o melhor samba-enredo de todos os tempos. Morto em 1972, virou enredo da Imperatriz em 1974. E chegou consagrado de tal forma a 2004, quando o Império reeditou “Aquarela brasileira”, que os jurados do Grupo Especial ficaram à vontade para tirar pontos da Ser-rinha em todos os quesitos, com exceção de samba-enredo. Com quarenta anos de atraso, a obra imortal ganhava as merecidas notas máximas, além do Estandarte de Ouro em votação unânime.

Quem ousaria, em 2004, negar ao viga-mestre do Império a consagração devida? Ninguém, pois já em 1964, quando Silas ainda não tinha status de mito, tirar pontos de uma de suas obras mais bonitas não era coisa que se fizesse impunemente. Havia gente capaz de dar voz à indignação imperiana. Na reportagem com chamada na capa da Última Hora de 17 de fevereiro, Rego não contemporizou: “Derrota da ‘Aquarela’ injustiçou o poeta do Império” era o título publicado na página 5 do Segundo Caderno. “Todo o sentimento da dor de uma perda de campeonato que possa existir na mística e alma das escolas de samba está reunido na insensibilidade

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com que o juiz de letra e melodia1 da comissão julgadora das grandes escolas de samba julgou o samba do Mestre Silas de Oliveira, da Império Serrano.”

Em seguida, o jornalista destaca que a nota 3 (a máxima era 5) foi contestada até por adversários. Além disso, afirma que bastaria a composição “Samba”, em parceria com Mano Décio da Viola, para torná-lo imortal. E acrescenta que Silas é “respeitado por duas gerações de sambistas, evocado com respeito em todos os terreiros do Rio de Janeiro, com a sua composição ‘Aquarela brasileira’, Silas de Oliveira ganhou toda a cidade neste Carnaval. Talvez isso lhe tenha valido muito mais do que a consagração de melhor samba do desfile que a comissão julgadora lhe negou.”

O texto apaixonado de Rego, falecido em 2006 e velado com a bandeira verde e branca sobre o caixão, revela a cum-plicidade de quem se sentia um pouco responsável pela “Aquarela brasileira”. Contam Marília T. Barboza da Silva e Arthur L. de Oliveira Filho, autores de Silas de Oliveira: do jongo ao samba-enredo, que, em novembro de 1963, o jornalista deu um empurrão para que o sambista, após três anos, voltasse a fazer samba-enredo. “Então, me falaram que a única coisa que faltava para o Silas voltar a compor era uma reportagem. Eu fui fazer”, disse ele.

Silas se sensibilizou com a reportagem e a insistência dos amigos e compôs o samba, dois meses depois. O repórter acompanhou a criação e orientou o sambista a não aceitar nenhum parceiro.

1 Na verdade, apenas a letra perdeu pontos. Foi julgada separada da melodia, que teve a nota máxima, 5. Cada quesito tinha um jurado diferente.

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O autor mudou a letra por sugestão do jornalista. Segundo os autores do livro, “Quando o samba ficou pronto, havia um verso que preocupou José Carlos Rego. Era assim: ‘Os rios enfeitados de jangadas.’ É que, segundo haviam lhe dito, jangada não anda em rio, só no mar. Falou com Silas. Este, sempre cordato, foi correndo alterar o samba. E como se Moacir Rodrigues (presidente) descobrisse, no momento, que ele esquecera de falar em São Paulo, o verso incorreto foi substituído por ‘São Paulo engrandece a nossa terra’”.

Quando o samba foi composto, José Carlos e Silas já tinham começado a amizade que durou até a morte do compositor, em 1972. Eram próximos, já que o jornalista viria a batizar o primeiro filho homem do sambista, Silas de Oliveira Jr., nascido dois meses depois daquele Carnaval, em 15 de abril de 1964. A ligação do repórter com a família Oliveira sobre-viveria à partida do autor de “Aquarela”.

Em entrevista a mim, Silas Jr. contou que o jornalista esteve presente em sua vida depois que seu pai morreu, quando ele tinha oito anos. Foi uma referência masculina para o herdeiro do poeta. “José Carlos segurou a minha onda”, diz ele, que se aventurou a seguir o exemplo paterno sem o mesmo sucesso.

É certo que Silas ouviu o jornalista para alterar a “Aquarela brasileira”. Mas a descoberta de um antigo panfleto com a le-tra pelo site “Esquentando os tamborins” indica que pode ter havido outras mudanças, não registradas em Silas de Oliveira: do jongo ao samba-enredo. E isso não seria surpresa alguma e tampouco desmereceria o excelente trabalho de pesquisa dos autores do livro, porque é comum que compositores burilem suas obras enquanto podem. Há modificações decididas

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pouco antes do prazo de entrega e até depois da decisão. Enquanto o CD oficial não é gravado, dá para mexer.

No panfleto há um trecho — do qual faz parte o verso referente às jangadas — que sofreu alterações na versão de-finitiva: “Brasília tem o seu destaque / Na arte na beleza e formosura / Bem merece ter o nome Belacap / É símbolo de paz e de ternura / Do leste por todo centro-oeste / Tudo é belo / E tem encantos mil / Os rios enfeitados de jangadas...”

A ser autêntico o panfleto, São Paulo ficou de fora em algu-ma fase da composição. Os versos “Bem merece ter o nome Belacap / É símbolo de paz e de ternura” foram substituídos por “Feitiço de garoa pela serra / São Paulo engrandece a nossa terra”.

Outra diferença do panfleto em relação à versão definitiva é que o título é “Aquarela do Brasil”, o mesmo da música de Ary Barroso. Na cobertura do Carnaval de 1964 dos jornais O Globo, Jornal do Brasil e Última Hora, no entanto, aparece o nome “Aquarela brasileira”, como sempre foi conhecido. Ou seja, o panfleto é um registro curioso, mas deve ser conside-rado com cautela.

Na reportagem sobre a injustiça contra Silas na Última Hora, foi publicada a íntegra da letra. Na maior parte, os versos correspondem ao que se ouve na gravação de Mar-tinho da Vila em 1975, na reedição do samba-enredo em 2004 e em outras gravações. Mas há uma diferença mínima que pode esclarecer uma questão importante. Em vez de “É um episódio relicário”, consta no jornal “É um episódio, um relicário”.

As duas versões cabem perfeitamente na melodia, mas, do ponto de vista da letra, a alteração muda o sentido. Ao

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escrever “Episódio relicário”, Silas estaria dando à segunda palavra, um substantivo, o valor de adjetivo, o que teria mo-tivado críticas.

Na letra reproduzida pela Última Hora, o “problema” es-taria resolvido, já que, separado pela vírgula do “episódio” e antecedido do “um”, o “relicário” voltaria à sua condição de substantivo. A mudança pode ter sido uma falha de digitação (há outras) ou uma tentativa de correção do “erro”. E até uma iniciativa de José Carlos Rego para proteger o compadre da acusação de não ter bom domínio da língua portuguesa.

Especulações à parte, uma coisa é certa. Silas contemplou todas as regiões do Brasil.2 Ouvida hoje, a música parece incompleta por não falar em Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, mas naquela época São Paulo fazia parte da região sul. E a Serrinha foi do Oiapoque ao Chuí, levando para a avenida Presidente Vargas a destaque Cecília repre-sentando uma gaúcha.

E se em 2015 a escola de Madureira pena há seis anos na tentativa de voltar ao Grupo Especial, em 1964 entrou na Presidente Vargas preparada para brigar pelo título entre as grandes. Não se acomodou por contar com a música mais bonita daquele ano (e uma das melhores de todos os tempos) e investiu em outros quesitos. Enquanto o Salgueiro tinha Arlindo Rodrigues, profissional de TV, a verde e branco contratou o cenógrafo, diretor de arte e roteirista de cine-ma Cajado Filho para fazer suas alegorias. Ele, que assinou

2 A separação do Brasil por regiões naquela época incluía São Paulo no Sul. O estado passou a fazer parte do sudeste a partir do decreto nº 67.647, de 24 de novembro de 1970.

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diversos trabalhos para os estúdios da Atlântida, declarou na época que queria mostrar um Carnaval moderno e bem diferente dos apresentados até então pela Serrinha.

O investimento incluiu bancar a viagem do artista plástico Jorge Bettancourt (que dividiu o trabalho com Cajado Filho, Dino Florêncio e o escultor Soares) a outros estados em busca de inspiração, segundo reportagem da Última Hora de 21 de ja-neiro de 1964. A ideia era ser ambicioso e inclusivo, sem deixar de lado nenhum rincão na “Aquarela brasileira” (ver foto 1).

Os imperianos gastaram tudo o que podiam para brilhar em 1964. Cada baiana saiu por 600 cruzeiros, enquanto a des-taque — chamada assim porque sua fantasia se sobressai pela riqueza — Olegária dos Anjos gastou 800. Não surpreende porque a Serrinha foi fundada por estivadores aguerridos nas lutas sindicais, que jamais admitiriam ver sua escola dando uma de coitadinha.

Se a expectativa em relação à verde e branco era grande, o desfile não decepcionou. “Império foi a melhor escola com samba que merece nota 10” foi o título da reportagem, assi-nada por Marcos de Castro, que ocupou toda a página 3 do Caderno B do Jornal do Brasil de 13 de fevereiro de 1964. Para Castro, a Serrinha “esteve impecável em todos os pontos, mas num entre todos se destacou, e foi no samba — um magnífico samba de Silas de Oliveira, de uma riqueza melódica rara. [...] Se marcou pontos altos na melodia — e na letra — do seu samba, a Império os deve ter marcado em vários outros itens, também, pois o desfile de sua escola esteve perto da perfeição que se pode exigir dela”. Ao comentar a passagem da Unidos do Cabuçu, que veio com enredo semelhante (“Brasil de nor-te a sul”), ele diz que sua apresentação “não deu para fazer

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esquecer — muito pelo contrário — a ‘Aquarela brasileira’ magnífica do Império”.

O texto de Marcos de Castro é a impressão de apenas um jornalista, mas reportagens não assinadas do Globo e da Última Hora também falam da Serrinha como favorita. No Globo, ela é apontada como “a vedeta da noite”; na Última Hora, diz-se que “Aquarela brasileira” foi a melhor música das dez e que a escola era candidata ao título.

Mas o resultado acabou com a festa. Naquela época, letra e melodia eram julgadas separadamente, com notas de 1 a 5. “Aquarela brasileira” levou 3 do antiquário Paulo Afonso de Carvalho, jurado de letra. Já a melodia ganhou a nota máxima de Edgar da Rocha Miranda, somando 8 pontos, o mesmo que “Chico Rei”, de Djalma Sabiá, Geraldo Babão e Binha, do Sal-gueiro, e um a menos que o samba da Portela, de Antônio Alves.

O presidente do Salgueiro, Osmar Valença, declarou que a Serrinha não podia ter recebido uma nota daquela. E Milton Cordeiro, advogado da vermelho e branco, protestou em nome de todas as agremiações: “Não pelo samba do Salgueiro que reclamo, mas sim pelo do Império, que todo mundo cantou na avenida.”

A indignação não era só da boca para fora. O consenso de que “Aquarela” era uma obra-prima foi sincero e dois meses depois do Carnaval a música ganhou uma gravação em LP pela Discobrás. Naquela época, isso era um privilégio porque os sambas-enredo não eram lançados em disco anualmente. A faixa foi o título do primeiro LP de Carmem Silvana, que se destacara como puxadora. Isso um ano antes de Dona Ivone Lara ser a primeira mulher a assinar um samba-enredo em grande escola, “Os cinco bailes da história do Rio”.

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A Serrinha foi a terceira a desfilar, depois da Unidos de Padre Miguel, que abriu os trabalhos por volta das 22 horas de domingo, 9 de fevereiro, e da Unidos da Capela. Sua derrota foi fragorosa. Ficou em quarto, somando 44 pontos, enquanto a vencedora, a Portela, totalizou 59 e a vice, o Salgueiro, 58. Se é verdade que a história sempre é contada pelos vencedores, aquele Carnaval da verde e branco estaria condenado ao es-quecimento. Mas foi justamente o contrário. O samba-enredo passou pelo filtro da memória e seu autor virou herói. Não um dos “Heróis da liberdade”, outra pérola sua, mas um daqueles personagens a quem se recorre em momentos de grande risco nos filmes e desenhos animados.

E o Império Serrano estava a perigo em 2003, quando a Liga Independente das Escolas de Samba autorizou reedições de samba-enredo para 2004, em comemoração aos vinte anos de sua fundação e da inauguração da Passarela do Samba. Décima segunda colocada e mergulhada em mais uma crise política, recorreu aos poderes de Silas para se recuperar. E o herói da Serrinha fez a sua parte. Além de ganhar as notas máximas, “Aquarela brasileira” emocionou o público e o Império ganhou os Estandartes de Ouro de melhor escola, samba-enredo, bateria, puxador e ala de baianas.

No júri oficial, a verde e branco ficou em nono lugar. Sem vencer desde 1982, não conseguia em 2004 se equiparar à modernidade das adversárias nas alegorias e fantasias, na coreografia da comissão de frente e em tudo mais em que é preciso dinheiro, eficiência e pragmatismo. O que apresentou de mais competitivo tinha sido feito quatro décadas antes, o samba-enredo, o único quesito em que ganhou as quatro notas máximas.

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Uma ironia “Aquarela” ser um trunfo do Império em 2004, porque no Carnaval de 1972 Silas foi descartado por sua es-cola sob o argumento de que estava ultrapassado. Ele tentou fazer um samba mais simples para 1972, em parceria com um compositor jovem, Jorge Lucas. De nada adiantou contrariar sua natureza, porque perdeu na final por 5 a 0 para Heitor Achiles, Wilson Diabo e Maneco, cuja letra tinha uma gíria que o viga-mestre jamais usaria: “Que grilo é esse / Vamos embarcar nessa onda...”

Em 1971, o Salgueiro tinha vencido com “Pega no ganzê”, nome com que ficou conhecido “Festa para um rei negro”, de Zuzuca, reforçando a convicção de que, para ganhar, era preciso ter músicas de refrão fácil e grande comunicação com o público. Sambas de letra rebuscada como os de Silas seriam coisa do passado a partir de então.

“Aquarela brasileira” se safou da má colocação do Império em 2004. Estava acima do bem e do mal. Tanto que, no Desfile das Campeãs, a vencedora Beija-Flor cantou com entusiasmo o samba da adversária para esquentar na concentração. “Eu quis prestar uma homenagem a um dos maiores composito-res de todos os tempos”, disse Laíla, diretor de Carnaval da escola de Nilópolis.

O desfile da Serrinha nadou contra a corrente em 2004. Os componentes não estavam formados em fila como uma parada militar, fórmula que domina as escolas hoje. Vieram soltos, como nos bons tempos. Foi uma reedição não só de samba, como também de um tipo de Carnaval que há muito não se via, como ressaltou a carnavalesca Maria Augusta, comentarista da TV Globo. Ela declarou que aquilo sim era evolução de verdade e que o Império estava dando uma aula.

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Igualmente empolgado, Haroldo Costa disse que se emoção fosse quesito, o Império teria a nota máxima garantida. E no final afirmou que tinha acabado de passar uma das prováveis campeãs do Carnaval.

Como a emoção não valeu nota, a verde e branco sequer voltou ao Desfile das Campeãs. Nona colocada com 380.9 pontos, ficou atrás de agremiações sem comparação com sua tradição musical, como a Viradouro, quarta, e a Unidos da Tijuca, vice com o Carro do DNA, de Paulo Barros. Não resis-tiu à comparação com escolas mais adequadas às exigências da modernidade, perdendo, entre outros quesitos, 2.2 pontos em conjunto e 1.5 ponto em alegorias e adereços.

Nos quarenta anos que separam 1964 da reedição, aquela aquarela mudou. Se na versão original a Serrinha esperneou porque o júri não percebeu que ali estava uma obra-prima, quatro décadas depois entrou na Sapucaí segura de que sua música era um consenso. Não seria preciso se preocupar porque as notas máximas no quesito estavam garantidas. Não haveria outra hipótese.

E tamanha unanimidade se deve, em parte, a um sambis-ta que carrega no nome uma coirmã. “Aquarela brasileira” conheceu o sucesso na indústria do disco como a principal faixa do LP Maravilha de cenário (título tirado de um verso de Silas), lançado por Martinho da Vila em 1975. Até então, boa parte do público desconhecia aquela beleza. A família do viga -mestre reconhece o quanto isso contribuiu para torná-lo ainda mais conhecido. “Quem colocou esse samba na mídia foi o Martinho”, diz Silas Jr. Tanto que até 2004 havia quem achasse que se tratava de uma obra do Poeta da Vila.

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Martinho conta que, mais do que a “faixa de trabalho” (a principal música para divulgação do disco na mídia), “Aqua-rela”, pautou toda a produção do LP. Ele gosta de álbuns temáticos e quis fazer um passeio pelo Brasil, com músicas inspiradas na malandragem carioca, um frevo (“Hino dos Batutas de São José”) e “Glórias gaúchas”, o samba-enredo da Vila Isabel de 1970, de sua autoria.

O disco anterior, “Canta, canta, minha gente”, de 1974, é até hoje um de seus maiores trabalhos. Houve quem aconse-lhasse o artista a esperar mais um pouco para lançar o próxi-mo LP, por achar que o público ainda estaria na ressaca. Mas ele conseguiu emplacar um sucesso atrás do outro. “Aquarela brasileira” é uma das músicas mais regravadas de seu reper-tório. “Agradeço muito ao Silas e ao Império Serrano por isso.”

Antes de Martinho, “Aquarela” foi a última faixa do LP Elza Soares, que a mulata assanhada lançou em 1973. O talento do compositor na voz sensual e rascante de uma das maiores intérpretes da MPB resultaram numa belíssima gravação. Mas a repercussão foi menor do que a do álbum Maravilha de cenário.

A “Aquarela” é irretocável, mas nem por isso prescindiu de um complemento no LP de Martinho. Ele conta que “Glórias gaúchas” foi a última música do disco porque o sambão parecia incompleto por não citar Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, os únicos estados da região sul a partir de 1970.

A música encantou Martinho principalmente pela versa-tilidade. Cada lugar do país citado, diz, corresponde a uma variação na melodia. “Elas são diferentes umas das outras, mas se encaixam perfeitamente. Não há choque.”

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