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130 anos do Carnaval de Salvador 2 1884 / 2014 História do Carnaval da Bahia Nelson Varón Cadena

1o capitulo

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1o capitulo do livro "história do carnaval da bahia", de nelson varón cadena. projeto gráfico de mauro ybarros. salvador, janeiro/2014

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130 anos do Carnaval de Salvador 2 1884 / 2014História do Carnaval da Bahia

Nelson Varón Cadena

Copyright © 2014 by Nelson Varón Cadena

Capa, projeto gráfico e ilustrações Mauro YBarros

Revisão Ana Lúcia Pereira

Site www.historiadocarnavaldabahia.com.br

Cadena, Varón Nelson S223f História do Carnaval da Bahia: 130 anos do Carnaval de Salvador. 1884-2014 – Salvador, Bahia, 2014 – 268 p.

1. Carnaval - Bahia - História 2. Carnaval - Bahia - Música e Estética CDD 780.42

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, Brasil)

ISBN: 978-85-916731-0-0

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05.

Os registros fotográficos deste livro foram cedidos por órgãos públicos, jornais e colecionadores. Se você é o autor de alguma foto não creditada, por gentileza, entre em contato conosco para repor os devidos créditos na próxima edição.

História do Carnaval

130 Anos d

o Carna

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de salva

dorda bahia

Por Nelson Varón Cadena

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I ParteCarnaval a bordo. A esbórnia que mata F 15Tudo começou na aldeia F 16Foi a igreja que inventou, e agora? F 17Um período do calendário F 17Da representação teatral ao Carnaval porco F 18Cinco dias de Carnaval em Salvador F 19Festa de lambança é festa de pobre F 20Entre a lama e a sarjeta F 21“Estrondosos e dissonoros batuques” F 22

II ParteEntrudo para todos. Ou quase todos 2 25Os preparativos para o Entrudo e o comércio mascate 2 26Atirando água e comida nos outros 2 27Na rua não, mas na porta do vizinho sim 2 29A imprensa condena o Entrudo 2 30Charles Darwin e a espécie que brinca Carnaval 2 30O Carnaval nasce no Teatro 2 32

III ParteDiversão compulsória por decreto n 37

Esquentando os tambores n 39Hordas devotas: misto de religiosidade e pagode n 41 Festa do Bonfim. Água e álcool n 42Tentativa de suprimir a Lavagem n 43Caretas e lança-perfumes no Bonfim n 44Romaria e folia n 45

A mulher com rabo de peixe n 46O Carnaval antecipado na festa da Mãe n 47

Banhos de fantasia e outras festas n 48Atrás do Bando Anunciador só não

vai. . . n 49

IV ParteA guerra ao Entrudo 2 53 A repressão por decreto 2 54Acertando a transição 2 55 Chegou tarde. Por que será? 2 57Au revoir à Entrudo. Déjà Carnaval 2 59Os primeiros blocos carnavalescos 2 61Críticas tudo bem. Mas não tanto 2 62Carros alegóricos e o luxo dos desfiles 2 63 Afoxés para dividir a atenção 2 65O Governo proíbe os afoxés 2 68Traje de baiana na capital do país 2 69A influência baiana no Carnaval do Rio 2 71 Zé Pereira também é baiano 2 73Máscaras por toda parte. Você me conhece? 2 74Tentativas de restringir o seu uso 2 75A inspiração das máscaras e fantasias 2 78“Careta, meta o cu na greta” 2 79A proibição dos confetes 2 80Mamãe Sacode: “O espanta-poeira” 2 81

V ParteRivalidade de mais de meio século F 85O maestro Carlos Gomes no Euterpe F 87Inocentes do Progresso e outros clubes F 89A propaganda faz a festa F 90Os reclames em versos e alegorias F 93Equinos e cocô por toda parte F 94Pranchas. Uma invenção baiana F 96A hora e a vez dos Corsos F 98 O Carnaval de salão não morreu F 100Os blocos de travestidos F 104A mídia da folia F 106Os jornais carnavalescos F 107Os Títulos-Reclamos F 108

A guerra sertaneja. Invasão anunciada F 108E então temos micaretas F 110Yankees na Avenida F 110No terreiro de Mãe Aninha surge um afoxé F 111

VI ParteOs Filhos de Ghandy m 115Em 1951 nasce o Trio Elétrico. A versão e o fato m 117O grande baile do Galo Vermelho m 119Gritos e berros de Carnaval m 120Um Rei Momo para chamar de seu m 123A rainha antes do rei m 125A incubadora do Trio Elétrico m 128O segundo tempo dos Trios Elétricos m 130A incrível e fantástica fábrica de Trios m 131Atrás do trio só não vai quem já morreu m 132Sobrou para os hippies e veados m 134A lavagem das escadarias da Praça e o Gay Power m 136Ritmos e Bossas do diabo m 138 Ritmos e Bossas após o rádio m 141Ritmos e Bossas entre o Frevo e o Samba m 143Ritmos e Bossas do Axé Music m 145

VII ParteOs Mercadores e Cavaleiros de Bagdá c 151 Escolas de samba pedem passagem c 152As carroças da Mudança c 157Os Internacionais c 158Os Corujas chegaram c 162Entre o Barão e o Jacu c 163Enquanto corria a barca c 166O Ciclo de Moraes Moreira c 167Com Gilberto Gil renasce o Ghandy c 169No baiano você não entra c 170Os blocos de índios c 172

A estética do Carnaval c 174A plasticidade dos totens iluminados c 178Da partitura ao vinil c 181Do vinil ao CD e ao DVD c 183

VIII Parte Segure o Cachimbo. Este é o Badauê 4 187Na senzala do barro preto 4 188O bloco do Faraó 4 190Todas as cores do Camaleão 4 192Na Estrada Velha do Aeroporto 4 194Cheiro de rosas na Avenida 4 195O Povo de Ketu 4 197100 anos de folia 4 199Crocodilo é o bicho 4 200A explosão dos blocos de trios 4 201 Figurinos e coreografias na identidade afro 4 203O Cacique do Candeal 4 204Na Boquinha da Garrafa 4 206O Cortejo Afro 4 207Os circuitos do Carnaval 4 210O Habeas na consolidação da Barra 4 211O carnaval das estrelas 4 214

Confetes } 218Álbum de memóriasCarros Alegóricos . 234Discos . 236Fantasias . 240Blocos . 242 Notas . 248Bibliografia . 251Nossos Patrocinadores . 255

“Nós não fomos catequizados. O

que fizemos foi Carnaval”. E fizemos

mesmo. Oswald de Andrade tinha ra-

zão quando expôs esta verdade no

seu manifesto antropófagico da Semana de Arte Moderna de 1922. Aprendemos com os Jesuítas que antes da Quaresma

é hora de folgar e debochar e criamos as nossas próprias coreografias; tomamos emprestado da natureza fibras e palhas e

confeccionamos máscaras e fantasias. E dançamos em círculo e em linha única e eles tocavam instrumentos com cordas e

nós soprávamos o toré e o ufuá, chacoalhávamos as maracas e com os pés marcávamos o ritmo. E disseram para a gente “isso

é Carnaval”. // O carnaval da Bahia nasceu no Circuito Batatinha lá pelas bandas do Terreiro de Jesus, onde os seguidores de

Inácio de Loyola estabeleceram aldeamento fora dos muros da cidade e conosco constituíram o primeiro cordão carnavalesco

da história. Folgávamos em círculo e em linha. Naquele tempo todo dia não era dia de índio, como sugere a música de

Jorge Benjor, todo dia era dia de branco. Dia de índio era mesmo no Carnaval, quando evocávamos a energia das plantas e

animais e imitávamos-lhes as formas; inspiravam-nos o figurino de corpo e os sons guturais dos cânticos e a viola europeia

não entendia por que a linguagem da natureza não dialogava com a polifonia. // Um dia chegamos em navios negreiros e no

tempo de festas caçávamos jiboias no mato e com o couro confeccionávamos instrumentos de percussão e em tempos de

Carnaval praticávamos a umbigada como coreografia do rebolado que eles denominaram de Lundu e apropriaram-se dele

como legado luso. Festejávamos as festas de Carnaval nas senzalas das fazendas e nas ruas da cidade que era nosso habitat. Os

nossos senhores comemoravam dentro de casa. Nós também, considerando que a rua era nossa casa. Era lá que passávamos

a maior parte do tempo no comércio de grito na porta, nas fontes públicas carregando água para servi-los, nas feiras livres e

no entardecer, quando nos reuníamos para jogar conversa fora e cheirar rapé. // A água era nossa, nós que a manipulávamos

e transportávamos e os brancos não entendiam o porquê gostávamos tanto das brincadeiras de jogar água nos outros, que

eles chamavam de Entrudo. Nunca entenderam, invejaram a prática. Metidos, substituíram o líquido por perfume francês e já

no século XX por cheiros fabricados pela Rhodia e quando eles atiravam comida na cara dos outros e lambuzavam os amigos

era diversão. Nós fazíamos a mesma coisa, mas não era visto nem encarado como lazer e acionavam a polícia. O Entrudo de

rua era para eles prática abominável, o de salão prática consentida. Jogar água neles era “atrevimento” punido com açoites e

noites no xadrez, eles jogarem na gente era “muito engraçado”. // Um dia levei meus senhores

para os bailes de Carnaval do Teatro São João. Reparei nas máscaras dos foliões e enxerido que

sou fui espiar pela janela, estava todo mundo correndo que nem louco para um lado e outro do

salão, um tal de “galope infernal” que tinha sido anunciado pelos jornais. Invoquei meus santos e

então compreendi que um dia isso se chamaria de coreografia de arrastão. E olhando para meus

colegas na rua, eufóricos com o som que escapava do edifício, dezenas deles aguardando seus

senhores, todo mundo marcando o ritmo com uma ginga de corpo, invoquei outra vez meus

santos e deles ouvi dizer: esta praça é do povoe mais de um século se passaria para um baiano

ilustre dizer de novo encima de um trio elétrico. // Quiseram acabar com o entrudo ali mesmo no

Teatro São João que representava o modelo de Carnaval “civilizado”, todo mundo mascarado, o

diabo no corpo. Não conseguiram, esse espaço estava fadado a ser o quartel general da galera

descolada como se dizia nos anos 70 que então tomaria conta da já denominada Praça Castro Alves. E o mesmo cenário de

“civilização” imaginado pelo Governo transformava-se num palco multicultural se cabe a palavra, não vou aqui descrever as

farras do pedaço, cenas impublicáveis para um livro de respeito como este. // Cansei de jogar água e farinha nos outros e me

vesti de arauto, empunhei um clarim e desfilei num garboso cabalo branco pela Rua Chile para uma multidão extasiada com o

PREFÁCIOPREFÁCIO

“Nos não fomos catequizados. O

que fizemos foi Carnaval”. E fizemos

mesmo. Oswald de Andrade tinha

razão quando expôs esta verdade

no seu manifesto antropófago da Semana de Arte Moderna de 1922. Aprendemos com os Jesuítas que antes da Quaresma

é hora de folgar e debochar e criamos as nossas próprias coreografias; tomamos emprestado da natureza fibras e palhas e

confeccionamos máscaras e fantasias. E dançamos em círculo e em linha única e eles tocavam instrumentos com cordas e

nós soprávamos o toré e o ufuá, chacoalhávamos as maracase com os pés marcávamos o ritmo. E disseram para a gente “isso

é Carnaval”. // O carnaval da Bahia nasceu no Circuito Batatinha lá pelas bandas do Terreiro de Jesus onde os seguidores de

Inácio de Loyola estabeleceram aldeamento fora dos muros da cidade e conosco constituíram o primeiro cordão carnavalesco

da história. Folgávamos em círculo e em linha. Naquele tempo todo dia não era dia de índio como sugere a música de Jorge

Benjor, todo dia era dia de branco. Dia de índio era mesmo no Carnaval quando evocávamos a energia das plantas e animais

e imitávamos-lhes as formas; inspiravam-nos o figurino de corpo e os sons guturais dos cânticos que a viola europeia não

entendia por que a linguagem da natureza não dialogava com a polifonia. // Um dia chegamos em navios negreiros e no

tempo de festas caçávamos jiboias no mato e com o couro confeccionávamos instrumentos de percussão e em tempos de

Carnaval praticávamos a umbigada como coreografia do rebolado que eles denominaram de Lundu e apropriaram-se dele

comolegado luso.Festejávamos as festas de Carnaval nas senzalas das fazendas e nas ruas da cidade que era nosso habitat. Os

nossos senhores comemoravam dentro de casa. Nos também, considerando que a rua era nossa casa. Era lá que passávamos

a maior parte do tempo no comércio de grito na porta, nas fontes públicas carregando água para servi-los, nas feiras livres e

no entardecer quando nos reuníamos para jogar conversa fora e cheirar rapé. // A água era nossa, nos que a manipulávamos

e transportávamos e os brancos não entendiam o por que gostávamos tanto das brincadeiras de jogar água nos outros, que

eles chamavam de Entrudo. Nunca entenderam, invejaram a prática. Metidos, substituíram o líquido por perfume francês, e já

no século XX por cheiros fabricados pela Rhodia e quando eles atiravam comida na cara dos outros e lambuzavam os amigos

era diversão. Nós fazíamos a mesma coisa, mas não era visto nem encarado como lazer e acionavam a polícia. O Entrudo de

rua era para eles prática abominável, o de salão prática consentida. Jogar água neles era “atrevimento” punido com açoites e

noites no xadrez, eles jogarem na gente era “muito engraçado”. // Um dia levei meus senhores

para os bailes de Carnaval do Teatro São João. Reparei nas máscaras dos foliões e enxerido que

sou fui espiar pela janela, estava todo mundo correndo que nem louco para um lado e outro do

salão, um tal de “galope infernal” que tinha sido anunciado pelos jornais. Invoquei meus santos

e então compreendi que um dia isso se chamaria de coreografia de arrastão. E olhando para

meus colegas na rua, eufóricos com o som que escapava do edifício, dezenas deles aguardando

seus senhores, todo mundo marcando o ritmo com uma ginga de corpo, invoquei outra vez

meus santos e deles ouvi dizer: esta praça é do povo e mais de um século se passaria para um

baiano ilustre dizer isso de novo em cima de um trio elétrico. // Quiseram acabar com o entrudo

ali mesmo no Teatro São João, que representava o modelo de Carnaval “civilizado”, todo mundo

mascarado, o diabo no corpo. Não conseguiram, esse espaço estava fadado a ser o quartel general

da galera descolada, como se diria nos anos 70, que então tomaria conta da já denominada Praça Castro Alves. E o mesmo cenário

de “civilização” imaginado pelo Governo transformava-se num palco multicultural, se cabe a palavra, não vou aqui descrever as

farras do pedaço, cenas impublicáveis para um livro de respeito como este. // Cansei de jogar água e farinha nos outros e me

vesti de arauto, empunhei um clarim e desfilei num garboso cavalo branco pela Rua Chile para uma multidão extasiada com o

brilho, atrás de nós um carro alegórico com charanga em cima. Desfilei também portando um estandarte e atrás de mim, em

fila indiana, um cordão de foliões seguia meus passos e quando cansei de desfilar arrumei uma cadeira e sentei na calçada para

observar o préstito e então reuni a família e me exibi num carro conversível enfeitado de flores. E com minhas boas relações

tomei emprestada uma prancha de bonde e juntei os amigos e uma banda do corpo de bombeiros, que tocava marchas e

maxixes e andei sobre os trilhos. // Naquele tempo carnaval de rua era diferente do carnaval de salão. O que distinguia um e

outro era o cheiro. No de rua, cheiro de cocô dos cavalos, burros, mulas e bois que conduziam

arautos e guardas de honra e puxavam os carros alegóricos e que ao sol do meio dia... melhor

tampar o nariz. No dos clubes o cheiro era de suor intenso, uma inhaca insana que fluía das

fantasias fechadas e compridas e que a gente disfarçava jogando esguichos de lança-perfume,

e tenho para mim que essa foi a inspiração dos criadores do produto. Um dia disseram que era

catinga ou cecê, que significava “cheiro de corpo”. Não seria Cheiro de Carnaval? No carnaval de

rua arriscava-me a ser descoberto, no de salão a máscara era figurino combinado, mais fácil de

passar despercebido. // Cansei de dançar modinhas e o tal de Charleston e parti para o maxixe

com as garotas fazendo o estilo melindrosas e um dia aprendi a mexer os ombros ao som dos

ritmos caribenhos das orquestras de salão, inspirados na Sonora Matancera e a cruzar as pernas

me abaixando, seguindo os acordes dos frevos de Capiba. E lá estava eu assistindo o clube

Vassourinhas do Recife na sua exibição de rua naquele ano mágico de 1951 e na semana seguinte eu vi Dodô e Osmar em cima de

uma fobica interpretando os sucessos do grupo e também “Mamãe eu Quero”, que naquele tempo nenhum músico escapava

à sedução das marchinhas cariocas. // Me inscrevi no concurso de sambas da Rádio Sociedade, perdi. Então me candidatei

a ser o Rei Momo pela rádio Excelsior. Rei não se elege, se entroniza, ouvi de alguém, e me apresentaram um tal de Ferreirinha

para não duvidar disso e me colocar no meu devido lugar.Nem por isso desanimei fui à rua fantasiado de pierrô, no ano seguinte

estrei como mandu e no outro vesti um macacão de cetim e uma careta e aprontei por aí. Um dia me vi de mortalha pulando

atrás do Trio elétrico de Moraes Moreira. Tocava um tal de frevo sem sombrinha e ao amanhecer da terça feira eu estava lá,

pulando de novo, ao som dos trios de Moraes, Dodo & Osmar com Armandinho e os Novos Baianos, um tal de encontros

de trios até o sol raiar. E o que eu vi, acreditem, tinha um não sei que do galope do teatro São João de meados do século XIX,

coincidência que tenha sido o mesmo espaço físico. // Cansei do frevo e no ano seguinte fui ver

o Ghandy e o Ilê e no outro adquiri um carnê e sai num bloco puxado por trio elétrico, ganhei uma

tal de mamãe-sacode que no meu tempo da primeira guerra mundial a imprensa chamava de

espana-poeira e eu sacudi como vi os outros fazerem. Anos depois cansei do galope de rua, fui

buscar uma cadeira para assistir os desfiles dos blocos.Não mais existiam, agora chamavam

de camarote, todo mundo em pé num espaço elevado, e foi lá que ouvi os “estrondosos e

dissonoros batuques” empolgarem os netos e bisnetos dos escribas que no século XIX assim

denominavam,do alto de sua ignorância, a música percussiva. // Saudoso, voltei para a aldeia

onde a catequese do Carnaval começou e a aldeia não estava lá; corri para o Teatro São João, na

esperança de dançar um galope infernal e o Teatro não estava lá; então fui assistir a apoteose

dos carros alegóricos no Largo do Politeama e o Largo não estava lá; vesti uma mortalha e varei

a madrugada na Castro Alves esperando o encontro de Trios Elétricos e os trios não estavam lá. Nada mais estava em lugar

nenhum. Apenas quatro séculos e um pouco mais tinham se passado desde minha primeira dança no terreiro e tudo era

dissemelhante.Para meu consolo a música era a mesma;uma tal de ióióióióió; lembrei

de meu tempo quando cantávamos tumtum, uêuê, uê ué, tumtum.

brilho, atrás de nós um carro alegórico com charanga encima. Desfilei também portando um estandarte e atrás de mim em

fila indiana um cordão de foliões seguia meus passos e quando cansei de desfilar arrumei uma cadeira e sentei na calçada para

observar o préstito e então reuni a família e me exibi num carro conversível enfeitado de flores. E com minhas boas relações

tomei emprestada uma prancha de bonde e juntei os amigos e uma banda do corpo de bombeiros que tocava marchas e

maxixes e andei sob os trilhos. // Naquele tempo Carnaval de rua era diferente do carnaval de salão. O que distinguia um e

outro era o cheiro. No de rua, cheiro de cocô dos cavalos, burros, mulas e bois que conduziam

arautos e guardas de honra e puxavam os carros alegóricos e que ao sol do meio dia...melhor

tampar o nariz. No clube o cheiro era de suor intenso, uma nhaca insana que fluía das fantasias

fechadas e cumpridas e que a gente disfarçava jogando esguichos de lança perfume, tenho

para mim que essa foi a inspiração dos criadores do produto. Um dia disseram que era

catinga ou CC que significava Cheiro de Corpo. Não seria Cheirode Carnaval? No carnaval de

rua arriscava-me a ser descoberto, no de salão a máscara era figurino combinado, mais fácil

de passar desapercebido. // Cansei de dançar modinhas e o tal de Charleston e parti para o

maxixe com as garotas fazendo o estilo melindrosas e um dia aprendi a mexer os ombros ao

som dos ritmos caribenhos das orquestras de salão, inspirados na Sonora Matancera e a cruzar

as pernas me abaixando, seguindo os acordes dos frevos de Capiba. E lá estava eu assistindo o

clube Vassourinhas do Recife na sua exibição de rua naquele ano mágico de 1951 e na semana seguinte eu vi Dodô e Osmar

encima de uma fubica interpretando os sucessos do grupo e também “mamãe eu quero” que naquele tempo nenhum músico

escapava a seduçãodas marchinhas cariocas. // Me inscrevi no concurso de sambas da Rádio Sociedade, perdi. Então me

candidatei a ser o Rei Momo pela rádio Excelsior. Rei não se elege, se entroniza, ouvi de alguém e me apresentaram um tal para

para não duvidar disso e me colocar no meu devido lugar. Nem por isso desanimei, fui à rua fantasiado de pierrô, no ano

seguinte estreei como mandu e no outro vesti um macacão de cetim e uma careta e aprontei por aí. Um dia me vi de mortalha

pulando atrás do Trio Elétrico de Moraes Moreira. Tocava um tal de frevo sem sombrinha e ao amanhecer da terça-feira eu

estava lá, pulando de novo, ao som dos trios de Moraes, Dodô & Osmar com Armandinho e os Novos Baianos, em um tal

de encontros de trios até o sol raiar. E o que eu vi, acreditem, tinha um não sei quê do galope do teatro São João de meados

do século XIX, coincidência que tenha sido o mesmo espaço físico. // Cansei do frevo e no

ano seguinte fui ver o Ghandy e o Ylê e no outro adquiri um carnê e saí num bloco puxado por

trio elétrico, ganhei uma tal de mamãe-sacode, que no meu tempo da primeira guerra mundial

a imprensa chamava de espana-poeira, e eu sacudi como vi os outros fazerem. Anos depois

cansei do galope de rua, fui buscar uma cadeira para assistir os desfiles dos blocos. Não mais

existiam, agora chamavam de camarote, todo mundo em pé num espaço elevado, e foi lá que

ouvi os “estrondosos e dissonoros batuques” empolgarem os netos e bisnetos dos escribas que

no século XIX assim denominavam, do alto de sua ignorância, a música percussiva. // Saudoso,

voltei para a aldeia onde a catequese do Carnaval começou e a aldeia não estava lá; corri para o

Teatro São João, na esperança de dançar um galope infernal e o Teatro não estava lá; então fui

assistir à apoteose dos carros alegóricos no Largo do Politeama e o Largo não estava lá; vesti

uma mortalha e varei a madrugada na Castro Alves esperando o encontro de Trios Elétricos e os trios não estavam lá. Nada

mais estava em lugar nenhum. Apenas quatro séculos e um pouco mais tinham se passado desde minha primeira dança no

terreiro e tudo era dissemelhante.Para meu consolo a música era a mesma; um tal de

iôiôiôiô; e lembrei de meu tempo, quando cantávamos tumtum, uêuê, uê ué, tumtum...A

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Carnaval a bordo. A esbórnia que mata Primeira semana de março de 1625 e a cidade de Salvador tes-

temunhava um Carnaval atípico, celebrado nas águas da Baía de Todos os Santos. O mar substituíra a rua como palco das festas de Momo, em função das contingências da guerra. Salvador tinha sido ocupada desde o ano anterior por tropas holandesas, que naquele verão esforçavam-se em manter em dia a despensa para alimentar a tropa e o que restara da população – apenas alguns índios e afri-canos. Funcionários públicos, comerciantes com seu séquito de es-cravos à tiracolo e religiosos tinham fugido para o recôncavo e sub-úrbios distantes. Alguns em retirada, outros compondo as forças de resistência.

Faltava de tudo na cidade. A população já se alimentava de cavalos, cachorros, gatos e ratos, mas a carência não foi motivo bastante para sacrificar as festas de época. E então o Coronel Albert Schout, chefe da tropa desde a morte do General Van Dorth, ordenou uma semana de folia: “Diversos capitães de mar e guerra celebraram du-rante mais de oito dias em seguidas e esplêndidas festas de Carna-val, com grandes banquetes de muito comer e beber”, relatou no seu diário Johann Georg Aldemburg, testemunha da época, ele próprio militante das fileiras batavas. (1)

O narrador destaca que as festas foram realizadas a bordo de quatro navios: Tiger, Utrecht, Samson e Groeningen, e foi tanta a animação, explica, que “por este alegre motivo, houve dias em que os navios e as baterias do mar (São Marcelo) davam 50, 80, 100 e 120 verdadeiros tiros em sua homenagem; um destes tiros foi dado contra a montanha e a própria ci-dade, o que causou grande inquietação nos quartéis”. Para as festas de Carnaval o co-mandante-em-chefe dos holandeses man-dou convidar seus prisioneiros mais ilustres: os vice-reis do Chile e Peru com sua esposa, genros, filhos e filhas, e ainda seu jesuíta de cabeceira.

Faltava de tudo na cidade, e mesmo a artil-haria que os holandeses então utilizaram para substituir os fogos de artifício nas comemorações carnavalescas não era abundante, mas o espírito de Momo falou mais forte, se impôs à tradição. E se o cronis-ta, por prudência, não relata os excessos, não parece extemporâneo que o Coronel Schout, comandante em chefe, tenha falecido logo em seguida, “atacado de uma doença de vermes, que dentro de vinte e quatro horas o comiam vivo: foi enterrado”.

Trecho da música “Um Índio”Caetano Veloso

Aquarela de Thomas Ender

Rugendas. Dança dos Puris

16

O relato de Aldemburg é um dos documentos mais antigos que con-textualiza a festa de Momo em nosso país, nunca antes mencionada na farta bibliografia sobre o Carnaval brasileiro. E embora se reporte à folia realizada a bordo dos navios fundeados na costa, por óbvios motivos de segurança, é certo que a tradição europeia de comemo-rar com festas o período que antecede a Quaresma foi mais forte que as circunstâncias de racionamento impostas pelo desabastecimento da cidade. É pena que o cronista não tenha relatado detalhes quanto às orquestras, ou grupos de músicos, já que foram quatro navios – dá para imaginar quatro palcos simultâneos –, e também quanto a más-caras e adereços e a ambientação característica, que se supõe fez parte do contexto. Ficou nos devendo.

Tudo começou na aldeiaQuando Pedro Álvares Cabral desembarcou na costa sul da Ba-

hia em abril de 1500, testemunhou a espontânea animação dos Tu-pinambás na festiva recepção à armada lusa. O escrivão-relator Pero Vaz de Caminha narrou com entusiasmo o após a celebração da mis-sa: “muitos deles tangeram corno e buzina e começaram a saltar e a dançar um pedaço” e na desembocadura do rio “andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos”. Então Caminha menciona o gaiteiro Diogo Dias: “e me-teu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita”. (2)

Não menos animada foi a recepção à esquadra de Martim Afonso de Souza quando aqui aportou em 1533. Pero Lopes, escrivão da frota e irmão do capitão, relatou que, por influência de Caramuru, os índios então promoveram grandes festas e bailes em sua homenagem. (3) Mas nenhuma dessas festas ou as outras narradas pelos cronistas da época tinham efetivamente o viés de Carnaval no seu verdadeiro significado, de data referencial que antecede a Quaresma.

Quando Thomé de Souza aportou na Bahia para fundar a cidade do Salvador, em 1549, a data do Carnaval transcorrera durante a longa

travessia entre o Tejo (28 de janeiro) e a Baía de Todos os Santos (29 de março), mas não há nenhum registro de que celebrações tenham ocorrido a bordo. É improvável, porque seria imprudente, diante das condições adversas que se esperava da corajosa empreitada.

Não muito tempo depois, a catequese dos jesuítas introduzia nas al-deias sob sua jurisdição a cultura do Carnaval. Segundo o padre José Anchieta, na sua História dos Colégios do Brasil: “pelo Carnaval, per-mitiam os padres os folguedos nas aldeias, com o que muito se di-vertiam a gente bárbara, recém-convertida, e então era bem de ver como se mascaravam os jovens catecúmenos, sarapintados de di-versas cores, fazendo esgares, ou reunidos em grupo, a fingirem cenas da vida campestre, a simularem, muito ao vivo, as lutas do homem contra a natureza brava daqueles tempos”. Folguedos primi-tivos, conforme avaliou Theodoro Sampaio, que resultaram mais tar-de no Bumba-meu-Boi, a Burrinha e o Jaguará dos Ternos de Reis. (4)

O testemunho de Anchieta efetivamente situa as origens do Carna-val baiano no seu devido contexto e prova que desde os primórdios da cidade, a partir da segunda metade do século XVI, já comemorá-vamos a data. Ou seja, o contexto de festas realizadas num período específico do ano: os três dias que antecediam a Quaresma, configu-rando assim a celebração de um período no calendário, instituída sem esse propósito pela Igreja, como veremos mais adiante, para su-postamente aliviar as tensões das privações da carne.

O Carnaval era um dos instrumen-tos para a conversão dos indígenas ao cristianismo, e daí a iniciativa dos jesuítas em promover as festas, num claro contexto de inclusão aos valores dos grupos dominantes de origem europeia. Como bem ressal-ta Rita de Cássia Barbosa de Araújo: “A dança, a música, os auto-hieráti-cos, por tratarem-se de manifesta-ções que se expressavam através de linguagens universais, e, por isso mesmo, mais acessíveis à sensibi-lidade e ao imaginário do indígena, foram largamente utilizados pe-los colonizadores”.(5) “Muito embora”, pondera, “é bom salientar, os sentidos que os nativos atribuíam às manifestações e aos elementos culturais europeus escapavam quase sempre à percepção daqueles que os queriam dominar”.

Em todo caso é lícito entender as origens do Carnaval da Bahia a par-tir da confluência dessas duas culturas: a dos dominadores, com os seus elementos, temas e símbolos reinventados a partir dos novos valores e expectativas de colonização, e a dos dominados, com seus mitos, lendas e crenças e a sua necessidade de participar do modelo

“Pelo Carnaval, permitiam os padres os folguedos nas aldeias, com o que muito se divertiam a

gente bárbara, recém-convertida, e então era bem de ver como

se mascaravam os jovens catecúmenos, sarapintados de

diversas cores...”

Padre Anchieta

Dança dos Tapuias, de Albert Eckhout

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que lhes era imposto como única alternativa de convivência. O lúdico dos elementos da catequese, com as linguagens do teatro, música e dança, torna uns e outros – colonizadores e colo-nizados –, protagonistas de uma nova forma de se divertir.

Recriada, evidentemente, a partir da confluência de outro grupo – e mais numeroso –, o dos afri-canos, que se torna mais próximo do cotidiano da classe dominante (incluído o lazer) a partir do século XVII. O fato é que o Carnaval dos trópicos, e em especial o do Brasil, com sua forte mestiça-gem, nunca seria igual ao Carnaval europeu, e no futuro, quanto mais quis e precisou se aproximar desse modelo, mais se evidenciaram os conflitos e mais se distanciou da simbologia original.

Foi a Igreja que inventou. E agora? O Carnaval é invenção da Igreja Católica, ainda que não intencio-

nalmente, e não há nenhuma contradição nisso. Surge como uma data do calendário, semelhante à do Natal, São João ou dos Reis Ma-gos. Instituída oficialmente no Sínodo de Benevento convocado pelo Papa Urbano II em 1091 que, entre outras coisas, fixava o período da Quaresma a partir de um dia chamado Quarta-Feira de Cinzas, até um dia denominado Domingo de Páscoa. Tempo de meditar, refle-tir, jejuar, elevar o espírito a Deus. Tempo de privações, onde deve-ria prevalecer o comedimento, a compreensão, a abstinência sexual, junto a um rigoroso jejum, que incluía a proibição de se comer carne ver-melha durante o período. (6)

É claro que o rigor do comedimento quaresmal provocou reações entre a população e a natu-ral propensão a se exceder nos dias que ante-cediam o período de recolhimento. Esses dias passaram a ser chamados de “adeus à carne” ou “Carnevale” em italiano, de onde surgiu a palavra que hoje designa as festas de Momo. Então era uma festa de três dias, com tempo e hora para acabar, à meia-noite da chamada terça-feira gorda, ou zero hora do dia seguinte.

É compreensível que tenham sido as cama-das populares as protagonistas destas festas de rua, o espaço que efetivamente lhes ca-bia e que as circunstâncias lhes impunham, numa sociedade marcada pela forte influên-cia dos senhores feudais e seus interesses conexos com as elites nobiliárquicas e ecle-

siásticas, como bem aponta Felipe Ferreira(7): “As festas que acon-teciam no período tinham um caráter eminentemente popular por

uma razão simples: era o povo que deveria obe-decer rigorosamente as limitações da Quaresma. A elite, como sempre, tinha os meios de burlar as imposições da Igreja, seja impondo seu poder so-bre a autoridade religiosa, seja comprando o di-reito de cometer certos excessos durante os dias de penitência”.

Em todo caso, a Igreja assimilou as práticas do “adeus à carne”, aceitou as festas como uma com-

pensação para enfrentar o longo período de abs-tinência, relevou os excessos em nome de um suposto alívio das tensões do povo e de uma atitude dos fiéis mais permissiva em relação ao rigor imposto pela Quaresma. No século anterior ao do descobrimento do Brasil, o Papa Paulo II, ele próprio, decidira assistir oficialmente às festas do Carnaval, transferindo a passarela tradicional no sopé do Monte Testácio, para a Via Lata, a avenida de Roma que desembocava em frente a seu palácio. E desfilaram carros alegóricos, jogaram-se con-fetes, tocos de vela iluminaram a rua e o populacho excedeu-se com o lançamento de ovos.

E então a Igreja, a partir da presença e iniciativa de sua maior autori-dade, oficializava o Carnaval como uma prática inevitável, mais tar-de de fato incorporada no calendário, nos estreitos limites do domin-go de Carnaval, chamado de Quinquagésima, a data de início, até a

zero hora da Quarta-Feira de Cinzas, quando deveria encerrar-se a folia. Deveria!

Apenas um período no calendário

E assim o Carnaval tornou-se uma data, um período do ano que antecipa a Quaresma, originalmente três dias, como é hoje em quase toda a Europa, não no resto do mundo. Em ou- tras regiões do globo, como no Caribe, é cele-brado a partir de sábado, e em algumas cidades das Américas, como Salvador, na Bahia, ocorre durante mais de uma semana oficialmente; já em Nova Orleans (EUA) estende-se por dois meses, num contexto de atração turística que re-presenta a maior fonte de renda da cidade.

Então, o Carnaval deve ser compreendido como uma data móvel do calendário, para não generalizarmos as suas origens, como in-

“Nunca fomos catequizados. O que fizemos foi Carnaval”

Oswald de Andrade, no Manifesto Antropofágico

de 1922.

Detalhe de gravura de Pierre Firens e Joaquim du Viert

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sistem alguns pesquisadores, a partir de tradições milenares da Grécia, do Egito, da Roma antiga; celebrações diversas que divergem e convergem na forma e no conteúdo, mas distantes do universo lúdico recriado para e pelas festas de Momo.

A ideia de “carnavalizar” todas as manifestações ancestrais que incluíam máscaras, orgias e bebedeiras, ritos, represen-tações teatrais e excessos de toda ordem, é uma tentativa de situar as manifestações populares num universo co-mum. Como bem apontou Felipe Ferreira, “O Carnaval não é o momento específi-co do ano no qual a vida vira do avesso ou de cabeça para baixo, visto que inversões e exageros não são exclusividade da festa carnavalesca”. E ressalva, citando “as comemorações do boi Ápis, da deusa Ísis, das bacanais, lupercais e tantas outras festividades arro-ladas pelos historiadores como referências, que não são precursoras somente do Carnaval, mas de muitas outras festas”. (8)

É claro que, ao recriar todo o universo lúdico do Carnaval, o Brasil as-similou alguns elementos do Monte Olimpo e do Jardim do Éden, das culturas greco-romanas, o próprio Rei Momo incluído. Mas isso não foi especificidade das festas de época e, sim, de qualquer celebra-ção. De fato, o Carnaval brasileiro recriou os símbolos, incorporando temas e práticas das festas reais da nobreza europeia, assim como das festas religiosas, em especial no século XIX, na transição entre o Entrudo e seu contraponto, o Carnaval dito “civilizado”. Mas daí a avaliar o Carnaval como herdeiro das tradições de Baco ou Dionísio há uma grande distância.

Da representação teatral ao Carnaval porcoO relato de Anchieta já referido é o melhor testemunho de que

os jesuítas, nos primórdios da fundação de Salvador, introduziram a cultura do Carnaval nas aldeias indígenas e com ela práticas de cate-quese destinadas a favorecer a integração. Era um hábito já assimi-lado pelos europeus, de celebrar festas com características implíci-

tas de maior permissividade, nos três dias que antecediam o início da Quaresma. Porém, neste caso, como em qualquer outra festa celebrada, tratava-se de passar valores cristãos, não nos moldes impostos pela Cúria Romana; os missioná-rios contrariaram a orientação oficial da Igreja, no propósito de catequese, em favor dos resultados desejados, subor-dinados a interesses específi-cos da Coroa Portuguesa.

Os missionários recorriam a representações teatrais para passar os ensinamentos de fé e o lúdico da didática implica-va, como bem definiu Rita de Cássia Barbosa de Araújo, em expandir a imaginação e per-mitir que a população fizesse

o mesmo, e observa, acerca da atividade missionária: “não se des-cuidaram, entretanto, de aspectos mais amenos da existência huma-na e programaram celebrações que proporcionavam descontração e geravam riso, diversão e alegria”.

O sagrado e o profano conviviam nos próprios préstitos organizados pelos jesuítas, envolvendo jovens portugueses e índios, juntos, em performances teatrais que incluíam encenações, músicas e o uso de instrumentos indígenas, como maracas e flautas, numa tentativa dos missionários de ultrapassar as barreiras do idioma e aproximar os ensinamentos, e compatibilizar, de alguma forma, à realidade vi-venciada pelos nativos com seus símbolos e crenças, habitantes de uma cidade tropical sem influências e traços da cultura ocidental.

Uma dessas celebrações era o Carnaval relatado por Anchieta e que no Recife, pela mesma época, já tinha correspondência, segundo ob-serva Leonardo Santos Silva, que se reporta a uma denúncia ao Santo Ofício de um casal que teria oferecido, na quarta-feira de Cinzas, em 1553, um porco aos trabalhadores, grave pecado, mencionando ain-da as tainhas secas ingeridas no dia anterior: “na terça-feira gorda do Entrudo”. Comer porco desrespeitava o sagrado jejum de carne im-posto pela Igreja na Quaresma. (9)

As duas referências aqui mencionadas do Carnaval, ambas do sé-culo XVI, têm a Igreja Católica como protagonista e tudo indica que o poder público não tinha ingerência direta sobre esse assunto. Não há atos de governança que apresentem indícios nesse sentido, pelo

Detalhe de aquarela de Eduard Hildebrandt

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menos até o século XVIII, quando surgem portarias com o intuito de regular as práticas de grupos festivos, assim como as primeiras ten-tativas de normatizar formatos de entretenimento.

Foi a Igreja Católica que criou o Carnaval como um apêndice da Qua-resma, “não sem exercer sobre ele certa censura”, explica Raquel Valença: “máscaras, fantasias, danças, sensualidade, bebedeira e outros excessos eram tolerados com maior ou menor boa vontade, dependendo do Papa, com a justificativa de que seria uma despedida dos prazeres da carne”. (10)

E a Igreja também comemorava o Entrudo dentro de seu recolhi-mento, imagina-se, pelo menos, com fartura de comida. É o que se constata no livro de despesas do Convento do Desterro da Bahia, de 1802, quando a Madre Superiora descreveu as compras feitas para o “Santo Entrudo”. Grandes banquetes com fartura de perus, um ca-pado e um quarto (que deve ser um boi ou porco), manteiga de porco, manteiga de vaca, toucinho, muitos temperos, oito libras de açúcar e uma apreciável quantidade de lenha e carvão. (11)

Porém, é importante ressaltar que o Carnaval que os jesuítas - e logo depois outros missionários - trouxeram para o Brasil como modelo, tinha de alguma forma fundamentos dos carnavais da Espanha e Portugal, um modo de comemorar ibérico, diferenciado em relação aos Carnavais das cidades onde o comércio e a sensibilidade artísti-ca dos Médici ditava regras, como em Veneza e Florença, ou onde o poder do Papa se impunha, como em Roma. Ou mesmo do Carnaval dos franceses e suas manifestações, como as batalhas de flores. que no início do século XX se popularizaram entre nós como ritual lúdico dos corsos que desfilavam pela Rua Chile.

No século XVII, com o empobrecimento da população e o relaxa-mento dos costumes – uma coisa tinha a ver com a outra –, o Carna-val português adquire outra feição. Nas ruas de Lisboa grande quanti-dade de “mulheres de tarifa”, como se chamavam naquele tempo as prostitutas, circulavam tanto de dia como de noite. Esse relaxamento dos costumes impacta o Carnaval lusitano, que se torna sujo, mal-educado, como bem descreveu Júlio Dantas, ele próprio originário desse país, em artigo publicado na Gazeta de Notícias do Rio de Ja-neiro, em 1909 : “Nós, portugueses, nunca compreendemos que o Entrudo pudesse ser uma festa d’arte como na Itália da Renascença, ou uma festa de espírito como na França de Luís XIV; o nosso Entru-do, o santo Entrudo lisboeta, foi sempre e fundamental e caracteriza-damente porco”. (12)

Dantas prossegue descrevendo os três dias “solenes” com a partici-pação de “toda a máfia baixa das vielas e das alfurjas, passando pelas fregonas, os devassos, os circunspectos e até os próprios fidalgui-nhos peraltas, todos com a casaca de seda a escorrer ovos... cober-tos das maiores imundícies e dos mais sórdidos desejos, corriam as ruas debaixo da saraivada dos pós de panelas, das laranjas de cheiro,

da farinha, dos esguichos, dos ovos de gema, de toda a água que jorrava das rótulas estreitas e dos postigos mouriscos”.

Embora a descrição de Dantas tenha uma forte e perceptível carga de preconceito contra a popu-lação pobre e um viés de generalização, eviden-cia como o modo de brincar o Entrudo pelos por-tugueses tinha coreografias recriadas na rua, no submundo, diferente das performances dos ar-lequins e polichinelos que divertiam os foliões de Veneza e Florença, ou das representações tea-trais de rua com críti-cas do Carnaval de Paris, cidades estas iluminadas com esplendor e decoradas com fino gosto, criando um ambiente mais propício à di-versão em moldes, digamos, mais bem educados.

Cinco dias de Carnaval em SalvadorEm 1727 os baianos se excederam nas comemorações do Car-

naval e, pela primeira vez, já antecipando o que seria uma tendên-cia alguns séculos depois, as festas de rua invadiram a quarta-feira de cinzas e estenderam-se até o dia seguinte, a primeira quinta-feira da Quaresma. Ou seja, cinco dias de festa, considerados a partir do chamado Domingo Gordo, quando os festejos começavam.(13)

A invasão da quarta-feira de cinzas na Bahia já era uma invasão anun-ciada, em função do caráter carnavalesco que a data religiosa atingi-ra na sua prática, com rituais assemelhados. Segundo Felipe Ferreira: (14) “por essa proximidade com a folia, a Procissão de Cinzas geral-mente acabava descambando para o deboche e a zombaria, pois muitos que assistiam à sua passagem tinham deixado a farra de três dias consecutivos havia apenas poucas horas. Além disso, a presen-ça de grandes andores representando a Paixão de Cristo, da Bíblia, ou da vida dos santos, dava à procissão um caráter alegórico que, aos poucos, passa a ser confundido com a brincadeira carnavalesca”.

De modo que a Procissão de Cinzas, com o tem-po, acabou sendo enxergada pelo povo como uma prorrogação dos dias do Entrudo, inclusive incorpo-rando máscaras no cortejo, provocando ações re-pressoras das autoridades e, na segunda metade do século XIX, a definitiva separação entre uma coi-sa e outra. Então, a pedido da própria Igreja, que se esforçava em se distanciar do Carnaval e até criou alternativas litúrgicas no período, como a exposição do Santíssimo Sacramento nas igrejas, visando as-sim demarcar posição e atrair foliões-fiéis ou fiéis-foliões.

“Nós, portugueses, nunca compreendemos que o Entrudo

pudesse ser uma festa d’arte como na Itália da Renascença, ou uma festa de espírito como na França de Luís XIV; o nosso Entrudo,

o santo Entrudo lisboeta, foi sempre e fundamental e caracterizadamente porco”.

Júlio Dantas. Gazeta de Notícias. 1909

“Absurdos de Carnaval” por Francisco Goya

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A Igreja e o Rei Momo nunca mais se entenderam a respeito, e há re-latos dos jornais, tanto no século XIX como no século XX, de protes-tos formais da Cúria perante as autoridades, e alguns entreveros por conta dos foliões que insistiam em profanar o ritual da quarta-feira, fazendo música na porta das igrejas ou no seu entorno. E até a elite baiana, com todo seu conservadorismo, não hesitou um dia em sair do Clube Fantoches da Euterpe ao raiar do sol do dia de cinzas com animada charanga, conduzindo centenas de fantasiados em ruidosa romaria pela Praça da Piedade. O arcebispo não deixou o episódio passar em branco.

Festa de lambança é festa de pobreEntão o Entrudo sujo, de forte influência portuguesa, era a nos-

sa maneira de brincar o Carnaval. A prática teria sido introduzida no século XVII, importada dos Açores. Entrudo era originalmente uma brincadeira de atirar água uns nos outros, que foi se sofisti-cando nos salões das residências e nos teatros, com substâncias mais aromáticas e se degradando na rua, que era o espaço do po-pulacho, com o uso de líquidos desagradáveis para atirar nos fo-liões e outras substâncias, como farinha, para “embranquecer” e zombar dos colegas, numa representação simbólica do povo ne-gro e pobre da Bahia, que era o que efetivamente brincava na rua, naquele tempo.

A célebre aquarela de Debret, Die Dentrudo, que retrata o Car-naval do Rio de Janeiro na década de 1820, detalha exatamente

isso: uma escrava e um jovem negro que lança um esguicho de água, ambos com os rostos pintados de branco. Entrudo era uma festa anárquica, sem limites, de lambança, originalmente uma festa de po-bre, e isso faz sentido quando se observam as diferenciais sociais e econômicas, entre a classe média e popular portuguesa e as mes-mas classes sociais na França, Itália, Holanda ou Alemanha, no sécu-lo XVIII, quando o país atravessava grandes dificuldades para honrar as suas contas, situação agravada com o terrível e devastador terre-moto de Lisboa em 1763.

Foi nesse cenário de pobreza, em que se multiplicava a presença de vendedores ambulantes de rua, mulheres viúvas se prostituindo por não ter como se sustentar, levas de comerciantes de ocasião ori-undos das aldeias do interior, que o Entrudo se firmou em Portugal como uma brincadeira barata (de ovos, água, farinha) e menos refi-nada que a dos salões, teatros e residências de outros países da Euro-pa com suas máscaras, figurinos e outras alegorias. O Entrudo nasce como uma conquista da rua, que deixa de ser apenas um espaço de tráfego, de deslocamento de um para outro lugar, para ser um espaço de convivência de atores sociais que viviam ou passavam boa parte do tempo nela.

E foi esse Entrudo de pobre, sujo e violento dos portugueses que che-gou até nós e encontrou na Bahia terreno fértil diante da permissivi-dade das ruas que aqui reinava e que sempre impressionou os via-jantes estrangeiros, o contraste entre as belezas naturais da Bahia e a cidade imunda e libertina nos seus costumes. Testemunhos di-

Gravura de August Earle

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versos, como o da inglesa Maria Graham, futura dama de honra da Princesa Leopoldina, que quando aqui esteve, em 1821, deslumbrou-se com a beleza do lugar: “um dos mais belos espetáculos que jamais contemplei”, para em seguida desencantar-se com o que conside-rou, logo após desembarcar no arsenal: “o lugar mais sujo em que eu tenha estado”. (15)

O fato é que a partir do século XVII a celebração do Carnaval em Sal-vador não era mais a festa inocente introduzida e manipulada pelos jesuítas nas aldeias indígenas, mas uma festa espontânea, por ini-ciativa da própria população. E os atores não eram somente portu-gueses e índios, mas também africanos e na sua maioria mestiços, baianos de fato, nascidos na terra, muitos deles escravos. O poder público já se apressava a emitir portarias, numa tentativa de coibir “excessos”, e o Entrudo se firmava como o jeito brasileiro de se brin-car o Carnaval. Pobre brincava na rua, e quem tinha posses, dentro das residências e mais tarde nos hotéis e nos teatros. Cada um no seu lugar.

O Entrudo nasce como uma conquista da rua que deixa de ser ape-nas um espaço de tráfego, de deslocamento de um para outro lugar, para ser um espaço de convivência de atores sociais que viviam ou passavam boa parte do tempo nela.

Entre a lama e a sarjetaA rua era a sarjeta. Cabe aqui o exagero para exemplificar o que repre-

sentava a rua, o espaço urbano de convivência de apenas uma parcela dis-criminada da sociedade. Foi justamente essa parcela que se “apropriou” de alguns trechos da cidade para brincar o Entrudo, pelo menos enquanto a elite desprezou a rua, que mais tarde, a partir da segunda metade do sé-culo XIX, também seria objeto de desejo para se exibir, brincar num outro modelo, onde o importante era aparecer e ser visto, e nesse contexto o poder público interferia para regular o espaço de uns e outros, povo e elite, com apoio da mídia, a pretexto de oferecer segurança.

A rua não era um espaço público “agradável”, em função da sujeira que impressionava os viajantes estrangeiros e impressionou até o próprio Im-perador, Dom Pedro II, quando descreveu no seu diário de viagem, em 1859, a Rua Chile, a nossa principal artéria, como “suja e enlameada”. Vi-lhena, o célebre professor de grego que nos legou o melhor testemunho da Bahia oitocentista relata o mau cheiro das ruas de Salvador, onde se misturavam os odores do lixo com os excrementos dos animais de carga; do xixi humano, mas sempre desumano; dos mariscos “fermentados” no sol; do insuportável rapé em todo canto; do óleo de baleia queimado das lamparinas da iluminação pública; dos restos de frutas e verduras das fei-ras livres; das emanações dos mortos sepultados à flor da terra, os cadá-veres insepultos por cães.

Era essa rua suja e malcheirosa que as elites evitavam enquanto possí-vel. As mulheres passavam a vida confinadas em casa, e mesmo duran-te o Carnaval, que originalmente era festejado dentro das residências. Saíam apenas aos domingos para assistir à missa, ou nas datas cívicas e religiosas para participar de préstitos e procissões em espaços previa-mente maquiados pelo poder público. Os homens, por sua vez, usavam a rua apenas para se dirigir da residência ao trabalho e do trabalho para a residência; às vezes uma parada estratégica no auge das chamadas pas-telarias, para tomar um sifon e bater uma boa prosa sobre política.

Homens e mulheres evitavam botar o pé na rua, e as ladeiras íngremes da cidade eram enfrentadas em liteiras e cadeirinhas de arruar conduzidas por escravos, ou então no lombo de cavalo, ou em carruagens puxadas por equinos. A rua era de fato o espaço de convivência de comerciantes de grosso trato, na cidade baixa e em toda a extensão do porto; de escra-vos de ganho que vendiam quitutes e mercadorias para seus senhores; de escravos urbanos que “flexibilizavam” o seu horário de servilismo com esporádicas ou rotineiras saídas; de trabalhadores braçais na construção e manutenção da infraestrutura urbana; das milícias mal pagas e discrimi-nadas pela cor da pele; espaço também de vagabundos, desocupados, prostitutas, mendigos e até meliantes.

E a partir das 18 horas a rua era um breu, qualquer pessoa surpreendida nela era considerada suspeita pela polícia, em especial se fosse negra, de antemão tida como contraventora, ou escravo fugido, ou na melhor das hipóteses escravo fora de casa sem o consentimento e licença de seus senhores. Foi nesse espaço de “ninguém” que os atores sociais de con-vivência diária recriaram o Carnaval do Entrudo, assimilando as práticas da lambança que tanto incomodavam as autoridades e a elite hipócrita, que elas mesmas se permitiam as mesmas práticas contra cidadãos de classe social inferior. Lambuzar um negro podia, mas, o contrário, o negro atingir um senhor ou senhorita “de consideração”, era grave ofensa, e a depender da autoridade de plantão seria encarado como crime.

A rua era o espaço urbano de convivência de apenas uma parcela dis-criminada da sociedade. Foi justamente essa parcela que se “apropriou” de alguns trechos da cidade para brincar o Entrudo, pelo menos enquanto a elite desprezou a rua, que mais tarde, a partir da segunda metade do sé-culo XIX, também seria objeto de desejo para se exibir e brincar.

“Estrondosos e dissonoros batuques”Em quinze anos apenas, entre 1808 e 1823, a Bahia sofria um

grande impacto na sua economia, na cultura, na comunicação, promovendo um reordenamento social silencioso das próprias elites, a partir de profundas modificações provocadas pelo novo sistema de governo implantado. Em janeiro de 1808 a Bahia recebe,

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por pouco tempo, mas com a expectativa de seduzir o visitante para ficar, o príncipe regente D. João VI, que estava de passagem para o Rio de Janeiro, onde estabeleceria residência e a sede provisória do governo português. E aqui decretava a abertura dos portos às nações amigas.

Em apenas quinze anos a Bahia passa a ter um movimento por-tuário intenso; vê multiplicar o número de consulados e represen-tações diplomáticas; o comércio se qualifica e diversifica, com os ingleses importando os melhores produtos e figurinos da Europa; melhora a sua estrutura urbana; passa a ter imprensa e uma biblio-teca pública e incrementa o comércio de escravos com milhares de africanos provenientes do Golfo de Benin. E nesse período referido, a Bahia enfrentava uma guerra civil com todas as consequências do desabastecimento e as marcas e rancores dos conflitos entre os grupos protagonistas, no reordenamento social ensaiado logo após

o 2 de julho de 1823.

Nesse contexto, os atores sociais se diversificam e se multiplicam, mas naquele primeiro momento o Carnaval não sofre modificações aparentes, o modelo ainda é o Entrudo português. Após a Guerra da Independência, porém, se impõe um discurso, digamos, nacionalista, e com ele uma rejeição a tudo que tinha a ver com o Reino, motivo du-rante as décadas seguintes de contínuo estranhamento entre portu-gueses e baianos, do que resultaram alguns episódios armados, den-tre outros conflitos. Pensava-se em construir um Estado Nacional, e nesse propósito era preciso dar novas formas, feições e símbolos próprios ao novo país, e no entretenimento essas formas deveriam se distanciar dos modelos “derrotados” e rejeitados.

Tudo isso acontecia num cenário onde a população negra aumen-tava desproporcionalmente em relação à população branca. Pierre Verger estimou, em “Fluxo e Refluxo”, a entrada de, em média, 10 mil escravos por ano no Porto da Bahia. Muitos deles seriam atores so-ciais da rotina da rua no sentido em que descrevemos anteriormente e protagonistas das festas públicas, as procissões religiosas onde os rituais sagrados e profanos se misturavam com a complacência às vezes maior, às vezes menor, de setores do clero. E o Entrudo, que era o nosso Carnaval, tornava-se cada vez menos modelo importado e ganhava o gestual e a ginga dos tambores da África.

Batuque, de Johann Moritz Rugendas

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A chegada do Conde dos Arcos para assumir o Governo da Bahia favoreceu essa atitude mais permissiva com as diversões públicas. O governador, ao contrário de seu antecessor, o Conde da Ponte, concedia licença, a pedido do povo, em 03 de outubro de 1810, para o uso de caretas, ou seja, máscaras. (16)

O Conde da Ponte antes estabelecera sérias restrições aos batuques dos escravos. Batuques naquele tempo era nome genéri-co e depreciativo para nominar qualquer manifestação festiva de negros. O conde lamentava, em 1807, não poder controlá-los eatentava para a ineficácia das leis: “Juntavam-se quando e onde queriam; dançavam e tocavam os estrondosos e dissonoros batuques por toda a cidade e a toda hora; nos arraiais e festas eram eles só os que se senhoreavam do terreno, interrompendo quais-quer outros toques ou cantos”. (17)

Já o Conde dos Arcos entendeu que a melhor política era permitir ao povo a possibilidade de relaxar suas tensões, de celebrar suas fes-tas dentro de alguns limites estabelecidos, em especial os negros e mestiços. Como forma de evitar conflitos, inclusive um eventual levante de escravos, o que assombrava e tirava o sono das autori-dades daquele tempo, desde a revolta dos negros de Santo Domin-gos (1808), que resultou na tomada do poder e morte de milhares de brancos.

E justificava: “batuques olhados pelo governo são uma coisa e olha-dos pelos particulares da Bahia são outra diferentíssima. Estes olham para os batuques como para um ato ofensivo dos direi-tos dominicais, uns porque querem empregar seus escra-vos em serviço útil ao domingo também e outros porque os querem ter naqueles dias ociosos a sua porta, para assim fazer parada de sua riqueza”.

E explicava o governador que, como autoridade, ao contrário, deveria zelar pelo lazer de um grupo social reprimido e alertava “ora, pois, proibir o único ato de desunião entre os negros vem a ser o mesmo que promover o gover-no indiretamente a união entre eles, do que não posso ver senão terríveis consequências”. (18) Ao falar em de-sunião referia-se à diversidade étnica dos escravos baianos originários de várias nações africanas.

Discurso bonito, mas nem sempre compatível com a prática. Se a caneta do Conde dos Arcos

por um lado olhava a conveniência e convicção ideológica de ofe-recer diversão ao povo, por outro olhava a pressão das elites con-tra essas atitudes liberais. E ainda cumpria ordens do Rio de Janeiro, pelo que foi obrigado, em 26 de agosto de 1816, a divulgar na pra-ça, através de bando, a Ordem Régia que proibia os negros de anda-rem em ranchos (préstitos) pelas ruas da cidade, sob pena de 150 açoites. (19)