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A LINGUAGEM ÀS MARGENS DO ORDINÁRIO
2.1 Da imagem poética
A poesia é estranheza que a coisa me provoca; uma estranheza fundada na beleza.
Adélia Prado1
Inicio meu percurso com a seguinte afirmação de Octávio Paz: “Com efeito,
a poesia é desejo. Mas esse desejo não se articula no possível, nem no verossímil.
A imagem não é “o possível verossímil”, desejo de impossíveis, a poesia é fome
de realidade”2. Em outro momento ele aproxima a poesia de outras expressões
humanas de busca pela transcendência (o erotismo e a religião) que sejam
experiências de outridade (revelação de si mesmo, do mistério irredutível que o
outro impõe a nós e do mistério último que é a vida humana sobre a face da
Terra). Inserido na zona do sagrado, o ato poético é festa, comunhão e rito3 que
reproduz a experiência religiosa acrobática de saltar sob abismos, no escuro e sem
redes de segurança, no sentido em que é sempre um apelo à transcendência e à
alteridade. Todo rito é uma anunciação: repetição de eventos intemporais e
perfeitos, fixados na memória através do mito, que ao serem vivenciados com
certa disposição de espírito atualiza o evento eterno, revigorando o tempo
profano, o tempo do interdito, dando-lhe realidade e potência. E como a poesia
pode fazer isso? Através da imagem poética e do ritmo, dirá Paz. O ritmo é
justamente essa imposição de outro tempo, mágico-mítico, para a linguagem, que
em seu uso ordinário/cotidiano submete-se às leis do cálculo e da economia. O
ritmo “engendra em nós uma disposição de ânimo que só poderá se acalmar
quando sobrevier “algo”. O ritmo põe-nos em atitude de espera”4, espera cujo
sentido se orienta, tal qual a cerimônia do rito, pela busca de tempo original, para
a descoberta, assinalada por Paz e em consonância com o pensamento
heideggeriano, de que somos o tempo, e o tempo é a nossa medida.
1 PRADO, Adélia. Mística e poesia, 2004. 2 PAZ, Octávio. “O ritmo”. In: O arco e a lira, 1982, p. 80, grifo nosso. 3PAZ, Octávio. “A outra margem”. In: O arco e a lira, op. Cit, p. 141. 4 PAZ, Octávio., op. Cit, p. 69.
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Nesse sentido a poesia é sempre sagrada, rastro de Deus, sua Face atingida
pela brutalidade das coisas, dirá Adélia Prado5, e a imagem poética será uma
tentativa de reconduzir as palavras, a linguagem, a seu lugar original, o ritmo,
onde não vigoram as leis do discurso (linearidade, teleologia, os princípios de
não-contradição e identidade, etc) e sim as leis de atração e repulsa6. Mas,
pergunta essencial, o que entendemos quando dizemos sagrado?
Quando falamos de sagrado queremos distender esse conceito para fora dos
sítios estreitos da instituição e da fé religiosa. Por sagrado entenda-se esse “fora”
da linguagem e da cultura, do inteligível e cognoscível, essa alteridade absoluta
que causa atração (assombro) e horror (tremor)7, e que não pode ser reduzida a
nenhum padrão ético-moral ou a um conjunto de predicados, mas, à semelhança
do que a mística oriental e a teologia negativa nos ensina, o sagrado é um neutro,
um nada, um vazio anterior a qualquer distinção predicativa. Concorda com essa
perspectiva o místico medieval Mestre Eckhart8 quando afirma que Deus é Um,
Nele não há divisões ou distinções, logo, não há diferença, pois que ele é um
“negar do negar”, um abismo mesmo aonde o sentido — que parece se apoiar nos
princípios de identidade e não contradição — naufraga. O sagrado (que as
tradições religiosas ocidentais costumam chamar de Deus, mas que não se
restringe a ele) é identificado com esse Contínuo ao qual não há predicação
possível — lembremo-nos que predicar implica fragmentar e distinguir — pois o
simples ato de atribuir predicados pressupõe um fora daquilo a que se predica, a
diferença mesma como forma de adjetivação9. Trabalho aqui com o conceito de
5 Poema Guia, In: PRADO, Adélia. Bagagem. 6 Aqui fica patente a herança do pensamento de Vico em Paz, nessa ênfase do poeta mexicano em afirmar um lugar original e privilegiado para a poesia na linguagem humana, veja-se a citação: “Pela violência da razão as palavras se desprendem do ritmo; essa violência racional sustenta a prosa, impedindo-a de cair na corrente da fala onde não vigoram as leis do discurso e sim as de atração e repulsa. Mas esse desenraizamento nunca é total porque, ao contrário, a linguagem se extinguiria. E com ela o próprio pensamento. A linguagem, por inclinação natural, tende a ser ritmo. Como se obedecessem a uma misteriosa lei de gravidade, as palavras retornam espontaneamente para a poesia. No fundo de toda prosa circula, mais ou menos rarefeita pelas exigências do discurso, a invisível corrente rítmica”. PAZ, Octávio. “Verso e prosa”, In: O arco e
a lira, op. Cit., p. 82. 7 Em seu clássico estudo sobre os aspectos racionais e irracionais do fenômeno religioso, Rudolf Otto assim define o sagrado: “Pero elmisterio religioso, elauténticomirum es — para decirlo acaso de lamanera mas justa — lo heterogéneo en absoluto, lothateron, amyad, alienum, loextraño y chocante, lo que saleresueltamentedel círculo de loconsuetudinario, comprendido, familiar, íntimo, oponiéndose a ellos, y, por tanto, colma elánimo de intenso asombro”. OTTO, Rudolf. Lo santo: lo racional y lo irracional en la idea de Dios, 2005, p. 38. 8 BOFF, Leonardo. Mestre Eckhardt: a mística de Ser e de não ter, 1983. 9 No segundo capítulo da tese esse conceito será mais bem desenvolvido. Ver: BATAILLE, George. O erotismo, op. cit.
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sagrado dentro do pensamento de Georges Bataille: o sagrado como um conjunto
de forças transgressivas e violentas, mas não identificáveis a priori, que se opõem
de forma radical ao mundo do trabalho, da razão e da descontinuidade. Nesse
sentido o sagrado não é objetivável, e muito menos institucionalizável, antes, se
localiza além das fronteiras do humano e de toda lógica econômica e não
excessiva que preserva o indivíduo e a complexa arquitetura de nosso mundo
social. Antes, pode-se entender por sagrado uma espécie de negativo ou reverso
do humano, um aquém dos imperativos que regulam a vida coletiva e as práticas
sociais, estando intrinsecamente relacionado à transgressão desses mesmos
imperativos.
Os limites de nossa linguagem/realidade são dados pelos limites de nossa
perspectiva. Fora da linguagem restam as forças incompreensíveis do sagrado, as
quais podemos vivenciar através de experiências limites, dentre as quais destaco a
mística e a poesia10. Essas experiências não são, entretanto, produtivas, a
experiência interior é marcada também pelo princípio da soberania, no sentido em
que não há nenhum “ganho” (cognitivo, cultural, social, etc.) nela. Bataille assim
diz: “O que caracteriza tal experiência, que não procede de uma revelação, onde
nada tampouco se revela, a não ser o desconhecido, é o fato de ela nunca trazer
nada de apaziguante”. Inútil e dispendiosa, a experiência interior atesta no homem
um princípio de soberania que subsiste a seu projeto de racionalidade tranqüila.De
forma semelhante à mística, a imagem poética impõe uma espécie de choque com
os limites da linguagem/realidade, de forma que a epifania do real, presente na
mística e de certa forma na linguagem poética, surge dessa colisão da linguagem
com os seus limites, limites aos quais estou chamando sagrado. Octávio Paz,
poeta e pensador mexicano que possui importantes pontos de interseção com as
reflexões de Bataille sobre poesia, afirma que a imagem poética “atenta contra os
fundamentos do nosso pensar”, constituindo-se um “escândalo e um desafio, (que)
10 Apóio-me aqui nas concepções de Georges Bataille, para quem a experiência interior constitui um meio de experienciação dos limites dados pelo mundo do trabalho. A experiência interior pode incluir vivências que vão do erotismo ao sacrifício religioso, da mística a certo tipo de literatura. Em todos esses casos, a experiência é definida por ser uma tentativa de negar a duração individual do ser e a economia preservativa do corpo social; uma transgressão aos interditos fundamentais que operaram a passagem da animalidade primitiva à humanidade; e uma abertura à morte, factual ou simbólica (É importante lembrar o papel central do sacrifício em todas as grandes religiões, inclusive no cristianismo. O ‘sacrifício’ de Cristo é simbolizado no partir do pão e no beber do vinho entre os cristãos [a comunhão]. Mas precisamos não esquecer que o que se comemora é a morte do Deus-homem, e a participação simbólica do crente nessa morte). BATAILLE, George. O erotismo, op. Cit.
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também viola as leis do pensamento”11. Não obstante esse escândalo para o
pensamento discursivo, pode-se dizer que a imagem poética produz algum tipo de
inteligibilidade, na medida em que ela também é, em certa medida, nomeação e
redução de complexidade. De acordo com Paz, a poesia submete a pluralidade
inquietante do real à unidade, operando a mesma redução de complexidade
própria ao pensamento lógico-conceitual, entretanto, a distinção entre poesia e
conceito estaria em que na imagem poética a contradição inerente ao real não é
anulada no sentido, e sim atualizada. No exemplo de Paz, se a operação descritiva
de um objeto o reduz progressivamente a fragmentos, a imagem poética recupera
sua densidade ontológica:
A princípio a cadeira foi apenas forma, mais tarde uma espécie de madeira e finalmente puro significado verbal: a cadeira é um objeto que serve para sentar-se. No poema a cadeira é uma presença instantânea e total que fere de um golpe a nossa atenção. O poeta não descreve a cadeira: coloca-a diante de nós. Como no momento de percepção, a cadeira nos é dada com todas as suas qualidades contrárias e, no ápice, o significado. Assim a imagem reproduz o momento de percepção e força o leitor a suscitar dentro de si o objeto um dia percebido. O verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria. Ou, como diria Machado: não representa, mas apresenta.12
Ainda nesse mesmo artigo Paz parece entender que existe “produção” de
inteligibilidade na imagem poética, mas tal “conhecimento” seria, como o da
mística oriental, citada por ele, um conhecimento negativo, na constatação de que
“Os objetos estão mais além das palavras”, de modo que é preciso elaborar-se
uma linguagem (mística ou poética) “que seja algo mais do que a linguagem:
palavra que diga o indizível”13. Desse modo, se há algum tipo de revelação na
poesia, palavra tão ao gosto de Octávio Paz, com fortes ressonâncias
heideggerianas, ela se assemelha à iluminação budista: saber enfim que todo
conhecimento é impossível, pois conhecer é estar no mundo das polaridades, do
desejo (da ausência) e do ilusório ciclo de ação-reação. Aquele que encontrou a
iluminação mística descobre enfim que todo conhecimento encontra-se
circunscrito dentro dos limites de nossa linguagem produtiva e que, fora desse
universo lingüístico, ilusório — dirão os místicos —, só resta o silêncio e o vazio.
11 PAZ, Octávio. A imagem. In: Signos em rotação, pp. 38 e 39. 12 PAZ, Octávio. A imagem, op.cit., p. 46, grifo nosso. 13 PAZ, Octávio. A imagem, op.cit., p. 43 e 44.
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A imagem poética é uma, entre outras, possibilidade de inteligibilidade do
real, na medida em que os processos cognitivos acionados pela imagem são outros
(analógicos, associativos, sensoriais, etc) que aqueles usados pela linguagem
proposicional. Nessa busca de um real não fracionado e redutível à racionalidade,
ao se negar inserir na economia da linguagem produtiva e demandar de si mesma
a soberania própria dos sacrifícios religiosos, a poesia, sintetizada na imagem
poética, parece estar próxima a uma concepção de realidade arcaica, na qual,
segundo Mircea Eliade, realidade e sagrado se confundiam. Eliade afirma que o
homem das sociedades arcaicas pretende viver o mais perto possível do sagrado,
que é analisado por ele como uma radical oposição ao profano, isto é, partes da
vivência humana marcadas pela naturalidade e cotidianidade em oposição a forças
mágicas, transcendentes, que permeiam a natureza e as suas relações
interpessoais. Essa escolha se dá por que, (...) o sagrado equivale ao poder e, em
última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência
sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A oposição
entre sagrado/profano traduz-se muitas vezes como uma oposição entre real e
irreal ou pseudo-real “14. Na verdade tal escolha é feita, segundo Eliade, por que o
espaço sagrado é ”o único que é real, que existe realmente”.15 Eliade destaca que
na consciência mítica, da qual não nos emanciparemos jamais, realidade e sagrado
são co-participes, ou seja, apenas é real aquilo que foi tocado pelo numinoso, e
realidade aqui não está sendo usado no sentido comum de um conjunto de
apreensões sensíveis/inteligíveis verificáveis pela maioria, e sim de densidade
ontológica, potência criativa/destruidora, caos sempre em movimento entre ser e
não-ser onde deuses, homens, animais, plantas e coisas interagem de forma
imprevisível.
Essa suspeita em relação à irrealidade do mundo tido como real e objetivo
comparece também na poesia, ainda que não necessariamente acompanhada da
correspondente afirmação de uma realidade supra-inteligível16. A poesia, ou pelo
14 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, 2001, p. 18. 15 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, op. Cit., p.25. 16Um dos principais objetivos da tese é explorar respostas de diferentes autores (poetas e místicos) à inquietação de “vivermos em trevas profundas”. Interessante notar que a metáfora de uma escuridão que ilumina pelo que faz obscurecer será grandemente utilizada pelos místicos da tradição apofática que analisaremos no capítulo quatro. Mas o uso da metáfora da escuridão relacionada à condição de possibilidade de um saber negativo remonta a Platão, no conhecido mito das cavernas, obtendo posteriormente, com Pseudo-Dionísio (século VI a.c), a formulação mais acabada de um saber negativo, que nasce a partir da experienciação de uma treva superluminosa.
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menos um certo tipo de poesia que tematiza as tensões entre realidade/poiésis,
coisa/homem, sagrado/profano, parece mesmo ter se tornado, em tempos nos
quais “Deus está morto”, uma espécie de último reduto onde o real/sagrado da
linguagem, e do mundo, se manifesta, como expresso por Heidegger no seguinte
trecho: “Em tudo o que aparece e se mostra familiar, o poeta faz apelo ao
estranho enquanto aquilo a que se destina, o que é desconhecido de maneira a
continuar sendo o que é — desconhecido.”17 Sobre o tema são também
interessantes as colocações de Harries, que nota que a arte moderna (inclusive a
crítica) se orienta para um desejo de presença e transparência absolutos, sendo
transparência e presença entendidos pelo autor como imediaticidade do objeto
estético e recusa a interpretações, ou rejeição a um sentido que transcenda a obra
como coisa em si, que é o que é. Deseja-se uma imedicaticidade de visão e uma
plenitude sem referencialidade, um dar visibilidade plena à coisalidade do objeto
estético ou, em outras palavras, eximí-lo do sentido e devolver à linguagem a
imediação do sensório e do sensual. Nesse sentido, as metáforas poéticas investem
contra a linguagem estabelecida, corroendo-a em suas certezas estabelecidas e
levando-a à colisão contra aquilo que a transcende: um silêncio residual resistente
a nossos encantos antropocêntricos. O desejo de presença do qual nos fala Harries,
apesar de aparentemente parecer uma recusa de transcendência, na medida em que
se deseja essa presença absoluta da coisa-apresentada, “eliminando” do objeto
estético as camadas de sentido que nossas interpretações imputaram sobre ele, é
ainda a tentativa de ouvir o silêncio das coisas mudas e cerrar a fissura entre a
linguagem e a realidade18.
Ressalto que o tipo de religiosidade que aqui se menciona não é de conteúdo
(ritos, doutrinas, confissões de fé, símbolos, instituições, teologias, etc.) e sim de
forma:uma forma de experienciar a linguagem na qual a mesma se torna epifânica,
ainda que a única epifania possível seja a consciência difícil dessa fissura entre a
palavra e a coisa, e do cotidiano exercício acrobático entre uma e outra, como
aparece no poema Funâmbulo, de Paulo Henriques Britto19:
Entre a palavra e a coisa o salto sobre o nada.
17 HEIDEGGER, Martin. ‘’... poeticamente o homem habita...”. Ensaios e conferencias, p. 177. 18 HARRIES, Karsten. A metáfora e a transcendência. In: SACKS, S. (org.). Da metáfora, p. 77-93, p. 92. 19 BRITTO, Paulo Henriques. Macau.
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Em torno da palavra muitas camadas de sonho. Uma cebola. Um átomo. Uma cebola ávida. Entre uma e outra camada nada. Saltam sobre o abismo, Tomam o vazio de assalto. De píncaro a píncaro projetam-se, impávidas, epifânicas, esdrúxulas, teimosas e dançarinas. O salto é uma dança, a teima é uma doença. Em torno da cebola o ar é tenso de lágrimas.
Acrobata, o poeta tenta apreender nessa fissura entre coisa e palavra a
substância quente e viscosa do real: fica-lhe nas mãos apenas o “ar tenso de
lágrimas” que escapa dessa cebola ávida em seu voltear-se sobre o próprio nada,
voltear que não configurar nenhuma imagem de mundo (um realíssimo), exceto
um grande vazio a ser preenchido pelo próprio enovelar-se da palavra de si e para
si. Não há nenhum referente mais consistente do que essa palavra impura que em
estado de dicionário provoca o poeta (provoca-nos leitores) a um enigma ao qual
a resposta, não importa se irônica ou mítica, é um salto sobre o abismo, sem redes
de segurança. Não obstante, o poeta não pode abjurar dessa tarefa inglória de
continuar a buscar “os parentescos subterrâneos das coisas, (e) suas similitudes
dispersadas”20.Se “o salto é uma dança e a teima uma doença”, as palavras
dançarinas compõem um balé difícil e belo que aponta, ao mesmo tempo, para a
irrecusável necessidade de transcendência e para o fracasso da mesma.
Alguns autores vão enfatizar, na arte moderna e contemporânea, a presença
de uma negatividade que em muito se assemelha à mística apofática ou negativa.
Essa é chamada de mística da imanência ou mística estética, e congregaria nomes
tais como Novalis, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Rilke, Hofmannsthal, T.S.
Eliot, James Joyce, entre outros, autores distintos em suas particularidades mas
que se reúnem sob a égide de uma certa negatividade que encontra na mística
apofática e na teologia negativa seu modelo, no sentido em que seus discursos
poéticos se articulam a partir de um imperativo e uma impossibilidade: dizer
aquilo que não pode ser dito, dizer o inefável. A tese se construirá portanto a
20 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, op. Cit.
A linguagem às margens do ordinário
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partir da compreensão de certo parentesco entre a poesia e a mística como
experiências lingüísticas limite (ou experiências de limite) de construção de uma
terceira margem na linguagem/realidade, e o termo construção procura enfatizar
justamente o caráter de constructo de toda a inteligibilidade dada a uma ação
humana no mundo, pressupondo mesmo um esforço de fazer algo vir a se ser, algo
a que não poderíamos atribuir ser ou existência fora do âmbito dessa ação que
abole mesmo a noção clássica de sujeito versus objeto. Nesse sentido a tese rejeita
os pressupostos - facilmente associáveis a um trabalho cujo objeto é a mística -
essencialistas de linguagem e realidade, desde que o esforço empreendido será
justamente o de lançar luzes sobre esse aspecto poético (ou autopoiético,
conforme expressão de Maturama e Varella) que permeia as instâncias linguagem
e realidade21. Encontra-se aqui esse nó que procuro destacar como comum entre
poesia e mística: o desconfiar da irrealidade da realidade cotidiana (o que é
bastante claro na mística) e a demanda por uma realidade mais plena, coesa,
inteira, ainda quando tal desejo de realidade venha acompanhado por uma
profunda ironia quanto a esperança de se alcançar qualquer essência não-
construída em nossa herança sócio-cultural.
Um exemplo interessante desse recurso à ironia sem a recusa do dilema da
busca pela unidade, é encontrado em outro poema de Paulo Henriques Britto,
abaixo transcrito:
De vulgarieloquentia
A realidade é coisa delicada, de se pegar com a ponta dos dedos. Um gesto mais brutal, e pronto: o nada. A qualquer hora pode advir o fim. O mais terrível de todos os medos. Mas felizmente, não é bem assim. Há uma saída - falar, falar muito. São as palavras que suportam o mundo, não os ombros. Sem o "porquê", o "sim", todos os ombros afundam juntos. Basta uma boca aberta (ou um rabisco num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto: Falem sem parar. Mesmo sem assunto.22
21 MATURAMA, R. Humberto & VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. 22 BRITTO, Paulo Henriques. Macau, op. Cit.
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A delicadeza da realidade, que se esvai ao gesto brusco e à mão voluptuosa,
exige a coabitação com o verbo, com as palavras que nos salvarão de afundar na
in-significância das coisas e o fim dessa rede discursiva que sustenta a comédia
humana sob a face da Terra. As duas primeiras estrofes do poema contrastam com
o tom irônico e levemente sarcástico dos demais versos. Onde se encontra a
fragilidade da realidade, passível de ser destruída diante de um gesto descuidado?
As palavras, nesse caso, ‘escondem’ ou ‘revelam’ a realidade? Não teríamos aqui,
também, ressonâncias de um realíssimo que se esconde por detrás das tramas e
fios da tagarelice e discursos cotidianos? Menção a um inominado ou inarticulado
que se vela, ou se des-vela, um nada ao qual se remete nossas construções de
realidade ou, retomando Adélia, um “esplêndido caos de onde emerge a nossa
sintaxe”?23 A realidade, inconsistente com nosso desejo de unidade metafísica,
ameaça afundar no abismo do nada caso um gesto mais brutal — que pode ser a
simples desconfiança em relação à capacidade de as palavras construírem essas
pontes firmes entre as coisas e nós — se realize. O canto irrecusável do real,
verso do poema Sete estudos para a mão esquerda do mesmo Paulo Henriques,
desafia ao poeta, e a todos nós, a tecer fios discursivos que impeçam todos os
ombros de naufragarem juntos, leiamos esse poema:
Existe um rumo que as palavras tomam como se mão alguma as desenhasse na branca expectativa do papel porém seguissem pura e simplesmente a música das coisas e dos nomes o canto irrecusável do rel. E nessa trajetória inesperada a carne faz-se verbo em cada esquina resolve-se completa em tinta e sílaba em súbitas lufadas e sentido.
23Aqui faço menção ao poema Antes do nome, in: PRADO, Adélia. Poesia Reunida.
Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, Os sítios escuros onde nasce o “de”; o “aliás”, O “o”, o ”porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que me apóia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender A palavra é disfarce de uma outra coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrenqüentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror.
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Você de longe assiste ao espetáculo. Não reconhece os fogos de artifício, As notas que ainda engasgam seus ouvidos. Porém você relê. E diz: é isso24.
Novamente aparece aqui a contradição da linguagem (e da escrita,
principalmente), cujas palavras que se dispõem sob a branca folha de papel como
se “seguissem pura e simplesmente/ a música das coisas e dos nomes/ o canto
irrecusável do real”. O como se, próprio da ficção elabora um espaço onde o
sentido (ainda que fugaz, em lufadas de vento) se constrói como um espetáculo no
qual podemos reconhecer nosso desejo e nossa miséria. Mas algo ainda engasga, e
resiste à inteligibilidade. A coloquialidade da linguagem de Paulo H. Brito, com
ressonâncias drummondianas, não deve nos enganar: se o recurso do poeta é a
ironia, essa ironia não pode encobrir uma espécie de nostalgia dolorosa de uma
palavra-verbo (‘a carne faz-se verbo em cada esquina”) e esse inexplicável alívio
de poder dizer: “è isso”. Uma ordem, um cosmos, um espetáculo: as palavras,
desistindo de re-presentar o real, tomam o encargo de a-presentá-lo a nós, e
“súbitas lufadas de sentido” aliviam esse deserto árido de fundamentos em que
habitamos.
Sobre esse “desejo de realidade” próprio à existência humana são bastante
interessantes as considerações de Albert Camus, que afirma sobre a arte e em
especial sobre a literatura:
A contradição é a seguinte: o homem recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele. Na verdade, os homens agarram-se ao mundo e, em sua imensa maioria, não querem deixá-lo. Longe de desejar realmente esquecê-lo, eles sofrem, ao contrário, por não possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo, exilados em sua própria pátria. A não ser nos instantes fulgurantes da plenitude, toda a realidade é para eles incompleta. Seus atos lhes escapam sob a forma de outros atos, voltam para julgá-los sob aspectos inesperados e correm, como as águas do Tântalo, para uma embocadura ainda desconhecida. Conhecer a embocadura, dominar o curso do rio, entender enfim a vida como destino, eis sua verdadeira nostalgia, no mais profundo da pátria. Mas essa visão que, pelo menos no conhecimento, nos reconciliaria enfim consigo mesmos, só pode aparecer, se é que aparece, no momento fulgaz da morte, em que tudo se consuma. Para existir no mundo, por uma vez, é preciso nunca mais existir. Nasce aqui essa desgraçada inveja que tantos homens sentem da vida dos outros. Olhadas de fora, emprestam-se a essas existências uma coerência e uma unidade que elas estão longe de ter, mas que parecem evidentes ao observador. Ele só vê o contorno dessas vidas, sem tomar consciência dos detalhes que as corroem. Então, dotamos de arte tais existências. De maneira elementar, nós as romanceamos. Nesse sentido, cada qual procura fazer de sua vida uma obra de arte. (....) Eis portanto um mundo
24 BRITTO, Paulo Henriques. Trovar Claro.
A linguagem às margens do ordinário
25
imaginário, porém criado pela correspondência deste mundo real; um mundo no qual o sofrimento, se quiser, pode durar até a morte; no qual as paixões nunca são distraídas, no qual os seres ficam entregues à idéia fixa e estão sempre presentes uns para os outros. Nele finalmente o homem dá a si próprio a forma e o limite tranqüilizador que busca em vão na sua contingência. O romance fabrica o destino sob medida. Assim é que ele faz correspondência á criação e provisoriamente vence a morte. Uma análise detalhada dos romances mais célebres mostraria, em perspectivas diferentes a cada vez, que a essência do romance reside nessa perpétua correção, sempre voltada para o mesmo sentido que o artista efetua sobre sua própria experiência. Longe de ser moral ou puramente formal, essa correção visa primeiro à unidade e traduz por aí uma necessidade metafísica25.
Para Camus, o grande poder da arte consiste em ofertar-nos esse sentimento
de coerência e unidade do qual tanto carecemos e que apenas a nossa morte
poderia nos dar. Por meio da arte podemos construir um mundo e um destino “sob
medida”, no qual a dor ou o prazer não são meros acasos contingentes, ou
fragmentado caos de mínimas ações inconseqüentes e aleatórias, obedecendo
antes a um destino irremediável, terrível e belo. Um mundo que tenha a “forma e
o limite tranqüilizador” e que se apresente a nós como designo, e por isso mesmo
dotado de sentido e plenitude, é o que a ficção pode nos oferecer, respondendo a
essa “necessidade metafísica” que nos atormenta a buscar a síntese de nossos atos.
***
25 CAMUS, Albert. Romance e revolta. In: O homem revoltado.
A linguagem às margens do ordinário
26
***
Desde a modernidade foi se cristalizando certo modo de se pensar a
realidade como um dado objetivo, um “algo” que se oferece a nós, sujeitos, para
percepção, decodificação e domínio. Muito embora encontrando resistências mais
ou menos potentes e significativas, na arte sobretudo, a dessacralização do
cotidiano e a cientifização dos saberes progressivamente se impôs e vigorou como
modelo hegemônico para a compreensão do mundo e da linguagem no Ocidente.
A linguagem seria, nesse modelo, um instrumento, algo imperfeito, para o
conhecimento do mundo “real”. Com a progressiva dessacralização das
experiências humanas fomos nos esquecendo dessa sua propriedade de "fazer o
ser das coisas aparecer”, e passamos a nos relacionar com a linguagem dando
prioridade a sua instrumentalidade. Assim, o primeiro espaço teórico que esse
primeiro capítulo da tese procurará demarcar é a crítica a uma concepção
representacionista da linguagem, para a qual palavras são, conforme a brilhante
definição de Locke, “destinadas a serem sinais das minhas idéias para tornar essas
idéias conhecidas dos outros”26. E, um dos nomes mais significativos para a
construção de um pensar que ultrapasse o pensamento representativo e explicativo
em defesa do resgate da compreensão do real como physis27é o de Heidegger,
sobre quem a tese não se deterá na exata medida que seria necessário para fazer
26Ensaio sobre o entendimento humano. Livro III e IV, cap. X, p. 672. 27 Palavra grega que indica aquilo que por si brota, emerge, surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Conforme definição de Gerd Bornheim: “A physis compreende a totalidade de tudo o que é. Ela pode ser apreendida em tudo o que acontece: na aurora, no crescimento das plantas, na nascimento de animais e homens. E aqui convém chamar a atenção para um desvio em que facilmente incorre o homem contemporâneo. Posto que a nossa compreensão do conceito de natureza é muito mais estreita e pobre que a grega, o perigo consiste em julgar a physis como se os pré-socráticos a compreendessem a partir daquilo que nós hoje entendemos por natureza; neste sentido, se comprometeria o primevo pensamento grego com uma espécie de naturalismo. Em verdade, a physis não designa precisamente aquilo que nós, hoje, compreendemos por natureza, estendendo-se, secundariamente ao extranatural. Para os pré-socráticos, já de saída, o conceito de physis é o mais amplo e radical possível, compreendendo em si tudo o que existe. Não se compreende o psíquico, por exemplo, a partir do modo de ser da natureza em seu sentido atual, como não se entende os deuses a partir de nosso conceito mais parco de natureza. À physis pertencem o céu e a terra, a pedra e a planta, o animal e a homem, o acontecer humano como obra do homem e dos deuses, e, sobretudo, pertencem à physis os próprios deuses. Devido a esta amplidão e radicalidade, a palavra physis designa outra coisa que o nosso conceito de natureza. Vale dizer que na base do conceito de physis não está a nossa experiência da natureza, pois a physis possibilita ao homem uma experiência totalmente outra que não a que nós temos frente à natureza. Assim, a physis compreende a totalidade daquilo que é; além dela nada há que possa merecer a investigação humana. Por isto, pensar o todo do real a partir da physis não implica em “naturalizar” todos os entes ou restringir-se a este ou aquele ente natural. Pensar o todo do real a partir da physis é pensar a partir daquilo que determina a realidade e a totalidade do ente”. BORNHEIM, G.A. Os Filósofos Pré-Socráticos, pp. 12-14, grifo nosso.
A linguagem às margens do ordinário
27
justiça a suas reflexões, ainda assim ficará evidente em diversos momentos a
proximidade com algumas de suas intuições sobre a relação entre poiesis e
pensamento. O trecho abaixo parece sintetizar a nossa argumentação sobre um
certo modo de se posicionar face à linguagem que é próprio do homem das
sociedades modernas:
O homem se comporta como se fosse o criador e soberano da linguagem. A linguagem, no entanto, permanece soberana ao homem. Quando essa relação de soberania se inverte, o homem decai numa estranha mania de produção. A linguagem torna-se meio de expressão. Enquanto expressão, a linguagem pode apenas ser rebaixada a simples meio de pressão. Cuidar do dizer, mesmo nessa manipulação da linguagem, é, sem dúvida, positivo. Contudo, só esse cuidado não basta para nos ajudar a retornar à verdadeira relação de soberania entre a linguagem e o homem. Em sentido próprio, a linguagem é que fala. O homem fala apenas e somente à medida que co-responde à linguagem, à medida que escuta e pertence ao apelo da linguagem. De todos os apelos que nós, os humanos, devemos conduzir, a partir de nós mesmos, para um dizer, a linguagem é ela mesma o apelo mais elevado e, por toda parte, o apelo primordial. É a linguagem que, primeiro e em última instância, nos acena a essência de uma coisa. Isso, porém, não quer absolutamente dizer que, em cada significação tomado ao acaso de uma palavra, a linguagem já nos tenha entregue a essência transparente das coisas, de forma imediata e absoluta, como se fosse objeto pronto para o uso. O co-responder, em que o homem escuta propriamente o apelo da linguagem, é a saga que fala no elemento da poesia. Quanto mais poético um poeta, mais livre, ou seja, mais aberto e preparado para acolher o inesperado é seu dizer; com maior pureza ele entrega o que diz ao parecer daquele que escuta com dedicação, e maior a distância que separa o seu dizer da simples proposição, esta sobre a qual tanto se debate, seja no tocante à sua adequação ou à sua inadequação28.
Dizer que a linguagem é soberana significa, desde já, inseri-la no âmbito do
sagrado, pois a soberania, a gratuidade e o excesso são noções diretamente
relacionadas a ele, no sentido em que a soberania implica uma autoridade e um
poder que não se limita por outro. Assim, se a linguagem é soberana ao homem
não pode ser apenas a partir de sua ‘funcionalidade’ que a mesma deve ser
pensada, mas antes pelo que nela extrapola os lugares demarcados de nosso
pensar e imaginar. Aqui lembro outro verso de Adélia Prado: a poesia, lugar onde
a linguagem encontra sua máxima potência, é a “face de Deus atingida pela
brutalidade das coisas”29; é seu rastro, é rito e anunciação de um real pleno de
significado e inteireza, um realíssimo impossível de ser alcançado, mas que
permanece enquanto mito fundador de nosso périplo (heróico?) sobre a Terra.
Mito que se torna rito no poema e na prece.
28HEIDEGGER, Martin. ‘...poeticamente o homem habita...”op. cit., p. 167-8, grifos nossos. 29 Poema Guia, de Adélia Prado. In: Poesia Reunida, op. Cit.
A linguagem às margens do ordinário
28
A tese aposta que haja uma relação constitutiva entre linguagem, realidade e
sagrado, no sentido em que a linguagem funda o real, e todo real é percebido pelo
pensamento arcaico (mítico) como sagrado. Há que se explicar que pensamento
arcaico não quer dizer “primitivo”, e sim elementar, fundamental, em um sentido
que possamos afirmar subsistir no homem contemporâneo essa estrutura de
cognição do real. Parece-me mesmo que essa é uma intuição que já alimentava
Heidegger em seus estudos sobre linguagem e poesia. Por outro lado, as análises
de Ernst Cassirer sobre as estruturas simbólicas da atividade humana indicam
caminho parecido na medida em que Cassirer entende que linguagem e arte se
fundam sobre o solo comum do mito, sem nunca daí se libertarem completamente:
Do mesmo modo que a linguagem, a arte se mostra, desde o principio, estreitamente entrelaçada ao mito. Mito, linguagem e arte formam inicialmente uma unidade concreta ainda indivisa, que só pouco a pouco se desdobra em uma tríade de modos independentes de plasmação espiritual. (....) Mesmo que desta maneira a linguagem e a arte se desprendem do solo nativo comum do pensar mítico, ainda assim a unidade ideacional e espiritual de ambos torna a instaurar-se em um nível mais alto. (....)30.
30 CASSIRER, Ernest. Linguagem e mito, p. 114-115.
A linguagem às margens do ordinário
29
2.2 O rio-linguagem
Após essa introdução conceitual é preciso agora responder à pergunta sobre
a relação entre a linguagem — mais especificamente, sobre essa forma de
linguagem que é fundada na imagem poética31 — a percepção de realidade e o
sentimento/desejo de transcendência que parece ser próprio da poesia e, mais
claramente, da mística. Tomo essa relação como um dado, e dentro do âmbito do
presente capítulo não a problematizo. Apenas cito, a favor da afirmativa, o
testemunho de uma grande poeta do nosso tempo, Adélia Prado, para quem a
poesia, mesmo aquela dos poetas ateus, é sempre religiosa, pois ela sempre está
em busca do real. Em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira Adélia
afirma que “experiência religiosa e experiência poética são uma coisa só”, e
também: “Para mim a definição mais perfeita de poesia é: a revelação do real”32.
Digno de nota é essa concepção da poesia enquanto certo tipo de linguagem que
não apenas traduz o real, mas, antes, que o revela, desvela. A mesma idéia parece
alimentar Octávio Paz e, de certa forma, Bataille, ainda que com outros contornos
teóricos como veremos no segundo capítulo da tese.
A linguagem humana, bem como todo conhecimento acerca do mundo por
nós produzido pode ser entendido, grosso modo, como uma tentativa de redução
de complexidade e criação de perspectiva. Em intensa interação com o mundo, o
animal humano busca recorrências e permanências nos fenômenos que o circunda,
o que lhe possibilita desenvolver padrões e esquemas de inteligibilidade para
identificar, prever e agir sobre o mundo de acordo com seus interesses e intenções
(não apenas no que se refere ao ambiente físico, mas também sociocultural e
psíquico). A linguagem possui um importantíssimo e singular papel nesse
processo, porque ela permite que esses saberes construídos sejam, ao mesmo
tempo, fixados em molduras conceituais e transmitidos de uma para outra
geração, o que permitiu o nascimento da cultura e, em última instância, da própria
humanidade. Assim, o sucesso de nossa espécie parece estar relacionado à
capacidade que desenvolvemos de identificar padrões de semelhanças nas coisas e
31 Por imagem poética estamos entendendo aqui a capacidade metafórica da língua, e a própria metáfora é entendida aqui latu sensu, isto é, como mecanismo orientador para todos os tropos da linguagem. 32 PRADO, Adélia. Entrevista. Cadernos de Literatura Brasileira.
A linguagem às margens do ordinário
30
nos fenômenos — o que implica também a capacidade de distinguir, de separar
por diferenças — do mundo e do corpo social, bem como transmitir tais
informações a futuras gerações por um meio mais eficaz e rápido que a genética33:
a linguagem. A esse respeito diz Nietzsche, um dos mais importantes críticos do
pensamento ocidental:
Tudo o que eleva o homem acima do animal depende dessa capacidade de volatizar as metáforas intuitivas em um esquema; ou seja, da capacidade de dissolver uma figura em um conceito. No intercambio desses esquemas possíveis algo que jamais poderia conseguir-se com as primitivas impressões intuitivas: construir uma ordem piramidal por castas e graduações, instituir um mundo novo de leis, privilégios, subordinações e delimitações que agora se contrapõem ao outro mundo das primitivas impressões como mais firme e mais universal, o melhor conhecido e o mais humano e, portanto, como uma instancia reguladora e imperativa.34
As gerações que sucedem recebem de herança essas, aparentemente, sólidas
molduras conceituais às quais acrescentarão contribuições próprias. A linguagem,
nesse sentido, nunca é idiossincrática, mas sim um corpo vivo que se alimenta da
cultura na qual se inscreve ao mesmo tempo em que doa à cultura o sustento para
sua sobrevivência. A porção de realidade apreendida pela linguagem/pensamento
é sempre um construto a partir de uma dada perspectiva, que é orientada pelas
estruturas bio-cognitivas de nosso corpo, de modo que nossa própria
corporalidade é o primeiro limite dado ao nosso conhecimento do mundo
empírico. Nesse processo de construção de inteligibilidade, a
linguagem/pensamento parece obedecer aos princípios básicos da lógica
aristotélica: identidade, não contradição e terceiro excluído35, o que parece ser um
33 Os animais também transmitem conhecimento de uma para outra geração, mas isso se dá por meio de herança genética inegociável, ainda que exemplos como os dos orangotangos da ilha de Sumatra nos façam duvidar que a cultura seja uma forma essencialmente humana de lidar com os desafios da sobrevivência. Estudos como os do cientista Carel van Schaik indicam que a cultura não seria uma realização unicamente humana: a partir da observação de como esses orangotangos usavam ferramentas para a obtenção de alimentos, o autor trabalha com a hipótese de que esses animais teriam desenvolvido uma espécie de cultura partilhada em relação ao uso de ferramentas. SCHAIK, Carel van Por que alguns animais são tão inteligentes?. 34 NIETZSCHE, F. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. 35 Ou pelo menos foi assim que o pensamento ocidental quis crer. Atualmente podemos falar de outras lógicas, não-clássicas, chamadas polivalentes justamente por não trabalharem apenas com os valores verdadeiros e falsos, mas também com o necessariamente verdadeiro, o necessariamente falso e o indeterminado ou indecidível (como na lógica intuicionista). Ainda que para a ciência contemporânea os postulados da lógica aristotélica estejam sob suspeita, para o senso-comum é difícil pensar que uma coisa possa permanecer entre isso e aquilo, sem pouso, de modo que não nos parece incorreto afirmar que para o senso comum (espécie de orientação geral da razoabilidade do discurso) os princípios aristotélicos de identidade, não-contradição e terceiro excluído ainda possuem singular importância para a inteligibilidade do discurso.JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário de Filosofia, verbete Lógica.
A linguagem às margens do ordinário
31
outro limite para nossa compreensão do mundo no qual nos encontramos. E é
dentro desses limites que a linguagem/pensamento busca traduzir a realidade,
mas, conforme ressaltou Nietzsche, entre esferas absolutamente distintas como o
sujeito e o objeto não há nenhuma causalidade, nenhuma exatidão, nenhuma
expressão, mas somente uma “conduta estética”, um agir criativo: “um extrapolar
alusivo, um traduzir balbuciante a uma linguagem completamente estranha, para o
que, em todo caso, faz-se necessário uma esfera intermediária e uma força
mediadora, ambas livres para poetizar e inventar”36. Não é pertinente, ou sensato,
falar então da linguagem como um canal “sujo” que precisa ser limpo para que ela
seja uma mediadora isenta entre o pensamento (onde estão as idéias “claras e
distintas”) e a ação sobre a realidade, desde que a linguagem seja entendida como
essa força mediadora entre esferas díspares: mundo e pensamento. Se
entendermos que qualquer intenção de inteligibilidade do mundo já é uma ação
poética através da qual o homem se projeta sobre o mundo intencionalmente e
amorosamente (movido pelo afeto) e, se assumirmos uma posição pragmática e
não mais metafísica a esse respeito, ficaremos apaziguados com a declaração
nietzscheana de que todo conceito é um resíduo de metáfora, e não mais nos
preocuparemos com a inflação metafórica em nossos conceitos ou com a ausência
de um próprio. Afinal, esse traduzir balbuciante não impediu o avanço e o êxito da
ciência, pois essa “cavará eternamente com êxito nesses poços, poços onde tudo
que se encontre haverá de concordar entre si e não se contradirá”37.
Ao postular que todo conhecimento humano se constrói a partir de um
determinado ponto de vista, Nietzsche investe contra a ambição humana de
‘encontrar’ verdades imutáveis e essências que transcendam a ação do próprio
homem, pois essa pretensão é fruto do “esquecimento” de que fomos nós que
emprestamos ao mundo dos fenômenos a regularidade e a racionalidade que já
havia nele depositado:
Somos nós que fazemos e não cessamos de fazer o que não existia antes: este mundo (...) de apreciações, de cores, de pesos, de perspectivas, de escalas, de
36 No original: “un extrapolar alusivo, un traducir balbubiante a un lenguaje completamente extrano, para lo que, en todo caso, se necesita una esfera intermedia y una fuerza mediadora, libres ambas para poetizar e inventar. NIETZSCHE, F. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral, Op. Cit., p. 05. 37No original: cavará eternamente com éxito em estos pozos”, poçosonde “todo lo que encuentre habrá de concordar entre si y no se contradirá NIETZSCHE, F. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral, op. Cit., p. 05.
A linguagem às margens do ordinário
32
afirmações e negações .... A natureza nunca tem valor; este valor foi-lhe dado, é um presente, uma oferta que lhe fizeram, e quem a fez fomos nós. Fomos nós que criamos o mundo que diz respeito ao homem!38
Em assumindo essa postura pragmática, fica enfraquecida a pretensão de
delimitar o próprio da linguagem, posto que o ato de conhecer já é “transportar”
percepções sensíveis a conceitos abstratos, que não são muito mais que esquemas
perceptivos e projeções antropomórficas, ou seja, perspectivas construídas a partir
dos limites de nosso corpo/intelecto: “(...) uma perspectiva não é apenas o que
limita o nosso campo de visão mas sobretudo aquilo que o torna possível:
pretender suprimi-la para alcançar as coisas “em si mesmas” seria um absurdo
comparável a querer suprimir os olhos para ver melhor. Em função disso, se as
perspectivas podem infinitamente variar, se multiplicar e se deslocar, elas não
podem ser ultrapassadas (....)” 39. É tanto impossível olhar o mundo com “olhos de
pássaro” ou “olhos de hipopótamo” quanto “olhar” o mundo sem ‘olhos’, de
modo que, apesar de sabermos muitas coisas sobre o mundo, nunca saberemos o
que um pássaro ou um hipopótamo ‘sabem’ sobre esse mesmo mundo, desde que
nosso locus é outro e conseqüentemente nossa perspectiva será outra. Nietzsche
nos compara a aranhas industriosas em suas teias, mas, o que quer que seja aí
encontremos, apenas encontraremos o que se deixou apreender em nossas teias40.
***
38 A gaia ciência. § 301, apud Os abismos da suspeita, p. 88. 39ROCHA, Silvia Pimenta Velloso., op. cit , p. 88, grifo nosso. 40
Aurora, livro II, § 117, apud VELLOSO ROCHA, Silvia Pimenta, op. Cit., p. 89.
A linguagem às margens do ordinário
33
***
Retomo uma fala de Octávio Paz já citada: “Com efeito, a poesia é desejo.
Mas esse desejo não se articula no possível, nem no verossímil. A imagem não é
“o possível verossímil”, desejo de impossíveis, a poesia é fome de realidade “41.
À poesia não basta essa porção de realidade cotidiana, pacífica, organizada pela
discursividade; se grande parte dos saberes organizados ainda insistem que a
verdade de uma enunciação se mede pela adequação entre enunciado, referente e
intelecto (adequação entre pensamento e realidade, sendo a linguagem o meio
do/para o intelecto representar para si mesmo as coisas e fenômenos dispostos no
mundo), a poesia romperá com essa noção bem-comportada de linguagem, e
assumirá definitivamente a função demiúrgica de fazer o mundo vir-a-ser
acentuada por Nietzsche como própria de todo conhecimento humano. Trata-se
aqui fundamentalmente da poesia moderna, na perspectiva defendida por Foucault
de que a literatura “nasce” com a consciência profunda e problemática de que
palavras e coisas estão divorciadas, e que não há uma Palavra primeira a partir da
qual re-construir analogicamente o cosmos da ‘obra’. Mas, caso pensemos poesia
não mais como um gênero discursivo e sim como um experimentar (d)os limites
da linguagem — o que seria um procedimento típico da modernidade, como
sinaliza Foucault, mas não restrito a ela — essas colocações poderão ser
generalizadas a muitas outras épocas e gêneros discursivos.
Enquanto que para uma ciência e a filosofia essencialista a ambição suprema
seja abrir mão de todas as perspectivas e ter acesso não-mediado à coisa-em-si, a
poesia parece menos pretensiosa, e negocia sua fome de realidade com esse
exercício de ‘olhar como’ tão próprio à arte. E aqui talvez a articulação que a tese
tenciona entre poesia e mística se torne mais clara, desde que a arte de maneira
geral parece ter tido um importante papel de “desconfiar” da realidade autocontida
e auto-sustentada do mundo sensível e dos discursos explicativos da ciência. E,
por outro lado, um dos postulados mais freqüentes nos discursos místicos (em
especial as místicas apofática e de tradição oriental) é o do caráter ilusório da
realidade sensível e inteligível. Para clarificar esse argumento, veja-se uma
pequena parábola de um mestre da mística sufi acerca da inapreensibilidade do
mundo sensível:
41“O ritmo”, O arco e a lira, op. Cit, p. 80, grifo nosso.
A linguagem às margens do ordinário
34
Alguns hindus estavam exibindo um elefante num quarto escuro, e muita gente se reuniu para vê-lo. Mas como o quarto estava escuro demais para que eles pudessem ver o elefante, todos procuravam senti-lo com as mãos, para ter uma idéia de como ele era. Um apalpou sua trompa e declarou que o animal parecia um cano d’água; outro apalpou sua orelha e disse que devia ser um leque enorme; outro sua perna, e pensou que fosse uma coluna; outro apalpou seu dorso e declarou que o animal devia ser como um grande touro. De acordo com a parte que apalpava, cada um deu uma descrição diferente do animal. Um, por assim dizer, chamou-o de Dal e outro de Alif42.
A resposta sobre o que era o elefante é uma tentativa de - dados os limites de
apreensão sensível e cognitivas próprias a cada convidado a “ver o elefante”-
“traduzir” a experiência vivida nesse quarto escuro a signos culturais que a tornem
inteligível e comunicável. Nessa parábola, o ensinamento que a mística sufi deseja
enfatizar é a imperfeição do conhecimento humano e o desejo de apreensão da
unidade constitutiva da realidade, entretanto, o exemplo me vem à mente para
caracterizar duas condições intrínsecas ao conhecer humano: a) o fato de
‘estarmos em um quarto escuro’, metáfora dos limites a nós impostos pelo
perspectivismo inato a todo conhecimento, afinal, não há como “sair” do quarto
escuro para ver o elefante, e da mesma forma não dá para ver “tudo”, pois, o que
vemos é sempre enquadrado a partir daquilo que ‘escolhemos’ não ver, ou, nos é
‘negado’ ver; b) o fato de que, ainda que seja impossível negar uma “realidade”
fora de nossas perspectivas - essa Unidade que é objeto de desejo da metafísica e
da mística -, essa mesma realidade só ganha existência enquanto linguagem e, na
linguagem, ela já não é mais do que fragmentos metaforicamente nomeados a
partir do dentro de nossa linguagem e cultura (note-se que os nomes dados ao
elefante são ou produtos culturais ou animais comuns aos personagens). Se o
desejo de alcançar essa unidade do real seja, em nossas atuais molduras teóricas,
de uma ingenuidade talvez risível, negar esse fora da linguagem é igualmente
risível, pois significa localizar nosso discurso no já visto, contabilizado e pensado,
limitar o mistério do humano ao sentido e inteligível. E creio que não seja
possível negar a imperiosa necessidade de lembrar que “Ser é ser além do
humano”43.
42 Apud TEIXEIRA, Faustino. RUMI: a paixão pela Unidade, 2003. . 43 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H, 1977.
A linguagem às margens do ordinário
35
2.3 Margens terceiras na fabulação roseana
“Meu pai era um homem cumpridor, ordeiro, positivo...”, assim se anuncia o
conto “A terceira margem do rio”44, de João Guimarães Rosa. Logo nos primeiros
parágrafos já se traça um perfil das protagonistas desse acontecido inusitado que
se está a narrar: o Pai, homem que não se distingue dos demais em esturdícia ou
tristeza, senão pela quietude; a Mãe, aquela que assume o reger doméstico com
serenidade fatal; e o Filho, narrador em primeira pessoa, um homem de tristes
palavras que desenlaça os fios da memória daquele acontecido único, imemorial,
para que desse narrar — que se lhe solta das lembranças escusas como um negro
bode pelo árido deserto de imemoriais êxodos — seja-lhe purgada a culpa que lhe
queima as entranhas e o obriga a narrar para talvez assim dar nome ao inominado.
Uma tríade perfeita, pois as demais personagens que vão se delineando no conto
— a irmã, o irmão, o marido da irmã, os vizinhos, o homem que construiu a canoa
e que é detentor da explicação não-encontrável daquele evento a-bsurdo, o padre,
os policiais.... — são apenas pano de fundo para enquadrar a perspectiva do Filho,
a quem esse assunto (que) jogava para trás os (meus) pensamentos.
Mas, a adversativa se interpõe naquilo que poderiam ser apenas afagáveis
recordações de meninice, e interrompendo o curso ordinário dos ocorridos traz à
lembrança o princípio daquilo que não houvera de ser, mas, sendo, inaugura uma
terceira margem no rio-linguagem de João Guimarães Rosa: “se deu que, certo
dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa, própria para durar nas águas uns
vinte ou trinta anos”. Sem alardes ou reticências anuncia-se o despropósito do Pai
— “Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalçou o chapéu e decidiu um adeus
para a gente” — que assume para si o encargo de inventar uma terceira margem
para aquele tão doméstico rio, e nela, nessa margem insuspeita por absurdez,
permanecer para dela não saltar, nunca mais45.
A Mãe, sensata e ordeira, pronuncia raras palavras no fatídico da despedida,
palavras que trazem para a geografia da linguagem a distância física e ontológica
entre as margens quotidianamente previstas e aquela outra, a inominada: “Cê vai,
Ocê fica, você nunca volte!”. É interessante notar que as formas verbais de
tratamento vão “crescendo” à medida que a distância conseqüente à escolha do
44ROSA, João Guimarães. Terceiras estórias. In: Ficções completas. 45 ROSA, João Guimarães., op. cit., p. 78.
A linguagem às margens do ordinário
36
Pai se impõe, e deixando de ser estranha possibilidade para se tornar trágica
escolha. O pronome pessoal “você”, forma artificial e cerimoniosa em
determinadas comunidades lingüísticas do interior mineiro, se contrapõe à forma
popular “cê”, marcando o distanciamento que a partir daí se faz inevitável entre a
Mãe e o Pai. Entre as duas margens aparece uma terceira, que não é física,
material ou topológica, antes, sua substância é a pura irrealidade do não
previsível, daquele que se apresenta como Aberto, na terminologia heideggeriana,
ou, em nossa escolha, como sagrado.
Entre uma e outra margem Pai, Mãe e Filho sinalizam a demarcação dessa
fronteira imprecisa, porém inequívoca, que separa umas e outra margem: nessas,
ordinárias e exatas, ficaram Mãe e Filho, no lidar da rotina diária, acostumando-se
com aquilo que de fato não era matéria de costume; e naquela outra sina de
existir, perto e longe daquilo que nos é familiar, ficou o Pai, exilado das bem
demarcadas margens do rio-linguagem, a compor inusitada geografia nessas águas
turvas, como um atalaia a guardar o não-acontecível das ameaças da realidade
comezinha.
Na pacata rotina dessa família, tão comum que os nomes próprios são
substantivos abstratos, irrompe Aquilo que não havia, mas acontecia, e o próprio
do espanto incorpora-se na pessoa do Pai, aquele que se abriu para o extra-
ordinário de forma gratuita e sem pejo, ao contrário do Filho que, atormentado
pela culpa de ser o que não foi, o que vai ficar calado, busca na narrativa do
evento fabuloso o difícil perdão pela não-escolha da margem impossível, margem
terceira que apenas poderá ser escolhida no artigo da morte, quando o rio-
linguagem e o narrador-Filho formarão então uma unidade indissociável rio
abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.
A linguagem às margens do ordinário
37
****
Chamo atenção para o fato de esse ser um conto roseano onde a
experimentação lingüística, uma das principais características de sua poética -
levada a cabo com engenho e arte em seu romance Grande sertão: veredas - não
aparece em toda sua plenitude. Rosa sempre foi considerado um autor “difícil”,
que teria “inventado” uma língua idiossincrática, com tal nível de sofisticação que
a tornaria compreensível apenas por alguns “iniciados”. Entretanto, a linguagem
de “A terceira margem do rio” é relativamente simples, sem demasiado uso dos
deslocamentos sintáticos, estrangeirismos, neologismos, arcaísmos, mistura de
termos populares com eruditos e/ou filosóficos, e outros mecanismos de trans-
criação da língua tão a gosto do autor. Parece então que o maravilhoso se desloca,
nesse conto, do nível lingüístico para o enredo, a não ser que possamos afirmar,
tomando como base toda a obra de Rosa e não apenas a narrativa analisada, que a
língua é sempre protagonista na poiésis de Rosa, conforme o próprio autor
declarou em entrevista a seu tradutor alemão Günter Lorenz: “Minha língua,
espero que você tenha notado, é a arma com a qual defendo a dignidade do
homem”46. Seguindo essa orientação interpretativa dada pelo próprio Rosa em
relação a sua obra, proponho que entendamos o rio, locus onde se funda uma
margem outra que não as duas previstas pelo uso e hábito, como imagem da
própria linguagem, e a terceira margem como sendo o próprio da poesia em sua
relação tensa e ambígua com o real, que nela se vela e desvela. A poesia se
localiza nessa tensão entre physis e kryptestai47, manifestação e ocultamento,
palavra e silêncio, ser e não-ser, e ali executa “a invenção de se permanecer
naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não
saltar nunca, nunca mais”, ou seja, na poesia o real deixa de ser pacífico e torna-se
“espantoso”, porque se abre para a inquietude do não-acontecível.
Retomo agora algo que mencionei anteriormente: essa margem terceira,
extra-ordinária, é o próprio do sagrado se manifestando — alteridade absoluta
com a qual não há diálogo possível, apenas deslumbramento e apofatismo. O
próprio do sagrado confunde-se, já o anunciei, com o próprio da poiésis, espaço
46 ROSA, João Guimarães. Diálogo com Guimarães Rosa, entrevista a Günter Lorenz, p. 52. 47
Kryptesstai: o que se retrais, se encobre; aquilo que permanece oculto e não se revela. Remeto-me aqui ao fragmento 16 de Heráclito: “Physis kryptesstaiphilei”, traduzido Manuel Antônio de Castro como “A totalidade dos entes ama retrair-se”, já no ensaio Alehtéia já citado, o mesmo fragmento é traduzido por Márcia Sá Cavalcanti Schuback como “surgir (desde o encobrir-se) favorece encobrimento”. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Poiésis e linguagem.
A linguagem às margens do ordinário
38
inquieto onde não há permanência possível, e a linguagem não “funciona” com a
(suposta) precisão e eficácia esperada. Digo sagrado e poderia dizer Inominado,
Indiferenciado, Contínuo, Deserto, Deus.... nomes diversos para o esforço de dizer
justamente aquilo que se retrai a delimitações, posto que é justamente de
deslimites de que trata: como nomear o próprio Nome? Como dizer aquilo (ou
aquele) que é fundamento de toda voz? É assim, com temor e tremor, que nos
aproximamos do sagrado, e tal qual a Moisés, desejoso de ver a face de Deus,
ouvimos a resposta “Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum
verá a minha face e viverá” (Ex. 33: 20). Se o poeta é aquele, como o disse
Höederlin, exposto aos relâmpagos dos deuses, é porque ele não se nega trafegar
nessa margem terceira, margem inexistente que se constrói em ato de sério
fingimento.
Lembro aqui uma fala de Heidegger “... é preciso espantar-se diante do
simples e assumir esse espanto como morada”. E, de outro trecho já citado à
exaustão: “A linguagem é a casa do ser. Em sua habitação mora o homem. Os
pensadores e os poetas lhe servem de vigias. Sua vigia é con-sumar a
manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam
na linguagem”48. Espanto e linguagem parecem estar relacionados na medida em
que existe a necessidade de habitarmos conjuntamente no espanto e na linguagem,
neles construindo os alicerces sob os quais erigimos cultura, arte e pensamento.
Poderemos nós, ainda hoje, nos espantarmos com o simples, nós que já não nos
espantamos com as maravilhas da tecnologia ou com a violência real e encenada
que quotidianamente nos assedia pelas ruas da cidade ou nas mágicas ondas da
televisão? Mas, o que é o espanto? O espanto acontece quando o olhar é
deslocado da ordem costumeira e se encontra em uma posição sobretudo
inesperada, mas também inquietante e perplexa, abdicando as marcações culturais
e balizas cognitivas que regem nosso cotidiano.
A partir dessas afirmações de Heidegger chamamos a atenção para o fato de
ser com espanto e estranhamento que os demais personagens do conto roseano se
posicionam diante da decisão do Pai, que parte para nenhuma parte: “A estranheza
dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia
acontecia”. Metáfora daquilo que se propõe como puro estranhamento e rejeição a
48HEIDEGGER, F. Carta sobre o humanismo, p. 23-24.
A linguagem às margens do ordinário
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todo esforço de assimilação, a terceira margem do rio roseano nos remete a um
exercício de soberania no qual a linguagem se retrai enquanto moeda inflacionada
pelo uso e se dispõe como poiesis, garantindo que aquilo que não há possa
acontecer e encontre vigor e força ontológica. A essa operação de desocultamento
os gregos denominavam alethéia, experiência de presentificação da realidade,
entendida enquanto totalidade (physis) de todas as potencialidades e
possibilidades do ser. Na poesia a linguagem retoma sua força ontológica de
presentificação de realidades e propositora de espantos, e a metáfora roseana
desse rio-linguagem ao qual é salvaguardada uma terceira margem fala-nos do
desejo de resguardar um espaço, utópico certamente, onde o homem permaneça
como ser transitivo ao qual nenhuma palavra poderá predicar.
****
Esse primeiro capítulo da tese tencionou ser uma introdução às questões que
nos moverão durante esse estudo. Entendendo a realidade como construção
discursiva que busca a formação das molduras que conferirão inteligibilidade aos
dados brutos do mundo sensível, a tese tem como principal objetivo mapear
estratégias estético-filosóficas do discurso poético e místico na tematização do
real. A hipótese que guia essa empreitada é a de que tanto o discurso poético
quanto o discurso da mística (trata-se aqui daquela mística chamada apofática)
sejam erigidos a partir de uma (deliberada ou não) “sabotagem” da capacidade
discursiva da linguagem, ou em outras palavras, que ambos seriam projetos de
“fracasso” do discurso, entendendo discurso aqui como produção de razoabilidade
e consenso.
A escolha de ambos os fenômenos se deu pela aposta na compreensão de
George Bataille de que mística e poesia sejam experiências nas quais há, em
princípio, uma quebra das prerrogativas do mundo do trabalho (da discursividade)
e uma vivência dramática da violência anárquica e dispendiosa (sagrada) que
subjaz à linguagem/cultura. Assim, mística e poesia seriam discursos nos quais há
um atentado contra os próprios fundamentos que os sustentam, projetos que visam
à própria destruição. Tal afirmação é facilmente compreensível em relação aos
discursos apofáticos, que negam não apenas toda possibilidade de predicação e
nomeação de Deus (o fundamento último de todos os discursos) mas também de
cognição dEsse que está acima de todo nome. Quanto à poesia, ainda que seja
A linguagem às margens do ordinário
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arriscado conferir a ela, essencialmente, essa mesma característica de resistência
ao mundo do trabalho e do discurso, parece-nos que as intuições de Bataille sejam
corretas, e que, de algum modo que se manifesta mais ou menos em cada autor e
obra, haja um retraimento da linguagem poética em relação às demarcadas
margens do uso e costume, e um mover-se rumo ao silencioso.
No decorrer da tese serão analisados alguns exemplos de poesia
contemporânea e também alguns textos produzidos por místicos da tradição
apofática. O que se pretende é demonstrar que esses discursos se oferecem como
uma interessante tematização de discussões bem atuais sobre a capacidade de a
linguagem dizer o real, e de estratégias possíveis para fugir às armadilhas do
antropocentrismo que parece inerente à inteligibilidade humana.
Tendo em George Bataille o autor do qual a tese retira sua premissa
fundadora, o próximo capítulo será uma introdução ao seu pensamento e
principais conceitos que possuem relação com nossa abordagem.