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2 A LINGUAGEM ÀS MARGENS DO ORDINÁRIO 2.1 Da imagem poética A poesia é estranheza que a coisa me provoca; uma estranheza fundada na beleza. Adélia Prado 1 Inicio meu percurso com a seguinte afirmação de Octávio Paz: “Com efeito, a poesia é desejo. Mas esse desejo não se articula no possível, nem no verossímil. A imagem não é “o possível verossímil”, desejo de impossíveis, a poesia é fome de realidade2 . Em outro momento ele aproxima a poesia de outras expressões humanas de busca pela transcendência (o erotismo e a religião) que sejam experiências de outridade (revelação de si mesmo, do mistério irredutível que o outro impõe a nós e do mistério último que é a vida humana sobre a face da Terra). Inserido na zona do sagrado, o ato poético é festa, comunhão e rito 3 que reproduz a experiência religiosa acrobática de saltar sob abismos, no escuro e sem redes de segurança, no sentido em que é sempre um apelo à transcendência e à alteridade. Todo rito é uma anunciação: repetição de eventos intemporais e perfeitos, fixados na memória através do mito, que ao serem vivenciados com certa disposição de espírito atualiza o evento eterno, revigorando o tempo profano, o tempo do interdito, dando-lhe realidade e potência. E como a poesia pode fazer isso? Através da imagem poética e do ritmo, dirá Paz. O ritmo é justamente essa imposição de outro tempo, mágico-mítico, para a linguagem, que em seu uso ordinário/cotidiano submete-se às leis do cálculo e da economia. O ritmo “engendra em nós uma disposição de ânimo que só poderá se acalmar quando sobrevier “algo”. O ritmo põe-nos em atitude de espera” 4 , espera cujo sentido se orienta, tal qual a cerimônia do rito, pela busca de tempo original, para a descoberta, assinalada por Paz e em consonância com o pensamento heideggeriano, de que somos o tempo, e o tempo é a nossa medida. 1 PRADO, Adélia. Mística e poesia, 2004. 2 PAZ, Octávio. “O ritmo”. In: O arco e a lira, 1982, p. 80, grifo nosso. 3 PAZ, Octávio. “A outra margem”. In: O arco e a lira, op. Cit, p. 141. 4 PAZ, Octávio., op. Cit, p. 69.

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A LINGUAGEM ÀS MARGENS DO ORDINÁRIO

2.1 Da imagem poética

A poesia é estranheza que a coisa me provoca; uma estranheza fundada na beleza.

Adélia Prado1

Inicio meu percurso com a seguinte afirmação de Octávio Paz: “Com efeito,

a poesia é desejo. Mas esse desejo não se articula no possível, nem no verossímil.

A imagem não é “o possível verossímil”, desejo de impossíveis, a poesia é fome

de realidade”2. Em outro momento ele aproxima a poesia de outras expressões

humanas de busca pela transcendência (o erotismo e a religião) que sejam

experiências de outridade (revelação de si mesmo, do mistério irredutível que o

outro impõe a nós e do mistério último que é a vida humana sobre a face da

Terra). Inserido na zona do sagrado, o ato poético é festa, comunhão e rito3 que

reproduz a experiência religiosa acrobática de saltar sob abismos, no escuro e sem

redes de segurança, no sentido em que é sempre um apelo à transcendência e à

alteridade. Todo rito é uma anunciação: repetição de eventos intemporais e

perfeitos, fixados na memória através do mito, que ao serem vivenciados com

certa disposição de espírito atualiza o evento eterno, revigorando o tempo

profano, o tempo do interdito, dando-lhe realidade e potência. E como a poesia

pode fazer isso? Através da imagem poética e do ritmo, dirá Paz. O ritmo é

justamente essa imposição de outro tempo, mágico-mítico, para a linguagem, que

em seu uso ordinário/cotidiano submete-se às leis do cálculo e da economia. O

ritmo “engendra em nós uma disposição de ânimo que só poderá se acalmar

quando sobrevier “algo”. O ritmo põe-nos em atitude de espera”4, espera cujo

sentido se orienta, tal qual a cerimônia do rito, pela busca de tempo original, para

a descoberta, assinalada por Paz e em consonância com o pensamento

heideggeriano, de que somos o tempo, e o tempo é a nossa medida.

1 PRADO, Adélia. Mística e poesia, 2004. 2 PAZ, Octávio. “O ritmo”. In: O arco e a lira, 1982, p. 80, grifo nosso. 3PAZ, Octávio. “A outra margem”. In: O arco e a lira, op. Cit, p. 141. 4 PAZ, Octávio., op. Cit, p. 69.

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Nesse sentido a poesia é sempre sagrada, rastro de Deus, sua Face atingida

pela brutalidade das coisas, dirá Adélia Prado5, e a imagem poética será uma

tentativa de reconduzir as palavras, a linguagem, a seu lugar original, o ritmo,

onde não vigoram as leis do discurso (linearidade, teleologia, os princípios de

não-contradição e identidade, etc) e sim as leis de atração e repulsa6. Mas,

pergunta essencial, o que entendemos quando dizemos sagrado?

Quando falamos de sagrado queremos distender esse conceito para fora dos

sítios estreitos da instituição e da fé religiosa. Por sagrado entenda-se esse “fora”

da linguagem e da cultura, do inteligível e cognoscível, essa alteridade absoluta

que causa atração (assombro) e horror (tremor)7, e que não pode ser reduzida a

nenhum padrão ético-moral ou a um conjunto de predicados, mas, à semelhança

do que a mística oriental e a teologia negativa nos ensina, o sagrado é um neutro,

um nada, um vazio anterior a qualquer distinção predicativa. Concorda com essa

perspectiva o místico medieval Mestre Eckhart8 quando afirma que Deus é Um,

Nele não há divisões ou distinções, logo, não há diferença, pois que ele é um

“negar do negar”, um abismo mesmo aonde o sentido — que parece se apoiar nos

princípios de identidade e não contradição — naufraga. O sagrado (que as

tradições religiosas ocidentais costumam chamar de Deus, mas que não se

restringe a ele) é identificado com esse Contínuo ao qual não há predicação

possível — lembremo-nos que predicar implica fragmentar e distinguir — pois o

simples ato de atribuir predicados pressupõe um fora daquilo a que se predica, a

diferença mesma como forma de adjetivação9. Trabalho aqui com o conceito de

5 Poema Guia, In: PRADO, Adélia. Bagagem. 6 Aqui fica patente a herança do pensamento de Vico em Paz, nessa ênfase do poeta mexicano em afirmar um lugar original e privilegiado para a poesia na linguagem humana, veja-se a citação: “Pela violência da razão as palavras se desprendem do ritmo; essa violência racional sustenta a prosa, impedindo-a de cair na corrente da fala onde não vigoram as leis do discurso e sim as de atração e repulsa. Mas esse desenraizamento nunca é total porque, ao contrário, a linguagem se extinguiria. E com ela o próprio pensamento. A linguagem, por inclinação natural, tende a ser ritmo. Como se obedecessem a uma misteriosa lei de gravidade, as palavras retornam espontaneamente para a poesia. No fundo de toda prosa circula, mais ou menos rarefeita pelas exigências do discurso, a invisível corrente rítmica”. PAZ, Octávio. “Verso e prosa”, In: O arco e

a lira, op. Cit., p. 82. 7 Em seu clássico estudo sobre os aspectos racionais e irracionais do fenômeno religioso, Rudolf Otto assim define o sagrado: “Pero elmisterio religioso, elauténticomirum es — para decirlo acaso de lamanera mas justa — lo heterogéneo en absoluto, lothateron, amyad, alienum, loextraño y chocante, lo que saleresueltamentedel círculo de loconsuetudinario, comprendido, familiar, íntimo, oponiéndose a ellos, y, por tanto, colma elánimo de intenso asombro”. OTTO, Rudolf. Lo santo: lo racional y lo irracional en la idea de Dios, 2005, p. 38. 8 BOFF, Leonardo. Mestre Eckhardt: a mística de Ser e de não ter, 1983. 9 No segundo capítulo da tese esse conceito será mais bem desenvolvido. Ver: BATAILLE, George. O erotismo, op. cit.

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sagrado dentro do pensamento de Georges Bataille: o sagrado como um conjunto

de forças transgressivas e violentas, mas não identificáveis a priori, que se opõem

de forma radical ao mundo do trabalho, da razão e da descontinuidade. Nesse

sentido o sagrado não é objetivável, e muito menos institucionalizável, antes, se

localiza além das fronteiras do humano e de toda lógica econômica e não

excessiva que preserva o indivíduo e a complexa arquitetura de nosso mundo

social. Antes, pode-se entender por sagrado uma espécie de negativo ou reverso

do humano, um aquém dos imperativos que regulam a vida coletiva e as práticas

sociais, estando intrinsecamente relacionado à transgressão desses mesmos

imperativos.

Os limites de nossa linguagem/realidade são dados pelos limites de nossa

perspectiva. Fora da linguagem restam as forças incompreensíveis do sagrado, as

quais podemos vivenciar através de experiências limites, dentre as quais destaco a

mística e a poesia10. Essas experiências não são, entretanto, produtivas, a

experiência interior é marcada também pelo princípio da soberania, no sentido em

que não há nenhum “ganho” (cognitivo, cultural, social, etc.) nela. Bataille assim

diz: “O que caracteriza tal experiência, que não procede de uma revelação, onde

nada tampouco se revela, a não ser o desconhecido, é o fato de ela nunca trazer

nada de apaziguante”. Inútil e dispendiosa, a experiência interior atesta no homem

um princípio de soberania que subsiste a seu projeto de racionalidade tranqüila.De

forma semelhante à mística, a imagem poética impõe uma espécie de choque com

os limites da linguagem/realidade, de forma que a epifania do real, presente na

mística e de certa forma na linguagem poética, surge dessa colisão da linguagem

com os seus limites, limites aos quais estou chamando sagrado. Octávio Paz,

poeta e pensador mexicano que possui importantes pontos de interseção com as

reflexões de Bataille sobre poesia, afirma que a imagem poética “atenta contra os

fundamentos do nosso pensar”, constituindo-se um “escândalo e um desafio, (que)

10 Apóio-me aqui nas concepções de Georges Bataille, para quem a experiência interior constitui um meio de experienciação dos limites dados pelo mundo do trabalho. A experiência interior pode incluir vivências que vão do erotismo ao sacrifício religioso, da mística a certo tipo de literatura. Em todos esses casos, a experiência é definida por ser uma tentativa de negar a duração individual do ser e a economia preservativa do corpo social; uma transgressão aos interditos fundamentais que operaram a passagem da animalidade primitiva à humanidade; e uma abertura à morte, factual ou simbólica (É importante lembrar o papel central do sacrifício em todas as grandes religiões, inclusive no cristianismo. O ‘sacrifício’ de Cristo é simbolizado no partir do pão e no beber do vinho entre os cristãos [a comunhão]. Mas precisamos não esquecer que o que se comemora é a morte do Deus-homem, e a participação simbólica do crente nessa morte). BATAILLE, George. O erotismo, op. Cit.

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também viola as leis do pensamento”11. Não obstante esse escândalo para o

pensamento discursivo, pode-se dizer que a imagem poética produz algum tipo de

inteligibilidade, na medida em que ela também é, em certa medida, nomeação e

redução de complexidade. De acordo com Paz, a poesia submete a pluralidade

inquietante do real à unidade, operando a mesma redução de complexidade

própria ao pensamento lógico-conceitual, entretanto, a distinção entre poesia e

conceito estaria em que na imagem poética a contradição inerente ao real não é

anulada no sentido, e sim atualizada. No exemplo de Paz, se a operação descritiva

de um objeto o reduz progressivamente a fragmentos, a imagem poética recupera

sua densidade ontológica:

A princípio a cadeira foi apenas forma, mais tarde uma espécie de madeira e finalmente puro significado verbal: a cadeira é um objeto que serve para sentar-se. No poema a cadeira é uma presença instantânea e total que fere de um golpe a nossa atenção. O poeta não descreve a cadeira: coloca-a diante de nós. Como no momento de percepção, a cadeira nos é dada com todas as suas qualidades contrárias e, no ápice, o significado. Assim a imagem reproduz o momento de percepção e força o leitor a suscitar dentro de si o objeto um dia percebido. O verso, a frase-ritmo, evoca, ressuscita, desperta, recria. Ou, como diria Machado: não representa, mas apresenta.12

Ainda nesse mesmo artigo Paz parece entender que existe “produção” de

inteligibilidade na imagem poética, mas tal “conhecimento” seria, como o da

mística oriental, citada por ele, um conhecimento negativo, na constatação de que

“Os objetos estão mais além das palavras”, de modo que é preciso elaborar-se

uma linguagem (mística ou poética) “que seja algo mais do que a linguagem:

palavra que diga o indizível”13. Desse modo, se há algum tipo de revelação na

poesia, palavra tão ao gosto de Octávio Paz, com fortes ressonâncias

heideggerianas, ela se assemelha à iluminação budista: saber enfim que todo

conhecimento é impossível, pois conhecer é estar no mundo das polaridades, do

desejo (da ausência) e do ilusório ciclo de ação-reação. Aquele que encontrou a

iluminação mística descobre enfim que todo conhecimento encontra-se

circunscrito dentro dos limites de nossa linguagem produtiva e que, fora desse

universo lingüístico, ilusório — dirão os místicos —, só resta o silêncio e o vazio.

11 PAZ, Octávio. A imagem. In: Signos em rotação, pp. 38 e 39. 12 PAZ, Octávio. A imagem, op.cit., p. 46, grifo nosso. 13 PAZ, Octávio. A imagem, op.cit., p. 43 e 44.

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A imagem poética é uma, entre outras, possibilidade de inteligibilidade do

real, na medida em que os processos cognitivos acionados pela imagem são outros

(analógicos, associativos, sensoriais, etc) que aqueles usados pela linguagem

proposicional. Nessa busca de um real não fracionado e redutível à racionalidade,

ao se negar inserir na economia da linguagem produtiva e demandar de si mesma

a soberania própria dos sacrifícios religiosos, a poesia, sintetizada na imagem

poética, parece estar próxima a uma concepção de realidade arcaica, na qual,

segundo Mircea Eliade, realidade e sagrado se confundiam. Eliade afirma que o

homem das sociedades arcaicas pretende viver o mais perto possível do sagrado,

que é analisado por ele como uma radical oposição ao profano, isto é, partes da

vivência humana marcadas pela naturalidade e cotidianidade em oposição a forças

mágicas, transcendentes, que permeiam a natureza e as suas relações

interpessoais. Essa escolha se dá por que, (...) o sagrado equivale ao poder e, em

última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência

sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A oposição

entre sagrado/profano traduz-se muitas vezes como uma oposição entre real e

irreal ou pseudo-real “14. Na verdade tal escolha é feita, segundo Eliade, por que o

espaço sagrado é ”o único que é real, que existe realmente”.15 Eliade destaca que

na consciência mítica, da qual não nos emanciparemos jamais, realidade e sagrado

são co-participes, ou seja, apenas é real aquilo que foi tocado pelo numinoso, e

realidade aqui não está sendo usado no sentido comum de um conjunto de

apreensões sensíveis/inteligíveis verificáveis pela maioria, e sim de densidade

ontológica, potência criativa/destruidora, caos sempre em movimento entre ser e

não-ser onde deuses, homens, animais, plantas e coisas interagem de forma

imprevisível.

Essa suspeita em relação à irrealidade do mundo tido como real e objetivo

comparece também na poesia, ainda que não necessariamente acompanhada da

correspondente afirmação de uma realidade supra-inteligível16. A poesia, ou pelo

14 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, 2001, p. 18. 15 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, op. Cit., p.25. 16Um dos principais objetivos da tese é explorar respostas de diferentes autores (poetas e místicos) à inquietação de “vivermos em trevas profundas”. Interessante notar que a metáfora de uma escuridão que ilumina pelo que faz obscurecer será grandemente utilizada pelos místicos da tradição apofática que analisaremos no capítulo quatro. Mas o uso da metáfora da escuridão relacionada à condição de possibilidade de um saber negativo remonta a Platão, no conhecido mito das cavernas, obtendo posteriormente, com Pseudo-Dionísio (século VI a.c), a formulação mais acabada de um saber negativo, que nasce a partir da experienciação de uma treva superluminosa.

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menos um certo tipo de poesia que tematiza as tensões entre realidade/poiésis,

coisa/homem, sagrado/profano, parece mesmo ter se tornado, em tempos nos

quais “Deus está morto”, uma espécie de último reduto onde o real/sagrado da

linguagem, e do mundo, se manifesta, como expresso por Heidegger no seguinte

trecho: “Em tudo o que aparece e se mostra familiar, o poeta faz apelo ao

estranho enquanto aquilo a que se destina, o que é desconhecido de maneira a

continuar sendo o que é — desconhecido.”17 Sobre o tema são também

interessantes as colocações de Harries, que nota que a arte moderna (inclusive a

crítica) se orienta para um desejo de presença e transparência absolutos, sendo

transparência e presença entendidos pelo autor como imediaticidade do objeto

estético e recusa a interpretações, ou rejeição a um sentido que transcenda a obra

como coisa em si, que é o que é. Deseja-se uma imedicaticidade de visão e uma

plenitude sem referencialidade, um dar visibilidade plena à coisalidade do objeto

estético ou, em outras palavras, eximí-lo do sentido e devolver à linguagem a

imediação do sensório e do sensual. Nesse sentido, as metáforas poéticas investem

contra a linguagem estabelecida, corroendo-a em suas certezas estabelecidas e

levando-a à colisão contra aquilo que a transcende: um silêncio residual resistente

a nossos encantos antropocêntricos. O desejo de presença do qual nos fala Harries,

apesar de aparentemente parecer uma recusa de transcendência, na medida em que

se deseja essa presença absoluta da coisa-apresentada, “eliminando” do objeto

estético as camadas de sentido que nossas interpretações imputaram sobre ele, é

ainda a tentativa de ouvir o silêncio das coisas mudas e cerrar a fissura entre a

linguagem e a realidade18.

Ressalto que o tipo de religiosidade que aqui se menciona não é de conteúdo

(ritos, doutrinas, confissões de fé, símbolos, instituições, teologias, etc.) e sim de

forma:uma forma de experienciar a linguagem na qual a mesma se torna epifânica,

ainda que a única epifania possível seja a consciência difícil dessa fissura entre a

palavra e a coisa, e do cotidiano exercício acrobático entre uma e outra, como

aparece no poema Funâmbulo, de Paulo Henriques Britto19:

Entre a palavra e a coisa o salto sobre o nada.

17 HEIDEGGER, Martin. ‘’... poeticamente o homem habita...”. Ensaios e conferencias, p. 177. 18 HARRIES, Karsten. A metáfora e a transcendência. In: SACKS, S. (org.). Da metáfora, p. 77-93, p. 92. 19 BRITTO, Paulo Henriques. Macau.

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Em torno da palavra muitas camadas de sonho. Uma cebola. Um átomo. Uma cebola ávida. Entre uma e outra camada nada. Saltam sobre o abismo, Tomam o vazio de assalto. De píncaro a píncaro projetam-se, impávidas, epifânicas, esdrúxulas, teimosas e dançarinas. O salto é uma dança, a teima é uma doença. Em torno da cebola o ar é tenso de lágrimas.

Acrobata, o poeta tenta apreender nessa fissura entre coisa e palavra a

substância quente e viscosa do real: fica-lhe nas mãos apenas o “ar tenso de

lágrimas” que escapa dessa cebola ávida em seu voltear-se sobre o próprio nada,

voltear que não configurar nenhuma imagem de mundo (um realíssimo), exceto

um grande vazio a ser preenchido pelo próprio enovelar-se da palavra de si e para

si. Não há nenhum referente mais consistente do que essa palavra impura que em

estado de dicionário provoca o poeta (provoca-nos leitores) a um enigma ao qual

a resposta, não importa se irônica ou mítica, é um salto sobre o abismo, sem redes

de segurança. Não obstante, o poeta não pode abjurar dessa tarefa inglória de

continuar a buscar “os parentescos subterrâneos das coisas, (e) suas similitudes

dispersadas”20.Se “o salto é uma dança e a teima uma doença”, as palavras

dançarinas compõem um balé difícil e belo que aponta, ao mesmo tempo, para a

irrecusável necessidade de transcendência e para o fracasso da mesma.

Alguns autores vão enfatizar, na arte moderna e contemporânea, a presença

de uma negatividade que em muito se assemelha à mística apofática ou negativa.

Essa é chamada de mística da imanência ou mística estética, e congregaria nomes

tais como Novalis, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Rilke, Hofmannsthal, T.S.

Eliot, James Joyce, entre outros, autores distintos em suas particularidades mas

que se reúnem sob a égide de uma certa negatividade que encontra na mística

apofática e na teologia negativa seu modelo, no sentido em que seus discursos

poéticos se articulam a partir de um imperativo e uma impossibilidade: dizer

aquilo que não pode ser dito, dizer o inefável. A tese se construirá portanto a

20 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, op. Cit.

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partir da compreensão de certo parentesco entre a poesia e a mística como

experiências lingüísticas limite (ou experiências de limite) de construção de uma

terceira margem na linguagem/realidade, e o termo construção procura enfatizar

justamente o caráter de constructo de toda a inteligibilidade dada a uma ação

humana no mundo, pressupondo mesmo um esforço de fazer algo vir a se ser, algo

a que não poderíamos atribuir ser ou existência fora do âmbito dessa ação que

abole mesmo a noção clássica de sujeito versus objeto. Nesse sentido a tese rejeita

os pressupostos - facilmente associáveis a um trabalho cujo objeto é a mística -

essencialistas de linguagem e realidade, desde que o esforço empreendido será

justamente o de lançar luzes sobre esse aspecto poético (ou autopoiético,

conforme expressão de Maturama e Varella) que permeia as instâncias linguagem

e realidade21. Encontra-se aqui esse nó que procuro destacar como comum entre

poesia e mística: o desconfiar da irrealidade da realidade cotidiana (o que é

bastante claro na mística) e a demanda por uma realidade mais plena, coesa,

inteira, ainda quando tal desejo de realidade venha acompanhado por uma

profunda ironia quanto a esperança de se alcançar qualquer essência não-

construída em nossa herança sócio-cultural.

Um exemplo interessante desse recurso à ironia sem a recusa do dilema da

busca pela unidade, é encontrado em outro poema de Paulo Henriques Britto,

abaixo transcrito:

De vulgarieloquentia

A realidade é coisa delicada, de se pegar com a ponta dos dedos. Um gesto mais brutal, e pronto: o nada. A qualquer hora pode advir o fim. O mais terrível de todos os medos. Mas felizmente, não é bem assim. Há uma saída - falar, falar muito. São as palavras que suportam o mundo, não os ombros. Sem o "porquê", o "sim", todos os ombros afundam juntos. Basta uma boca aberta (ou um rabisco num papel) para salvar o universo.

Portanto, meus amigos, eu insisto: Falem sem parar. Mesmo sem assunto.22

21 MATURAMA, R. Humberto & VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. 22 BRITTO, Paulo Henriques. Macau, op. Cit.

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A delicadeza da realidade, que se esvai ao gesto brusco e à mão voluptuosa,

exige a coabitação com o verbo, com as palavras que nos salvarão de afundar na

in-significância das coisas e o fim dessa rede discursiva que sustenta a comédia

humana sob a face da Terra. As duas primeiras estrofes do poema contrastam com

o tom irônico e levemente sarcástico dos demais versos. Onde se encontra a

fragilidade da realidade, passível de ser destruída diante de um gesto descuidado?

As palavras, nesse caso, ‘escondem’ ou ‘revelam’ a realidade? Não teríamos aqui,

também, ressonâncias de um realíssimo que se esconde por detrás das tramas e

fios da tagarelice e discursos cotidianos? Menção a um inominado ou inarticulado

que se vela, ou se des-vela, um nada ao qual se remete nossas construções de

realidade ou, retomando Adélia, um “esplêndido caos de onde emerge a nossa

sintaxe”?23 A realidade, inconsistente com nosso desejo de unidade metafísica,

ameaça afundar no abismo do nada caso um gesto mais brutal — que pode ser a

simples desconfiança em relação à capacidade de as palavras construírem essas

pontes firmes entre as coisas e nós — se realize. O canto irrecusável do real,

verso do poema Sete estudos para a mão esquerda do mesmo Paulo Henriques,

desafia ao poeta, e a todos nós, a tecer fios discursivos que impeçam todos os

ombros de naufragarem juntos, leiamos esse poema:

Existe um rumo que as palavras tomam como se mão alguma as desenhasse na branca expectativa do papel porém seguissem pura e simplesmente a música das coisas e dos nomes o canto irrecusável do rel. E nessa trajetória inesperada a carne faz-se verbo em cada esquina resolve-se completa em tinta e sílaba em súbitas lufadas e sentido.

23Aqui faço menção ao poema Antes do nome, in: PRADO, Adélia. Poesia Reunida.

Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, Os sítios escuros onde nasce o “de”; o “aliás”, O “o”, o ”porém” e o “que”, esta incompreensível muleta que me apóia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender A palavra é disfarce de uma outra coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrenqüentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror.

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Você de longe assiste ao espetáculo. Não reconhece os fogos de artifício, As notas que ainda engasgam seus ouvidos. Porém você relê. E diz: é isso24.

Novamente aparece aqui a contradição da linguagem (e da escrita,

principalmente), cujas palavras que se dispõem sob a branca folha de papel como

se “seguissem pura e simplesmente/ a música das coisas e dos nomes/ o canto

irrecusável do real”. O como se, próprio da ficção elabora um espaço onde o

sentido (ainda que fugaz, em lufadas de vento) se constrói como um espetáculo no

qual podemos reconhecer nosso desejo e nossa miséria. Mas algo ainda engasga, e

resiste à inteligibilidade. A coloquialidade da linguagem de Paulo H. Brito, com

ressonâncias drummondianas, não deve nos enganar: se o recurso do poeta é a

ironia, essa ironia não pode encobrir uma espécie de nostalgia dolorosa de uma

palavra-verbo (‘a carne faz-se verbo em cada esquina”) e esse inexplicável alívio

de poder dizer: “è isso”. Uma ordem, um cosmos, um espetáculo: as palavras,

desistindo de re-presentar o real, tomam o encargo de a-presentá-lo a nós, e

“súbitas lufadas de sentido” aliviam esse deserto árido de fundamentos em que

habitamos.

Sobre esse “desejo de realidade” próprio à existência humana são bastante

interessantes as considerações de Albert Camus, que afirma sobre a arte e em

especial sobre a literatura:

A contradição é a seguinte: o homem recusa o mundo como ele é, sem desejar fugir dele. Na verdade, os homens agarram-se ao mundo e, em sua imensa maioria, não querem deixá-lo. Longe de desejar realmente esquecê-lo, eles sofrem, ao contrário, por não possuí-lo suficientemente, estranhos cidadãos do mundo, exilados em sua própria pátria. A não ser nos instantes fulgurantes da plenitude, toda a realidade é para eles incompleta. Seus atos lhes escapam sob a forma de outros atos, voltam para julgá-los sob aspectos inesperados e correm, como as águas do Tântalo, para uma embocadura ainda desconhecida. Conhecer a embocadura, dominar o curso do rio, entender enfim a vida como destino, eis sua verdadeira nostalgia, no mais profundo da pátria. Mas essa visão que, pelo menos no conhecimento, nos reconciliaria enfim consigo mesmos, só pode aparecer, se é que aparece, no momento fulgaz da morte, em que tudo se consuma. Para existir no mundo, por uma vez, é preciso nunca mais existir. Nasce aqui essa desgraçada inveja que tantos homens sentem da vida dos outros. Olhadas de fora, emprestam-se a essas existências uma coerência e uma unidade que elas estão longe de ter, mas que parecem evidentes ao observador. Ele só vê o contorno dessas vidas, sem tomar consciência dos detalhes que as corroem. Então, dotamos de arte tais existências. De maneira elementar, nós as romanceamos. Nesse sentido, cada qual procura fazer de sua vida uma obra de arte. (....) Eis portanto um mundo

24 BRITTO, Paulo Henriques. Trovar Claro.

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imaginário, porém criado pela correspondência deste mundo real; um mundo no qual o sofrimento, se quiser, pode durar até a morte; no qual as paixões nunca são distraídas, no qual os seres ficam entregues à idéia fixa e estão sempre presentes uns para os outros. Nele finalmente o homem dá a si próprio a forma e o limite tranqüilizador que busca em vão na sua contingência. O romance fabrica o destino sob medida. Assim é que ele faz correspondência á criação e provisoriamente vence a morte. Uma análise detalhada dos romances mais célebres mostraria, em perspectivas diferentes a cada vez, que a essência do romance reside nessa perpétua correção, sempre voltada para o mesmo sentido que o artista efetua sobre sua própria experiência. Longe de ser moral ou puramente formal, essa correção visa primeiro à unidade e traduz por aí uma necessidade metafísica25.

Para Camus, o grande poder da arte consiste em ofertar-nos esse sentimento

de coerência e unidade do qual tanto carecemos e que apenas a nossa morte

poderia nos dar. Por meio da arte podemos construir um mundo e um destino “sob

medida”, no qual a dor ou o prazer não são meros acasos contingentes, ou

fragmentado caos de mínimas ações inconseqüentes e aleatórias, obedecendo

antes a um destino irremediável, terrível e belo. Um mundo que tenha a “forma e

o limite tranqüilizador” e que se apresente a nós como designo, e por isso mesmo

dotado de sentido e plenitude, é o que a ficção pode nos oferecer, respondendo a

essa “necessidade metafísica” que nos atormenta a buscar a síntese de nossos atos.

***

25 CAMUS, Albert. Romance e revolta. In: O homem revoltado.

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26

***

Desde a modernidade foi se cristalizando certo modo de se pensar a

realidade como um dado objetivo, um “algo” que se oferece a nós, sujeitos, para

percepção, decodificação e domínio. Muito embora encontrando resistências mais

ou menos potentes e significativas, na arte sobretudo, a dessacralização do

cotidiano e a cientifização dos saberes progressivamente se impôs e vigorou como

modelo hegemônico para a compreensão do mundo e da linguagem no Ocidente.

A linguagem seria, nesse modelo, um instrumento, algo imperfeito, para o

conhecimento do mundo “real”. Com a progressiva dessacralização das

experiências humanas fomos nos esquecendo dessa sua propriedade de "fazer o

ser das coisas aparecer”, e passamos a nos relacionar com a linguagem dando

prioridade a sua instrumentalidade. Assim, o primeiro espaço teórico que esse

primeiro capítulo da tese procurará demarcar é a crítica a uma concepção

representacionista da linguagem, para a qual palavras são, conforme a brilhante

definição de Locke, “destinadas a serem sinais das minhas idéias para tornar essas

idéias conhecidas dos outros”26. E, um dos nomes mais significativos para a

construção de um pensar que ultrapasse o pensamento representativo e explicativo

em defesa do resgate da compreensão do real como physis27é o de Heidegger,

sobre quem a tese não se deterá na exata medida que seria necessário para fazer

26Ensaio sobre o entendimento humano. Livro III e IV, cap. X, p. 672. 27 Palavra grega que indica aquilo que por si brota, emerge, surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Conforme definição de Gerd Bornheim: “A physis compreende a totalidade de tudo o que é. Ela pode ser apreendida em tudo o que acontece: na aurora, no crescimento das plantas, na nascimento de animais e homens. E aqui convém chamar a atenção para um desvio em que facilmente incorre o homem contemporâneo. Posto que a nossa compreensão do conceito de natureza é muito mais estreita e pobre que a grega, o perigo consiste em julgar a physis como se os pré-socráticos a compreendessem a partir daquilo que nós hoje entendemos por natureza; neste sentido, se comprometeria o primevo pensamento grego com uma espécie de naturalismo. Em verdade, a physis não designa precisamente aquilo que nós, hoje, compreendemos por natureza, estendendo-se, secundariamente ao extranatural. Para os pré-socráticos, já de saída, o conceito de physis é o mais amplo e radical possível, compreendendo em si tudo o que existe. Não se compreende o psíquico, por exemplo, a partir do modo de ser da natureza em seu sentido atual, como não se entende os deuses a partir de nosso conceito mais parco de natureza. À physis pertencem o céu e a terra, a pedra e a planta, o animal e a homem, o acontecer humano como obra do homem e dos deuses, e, sobretudo, pertencem à physis os próprios deuses. Devido a esta amplidão e radicalidade, a palavra physis designa outra coisa que o nosso conceito de natureza. Vale dizer que na base do conceito de physis não está a nossa experiência da natureza, pois a physis possibilita ao homem uma experiência totalmente outra que não a que nós temos frente à natureza. Assim, a physis compreende a totalidade daquilo que é; além dela nada há que possa merecer a investigação humana. Por isto, pensar o todo do real a partir da physis não implica em “naturalizar” todos os entes ou restringir-se a este ou aquele ente natural. Pensar o todo do real a partir da physis é pensar a partir daquilo que determina a realidade e a totalidade do ente”. BORNHEIM, G.A. Os Filósofos Pré-Socráticos, pp. 12-14, grifo nosso.

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justiça a suas reflexões, ainda assim ficará evidente em diversos momentos a

proximidade com algumas de suas intuições sobre a relação entre poiesis e

pensamento. O trecho abaixo parece sintetizar a nossa argumentação sobre um

certo modo de se posicionar face à linguagem que é próprio do homem das

sociedades modernas:

O homem se comporta como se fosse o criador e soberano da linguagem. A linguagem, no entanto, permanece soberana ao homem. Quando essa relação de soberania se inverte, o homem decai numa estranha mania de produção. A linguagem torna-se meio de expressão. Enquanto expressão, a linguagem pode apenas ser rebaixada a simples meio de pressão. Cuidar do dizer, mesmo nessa manipulação da linguagem, é, sem dúvida, positivo. Contudo, só esse cuidado não basta para nos ajudar a retornar à verdadeira relação de soberania entre a linguagem e o homem. Em sentido próprio, a linguagem é que fala. O homem fala apenas e somente à medida que co-responde à linguagem, à medida que escuta e pertence ao apelo da linguagem. De todos os apelos que nós, os humanos, devemos conduzir, a partir de nós mesmos, para um dizer, a linguagem é ela mesma o apelo mais elevado e, por toda parte, o apelo primordial. É a linguagem que, primeiro e em última instância, nos acena a essência de uma coisa. Isso, porém, não quer absolutamente dizer que, em cada significação tomado ao acaso de uma palavra, a linguagem já nos tenha entregue a essência transparente das coisas, de forma imediata e absoluta, como se fosse objeto pronto para o uso. O co-responder, em que o homem escuta propriamente o apelo da linguagem, é a saga que fala no elemento da poesia. Quanto mais poético um poeta, mais livre, ou seja, mais aberto e preparado para acolher o inesperado é seu dizer; com maior pureza ele entrega o que diz ao parecer daquele que escuta com dedicação, e maior a distância que separa o seu dizer da simples proposição, esta sobre a qual tanto se debate, seja no tocante à sua adequação ou à sua inadequação28.

Dizer que a linguagem é soberana significa, desde já, inseri-la no âmbito do

sagrado, pois a soberania, a gratuidade e o excesso são noções diretamente

relacionadas a ele, no sentido em que a soberania implica uma autoridade e um

poder que não se limita por outro. Assim, se a linguagem é soberana ao homem

não pode ser apenas a partir de sua ‘funcionalidade’ que a mesma deve ser

pensada, mas antes pelo que nela extrapola os lugares demarcados de nosso

pensar e imaginar. Aqui lembro outro verso de Adélia Prado: a poesia, lugar onde

a linguagem encontra sua máxima potência, é a “face de Deus atingida pela

brutalidade das coisas”29; é seu rastro, é rito e anunciação de um real pleno de

significado e inteireza, um realíssimo impossível de ser alcançado, mas que

permanece enquanto mito fundador de nosso périplo (heróico?) sobre a Terra.

Mito que se torna rito no poema e na prece.

28HEIDEGGER, Martin. ‘...poeticamente o homem habita...”op. cit., p. 167-8, grifos nossos. 29 Poema Guia, de Adélia Prado. In: Poesia Reunida, op. Cit.

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A tese aposta que haja uma relação constitutiva entre linguagem, realidade e

sagrado, no sentido em que a linguagem funda o real, e todo real é percebido pelo

pensamento arcaico (mítico) como sagrado. Há que se explicar que pensamento

arcaico não quer dizer “primitivo”, e sim elementar, fundamental, em um sentido

que possamos afirmar subsistir no homem contemporâneo essa estrutura de

cognição do real. Parece-me mesmo que essa é uma intuição que já alimentava

Heidegger em seus estudos sobre linguagem e poesia. Por outro lado, as análises

de Ernst Cassirer sobre as estruturas simbólicas da atividade humana indicam

caminho parecido na medida em que Cassirer entende que linguagem e arte se

fundam sobre o solo comum do mito, sem nunca daí se libertarem completamente:

Do mesmo modo que a linguagem, a arte se mostra, desde o principio, estreitamente entrelaçada ao mito. Mito, linguagem e arte formam inicialmente uma unidade concreta ainda indivisa, que só pouco a pouco se desdobra em uma tríade de modos independentes de plasmação espiritual. (....) Mesmo que desta maneira a linguagem e a arte se desprendem do solo nativo comum do pensar mítico, ainda assim a unidade ideacional e espiritual de ambos torna a instaurar-se em um nível mais alto. (....)30.

30 CASSIRER, Ernest. Linguagem e mito, p. 114-115.

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29

2.2 O rio-linguagem

Após essa introdução conceitual é preciso agora responder à pergunta sobre

a relação entre a linguagem — mais especificamente, sobre essa forma de

linguagem que é fundada na imagem poética31 — a percepção de realidade e o

sentimento/desejo de transcendência que parece ser próprio da poesia e, mais

claramente, da mística. Tomo essa relação como um dado, e dentro do âmbito do

presente capítulo não a problematizo. Apenas cito, a favor da afirmativa, o

testemunho de uma grande poeta do nosso tempo, Adélia Prado, para quem a

poesia, mesmo aquela dos poetas ateus, é sempre religiosa, pois ela sempre está

em busca do real. Em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira Adélia

afirma que “experiência religiosa e experiência poética são uma coisa só”, e

também: “Para mim a definição mais perfeita de poesia é: a revelação do real”32.

Digno de nota é essa concepção da poesia enquanto certo tipo de linguagem que

não apenas traduz o real, mas, antes, que o revela, desvela. A mesma idéia parece

alimentar Octávio Paz e, de certa forma, Bataille, ainda que com outros contornos

teóricos como veremos no segundo capítulo da tese.

A linguagem humana, bem como todo conhecimento acerca do mundo por

nós produzido pode ser entendido, grosso modo, como uma tentativa de redução

de complexidade e criação de perspectiva. Em intensa interação com o mundo, o

animal humano busca recorrências e permanências nos fenômenos que o circunda,

o que lhe possibilita desenvolver padrões e esquemas de inteligibilidade para

identificar, prever e agir sobre o mundo de acordo com seus interesses e intenções

(não apenas no que se refere ao ambiente físico, mas também sociocultural e

psíquico). A linguagem possui um importantíssimo e singular papel nesse

processo, porque ela permite que esses saberes construídos sejam, ao mesmo

tempo, fixados em molduras conceituais e transmitidos de uma para outra

geração, o que permitiu o nascimento da cultura e, em última instância, da própria

humanidade. Assim, o sucesso de nossa espécie parece estar relacionado à

capacidade que desenvolvemos de identificar padrões de semelhanças nas coisas e

31 Por imagem poética estamos entendendo aqui a capacidade metafórica da língua, e a própria metáfora é entendida aqui latu sensu, isto é, como mecanismo orientador para todos os tropos da linguagem. 32 PRADO, Adélia. Entrevista. Cadernos de Literatura Brasileira.

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30

nos fenômenos — o que implica também a capacidade de distinguir, de separar

por diferenças — do mundo e do corpo social, bem como transmitir tais

informações a futuras gerações por um meio mais eficaz e rápido que a genética33:

a linguagem. A esse respeito diz Nietzsche, um dos mais importantes críticos do

pensamento ocidental:

Tudo o que eleva o homem acima do animal depende dessa capacidade de volatizar as metáforas intuitivas em um esquema; ou seja, da capacidade de dissolver uma figura em um conceito. No intercambio desses esquemas possíveis algo que jamais poderia conseguir-se com as primitivas impressões intuitivas: construir uma ordem piramidal por castas e graduações, instituir um mundo novo de leis, privilégios, subordinações e delimitações que agora se contrapõem ao outro mundo das primitivas impressões como mais firme e mais universal, o melhor conhecido e o mais humano e, portanto, como uma instancia reguladora e imperativa.34

As gerações que sucedem recebem de herança essas, aparentemente, sólidas

molduras conceituais às quais acrescentarão contribuições próprias. A linguagem,

nesse sentido, nunca é idiossincrática, mas sim um corpo vivo que se alimenta da

cultura na qual se inscreve ao mesmo tempo em que doa à cultura o sustento para

sua sobrevivência. A porção de realidade apreendida pela linguagem/pensamento

é sempre um construto a partir de uma dada perspectiva, que é orientada pelas

estruturas bio-cognitivas de nosso corpo, de modo que nossa própria

corporalidade é o primeiro limite dado ao nosso conhecimento do mundo

empírico. Nesse processo de construção de inteligibilidade, a

linguagem/pensamento parece obedecer aos princípios básicos da lógica

aristotélica: identidade, não contradição e terceiro excluído35, o que parece ser um

33 Os animais também transmitem conhecimento de uma para outra geração, mas isso se dá por meio de herança genética inegociável, ainda que exemplos como os dos orangotangos da ilha de Sumatra nos façam duvidar que a cultura seja uma forma essencialmente humana de lidar com os desafios da sobrevivência. Estudos como os do cientista Carel van Schaik indicam que a cultura não seria uma realização unicamente humana: a partir da observação de como esses orangotangos usavam ferramentas para a obtenção de alimentos, o autor trabalha com a hipótese de que esses animais teriam desenvolvido uma espécie de cultura partilhada em relação ao uso de ferramentas. SCHAIK, Carel van Por que alguns animais são tão inteligentes?. 34 NIETZSCHE, F. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. 35 Ou pelo menos foi assim que o pensamento ocidental quis crer. Atualmente podemos falar de outras lógicas, não-clássicas, chamadas polivalentes justamente por não trabalharem apenas com os valores verdadeiros e falsos, mas também com o necessariamente verdadeiro, o necessariamente falso e o indeterminado ou indecidível (como na lógica intuicionista). Ainda que para a ciência contemporânea os postulados da lógica aristotélica estejam sob suspeita, para o senso-comum é difícil pensar que uma coisa possa permanecer entre isso e aquilo, sem pouso, de modo que não nos parece incorreto afirmar que para o senso comum (espécie de orientação geral da razoabilidade do discurso) os princípios aristotélicos de identidade, não-contradição e terceiro excluído ainda possuem singular importância para a inteligibilidade do discurso.JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário de Filosofia, verbete Lógica.

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31

outro limite para nossa compreensão do mundo no qual nos encontramos. E é

dentro desses limites que a linguagem/pensamento busca traduzir a realidade,

mas, conforme ressaltou Nietzsche, entre esferas absolutamente distintas como o

sujeito e o objeto não há nenhuma causalidade, nenhuma exatidão, nenhuma

expressão, mas somente uma “conduta estética”, um agir criativo: “um extrapolar

alusivo, um traduzir balbuciante a uma linguagem completamente estranha, para o

que, em todo caso, faz-se necessário uma esfera intermediária e uma força

mediadora, ambas livres para poetizar e inventar”36. Não é pertinente, ou sensato,

falar então da linguagem como um canal “sujo” que precisa ser limpo para que ela

seja uma mediadora isenta entre o pensamento (onde estão as idéias “claras e

distintas”) e a ação sobre a realidade, desde que a linguagem seja entendida como

essa força mediadora entre esferas díspares: mundo e pensamento. Se

entendermos que qualquer intenção de inteligibilidade do mundo já é uma ação

poética através da qual o homem se projeta sobre o mundo intencionalmente e

amorosamente (movido pelo afeto) e, se assumirmos uma posição pragmática e

não mais metafísica a esse respeito, ficaremos apaziguados com a declaração

nietzscheana de que todo conceito é um resíduo de metáfora, e não mais nos

preocuparemos com a inflação metafórica em nossos conceitos ou com a ausência

de um próprio. Afinal, esse traduzir balbuciante não impediu o avanço e o êxito da

ciência, pois essa “cavará eternamente com êxito nesses poços, poços onde tudo

que se encontre haverá de concordar entre si e não se contradirá”37.

Ao postular que todo conhecimento humano se constrói a partir de um

determinado ponto de vista, Nietzsche investe contra a ambição humana de

‘encontrar’ verdades imutáveis e essências que transcendam a ação do próprio

homem, pois essa pretensão é fruto do “esquecimento” de que fomos nós que

emprestamos ao mundo dos fenômenos a regularidade e a racionalidade que já

havia nele depositado:

Somos nós que fazemos e não cessamos de fazer o que não existia antes: este mundo (...) de apreciações, de cores, de pesos, de perspectivas, de escalas, de

36 No original: “un extrapolar alusivo, un traducir balbubiante a un lenguaje completamente extrano, para lo que, en todo caso, se necesita una esfera intermedia y una fuerza mediadora, libres ambas para poetizar e inventar. NIETZSCHE, F. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral, Op. Cit., p. 05. 37No original: cavará eternamente com éxito em estos pozos”, poçosonde “todo lo que encuentre habrá de concordar entre si y no se contradirá NIETZSCHE, F. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral, op. Cit., p. 05.

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32

afirmações e negações .... A natureza nunca tem valor; este valor foi-lhe dado, é um presente, uma oferta que lhe fizeram, e quem a fez fomos nós. Fomos nós que criamos o mundo que diz respeito ao homem!38

Em assumindo essa postura pragmática, fica enfraquecida a pretensão de

delimitar o próprio da linguagem, posto que o ato de conhecer já é “transportar”

percepções sensíveis a conceitos abstratos, que não são muito mais que esquemas

perceptivos e projeções antropomórficas, ou seja, perspectivas construídas a partir

dos limites de nosso corpo/intelecto: “(...) uma perspectiva não é apenas o que

limita o nosso campo de visão mas sobretudo aquilo que o torna possível:

pretender suprimi-la para alcançar as coisas “em si mesmas” seria um absurdo

comparável a querer suprimir os olhos para ver melhor. Em função disso, se as

perspectivas podem infinitamente variar, se multiplicar e se deslocar, elas não

podem ser ultrapassadas (....)” 39. É tanto impossível olhar o mundo com “olhos de

pássaro” ou “olhos de hipopótamo” quanto “olhar” o mundo sem ‘olhos’, de

modo que, apesar de sabermos muitas coisas sobre o mundo, nunca saberemos o

que um pássaro ou um hipopótamo ‘sabem’ sobre esse mesmo mundo, desde que

nosso locus é outro e conseqüentemente nossa perspectiva será outra. Nietzsche

nos compara a aranhas industriosas em suas teias, mas, o que quer que seja aí

encontremos, apenas encontraremos o que se deixou apreender em nossas teias40.

***

38 A gaia ciência. § 301, apud Os abismos da suspeita, p. 88. 39ROCHA, Silvia Pimenta Velloso., op. cit , p. 88, grifo nosso. 40

Aurora, livro II, § 117, apud VELLOSO ROCHA, Silvia Pimenta, op. Cit., p. 89.

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33

***

Retomo uma fala de Octávio Paz já citada: “Com efeito, a poesia é desejo.

Mas esse desejo não se articula no possível, nem no verossímil. A imagem não é

“o possível verossímil”, desejo de impossíveis, a poesia é fome de realidade “41.

À poesia não basta essa porção de realidade cotidiana, pacífica, organizada pela

discursividade; se grande parte dos saberes organizados ainda insistem que a

verdade de uma enunciação se mede pela adequação entre enunciado, referente e

intelecto (adequação entre pensamento e realidade, sendo a linguagem o meio

do/para o intelecto representar para si mesmo as coisas e fenômenos dispostos no

mundo), a poesia romperá com essa noção bem-comportada de linguagem, e

assumirá definitivamente a função demiúrgica de fazer o mundo vir-a-ser

acentuada por Nietzsche como própria de todo conhecimento humano. Trata-se

aqui fundamentalmente da poesia moderna, na perspectiva defendida por Foucault

de que a literatura “nasce” com a consciência profunda e problemática de que

palavras e coisas estão divorciadas, e que não há uma Palavra primeira a partir da

qual re-construir analogicamente o cosmos da ‘obra’. Mas, caso pensemos poesia

não mais como um gênero discursivo e sim como um experimentar (d)os limites

da linguagem — o que seria um procedimento típico da modernidade, como

sinaliza Foucault, mas não restrito a ela — essas colocações poderão ser

generalizadas a muitas outras épocas e gêneros discursivos.

Enquanto que para uma ciência e a filosofia essencialista a ambição suprema

seja abrir mão de todas as perspectivas e ter acesso não-mediado à coisa-em-si, a

poesia parece menos pretensiosa, e negocia sua fome de realidade com esse

exercício de ‘olhar como’ tão próprio à arte. E aqui talvez a articulação que a tese

tenciona entre poesia e mística se torne mais clara, desde que a arte de maneira

geral parece ter tido um importante papel de “desconfiar” da realidade autocontida

e auto-sustentada do mundo sensível e dos discursos explicativos da ciência. E,

por outro lado, um dos postulados mais freqüentes nos discursos místicos (em

especial as místicas apofática e de tradição oriental) é o do caráter ilusório da

realidade sensível e inteligível. Para clarificar esse argumento, veja-se uma

pequena parábola de um mestre da mística sufi acerca da inapreensibilidade do

mundo sensível:

41“O ritmo”, O arco e a lira, op. Cit, p. 80, grifo nosso.

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34

Alguns hindus estavam exibindo um elefante num quarto escuro, e muita gente se reuniu para vê-lo. Mas como o quarto estava escuro demais para que eles pudessem ver o elefante, todos procuravam senti-lo com as mãos, para ter uma idéia de como ele era. Um apalpou sua trompa e declarou que o animal parecia um cano d’água; outro apalpou sua orelha e disse que devia ser um leque enorme; outro sua perna, e pensou que fosse uma coluna; outro apalpou seu dorso e declarou que o animal devia ser como um grande touro. De acordo com a parte que apalpava, cada um deu uma descrição diferente do animal. Um, por assim dizer, chamou-o de Dal e outro de Alif42.

A resposta sobre o que era o elefante é uma tentativa de - dados os limites de

apreensão sensível e cognitivas próprias a cada convidado a “ver o elefante”-

“traduzir” a experiência vivida nesse quarto escuro a signos culturais que a tornem

inteligível e comunicável. Nessa parábola, o ensinamento que a mística sufi deseja

enfatizar é a imperfeição do conhecimento humano e o desejo de apreensão da

unidade constitutiva da realidade, entretanto, o exemplo me vem à mente para

caracterizar duas condições intrínsecas ao conhecer humano: a) o fato de

‘estarmos em um quarto escuro’, metáfora dos limites a nós impostos pelo

perspectivismo inato a todo conhecimento, afinal, não há como “sair” do quarto

escuro para ver o elefante, e da mesma forma não dá para ver “tudo”, pois, o que

vemos é sempre enquadrado a partir daquilo que ‘escolhemos’ não ver, ou, nos é

‘negado’ ver; b) o fato de que, ainda que seja impossível negar uma “realidade”

fora de nossas perspectivas - essa Unidade que é objeto de desejo da metafísica e

da mística -, essa mesma realidade só ganha existência enquanto linguagem e, na

linguagem, ela já não é mais do que fragmentos metaforicamente nomeados a

partir do dentro de nossa linguagem e cultura (note-se que os nomes dados ao

elefante são ou produtos culturais ou animais comuns aos personagens). Se o

desejo de alcançar essa unidade do real seja, em nossas atuais molduras teóricas,

de uma ingenuidade talvez risível, negar esse fora da linguagem é igualmente

risível, pois significa localizar nosso discurso no já visto, contabilizado e pensado,

limitar o mistério do humano ao sentido e inteligível. E creio que não seja

possível negar a imperiosa necessidade de lembrar que “Ser é ser além do

humano”43.

42 Apud TEIXEIRA, Faustino. RUMI: a paixão pela Unidade, 2003. . 43 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H, 1977.

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35

2.3 Margens terceiras na fabulação roseana

“Meu pai era um homem cumpridor, ordeiro, positivo...”, assim se anuncia o

conto “A terceira margem do rio”44, de João Guimarães Rosa. Logo nos primeiros

parágrafos já se traça um perfil das protagonistas desse acontecido inusitado que

se está a narrar: o Pai, homem que não se distingue dos demais em esturdícia ou

tristeza, senão pela quietude; a Mãe, aquela que assume o reger doméstico com

serenidade fatal; e o Filho, narrador em primeira pessoa, um homem de tristes

palavras que desenlaça os fios da memória daquele acontecido único, imemorial,

para que desse narrar — que se lhe solta das lembranças escusas como um negro

bode pelo árido deserto de imemoriais êxodos — seja-lhe purgada a culpa que lhe

queima as entranhas e o obriga a narrar para talvez assim dar nome ao inominado.

Uma tríade perfeita, pois as demais personagens que vão se delineando no conto

— a irmã, o irmão, o marido da irmã, os vizinhos, o homem que construiu a canoa

e que é detentor da explicação não-encontrável daquele evento a-bsurdo, o padre,

os policiais.... — são apenas pano de fundo para enquadrar a perspectiva do Filho,

a quem esse assunto (que) jogava para trás os (meus) pensamentos.

Mas, a adversativa se interpõe naquilo que poderiam ser apenas afagáveis

recordações de meninice, e interrompendo o curso ordinário dos ocorridos traz à

lembrança o princípio daquilo que não houvera de ser, mas, sendo, inaugura uma

terceira margem no rio-linguagem de João Guimarães Rosa: “se deu que, certo

dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa, própria para durar nas águas uns

vinte ou trinta anos”. Sem alardes ou reticências anuncia-se o despropósito do Pai

— “Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalçou o chapéu e decidiu um adeus

para a gente” — que assume para si o encargo de inventar uma terceira margem

para aquele tão doméstico rio, e nela, nessa margem insuspeita por absurdez,

permanecer para dela não saltar, nunca mais45.

A Mãe, sensata e ordeira, pronuncia raras palavras no fatídico da despedida,

palavras que trazem para a geografia da linguagem a distância física e ontológica

entre as margens quotidianamente previstas e aquela outra, a inominada: “Cê vai,

Ocê fica, você nunca volte!”. É interessante notar que as formas verbais de

tratamento vão “crescendo” à medida que a distância conseqüente à escolha do

44ROSA, João Guimarães. Terceiras estórias. In: Ficções completas. 45 ROSA, João Guimarães., op. cit., p. 78.

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Pai se impõe, e deixando de ser estranha possibilidade para se tornar trágica

escolha. O pronome pessoal “você”, forma artificial e cerimoniosa em

determinadas comunidades lingüísticas do interior mineiro, se contrapõe à forma

popular “cê”, marcando o distanciamento que a partir daí se faz inevitável entre a

Mãe e o Pai. Entre as duas margens aparece uma terceira, que não é física,

material ou topológica, antes, sua substância é a pura irrealidade do não

previsível, daquele que se apresenta como Aberto, na terminologia heideggeriana,

ou, em nossa escolha, como sagrado.

Entre uma e outra margem Pai, Mãe e Filho sinalizam a demarcação dessa

fronteira imprecisa, porém inequívoca, que separa umas e outra margem: nessas,

ordinárias e exatas, ficaram Mãe e Filho, no lidar da rotina diária, acostumando-se

com aquilo que de fato não era matéria de costume; e naquela outra sina de

existir, perto e longe daquilo que nos é familiar, ficou o Pai, exilado das bem

demarcadas margens do rio-linguagem, a compor inusitada geografia nessas águas

turvas, como um atalaia a guardar o não-acontecível das ameaças da realidade

comezinha.

Na pacata rotina dessa família, tão comum que os nomes próprios são

substantivos abstratos, irrompe Aquilo que não havia, mas acontecia, e o próprio

do espanto incorpora-se na pessoa do Pai, aquele que se abriu para o extra-

ordinário de forma gratuita e sem pejo, ao contrário do Filho que, atormentado

pela culpa de ser o que não foi, o que vai ficar calado, busca na narrativa do

evento fabuloso o difícil perdão pela não-escolha da margem impossível, margem

terceira que apenas poderá ser escolhida no artigo da morte, quando o rio-

linguagem e o narrador-Filho formarão então uma unidade indissociável rio

abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

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Chamo atenção para o fato de esse ser um conto roseano onde a

experimentação lingüística, uma das principais características de sua poética -

levada a cabo com engenho e arte em seu romance Grande sertão: veredas - não

aparece em toda sua plenitude. Rosa sempre foi considerado um autor “difícil”,

que teria “inventado” uma língua idiossincrática, com tal nível de sofisticação que

a tornaria compreensível apenas por alguns “iniciados”. Entretanto, a linguagem

de “A terceira margem do rio” é relativamente simples, sem demasiado uso dos

deslocamentos sintáticos, estrangeirismos, neologismos, arcaísmos, mistura de

termos populares com eruditos e/ou filosóficos, e outros mecanismos de trans-

criação da língua tão a gosto do autor. Parece então que o maravilhoso se desloca,

nesse conto, do nível lingüístico para o enredo, a não ser que possamos afirmar,

tomando como base toda a obra de Rosa e não apenas a narrativa analisada, que a

língua é sempre protagonista na poiésis de Rosa, conforme o próprio autor

declarou em entrevista a seu tradutor alemão Günter Lorenz: “Minha língua,

espero que você tenha notado, é a arma com a qual defendo a dignidade do

homem”46. Seguindo essa orientação interpretativa dada pelo próprio Rosa em

relação a sua obra, proponho que entendamos o rio, locus onde se funda uma

margem outra que não as duas previstas pelo uso e hábito, como imagem da

própria linguagem, e a terceira margem como sendo o próprio da poesia em sua

relação tensa e ambígua com o real, que nela se vela e desvela. A poesia se

localiza nessa tensão entre physis e kryptestai47, manifestação e ocultamento,

palavra e silêncio, ser e não-ser, e ali executa “a invenção de se permanecer

naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não

saltar nunca, nunca mais”, ou seja, na poesia o real deixa de ser pacífico e torna-se

“espantoso”, porque se abre para a inquietude do não-acontecível.

Retomo agora algo que mencionei anteriormente: essa margem terceira,

extra-ordinária, é o próprio do sagrado se manifestando — alteridade absoluta

com a qual não há diálogo possível, apenas deslumbramento e apofatismo. O

próprio do sagrado confunde-se, já o anunciei, com o próprio da poiésis, espaço

46 ROSA, João Guimarães. Diálogo com Guimarães Rosa, entrevista a Günter Lorenz, p. 52. 47

Kryptesstai: o que se retrais, se encobre; aquilo que permanece oculto e não se revela. Remeto-me aqui ao fragmento 16 de Heráclito: “Physis kryptesstaiphilei”, traduzido Manuel Antônio de Castro como “A totalidade dos entes ama retrair-se”, já no ensaio Alehtéia já citado, o mesmo fragmento é traduzido por Márcia Sá Cavalcanti Schuback como “surgir (desde o encobrir-se) favorece encobrimento”. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Poiésis e linguagem.

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inquieto onde não há permanência possível, e a linguagem não “funciona” com a

(suposta) precisão e eficácia esperada. Digo sagrado e poderia dizer Inominado,

Indiferenciado, Contínuo, Deserto, Deus.... nomes diversos para o esforço de dizer

justamente aquilo que se retrai a delimitações, posto que é justamente de

deslimites de que trata: como nomear o próprio Nome? Como dizer aquilo (ou

aquele) que é fundamento de toda voz? É assim, com temor e tremor, que nos

aproximamos do sagrado, e tal qual a Moisés, desejoso de ver a face de Deus,

ouvimos a resposta “Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum

verá a minha face e viverá” (Ex. 33: 20). Se o poeta é aquele, como o disse

Höederlin, exposto aos relâmpagos dos deuses, é porque ele não se nega trafegar

nessa margem terceira, margem inexistente que se constrói em ato de sério

fingimento.

Lembro aqui uma fala de Heidegger “... é preciso espantar-se diante do

simples e assumir esse espanto como morada”. E, de outro trecho já citado à

exaustão: “A linguagem é a casa do ser. Em sua habitação mora o homem. Os

pensadores e os poetas lhe servem de vigias. Sua vigia é con-sumar a

manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam

na linguagem”48. Espanto e linguagem parecem estar relacionados na medida em

que existe a necessidade de habitarmos conjuntamente no espanto e na linguagem,

neles construindo os alicerces sob os quais erigimos cultura, arte e pensamento.

Poderemos nós, ainda hoje, nos espantarmos com o simples, nós que já não nos

espantamos com as maravilhas da tecnologia ou com a violência real e encenada

que quotidianamente nos assedia pelas ruas da cidade ou nas mágicas ondas da

televisão? Mas, o que é o espanto? O espanto acontece quando o olhar é

deslocado da ordem costumeira e se encontra em uma posição sobretudo

inesperada, mas também inquietante e perplexa, abdicando as marcações culturais

e balizas cognitivas que regem nosso cotidiano.

A partir dessas afirmações de Heidegger chamamos a atenção para o fato de

ser com espanto e estranhamento que os demais personagens do conto roseano se

posicionam diante da decisão do Pai, que parte para nenhuma parte: “A estranheza

dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia

acontecia”. Metáfora daquilo que se propõe como puro estranhamento e rejeição a

48HEIDEGGER, F. Carta sobre o humanismo, p. 23-24.

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todo esforço de assimilação, a terceira margem do rio roseano nos remete a um

exercício de soberania no qual a linguagem se retrai enquanto moeda inflacionada

pelo uso e se dispõe como poiesis, garantindo que aquilo que não há possa

acontecer e encontre vigor e força ontológica. A essa operação de desocultamento

os gregos denominavam alethéia, experiência de presentificação da realidade,

entendida enquanto totalidade (physis) de todas as potencialidades e

possibilidades do ser. Na poesia a linguagem retoma sua força ontológica de

presentificação de realidades e propositora de espantos, e a metáfora roseana

desse rio-linguagem ao qual é salvaguardada uma terceira margem fala-nos do

desejo de resguardar um espaço, utópico certamente, onde o homem permaneça

como ser transitivo ao qual nenhuma palavra poderá predicar.

****

Esse primeiro capítulo da tese tencionou ser uma introdução às questões que

nos moverão durante esse estudo. Entendendo a realidade como construção

discursiva que busca a formação das molduras que conferirão inteligibilidade aos

dados brutos do mundo sensível, a tese tem como principal objetivo mapear

estratégias estético-filosóficas do discurso poético e místico na tematização do

real. A hipótese que guia essa empreitada é a de que tanto o discurso poético

quanto o discurso da mística (trata-se aqui daquela mística chamada apofática)

sejam erigidos a partir de uma (deliberada ou não) “sabotagem” da capacidade

discursiva da linguagem, ou em outras palavras, que ambos seriam projetos de

“fracasso” do discurso, entendendo discurso aqui como produção de razoabilidade

e consenso.

A escolha de ambos os fenômenos se deu pela aposta na compreensão de

George Bataille de que mística e poesia sejam experiências nas quais há, em

princípio, uma quebra das prerrogativas do mundo do trabalho (da discursividade)

e uma vivência dramática da violência anárquica e dispendiosa (sagrada) que

subjaz à linguagem/cultura. Assim, mística e poesia seriam discursos nos quais há

um atentado contra os próprios fundamentos que os sustentam, projetos que visam

à própria destruição. Tal afirmação é facilmente compreensível em relação aos

discursos apofáticos, que negam não apenas toda possibilidade de predicação e

nomeação de Deus (o fundamento último de todos os discursos) mas também de

cognição dEsse que está acima de todo nome. Quanto à poesia, ainda que seja

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arriscado conferir a ela, essencialmente, essa mesma característica de resistência

ao mundo do trabalho e do discurso, parece-nos que as intuições de Bataille sejam

corretas, e que, de algum modo que se manifesta mais ou menos em cada autor e

obra, haja um retraimento da linguagem poética em relação às demarcadas

margens do uso e costume, e um mover-se rumo ao silencioso.

No decorrer da tese serão analisados alguns exemplos de poesia

contemporânea e também alguns textos produzidos por místicos da tradição

apofática. O que se pretende é demonstrar que esses discursos se oferecem como

uma interessante tematização de discussões bem atuais sobre a capacidade de a

linguagem dizer o real, e de estratégias possíveis para fugir às armadilhas do

antropocentrismo que parece inerente à inteligibilidade humana.

Tendo em George Bataille o autor do qual a tese retira sua premissa

fundadora, o próximo capítulo será uma introdução ao seu pensamento e

principais conceitos que possuem relação com nossa abordagem.

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