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37 Física na Escola, v. 5, n. 2, 2004 Resenhas Einstein Usurpatore? O artifício de mesclar fato e ficção, tendo a Ciência e sua história como foco e o con- texto social como pano de fundo, já trouxe para os palcos o Galileu Galilei de B.Brecht e o Caso Oppenheimer de H.Kipphardt. Mais recentemente, na controversa Copenhagen de M.Frayan, o tablado passou a ser ocupado por Bohr, sua esposa e Heisenberg, velhos amigos que a guerra colocou em con- flito, e que, na ocupada capital dina- marquesa de 1941, discutem suas dife- renças com relação ao desenvolvimento de uma arma nuclear. No livro Night Thoughts of a Classical Physicist, o historiador da ciência Russell McCormmach construiu a figura do físico alemão Victor Jakob, para ilus- trar, através de suas memórias apre- sentadas em 1918, a perplexidade de uma geração de cientistas com os então novos e revolucionários horizontes abertos pelas teorias que estavam sur- gindo. As pesquisas desenvolvidas na Alemanha nazista visando a constru- ção de uma bomba atômica foram te- ma do romance Em busca de Klingsor do mexicano Jorge Volpi, que traça um interessante quadro de disputas inter- nas na comunidade de físicos, com es- pecial destaque para Planck, Stark, Heisenberg, Schrödinger e Bohr. Carlos Alberto dos Santos, profes- sor do Instituto de Física da Universi- dade Federal do Rio Grande do Sul e que muito tem contribuído para a di- vulgação científica, explora a vertente da fusão da Ciência com a criação literária em sua novela O plágio de Eins- tein (WS Editor, Porto Alegre, 2003). A obra tem como centro a emblemática relação E = mc², que no imaginário popular atua como uma representação social da Física Moderna, principal- mente no que diz respeito ao que ela tem de mais destrutivo. Uma represen- tação extremamente limitada, pois ignora o imenso e concentrado esforço de pesquisa científica e tecnológica que existiu entre a for- mulação daquela re- lação e a construção da bomba atômica. Nesse esforço, a contribuição de Einstein, cujo nome confunde-se com a relação entre massa e energia, não foi mais do que simbólica, através do envio de duas cartas, uma em 1939 e outra em 1940, ao presidente Roosevelt, nas quais chamava a atenção para o po- tencial bélico da recém-descoberta fis- são nuclear. No episódio, Einstein foi instigado pelos físicos Leo Szilard e Eu- gene Wigner, refugiados nos EUA, e preocupados com a dianteira que a Ale- manha pudesse assumir nas pesquisas nucleares. O título da “ciência-fusão” 1 de Car- los Alberto dos Santos refere-se à pos- sibilidade de que Einstein possa ter plagiado Olinto De Pretto, um desco- nhecido industrial e cientista amador italiano formado em agronomia, que, em fevereiro de 1904, havia publicado nas Atas do Instituto Real de Ciência, Letras e Artes do Vêneto, uma memó- ria de 62 páginas intitulada “Hipótese do Éter na vida do Universo”. Nesse trabalho, a argumentação é claramente distinta da utilizada por Einstein. Expressões matemáticas estão pratica- mente ausentes, dando lugar a uma forma de pensamento que privilegia analogias mecânicas. A famosa relação entre massa energia é introduzida a partir de considerações sobre a existên- cia de um éter composto por pequenas partículas, vibrando incessantemente com velocidades no mínimo igual à da luz, por sua vez transmitidas aos áto- mos dos corpos, o que daria, segundo De Pretto, origem a uma imensa energia interna armazenada. Como a dedução de Einstein para aquela relação foi exposta no pequeno artigo A inércia de um corpo depende de seu conteúdo de energia? 2 , publicado no prestigioso periódico alemão Annalen der Physik em setembro de 1905, po- de-se imaginar a preocupação vivida por uma equipe que se encontrava pre- parando nos Estados Unidos, em 1960, uma edição completa da obra do famoso cientista, quando confrontada com a possibilidade dele ter plagiado um obscuro autor italiano. Evidências desta possibilidade haviam chegado às mãos do Professor Davert Satchmann, um conceituado his- toriador da Ciência que, indicado pela equipe, viajara para a Suíça com o objetivo de documentar os contatos e a interlocução intelectual, ocorridos por volta de 1905, entre o jovem Einstein e Conrad Habicht, Maurice Solovine e Michele Besso. Na tentativa de esclarecer o assunto, o historiador, principal personagem da O Plágio de Einstein refere- se à possibilidade de que o cientista alemão possa ter plagiado Olinto De Pretto, um desconhecido industrial e cientista amador italiano

2 Einstein Usurpatore? · Einstein, cujo nome confunde-se com a relação entre massa e energia, não foi mais do que simbólica, através do envio de duas cartas, uma em 1939 e outra

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37Física na Escola, v. 5, n. 2, 2004 Resenhas

Einstein Usurpatore?

Oartifício de mesclar fato eficção, tendo a Ciência e suahistória como foco e o con-

texto social como pano de fundo, játrouxe para os palcos o Galileu Galileide B.Brecht e o Caso Oppenheimer deH.Kipphardt. Mais recentemente, nacontroversa Copenhagen de M.Frayan,o tablado passou a ser ocupado porBohr, sua esposa e Heisenberg, velhosamigos que a guerra colocou em con-flito, e que, na ocupada capital dina-marquesa de 1941, discutem suas dife-renças com relação ao desenvolvimentode uma arma nuclear. No livro NightThoughts of a Classical Physicist, ohistoriador da ciência RussellMcCormmach construiu a figura dofísico alemão Victor Jakob, para ilus-trar, através de suas memórias apre-sentadas em 1918, a perplexidade deuma geração de cientistas com os entãonovos e revolucionários horizontesabertos pelas teorias que estavam sur-gindo. As pesquisas desenvolvidas naAlemanha nazista visando a constru-ção de uma bomba atômica foram te-ma do romance Em busca de Klingsordo mexicano Jorge Volpi, que traça uminteressante quadro de disputas inter-nas na comunidade de físicos, com es-pecial destaque para Planck, Stark,Heisenberg, Schrödinger e Bohr.

Carlos Alberto dos Santos, profes-sor do Instituto de Física da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul eque muito tem contribuído para a di-vulgação científica, explora a vertenteda fusão da Ciência com a criaçãoliterária em sua novela O plágio de Eins-tein (WS Editor, Porto Alegre, 2003). Aobra tem como centro a emblemática

relação E = mc², que no imagináriopopular atua como uma representaçãosocial da Física Moderna, principal-mente no que diz respeito ao que elatem de mais destrutivo. Uma represen-tação extremamente limitada, poisignora o imenso e concentrado esforçode pesquisa científica e tecnológica queexistiu entre a for-mulação daquela re-lação e a construçãoda bomba atômica.Nesse esforço, acontribuição deEinstein, cujo nomeconfunde-se com arelação entre massa e energia, não foimais do que simbólica, através do enviode duas cartas, uma em 1939 e outraem 1940, ao presidente Roosevelt, nasquais chamava a atenção para o po-tencial bélico da recém-descoberta fis-são nuclear. No episódio, Einstein foiinstigado pelos físicos Leo Szilard e Eu-gene Wigner, refugiados nos EUA, epreocupados com a dianteira que a Ale-manha pudesse assumir nas pesquisasnucleares.

O título da “ciência-fusão”1 de Car-los Alberto dos Santos refere-se à pos-sibilidade de que Einstein possa terplagiado Olinto De Pretto, um desco-nhecido industrial e cientista amadoritaliano formado em agronomia, que,em fevereiro de 1904, havia publicadonas Atas do Instituto Real de Ciência,Letras e Artes do Vêneto, uma memó-ria de 62 páginas intitulada “Hipótesedo Éter na vida do Universo”. Nessetrabalho, a argumentação é claramentedistinta da utilizada por Einstein.Expressões matemáticas estão pratica-mente ausentes, dando lugar a umaforma de pensamento que privilegia

analogias mecânicas. A famosa relaçãoentre massa energia é introduzida apartir de considerações sobre a existên-cia de um éter composto por pequenaspartículas, vibrando incessantementecom velocidades no mínimo igual à daluz, por sua vez transmitidas aos áto-mos dos corpos, o que daria, segundoDe Pretto, origem a uma imensaenergia interna armazenada.

Como a dedução de Einstein paraaquela relação foi exposta no pequenoartigo A inércia de um corpo depende deseu conteúdo de energia?2 , publicado noprestigioso periódico alemão Annalender Physik em setembro de 1905, po-de-se imaginar a preocupação vividapor uma equipe que se encontrava pre-parando nos Estados Unidos, em 1960,uma edição completa da obra dofamoso cientista, quando confrontadacom a possibilidade dele ter plagiado

um obscuro autoritaliano. Evidênciasdesta possibilidadehaviam chegado àsmãos do ProfessorDavert Satchmann,um conceituado his-toriador da Ciência

que, indicado pela equipe, viajara paraa Suíça com o objetivo de documentaros contatos e a interlocução intelectual,ocorridos por volta de 1905, entre ojovem Einstein e Conrad Habicht,Maurice Solovine e Michele Besso. Natentativa de esclarecer o assunto, ohistoriador, principal personagem da

O Plágio de Einstein refere-se à possibilidade de que ocientista alemão possa terplagiado Olinto De Pretto,um desconhecido industriale cientista amador italiano

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novela, acaba assumindo o papel dedetetive e se envolvendo em uma inves-tigação sobre a qual mais não deve serdito, já que implicaria no risco de sub-trair do leitor a fruição da leitura.

Os três companheiros de Einsteinexistiram de fato, da mesma forma quealgumas outras personagens da no-vela, como porexemplo Helen Du-kas, que durantemais de duasdécadas foi secretáriaparticular e a pessoamais familiarizadacom a vida e os ar-quivos de Einsteinapós a sua mudan-ça para os EstadosUnidos em 1933, eOtto Nathan, amigoe executor do testa-mento de Einstein.Se estes nomes são registros familiaresnas biografias de Einstein, o mesmonão acontece com Olinto De Pretto, nãoobstante também ter existido na reali-dade. Seu trabalho veio à luz atravésdos escritos de Umberto Bartocci, pro-fessor de Geometria e História da Ma-temática da Universidade de Perugia,que vem tentando há quase 15 anosdifundir e dar crédito à sua suposiçãode que o cientista amador italiano teriasido não só um “precursor”, comotambém um “inspirador” de Einstein,no que diz respeito à relação E = mc².Bartocci queixa-se que seu trabalhosofreu boicotes, por colocar em dúvidaaspectos consensualmente aceitos pelacomunidade de historiadores da Ciênciaprofissionais e defensores da imagemde Einstein, classificando como atos decensura a recusa, por dois periódicositalianos, de um artigo sobre o assuntoque escreveu em colaboração comMarco Mamone Capria3 . As pesquisasde Bartocci sobre De Pretto foram porele publicadas no livro Albert Einstein eOlinto de Pretto: La Vera Storia Della For-mula Più Famosa del Mondo4 .

Confesso não ter procurado o li-vro, mas a leitura do artigo me fez re-lativizar as queixas de Bartocci. Aindaque não discordando inteiramente desua crítica ao poder que a pesquisanormal (no sentido kuhniano do ter-mo) é capaz de exercer para enquadrar

aqueles que se voltam contra os para-digmas dominantes, a minha impres-são é que o artigo, bem escrito e compontos interessantes deve-se reconhe-cer, não vai além de suposições e deevidências indiretas no que concerne aoplágio de Einstein. Ao final, os própriosautores reconhecem não terem chegado

a deduções conclusi-vas em favor de suasconjecturas. Acres-cente-se que hámuito tempo exis-tem trabalhos mos-trando que as idéiasde Einstein sobre aRelatividade Restritasão parte de umahistória na qual con-tribuições como asde Lorentz e Poincarénão foram nada des-prezíveis, que a as-

sociação entre massa e energia eletro-magnética já vinha sendo discutida an-tes de 1905, e que a dedução de E =mc² no artigo de setembro de 1905apresenta limitações5 .

Eu gostaria ainda de chamar a aten-ção para um tipo de reação que tra-balhos como o de Bartocci tendem adesencadear. Em minha busca no Goo-gle para o nome “Olinto De Pretto” aflo-raram vários sítios racistas, nos quaisas suposições do professor de Perugiasão apresentadas como provas conclusi-vas de que Einstein efetivamente tenharoubado a idéia de De Pretto, o que éassociado à sua ascendência judaica. Nãotenho nenhum motivo para supor queBartocci deliberadamente tenha seproposto a fornecer munição anti-semita. Assim como ele, penso que cien-tista algum, por mais famoso que seja,deve ser isentado de críticas, quer no quediga respeito à sua conduta pessoal, querno que toca aos resultados de suaspesquisas, e com mais razão nos casosem que os dois domínios se entrelaçam.Mas é necessário estar alerta para iden-tificar e denunciar quando estas críticassão utilizadas de forma abusiva e como objetivo de propagar ideologias conde-náveis. Que este é um perigo que nãopassou desapercebido para o autor de OPlágio de Einstein, fica claro em uma falado Professor Davert Stachmann já nofinal do livro.

Independentemente de qualquerjuízo que se faça sobre a plausibilidadedas suposições levantadas pelo pensa-dor italiano, Carlos Alberto dos Santosmerece elogios por ter chamado a aten-ção para o polêmico trabalho de Um-berto Bartocci, como também por di-vulgar alguns aspectos de um períododa vida do jovem Einstein. Mais ainda,por tê-lo feito de modo criativo e agra-dável, em uma linguagem e formatoque torna o texto acessível e interessan-te mesmo a não especialistas.

Se uma ressalva merece ser feita aolivro é ele ser tão curto, já que materialpara ser explorado não faltaria. Paracompensar, uma bibliografia enxuta,mas suficiente para quem se sentirmotivado a conhecer mais sobre a vidae a obra de Einstein, é apresentada nofinal da obra, cujo autor edita um sítiosobre Einstein que merece ser visitado(www.albert.einstein.nom. br).

Arden ZylbersztajnDF – UFSC

Notas1Estou me valendo da feliz expressãoutilizada pelo escritor G. Cabrera In-fante para a colagem da Ciência com aHistória, a Política e a Literatura.2Este artigo pode ser visto como umacomplementação de um artigo maior(Sobre a eletrodinâmica dos corpos emmovimento) publicado meses antes nomesmo periódico, e no qual Einsteinapresentou as bases do que se tornariaconhecida como a Teoria da Relativida-de Restrita. Os dois artigos encontram-se reproduzidos em O Ano Miraculosode Einstein: Cinco Artigos que Mudarama Face da Física (organização e intro-dução de John Stachel) Editora UFRJ,Rio de Janeiro, 2001.3O artigo em questão é Albert Einsteine Olinto de Pretto: Um dimenticatoprecursore italiano dell’equivalenza tramassa ed energia. As queixas de Barto-cci contra o tratamento recebido porsua obra aparecem em La StoriaImpossibile–N.2. Os dois textos podemser acessados em www.dipmat.unipg.it/~bartocci/depre.html.4Bolonha: Andrômeda, 1999.5R.A. Martins, A relação massa-ener-gia e energia potencial. Caderno Catari-nense de Ensino de Física, 6 (número es-pecial), 56-80 (1989).

Umberto Bartocci, professorde Geometria e História da

Matemática da Universidadede Perugia, que vem

tentando há quase 15 anosdifundir e dar crédito à suasuposição de que o cientistaamador italiano teria sidonão só um “precursor”,

como também um“inspirador” de Einstein, noque diz respeito à relação

E = mc²