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Tellus, n.º 57Revista de cultura trasmontana e durienseDirector: A. M. Pires CabralEdição: Grémio Literário Vila-Realense / Câmara Municipal de Vila RealVila Real, Outubro de 2012Tiragem: 300 exemplaresISSN: 0872 - 4830Composto e impresso: Minerva Transmontana, Tip., Lda. — Vila Real

Os artigos assinados são da responsabilidade dos respectivos autores.Embora dispensando-lhes a melhor atenção, TELLUS não se obriga a publicar quaisquer originais.Autoriza-se a transcrição, no todo ou em parte, do material contido neste número, desde que citada a origem.TELLUS encara favoravelmente quaisquer modalidades de permuta e/ou colaboração com outras publicações nacionais ou estrangeiras.TELLUS faculta aos seus colaboradores a tiragem de separatas dos seus artigos, correndo as despesas por conta daqueles.

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A evolução das cozinhas regionais europeias— O exemplo de Trás-os-Montes e Alto Douro

André Magalhães

No difícil contexto socio-económico em que nos encontramos, que amplifica as já de si dificeis condições de vida e bem-estar das populações das regiões interiores, o turismo afirma-se como um recurso absolutamente indispensável.

Por outro lado, a aferição dos padrões de interesse dos turistas nos diferentes segmentos de capacidade de consumo, determinam que a oferta gastronómica se está a tornar um atributo cada vez mais importante no desenvolvimento dos destinos turisticos ditos “de nicho”.

Tal é o caso da região de Trás-os Montes e Alto Douro.Estudos recentes evidenciam ainda que a gastronomia é cada vez mais um factor

de motivação na escolha dos destinos de viagem. De igual modo se conclui que as experiências gastronómicas têm um papel importante no modo como os turistas apreciam os locais que visitam, de tal forma que alguns regressam aos mesmos destinos para repetir tais experiências.

Os exemplos que melhor ilustram tais conclusões encontram-se em regiões com uma reputação gastronómica bem estabelecida em países como França e Itália mas existem cada vez mais zonas emergentes que suscitam o interesse e a visita de turistas gastronómicos de todo o mundo.

Para um melhor entendimento dos factores que determinam o sucesso na valorização das várias cozinhas em diferentes latitudes do continente europeu,

proponho uma resenha histórica dos factores que determinaram a evolução das Cozinhas Regionais Europeias, tecendo algumas considerações finais sobre o caso de Trás os Montes e alto Douro.

Comunicação apresentada ao Encontro “Saber Trás-os-Montes”

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A cozinha europeia

A alimentação é importante do ponto de vista da saúde constituindo mesmo um acto incontornável para assegurar a sobrevivência, que tão repetido por toda a gente e em toda a parte encerra em si uma dimensão cultural.

As cozinhas, ou melhor, o conjunto de práticas culinárias de um determinado grupo de pessoas numa determinada area geográfica são parte indissociável da sua matriz cultural.

Assim, as cozinhas regionais variam em função dos produtos e ingredientes que estão disponíveis localmente e daqueles disponíveis através de trocas e transacções, de práticas e tradições culinárias e de diferenças culturais.

Pelo facto de não existirem muitos registos escritos dos hábitos alimentares até à alta Idade Média, fica a ideia transmitida pelos primeiros escritos exclusivamente dedicados á culinária como foi o De Honesta Voluptate (c. 1475) de Platina (Bartolomeo Sacchi) e mais tarde o Viandier de Taillevent, de que quase não havia diferenciação regional ou rural na cozinha Europeia da Idade Média. Também é importante reter que pelo facto de existirem grandes clivagens entre as classes sociais, os poucos livros de cozinha e colecções de receitas publicados difundiam modelos culinários inspirados mais nos hábitos aristocráticos do que nos do povo e eram mais cosmopolitas do que regionais.

Até então, a aristocracia Europeia tinha uma cultura comum no que tinha que ver com comidas e bebidas, e que não era limitada pelas fronteiras físicas entre nações. Se é verdade que as diferentes cozinhas nacionais só se começaram a afirmar no século XVII com o processo de formação dos estados, e a afirmação da cozinha francesa, tenho para mim que na génese da identidade das cozinhas regionais Europeias está o movimento do Renascimento italiano.

Podem-se usar critérios geográficos para distinguir as diferentes cozinhas europeias, mas é necessário ter em conta que quando as cozinhas nacionais se começaram a afirmar, a realidade geo-política do antigo continente era muito distinta da actual. Assim mesmo, podem-se agrupar as cozinhas europeias em três grandes grupos: as cozinhas do Norte, as cozinhas do Sul e as do Leste.

A cozinha no Renascimento

O movimento do renascimento é também um veículo de disseminação de conhecimentos e de “modas” culinárias, ditadas sobretudo pela emergente classe burguesa italiana de comerciantes e mercadores que ao enriquecer não só copiou como exagerou os requintes de mesa da nobresa transalpina e do papado.

Instaurou-se o gosto pela vilegiatura e assim as cidades reaproximaram-se do campo. Os cidadãos das urbes ricas adquiriram propriedades rurais e fizeram construir “villas” ressuscitando a tradição dos seus antepassados romanos.

Propriedades onde se produziam cereais, legumes, frutas, vinho, carne e lacticínios,

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que passaram a abastecer as suas lautas mesas em maior variedade e quantidade. E tal como os antepassados romanos, também se interessam pela proveniência dos produtos. Se era a valorização da origem dos produtos que transaccionavam por toda a Europa e o arco Mediterrâneo que os enriquecia, então podiam pagar também os melhores produtos alimentares de cada região e refinar cada vez mais as suas escolhas. Esse novo interesse pelo campo e pelos seus produtos faz com que se comecem a utilizar nas cozinhas produtos até então pouco cultivados. Os camponeses que sempre tinham vivido em regime de servidão começam ter acesso a terras e a receber dividendos pelo cultivo de alimentos e a criação de gado, acorrem às cidades para vender os seus produtos. O refinamento e reputação culinária das cidades-estado italianas que competem entre si, assenta na variedade de oferta de produtos das regiões em que se inserem, bem como no seu poderio comercial que permite adquirir produtos raros de destinos exóticos. Os mercados destas cidades ostentam uma variedade de produtos como nunca antes se havia visto. Assiste-se ao influxo sazonal de produtos vindos de todas as regiões de Itália, chegam especiarias do Oriente e descobrem-se novos alimentos vindos do Novo Mundo. Funda-se em Florença a primeira academia culinária da era moderna, a Compagnia del Paiolo, ou Companhia do Caldeirão. Os seus membros eram artistas e gentis-homens como Andrea del Sarto e tinha o propósito de elevar a cozinha ao estatuto de arte, associando a mesa à difusão do conhecimento e do gosto pelo belo. É através dessa nova abordagem da cozinha que se valorizam os contributos culturais dos povos que habitaram a península e aí deixaram um legado como os gregos, os celtas, os etruscos, os romanos, os àrabes, os normandos ou os lombardos. É ao relacionar os produtos provenientes das diferentes regiões, e as suas técnicas de confecção com o seu legado histórico, que se começam a valorizar as cozinhas regionais em itália.

Catarina de Médicis

O “Renascimento” da gastronomia francesa dá-se com a chegada de Itália de uma jovem bonita e rechonchuda de quatorze anos, de seu nome Catarina de Médicis.

Chegou a Paris em 1533 para desposar o rei Henrique II. É claro que não foi Catarina que revolucionou a cozinha francesa, mas sim o seu séquito de mestres de cerimónia, chefes de cozinha, pasteleiros, mestres gelateiros, jardineiros e hortelãos, recrutados entre os melhores de Florença. A corte francesa aceitou de bom grado a chegada da nova soberana e os seus sumptuosos banquetes de elaborados pratos nunca antes vistos como pães pequenos, bolos de camadas, massas de pastelaria, legumes frescos preparados em crú e “al dente”, massas e crépes, azeite, miudezas de aves, como o figado gordo de pato tal como o faziam os judeus Florentinos (assim se instala o consumo de “foie-gras”). O que mais impressionou e agradou aos cortesãos terão sido os crémes e os bolos gelados… e aquilo de que menos gostaram terá sido da instituição do uso do garfo.

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Resulta claro que ao integrar produtos do “terroir” francês nos seus lautos banquetes, os cozinheiros do séquito de Catarina de Médicis fizeram evoluir a qualidade dos produtos regionais franceses.

Desde então, a cozinha passou a estar “a la mode”.Assim, a partir de meados do século XVI assiste-se a uma verdadeira “revolução

alimentar” que vai afectar os hábitos culinários de todo o continente europeu, mesmo nas suas regiões mais remotas. Com os primeiros descobrimentos, começam a chegar alimentos do Novo Mundo, que em menos de 150 anos se instalam em quase todas as mesas europeias. É o caso do açúcar de cana que passa a estar disponível em grandes quantidades com o estabelecimento das primeiras colónias nas Américas e também com plantações na Madeira, nas Canárias, na Andaluzia e até na Sicília e em Creta, sendo porém claro que o principal motor motor de tal expansão terá sido o recurso à escravatura. Açúcar que também passou a servir para adoçar o café, uma bebida exótica que conquistou os Europeus por volta de 1650, e o cacau, uma concocção muito amarga trazida do México pelos espanhóis. De bebida na moda, o cacau rápidamente passou a chocolate comestível.

A Batata, que inicialmente suscitou suspeitas entre os europeus, chegando mesmo a ser apodada de “planta do diabo”, Passou, graças ao sr. Parmientier,

a ser cultivada e consumida por toda a Europa, desde as charnecas Irlandesas às estepes Russas, sendo adoptada por quase todas as cozinhas regionais Europeias. (Curiosamente, Trás os Montes e a Galiza, com os seus vastos soutos, contaram-se entre as regiões que mais resistiram a aderir ao consumo da batata, que hoje em dia tem grande destaque nos seus respectivos receituàrios).

O Milho assume também um papel muitíssimo importante na dieta europeia, substituindo-se pela sua alta produtividade e rendimento aos cereais europeus “antigos”. Algumas regiões europeias ficaram de tal de forma dependentes do milho nas suas dietas que as suas populações começaram a padecer de uma doença até então desconhecida na Europa, a Pelagra.

Outro alimento que teve protagoniamo foi o feijão vulgar, que se tornou tão popular que não há país Europeu que não o tenha integrado no seu receituàrio.

Também o Tomate se instalou rápidamente nos países Meridionais passando a ser ingrediente obrigatório em inúmeras receitas, como se cá sempre tivesse existido. Os Pimentos e as Malaguetas logo se aclimataram na Europa e revelaram-se em Padrón e em Espelette, na massa de pimentão Alentejana, ou em pó de Paprika nos “Goulaschs” de todo o império Austro-Húngaro.

A lista de novos produtos é longa, sendo que todos são assimilados no contexto de uma “revolução agrária” que possibilitou que por toda a Europa se produzissem alimentos em muito maiores quantidades e fez com que as dietas regionais se tornassem mais variadas e menos frugais.

Entretanto, a “grande cuisine” começa-se a afirmar entre as elites da corte de Luis XIV. O seu principal protagonista é François Massialot, discípulo do grande Vatel, que com a publicação do seu “Le Nouveau Cuisinier Royal et Bourgeois” em 1717,

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torna acessíveis à burguesia, as receitas monumentais que criara para os grandes do Reino. Este seu livro é um verdadeiro dicionário gastronómico em que não só revela a receita da sua mais famosa receita, a “créme brulée”, como fala pela primeira vez em denominações de origem.

Com a Revolução Industrial e o aumento da população Europeia, assiste-se também a uma evolução na produção de alimentos e surge o conceito de Industria alimentar. Neste contexto, o excedente de alimentos por um lado, e a necessidade de os transportar para destinos cada vez mais longínquos leva ao aperfeiçoamento de técnicas de transformação e conservação dos alimentos.

Tornou-se também mais fácil viajar, graças à evolução dos meios de transporte e das vias de comunicação. Entre os cavalheiros da alta sociedade sobretudo inglesa, era de bom tom fazer um “Grand Tour” pela Europa continental, visitando obrigatoriamente a França e a Itália, por vezes a Suiça e a Alemanha ou a Àustria, ou mesmo a Península Ibérica. Muitos eram escritores viajantes que deixaram relatos fiéis dos usos e costumes das regiões que visitavam, nomeadamente sobre a culinária local, como foi o caso de Jonathan Swift, Edward Gibbon, e o de William Beckford, que para além de ter sido Lord Mayor de Londres ficou famoso pelos seus relatos de viagem, especialmente as suas “Cartas de Itália e esquiços de Espanha e Portugal” em que descreve detalhadamente o modo de vida dos portugueses e das suas principais regiões.

Entretanto em Paris surge o primeiro Restaurante, em 1765, e dá-se a Revolução Francesa (diz-se que por excesso de brioche e falta de pão). Com a destituição da nobreza, muitos cozinheiros perdem o emprego… e alguns perdem mesmo a cabeça. Após a Revolução assite-se à ascensão dos “burgueses triunfantes”.

Esta nova classe dirigente serve-se da cozinha para exprimir o seu poder e o seu papel na direção do país. A Cozinha e as Artes da Mesa passam a ser símbolos essenciais de estatuto social, e vários cidadãos ganham destaque na promoção desses novos símbolos de status.

Grimod de la Reinière, foi o grande entusiasta e impulsionador do movimento dos restaurantes em Paris, de quem Curnonsky disse “ter criado simultâneamente a crítica gastronómica, o júri de provas e a publicidade gastronómica, ao publicar o seu L’Almanach des Gourmands “. Contemporâneamente, Charles Moncelet, torna-se o primeiro “jornalista gastronómico” ao publicar na imprensa quotidiana a sua crónica Le Gourmet, revela-se o genial Carême, apodado de cozinheiro de príncipes e “Príncipe dos Cozinheiros” e Brillat-Savarin, o juiz gourmand, eleva a Gastronomia ao estatuto de Ciência, com a publicação da sua “Fisiologia do Gosto”. O grande Alexandre Dumas, passa os últimos anos da sua vida a verter tudo o que sabia sobre cozinha para o seu monumental “Grand Dictionaire de Cuisine” e Charles Durand, cozinheiro provençal, publica um dos primeiros livros de cozinha tal como hoje os conhecemos, “Le cuisinier Durand”, que redunda no seu reconhecimento como o pai do conceito de Cozinha Regional. Desde então, com a estabilização da situação política pós-napoleão

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e com as conquistas de direitos do povo, as cozinhas das diferentes regiões de França ganham grande importância. Entretanto populariza-se na Europa a moda do “Tour” que a aristocracia Inglesa havia lançado e fora interrompida pela revolução francesa e as guerras continentais. muita gente passa a preencher os seus momentos de lazer (outro novo conceito), fazendo viagens de descoberta pelas regiões interiores dos diferentes países. A evolução do transporte ferroviário vem encurtar ainda mais as distâncias e facilitar as deslocações. Há cada vez mais “tour-istas”. É neste contexto que se desenvolve o interesse pelas diferentes cozinhas regionais na Europa. Os viajantes querem descobrir também a gastronomia dos locais que visitam. Tudo se torna mais fácil quando aparecem os automóveis… e o famoso guia vermelho que recomendava quando valia a pena parar ou mesmo fazer um desvio para disfrutar da cozinha de uma determinada região.

As cozinhas regionais hoje

As cozinhas regionais fazem hoje parte dos activos turisticos de cada país.Países como a Itália souberam fazer das suas cozinhas regionais potentes factores

de promoção, de tal modo que hoje em dia, aulas de cozinha baseadas no receituário local fazem parte dos programas e itinerários turísticos de quase todas as regiões italianas. Tão importante como a paisagem, a cozinha tradicional, transmitida de geração em geração, ajuda a identificar de forma precisa a imagem de uma região.

Se tratada com rigor, a cozinha regional de tipo tradicional utiliza na sua confecção produtos que medraram no seu “terroir” natural, usados respeitando a sua sazonalidade, uma vez que assim os encontramos sempre frescos. Num mesmo país, as cozinhas regionais diferenciam-se em função de factores geográficos e climaticos, assim sejam serranas ou de planície, costeiras ou do interior, resultem os seus produtos de culturas de sequeiro ou de regadio. E também em função da biodiversidade, da riqueza cinegética ou de alimentos florestais de recolecção. Quanto ao receituário, nas cozinhas regionais, este é geralmente transmitido de geração em geração, muitas vezes oralmente, pelo que é essencial documentar e fixar com detalhe toda a informação que se possa obter. Em Espanha existem exemplos como o da cozinha Catalã de Mar e Montanha que se vinha adulterando e perdendo pelo facto de no ultimo século a costa ter sido transformada por influencia da actividade turistica, em que chefs locais se dedicaram a pesquisar o receituário original e a ressuscitá-lo nas ementas dos seus restaurantes. Os profissionais de cozinhas têm um papel fulcral na preservação da riqueza culinária das suas regiões. Na perspectiva da preservação das cozinhas regionais, a nível europeu, faz-se muito mais hoje do que se fazia há uns anos atrás durante o “surto de cozinha internacional”, mas é preciso estar atento a novas epidemias como a da “mândria de cozinhar em casa” provocada pela oferta de comida pronta nas grandes superfícies. É essencial revisitar regularmente as tradições gastronómicas das nossas regiões, quanto mais não seja como fonte de inspiração para criar novos pratos.

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A Cozinha Trasmontana

A Cozinha Trasmontana pode ter um futuro radioso pela frente pois em termos patrimoniais ainda está muito preservada, e é consensual que se encontra entre as mais ricas de toda a Península Ibérica, mas precisa de se precaver e combater uma série de ameaças se assim se quizer manter, afirmando Trás-os-Montes como destino de turismo gastronómico de eleição.

É essencial:• Qualificar e profissionalizar os serviços de acolhimento e de hotelaria e

restauração.• Preservar os modos tradicionais de produção artesanal.• Proteger os produtos realmente genuinos recorrendo à certificação e criando

denominações de origem.• Manter vivas as tradições sobretudo alimentares, transmitindo-as às gerações

mais novas. • Consumir o maior número possível de produtos locais, adquirindo-os sempre

que possível directamente aos produtores, fomentando assim a economia local.• Respeitar o ambiente e a biodiversidade, (re) adoptando boas práticas no cultivo

dos campos e na criação de animais.• Criar mais recursos de produção local de modo a diminuir a dependência do

exterior e a consequente dispersão das riquezas da região.• Comer bem e com moderação, acompanhando sempre com um copinho de

vinho, como bem diz o Virgílio Gomes.

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Trás-os-Montes— Que futuro gastronómico?

António Bóia

O futuro gastronómico de Trás-os-Montes passa essencialmente por quatro pontos-chave:

1. Os produtores e produtos 2. Os profissionais do sector (com especial destaque para os chefes de cozinha)

e escolas hoteleiras3. O poder local 4. O consumidor local e final

1. Os produtores e os produtos

Na base deste programa estão os produtores, pois sem eles não há produto e sem os mesmos não há gastronomia local e regional.

O produtor aparece no inicio do ciclo pois é o resultado do seu trabalho, do seu saber fazer, da sua dedicação e experiência que vai depender a qualidade do produto final e assim a gastronomia evoluir.

Trás-os-Montes beneficia de um microclima extraordinário beneficiando a produção de uma vasta variedade de produtos primários de altíssima qualidade. No entanto, e apesar de ser responsável pela produtividade, diversidade e qualidade dos produtos, há que salientar quem com décadas de experiência, conhecimento, arte, amor, dedicação e saber fazer trabalha a terra.

É importante que o sector agrícola e agro-pecuário saiba e possa evoluir, modernizar-se e criar agrupamentos de agricultores locais, para que em conjunto

Comunicação apresentada ao Encontro “Saber Trás-os-Montes”

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possam retirar mais-valias, desenvolver competências, criar produção mais vasta e ordenada e fazer a promoção em conjunto e não individual. A articulação transversal entre agricultores e produtores é fundamental para o desenvolvimento e valorização da produção.

Na actualidade as necessidades do mercado são diferentes de alguns anos atrás. O grau de exigência e a competitividade obriga a estratégias e medidas também de marketing como a embalagem adequada, cuidados com a apresentação, rotulagem com descrição do local de produção, data da colheita, produtor etc.

Este é a meu ver um passo extremamente importante para o desenvolvimento da produção agrícola local que está na origem de uma gastronomia distinta, explícita, nítida, autêntica, com sabor e qualidade irrepreensível.

Felizmente já há muitos casos de sucesso com produtos de Trás-os-Montes que hoje começam a aparecer um pouco por toda a Europa e até noutros Continentes.

• O sector da castanha teve uma evolução formidável, tendo-se adaptado às exigências de mercado e hoje temos castanhas de Trás-os-Montes o ano todo em todo o país e todo o mundo, apresentadas das mais diversas formas e tamanhos seleccionados.

• Com as cerejas passa-se o mesmo apesar de ao contrário das castanhas não se conservarem no seu estado natural tanto tempo, não permitem a congelação sem alterações visuais e Organoléptica.

• Os azeites de Trás-os-Montes que são de qualidade ímpar têm-se vindo a impor mundialmente pela excelente qualidade que apresentam mas também e muito pelo excelente e árduo trabalho dos produtores.

• Um sector que hoje é sem dúvida uma bandeira da região é os enchidos de excelente qualidade. Por toda a região empresas, umas mais do que outras realizam um trabalho notável, mas espero que com a ganância do dinheiro fácil, não se estrague o que de bom tem vindo a ser feito. Inovar sim mas sem descaracterizar as origens. Inovar não é inventar sem pés nem cabeça como é o caso da alheira de tudo e mais alguma coisa agora tanto na moda. Espero que não se lembrem de criar a alheira de Foie Gras com trufas que certamente alguns críticos gastronómicos iriam achar interessantíssima nada tendo a ver com Trás-os-Montes.

• No sector das carnes temos carnes autóctones únicas, de sabor autêntico tais como a Mirandesa, Barrosã, Maronesa, Borrego e Cabrito mas a produção nestes casos é pequena e a comercialização não está adaptada às exigências do mercado. Nas carnes bovinas ainda há muito trabalho a fazer para que estas possam trazer valor acrescentado e sejam uma mais-valia financeira para a região. Não tenho dúvidas que uma melhor comercialização, iria dinamizar mais o sector, criar postos de trabalho e motivar os produtores. As carnes de Trás-os-Montes têm qualidade comprovada para serem uma bandeira na promoção do turismo da região.

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• Os cogumelos, são sem dúvida uma riqueza para a região que embora muito dependente do microclima o homem sabe comercializá-los e retirar deste excelente fungo o máximo proveito possível. Os cogumelos da região são hoje reconhecidos como um produto de excelência, mas este sector deve ser regulamentado, e é fundamental a formação e conhecimento para a apanha dos cogumelos. Este é um sector em que a ajuda e intervenção das universidades é urgente e indispensável para aprofundar o conhecimento deste fungo.

Poderia mencionar muitos outros produtos tais como:• Amêndoas• Conservas• Mel• Folar de Valpaços• Águas • Cascas ou casulas• Outros.Há muitos outros produtos do qual poderia falar em que se está a fazer um

trabalho notável, com muito esforço, dedicação e empenho estou certo irão ser uma mais-valia quer do ponto de vista económico quer do ponto de vista gastronómico e certamente a gula agradece.

2. Osprofissionaisdosector(comespecialdestaqueparaoschefesdecozinha)e escolas.

Aos profissionais do sector cabe, em primeiro lugar, saber reconhecer que por detrás de um produto estão muitos anos de história, de saber, de dedicação, suor e trabalho. Devemos enaltecer e respeitar o receituário existente com séculos de sabedoria e conhecimento, valorizar os produtos autênticos e genuínos, as receitas, as técnicas e conhecimento que passaram de geração em geração, e partindo desse alicerce trabalhá-las e adaptando-as a novos equipamentos, a novas tendências e aos tempos modernos. Melhorar os pontos de cozedura, a apresentação, desenvolver novas combinações culinárias, melhorar o visual e a rentabilização do produto criando assim um valor acrescentado.

Os Cozinheiros têm a dever de cooperar com os produtores, ajudando-os a desenvolver os produtos, consumindo mais produtos locais, enfim, trabalhar em conjunto com estes para que todos possam retirar dai proveitos.

Em cozinha, inovar é mais complicado do que possa transparecer. Os chefes de cozinha devem ter a consciência que inovar não é estragar, para que serve um prato bem apresentado e bonito se depois não tem sabor, não tem alma, não tem cariz, não tem identidade. A apresentação e o visual de um prato são muito importante, mas o que o torna realmente marcante e distinto é o sabor. Uma receita deve ser, antes de tudo e mais alguma coisa, saborosa e proporcionar um momento de prazer. Claro que

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uma receita melhora com um empratamento mais harmonioso, cuidado e equilibrado onde o seu conteúdo neste caso a “comida” possa brilhar e assim tornar uma refeição mais marcante, mais distinta e equilibrada nutricionalmente. Nunca esquecendo que uma refeição, para além de nos alimentar, também, deve proporcionar o bem-estar.

O receituário de Trás-os-Montes é muito rico e vasto e ainda existe muita coisa boa por inventariar e registar para que futuras gerações se possam orgulhar e inspirar desenvolvendo novas receitas e técnicas. Nas aldeias perdidas entre montes e vales podemos ainda encontrar autênticas relíquias guardadas na memória de quem tão bem as sabe executar e com tristeza e também alguma mágoa não as podem registar porque não sabem ler nem escrever.

Compete a cada um de nós que ama esta terra dar o seu contributo, com especial destaque para as Escolas Hoteleiras da Região que deverão ensinar e proporcionar momentos de aprendizagem aos futuros profissionais de forma a valorizar o património local. É um dever cívico conhecer e valorizar a nossa historia, o nosso passado e a nossa identidade. É importante pedir aos alunos trabalhos de levantamento do receituário familiar e local, proporcionando-lhes a experiencia de novos produtos, técnicas, receitas e nalguns casos a sua história original.

Na região há restaurantes que estão a fazer um trabalho de louvar, pena é que ainda são poucos. Confio muito no potencial desta região, no potencial gastronómico, no turismo natureza com paisagens magníficas, monumentos memoráveis, aldeias históricas e tanta coisa para dar a conhecer ao mundo. O turismo é um grande dinamizador da gastronomia, clientes satisfeitos voltam e trazem dinheiro para a região, fazem publicidade, valorizam a região, movimentam a economia e trazem riqueza.

Os restauradores têm o dever de se envolver mais, pois constituem parte fundamental na valorização e divulgação da gastronomia local. Existem muitos restaurantes que na ementa têm bacalhau e carne assada, seja ela vitela, cabrito ou cordeiro, mas Trás-os-Montes não é só carne assada. Então e as receitas de tacho ou pote? E as nossas magnificas e intermináveis receitas de sopas tais como; sopa de alho, sopa de penca de chaves, sopa de chícharos, caldo de castanhas, caldo do butelo, sopa de vagens, sopa de bacalhau, sopas da matança, sopas de sangue, sopa de carolos, sopa seca. Nunca se podendo esquecer dos míscaros guisados, do feijão verde guisado com tomate, da borralhada de batatas, dos grelos guisados, ou da tomatada de espargos bravo. Ou então do inesquecível cuscuz, arroz de castanhas, arroz de grão no pote, arroz de cabidela e arroz de espigos. Uma saborosa borralhada de bogas, polvo guisado em vinho, congro ensopado, sardinhas escarchadas, leitão recheado, pernil de porco cravejado, sardinhas albardadas e tantos outros petiscos que fazem agua na boca de qualquer pessoa. Mas o receituário é tão rico que ainda se pode enriquecer uma mesa com um borrego com batatas, carne de porco estufada com bilhós, fígado de porco assado, uma travessa de borrego com castanhas, um pote de ensopado de carneiro, uma bela perdiz amendoada, um apetitoso pato com canela ou cabidela de lapaça. Tantas e tantas receitas que os restaurantes têm por obrigação manter vivas e às mais esquecidas dar-lhes vida.

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Desde cedo é importante desenvolver a educação do gosto e do sabor, pelo que é essencial divulgar e valorizar nas escolas o que de bom se tem na região. É necessário diminuir ou acabar com os hambúrgueres, douradinhos, salsichas e fritos, por vezes de qualidade duvidosa e que podem e devem ser substituídos por pratos regionais e locais, que certamente são mais saudáveis para a alimentação.

Os vegetais da região são quase todos biológicos e com um sabor distinto, pelo que se deve incentivar as crianças a comer sopa, a valorizar os produtos da região e dar valor ao que é nosso, ensinar a distinguir o que vem da horta e o que comeram os avós para se tornarem tão fortes de resistentes.

3. O poder local

O poder local tem responsabilidades na criação de condições para a promoção da região e dos seus produtos atraindo mais-valias e investimentos, estimulando o desenvolvimento que possam dinamizar a gastronomia e a riqueza local,

Os mercados municipais e feiras são fundamentais para a dinamização e promoção dos produtos regionais sobretudo do pequeno produtor e também para a promoção da gastronomia local, criando certames e festivais gastronómicos. Podem e devem ser criados incentivos à valorização, pesquisa e modernização do receituário regional e fomentar o consumo deste para que economicamente seja viável e a aposta cada vez mais determinante.

É imperativo criar uma marca, um selo, uma imagem, algo credível, que possa promover e vender a região fora de portas. Os autarcas e entidades tem de trabalhar em conjunto independentemente das cores ou opções políticas devem trabalhar em harmonia de forma a rentabilizar esforços definindo e projectando estratégias de interesse comum.

É necessário atrair o turismo à região, estimular o crescimento qualitativo e quantitativo de alojamentos. Criar Festivais de gastronomia, feiras de produtos locais, artesanato e turismo que podem funcionar como ancora e incentivo na promoção da gastronomia regional e funcionar como alavanca à sustentabilidade do sector da restauração que está a passar por um momento crítico e de muitas dificuldades.

Os nossos políticos infelizmente nunca souberam tratar a gastronomia com o devido respeito e atenção que ela merece. Tem sido um erro constante ter a gastronomia e as escolas hoteleiras sobre a tutela da economia quando esta devia estar sim sobre a tutela da cultura. É cultural a forma como cada um se alimenta, os rituais em determinadas ocasiões, a forma como ao juntar vários alimentos se dá forma a uma receita que marca um estímulo.

Infelizmente os diversos governos só sabem promover o golfe e as praias, mas o país é muito mais do que isso. Uma boa refeição para além de ser fundamental para a sobrevivência, é um momento de prazer, um momento de convívio, confraternização, bem-estar, gozo, jubilo, aprazimento.

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4. O consumidor local

O consumidor local é fundamental não só porque é ele o grande beneficiário como o garante da sustentabilidade do todo este processo. Tudo o que é novidade e novas tendências são importantes para o desenvolvimento pessoal e cultural mas não nos deixemos enganar, os transmontanos sabem muito bem diferenciar o trigo do joio e muita coisa que actualmente se come na região não tem a mínima qualidade comparado com os nossos produtos regionais.

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A história e a manutenção das tradiçõesculinárias transmontanas

Virgílio Nogueiro Gomes

É tarefa complicada entender por que razão se fixaram tradições da área alimentar em regiões como as conhecemos até finais do século XX. Genericamente pode-se afirmar que a primeira contribuição é dada pela explosão espontânea da Natureza. Seguidamente é a ação dos habitantes locais e associada à distância que os transportes da época permitiam. Ora teremos que pensar que a distância, e que veio definir as regiões com identidade alimentar, é a que corresponde a deslocação de animais de carga durante um dia. Não seria de imaginar mais de um dia pois estamos a tratar de alimentos facilmente perecíveis. Depois o terceiro elemento que são as ações políticas, religiosas, militares e sociais que influenciaram, por razões diversas, as diferentes regiões. Neste texto irei assumir como região, o espaço alargado que corresponde a Trás-os-Montes e Alto Douro.

Segundo António Borges Coelho “Supõe-se que a Terra emergiu há cerca de quatro biliões e seiscentos milhões de anos” e que o primeiro homem terá surgido há 3 milhões e 600 mil anos e inicialmente seria herbívoro. Há 2 milhões de anos parece ter começado a utilizar instrumentos em pedra e a comer carne. Ainda segundo a mesmo autor, o Homo erectus poderá ter surgido há 1 milhão e 700 mil anos e já se alimentava também de frutos raízes e ovos de pássaro. Mas o elemento fundamental que importaria fixar no tempo é o aparecimento do fogo e, esse sim, o elemento determinante para o surgimento da cozinha. Primitiva, é certo, sem instrumentos de cozinha, e que seria a aplicação direta dos alimentos sobre o fogo. Eu acredito que o fogo não tenha sido descoberto por ação de necessidade mas um ato natural que depois terá sido bem utilizado e ganho uma força extraordinária no relacionamento e organização das populações. Ora será do tempo do “Homo Sapiens”, que já vivia da caça e armazenava

Comunicação apresentada ao Encontro “Saber Trás-os-Montes”

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comida (conforme se prova pelo aparecimento de jazidas com ferramentas e restos de cozinha) que nos surgem as primeiras revelações de organização de grupos. Mas o fogo, para além da nova sensação no consumo, especialmente da carne, trás um ato novo que é a reunião em grupos para as refeições. Iniciam-se as refeições como ato de grupo que se desenvolvem em ato convivial. Em Portugal são descobertas no século XX jazidas em Peniche, Alpiarça, Sintra, Monsanto Lisboa, Torres Novas, Vila Velha de Ródão, Bombarral, Cabo Mondego, Loures, Torres Vedras e Setúbal. Quanto a Trás--os-Montes e Alto Douro, confirmamos a existência de grupos organizados a partir das descobertas em Mazouco, Freixo de Espada à Cinta, e no Vale do Côa.

Naquele tempo já a população tinha tendência a instalar-se próxima ao litoral, e a comida é facilmente fornecida pelo mar. Hoje em dia também acontece, abatem-se árvores e reduz-se a agricultura e avança o betão, e socialmente continua a desenvolver--se o desequilíbrio e criam-se condomínios privados e separam-se os ricos dos pobres. Encontramos muitos registos no Vale do Tejo e no concheiro do Sado que nos levam a considerar o fim da Idade da Pedra Lascada (Paleolítico), do século VI ao III AC, e o aparecimento da agricultura e pastoreio pelo aparecimento de instrumentos e alfaias agrícolas. Sabemos alimentavam-se de carne de veado, javali, bois selvagens, coelho, lebre, vegetais e muita lamejinha e berbigão. Criaram e desenvolveram a cerâmica, a tecelagem e cultivaram cereais de forma organizada. Domesticaram o cão, a cabra, o carneiro e surgem os primeiros ajuntamentos populacionais, as aldeias de agricultores. Foram encontradas também sementes de trigo, de cevada, de feijão, de favas, e restos de comida de bovinos, de ovinos, de caprinos e de suínos. Depois desta época surgem as primeiras povoações fortificadas pela necessidade de defesa pois passou a haver armazenamento de produtos e haveria que os salvar.

Segundo fontes greco-latinas do primeiro milénio a Península Ibérica seria ocupada pelos Iberos na zona litoral, e por Celtas e Celtiberos no interior, no qual assumimos a região que agora chamamos de Trás-os-Montes. Nesse tempo ainda encontramos a propriedade dos campos que era coletiva, com a produção e distribuição conjunta.

Depois da passagem dos Fenícios e dos Gregos, no Norte a ocupação era dos Galaicos, e especificamente, em Trás-os-Montes, ocupavam o terreno os Zoelas. A passagem dos Cartagineses trouxe benefícios como a agricultura organizada e apurados os sistemas e técnicas de rega, tendo desenvolvido também a mineração. Parece, no entanto, que do período romano mais marcas ficaram na Península. A plantação de oliveiras e vinhas, são um exemplo. Implementa-se a propriedade privada e sua defesa, os latifúndios e as quintas abastadas. Em simultâneo desenvolve-se a pesca, indústria da salga, agricultura de cereais, vinho e azeite.

Vem depois o povoamento árabe que surge com a capitulação de Sevilha e cristãos instalam-se em Beja de forma isolada. Assim a Norte Mondego Reino de Leão, a Sul Califado Córdova. Dos árabes aprendemos alguma doçaria e implementam o consumo de arroz.

Surgem depois os famosos Lusitanos surgem e dos quais temos relatos de Estrabão

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que confirma alimentarem-se de carne de cabra e mantinham-se com bolota, cuja farinha dava pão pois conservava-se facilmente. No entanto seria um pão muito consistente apesar da sua vantagem de maior conservação. Possivelmente usavam mais manteiga de vaca e de porco, do que azeite pois este teria mais funções como combustível para iluminação. Há referências de que bebiam muita cerveja, e que a bebiam em vasos de madeira como os celtas. Se já com o aparecimento do fogo se supõe as refeições adquirem um ato convivial com a partilha da comida à volta da fogueira. Esta tradição desenvolve-se com os romanos em cujas refeições os alimentos passavam de mão em mão e desse ato surgiram os convivium.

No século X e XI havia poucas cidades e eram pequenas e D. Afonso Henriques aposta no povoamento, e cultivo das terras, utilizando a instalação de mosteiros e conventos da regra de S. Bento como um elemento de desenvolvimento local. Em Bragança surge em 1143 o mosteiro das donas de Castro de Avelãs, beneditino, cuja dimensão era reduzida e nunca se viu ampliado como aconteceu com outros próximos das zonas litorais.

A nossa região nunca foi alvo de grandes instalações e, por isso, a falta de registos. É, no entanto, o Abade de Baçal, Padre Francisco Manuel Alves, que inicia a constatação de tradições antigas transmontanas. Confirma que o porco tinha grande importância na liturgia pagã e talvez por isso seja a carne principal desta zona. Convém lembrar que mesmo os romanos ofereciam porcos em honra de Vénus e aos deuses Lares. Os romanos preparavam já dois pratos com muita frequência “Sumen” e “Vulva” e já faziam enchidos e fumados. Não admira que o povo preste culto ao porco dado que ainda hoje é o animal mais “prestadio da culinária transmontana”. Quanto a tradições alimentares o Abade de Baçal queixa-se quando no Natal se substitui o leitão e o cabrito por peru.

Outro importante estudioso das tradições transmontanas foi José Leite de Vasconcelos e que afirma que “Os camponeses de algumas regiões de Trás-os-Montes, tinham como prato essencial até épocas muito recentes, uma papa feita com castanhas e leite que não parece ser muito diferente da que alimentava os pastores castrejos” que transcreve uma citação de Irisalva Moita apresentada num congresso em meados do século XX. Ainda sobre tradições antigas, José Leite de Vasconcelos refere que ainda nos anos sessenta se “comiam sopas de castanhas e feijão branco a que se punha açúcar…”! Como elementos identificadores, ou diferenciadores, apresenta a “Maruja” ou Meruges, como se diz em Mirandela, comem-se em salada com azeite e vinagre. Comem-na até mesmo pessoas que não são pobres. Este elemento de comida por várias classes sociais é importante pois comer legumes era hábito de pobres desde a Idade Média. Depois refere a “Alheira” explicando que em Mangualde, e tão longe de nós, é feita com tripa grossa, estômago, cozido de carne dos ossos, pão, alho… (e depois confirma ser confecionada na nossa zona fria). Depois cita a “Tabafeias” ou “Tabafeiras”, como sendo a designação que em Bragança se dá à alheira, e que é um chouriço com dobrada, galinha, pimenta, etc… Continuando com produtos transmontanos apresenta as “Sanxas” como cogumelos de Macedo de Cavaleiros; o

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“Chabiano” que é um chouriço doce com mel e sangue, de Macedo de Cavaleiros; as “Papas de Milho” em Alijó e Vila Real; e a “Azeitona” em toda a região e em especial em Macedo de Cavaleiros e apresenta o ditado: “Para a saúde, uma, / Para a vista, nenhuma”, o que sugere ou parece uma óbvia utilização para o azeite para a iluminação.

Sobre a instalação de tradições culinárias ou gastronómicas, porque associadas ao prazer e acompanhadas com vinho, não vou desenvolver, ou apresentar, as teorias de Claude Levi-Strauss, Marvin Harris ou Filipe Fernández-Armesto. Ou ainda colher as informações de Francis Chevrier que foi o obreiro da candidatura que levou à classificação da UNESCO de património cultural imaterial da humanidade, da “Refeição Gastronómica dos Franceses”, em 19 de novembro de 2010. Mas processo mais interessante foi o da candidatura do México, que é baseada na cultura base alimentar a partir dos produtos, de base e populares. Para essa candidatura, “Cozinha Tradicional Mexicana”, criaram um Conservatório de Cultura Gastronómica Mexicana” e ligado às artes. Possivelmente um bom exemplo para Portugal. A candidatura pois aprovada e entregue a classificação em novembro 2010. Também o Brasil sistematizou ao aparecimento da sua alimentação, em história, através de Luis da Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, que tão cuidadosamente estudaram as raízes portuguesas, ou Paula Pinto e Silva que se debruçou apenas sobre a trilogia alimentar que considerou o arroz, o feijão e a carne seca como os elementos base da cozinha brasileira.

Todos consideram que a geografia e o clima, que determinam os produtos que a Natureza oferece, associada a movimentos sociais, políticos e religiosos sempre determinaram a instalação progressiva, e depois continuada, em cada local ou região.

Importante seria listar estes movimentos e relacioná-los com os produtos e seu receituário. As fontes são poucas e o trabalho de sistematização não está feito, sendo várias e excelentes as contribuições que merecem, já, serem organizadas. Exceção para, possivelmente, o único trabalho organizado por Alfredo Saramago e António Monteiro, que não se limitaram a apresentar uma recolha de receitas.

Mas começo por citar os produtos possivelmente mais identificadores da região: a castanha, a azeitona e o azeite, os cereais como o trigo, o centeio, a cevada e o pão, as uvas e o vinho, os feijões, os cogumelos, as cerejas, os figos (sinal de sabedoria), as amêndoas (com desenvolvimento desde os romanos e depois no século XX revelam-se como atração turística), as amoras (pela implantação da produção da seda, e incentivos de D. Afonso V (1438-1481), repetidas pelo Marquês de Pombal, e grandes referências em Chacim e Freixo de Espada à Cinta), e as batatas tardias. Mas se analisarmos outros elementos florestais podemos citar o zimbro, os pinheiros, o teixo, o medronheiro, a nogueira, a ameixeira, a pereira, o carvalho, o sobreiro e as aveleiras, e ainda o buxo, a esteva, a urze, o azevinho, o freixo. Mas da horta temos várias couves, favas, grão-de-bico e lentilhas. Do reino animal o fundamental porco e seus derivados, o cordeiro, o cabrito, os bovinos e aves de capoeira. Da natureza também se devem referir a importância dos peixes do rio como a truta, o barbo e a boga. De alguns elementos animais caprinos obtemos excelentes queijos. Naturalmente que estes produtos se instalaram de forma espontânea ou alguns por cultivo de novidade. Pastores

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e agricultores, inicialmente por subsistência, depois para alargamento de negócio. Poderá perguntar-se, por exemplo, como aparecem os cuscos e continuam de forma isolada no nordeste. Será por influência dos mouros, mas assumidos posteriormente como recurso de aproveitamento integral do trigo de barbela? A passagem de vários povos, ou a imposição de novo modelo de organização política também terá tido a sua influência. Com a organização do território, tem tendência a desaparecerem os baldios e a organização da propriedade. Com o aparecimento da batata, 1798 é a data do primeiro incentivo à sua produção, diminui a plantio de nabos. As povoações, as aldeias, organizam-se e inicia-se a criação das feiras. A agricultura e a criação do gado vêm a sua possibilidade comercial nas feiras. Só em finais do século XVIII surgem os primeiros talhos nesta região.

Se em relação aos produtos parece fácil a sua identificação, os chamados agentes externos ou movimentos, é mais difícil fixar aqueles que, de facto, imprimiram hábitos que se instalaram e ainda hoje identificam a região. Sem ser externo, mas uma forma de organização tem a ver com o pastoreio e os novos conceitos de agricultura organizada. O pastoreio em si, e as grandes operações agrícolas deixaram marcas num determinado tipo de refeições que aconteciam para essas atividades. E não precisamos de recuar muito no tempo. A permanência de galegos, que viriam para as vindimas, obrigou à chegada de sardinha, que vinha embalada em barricas. Nas ceifas comia-se guisado de carne bovina com macarrão. Em simultâneo com a organização territorial desenvolveram-se as instalações de defesa com manutenção de muitos militares e as respetivas construções. Este grupo criou outro tipo de alimentação, a primeira confecionada em grandes quantidades. Outras disposições régias, a partir de D. João II (1481-1495), impediram os homens de trabalhar e vender as “coisas de açúcar”, o que veio determinar que a doçaria se transformasse numa atividade feminina. A própria instalação de conventos alterou os hábitos regionais. Se virmos atentamente os conventos que se instalaram nesta região verificamos que se encontra alguma doçaria semelhante a outros conventos noutras localidades. Naturalmente, quando abria um convento novo iniciava-se o seu povoamento com algumas freiras que vinham doutros conventos e, mentalmente, traziam as suas receitas. Que eram ligeiramente modificadas ou mesmo chegavam a criar um receituário novo.

Se verificarmos o receituário supostamente saído do Mosteiro de Nossa Senhora dos Anjos, em Chaves, encontramos Uvas cobertas, Doce de pêssego, Doce dos anjos, Azeitonas doces (que é uma raridade e única receita doce que conheço com azeitonas) e Torta de fruta. Do Mosteiro de Santa Clara, em Lamego, Lâminas, Formigos e Delícias. Ainda de Lamego e do Mosteiro das Chagas recebemos as Grades, Fransciscos, Arroz amarelo, Ovos-moles das Chagas e Bolo de laranja. Do Mosteiro de S. Bento, em Murça, Morcelas, Madalenas, Broas finas, Sestas, Rabanadas de vinho branco e Bom bocado de Murça à moda de Braga e estranhamente, nos registos, não se encontra o famoso Toucinho-do-céu. Do Mosteiro de Nossa Senhora do Amparo, ou Convento de Santa Clara, em Vila Real, encontramos Jerimús e Pastéis de toucinho. E Bragança e do Mosteiro de Santa Clara, Doce de viúvas, Torta à religiosa, Bolo de nozes de

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Bragança, Doce do mosteiro, Ovos folhados. Fugindo um pouco a caminho do Porto, herdámos do Mosteiro de Santa Clara, em Amarante, deliciamos com Lérias, Foguetes, Cavacas, Papos de anjo, Pingos de tocha, Bolos de amor, Margaridas e Mimos. Porque desapareceram alguns destes doces? Será que a doçaria popular se implantou de forma tão eficaz que apenas alguns doces conventuais ganharam perenidade? Da doçaria popular encontramos, por ordem alfabética Aletria, Amêndoas cobertas, Arroz doce, vários Biscoitos, Bola de Azeite, Bola mirandesa, Bolinhos de azeite, Bolo Centeio, Bolo podre, Broinhas de mel, Broinhas de noz, Coscorões, Dormidos, Económicos, Filhoses, Formigos, Mexidos Doces, Milhos doces, Mulatos, Orelhas-de-abade, Pão-de--ló, Papos de anjo de Mirandela, Pudins vários, Roscas e Roscas de fritar, Rosquilhas, Súplicas, e seguramente muitos mais que não caberá aqui listar. Os doces aparecem com registo mais fácil com o aparecimento dos conventos e cultura associada, como era a escrita. Mas em simultâneo com o surgimento desta doçaria provocada pela instalação dos conventos, surge outro movimento importante que foi a Inquisição. E por si só não alterou muito os hábitos alimentares. Apenas que, pelo facto de não comerem carne de porco seriam acusados de hereges sofrendo as consequências sobejamente conhecidas. Esta região era já grande consumidora de carne de porco, possivelmente por herança de outros povos que por aqui passaram. O porco esteve divinizado e, “o povo transmontano foi sempre um povo cheio de temores pelas forças ocultas e sobrenaturais”. Veja-se a utilização da figura do porco nos pelourinhos. Ora, com a Inquisição, quem não comesse porco deveria ser banido. Por isso, é possível que os judeus tenham transformado a alheira já existente numa alheira sem carne de porco. Possivelmente não foram eles os “inventores” mas apenas os transformadores.

Bem, apetece-me citar o Professor Cláudio Torres quando afirmou, sobre a teoria da identidade regional, esta se definiria pela capacidade de transporte diário em mulas, dos produtos alimentares e perecíveis. A ausência de transportes e a falta de meios de conservação, vieram determinar as tradições que se instalavam naquele perímetro da capacidade de transporte. Hoje em dia, não só os transportes, como os meios de conservação e sobretudo a velocidade da informação permitem que em qualquer parte do mundo se assista e se partilhem os produtos e os seus meios de transformação. A famosa “cozinha de fusão” que acontecia lentamente, agora é instantânea. A cozinha de fusão resulta mais do encontro de culturas do que da combinação e mistura de produtos associados a novas técnicas culinárias. De facto, a mistura de culturas traduz-se, de tempos a tempos, em novas e exultantes criações. Muitos autores consideram que esta cozinha de fusão e um dos processos naturais através dos quais as cozinham evoluem. Sobre estes conceitos de culinária “à transmontana” sugiro o meu texto publicado na Tellus nº 53. A identidade regional de Trás-os-Montes e Alto Douro ainda é possível ser assistida. Não adianta querer travar a evolução. Devemos é contrariar as ruturas que provocam a perda da identidade.

Para terminar transcrevo um texto de António M. Monteiro, ilustre e categorizado estudioso das tradições transmontanas: “São afinal os saberes da perseverança dos agricultores paisagistas, e de ruralidade vileira a reportar em trunfos de fé e confiança

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para as gerações vindouras, sendo que são também as nossas saudades diárias, os nossos prazeres de agrado, a nossa memória prezada e o sentimento de um futuro acertado e favorável.”

Escrito segundo o Novo Acordo Ortográfico

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Memória do Encontro “Saber Trás-os-Montes”(À transmontana — perspectivas gastronómicas e culturais)1 de Outubro de 2011

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Elísio Amaral NevesMaria Manuela NevesMário CletoFernandina CletoJoão Leite GomesCarlos MesquitaJúlia MesquitaLúcia FragaFilomena RibeiroA. Pires Cabral Alda Oliveira CabralHélder MachadoCândida MachadoManuel Alves SousaNatália SousaNélson FontinhaZélia FontinhaMaria da Glória SoutoAna Maria BotelhoCarlos Coelho PiresLeonor MirandaJosé Alves RibeiroCândida GonçaloJosé LeonardoLurdes CarvalhoJulieta RodriguesAdelina CarvalhoIrene PalheirosIsabel RegoArsénio MachadoAntónio José TeixeiraJoão TomásMaria das Dores VieiraManuel CardonaHelena SequeiraManuel Martins de FreitasMargarida FontouraAna AndréRogério FernandesAndré MagalhãesAntónio BóiaVirgílio Nogueiro Gomes

LISTA DE PARTICIPANTES

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O Eng.º Miguel Esteves na Sessão de Abertura

André Magalhães, Virgílio Nogueiro Gomes e António Bóia

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Um aspecto da assistência

A caminho de Macedo de Cavaleiros

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Na Albufeira do Azibo, Macedo de Cavaleiros

Na Casa do Careto em Podence

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Memórias de Céu e Infernode A. Passos Coelho

Armando Palavras

Teve o Grémio Literário Vila-realense a feliz ideia de patrocinar esta iniciativa neste edifício magnífico, que por coincidência é uma biblioteca. O que nos traz à memória dois momentos literários: um de Cervantes e outro de Jorge Luís Borges.

A história do incontornável Dom Quixote inicia-se no momento em que o herói abandona o lugar das suas fantasias livrescas para se aventurar na vida. Mas ao fazê-lo tem a nítida consciência de que naqueles livros tinha encontrado a verdade, bastando imitá-los, reproduzindo as suas empresas.

350 anos depois, Borges narra-nos a história de uma biblioteca da qual não se sai. Uma biblioteca como o universo.

A nossa intervenção seguirá o seguinte rumo:1 – Leitura da sua sinopse para que a assistência guarde na memória um pouco

do seu enredo. 2 – Leitura da comunicação propriamente dita, onde abordaremos meia

dúzia de aspectos, hoje tão actuais, como a moral e a ética. Não nos debruçaremos exclusivamente sobre o livro em questão, mas sempre que for oportuno a ele recorreremos para exemplificar.

Memórias de Céu e Inferno

Esta história passa-se no tempo em que foi inventada a esferográfica

Sinopse

A trama genialmente urdida nesta história, desenvolve-se em torno do destino do seu protagonista.

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Entregue ainda de peito, por sua mãe que definhava da doença, a uma sua tia, Silvestre passa na pequena aldeia da Peneda, localizada entre o Marão e o Alvão, uma infância de brutal pobreza.

As condições de miséria da família, descritas de forma sublimada nos primeiros dois capítulos, forçam os tios, passados oito anos, a entregá-lo, depois de uma despedida confrangedora, a um casal de Lamego (o sr. Xando e a D. Guida), na condição de o tratarem como se fosse filho.

Como, de facto, sucedeu. Da pobreza total, Silvestre passa a ter uma vida requintada em que nada lhe falta, onde tudo era novidade. Da postura na mesa, dos comeres, da roupa, etc.

Companheiro de Cesarinho, o filho paraplégico do casal, o pequeno Silvestre vive no Paraíso durante cinco anos. Com a morte de D. Guida, retorna ao Inferno. E por imposição da irmã viúva do sr. Xando que vive em Sesimbra e para lá quer levar o irmão e o sobrinho (na companhia da criada, Balbina), é, de novo, votado a outro destino.

Entregue a um casal de Chaves, vê-se de novo “sem eira nem beira”. Chorando compulsivamente junto da alma dilacerada do sr. Xando que o leva à Régua, segue no comboio para Chaves, onde o destino lhe coloca uma senhora de Tabuaço, dona da Quinta da Formiga, a D. Laurinda, com quem dialoga até Vidago.

Em Chaves é recebido pelo sr. Augusto, um comerciante respeitado na região, pela esposa, D. Céu, e pela criada, a Piedade. Tinha treze anos.

O sr. Augusto inicia-o no mester do negócio da “Casa Nóvoas”, uma casa de ferragens. Aí tem como colegas o velho Guilherme e o Artur.

No ano seguinte cria uma grande amizade com Celso, filho do dono do café mais importante da cidade, que lhe aconselha certas leituras e o inicia nos prazeres carnais, levando-o ao “Catequero”, onde conhece Flora.

Cinco anos passados, envolve-se amorosamente com D. Céu, por iniciativa dela. Durante algum tempo vivem uma paixão escondida, com encontros fortuitos e troca de cartas.

O sr. Augusto despede-o. Terá sabido do caso? É uma interrogação que fica no ar. Celso emprega-o no café. Mais tarde o sr. Augusto, promove-o a sócio gerente da firma. Atacado pela doença, o comerciante suicida-se. Os rumores são muitos. Os dois amantes acabam por casar e vivem anos de grande paixão e felicidade. O tempo e o destino encarregam-se do encontro com os tios, na quinta do Minho, quando Céu já dá mostras da sua doença que a leva à morte. Silvestre, depois de um período de grande tristeza, casa com Ema.

* * * * *

Quando Jorge Luís Borges, referindo-se a A Morte de Ivan Illitch (Tolstoi), como

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uma das histórias mais admiráveis da Literatura, termina dizendo que nela “marcam encontro o conhecimento do homem e a perfeição literária”1, ocorre-nos ao espírito, formular o mesmo juízo para a obra de António Passos Coelho.

Ou então, contemplando o inicio destas “memórias” (os primeiros quatro capítulos), diremos como à época o jovem Cesare Pavese, no seu diário a 13 de Outubro de 1936, dizia sobre o início de Ferragus ou sobre o início da segunda parte de Splendeurs et misères des courtisanes, de Balzac: “É sublime. É Baudelaire que se anuncia”2.

Sobre o estilo (quanto ao léxico e sintaxe) não poderemos dizer de António Passos Coelho, o mesmo que Marcel Proust nas suas Observações sobre o Estilo, disse de Stendhal3. Em Passos Coelho, o vocabulário e a gramática soam como notas musicais.

Mesmo o calão utilizado, principalmente nos diálogos cujo assunto passa pelo feminino é oportuno, fazendo sorrir o leitor.

As descrições dos personagens, sempre expostos de forma graciosa, são breves e originais, tratadas de relance, após uma breve apresentação das mesmas, no início dos capítulos.

A escrita melancólica do autor que entristece o leitor, criando-lhe até alguma angústia e vazio quando faz o retrato real da pobreza, da doença, do abandono, do desprezo, e outros infortúnios dos seus personagens, torna-se viva, cheia de força, à semelhança da de Mark Twain, em Huckleberry Finn4, quando impregnada do cómico, como nas reflexões do pequeno Silvestre sobre os Santos de Chaves (p.87), as diabetes do sr. Augusto (p.99), ou como nos diálogos a sós com Celso, nos diálogos com as meninas no “Catequero”, ou nos diálogos com Céu, em momentos de reconforto.

E esta vivacidade é fruto da sua natureza. Vasco Pulido Valente, em entrevista recente5, dizia que os romances se escrevem até aos 40 anos. A António Passos Coelho acrescentam-se outros tantos (46) e parece Arthur Rimbaud com 16 quando escreveu aquela obra-prima: Iluminações6.

Como os grandes escritores, o autor destas “memórias” tem uma escrita límpida e é um conhecedor da natureza da alma humana.

Auscultou de perto, como homem e como médico, a pobreza humana tão bem ____________________

1 A Biblioteca de Babel (Colecção de literatura fantástica dirigida por Jorge Luís Borges), contos russos, Ed. Presença, 2010, pp.11-12.

2 CALVINO, Ítalo, Porquê Ler os Clássicos? Teorema, 1994, p. 143.3 Cf. ECO, Umberto, Sobre Literatura, Difel, 2003, p. 167.4 Revejam-se as situações caricatas presenciadas pelo personagem principal deste livro, ao longo

da sua viagem pelo Mississípi. Cf. TWAIN, Mark, As Aventuras de Huckleberry Finn, Relógio D’Água, 2009.

5 Jornal i, 07/05/2012, p. 27.6 RIMBAUD, Arthur, Iluminações, Gradiva.

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tratada em toda a sua obra, num realismo desconcertante como só os grandes o fizeram7 – Leonid Andréev (Lázaro8), Emílio Zola (Germinal9), John Steinbeck (As Vinhas da Ira10), ou Torga nos seus contos (Conto de Natal11), por exemplo.

Os anos vividos na Peneda, essa pequena povoação do Douro, situada entre o Marão e o Alvão, são tempos de uma pobreza brutal. A promiscuidade de Germinal está implícita na descrição das divisões da casa da Peneda: três, separadas por cortinas.

A vida miserável que padeciam, pois não raras vezes se alimentavam apenas de caldo, sem tempero, era fruto de tanta miséria que andavam descalços no Inverno e a roupa era remendo sobre remendo. O protagonista desta história chegou a andar coirapato durante o dia para a tia lavar, corar e secar a sua única roupa.

E Silvestre, já casado com Céu, numa visita que faz aos tios, à quinta do Minho onde eram caseiros, lembra-se dela nos rigorosos invernos com as “socas gastas”, os “peitos desnutridos”, a “amassar o pão das duas broas”, a maior destinada para a semanada de trabalho do tio e a outra, a mais pequena, para as restantes sete bocas.

Momento tão espectacular como aquele lembrado por Primo Levi, autor d’O Sistema Periódico12 e de Se isto é um homem. Em Auschwitz, no laboratório onde o haviam posto a trabalhar, conheceu um homem “ desastrado e não muito esperto, que não era nazi”. Ajudou-o com coisas tão simples como arranjar sapatos. Diz-nos Levy numa das suas entrevistas: “Isto era uma vantagem porque as tamancas de madeira eram uma tortura. Ainda tenho cicatrizes”.

António Passos Coelho é duro quando trata de temas pertinentes como o aborto (Zélia13), tornando-se moderado quando critica o regime predominante no tempo da acção. Moderado, mas incisivo. A leveza do sr. Xando quando critica o sistema, ou quando o faz o Amigo Celso, é uma crítica sábia tão ao modo da famosa afirmação de Lessing, como nos lembra Anaah Arendt: preferia “deixar em paz aqueles em quem toda a gente bate”14. Mas como Jürgen Habermas, não deixa de dar a sua contribuição para uma opinião pública crítica15. O leitor é chamado à reflexão.

O autor destas “memórias”, à semelhança de Kierkegard, Dostoievski ou Nietzsche, também considera “interessantes” as questões religiosas e teológicas, pois

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7 George Steiner, com razão, refere-se aos escritores russos do séc. XIX.8 Cf. A Biblioteca de Babel (Colecção de literatura fantástica dirigida por Jorge Luís Borges),

contos russos.9 Livros de bolso Europa América.10 Livros do Brasil, 2007.11 Contos, Dom Quixote (1ª ed.), 2001.12 Teorema, 2012.13 Fronteira do Caos, 2008.14 ARENDT, Anaah, Homens em Tempos Sombrios, Relógio D’Água, 1991, p. 15.15 Sobre Habermas, acerca desta questão, basta consultar SCHWANITZ, Dietrich, Cultura, Dom

Quixote, 2004, p. 372.

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embora fugazes, estão sempre presentes na sua obra. Como são evidentes nas reflexões do sr. Xando ou da D. Guida.

Se moralmente a conduta de Silvestre e Céu nos não pareça a mais adequada, está impregnada de modernidade e, o autor, como Baudelaire16 não é arrastado pelo pessimismo, pelo desencanto.

É uma conduta própria da natureza humana. A química existente entre contrários é hoje objecto de estudo por parte da Ciência. Céu tem amor à vida (apaixonando-se perdidamente por Silvestre) e como nos diz Albert Camus n’ OAvesso e o Direito17, “ Não há amor à vida sem desespero de viver”. Os anos que viveram esse amor, antes e depois do suicídio do sr. Augusto, são anos de intensa alegria, de intenso amor e desejo. Apenas quebrados pela doença de Céu.

Contudo, o comportamento dos protagonistas é de preocupação constante em não molestarem terceiros. Existe uma filosofia de valores. Os encontros, as cartas, assim o demonstram. Quando Céu engravida, a preocupação de Silvestre é grande porque o sr. Augusto “não merece o vexame”.

À semelhança de Hermann Broch, existe em A. Passos Coelho um padrão ético18. Segundo Broch, o “valor” inerente à vocação do homem de negócios, o valor pelo qual tudo deve medir-se e que deveria ser também o único objectivo da actividade comercial, é a honestidade19. Ou, pelo menos, como o Crusoe de Defoe, onde o homem de negócios é respeitoso das normas20.

No autor destas “memórias” esse padrão está presente em todas as páginas. Absolutamente contrário à expressão de “negócios são negócios” que contém em si mesma a desonestidade do especulador sem escrúpulos, do usurário21. Repare-se nos conselhos dados pelo sr. Augusto a Silvestre no Cap. 11. Ao transmitir-lhe os cinco mandamentos do bom empregado frisa que este deve ser honesto, tanto para a firma que lhe paga, como para os fregueses que nela se abastecem. E acrescenta: “Quero fazer de ti um homem de bem” (p. 91). E destina-lhe um trabalho próprio para a idade, estabelecendo-lhe um ordenado (p. 81).

O próprio Silvestre, já sócio gerente da loja, cumpre com o prometido ao falecido Augusto, estabelecendo uma reforma condigna ao Guilherme.____________________

16 Acerca de Baudelaire, Cf. o ensaio de Walter Benjamin em Modernidade, Assírio & Alvim, 2006. E ainda o ensaio de Marshall Berman em Tudo o que é Sólido se Dissolve no ar, ed. 70, 1989. Como o próprio autor refere na página 160, é fundamentado no ensaio de Benjamin. Embora com elementos e conjuntos diferentes.

17 Livros do Brasil, 2007, p. 19.18 Aliás, já em Platão encontramos instrumentos com que “medir” a conduta humana.19 Cf. ARENDT, Hanaah, op. cit. p. 145.20 (prefácio de J.M. Coetzee), Relógio D’Água, 2009.21 Uma ética que se aproxima da “moral Kantiana”. Segundo Kant, deveremos tomar os outros

sempre como um fim e nunca como um meio. Proposição contrária à de Maquiavel : “Os fins justificam os meios”.

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O escritor que também é médico, não deixou de abordar pormenores da profissão como o sonho. Os sonhos de Céu, foram aqui tratados como foram interpretados, descritos e comentados por Jerónimo Cardano22, também ele médico famoso, no De consolatione23, o famoso livro que muitos especialistas de William Shakespeare, acreditam ser o que Hamelet está a ler quando entra em cena no segundo acto juntamente com Polónio. Onde se diz (em Cardano): “ É claro que o sono mais doce é o mais profundo, quando estamos como mortos e não sonhamos nada, enquanto é de grande incómodo o sono leve, inquieto, interrompido por vigílias, visitado por pesadelos e visões, como costuma acontecer aos doentes”. Ora era o que acontecia a Céu. Tinha insónias, e a doença já se fazia sentir.

Da mesma forma que nos diz Umberto Eco acerca de Borges, diremos nós de António Passos Coelho: conclui depressa dizendo tudo. Estaremos assim perante o conceito de brevidade ou de rapidez da escrita, lançados por Ítalo Calvino em Seis Propostas para o Próximo Milénio24. Característica dos grandes narradores, lê-se em Walter Benjamin.

Na narrativa Reencontro inesperado, que faz parte da obra Cofrezinho do Nosso Amigo Renano, a dado passo, o incomparável Johann Peter Hebel, viu-se na necessidade de tornar evidente que tinha passado uma série de anos. Enumerou sucintamente vários factos históricos, iniciando-os com o terramoto de Lisboa e acabando com Napoleão a conquistar a Prússia e os ingleses a bombardearem Copenhaga. Repare-se como António Passos Coelho no 25º capítulo nos dá conta como “decorreram vertiginosamente os anos”. Inicia com a desistência da candidatura do general Norton de Matos (Fev. 1949), para concluir com o início da luta armada nas colónias portuguesas em 1960-61.

Ora como nos lembra Walter Benjamin, o mais importante critico literário alemão do período entre guerras (diz-nos Hannah Arendt), esta forma breve de escrita, e a tendência para assuntos de interesse prático, como característica de muitos narradores natos, “tem a ver com a verdadeira essência da narrativa”25.

Na verdade, António Passos Coelho, seguindo o pensamento de Benjamin, é um dos últimos narradores. Porque acumulou experiência, e é ela a fonte onde todos os narradores vão beber.

Lesskov, que na opinião de Tolstoi era um dos maiores narradores russos, viajou por toda a Rússia como representante de uma firma inglesa. Teve assim oportunidade para desenvolver nas suas narrativas temas diversos. Com António Passos Coelho, aconteceu o mesmo. Ao longo da sua já extensa vida, viajou por dentro e por fora do país.

A narrativa, contém em si, oculta ou abertamente, uma dimensão utilitária, que pode consistir num ensinamento moral, outras vezes numa instrução prática, e ainda ____________________

22 Muito antes de Freud.23 Traduzido para inglês em 1573, porque o autor o tinha escrito num rude latim.24 Teorema, 1990.25 Sobre Arte, Técnica, Linguagem e politica, 1992. p. 31.

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nalguns casos num ditado ou norma de vida. O narrador é sempre alguém que sabe dar conselhos, utilizando a sua narrativa com objectivos didácticos (como Brecht fez com as suas peças de teatro26), diz-nos Benjamin, para quem, o fundamental da narrativa, a sabedoria, estava a morrer. Nestas “memórias” confrontamo-nos com tudo isto. A titulo de exemplo, refiram-se os conselhos que o sr. Augusto, ou o sr Xando (p.71), transmitem a Silvestre.

Mas além de grande narrador, o autor destas “memórias” é também o romancista do indivíduo na sua solidão.

Enquanto que no conto o leitor está na companhia do narrador, o leitor do romance está só. Perspectiva que, como sabemos, foi transformada por Diderot, com lugar entre os pais da literatura contemporânea, quando no seu anti-romance27 pretendeu que o leitor passasse a participar na história narrada, vivendo-a28. Em António Passos Coelho, narrador e romancista confundem-se. Quando pára um, começa o outro e vice-versa.

Porém, a obra de António Passos Coelho é grande, de garra universal29, sobretudo porque estão aqui reunidos os pilares tradicionais da cultura europeia: a cultura Judaico--Cristã e a Greco-Romana.

No lugar do guerreiro nobre, a cultura judaico-cristã colocou a mansidão do cordeiro que enfraqueceu a compreensão homérica da excelência, como notaremos adiante. E, de facto, em Silvestre nota-se essa mansidão, essa humildade cristã. A bondade de Silvestre (que também é fruto do seu sofrimento atroz ao longo da vida) demonstrada em inumeráveis momentos da obra, só é comparável à de Jacinto d’A Cidade e as Serras de Eça30, ou à de Waldemar Gurian, aquela enciclopédia ambulante que Hannah Arendt nos deu a conhecer. Gurian que só se “sentia atraído pela inteligência e pela criatividade espiritual”, esquecia-se desses critérios habituais quando tinha que se desviar para ir ao encontro das vítimas da injustiça, dos deserdados, dos oprimidos, daqueles que a vida ou os homens tinham maltratado.

E a sua compaixão demonstrada em momentos como o da prostituta do Porto, ou como quando reza uma oração sempre que vai à missa a Cesarinho, é apenas comparável com a de Bertolt Brecht, quando se revoltou ao lado de todos os famintos: “Dizem-me: Come e bebe! Alegra-te, já que o tens! / Mas como posso eu comer e beber, quando / Tiro ao faminto o que como, e / O meu copo de água falta ao que morre de sede?”31.____________________

26 Cf. ARENDT, Hanaah, op. cit.27 Jacques o fatalista e o seu amo.28 Aquilo que à época, era pretendido por todos os romancistas.29 Embora muito pessoal em certos momentos, como acontece com todos os grandes escritores.30 Partindo de situações antagónicas – Jacinto tem tudo, Silvestre nada tem31”Aos que virão a Nascer”, trad. Paulo Quintela, Poemas e Canções, p. 245. O mal de nós e do

próprio Brecht, foi quando se ligou ao Partido Comunista. E quando fez a apologia de Estaline quando já na Europa se sabia dos seus crimes. Apologia que não aparece nas suas Obras Completas.

Outros poetas, porém, como Mandelstam (de S. Petersburgo), tiveram a coragem de compor

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Contudo, além da bondade cristã, é aqui bem visível o estoicismo romano quando é “atropelado” pelas adversidades, quando resiste com lealdade às vicissitudes da vida: a perda da mãe, a perda da sua primeira família (dos tios e primos) por necessidades económicas, a perda da sua segunda família (a de Lamego) por capricho da irmã de Xando, ou a perda de Céu.

Todavia, é uma obra maior porque nela está implícita a tradição grega.Como os gregos do tempo de Homero ou de Arquíloco32, a sua obra recusa o

mundo desencantado no qual hoje vivemos. E abraça o mundo encantado de Homero, pleno, como estava, de gratidão e espanto33.

Na verdade, os fenómenos de gratidão e admiração constituem o pano de fundo de todo o modo de compreender a existência humana de Homero. É isto, para Homero, o paradigma da excelência. E este paradigma está presente em toda a obra do autor destas “memórias”, quando a dado passo, Silvestre se espanta com a sedução de D. Céu, ou com a proposta do sr. Augusto de o convidar para sócio gerente da Casa Nóvoas. Mas sempre grato a quem o ajudou. Aos tios, ao sr. Xando e D. Guida, a Céu, ao sr. Augusto. Este sentimento está sempre presente nas suas reflexões. Que materializa, por exemplo, quando oferece o cordão de ouro à tia e à prima Graça e, mais tarde, a carteira de pele com duas notas, ao tio.

E se Ésquilo transmitiu nas suas peças, intensa alegria34, o mesmo se pode dizer da obra de António Passos Coelho35, na qual, tal como na de Sófocles, se encontram momentos de escrita sublime! Onde a harmonia musical da palavra se confunde com a elegância de uma fórmula matemática bela.

A grandeza que nos transmitem os grandes trágicos é de que (para além dos nossos desejos), as coisas são como são. A beleza de Guerra e Paz é que a agonia do príncipe André se conclui com a morte, por mais que isso nos custe, diz-nos Umberto Eco. Com Céu sucedeu o mesmo.

Ao contrário de Stendhal, que descreve a batalha de Waterloo, em Cartuxa de ____________________

Outros poetas, porém, como Mandelstam (de S. Petersburgo), tiveram a coragem de compor poemas onde criticavam a conduta de Estaline. O poema 286. Foram buscá-lo em Maio de 1934. Após terríveis sofrimentos físicos e mentais, morreu num campo de passagem, perto de Vladivostok, quatro anos depois.

32 Autor por quem os antigos gregos tinham uma consideração igual à que tinham por Homero. Viveu no séc. VII, e era um poeta lírico. Do grupo dos jâmbicos (ou iâmbicos). Iâmbico, diz-se do verso composto de iambos – Iambo, que ou o que compõe uma unidade de tempo breve seguida de outra longa (diz-se de pé métrico no sistema de versificação greco-latino).

33 DREYFUS, Hubert & KELLY, Sean Dorrance, Um Mundo Iluminado, lua de papel, 2011.34 E terror. Que não vemos em A. Passos Coelho, mas onde são observadas várias tragédias

individuais.35 Nesta história, todos os personagens principais são atingidos pela tragédia; a do próprio Silvestre,

a de D. Guida, a do sr. Augusto, e a de Céu. Contudo tem páginas de intensa alegria.

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Parma, com os olhos de Fabrício (Del Dongo), que está dentro dela e não compreende o que se está a passar, Victor Hugo, n’ Os Miseráveis, descreve-a com os olhos de Deus. Vê-a do alto. Se Napoleão tivesse sabido que para lá da ponta do planalto de Mont-Saint-Jean havia um precipício – o seu guia nada lhe dissera –, os couraceiros de Milhaud não se teriam abatido aos pés do exército inglês. E se o pequeno pastor que fazia de guia a Bülow tivesse sugerido um percurso diferente, as tropas prussianas não teriam chegado a tempo de decidir a sorte da batalha.

´´É isto que nos dizem todas as grandes histórias, quando muito substituindo Deus pelo destino, ou pelas leis inexoráveis da vida” – continua Eco36.

É, pois, isto que nos dizem estas “memórias”; o seu autor apenas substituiu Deus pelo destino, e do alto observamos o pequeno Silvestre a ser enredado pelo destino a que não foge; aceita-o com bondade e segue o caminho sem se desviar. Sem revolta. Aceita os tios e os primos, a família de Lamego, a de Chaves37, o amor e a morte de Céu.

Imaginemos que o pequeno Silvestre concretizava a ideia que lhe viera à cabeça, em Lamego: fugir para junto dos tios. Ou se aceitasse a proposta da senhora da Quinta da Formiga de Tabuaço, D. Laurinda, com quem estabelece diálogo na viagem para Chaves.

Fintava o destino, mas a história seria outra.

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36 Sobre Literatura, Difel, 2003.37 No caminho o destino coloca-lhe a senhora de Tabuaço, no comboio, mas ele segue.

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A ermida do Senhor dos Aflitos,hoje da Boa Viagem, no Atalho, aos Agueirinhos, Vila Real: Lugar e história

Joaquim C. Barreira Gonçalves*Fernando M. Barreira C. Silva**

Em Vila Real, num pedaço de território muito limitado, o Bairro de Santa Margarida, deparamos com cinco cruzeiros. O de maior valor arquitectónico é, sem dúvida, o de Santa Teresa, a meio da Rua da Guia; mais abaixo nota-se o do Senhor da Boa Morte; depois, a seguir á ponte que usa a mesma designação do bairro, no Largo de S. Lázaro, surge outra cruz registando na face voltada para a capela um crucifixo e da outra banda a imagem de Stº. António; no cimo da Rua Sargento Pelotas, no Largo do Prado, observamos o cruzeiro dos devotos do Senhor dos Desamparados.

Mas voltando ao Largo de S. Lázaro, aí muito perto, no caminho dos Agueirinhos, em local só, agreste e arredado da agitação da cidade, encontramos a capelinha que dá guarida ao cruzeiro do Senhor da Boa Viagem, antes ocupada pelo do Senhor dos Aflitos. Daqui avista-se um agradável panorama, tendo como horizonte o antigo “Caminho da Fontinha”, vulgo Avenida Marginal, de toponímia oficial Avenida 1º de Maio1, enquadrado pelas rudes escarpas da Raposeira e dos Agueirinhos e, no sopé, o assustador “Poço Romão”, modelado nas fragas do remexido rio Corgo.

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1 Actas da CMVR.

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Ermida do Senhor da Boa Viagem2

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2 Fotografia de Fernando M. Barreira C. Silva.3 Reprodução de fotografia da Col. Herdeiros Eng. António Feliciano da Costa Lobo Fernandes,

1897.

No topo da foto, a zona da Fontinha, no sopé o rio Corgo, 18973

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Até aos anos sessenta do século passado, desde esta zona do “Poço Romão” ao sítio do “Frontouro”, cerca de cem metros a jusante, foi espaço lúdico preferido da juventude do Bairro de Santa Margarida e da Fontinha. Aí praticavam os desportos radicais da época, como o pular dos fraguedos salientes nas ravinas para o rio, qual bungee jumping de hoje, também testar quem possuía maior fôlego debaixo de água, ou apanhar barbos à mão na profundeza daqueles poços. Alguns residentes ainda recordam a personalidade do “Sete-foles”, com uma caixa torácica capaz de armazenar uma botija de oxigénio.

Ainda, até há pouco tempo, a zona envolvente à ermida era usada pelas donas de casa para secar roupa ao ar livre, pendente de cordas ou espalhada pelas copas dos arbustos rasteiros.____________________

4 Fotografia de FMBCS.

A mesma perspectiva, em Janeiro de 20014

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A pequena ermida está encostada ao contraforte que suporta o pilar Norte da popularmente designada “Ponte metálica”, superiormente autorizada a usar a designação “Ponte Conselheiro António de Azevedo”5, que não chegou a ser geralmente usada. Era precisamente sobre este rochedo que ficava localizado o adro e a capela de S. João da Fraga, que o Memorial de Vila Real6 descreve com pormenor, arrasada na sequência do projecto de 1894, para construção do dito tabuleiro. Projecto que foi executado nos dez anos seguintes, ligando a Rua de S. João, no Cabo da Vila, hoje Rua Miguel Bombarda, com o então designado vale de Vilalva, no sitio da Raposeira, actual Av. 5 de Outubro, com o propósito de classificar como distrital a estrada que ligava Vila Real á estação de caminho-de-ferro de Covelinhas7, uma vez que os carris só chegariam à capital transmontana no ano de 1906.

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5 Informação do Ministro das Obras Públicas, de 3 de Setembro de 1904, em que autoriza a CMVR a dar o nome do Conselheiro António de Azevedo (Castelo Branco) à Ponte Metálica.

6 Memorial do Concelho de Vila Real. AMVR.7 In “Ponte metálica no rio Corgo / Paulo Barros. 18858 Reprodução de fotografia da Col. Herdeiros de Achiles de Almeida. Finais do séc. XIX.

Ermida do Senhor da Boa Viagem entre as capelas de S. João da Fraga,a poente, e a de N. Srª. da Guia, a nascente.8

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Começavam a nascer os esteios da nova “Ponte metálica” sobre o Rio Corgo.

A construção da ermida ficou a dever-se à iniciativa do casal Francisco Domingues e Maria Victoria manifestando a disponibilidade para adquirirem uma porção de terreno no sítio do Atalho, que ficou expressa na Acta de Vereação da Câmara Municipal de Vila Real, de 23 de Setembro de 1833.11

Aspecto após ter sido arrasado o acesso à capela de S. João da Fraga e ao lugar do Atalho, entrada Norte da “Ponte metálica”9

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9 PEG [Paulo Emílio Guedes], Lisboa, 1904, Colecção Elísio Amaral Neves.10 Reprodução de fotografias da Col. Herdeiros Eng. António Feliciano da Costa Lobo Fernandes,

1897.11 AMVR / Actas da CMVR.

A nova ponte em 1907, notando-se na parte Norte, do lado esquerdo,o acesso ao sitio do Atalho10

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Vereação de 25 de Setembro de 1833Neste Senado presente Francisco Domingues / desta Villa, por elle foi dito

se Louvava para / a vistoria que hade ter lugar no citio do ata / do atalho em os Louvados Francisco Roiz / Frutuoso, José Rodrigues do (?) e António /Roiz Novais, e pelo Procurador do Conselho / foi aprovado o ultimo nomeado, e se louvou / pela sua parte em Francisco José de Oliveira / Joaquim Pereira da Cunha, e João Pereira, / e pelo dito Francisco Domingues foi aprovado / o terceiro elleito, aos quais se deferira o jura / mento do estillo e assinei De Francisco+Domingues13

A nova ponte em 1907, notando-se na parte Norte,do lado esquerdo, o acesso ao sítio do Atalho12

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12 Reprodução de fotografia da Col. Herdeiros de Achiles de Almeida. Finais do séc. XIX.13 AMVR / Actas da CMVR.

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Porém, a aquisição daquele terreno baldio, ao Município, só veio a verificar-se em 29 de Janeiro de 1840. Não conhecemos o motivo verdadeiro de tal atraso, que não era normal nas louvações efectuadas pelo Município, uma vez que nessa época as autarquias estavam ávidas de receitas. Afinal, nada divergente dos dias de hoje. Contudo, alvitramos que esse atraso se pode ter verificado por duas ordens de razões.

Desde logo a perplexidade dos devotos do Senhor dos Aflitos, Francisco Domingues e Maria Victoria, perante a instabilidade politica no País, e em especial no Senado vila-realense, onde algumas vereações chegaram a durar apenas dias, criando, quase, um vazio de poder para legalização do contrato. Refira-se que desde a época da louvação, 1833, até à efectivação da escritura, em 1840, o Senado de Vila Real teve quinze Presidentes e noventa e nove Vereadores, alguns deles alternando conforme a orientação ideológica vigente.15

Depois, e não menos importante, a publicação, em 30 de Maio de 1834, do decreto de supressão das Ordens Religiosas, que extinguia os conventos, obrigando ao seu encerramento e à “nacionalização” dos seus bens.16

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14 Reprodução de fotografia da Col. Herdeiros de Achiles de Almeida. Finais do séc. XIX.15 Presidentes e Vereadores do Município de Vila Real: do Liberalismo á República / Pedro Abreu

Peixoto e Joaquim Barreira Gonçalves. Câmara Municipal de Vila Real. 16 Decreto de 30 de Maio de 1834.

Pilar Norte da “Ponte metálica sobre o rio Corgo” e, em baixo,o contraforte que serve de parede fundeira à ermida 14

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Ora, o panorama do país para uma família modesta era muito pouco animador, mesmo para a construção de uma simples ermida, uma vez que Francisco Domingues exercia a humilde actividade de “pózeiro” (caiador) e se preparava para despender algum património que poderia, eventualmente, ter o mesmo destino dos bens dos conventos.

Passaram-se, então, sete anos até que se deu por oportuna a data, dia 29 de Janeiro de 1840, para celebração da Escritura de emprazamento do chão no sítio do Atalho, registada no Cartório Privativo da Câmara Municipal de Vila Real. Porém, como vamos ter a oportunidade de reflectir, depois de lermos o documento, o terreno adquirido não foi só para instalação da pretendida capelinha, mas, pelas medidas de que vamos tomar noção, integrava a ermida, ainda hoje levantada, e a casa dos instituidores, que fotos da época registam com pormenor.

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17 Reprodução de fotografia da Col. Herdeiros de Achiles de Almeida. Finais do séc. XIX.

A ermida e a moradia dos instituidores17

Escriptura de emprazamento fateosim (?) e perpe- / tuo de hoje para todo o sempre que fas a / Câmara Municipal desta Villa Real a Francis / co Domingues, e sua Mulher Maria Victoria.

Saibão os que este publico instrumento / de escriptura d´emprazamento fateosim e / perpetuo desde hoje para todo o sempre, / ou como em direito melhor lugar haja, / e dizer possa virem que no Anno / do Nascimento de Nosso Senhor Jezus / Christo de mil oito centos e quarenta /

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/ aos vinte e nove dias do mez de Janeiro do dito / anno nesta Villa Real e Secretaria da Ca / mara Municipal perante mim João Tei / xeira Cabral de Carvalho Escrivão, e Tabelião pri / vativo da mesma Camara aparecerão pre / sentes em suas proprias pessoas, de uma / parte como primeiro outorgante Anto / nio Ferreira de Carvalho Procurador Fiscal da / Camara Municipal desta Villa Real, e da outra / como segundos outorgantes Francisco Domingues / natural do Reino da Galiza, ____________________

18 Cartório Privativo da Câmara Municipal de Vila Real,

Inicio da Escritura de Emprasamento18

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e sua Mulher Ma / ria Victoria natural desta Villa, e hoje resi / dentes no sitio do Atalho pessoas reconhecidas / de mim Escrivão pelas proprias do que dou fé, / e pelo outorgante Fereira de Carvalho / Procurador Fiscal da Camara na minha pre- / sença, e na das Testemunhas ao diante no- / meadas, e no fim deste instrumento assi / gnadas, foi dito, que visto os segundos ou- / torgantes Francisco Domingues, e sua / Mulher Maria Victoria terem requerido / competentemente no anno de mil oito cen / tos trinta e tres o emprazamento de terre- / no suficiente para edificar uma caza / digo Capella no baldio do sitio do / atalho que vai para a Ponte de Santa / Margarida, para ali se venerar o Se / nhor dos Afflitos, e tendo a Camara da /quelle anno procedido com os respectivos / Louvados a Vistoria, demarcação do terreno, e lou- / vação do forô, em o dia vinte e seis de Setembro do / dito anno de mil oito centos trinta e tres, e tendo / os Louvados visto e examinado o dito terreno de / clararão que para a construção da referida Ca / pella julgavão suficiente o terreno demarca- / do pela forma seguinte; principiando a medi / ção do sitio aonde antigamente esteve a crus / do Poente ao Nascentetem de extensão vinte / e cinco varas mea digo vinte e seis varas mea / vindo esta medição a ficar a intestar com o atalho / que vai para a Ponte de Santa Margarida / findando proximo ao quintal de Custodia Maria para o lado da Cape / la de São João que vem a ser do Sul pa- / ra Norte tinha de largura dezesseis va- / ras, e deitando mais a medição desde este pon / to vindo caminhando para o dito atalho que / é do Nascente, ao Poente achavão, que tinha / de extensão vinte varas, e deitando mais a / medição do Norte para o Sul ao longo / do caminho do mesmo atalho a fixar a / onde se tinha principiado a primeira / medição achavão ter de largura quinze / varas e mea; cuja extensão de terreno lhes / parecia suficiente para a construcção, ou / edificação da mesma Capela ao qual arbi / trarão annoalmente oitenta reis de fôro co / mo consta do auto da predita Vistoria / a que se procedeo em virtude da Provizão ao / diante transcripta; o que tudo foi presen / te á Camara actual a requerimento dos em / prazantes, a qual por Acordão de dous do cor / rente mandou afixar Editais por tempo de / vinte dias afim de ver se havia quem lan / casse mior fôro do que o sobre dito, e no ul / timo dia só aparecerão os ditos requeren / tes Francisco Domingues e sua Mulher / Maria Victoria, e se obrigavão a dar a / sobre dita quantia de oitenta reis annoaes / pelo dito terreno; e sendo os respectivos / Autos assim preparados, e feitos conclu / zos à Camara está nelles proprio o / Accordão seguinte: Accordão, que visto / achar-se feita a Vistoria do terreno que se / pede para emprazamento e feita a louva / ção do fôro de oitenta reis annoais arbitrados / pelos Louvados e afixados pelo Pregueiro os / Editais, e corridos os pregões, não fouve quem / mais offerecesse em Praça; por isso mandão / que se faça escriptura de emprazamento fa / teo sim perpetuo para elle requerente Francisco / Domingues e sua Mulher Maria Victoria desta / Villa, e elle do Reino da Galiza, e residentes nesta /

mesma Villa, seus filhos, herdeiros, e successores, / e para sempre com o fôro e pensão de oitenta / reis annoaes pagos por dia de Sao João Baptis / ta de cada um anno com o Laudemio da / Lei, e mais clauzullas de melhorar, e não (?) /, e sere obedientes no pagamento, transcre / vendo-se este Accordão, e a Provizão na mes

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/ ma Escriptura, que basta ser assignada / pelo Procurador Fiscal desta Camara Villa / Real em Sessão de vinte e sete de Janeiro / de mil oito centos e quarenta Joao Teixeira / Cabral de Carvalho Escrivão da Camara Mu / nicipal o escrevi = Presidente Pereira Coelho = Rebello = Moutinho = Basto = Portela = Fiscal / Ferreira = Dom = por Graça de Deos Rei de / Portugal, e dos Algarves d´Aquem, e d´Alem / Mar, em Africa Senhor da Guiné, e da / Conquista, Navegação, Comercio da Ethi / opia, Arabia, Persia, e da India etc. Faço / Saber, que Francisco Domingues do Reino / de Galiza, e rezidente em Villa Real, á muitos annos, Me representou por sua / Petição: Que tendo devoção de dar principio a / huma Capela no sitio do Atalho, para ali se / venerar o Senhor dos Aflitos, o não podia fazer / sem primeiro digo sem que primeiro se lhe / emprazasse terreno suficiente no Baldio que ali existia, que era simplesmente / hum fraguedo, que por tanto He pedia / a Graça de Provizão para que a Cama / ra de Villa Real, / com audiencia da respectiva Camara, / Nobreza, e Povo sobre o que Mandei ou- / vir o Procurador da Minha Real Coroa, / e constar que do Pio fim a que este em- / prazamento se distina, nenhum prejui- / zo se causa ao publico. Hei por bem / que a Camara de Villa Real empraze / ao Supplicante, no baldio, e sitio cha / mado o Atalho terreno suficiente, para / se edificar a Capela de que se trata . Cum / prindo-se esta Provizão como nella se / contem , registando-se nos lugares a / quitação e valerá posto que seu effeito / haja de durar mais de hum anno sem em / bargo da ordenação em contrário. Pagou / de Novos Direitos quinhentos e quarenta reis / que se carregarão ao Thezoureiro d´elles a fo / lhas noventa e seis do Livro sexto de sua recei / ta, e se registou o conhecimento em forma / a folhas cento e dezeseis verço do Livro cento e seis do registo geral. El Rei Nosso Senhor a / Mandou pelos Ministros abaixo assi / gnados do seu Concelho, e seus Dezembargadores do Paço. Paulo Martins Teixeira / a fez em Lisbôa a vinte e seis de Junho de mil / oito centos trinta e tres = Desta oito centos reis, / e de assignaturas mil nove centos e vinte reis. / Bernardo José de Souza Lobato a fez escrever. José / António da Silva Pedroza. João de Figuei / redo Por Despacho do Dezembargo do Paço de dezenove de Junho de 1833 digo de Junho de / mil oito centos trinta e tres Francisco José / de Faria Guião = Sello = Pagou mil seis centos / reis de Sello Lisboa hum de Julho de mil oito centos trinta e tres = numero tres = Fonseca = Pagou / quatro centos reis, e aos officiais mil e dez reis / Lisboa dous de Julho de mil oito centos / trinta e tres como Vedor José Bravo Pereira / Registada na Chancelaria Mor da / Corte e Reino no Livro de officio e merces a / folhas dozentas e sessenta Lisbôa dous de Julho / de mil oito centos trinta e tres Jose Rai / mundo Antonio de Souza = Cumpra-se e / registe-se Vasconcellos. Não se continha mais / em o dito Accordão, e Provizão do que o que dito / fica, e que eu Escrivão aqui copiei, e me re - / porto aos proprios Autos que ficão no Ar- / chivo da Camara desta Villa Real que elle / Procurador Fiscal pur si, e em nome de toda / a Camara por este publico instromento / emprazado / desde hoje para todo o sempre / aos ditos emprazantes o dito terreno bal / dio assima demarcado com o fôro, e pen / são annoal de oitenta reis pagos por dia / de São João Baptista de cada um / anno, pagando os ditos emprazantes / os foros vencidos desde o dia de São João / Baptista

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do anno de mil oito centos / trinta e quatro por estarem desde en - / tão Senhores do dito terreno e da qui / adiante o pagarão no dia de seu / vencimento, com a condição, que elles emprazantes, seus filhos, herdeiros, e / successores pagarão á Camara desta / Villa Real o dito fôro em cada um / anno trazendo á mesma Camara no dia de / São João Baptista de cada anno, entrando já / com os que se achão vencidos, sujeitando--se a / auguentar e a conservar com decencia a dita / Capela, e a não deteriorala, e sim melhorar / de maneira que va em augmento, e não em de- / minuição, e a serem obedientes aos pagamentos, / e no cazo que a queirão vender o não poderão fa- / zer sem licença expressa da Camara a ver se / esta a quer tanto por tanto, e no cazo que / a não queira, e conseda a licença para ser / vendida lhe pagarão o Laudemio da Lei; / sem cuja participação, licença, e pagamento / do Laudemio não será valida a venda, e / como tal será nula; este prazo andará / sempre em uma só pessoa, sem nunca / ser pratido, nem dividido, seguindo sem- / pre a linha recta dos ditos emprazan- / tes. E logo pelo emprazantes Francisco / Domingues, e sua Mulher Maria / Victoria foi dito que per si, e em nome / de seus filhos, herdeiros, e successores se / sujeitavão ás condições declaradas na / prezente escriptura de emprazamen - / to fateo sim prepetuo com todas as / clauzullas, e condições na mesma ex- / expressas e declaradas, e se sujeitavão no cazo de / não pagarem á Camara Municipal desta / Villa Real o foro de oitenta reis annoalmente / no dia de seu vencimento, a serem por el- / le demandados, e executados, sem que ao / seu pagamento se possão opor em tempo / algum, bem como a alguã das outras / condições; ao que tudo obrigavão, não / só o dito terreno emprazado, mas todos, / os mais bens havidos, e por haver presen - / tes e futuros geralmente, que todos a / qui hypothecavão como se delles fi- / zessem expressa, e declarada mensão; e de / como um, e outros assim o dicerão, quizerão, / outorgarão, estipularão, e aceitarão eu Escri- / vão dou fé; e eu Escrivão outorguei, esti- / pulei, e aceitei, em nome das partes presen- / tes, e auzentes a quem de Direito perten- / cer; e assignaram elle Procurador Fiscal An- / tonio Ferreira de Carvalho, e pelos empra- / zantes não saberem escrever assignou / de seu rogo António Rodrigues Gaspar / desta Villa Real assignando o empra- / zante Francisco Domingues com o signal / de que uza sendo tudo testemunhas / presentes Domingos Pereira de / Carvalho Taveira Continuo da Camara, e / Joaquim José Correa Pinto amanuence / da mesma ambos desta Villa Real, que tam- / bem assignarão depois de lhe ser lida e decla- / rada po mim João Teixeira Cabral de Carvalho Escrivão da Camara Municipal / e Tabellião privativo da mesma que a / escrevi e assignei.

João Teixeira Cabral de Carvalho O Fiscal – António Ferreira de Carvalho De Francisco+Domingues Arrogo Antonio Roiz Gaspar Domingos Pereira de Carvalho Taveira Joaquim Joze Correa Pinto19

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19 Cartório Privativo da Câmara Municipal de Vila Real,

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A ermida é de feição rústica, idêntica ao alçado da habitação dos instituidores, do género cauteloso. Paredes de granito até á altura de um adulto, revestida por argamassa e protegida por ripas de madeira que lhe encobrem muita da sua beleza. A parede fundeira é de forma irregular tendo sido aproveitado o rochedo para esse efeito. A cobertura é um telheiro rudimentar a necessitar de intervenção.

A cruz é em granito, de corte quadrangular, com cerca de 3,50 metros de altura, desde a base da plataforma até ao topo, pintado de cor branca. Sobre esta cruz foi cravada outra em madeira policromada, representando, nos nossos dias, a imagem do Senhor da Boa Viagem.

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20 Reprodução de fotografia da Col. Herdeiros Eng. António Feliciano da Costa Lobo Fernandes, 1897.

Outra perspectiva da capelinha e da casa dos protectores, avistadas desde o “Frontouro”20

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A imagem policromada e devoção registada na cruz do Senhor da Boa Viagem21

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21 Fotografia de FMBCS.

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22 Fotografia de FMBCS.23 Idem.

A lanterna da ermida e o recanto de meditação anexo á capelinha22

Pormenor de um dos braços da cruz e da parede fundeira da ermida23

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24 Fotografia de FMBCS.25 Idem.26 Idem.

Local onde desembocava o caminho do Atalho, no Largo de S. Lázaro, hoje inacessível pelo portão com as iniciais CM – Câmara Municipal – aí colocado após a construção da “Ponte

metálica”.24

Um agueiro nos “Agueirinhos”25 Panorama dos “Agueirinhos”26

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27 Fotografia de FMBCS.

Pedaço de terreno nas costas da ermida do Senhor dos Aflitos, hoje da Boa Viagem, aonde os instituidores tinham a sua habitação27

* Investigador de história local / Arquivo Municipal de Vila Real** Colaborador da Biblioteca Municipal Dr. Júlio Teixeira, Vila Real.

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Camilo: o bibliófilo-antiquário e o tradutor(com base nas Cartas de Camilo ao 1.º condede Azevedo e noutras)

Maria Hercília Agarez

INTRODUÇÃO

No prólogo do livro Cartas de Camilo a Eduardo da Costa Santos, publicado no Porto em 1923, Júlio Brandão escreve, sobre a importância do epistolário camiliano: “Os seus nervos doentes, o seu feitio peninsular, o seu longo exílio em S. Miguel de Seide precisam desse desabafo. O novelista procura nas cartas uma distracção ao seu trabalho estrénuo e às suas dores cruciantes…”

Júlio Dias da Costa, autor de Escritos de Camilo, vai mais longe: “Para estudar a obra de qualquer escritor, é indispensável conhecer a sua vida, as suas paixões, os seus vícios, as suas virtudes, em suma, todos os elementos que influem nessa obra, e em Camilo, particularmente, é necessário esse conhecimento porque os seus livros a cada passo reflectem o seu estado de alma determinado pelas convulsões da sua agitada vida, sobretudo no campo profissional.”

Mas é em António Feliciano de Castilho que encontramos a alusão a um aspecto não despiciendo da correspondência do amigo e companheiro de letras e de infortúnio: a sua qualidade estética (nem sempre verificada, convenhamos). Em carta de 31 de Janeiro de 1866 o poeta cego dá-lhe um conselho: “Porque não há-de V.ª Ex.ª ter uma daquelas máquinas de copiar tão usadas hoje em dia nos escritórios dos negociantes, e reproduzir com elas as cartas que escreve, para no-las dar depois em volume impresso?”

Sabe-se que Camilo não correspondeu à sugestão, excepto no que diz respeito à Correspondência epistolar, troca de cartas entre ele e Vieira de Castro, publicada em 1874, que versam predominantemente a prisão e o degredo em África do afamado

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parlamentar, na sequência do uxoricídio, tema central do romance Glória de Vasco Pulido Valente.

Também o conceituado camilianista Alexandre Cabral aborda, no seu Dicionário de Camilo, a especificidade da correspondência em questão, afirmando: “Camilo despe-se de todo e qualquer preconceito, revelando uma franqueza e sinceridade invulgares (controladas, sem dúvida): fala dos outros e da sua própria vida (nos aspectos mais íntimos) com uma desenvoltura por vezes chocante. […] Aborda todos os temas, com um poder de síntese incrível, de harmonia com a dimensão do papel em que escrevia […] até aos queixumes da doença e desgostos familiares e às insignificâncias aparentes do quotidiano, o que significa ter sido Camilo um homem sempre atento aos acontecimentos da sua época.”

O mesmo estudioso coligiu, em seis volumes, um considerável número de cartas dirigidas a destinatários diversos, dentre os quais podem destacar-se homens das letras como Castilho, Trindade Coelho, Bulhão Pato, vários editores e o arqueólogo Martins Sarmento. Todos os documentos epistolares são seguidos de notas esclarecedoras e recheados de informações pertinentes. No prefácio que antecede o primeiro volume, Alexandre Cabral lamenta a dispersão de “milhares e milhares de cartas” “espalhadas pelos quatro cantos do mundo” e assegura que, muitas delas, foram “queimadas, destruídas, sonegadas, truncadas, retalhadas, vendidas e revendidas…”

Numa tentativa de explicar (já que nada o justifica) o caso, o ensaísta atribui-o a um fanatismo de “camiliómanos” (designação eloquente) obcecados com a imagem que do seu ídolo seria transmitida à posteridade. E escreve: “Quiseram apresentá-lo como um anjo, quando foi simplesmente um homem. Escritor de génio, mas homem”.

Como o título deste estudo explicita, tem ele por fonte primeira as Cartas de Camilo ao 1º conde de Azevedo. É autor da compilação e anotações o sobrinho deste último, 2º conde de Azevedo. Explica ele na introdução:

“Hoje que todas as pessoas visadas nas cartas pertencem à História, tendo cessado os meus naturais melindres em tornar conhecida a referência de Camilo a um fecundo escritor, há pouco falecido ainda, eu devia aproveitar a óptima oportunidade do seu Centenário para as entregar às recreações dos admiradores do notável romancista, deixando, por igual, mais documentada a sua eminente figura de homem de letras.”

A publicação acabou por sair apenas em 1926, um ano após a efeméride, e ficou a dever-se à autorização dos netos do escritor.

Francisco Lopes de Azevedo Velho da Fonseca (1809-1876) é o nome do 1º conde de Azevedo. Homem de vivências políticas, militares e literárias, foi governador civil de Braga, coronel do Batalhão de Voluntários Realistas de Barcelos, poeta, bibliófilo, erudito. Era sócio da Academia de Ciências de Lisboa, tal como o novelista. Recebeu

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o Hábito da Torre Espada e a Comenda da Ordem de Cristo. Manteve uma relação de cerimoniosa amizade com Camilo Castelo Branco com quem se carteou, como este confirma em nota ao Cancioneiro alegre: “Tenho aqui cento e tantas cartas do conde de Azevedo. Quase todas versam assuntos bibliográficos, que ele professava magistralmente”. A primeira carta datada, de Camilo ao 1º conde, é, contudo, de 1869 e a troca de correspondência prolongar-se-á até 1876, ano da morte de Francisco Azevedo.

Como pode ver-se nas cerimoniosas fórmulas de tratamento usadas por Camilo no início, no fim e no interior das cartas que dirige ao visconde/conde (Ilustríssimo, Excelentíssimo, Ilustríssimo e Excelentíssimo Sr. Visconde, V. Ex.ª, De V. Ex.ª obrigadíssimo e criado), há, entre ambos, um relacionamento um tanto distante e formal, pouco familiar, portanto, embora se tratem mutuamente por amigos. Ousaríamos mesmo afirmar haver, da parte do escritor, uma certa dose de servilismo e de subserviência perante um homem que à erudição e aos interesses bibliófilos juntava uma confortável fortuna que lhe permitia adquirir obras de elevado valor das quais o antiquário tiraria, com certeza, confortável percentagem.

Comparada a epistolografia camiliana, facilmente se distinguem os amigos dos destinatários com quem trata assuntos quase exclusivamente do foro comercial, sejam eles editores ou clientes da sua actividade de antiquário. Cartas endereçadas a A. F. de Castilho, a Vieira de Castro ou ao Visconde de Ouguela, por exemplo, são bem diferente daquelas onde os desabafos pessoais e familiares apenas espreitam timidamente por detrás de títulos de livros e respectivo valor no mercado da especialidade.

Analisando a vastíssima correspondência epistolar de Camilo, um tanto dispersa e inquantificável, de que dispomos de limitado número de publicações, base do nosso trabalho, encontramos alguns pontos em comum nas cartas endereçadas pelo autor de Eusébio Macário aos seus numerosos e diversificados destinatários. Um deles, se não o principal, o mais recorrente, é o hábito de transmitir-lhes, mais ou menos familiarmente, ora como desculpa para atrasos em respostas, ora como justificações de ausências, informações sobre os seus padecimentos, palavra mais vezes usada para falar da(s) doença(s).

Embora seja esse, também, o caso da correspondência em causa, em que o emissor, apesar da referida formalidade, se não coíbe de partilhar com o receptor as suas enfermidades em geral e oftalmológicas em particular, optámos por omitir essas referências pelas razões apontadas. Tendo-nos debruçado noutros estudos sobre o valor documental da epistolografia camiliana e das suas temáticas, enveredamos, desta vez, pela análise de aspectos menos conhecidos da actividade do “Penitente” como, por exemplo, a sua bibliofilia, a prática corrente de comercializar manuscritos e livros antigos, incluindo os da sua própria biblioteca e a prática da tradução.

De interesse se reveste, igualmente, na troca de cartas entre o conde e o futuro visconde, a abordagem que a ambos diz respeito e que se refere a uma edição monumental do Don Quixote de Miguel Cervantes, no âmbito do programa da Companhia Literária, fundada no Porto em 1874 e cujo objectivo era editar no nosso

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país obras de relevo na literatura nacional e estrangeira. Ocupa este assunto a alínea b) da primeira série de documentos epistolares designada Bibliográficas, sendo a segunda intitulada Históricas por versarem eles a incursão de Camilo pela historiografia nacional de que D. António Prior do Crato e seus descendentes é apenas um exemplo.

O BIBLIÓFILO E O ANTIQUÁRIO

No atrás referido Dicionário de Camilo, de Alexandre Cabral, obra de consulta obrigatória pela quantidade e rigor de informações nele contidas, pode ler-se:

“Tendo sido o primeiro escritor português que viveu quase exclusivamente da actividade literária – exercendo-a como profissão – C. C. B. não escapou mesmo assim à sina de ser ‘biscateiro’ noutro domínio, particularmente pouco conhecido do público em geral e até do estudioso. Referimo-nos ao pendor de bibliófilo, área que explorou com alguma eficiência e espírito lucrativo, acabando por ser considerado um especialista na matéria. Bibliófilo-antiquário foi Camilo no decurso de muitos anos.”

Na sua correspondência, Camilo dá conta das suas deslocações às três principais cidades portuguesas e a algumas terras nortenhas, sempre aproveitadas para fazer as suas pesquisas nos locais bem seus conhecidos onde sabia poder encontrar alguma raridade para si próprio ou para transaccionar. Note-se que das aquisições feitas tirava um duplo partido: aproveitava-as como fontes de trabalhos seus e depois comercializava-as, conhecedor que era do seu valor corrente.

Nas cartas cujo principal assunto é a proposta de venda de manuscritos ou de livros, Camilo mostra-se conhecedor de preços praticados em Portugal e no estrangeiro (França e Inglaterra) e dos respectivos catálogos.

Mas foi mais além. Por necessidades financeiras de todos conhecidas, chegou a ser leiloeiro dos seus próprios livros, como veremos. Procedeu a vendas parcelares da sua biblioteca (a primeira das quais em 1859) e a dois leilões com catálogos impressos: o primeiro teve lugar no Porto, em 1871, no número 66 da rua de Santo Ildefonso – residência de Eufrásia Carlota de Sá, apelidada por Aquilino Ribeiro de “hospedeira integral” de Camilo; o segundo, em 1883, em Lisboa, organizado por Matos Moreira, editor e livreiro. Sobre este último leilão escreve Camilo em carta ao editor Eduardo da Costa Santos1 de 30 de Dezembro:

“[…] A minha livraria acabou de ser vendida no dia 27; mas não sei do resultado. Continua o Matos Moreira a considerar-me morto. Eu começo a sentir um tal nojo da humanidade que não tardarei a trancar-me em Seide, e quebrar

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1 Eduardo da Costa Santos (1840-1912) – o ‘Editor-bombeiro’, jornalista, fundador da Livraria Civilização, no Porto, amigo fiel e paciente, ‘assessor’ de Camilo na resolução de problemas familiares.

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as minhas relações totalmente com o mundo. Estou cansado de ser explorado e bigodeado por este mercantilismo canalha que domina tudo.”

Ambos os leilões foram anunciados nas páginas de O Primeiro de Janeiro. O resultado do primeiro foi desencorajador. O mesmo jornal publicitou a “venda a peso” do “que restava da livraria da Rua de Santo Ildefonso. Quanto ao segundo, constituído por 1922 lotes, teve como receita líquida a quantia de 2487$625.

Em carta dirigida a António Leal e Sousa2, escrita em Lisboa no dia 17 de Fevereiro de 1869 e incluída em Camilo em Landim, Camilo diz-se “atravancado com o negócio de livros velhos” e acrescenta: “ A ocasião é excelente para comprar; agora é esperar pela ocasião de vender”.

Na obra referida e datada do mesmo ano, encontramos, em carta endereçada também de Lisboa, a Alberto Sampaio3, o seguinte:

“Estão aqui à venda alguns livros em grego, hebraico e siríaco. Em siríaco é uma bíblia magnífica. Em grego há dicionário moderno, há o Xenofonte, com o texto grego e a versão latina. São 11 ou 12 volumes que decerto custariam muito, e mos ofereceram por 14$000 reis. Veja se isto pode convir aos seus estudos, e responda-me, caso os queira, com brevidade.”

Das dificuldades económicas que infernizaram, também elas, a sua existência, fala o homem desde os seus vinte e cinco anos de idade. Um dos amigos a quem mais vezes terá pedido dinheiro e de quem se socorreu para vender livros seus, foi José Barbosa e Silva4. Exemplificamos com extractos de duas cartas de 1850 que se encontram no primeiro volume da Correspondência de Camilo de Alexandre Cabral:

“Estou resolvido a dar por 3$ reis o meu Byron, e Volney a um livreiro. Obsequeias-me muito ficando tu com eles; e nesse caso manda um teu criado para tos enviar hoje mesmo porque estou na mais urgente penúria.”

“Dá-me pelos meus livros 28 800 reis – ou atiro com esta vida ao inferno. Estou como não imaginas. No próximo vapor vou ao Porto. Muito preciso falar contigo antes da minha partida porque hei-de ali à tua ordem entregar o que te devo, e não torno a Lisboa.”

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2 António Vicente Carvalho Leal e Sousa, dono da Quinta do Mosteiro, em Landim, onde Camilo se hospedava e onde escreveu alguns dos seus romances.

3 Alberto Sampaio (1841-1908) nasceu em Guimarães e formou-se em Direito em Coimbra e foi íntimo de Antero de Quental. Notabilizou-se como historiador.

4 José Barbosa e Silva pertencia a uma família influente e abastada de Viana do Castelo. Foi um episódico poeta e jornalista, deputado, militante do Partido Progressista. Tratava-se por tu com Camilo com quem se carteou regularmente.

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Carta de 31 de Março de 1969, ao 1º conde de Azevedo:

“[…] No próximo mês de Maio vou fazer o leilão da livraria que foi do Visconde de Azurara5. Ainda não vi tão completa e ponderosa colecção de livros latinos e gregos prenhes de erudição, capaz de invocar 300 frades maurinos. […]”

Atormentado com o fantasma das dívidas, a agravar o da cegueira e da situação familiar, sentindo aproximar-se uma morte redentora, Camilo fez outras diligências no sentido de obter, com a venda do seu património livresco, algum alívio. Assim, tentou vender, em 1882, livros e documentos manuscritos ao Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro e, em 1886, recorreu, para o efeito, ao governo português. E, poucos meses antes de morrer, em carta de Março de 1890, de regresso da sua derradeira viagem a Lisboa por causa dos olhos, escreve a Freitas Fortuna6:

“Se aqui vier como prometeu, e nós muito desejamos, tenciono entregar--lhe todos os meus livros para aí se venderem em leilão, a fim de ver se com o produto posso saldar as nossas contas.”

Ludovico de Meneses, na sua obra Camilo – Documentos e factos novos, faz uma interessante compilação de textos epistolares do escritor agrupados tematicamente, reservando um curto espaço a “Venda da Livraria”, com cartas datadas do período 1866-1884. Delas reproduzimos os extractos das que são dirigidas, respectivamente, a António Feliciano de Castilho, Tomás Ribeiro e a Silva Pinto. A primeira revela a ironia amarga de um homem que, mesmo em horas de desânimo, mantém a capacidade de troçar de si próprio:

“Tinha 2 contos de reis de lucros, economias de vinte anos de trabalho: começo a vendê-los para comprar uma horta. Enquanto uns fazem luz, eu vou fazer couve-galega e repolhos das crónicas dos frades.”

“Por outro lado seria bom para mim, porque eu escrevo sem livros. Vendi a minha livraria para pagar umas dívidas, e não lesar o pecúlio ao Jorge. Receei que

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5 João António Salter de Mendonça (1746-1825). Entre outras actividades religiosas e políticas, foi guarda-mor da Torre do Tombo.

6 João António de Freitas Fortuna foi, de acordo com factos como o de ter sido uma das testemunhas do casamento serôdio de Camilo, de ser no jazigo da sua família que quis ser enterrado e de se tratarem por irmãos, um dos mais fiéis amigos de Camilo. Foi um dos seus editores mas, mais do que isso, foi um confidente incondicional que conhecia tão bem o percurso do novelista que este lhe pediu para fazer a sua ‘biografia moral’: “Descreva o longo calvário dum grande desgraçado, sem generosidades mas com justeza; corrija [e castigue] os erros publicados […]; arranque as máscaras aos miseráveis, pois que então não estarei vivo, e não poderei ver-lhes as faces vincadas pelo tagante, visto que as têm menos coriáceas que as consciências”.

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por minha morte, o Nuno vendesse a livraria a peso. Às vezes, tenho saudades dela; mas invoco a reflexão, e aplaudo-me por tê-la vendido.”

“Estou catalogando 4.000 volumes, para, passado algum tempo os leiloar. Meus filhos são ignorantíssimos. Logo que eu feche os olhos, vendem isto às mercearias.”

Voltemos às Cartas de Camilo ao 1º conde de Azevedo. Na alínea Bibliografia

Geral do volume em causa, constam missivas de que extraímos passagens específicas. Para melhor compreensão, optámos por actualizar a ortografia e por escrever por extenso as muitas abreviaturas que são uma das constantes no Camilo epistolar.

Carta de 4 de Março de 1869

“Já encontrei 3 sermões de Auto de fé em Goa. Um deles é lá mesmo impresso. Estes tristes documentos da nossa religiosidade na Índia, consideram--se aqui mais raros e por isso mais valiosos. Eu não quis sem consultar V. Ex.ª responder ao preço em que os puseram.

Parecem-me caríssimos por 3:000, mas o que para mim é caro pode parecer a V. Ex.ª razoável preço. No entanto aguardo as suas ordens.”

Carta não datada

“Fui entregue da quantia de 9:400 réis que V. Ex.ª fez favor enviar-me.As relações avulsas do Monte Arroio agradeço visto que V. Ex.ª me quer

novamente obsequiar com as suas liberalidades.Hoje remeto a V. Ex.ª o número 3 do catálogo, tomando a liberdade de lhe

indicar o número 372 e deste número o artigo 3º. Em Lisboa não achei quem tivesse a gramática de André de Resende, e os mais doutos presumem que ela seja exclusivamente latina. Se a de 1540 é já segunda edição (o que não podemos asseverar) fica em dúvida se André de Resende precede Fernão de Oliveira. Como quer que seja esta colecção de raríssimos opúsculos me não parece indigna da selecta livraria de V. Ex.ª de quem sou o mais obrigadíssimo criado.

P.S. Continua o sofrimento dos meus olhos.”

Carta de Março de 1869

“Remeto a V. Ex.ª os 3 Sermões de Autos de fé de Goa. Vai também a colecção das Epanáforas Índicas. Fui além das ordens de V. Ex.ª dando 2400 réis pelo livro sem condições de trocas. Pode V. Ex.ª entregar ao portador a importância dos livros, se quiser.”

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Carta de 31 de Março de 1869

“Amanhã ou depois serão entregues a V. Ex.ª os 2 livros que escolheu no Catálogo. Pode V. Ex.ª entregar ao portador a quantia. Quanto ao porte deles, não tenha V. Ex.ª o incómodo de o pagar, que eu cá o gratifico.

A Gramática de Resende é justamente o que V. Ex.ª presume. Tem 4 conjugações em português (e que português!) e latim. Não define as partes da oração, nem pode portanto considerar-se gramática exclusiva do idioma português. […] Inculquei-a a V. Ex.ª na hipótese de que a sua livraria compreendia muitas destas raridades, circunscritas ao valor das datas, e assim creio que se acham constituídas as melhores livrarias dos amadores para quem o latim não é ainda língua menos valiosa, que desmereça respeitoso acolhimento.

Conquanto eu esteja tão longe dos eruditos como da lua, tenho bons e bastantes livros latinos, com os quais me vou ensaboando das mascarras dos franceses, e até dos portugueses que por aí se amanham em bordalenga micofonada, como diria o nosso velho Filinto.”

Carta de 26 de Abril de 1869

“Encontrei um livro raríssimo, desconhecido de todos os bibliógrafos. É o Speculum Mundi de Cornelius a Judais de Antuérpia, impresso em 1598. Os mapas são os mais antigos que se conhecem impressos. O de Portugal é curioso pela nomenclatura que lá têm as nossas terras. O da Palestina tem os passos da vida de Jesus.

Está belíssimo o exemplar, em 2 tomos com frontispícios gravados, e óptimo papel com toda a margem. Se V. Ex.ª quiser examiná-lo, enviá-lo-ei.”

Carta de 27 de Maio de 1869

“Dois livros tenho aqui também esperando as ordens de V. Ex.ª. Um é a 1ª edição dos DISCURSOS VÁRIOS de Manuel Severim, com os retratos de João de Barros e Camões. Custa 4.000 réis. O outro é a Ortografia de João de Barros, 1576, 4º 2250. O belo exemplar do D. Quixote, pela Academia de Madrid, me oferecem por 22.500 réis.

Parece-me que V. Ex.ª deveria tomá-lo por tão baixo preço, embora tenha outras edições. Esta é mais estimada e rara pela carêza [sic] em que anda cotada nos catálogos estrangeiros.”

Carta de 4 de Abril de 1869

“Já V. Ex.ª devia ter recebido os dois livros que lhe remeti; mas agora soube que o condutor, por descuido, os deixara na estação de Aveiro, segundo declarou

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a pessoa que me avisa; mas ainda me não apareceu. […] Tenho pena de não possuir outro exemplar do memorial do marquês de Montebelo para o remeter a V. Ex.ª. Cuido que é livro pouquíssimo frequente. A colecção do Resende remeterei a V. Ex.ª pela quantia que oferece quando tenha portador seguro.

[…] Enviarei o catálogo dos livros do V. de Azurara. São mais de 2.500 obras, coligidas pelo Salter, e por outro que aí foi desembargador em 1798.”

Carta de 27 de Maio de 1869

“Já depois que hoje escrevi a V. Ex.ª, me ofereceram 10 volumes in fólio dos Manuscritos de Montarroio Mascarenhas7 que versam todos sobre Genealogias. Com toda a certeza pertenceram a Montarroio, e dele são grande parte das Genealogias; mas algumas são escritas de letra mais antiga. Querem pelos dez volumes 10 libras.

Sei que V. Ex.ª é pouco curioso destas coisas; sem embargo, atendendo à estima que goza o autor, não hesitei em lhos noticiar.”

Carta não datada, mas posterior a Maio de 1869

“Ofereceram-me pelo preço que merecessem os livros que hoje envio a V. Ex.ª. Queira examiná-los, avaliá-los e comprá-los, se os quiser. Qualquer quantia que V. Ex.ª dê há-de ser condigna dos livros.

Está aqui à venda por 36000 réis a edição magnífica do D Quixote (Ibarra, 4 to. Fol. Com belas estampas). No último catálogo de Guarithc se oferece um exemplar por 16 libras e 12 xelins. Se V. Ex.ª quiser este por 30000 réis, creio que o obterei.

Está bem encadernado, sem nódoa, nem picadela8.”

Carta não datada

“Quer V. Ex.ª as obras de Bossuet, 2º volumes in 4º gr – 1743-53? Diz o Brunet que já se venderam por 250 a 300 francos; mas que hoje custam menos de 100 francos.

[…] Tenho alguns padres […] nas melhores edições. Creio, porém, que V. Ex.ª não colecciona destas papoilas.”

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7 José Freire de Montarroio Mascarenhas, escritor, um dos grandes eruditos do seu tempo, foi um grande genealogista.

8 Em indicações como esta vê-se que Camilo dominava os meandros da bibliofilia e da venda de livros usados. Como se verifica ainda hoje, os catálogos dos antiquários não omitem eventuais estragos dos livros, se for caso disso.

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Carta não datada

“Vai um pacote com a RUTE PEREGRINA e outro livrinho de Viagens por 600 réis.

Vai também para V. Ex.ª examinar um Dicionário Chinês Português. É livro raro em Portugal. O Inocêncio diz que há mais de vinte anos não viu algum à venda. Custa 9 mil réis.”

Carta de 25 de 9br.o9 de 1869

“Recebi a incumbência de V. Ex.ª. Peço perdão de não ter respondido imediatamente. Há 8 dias que me vejo a braços com a tarefa de ordenar 4000 volumes que tinha em Lisboa e transferi para esta aldeia, que fica sendo um foco de ciência, um altar sem sacerdote. Eu já não leio, e escrevo pouco. Este frio acabou de me cristalizar os miolos.

Com referência aos livros que V. Ex.ª quer, devo fazer-lhe uma observação respeito ao nº 94. Para este é mister que V. Ex.ª me marque limites. A Biblioteca Pública de Lisboa tem um exemplar mutilado, e já em tempo quis o livro.”

Carta de 23 de Dezembro de 1869

“Com referência à Crónica manuscrita, convenho com V. Ex.ª que não vale ela 4 libras, nem mesmo valerá duas; eu, porém, quando há dez anos comecei a comprar os livros caríssimos daquele tempo, tive o desatino de dar 4 libras pelo tal manuscrito; e hoje, que este género está barateado, certo escolhi má ocasião para me desfazer de parte da minha pequena biblioteca. Ainda assim, como não vendo em extremos de necessidade, tenho sustentado o preço dos livros, resolvido a não os alienar com grande perda.”

Carta sem data, de 1873

“Sim, senhor. Convêm-me os preços que V. Ex.ª estipulou. Rogo-lhe o obséquio de me dizer se está impressa a carta do P.e Vieira, acerca de D. Sebastião. Penso que V. Ex.ª prescinde dela por essa razão, e eu desejo possuí--la manuscrita.”

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9 Mantivemos a ortografia do nome do mês por ser uma particularidade da datação das cartas de Camilo. Designa, entende-se, Novembro, assim como 7tbro, Setembro, Mço, Março, Dzo, Dezembro, etc.

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Carta de 2 de Março de 1874

“Vai o Almanaque das Senhoras com três autógrafos. Este livrinho daqui a cem anos vale… meio tostão.”¨10

Carta de 24 de Dezembro de 1874 “Numa caixa, cuja chave remeto, envio a V. Ex.ª alguns papéis com as

assinaturas autógrafas de D. João 3º, D. Sebastião, do Cardeal rei, dos cinco governadores do reino, de Martim Glz da Câmara e Filipe 2º de Castela. Não sei se V. Ex.ª dá valor a papéis desta natureza. Pediu-me há poucos dias em Lisboa o conde da Cunha se eu acharia quem lhos comprasse. Lembrei-me unicamente de V. Ex.ª. O conde da Cunha está muito pobre. […] Estes papéis pertenceram à livraria do arcebispo D. Rodrigo da Cunha11.

Carta de 26 de Janeiro de 1876

“Creio que V. Ex.ª poderá brevemente encontrar livros raríssimos no leilão do Marquês de Lavradio12 feito por conta do Banco de Portugal.

Ouvi dizer que ele possuía as mais raras edições dos Lusíadas.”

Carta de 9 de Fevereiro de 1876

“Vou amanhã a Lisboa, e lá procurarei as obras que V. Ex.ª me indica. Provavelmente as encontrarei. Coimbra quanto a livros antigos está varrida há muitos anos. Em Lisboa, com a desmoronação das casas heráldicas, aparecem preciosidades, parte das quais V. Ex.ª possui e outras saíram do reino envergonhadas dos seus conterrâneos – Se, como espero, encontrar os livros, enviá-los-ei logo a V. Ex.ª, pedindo-lhe que se não esquive em me dar a honra de tão insignificantes serviços.”

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10 Como o texto documenta, o intermediário, privilegiando embora obras e manuscritos de interesse histórico ou literário, não excluía das suas transacções revistas fúteis e/ou de interesse doméstico, de duvidoso futuro comercial. O anunciado almanaque foi fundado por uma senhora da alta sociedade e publicado entre 1871 e 1928. Embora com colaboração essencialmente feminina (de entre a qual se destaca a de Maria Amália Vaz de Carvalho), teve a assinar artigos seus alguns escritores como Camilo Castelo Branco. Refira-se, como curiosidade, ser de Rafael Bordalo Pinheiro a capa do número do ano de 1876.

11 Escritor e genealogista, inquisidor, Bispo de Portalegre, Arcebispo Primaz de Braga, Arcebispo de Lisboa em 1635, governador do reino em 1640.

12 D. António de Almeida Portugal Soares Alarcão Melo Castro Ataíde Eça Mascarenhas Silva e Lencastre, 5º Marquês de Lavradio e 8º Conde de Avintes (1794-1874).

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Carta não datada de 1876

“Escrevo-lhe de Lisboa. Achei aqui traslado do Nobiliário de Damião de Góis. […]

É um livro in-fólio com a encadernação muito usada, com 168 páginas numeradas só no verso da página, e manchadas de humidade sem prejuízo das letras.

Querem 30000 réis por ele. Se V. Ex.ª o quiser, tem de me avisar pelo telégrafo, visto que eu parto no domingo.”

Merecem inclusão neste trabalho de recolha sobre o tema proposto transcrições de Cartas de Camilo a Eduardo Costa Santos com um prólogo de Júlio Brandão, obra referenciada no início da introdução. A exemplo de outra correspondência, são estas cartas uma mescla de desabafos de padecimentos e de penúrias e de tratamento de questões editoriais e comerciais. Segundo Alexandre Cabral, apesar de alguns desentendimentos pontuais, o escritor e o editor mantiveram uma relação de amizade, mantida, ainda nas palavras do ensaísta, graças à “paciência do editor” que “suportou estoicamente as por vezes extravagantes exigências do editado”.

Transcrevemos, de seguida, passagens de quatro das referidas cartas:

Carta de Julho de 1883

“Peço-lhe o favor de me enviar, ou de pedir para Lisboa, se não tiver, os números do António Maria 8, 33, 68, 163 e 193. Queria fazer encadernar os quatro volumes completos. Quanto à encadernação, cá a mandarei fazer em um trolha de Famalicão, por me parecer muito cara a que se vende na casa da empresa.”

Carta de Dezembro de 1883

“[…] Eu há mais de vinte anos que não vendi propriedade de algum livro por menos do valor de 500 exemplares segundo o preço arbitrado pelo editor; e vendendo por este preço ainda me considero muito inferior a Guerra Junqueiro que vendeu por 1:000$000 de reis um volume de versos, e ao Eça de Queiroz que vendeu ao Chardron um romance por 1:2000$ reis, (simplesmente 5:000 exemplares.) […].”

Carta não datada

“Quando liquidar contas com o António Maria Pereira, se as tem, peço-lhe o favor de lhe pagar 4 tomos da Lisboa Antiga e um volume das Obras de Sá de Miranda. Peço-lhe que o previna de que está encarregado desse pagamento. […]”

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Carta não datada

“[…] Quando estiver mais desembaraçado de publicações caras, e eu também desembaraçado de preocupações que me incomodam, voltaremos às nossas negociações. […]”

O TRADUTOR

Se há coisa de que se não pode acusar Camilo a partir do momento em que assume responsabilidades familiares, pautadas pelas doenças e infortúnios – traço de união entre pais e filhos –, é a sua inactividade ou falta de expediente quanto às formas de providenciar o sustento de todos. Se nem todas as démarches feitas estiveram à prova de lisura e de honestidade, não se poupou a esforços para, aproveitando a sua cultura, a sua familiaridade com as línguas (latim, francês, castelhano e inglês), os seus dotes literários e a facilidade com que se movia nos mundo editorial, aumentar os proventos trazidos por uma torrencial publicação de novelas/romances.

O autor de Anátema traduziu a primeira obra em 1852. Em 1856 recebeu do editor Cruz Coutinho o adiantamento de 50$000 pela tradução dos cinco primeiros livros do historiador romano Tito Lívio. Quando esteve preso pela segunda vez na Cadeia da Relação do Porto, em 1860-1861, por ocasião do crime de adultério, procedeu à versão de um título francês, como anuncia em carta ao amigo Vieira de Castro, preso no Limoeiro. “Lembra-te que eu, na primeira noite que entrei na cadeia, assim que me correram os ferrolhos dum quarto abafado, comecei a traduzir L’Art d’être Heureux de Droz.”13

Embora não tenha acabado a difícil empreitada, verteu grande parte da obra de Le Génie du Christianisme. Dessa incumbência fala em carta de Maio de 1858 ao seu amigo já referido José Barbosa da Silva:

“Parece-me que eu te disse que aceitaria o difícil cometimento de traduzir o Génio do Cristianismo de Chateaubriand. Fiz uma loucura, porque tal obra me empata o tempo sobejo para escrever seis volumes originais. […] Tenho trabalhado com tanto zelo como nunca empreguei em escritos originais. […] diz o livreiro que o meu nome, como tradutor e algumas vezes anotador, lhe daria crédito.”

Sobre este trabalho fala assim a Castilho, em carta de Agosto de 1866:

“Eu conto a V. Exª como foi escarrado o Soromenho14 no rosto da versão.

____________________

13 Joseph Droz (1773-1850). Filósofo católico popularizado em Portugal através da tradução das suas obras.

14 Augusto Soromenho – professor de Literatura, filólogo, arqueólogo, participante das “Conferências do Casino”, amigo de Camilo até ao desentendimento de ambos, em 1859, provocado pela tradução da obra francesa.

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Tinha eu traduzido o primeiro tomo e alguns capítulos do segundo, quando saí do Porto há sete anos com a D. Ana Plácido. Não pude continuar a tradução, apesar do Cruz Coutinho editor. Este alarve, irado contra mim, convidou o guarda-barreiras Soromenho a continuar a versão do 2º volume; e, no propósito de vingar-se humilhando-me, deu-me como revisor e corrector da minha tradução a besta constante do frontispício. Aqui tem V. Exª. Não há nada mais sujo nem mais extravagante!”

Em nota a esta carta, Alexandre Cabral esclarece: “Trata-se da tradução d’ O Génio do Cristianismo, cuja 1ª ed., de 1860, traz os seguintes dizeres: ‘Tradução de Camilo Castelo Branco, revista por Augusto Soromenho’”.

É, também, com o poeta cego que, juntamente com queixumes de doença e assuntos domésticos, partilha as tarefas literárias em que, de momento, está envolvido. Vale ao leitor, em alguns casos, a nota explicativa do organizador da correspondência. Seguem três excertos:

De S. Miguel de Seide escreve em Setembro de 1871:

“Há meses fiz o mau traslado do Inferno do Callet*15. Foi tentativa de distracção. Nada lucrei com isso, salvo o que me pagaram por ele. Ainda assim, eu ganharia mais se, em vez de negar a existência do Tártaro, (que entre cristãos é verdadeiramente emético) tentasse provar a existência dum betume que o padre Beirão não houvesse aventado, nem as beatas houvessem desejado que eu bebesse por todos os séculos dos séculos, ámen.”

Nota do organizador: “O Inferno foi editado no Porto, em 1871 (Tipografia da Livraria Nacional). O prefácio de Camilo à sua tradução […] foi publicado no Diário da Tarde, de 19/I/1872, dando origem à polémica com o P.e Júlio da Rocha Saraiva de Carvalho.”

Em 3/2/72 escreve, do Porto a Castilho:

“A doença e este tedioso trabalho de traduzir tão espalmada coisa, furtam--me alguns instantes de sereno espírito para escrever a V. Ex.ª.

[…] Está decidida a nossa transferência para Lisboa. […] O Porto, meu caro Amigo, tem 3 burros em cada sujeito, e 4 burras em cada sujeita. Não se pode aqui viver nem morrer.”

Em 3 de Outubro do mesmo ano noticia, ainda a António Feliciano de Castilho:

“Livro meu em via de publicação não há nenhum. Traduzi Le Diable ____________________

15 Tratar-se-á da tradução de A Freira do Subterrâneo saída meses depois.

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Amoureux16 do Cazotte, nas horas mais aborrecidas. O editor Chardron há-de enviá-lo a V. Ex.ª

Não vamos enumerar as traduções feitas por Camilo, mas achamos curioso referir uma obra que se recusou a traduzir e apresentar as razões por que o não fez.

A Companhia Literária atrás referida incluiu nos seus projectos editoriais a publicação do D. Quixote de Miguel Cervantes em língua portuguesa, tendo encarregado um seu grande mestre – o poeta António Feliciano de Castilho. Acontece que este faleceu antes de concluído o trabalho, o que levantou, desde logo, o problema da sua substituição. De salientar que a prática de tradutor exige um domínio perfeito das línguas de partida e de chegada, sob pena de se confirmar a corrente associação “tradutor = traidor”.

O nome de Camilo surgiu de imediato. Sobre o que se passou falam cartas endereçadas ao 1º conde de Azevedo.

Em 7 de Agosto de 1875, escreve:

Meu prezado amigo e Ex.mo Sr. Visconde.“Primeiramente agradeço a V. Ex.ª a honra que deu ao meu nome

lembrando-o quando se pensava na versão do D. Quixote. […] Em segundo lugar, direi a V. Ex.ª que me não posso encarregar de

qualquer trabalho relativo a tal obra, já porque seria temeridade tentá-lo em continuação ao visconde de Castilho, já porque não tenho saúde, nem tempo, nem paciência.

Quando indiquei o 2º visconde de Castilho apontei-o como habilíssimo para o encargo. Sei que ele sabe a língua admiravelmente.”

No dia 25 de Setembro do mesmo ano, Camilo refere o convite recebido do 2º visconde de Castilho para continuar o trabalho do pai e dá-lhe notícia que o seu nome era anunciado na imprensa como o tradutor da obra espanhola. E adianta as razões pelas quais declinara a sugestão:

“E falarei com a máxima franqueza a V. Ex.ª: 1º – não gosto do livro – 2º acho-o descabido neste tempo – 3º como pretexto para as gravuras, não colhe o argumento porque as duas que vi são muito ordinárias, mal inventadas, sem nitidez, nem relevo.

[…] Pondo, porém, de parte esta ceifa na seara alheia – darei as duas mais cabais razões: continuar a forma inimitável de Castilho, e lesar-me grandemente nos meus interesses imprescindíveis, porque vivo na galé das letras portuguesas.

Os meus fúteis escritos são pagos de modo que em metade do tempo lucro mais do que lucraria no extenso trabalho da versão. Era-me impossível pedir

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16 Trata-se da tradução: Amores do Diabo. Data: 1872.

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mais do que se dava ao Castilho; e eu nem pelo quádruplo aceitarei igual tarefa.”

Curiosamente foi o nome do 1º conde de Azevedo que acudiu ao pensamento de Camilo como sucessor de Castilho. Isso mesmo lhe transmite em carta de 30 de Abril de 1876:

“Na última vez que visitei V. Ex.ª estive por um triz a dizer-lhe que traduzisse ou nacionalizasse o D. Quixote; mas reteve-me a lembrança de que tal empresa só por muito amor a aceitaria um homem rico, e de mais a mais valetudinário dos olhos. Eu por mim se tivesse os carros de pão e as inscrições que V. Ex.ª tem, assinava de cruz, e a respeito de livros apenas teria os do Teófilo17 para sustentar o horror às letras.

Mas agora, seriamente falando, se V. Ex.ª se abalança à tarefa enfadonha de traduzir, o livro há-de sair tão congénere nas duas versões como a sua écloga a Virgílio o saiu com as de Bocage; e estou em que relendo a porção que traduziu Castilho dará à sua frase o boleio e severidade clássica daquele óptimo escritor. Se o estímulo de um homem que literariamente nunca lisonjeou alguém vale alguma coisa para V. Ex.ª, rogo-lhe que não esmoreça nem delongue o propósito. Mãos à obra.”

Bibliografia

CABRAL, Alexandre, Dicionário de Camilo Castelo Branco, Editorial Caminho, Lisboa 1988.

Idem, Correspondência de Camilo Castelo Branco, Livros Horizonte, 1984. Seis volumes.

Camilo em Landim, leitura, introdução e notas de Emília Sampaio Nóvoa Faria, Centro de Estudos Camilianos, 1990.

Cartas de Camilo a Eduardo da Costa Santos com um prólogo de Júlio Brandão, Livraria de Fernando Machado, Porto, 1923.

Cartas Inéditas de Camilo Castello Branco ao 1º Conde de Azevedo, Coimbra Editora Lda. – Antiga Livraria França & Arménio, Coimbra – 1926.

COSTA, Júlio Dias, Escritos de Camilo, Portugália Editora, Lisboa, 1923.MENESES, Ludovico, Camilo – Documentos e factos, Portugália Editora, Lisboa,

1925.

Notasfinais

Para melhor compreensão do conteúdo das cartas, optámos por actualizar a sua ortografia, não seguindo, contudo, o novo acordo, e por escrever por extenso as inúmeras abreviaturas usadas pelo epistológrafo.

Este estudo não respeita o novo acordo ortográfico.

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Mesinha de S. Sebastião

‘Mesinha’ ou ‘mezinha’? As opiniões dividem-se. Há quem prefira ‘mesinha’, porque na verdade é de uma mesinha (quando muito em sentido irónico, pois na verdade é muito extensa...) e de uma refeição que se trata. Há quem prefira ‘mezinha’, porque as sobras das broas podem servir de protecção contra diversos males, sobretudo os que atacam os animais.

A Revista Tellus é partidária da primeira hipótese. Principalmente porque sempre ouviu pronunciar a palavra com ‘e’ mudo, o que não acontece com ‘mezinha’.

Mas isso não é o que importa. Importa, sim, que é um acontecimento ímpar, de grande significado etnográfico e religioso, que junta todos os anos, a 20 de Janeiro, centenas de pessoas (devotos, simples curiosos e também estudiosos) em Dornelas, no concelho de Boticas.

São alguns momentos desse acontecimento que hoje trazemos ao convívio dos nossos Leitores, através da objectiva atenta de Duarte Carvalho, um fotógrafo amador vila-realense que ‘colecciona’ tudo quanto diz respeito à alma do nosso povo, tudo documentando e de tudo deixando uma memória preciosa que os etnógrafos e etnólogos muito agradecem, naturalmente.

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“Casa do Santo”, os pães que vão ser consumidos na refeição.

“Casa do Santo”, os potes onde a refeição é cozinhada.

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“Casa do Santo”, aspecto da bênção dos alimentos.

A “mesinha” pronta a receber os alimentos.

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As toalhas de linho que cobrirão a mesa.

Uma das caldeiras repletas de carnes.

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Malgas com arroz.

Os comensais tomam posição.

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Um aspecto da assistência

Em plena refeição.

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Aspecto geral da “mesinha”.

A imagem de S. Sebastião é dada a beijar durante a refeição.

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Sumário

Encontro “Saber Trás-os-Montes”• A evolução das cozinhas regionais europeias — O exemplo de Trás-os-Montes e Alto Douro André Magalhães . . . . . . . . . . . . . . 5• Trás-os-Montes — Que futuro gastronómico? António Bóia . . . . . . . . . . . . . . . . 12• A história e a manutenção das tradições culinárias transmontanas Virgílio Nogueiro Gomes . . . . . . . . . . . . 18• Memória do Encontro . . . . . . . . . . . . . . 25

Outros artigos• Memórias de Céu e Inferno de A. Passos Coelho Armando Palavras . . . . . . . . . . . . . . 31• A ermida do Senhor dos Aflitos, hoje da Boa Viagem, no Atalho, aos Agueirinhos, Vila Real: Lugar e história Joaquim C. Barreira Gonçalves e Fernando M. Barreira C. Silva . . . . . . . . . 40• Camilo: o bibliófilo-antiquário e o tradutor (com base nas Cartas de Camilo ao 1.º conde de Azevedo e noutras) Maria Hercília Agarez . . . . . . . . . . . . . 57• Mesinha de S. Sebastião Duarte Carvalho . . . . . . . . . . . . . . 73