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A INSTÁVEL LEVEZA DO ROCK. Génese, dinâmica e consolidação do rock alternativo em Portugal. Volume 2

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A INSTVEL LEVEZA DO ROCK. Gnese, dinmica e consolidao do rock alternativo em Portugal.

Volume 2

Faculdade de Letras da Universidade do Porto Doutoramento em Sociologia

A INSTVEL LEVEZA DO ROCK.Gnese, dinmica e consolidao do rock alternativo em Portugal (1980-2010) VOLUME 2

Paula Maria Guerra Tavares

Dissertao de Doutoramento em Sociologia orientada pelo Professor Doutor Augusto Ernesto Santos Silva Porto, Julho de 2010

Captulo 4 - Para um esboo do espao social do rock alternativo

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Captulo 4

PARA UM ESBOO DO ESPAO SOCIAL DO ROCK ALTERNATIVO

Captulo 4 - Para um esboo do espao social do rock alternativo

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Captulo 4.

Para um esboo do espao social do rock alternativoO amor da arte, como o amor, mesmo e sobretudo o mais louco, sente-se fundado no seu objecto. para se convencer de ter razo em (ou razes de) amar que recorre com tanta frequncia ao comentrio, essa espcie de discurso apologtico que o crente dirige a si prprio e que, alm de ter pelo menos como efeito redobrar a sua prpria crena, pode ainda despertar e convocar os outros para a mesma crena. por isso que a anlise cientfica, quando capaz de trazer luz do dia aquilo que torna a obra de arte necessria, ou seja, a frmula informadora, o princpio gerador, a razo de ser, fornece experincia artstica, e ao prazer que a acompanha, a sua melhor justificao, o seu alimento mais rico (Bourdieu, 1996:17).

Precisariam de sacudir com a vibrao que Nietzsche (autor da primeira obra-prima de crtica de rock, o Nascimento da Tragdia, um sculo antes do rock surgir) chamava de vontade do mundo e que Iggy Pop chamou de Raw Power, ou energia bruta (Reynolds, 2005:20)

4.1. O rock alternativo, espao social relacional: interrogando a instvel matria da msicaA abordagem proposta at aqui pretende evidenciar que, ao falarmos de rock alternativo em Portugal, na actualidade, estamos, na verdade, a referir-nos a um conjunto de posicionamentos num espao social especfico que deve ser situado no interior do universo pop rock e que, ao mesmo tempo, no pode deixar de ser perspectivado na sua relao com a estrutura do campo artstico portugus e, subsequentemente, do espao social contemporneo (globalmente considerado). O objectivo principal deste captulo o de reconstituir analiticamente essa insero, dessa forma concedendo profundidade anlise sociolgica da gnese e estruturao deste espao social especfico de que nos vimos ocupando. No deixamos de recordar, ao circunscrever o objecto de estudo e ao situ-lo numa histria, que a histria dos seus mltiplos contextos de enquadramento, a aluso de Renato Ortiz (2004:12), quando este faz corresponder metaforicamente o exerccio intelectual a um trabalho de costura: ambas as diligncias requerem habilidade e um conhecimento especfico, que se desenvolve na prtica da investigao. O conhecimento em cincias sociais faz-se de inovao conceptual e, talvez mais ainda, de inovao no modo como

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relacionamos conceitos, mas no deve deixar de ser salientado que esses conceitos e relaes entre conceitos se costuram na ntima relao entre posicionamento terico e pesquisa emprica, na e pela prtica da razo sociolgica, para recorrer feliz expresso de Jos Madureira Pinto (2010), da qual a sua pertinncia interpretativa e analtica decorre. Ora, esta lgica, como no poderia deixar de ser, pautou o curso do trabalho desenvolvido ao longo dos ltimos anos, tendo-se revelado a nica via capaz de colocar em evidncia os liames profundos do espao social relacional deste rock que apelidamos de alternativo, para nos mantermos fiis a uma terminologia que, como sublinharemos mais frente, dbia, mas que no deixa de ser passvel de circunscrio analtica (a sua dubiedade , de resto, como se ver, muito desafiante, mas claramente objectivvel do ponto de vista sociolgico). Do racional ao real e do real ao racional, procurmos manter um vaivm incessante em termos de movimentos entre teoria e empiria. Epistemologicamente, aproximamo-nos do que defende Burawoy (1998:5), quando apresenta o seu mtodo de caso alargado, cujo objectivo passa por extrair o geral do particular, passar do micro ao macro, ligar o presente ao passado em antecipao do futuro, sempre a partir de um enquadramento terico bem definido, mas necessariamente (desejavelmente?) passvel de reformulao. Este esforo reflexivo de produo de conhecimento cientfico impe, entretanto, a construo do que Blalock chama teorias auxiliares de pesquisa (In Pinto, 1985). Em particular, h que procurar construir e mobilizar, no quadro da pesquisa, uma teorizao acerca das relaes sociais de observao de que tanto fala Jos Madureira Pinto (1985; 2010). Esta teorizao responder ao desafio que no apenas o de objectivar o olhar dos outros, mas tambm o de objectivar o prprio olhar objectivador, o olhar sociolgico, assumindo e integrando na anlise os efeitos das relaes sociais que se estabelecem, na pesquisa, entre quem procura conhecer e quem conhecido. Ao partir para o terreno, o socilogo deve transportar na sua bagagem no s um conhecimento terico convencional, motor de interpretao, mas igualmente essa outra reflexo terica, assumindo que a interferncia no simplesmente um obstculo ao conhecimento sociolgico, mas tambm um veculo desse conhecimento (Costa, 2003:135). Tendo em conta o objecto de estudo seleccionado, esta preocupao e este exerccio permanente de reflexividade impem-se com acuidade redobrada, visto estarmos perante uma realidade que no se nos revelou primeiramente pelo contacto efectuado por via da investigao, mas que conhecamos j e que constitua um elemento importante nos nossos quotidianos de vivncia. Por outro lado, o facto de se tratar de uma realidade perpassada por movimentos, muitas vezes contraditrios, de classificao e de contraclassificao, de disputas pela representao legtima, ocorridas no quadro do confronto de estratgias de diferenciao, de formulao de um eu ou de um ns para si e para outrem, obriga a uma ateno redobrada, de forma a evitar resvalar para perspectivas essencialistas como so tantas vezes as dos agentes que se movem neste universo. Apostmos, para tal, por um lado, numa prtica de investigao teoricamente enquadrada e orientada; por outro lado, procurmos penetrar a fundo neste universo, mas cruzando

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um vastssimo leque de informaes, provenientes dos mais diversos pontos do espao social estudado e de um grande nmero de fontes muito diferenciadas. Este processo, muito exigente em termos de disponibilidade afectiva e cognitiva, em termos de tempo ocupado, mas experincia irrepetvel de investigao sociolgica plural e pluriparadigmtica, implicou uma entrega de corpo e alma, como diria Wacquant, num exerccio que se quis capaz de capturar e de transmitir o sabor e a dor da aco, o som e a fria do mundo social que as abordagens estabelecidas das cincias do homem colocam tipicamente em surdina, quando no os suprimem completamente (Wacquant, 2002:11). Feita esta pequena introduo, em jeito de nota epistemolgica sobre a pesquisa, importa agora situar o nosso objecto no quadro das reas temticas e sub-disciplinares da sociologia. Uma abordagem do rock enquanto espao social relacional especfico no pode deixar de comear por sublinhar o que tem sido a evoluo desta cincia social no que diz respeito ao estudo dos processos simblico-culturais, evoluo que tem levado alguns autores a falarem de uma viragem da sociologia para o domnio da cultura. Com efeito, at meados da dcada de 70, o interesse sociolgico pela cultura e pelas artes era visto em certos crculos como excntrico, diletante e marginal. Nesta trilha, acentuavam-se as clivagens entre os socilogos que se interessavam pelas artes e os crticos literrios e os historiadores de arte que consideravam a sociologia como irrelevante para a compreenso do domnio da cultura. Um dos indcios do esbatimento das clivagens entre os campos consistiu no aparecimento de uma diversidade de revistas no mundo anglo-saxnico que passaram a contemplar as teorizaes da cultura desde os anos 1970 (Featherstone, 1991). Tambm a crescente importncia do feminismo, do marxismo (em especial, das suas vertentes mais heterodoxas), do ps-estruturalismo, da semiologia, da psicanlise contribuiu para uma maior ateno dada s questes culturais. Neste contexto, o estudo da msica, na sua relao com as dinmicas culturais e sociais, no foi excepo, tendo conhecido por esta altura um renovado interesse. A anlise sociolgica da msica remonta, de resto, como conhecido, aos pais fundadores da disciplina. A anlise que Weber elaborou sobre a msica insere-se na sua reflexo e teorizao acerca do processo de racionalizao da sociedade ocidental, no quadro da expanso do capitalismo, incidindo sobre a estandardizao e o crescimento do campo da msica (Weber, 1998; Gomezgil, 1965; Molino e Pedler, 1998; Turley, 2001). A principal tese weberiana assenta no facto de as caractersticas e as qualidades msticas e irracionais da arte terem sido gradualmente eliminadas e substitudas por qualidades e aspectos racionais no trajecto at msica moderna. O objectivo central de Weber seria o de dar nota do significado cultural da especificidade moderna da cultura ocidental: cultura a aplicao a um segmento finito da infinidade de eventos do mundo desprovida de sentido, com significado e significncia do ponto de vista dos seres humanos (Schroeder, 1992:6). Neste processo, o desenvolvimento dos instrumentos musicais modernos e da notao musical moderna constituram dois momentos-chave, representando dois outputs racionais numa sociedade organizada. Na verdade, de acordo com Weber, medida que uma

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sociedade se torna cada vez mais organizada em termos racionais, a produo racionalizada de bens torna-se to prevalente que a cultura comea ela prpria a funcionar e a ser produzida segundo lgicas racionais (Weber, 1998; Turley, 2001). Neste processo de racionalizao, Weber destaca a crescente burocratizao, transportando-a para o campo da msica atravs da anlise da msica clssica, cuja produo altamente hierarquizada, especializada e burocratizada1. O seu objectivo concretizado atravs de uma abordagem metodolgica que identifica a multidimensionalidade do processo, incluindo na sua explicao variveis sociais, econmicas, ambientais e espaciais, tendo igualmente em conta as instituies que influenciam a produo social da msica. O principal contributo de Weber no mbito da sociologia da msica precisamente a incluso desta temtica na agenda sociolgica, considerando os diferentes componentes sociais associados produo da msica. Simultaneamente, a abordagem weberiana contribui para uma compreenso mais completa da produo musical ao considerar um conjunto diversificado de variveis susceptveis de a influenciar. Por isso mesmo, a sua anlise deve funcionar como um comeo, como um guia para uma sociologia da msica. Assim parece acontecer com alguns tericos subsequentes que reflectem sobre esta temtica. o caso de Adorno (1962), que vai apreender de Weber um modelo de reciprocidade, mediante o qual a sociedade influencia a msica mas tambm influenciada por ela. Tambm Simon Frith (1989) identifica as influncias culturais e estruturais na produo musical, atravs da anlise de foras macrosocietais, como, por exemplo, o sistema educacional. Outros tericos britnicos, como Wicke (1990), Straw (1991), Shepherd (1987) e Peter Martin (1995) optaram tambm por problematizar essa mesma relao. No obstante este esforo pioneiro de Weber, a msica ocupou durante bastante tempo um plano perifrico na teoria sociolgica. S a partir dos anos 40 do sculo XX, com a Escola Crtica e por intermdio de Adorno, que se conferiu maior ateno a este ramo da sociologia. Adorno estabelece como pedra de toque que a abordagem musical um elemento indissocivel da esttica, chegando mesmo a afirmar que nenhum contedo social da msica vale se no se objectiva esteticamente (Reis, 2007:3). A msica passa, assim, a ser concebida sob um ponto de vista analtico, devendo ser enquadrada dentro de uma indstria cultural estabelecida. O pensamento de Adorno situa-se numa abordagem da arte enquanto teoria crtica da sociedade. Adorno aborda a vida musical defendendo a sua anlise numa lgica de relao entre foras produtivas (esfera da produo e das tcnicas) e relaes de produo (condies econmicas e ideolgicas de produo e esfera da recepo). Nela, os efeitos ideolgicos da msica (enquanto falsa conscincia) so referidos, assim, como fenmenos decorrentes dos constrangimentos econmicos na vida musical (ex.: estandardizao). Toda esta anlise mais estrutural que feita da msica no deixa de reconhecer a necessidade de o conhe-

1 Porm, a questo que se levanta e que pode ser apontada, de alguma forma, como uma crtica abordagem weberiana, que outros tipos de msica no so pautados pela burocratizao no modo como se organizam. Na realidade, pesquisas recentes mostram que, excepo de grandes orquestras, a produo musical est a tornar-se cada vez menos burocratizada (Turley, 2001).

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cimento msico-sociolgico ter em conta que as questes sociolgicas da msica no se dissociam das estticas (Adorno, 1962). A relao da msica com as classes sociais impe-se na medida em que a msica ideologia porque transmite, mais do que a verdade, uma falsa conscincia, estando assim integrada no conflito social. Mais do que aquilo que pode dizer pelas palavras, a msica exprime-se socialmente pelas suas caractersticas estruturais internas. nesta constituio que ela exprime o antagonismo das sociedades. As tenses vividas no seio da msica so o reflexo das tenses sociais2. Neste sentido, a procura de relaes entre a msica e as classes no tem de passar pela procura da presena de pontos de vista de classe nas manifestaes musicais: as formas de vida musical que pretendem ser afastados do mercado capitalista, tambm esto ligados a ele e estrutura social que a suporta. A vida musical no vida para a msica (Adorno, 1962:124). Na vida musical, tal como em sociedade, a pluralidade hierarquizada3. O contexto social e seus privilgios culturais acabam por definir os gostos musicais e a vida musical dos indivduos. Esta espcie de determinao social dos gostos musicais resulta num fenmeno no qual a qualidade da oferta musical se mede pelo estatuto social de quem a recebe. Pelas suas caractersticas, Adorno considera que a modernidade musical gera obras de arte extremamente tcnicas, nas quais a ausncia do elemento humano denuncia a desumanidade. Neste sentido, o aspecto ideolgico de que se mune a anti-ideologia (Idem). A referncia adorniana indstria cultural volta a mostrar a presena do econmico na msica, cada vez mais alargada na modernidade, uma vez que essa indstria se estende para alm dos mdia. Para Adorno, o conhecimento msico-sociolgico tem lacunas, uma vez que se limita, por um lado, existncia de uma espcie de indstria cientfica e, por outro, a frmulas no provadas. Estas lacunas levam persistncia de um certo dogmatismo nesse conhecimento. Tambm a imaterialidade da msica dificulta a sua mediao. Quanto mais asseguradas se encontram as constataes sociolgicas sobre a msica, mais exteriores lhe so, mas, ao memo tempo, se essas constataes se circunscrevem a aspectos exclusivamente musicais, tornam-se pobres e abstractas em termos sociolgicos (Idem). Neste sentido, importante esclarecer que sociologia interessa o efeito social da msica mais do que a msica em si. Contudo, tal facto deve reconhecer que as questes sociolgicas da msica no so indissociveis das estticas. Alis, refere mesmo que esttica e sociologia tm um espao comum que o da crtica. Perante tais noes, Adorno considera que a distribuio e recepo sociais da msica so epifenmenos, interessando principalmente o enfoque na constituio social da msica em si, ou seja, o contedo social da msica.

Estabelecer relaes entre msica e classes para Adorno algo de difcil e que muitas vezes se faz atravs de rotulagens inadequadas. Nesta obra, essa relao problematizada nomeadamente pela origem social de compositores de msica clssica, levando-o a afirmar que a sociedade controla a msica ao restringir os compositores e a possibilidade de o ser (Adorno, 1962).2

Adorno refere que mesmo as experincias de Nietzsche em 1876, nas quais este percebeu que a composio dos pblicos era economicamente determinada, foram muito importantes para a sociologia da vida musical. Tal importncia prende-se com a compreenso do facto de que ter uma vida musical no significa viver para a msica, e que as formas de vida musicais acabam sempre por estabelecer relaes com o mercado capitalista, at porque a vivncia destas implica condies materiais (Adorno, 1962).3

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Assim, a sociologia da msica deve centrar-se na vida musical, orientando-se para as estruturas sociais que se espelham na msica. A sua anlise pode proceder de uma lgica de relao entre foras produtivas e relaes de produo, sendo as primeiras constitudas pela esfera da produo e da tcnica, e as segundas pelas condies econmicas e ideolgicas de produo e pela esfera da recepo. Nesta anlise a possibilidade das foras produtivas alterarem as relaes de produo algo a ter em conta, mas tambm o fenmeno inverso (o qual Adorno aponta ser o que se verifica na poca recente). Desde a sua formao, a sociologia da msica sempre se revestiu de um carcter histrico relevante: onde a msica condicionada pela sociedade, o que implica que esta seja a expresso da prpria sociedade, ela reflecte as condies sociais de onde nasce. A importncia desta viso scio-histrica foi o que alimentou de forma pioneira um sentido para a compreenso da sociologia da msica, atravs de trabalhos biogrficos que punham em evidncia a importncia do condicionamento scio-histrico, onde se analisava o msico e a sua criao musical em pocas e sociedades diversas (Reis, 2007:7-8). As obras de Weber e de Adorno sobre a msica so, assim, pioneiras, numa tentativa de racionalizao da elaborao musical, abrindo igualmente as portas a uma nova predisposio metodolgica onde as obras e as carreiras dos indivduos modificam as instituies prprias do mundo da arte ao mesmo tempo que so modificadas por elas (Reis, 2007:11). Os estudos sobre msica foram, a partir destes trabalhos pioneiros, fazendo o seu curso. No entanto, apesar de muitos socilogos se terem debruado sobre a temtica, utilizando abordagens que podem ser designadas como culturais, os resultados produzidos nunca se traduziram numa abordagem conceptual reconhecidamente coerente no caso concreto do estudo sociolgico da msica pop, at porque muitos destes trabalhos foram produzidos num contexto marcado por um certo isolamento dos tericos em relao uns aos outros. Hoje, pela importncia e novas configuraes assumidas pela msica pop, o campo de estudo cada vez maior. Por exemplo, uma dessas configuraes relaciona-se com o crescimento dos pblicos no ps-guerra de gneros como o rock, o punk, o rap e a msica de dana e consequentes implicaes sobre a msica pop enquanto forma cultural: apesar de existirem bases para uma potencialmente brilhante sociologia da msica pop, necessrio um considervel trabalho de base no sentido de uma tal abordagem ser propriamente formulada e concretizada enquanto um meio de expor e explicitar a cada vez mais complexa interaco entre a msica pop e as prticas culturais do quotidiano (Bennett, 2008:420). Independentemente do domnio das perspectivas dos Cultural Studies no mbito da pesquisa em torno da msica pop, os socilogos contriburam e continuam a contribuir com importantes trabalhos, como o caso de The Sociology of Rock (1978) de Simon Frith, no qual o autor procura aplicar as perspectivas sociolgicas acerca do capitalismo e dos conceitos de classe, raa e gnero, a fim de melhor compreender a msica pop a trs nveis indstria, performance e pblicos.

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Tambm tendo por base uma perspectiva crtica em relao s origens e funes do significado musical, e ao sublinhar o recentramento do debate na interaco entre os textos musicais e os pblicos, deve ser creditada relevncia aos trabalhos de Antoine Hennion (1993), que defende que o acto de interpretao musical e o significado da msica inseparvel do consumo de textos pelos pblicos; portanto, trata-se de um processo subjectivo, onde os pblicos surgem como agentes reflexivos e criativos. Hennion comea por referir que a msica ostenta problemas no que diz respeito enunciao do seu objecto, pois uma realidade mutante fazendo assomar intermedirios, intrpretes, instrumentos e suportes de forma contnua; assim, a msica reforma-se continuamente, uma vasta teoria de mediaes em acto (Idem, Ibidem:11). Ao enfatizar o conceito de mediaes, Antoine Hennion aspira a uma sociologia da mediao capaz de ultrapassar os dualismos reiterados da sociologia. O conceito de mediao constitui o lugar de interrogao, apontando como problemtica a articulao entre essas duas maneiras duais de interrogar o mundo social (Idem, Ibidem:223)4. Peter Martin (1995) adoptou uma viso construtivista do significado musical, onde as noes de intertextualidade e de subjectividade se assumem como centrais na interpretao do significado musical. Tia DeNora considera que a msica actua como um recurso por intermdio do qual as pessoas se regulam a si mesmas enquanto agentes estticos, enquanto seres que sentem, pensam e agem nas suas vidas quotidianas (DeNora, 2000). Na abordagem de DeNora, destaquemos que, de forma recorrente, Beethoven representado como um gnio no quadro da cultura musical europeia. Esta representao obstaculiza a compreenso de Beethoven como uma construo social, cultural e tcnica (DeNora, 1995a; 1995b). Ora, Tia DeNora tenta problematizar os fundamentos sociais do sucesso de Beethoven nos seus primeiros quinze anos passados em Viena numa ambincia de receptividade que lhe permitiu concretizar os seus projectos musicais (Idem, Ibidem, 1995a; 1995b). Desde meados da dcada de 90 do sculo passado, a crescente centralidade da chamada viragem cultural como foco de interesse no mbito da sociologia, acarreou discusso as relaes entre pblicos, recursos culturais e vida quotidiana. No h uma negao dos constrangimentos estruturais no dia-a-dia dos indivduos, mas comea a ser considerada a capacidade dos mesmos para negociar esses mesmos constrangimentos, encontrando uma identidade e construindo um estilo de vida que vo para alm desses condicionalismos. Neste cenrio de viragem cultural, considera-se que os indivduos tm capacidade de exercer reflexividade e de conseguir um distanciamento crtico em relao sua identidade social e gesto do seu quotidiano. Neste sentido, David Chaney (1994) defende que as

Hennion refere que: fazer uma sociologia da mediao, no a sociologia relativista () ou sociologista (), tomar com seriedade a inscrio das nossas relaes nas coisas, e no as desfazer pelo pensamento, como se elas no resistissem, as montagens e os dispositivos por sua vez fsicos e sociais que servem para estabelecer uma tal partilha, deixando de lado um objecto autnomo, e do outro um pblico. Interpretar, no explicar, regressar em direco pureza das causas nicas, externas, que os actores procuram como ns. mostrar as irreversibilidades que por todo o lado os mistos interpuseram, entre os humanos, entre as coisas, entre os humanos e as coisas: onde que est a msica? (Hennion, 1993:373).4

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tradicionais formas de autoridade cultural, baseadas na classe, na comunidade e na tradio so substitudas por novas formas de autoridade, como os mdia e as culturas industriais, na medida em que os seus produtos tm uma influncia cada vez maior no dia-a-dia. Numa tentativa de aplicao destas ideias, podemos dizer que, por exemplo, o gosto ou as preferncias musicais constituem formas de expresso reflexivas, atravs das quais os indivduos constroem a sua identidade e no um produto determinado estruturalmente pelas circunstncias sociais. Concretizando, George Lewis (1992) considera que os gostos musicais se aliceram em trs dimenses: demogrfica (idade, gnero, raa, localizao), esttica (crescer num determinado lugar, ler um tipo especfico de literatura, etc.) e poltica (relao entre um gnero musical e a estrutura de poder dominante). Em Lewis est vincada a concepo do indivduo como um agente reflexivo na escolha de um gnero musical e sua incorporao numa esttica e num estilo de vida. Os condicionalismos externos funcionam como ponto de referncia e produzem respostas mltiplas aos gneros musicais e no uma nica resposta. No obstante, podemos previamente considerar as limitaes desta perspectiva no que concerne a uma verdadeira explorao dos modos pelos quais a msica actua no sentido da expresso de estilos de vida. Tambm possvel assinalar alguns estudos sociolgicos sobre msica pop ps-viragem cultural que ressalvam as formas localizadas e subjectivas atravs das quais a msica e as prticas culturais se traduzem no quotidiano. O primeiro o de Joanne Cummings (2006; 2007) que enceta uma demonstrao de como os pblicos juvenis exibem um conjunto de posies ideolgicas em relao a toda a mercadorizao dos festivais, por parte da organizao e dos patrocinadores, posies essas que so tomadas em linha de conta na construo dos espaos dos festivais por parte das promotoras de eventos, mesmo no quadro do indie rock em espao australiano. Hodkinson (2002; 2004) d conta do modo como a criao de uma cena musical resultado de prticas reflexivas e criativas dos fs de msica gtica. Por outro lado, Bennett (1999; 2004a) explora as diferentes leituras que os fs de hip hop fazem do mesmo e os distintos papis que este gnero musical desempenha nas suas vidas, mediante experincias diferenciadas do local. Assistimos, assim, a um esforo interpretativo assente na constante construo e reconstruo de formas estilsticas musicais por parte dos agentes sociais, em resposta s circunstncias e contingncias do dia-a-dia e forma como as experienciam. Bennett (2008) prope inclusivamente uma sociologia cultural da msica menos determinista relativamente influncia da estrutura social nas escolhas e nas prticas musicais, propondo que estas sejam vistas como um processo dinmico quotidiano de recepo, apropriao e aestetizao dos textos da msica popular, dos artefactos e recursos associados que so integrais produo de significado musical (Idem, Ibidem:430). Retomando a designao deste subcaptulo, o rock alternativo, espao social relacional: interrogando a instvel matria da msica, podemos clarificar que contem uma intencionalidade que se prende com a considerao das oportunidades tericas apresentadas em interrelao fecunda com a teoria bourdiana. A originalidade de Bourdieu no tanto a de encontrar as determinantes externas dos artistas para explicar a origem do modernismo, mas a de introduzir o conceito de habitus artstico, ou disposies adquiridas, mediante

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as quais os artistas expressam a sua posio social numa distinta filosofia ou conjunto de significados (Fowler, 1997:77). A diferena chave relativamente a outros autores que as condies objectivas no so simplesmente um produto da posio de classe externa, mas so tambm moldadas objectivamente pelos agentes do mundo da arte independente, embora dominado, com os seus compromissos, alianas, ansiedades competitivas e interesses (Fowler, 1997:77). Assim, primeiramente, partimos do pressuposto hipottico de que a msica enquanto prtica e consumo se insere numa lgica de funcionamento complexa das estruturas sociais contemporneas; como tal, a msica que se faz, se divulga ou se consome depende das instncias criativas contemporneas, a maior parte das vezes sujeitas a imperativos culturais, econmicos, sociais ou simblicos relevantes. A segunda questo prende-se com o prprio significado que os agentes do s suas posies, produtos e artefactos num dado espao social que marca, delimita e esboa relaes de fora e de sentido. Assim, o que tendemos a experienciar como milagroso, nico, pessoal, so, na maior parte das vezes, experincias partilhadas num quadro de interaco determinado e portador de sentidos e isto particularmente vlido para a msica e para o rock. Valer a pena enunciar a este propsito as palavras de Bourdieu: se o meu discurso for decepcionante, ou at mesmo por vezes deprimente, no que eu tenha qualquer prazer em desencorajar, pelo contrrio. que o conhecimento das realidades inclina ao realismo. Uma das tentaes da profisso de socilogo aquilo a que os prprios socilogos chamaram o sociologismo, quer dizer a tentao de transformar leis ou regularidades histricas, em leis eternas. De onde a dificuldade que h em comunicar os produtos da investigao sociolgica. Temos de nos situar sempre entre dois papis: por um lado o de desmancha-prazeres e, por outro lado, o de cmplice da utopia (Bourdieu, 2004:101). Navegando com Bourdieu, mas assumindo uma filiao terica de mdio alcance de pesquisa com Crane, Becker, DeNora e outros, podemos, ainda assim, deixar esta abertura de captulo com a expresso que intitula o ltimo lbum dos The Fall: Your Future Our Clutter5. Porque instabilidade mas tambm desordem so sentimentos no considerados de forma depreciativa mas assumidos como determinantes pelo objecto que tentamos explicar e compreender.

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The Fall (2010) - Your Future Our Clutter. Reino Unido: Domino Records.

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4.2. Uma plataforma de desempenhos: agentes em interaco no campo do rock alternativo em PortugalConsiderando os contributos prefigurados no Captulo 3, e encarando-os como recursos de mdio alcance, iremos agora considerar o contributo de Pierre Bourdieu enquanto recurso terico estruturante.A obra de Bourdieu assenta na tradio sociolgica remontando a Karl Marx, a Max Weber e a mile Durkheim. A teoria da prtica elaborada por Bourdieu surge com o objectivo de superar as antinomias clssicas presentes nas teorias sociais, associadas a paradigmas concebidos como aparentemente divergentes e irredutveis. Como Weber, Bourdieu evidencia a noo de legitimidade, que justifica a ordem estabelecida, bem como os processos de diferenciao social com base nas diferentes actividades econmicas, religiosas, polticas e culturais. A sociologia de Weber tem como ponto de partida o sujeito e o sentido da aco corresponde ao sentido subjectivo que o actor lhe comunica, pelo que a objectividade do social s pode ser apreendida atravs das aces individuais. O mundo objectivo aparece como uma rede de intersubjectividade, enquanto resultado de aces dirigidas para o outro e que adquirem significado na medida em que o outro compartilha comigo o mesmo mundo social no qual tais aces se desenrolam. A influncia de Durkheim visvel na forma como Bourdieu demonstra que as representaes mentais esto ligadas s estruturas sociais e na utilizao de inquritos estatsticos como base do seu trabalho (Wacquant, 2002). A sociologia de Durkheim reifica a sociedade uma vez que a apreende como coisa. Toda a aco social deduzida a partir dum sistema objectivo de representaes que se encontra fora do alcance do actor social. O indivduo apreendido como um resduo do elemento colectivo (Bourdieu & Wacquant, 1992). A teoria de Bourdieu visar tambm superar estas limitaes do pensamento durkheimiano. Como Marx, Bourdieu caracteriza o espao social atravs da relao dominantes/dominados, colocando a tnica na ideia de hegemonia dos interesses da classe dominante. A fenomenologia existencialista de Husserl e Merleau-Ponty, os estruturalismos lingustico de Saussure, etnolgico de Lvy-Strauss, filosfico de Althusser, o interaccionismo simblico de Goffman, a lingustica de Panofsky e a filosofia crtica de Kant fazem tambm parte da herana de Bourdieu (Wacquant, 2002). Bourdieu demarca-se simultaneamente das correntes que conferem demasiada importncia ao indivduo racional, recusando as palavras actor, indivduo e razes, substituindo-as pelas palavras agente e sentido prtico (Bourdieu & Wacquant, 1992), e das correntes que vem a aco individual como mero reflexo de estruturas sociais que a precedem e que lhe so exteriores, impondo-se-lhes. A teoria sociolgica de Bourdieu pode, pois, ser vista, como sugerem Accardo e Corcuff (1989), como um estruturalismo gentico. O seu core analtico so as classes sociais, com origem na tradio marxista, mas vai mais longe ao atribuir importncia s relaes

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de sentido, aos bens simblicos e dominao simblica de classe. Ao fazer uma reviso do estruturalismo, Bourdieu reflecte sobre a produo das estruturas. O espao social, palco por excelncia de luta entre os agentes, um sistema de posies socialmente diferenciadas porque implica mecanismos de diferenciao, mas as posies sociais no se definem por si mesmas, elas so relacionais. A dimenso relacional das posies sociais permite ultrapassar a viso nominalista que afirma que uma posio existe por si prpria (Bourdieu & Wacquant, 1992). Pierre Bourdieu aspira criar um modelo terico que possibilite entender, articuladamente, dimenses mais estruturais e outras, mais directa e imediatamente visveis decorrentes das prticas sociais. Trata-se de apreender a vida social enquanto produto das circunstncias materiais e culturais, bem como das prticas colectivas e individuais (Casanova, 1995a). Persegue o conhecimento praxeolgico, cujo objectivo apreender o duplo processo de interiorizao da exterioridade e de exteriorizao da interioridade, ou seja, pretende entender o sistema de relaes objectivas que o modo de conhecimento objectivista erige, mas tambm as relaes dialcticas entre essas estruturas objectivas e as disposies estruturadas, nas quais aquelas se actualizam e tendem a reproduzir (Casanova, 1995a; 1995b; Accardo & Corcuff, 1989). Para o autor, a sociologia deve construir factos sociais totais capazes de reconstituir a unidade social fundamental da prtica humana, unidade que se encontra limitada pelas fronteiras disciplinares, pelos domnios empricos e pelas tcnicas de observao e anlise (Bourdieu & Wacquant, 1992). Bourdieu ope-se ao objectivismo, uma perspectiva que atribui a priori aos objectos, encarados do exterior e assim analisados pelo socilogo, com uma homogeneidade e uma consistncia que eles no possuem. O autor recusa o metodologismo que separa a reflexo sobre o mtodo da sua utilizao e o teoricismo que valoriza demasiado a teoria, propondo um relacionismo metodolgico, com o primado das relaes. A cincia no tem que escolher entre estrutura e agente, deve promover a sua articulao (Bourdieu & Wacquant, 1992). Bourdieu veemente a propsito das clivagens objectivismo versus subjectivismo, como podemos ver no seguinte excerto datado de 1965: tempo de as cincias sociais deixarem para a filosofia a alternativa fictcia entre um subjectivismo que continua a tentar encontrar o lugar da pura origem de uma aco criativa que no possa ser reduzida aos determinismos estruturais, e um pan-estruturalismo objectivista cuja meta gerar as estruturas directamente atravs de uma espcie de partenognese terica... Lembrar que as condies objectivas existem, e que se materializam num, e como um, produto da interiorizao das condies objectivas que constituem o sistema de disposies no significa resvalar para as ingenuidades do subjectivismo ou do personalismo (Bourdieu, 1965:22). Outrora, a explicao dos fenmenos baseava-se largamente no paradigma racionalista e na ligao entre as leis e os seus exemplos concretos. Tal paradigma introduzia a distino entre as cincias bem sucedidas e aquelas que no o eram, ou seja, entre as que conseguiam descobrir e demonstrar leis e as que no o conseguiam fazer. luz de um delineamento deste tipo, as cincias sociais eram geralmente humilhadas: o seu sucesso era trivial e os seus falhanos imensos. E no difcil perceber porqu (Dyke, 1999:192). A busca de leis funciona apenas no caso de fenmenos repetitivos, fenmenos cuja ocorrncia futura

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idntica passada, algo que est longe de ser caracterstico dos fenmenos sociais. A construo de um modelo dinmico de anlise leva-nos a argumentar acerca das dimenses significativas da mudana. Que diferenas fazem, afinal, a diferena? A resposta geral de Bourdieu a esta pergunta a de que as diversas formas de capital social, cultural e econmico fazem a diferena medida que os indivduos prosseguem as suas trajectrias e medida que assumem e consolidam posies no seio do espao social (Dyke, 1999:194). Chuck Dyke compara a teoria da prtica de Bourdieu dinmica no linear, uma vez que os sistemas sociais se desenvolvem sempre entre a estabilidade e a mudana e, porque assim , o sucesso dos modelos estruturais estticos tem sido sempre limitado, pois estes no conseguem dar conta dos elementos de mudana dos fenmenos sociais. Por outro lado, tambm limitado o sucesso das vises individualistas, que no conseguem lidar com a questo dos constrangimentos estruturais que condicionam os sujeitos. Assim, a anlise de Bourdieu, com o seu conceito de habitus e de estruturas estruturadas e estruturantes consegue superar este problema (Dyke, 1999:195). Ao contrrio das perspectivas tradicionais, Bourdieu concebe a estrutura social como o conjunto de resultados padronizados da inter-relao entre muitos potenciais diferentes, possibilitados e constrangidos pelas disposies durveis que lhes subjazem. Ver estes padres como o resultado de leis um exerccio que geralmente tem maus resultados. Ao mesmo tempo, se dissermos que a sociedade resulta de causalidades lineares, estamos a afirmar que nada interessante vai acontecer e que a sociedade continuar o seu rumo (Dyke, 1999:199). Ora, os fenmenos interessantes a que nos referimos so a emergncia espontnea da estrutura (autokatakinesis) e a transformao da estrutura existente em nova estrutura. esse o tipo de fenmenos em que Bourdieu est interessado. Mas Bourdieu tambm se interessa pelo modo como a estrutura deve ser entendida, e especialmente pelo modo como os limites estruturais devem ser entendidos (Dyke, 1999:199).

4.2.1. Campos sociais e a defesa do espao social relacional na assuno de uma linha de pensamento relacional, intrnseca ao modo de conhecimento praxeolgico, que devemos procurar a origem de conceito de campo, tarefa que torna possvel o desenvolvimento de uma anlise contextualizada do pensamento de Bourdieu e um acesso mais claro dinmica dos campos. A sociologia no deifica mecanicismos, os campos sociais so campos de foras mas tambm campos de lutas para transformar ou conservar esses campos de foras. A noo de campo representa para Bourdieu um espao social de dominao e de conflitos, onde cada campo tem uma certa autonomia e possui as suas prprias regras de organizao e de hierarquia social. Como num jogo de xadrez, o indivduo age ou joga segundo a sua posio social neste espao delimitado: um campo consiste num conjunto de relaes objectivas histricas entre posies ancoradas em certas formas de poder (ou de capital), enquanto o habitus toma a forma de um conjunto de relaes histricas depositadas no seio dos corpos individuais sob a forma de esquemas mentais ou corporais de percepo, de apreciao

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e de aco (Wacquant, In Bourdieu & Wacquant, 1992:24). Bourdieu define espao social como um conjunto organizado ou um sistema de posies sociais que se definem umas em relao s outras. um todo cujas partes componentes esto em interaco umas com as outras de forma durvel e no arbitrria. Cada parte s toma significado na relao com as outras. A tomada de posio social s ganha sentido na e pela diferenciao, da que o ponto de vista relacional evite o erro nominalista (Wacquant, In Bourdieu & Wacquant, 1992:26). Os agentes tm uma definio simultnea no espao fsico e no espao social. As prticas dos agentes orientam-se em funo dos valores percebidos, que podero valorar as coisas positiva ou negativamente. A distncia social mede-se em relao aos poderes que as posies do ou interditam aos seus ocupantes. A interaco fsica no suficiente para acabar com o abismo social, da mesma forma que a distncia geogrfica no impede que os agentes ocupem a mesma posio social. O espao social pode ser decomposto em diferentes campos, correspondendo a diferentes prticas e instituies sociais como por exemplo a economia, a poltica, a cultura, o desporto, a escola, os mdia ou a moda. Estes espaos sociais formam outros tantos microcosmos regidos por regras prprias: a noo de espao contm, por si prpria, o princpio de uma apreenso relacional do mundo social: afirma com efeito que toda a realidade que designa reside na exterioridade mtua dos elementos que a compem (Bourdieu, 1997:31). Cada campo est por sua vez estruturado segundo posies dominantes e posies dominadas, determinando os lugares dos agentes que nele intervm, que se materializam num espao de luta com vista conquista de posies dominantes. Cada campo est ligado aos outros campos por ligaes econmicas e simblicas, mas possui uma certa autonomia, que se traduz, entre outros aspectos, por interesses especficos no campo. O que se produz e o que se troca nos campos no so apenas recursos raros como riqueza material, prestgio ou poder, mas tambm significado, que atribui uma identidade social aos agentes, distinguindo-os uns dos outros. Os agentes ocupam diferentes posies segundo os campos, que remetem para as disposies herdadas ou adquiridas ao longo da vida. Assiste-se a estratgias de conservao e de conquista de posies dominantes. No plano simblico, as estratgias de conservao esforam-se por manter a norma comum, que evita pr em causa as posies. As estratgias de subverso tm por finalidade desvalorizar a normas dominantes bem como o capital que lhe est associado. Ter presente o carcter objectivo do campo de produo cultural implica conceber o seu modo de funcionamento como anlogo ao de um campo magntico, perspectivando o carcter objectivo de relaes entre cada agente e a sua obra, entre o criador e o seu pblico, mediatizadas pela aco dos difusores e dos crticos (todos agentes inter-actuantes deste campo). Este campo pautado por uma autonomia de funcionamento relativa, e portanto uma lgica original.

Numa abordagem de sistematizao da perspectiva bourdiana, podemos elucidar duas acepes fundamentais de campo. A primeira, enquanto designao do espao social global (Earle, 1999). Percebe-se, pois, como espao no seio do qual cada pessoa ocupa

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uma srie de posies que definem a sua trajectria. Tais posies resultam da posio ocupada nas distribuies estatsticas dos dois princpios de diferenciao que, nas sociedades do capitalismo avanado, assumem maior importncia: o capital econmico e o capital cultural. As pessoas so objectivamente e subjectivamente semelhantes se ocuparem as mesmas vizinhanas sociais, na expresso de Earle. Como manifesto, o autor utiliza a expresso vizinhana no para designar um espao fsico de residncia, mas um conjunto de posies adjacentes no espao social (Earle, 1999:177). Esta noo de campo, o espao social global, elaborada por Bourdieu como uma alternativa classe entendida num sentido marxista. Para Bourdieu, a classe resulta sempre de processos de formao de classe. J as localizaes no espao social, sempre concebidas por comparao a outras localizaes melhores ou piores , so sempre marcos individuais de posse de um determinado volume de capital e de (des)vantagens sociais efectivas (Earle, 1999:179). Com a noo de campo, Bourdieu condena o apriorismo, a fantasia filosfica de que possvel conhecer um objecto sem o examinar e estudar, e busca o que invariante, a estrutura, no que variante a realidade observada (Earle, 1999:179). Citando o prprio Bourdieu: os campos so espaos estruturados de posies (ou de postos) cujas propriedades dependem da sua posio neste espao e que podem ser analisadas independentemente das caractersticas dos seus ocupantes (em parte determinadas por elas) (Bourdieu, 2004:119). Nas sociedades altamente diferenciadas, cada campo atribui ao capital econmico, ao capital cultural e a algumas formas de capital simblico especfico do campo no s um grau relativo de importncia, mas tambm um papel mais ou menos aceitvel ou no-desqualificante na competio interna desse campo. Em alguns campos, como o literrio, por exemplo, o dinheiro poder no ter qualquer relevncia na competio entre poetas, e ser at um elemento desqualificante um poeta endinheirado no pode comprar a edio de um livro, por exemplo. Tal seria encarado como muito negativo pelos seus pares... (Earle, 1999:180). A segunda acepo bourdiana de campo encontra-se na designao de um (sub)espao social com uma lgica e regras prprias e, portanto, distinto de outros (sub)espaos sociais. Assim, e seguindo as palavras de Bourdieu: sempre que se estuda um novo campo, seja ele o campo da filologia no sculo XIX, da moda hoje ou da religio na Idade Mdia, descobrimos propriedades especficas de um campo particular, ao mesmo tempo que fazemos progredir o conhecimento dos mecanismos universais dos campos que se especificam em funo de variveis secundrias. Por exemplo, as variveis nacionais fazem com que os mecanismos genricos tais como a luta entre os pretendentes e os dominantes tomem formas diferentes (Bourdieu, 2004:119). Mesmo assim, a autonomia dos diferentes campos sempre relativa. A autonomia , expressa Bourdieu, algo historicamente conquistado. Os campos so sempre permeveis a influncias externas, nomeadamente s influncias econmicas, ainda que os jogadores especficos de cada campo se esforcem por manter a sua pureza. No campo literrio, o que acabmos de afirmar particularmente evidente (Earle, 1999:180). Mas existe ainda a possibilidade de surgimento de agentes muito poderosos e bem sucedidos que violam as fronteiras dos seus campos, gravitando entre vrias esferas da vida social. Para William Earle, Andy Warhol um exemplo de um actor que conseguiu transpor as barreiras do campo artstico, invadindo outros campos e acumulando capital em todos eles (Earle, 1999:181). Mas Bourdieu no est interessado

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numa taxinomia das formas de capital. O capital simblico no deve ser pensado como um tipo de capital, mas como uma forma de enfatizar a componente relacional do capital em geral (Earle, 1999:182). Desta forma, de acordo com Bourdieu, o capital simblico um capital com uma base cognitiva, que assenta no conhecimento e no reconhecimento (Earle, 1999:183). O capital simblico constitui, assim, a base para comparaes individuais e distines atravs de categorias de percepo que resultam da incorporao de oposies e divises inscritas na distribuio estruturada das diferentes formas de capital, incorporao esta que resulta da incorporao de um determinado habitus (Earle, 1999:183). A relao entre o capital especfico de um dado campo e o capital simblico, de conhecimento e reconhecimento, dialctica (Earle, 1999:184): aqui que a competncia especfica do artista muito importante. Porque no se improvisa um criador por acaso, de surpresa ou de forma desconcertada, etc.. O artista aquele que capaz de fazer sensao. O que no quer dizer fazer o sensacional, como fazem os saltimbancos na televiso, mas, no sentido forte do termo, fazer passar a ordem da sensao, que, enquanto tal, est conforme a tocar a sensibilidade, a emocionar... (Bourdieu & Haacke, 1994:36). Merc deste desgnio conceptual de Bourdieu em torno dos campos sociais, parece-nos irrecusvel no acolher a heuristicidade e fecundidade analtica desta conceptualizao. O passo em frente ser o enriquecimento desta contribuio com outras formulaes, fundamentais para a devida actualizao e complexidade epistemolgica e analtica que aqui queremos empreender. Parece-nos, desde logo, de grande relevncia retomar a expresso de Antnio Firmino da Costa, quadros de interaco, enquanto conjunto estruturado e estruturante de normas, de percursos, de prticas, de rituais, que fazem confluir e accionar o encontro no espao social de uma estrutura e de um sistema de disposies mantendo interdependncias recprocas, isto , espacializando os habitus de que so portadores os agentes sociais (Costa, 1984; 1999). Como defendemos em outro lugar (Guerra, 1992), falar de quadros de interaco enquanto espaos fsicos concretos poder-se- revelar como um exerccio assaz infrutfero, pois no existem a no ser em intermediao constante com as prticas e os sentidos que efectuam e atribuem os agentes sociais no espao. Tambm inevitvel imbricar o edifcio conceptual bourdiano ao de Norbert Elias. Ao abordar a civilizao dos costumes, Elias demonstra que as funes apelidadas de naturais so totalmente modeladas pelo contexto histrico e social (Elias, 2000; Heinich, 2001). Similarmente, ao analisar o caso Mozart luz das identidades comunitrias (Elias, 1993), enquanto espaos relacionais que definem a situao de interaco dos indivduos, Elias aproxima-se, antecipando-o, de Bourdieu. Alis, a sua sociologia das configuraes ou figuraes designa qualquer situao concreta de interdependncia entre os indivduos, afastando o dualismo sujeito versus objecto (Elias, 1993; 2000; Heinich, 2001). Outrossim, a anlise de Giddens reenvia, desde logo, no mbito de uma sociologia dinmica, para a converso dos dualismos agncia-estrutura em dualidade, focando o self em contextos de interaco. Deste modo, munido de uma sensibilidade antropolgica, historicista e crtica contaminada por lastros geo-temporais e geo-espaciais, o autor patenteia os quadros vivenciais como o locus do self activo (Giddens, 1989:29). Assim, ao proceder

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formulao da teoria da estruturao, com o intuito de transcender as aporias, combater o estancamento disciplinar e conferir especificidade s cincias sociais, o autor retoma o legado de Goffman, destacando ao nvel das prticas sociais e dos modelos de interaco, a matriz do self que, substantivando os cenrios e os episdios da dramaturgia do quotidiano, reconfigura a posio social, por sua vez norteadora da definio identitria dos actores, como uma smula de diferentes estratgias de significao, dominao e legitimao (Giddens, 1989). Interligando a modernidade tardia com as questes identitrias, Giddens (1997) alude experincia contempornea de fragmentao e ao desfasamento com a significncia que atravessa as transformaes sintomticas da era moderna, patentes na dissoluo das narrativas de crena e de verdade, na institucionalizao da dvida radical e no projecto reflexivo do self que conecta o pessoal com a mudana social. Valer a pena, entretanto, recuar um pouco mais at Simmel. O interminvel processo que relaciona sujeito e objecto tem origem numa situao especfica ao homem: o facto de poder desdobrar-se a si mesmo como objecto do seu pensamento. Dentro do esprito encontra um novo mundo, diz Simmel acerca do homem. Nas suas manifestaes (como a arte, a religio ou a tcnica) o esprito no declina para uma situao de confuso. Pelo contrrio, pela fixidez das formas que da obtm, o esprito converteu-se a ele prprio em objecto, contraps-se radical solvncia da alma subjectiva, s tenses variveis da vida. O esprito interpelando-se a si mesmo como esprito resolve em infinitas tragdias a profunda contradio entre a vida subjectiva (limitada no tempo) e os objectos, que uma vez criados permanecem intemporalmente (Simmel, 1988). A considerao do valor do rock no se prende apenas com uma questo de prazer; importa fugir s asseres que defendem que o valor de qualquer objecto no seno o seu valor instrumental na produo de prazer: a apreciao esttica da msica rock no esgota todos os aspectos relevantes na sua avaliao. esse o entendimento que partilhamos com Theodore Gracyk6: no s o rock () uma parte integrante da vida de muitas pessoas, mas tambm um iniciador cultural: gostar de rock, gostar de um determinado tipo de rock, em vez de outro, tambm uma forma de vida, uma maneira de reagir, todo um conjunto de gostos e atitudes (Gracyk, 1996:205). Seria, na verdade, difcil abordar a pertinncia e a heuristicidade da teoria dos campos de matriz bourdiana, sem relevarmos a importncia da proposta de Becker em torno das art worlds e de Diana Crane centrada na culture world. E isto por duas razes fundamentais. A primeira porque estas propostas ocupam um lugar cimeiro na sociologia da cultura, designadamente no mundo anglo-saxnico, e foram objecto de uma aplicao extensa do ponto de vista emprico. A segunda compromete-se com a necessidade de confrontao terica da teoria dos campos com matrizes conceptuais porventura mais actuais no tempo e no espao em que nos movemos. De resto, este incio de sculo tem representado paraO mesmo autor destaca a seguir: em suma, as consideraes sociais, prticas e pessoais de um indivduo no so relevantes para avaliar o trabalho musical individual, mas so muito importantes para avaliar os gostos musicais individuais. O valor esttico da msica surge quando algum a experiencia, mas a sua recompensa apenas acessvel s pessoas que possuem o capital cultural apropriado e para quem esses assuntos musicais interessam. O valor da msica , ento, uma funo da continuao de uma cultura musical (Gracyk, 1999:217).6

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muitos cientistas sociais um palco inelutvel de procura de paradigmas de sntese.

4.2.2. Art worlds e campos sociais A existncia de art worlds mostra que as obras de arte no so produtos individuais mas colectivos, numa esfera de concertao de interesses e vontades. A cooperao entre pessoas essencial para a criao artstica. Para que qualquer obra de arte se apresente como produto final muitas actividades tiveram de ser levadas a cabo, muitas pessoas se envolveram. Particularizando, foi necessrio ter a ideia do trabalho a realizar, podendo ser uma ideia mais estruturada ou mais espontnea. Ora, se uma ideia pressupe uma execuo cujos meios podem ou no exigir competncias especficas, para que a arte se execute tambm necessrio que os materiais que as actividades artsticas exigem sejam produzidos e distribudos. Para alm da criao artstica em si, existe tambm um conjunto de actividades de suporte que devem ser levadas a cabo para que a obra de arte ganhe forma. Mais do que isto, deve acontecer uma actividade de resposta e de apreciao da obra para que ela exista enquanto tal. A inexistncia destas actividades no acarreta a inexistncia de trabalho artstico, apenas se pode afirmar que o uso de meios no convencionais, nomeadamente de distribuio, pode acarretar desvantagens. A cooperao revela-se ento essencial nas artes como em todas as actividades humanas, pois todas as artes que conhecemos, tal como todas as actividades humanas que conhecemos, envolvem a cooperao de outros (Becker, 1982:7). Todas as pessoas envolvidas na produo artstica renem tarefas especficas para si e procuram alcanar aquelas que so mais prestigiantes, compensatrias e interessantes: toda a arte, de resto, implica uma diviso extensiva do trabalho (Becker, 1982:13). Embora nas artes performativas, como o cinema, a diviso laboral seja mais visvel, ela tambm acontece em produes que parecem mais solitrias, como a pintura e a poesia. Isto porque a cooperao no implica a vivncia no mesmo espao, nem no mesmo tempo, implica, antes, ter em conta tudo o que est por detrs de uma obra de arte, desde o que foi necessrio sua produo at ao que necessrio sua distribuio e reconhecimento. Becker define como condio necessria existncia de art worlds um conjunto de pessoas cujas actividades so necessrias para a produo dos trabalhos que aquele mundo, e talvez tambm outros, definem como arte (Becker, 1982:34). O trabalho cooperativo que envolve a produo artstica implica a existncia de convenes que definam a forma como os agentes devem cooperar. Ao trabalhar em conjunto realizam-se acordos que passam a fazer parte da forma convencional de fazer arte (Maanen, 2010). As convenes artsticas contribuem para organizao do trabalho artstico em cooperao: as convenes ditam os materiais a serem usados (), as abstraces a utilizar para passar determinadas ideias ou experincias (), a forma de combinar materiais e abstraces (), sugerem a dimenso apropriada de uma obra () [e] regulam as relaes entre artistas e audincia, especificando os direitos e obrigaes de ambos (Becker, 1982:29). Becker enfatiza a importncia das convenes, isto , a partilha de conhecimentos sobre um determinado meio, postulando que a forma como se obtiveram

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esses conhecimentos diversa e encontra-se imbricada com o tipo de relao que tm com o meio artstico em questo. As artes empregam convenes oriundas do funcionamento societal em geral, mas tambm particulares ao mundo artstico. Estas ltimas vo ser fundamentais para distinguir um pblico leigo de um pblico iniciado face criao artstica em causa: a capacidade de ver objectos comuns como objectos artsticos distingue e demarca as fronteiras entre os actores socais (Crane, 2007). Apesar das convenes, os art worlds por vezes subdividem-se, criando subgrupos autnomos que, contudo, no seu seio tambm tm convenes que os caracterizam. No fundo, at quando se pretende algo no convencional necessrio ter em conta convenes: os art worlds por vezes separam-se e transformam-se em subgrupos relativamente autnomos. Quando tal acontece, os participantes em cada uma das divises sabem, e tornam-se responsveis por saber, um qualquer conjunto diferente de convenes (Becker, 1982:61). Esta noo tem sido objecto de um uso alargado, sendo de salientar a sua releitura e apropriao por Simon Frith no mbito da indstria musical, relevando trs art worlds: o art music world; o folk music world; e o commercial music world (Frith, 1996). Paralelamente, a abordagem de Becker tem vindo a ser objecto de algumas crticas, designadamente porque sublinhou o consenso, a cooperao e a coordenao nos art words, dando opacidade aos conflitos entre os diferentes actores sociais em presena, por exemplo, os que tocam s relaes entre os artistas e outros agentes que controlam os recursos materiais e simblicos (Crane, 2007; Maanen, 2010). O conceito bourdiano de campo afasta-se, neste sentido, da noo de art world, conforme foi proposta por Danto (1964) e, depois, por Becker (1982), que a celebrizou na sociologia. Mais do que focado nas interaces que se operam no interior dos diferentes segmentos do campo cultural e na cooperao que os agentes culturais desenvolvem com vista produo das suas obras, Bourdieu est interessado na reconstituio do espao de posies que estruturam o funcionamento de um dado campo artstico, aqui perspectivado essencialmente como espao de antagonismo e de lutas. Esta oposio no significa, entretanto, que as duas perspectivas devam ser consideradas inconciliveis. Maria de Lourdes Lima dos Santos (1994:421) sublinha isto mesmo, quando nota que, em Becker, h uma notvel recriao descritiva da forma como o processo artstico funciona em art worlds diversos, o que, a seu modo, cumpre um objectivo que comum a Bourdieu, o de desmistificar uma concepo esteticista da arte. Com efeito, ao descrever com mincia de que forma a arte uma actividade colectiva, Becker refuta as perspectivas que apresentam o objecto artstico como produto do gnio solitrio. Na verdade, o objecto artstico o resultado da cooperao entre diferentes agentes e instituies, em diferentes planos (produo, difuso, recepo), cooperao que se concretiza, segundo Becker, por referncia a um conjunto de convenes que, reflectindo um entendimento comum do mundo da arte, geram uma prtica comum (de certo modo, como a illusio de que fala Bourdieu). A subsistncia de um dado mundo da arte depender da eficcia da cooperao em que assenta.

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precisamente aqui, entretanto, que se vislumbram os problemas da perspectiva beckeriana. Becker no ignora que nem sempre so consensuais as interaces ocorridas no interior dos mundos da arte. H interesses divergentes que a todos os momentos se manifestam e, por isso, o envolvimento do artista numa rede cooperativa com uma dada configurao constrange necessariamente o tipo de arte que este produz. A conformao dos artistas mais radicais s convenes do mundo da arte, sem a qual a divulgao do seu trabalho seria muito difcil, uma realidade frequente. No obstante, no deixa de se verificar que trabalhos no estandardizados conseguem encontrar canais de difuso alternativos. aqui que a ideia de segmentao do campo artstico adquire pertinncia e que a perspectiva agonstica de Pierre Bourdieu se mostra especialmente heurstica. Como nota Maria de Lourdes Lima dos Santos (1994:421), na conceptualizao de Becker, marcadamente interaccionista, cada art world tende a ficar fechado sobre si. Retomando a nossa discusso, podemos mesmo constatar que, ao analisar as criaes culturais do sculo XX e, em particular, as criaes culturais da ps-industrializao que se fizeram no corao das prprias indstrias da cultura, inelutvel constatar que uma das grandes foras do rock foi a sua capacidade de colocar na mira a ordem social e cultural vigente, desde o poder at aos comportamentos quotidianos, de incidir um mago de crtica que rapidamente se tornou, tambm, um foco de contestao. No se encontram aqui, diferentemente do que acontece com a teoria do campo de Bourdieu, nem as preocupaes com a articulao micro-macro (atravs do habitus) nem as preocupaes com a conflitualidade interna ao campo ou com a relao de dominao/dependncia intra e inter-campos. O estudo da mudana no interior de um dado mundo da arte tende, para Becker, a reduzir a inovao a alteraes internas aos art worlds e funda a viabilidade destes meramente na capacidade de organizao e cooperao dos respectivos agentes, quando, na verdade, em grande parte dos casos, a mudana o resultado do conflito que se gera no interior do campo artstico pelo monoplio da autoridade e pela redistribuio do capital especfico.

4.2.3. Cultural world, segmentao e diversidade cultural urbana A teorizao de Becker inspirar, no obstante, toda uma fileira de produo terica, conhecida como a perspectiva da produo cultural [production of culture], que, no sem surpresa, ter especial desenvolvimento no seio da sociologia anglo-saxnica. Diana Crane, a principal representante desta perspectiva sociolgica sobre o processo de criao artstica (ou, se quisermos, cultural), vai aplicar o conceito de art world (que, de resto, substituir pelo de culture world) s vrias formas de cultura urbana. No seu principal trabalho (Crane, 1992), a autora flexibiliza a teorizao de Becker, em particular no respeitante ao tpico das estratgias dos diferentes produtores culturais quanto s suas trajectrias artstico-profissionais e quanto s suas atitudes face inovao. Diana Crane destaca a hipoteca do modelo da cultura urbana como cultura de elite.

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Actualmente, existem factores que promovem um questionamento deste modelo de cultura urbana: sobreleva a influncia das elites e ignora tanto a existncia de culturas urbanas no-elitistas, como o facto de que a influncia das elites nas culturas urbanas vem declinando; a emergncia de novos actores (promotores urbanos e grandes empresas), cuja influncia sobre formas de cultura urbana de elite tem aumentado, coloca a tnica nesta aco no desinteressada, que procura beneficiar directa ou indirectamente da sua associao com estas formas de cultura; o modelo do controlo elitista no se adequa s caractersticas actuais das reas urbanas as corporate cities so altamente descentralizadas, com os centros comerciais suburbanos e os centros comunitrios a fornecerem o equivalente de um ncleo urbano (Crane; 1992:111-112). Estas culturas urbanas so, nos termos de Becker, art worlds, tanto as formas ditas de elite, como as restantes. Os componentes deste art world so: os criadores culturais e pessoal de apoio que os assiste; as convenes e entendimentos partilhados sobre o que devem ser os produtos culturais, fornecendo padres para avaliar e apreciar esses produtos; os gatekeepers, tais como crticos, DJ e editores, que avaliam os produtos culturais; as organizaes dentro das quais, ou em torno das quais, muitas destas actividades tm lugar (exibidas, levadas a cabo ou produzidas); e as audincias, cujas caractersticas podem ser um factor fundamental na determinao de que tipo de produtos culturais podem ser patenteados, representados ou vendidos num setting urbano em particular (Crane; 1992:111-112). Ao condensar os pontos fortes da proposta de Crane, Maria de Lourdes Lima dos Santos (1994:421-422) sublinha precisamente o facto de esta nuancear a tipologia de Becker que dividia os artistas entre integrated professionals, mavericks (inovadores), folk artists e nave artists , ao mostrar como a convergncia de determinadas condies de produo, difuso e recepo pode propiciar o trfego entre os vrios tipos. Assim, a proposta de Crane contempla um contexto organizacional de produo muito diversificado e segmentado, onde a rigidez no pedra de toque. Diana Crane opera uma anlise da cultura urbana de modo a esclarecer a heterogeneidade desta em termos de tipo de organizaes que produzem a cultura e tipo de audincias que a consome. Neste sentido, distingue diferentes mundos da cultura: orientadas por redes [network oriented] (distinguindo entre redes isoladas [isolated networks] e redes intersectadas [intersecting networks]); organizaes orientadas para lucros; e organizaes sem fins lucrativos. Existem as redes sociais informais, animadas por criadores e consumidores que normalmente se conhecem e interagem. As organizaes culturais inseridas nestas redes fornecem os recursos para a produo, disseminao e exibio destes trabalhos - small cultural organizations. Esta combinao parece ser estimulante para a produo de cultura que esteticamente original, ideologicamente provocadora ou ambas. Isto porque estas redes tendem a atrair os jovens, trazendo inovao, e porque se sustentam num feedback contnuo entre os criadores e entre estes e as audincias. (Crane, 1992:113). Um segundo tipo de mundo da cultura estrutura-se em torno de pequenos negcios orientados pelo lucro: onde a actividade dos criadores concentra-se na prpria organizao mais do que

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numa rede de outros criadores - fellow creators. O objectivo mais produzir trabalho que agrade a uma audincia ou uma clientela do que chocar (Crane, 1992:114). O terceiro tipo de mundo da cultura est organizado volta de organizaes no-lucrativas, cujo objectivo a preservao das tradies tnicas e artsticas existentes, mais do que desenvolver novas produes: os produtos culturais associados com diferentes mundos da cultura diferem em termos das suas caractersticas estticas (Crane, 1992: 114). De modo a ultrapassarem os limites da sua rede social imediata, os criadores em rede devem receber reconhecimento no mundo da arte. Os membros dos estilos artsticos operam em redes de controlo de acesso [gatekeeping networks] que avaliam, exibem e vendem as suas obras (Crane, 1992:119). Os exemplos de como se pode operar a passagem, por exemplo, do estatuto de maverick para o estatuto de integrated professional no deixam, entretanto, de nos reconduzir noo bourdiana de campo artstico e s lutas que nele se operam entre os recm-entrados (ou hereges) e os estabelecidos (ou ortodoxos), com vista alterao da distribuio do capital especfico e reestruturao das posies no seu seio7. Neste ponto, o maior contributo que as perspectivas que decorrem do aprofundamento da reflexo iniciada por Becker, em especial a de Crane (1992:109-142), podem dar ao estudo deste tema talvez seja, ento, o que apela permanente preocupao com a caracterizao dos pblicos e dos respectivos efeitos de retorno sobre os produtores, na senda do que preconiza DiMaggio, quando afirma, na sua proposta de uma viso integrada acerca dos universos da oferta e da procura cultural, que estudando os sistemas de produo sem uma teoria da procura, corre-se o risco de presumir que a produo e distribuio da arte podem ser explicadas simplesmente como uma imposio aos consumidores (1987: 442). Alis, o prprio Arthur Danto que admite a relevncia e heuristicidade do conceito de campo (Danto, 1999). Arthur Danto relembra que Bourdieu desafiou as teses de Sartre8 e fez uma leitura totalmente nova do livro de Flaubert, A Educao Sentimental, procurando explorar as estruturas e as regras que esto na base da criao do artista, do criador (Danto, 1999:215). Assim, Bourdieu (1996) introduz a ideia de um campo o campo literrio composto por uma rede de relaes entre posies sociais/literrias diferenciadas, cada qual definida objectivamente pela sua relao objectiva com as outrasRelembremos, com Bourdieu, que Michel Foucault tambm partilhava desse entendimento: de facto, sem dvida em Michel Foucault que encontramos a formulao mais rigorosa dos fundamentos da anlise estrutural das obras culturais. Consciente de que nenhuma obra cultural existe por si prpria, ou seja, fora das relaes de interdependncia que a unem a outras obras, ele prope-se chamar campo de possibilidades estratgicas ao sistema regulamentado de diferenas e de disperses no interior do qual se define cada obra singular (Bourdieu, 1996:230).7

Em Question de Mthode, J.-P. Sartre procura demonstrar a desadequao heurstica do marxismo, incapaz de explicar os casos dos indivduos cujas capacidades e cujas prticas artsticas transcendem as fronteiras de classe que envolvem tantos outros aspectos da sua vida e dos seus valores. Para explicar estes casos nicos e excepcionais, devemos, diz Sartre, lanar mo da psicanlise existencial, que procura identificar o que o filsofo francs chama a escolha original que cada um de ns faz. Para ilustrar a sua reflexo, Sartre recorre ao exemplo de Flaubert, escritor cujo trabalho e cuja vida foram radicalmente diferentes dos trabalhos e das vidas de outros escritores provenientes do mesmo meios social. Um dos principais alvos de Pierre Bourdieu exactamente J.-P. Sartre e a sua tese da escolha original. Ao identificar detalhadamente as estruturas sociais e histricas que balizam as escolhas efectuadas, explicando o modo como os produtos culturais so criados, Bourdieu desconstri o voluntarismo da perspectiva sartriana, lembrando a importncia das condies sociais, histricas e tericas nos processos de criao cultural (Danto, 1999:214).8

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posies. Ser artista ocupar uma posio no campo conhecido como mundo da arte, o que significa que o artista se relaciona objectivamente como as posies ocupadas pelos crticos, pelos coleccionadores, pelos negociadores de arte, pelos especialistas, etc.. o campo que cria o criador e que promove a internalizao daquilo que possvel por referncia s outras posies existentes9. O campo artstico ou literrio uma estrutura objectiva e, como tal, torna a questo sobre o que a arte e o que so os artistas tambm ela uma questo objectiva. Partindo desta ideia, Bourdieu procurou desenvolver a cincia necessria a uma compreenso deste problema: uma cincia histrica dos campos culturais (Danto, 1999:216). Arthur Danto insiste: eu penso efectivamente que o conceito tem um enorme valor na anlise das transformaes, bem como da dialctica interna das posies, e d-nos uma estrutura que pode ser compreendida como real. Explica como pensamos e como agimos enquanto seres culturais, e como estes modos de pensamento e de conduta mudam. Se pode explicar as transformaes quando elas ocorrem, outra coisa. Se a grandeza de Flaubert est de algum modo indexada posio que outros menos grandes ocupavam, uma questo discutvel embora possamos, suponho, imaginar Flaubert a nascer num mundo em que nenhuma posio possibilitasse o desenvolvimento dos seus admirveis dotes. Mas isso leva-nos s perplexidades da contra-identidade, que melhor deixar tal como esto. A alternativa pode, claro, conduzir proposio de que O campo sou eu, dita por cada um de ns (Danto, 1999:218-219). A questo da interaco cooperativa muito relevante, mas, apesar de Bourdieu acentuar o que no campo se deve ao conflito, no nos parece ignorar isto. A luta de fundo entre dominantes e dominados, mas no quer dizer que cada um destes grupos, no seu seio, no ponha em marcha estratgias colaborativas, mais no seja para encontrar formas de reforo das suas posies e alavancas na luta contra o segmento adversrio. A ideia de uma segmentao do campo cultural (segmentos que se vo opondo, mas que internamente esto em cooperao, o que seria inevitvel, pois a arte sempre uma actividade colectiva) , neste sentido, frutuosa. Tambm Bernard Lahire apresenta algumas limitaes do modelo bourdiano, pois considera que este no revela a plasticidade dos efeitos sobre os indivduos das condies contemporneas de socializao bastante heterogneas, designadamente atravs da pluralidade de influncias socializadoras e de contextos de prticas e consumos culturais. A constatao da grande diversidade de perfis culturais individuais e da grande importncia dos perfis dissonantes patenteia a importncia da especificidade do social incorporado, do social escala individual (Lahire, 2004:214-249). De acordo com Lahire, as prticas e preferncias individuais dependem de uma pluralidade de instncias e contextos: o meio social familiar de origem; a socializao de gnero operada ao longo da vida; a socialiDanto reitera: E uma espcie de illusio direcciona o olhar para o aparente produtor pintor, compositor, escritor , impedindo-nos de perguntar quem criou o criador e de questionar o poder mgico de transubstanciao com o qual o criador presenteado. Mas basta colocar a questo proibida para perceber que o artista que produz o trabalho tambm ele produzido, no mago do campo de produo, pelo conjunto daqueles que ajudaram a descobri-lo e a consagr-lo como artista (Danto, 1999:215).9

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zao cultural exercida pelos diferentes quadros institucionais sociais, polticos, religiosos e culturais frequentados ao longo da vida; a aprendizagem escolar que se traduz numa trajectria, num domnio de estudos e nas qualificaes escolares dos indivduos; a socializao decorrente da actividade profissional; a socializao conjugal; a importncia do contexto aprendente do grupo de pares e do grupo de amigos; e, ainda, do momento geracional vivenciado pelo indivduo em termos etrios (Lahire, 2004:260-261). A pluralidade de instncias socializadoras e das respectivas apropriaes poder ser uma mais valia neste subcampo, enriquecendo a anlise relacional que encetmos. Assume-se como consensual a percepo de que a cultura do pop rock est refm da questo da velocidade. Assim, neste campo, agentes e artefactos operam com uma celeridade vertiginosa no contexto da cultura (tambm apelidada de juvenil) do pop e do rock. As bandas rapidamente emergem, mas tambm se extinguem, dando origem a outras a um ritmo de velocidade estonteante. A experincia profissional e social de um criador pop rock com cerca de 30 anos pode configurar a criao, abandono e consequente recriao de quatro ou mais bandas e a participao em simultneo em quatro ou mais projectos. Assim, desde a chegada do rock ao cerne da cultura de massas que a ideia de vertigem est do lado da criao. O prprio carcter efmero e comprimido das produes e criaes um imperativo de sobrevivncia, pois rapidamente se tornam obsoletas. Ora bem: todas estas consideraes apontam para uma mutabilidade incessante dos objectos e tambm dos protagonistas do campo do pop rock, questo que nos deve guiar para uma concepo ampliada de reproduo de processos de dominao simblicos neste campo. Assim, no quadro da msica, David Hesmondhalgh (2006) desenvolveu uma reflexo crtica acerca da proposta bourdiana de anlise dos fenmenos da produo e consumo culturais, confrontando-a com outras propostas anglo-americanas e de estudos crticos dos mdia. Hesmondhalgh considera que Bourdieu estabeleceu na sua abordagem uma distino no campo da cultura referente produo restrita e autnoma da cultura e cultura de massas subjugada a instncias exteriores, com um grau limitado de autonomia. Para Bourdieu, a produo a escala reduzida constitui o tipo mais puro de produo artstica, ao invs, a produo artstica dirigida s massas tem como fim principal a comercializao. Assim sendo, a sociologia da produo e do consumo cultural de Bourdieu assenta essencialmente na demonstrao de como as prticas culturais dos indivduos perpetuam os interesses das fraces dominantes. Particularmente naquilo que hoje se designa de msica alternativa, Hesmondhalgh acredita que se trata de uma manifestao de restrio na medida em que a sua definio assenta na oposio produo massificada, no obstante se situe no espectro das indstrias culturais. Apesar de uma srie de potencialidades que caracterizam a teoria de Bourdieu, David Hesmondhalgh acredita que esta limitadora na medida em que descura o subcampo da cultura de massas, o qual marca uma forte presena na sociedade contempornea. Assim, em muitos campos, como a msica popular, vemos uma proliferao de subcampos de produo restrita, em simultneo com o crescimento da produo em larga escala, medida que o campo da cultura em geral sofre um alargamento e complexificao (Hesmondhalgh, 2006:222).

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Uma vez delineado o paradigma de fundo de abordagem do espao social relacional do rock, iremos evidenciar os traos de caracterizao prvia dos diferentes agentes que compem o subcampo do rock alternativo que estamos a considerar. Existe, neste momento, uma clara intencionalidade de delinear os contornos do referido subcampo, de forma a evidenciar as diferentes posies sociais associadas ao desempenho de papis. Assumimos que se trata de um subcampo devido s limitaes do seu alcance em termos de extensividade no tempo e no espao e s suas relaes de dependncia e correlao, ainda muito vincadas com o campo mais vasto da msica pop rock portuguesa. ainda um subcampo dado que se atribui importncia a uma anlise mais segmentada e plural das manifestaes da cultura popular massiva no presente, articulando a justeza e a pertinncia da perspectiva bourdiana s abordagens de Diana Crane, tal como outros acima mencionados, acerca das contingncias, pluralidades e instabilidades culturais contemporneas.

4.2.4. Contornos e composio do subcampo do rock alternativo em Portugal Desde o incio que existiu, enquanto preocupao importante da investigao, um esforo de delineamento deste subcampo musical. Este esforo consubstanciou-se num primeiro momento pelo contacto e discusso face a informadores privilegiados no Porto e em Lisboa, onde se comearam a delimitar os contornos deste subcampo (Julho de 2006). A primeira concretizao de uma anlise nestes termos ocorreu com a realizao de um Workshop10 em Outubro desse mesmo ano, o Musicult. Esse Workshop, reunindo uma pluralidade de agentes (msicos, DJ, promotores, editores, gestores de espaos de divulgao musical, jornalistas e investigadores), teve como objectivos privilegiar pensamentos reflexivos interdisciplinares acerca das novas dinmicas culturais musicais emergentes e alternativas, considerando os seus cenrios, as suas sonoridades e as suas estticas; apresentar junto da populao e das instituies locais algumas linhas de reflexo acerca da temtica em anlise, no sentido de promover a sua participao futura no projecto e de abrir, desde logo, o espao s parcerias institucionais e com os actores locais, numa lgica de investigao-aco; aprofundar o conhecimento de problemticas ainda em construo e explorar linhas de interveno do ponto de vista de uma poltica cultural ancorada em pblicos e objectos inovadores; iniciar uma investigao sistemtica acerca do objecto, tendo em linha de conta o seu carcter eminentemente intersticial, mas crucial, no imaginrio colectivo da populao, em particular dos jovens; e propiciar a transferncia de saberes, o debate e o cruzamento de olhares e perspectivas de abordagem, metodologias de anlise e de tcnicas de interveno, recorrendo no s a investigadores, mas a equipas mistas formadas por estudantes, especialistas, aficionados, produtores das mais diversas reas temticas das culturas urbanas. Pretendendo restituir os discursos aos momentos em que so gerados nos seus contextos de enunciao (Bakhtine, 1978), o Workshop colocou em debate o panorama musical

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Ver Anexo 2.

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actual com alguns daqueles que o vivem e o fazem viver. Msicos, jornalistas, produtores culturais foram colocados em situao, como se diz no lxico goffmaniano, numa tentativa de obter os processos vivenciais de constituio, reconfigurao e oposio de discursos e perspectivas sobre a msica. Assim, alguns (os msicos) reproduziram as performances que levam a cabo enquanto msicos mas por via discursiva, outros (crticos, jornalistas e intermedirios culturais), descreveram os mecanismos de sano, de consagrao e de leitura que accionam, normalmente, com toda a naturalidade. Todos contriburam para um esboo mais sedimentado dos contornos do subcampo, indicando os seus protagonistas, representaes e estratgias. Posteriormente, e por um processo que apelidamos, em sociologia, de bola de neve, foram realizadas 191 entrevistas11 aos agentes do subcampo em presena na sua diversidade de posies sociais, o que, por esgotamento e/ou repetio enunciada em termos de referncias, nos fez acreditar na validade da plataforma reunida. A Figura 4.1 representa de forma esquemtica a plataforma de desempenhos de que partimos considerando o espao social relacional do rock alternativo.

Exceptuando os pblicos, foram realizadas 191 entrevistas semidirectivas diversidade de agentes constituintes do campo em anlise, complementadas com a realizao de 11 entrevistas biogrficas, histrias de vida, a agentes marcantes diacrnica e sincronicamente deste espao social. As entrevistas realizaram-se entre Agosto de 2006 a Fevereiro de 2009 e incidiram no que consideramos ser a diversidade provvel de agentes do subcampo: os bloggers, os crticos e os jornalistas, os promotores, os editores, os managers, os responsveis pelos espaos de divulgao musical, os lojistas, os msicos, DJ e produtores e, ainda, os pblicos. Neste caso, estamos a relevar todos os agentes, excepto o que apelidamos de pblicos (que sero abordados no Captulo 7). Todas as entrevistas foram registadas em suporte udio digital e perfazem um total de durao que ronda as 250 horas. No Anexo 3, figuram os guies de entrevista aplicados: Anexo 3.a: Guio de entrevista aos responsveis por blogues; Anexo 3.b: Guio de entrevista aos donos e responsveis por espaos de divulgao musical; Anexo 3.c: Guio de entrevista aos donos e responsveis por lojas de discos; Anexo 3.d: Guio de entrevista das histrias de vida; Anexo 3.e: Guio de entrevista a jornalistas, crticos e afins; Anexo 3.f: Guio de entrevista a managers e promoters; Anexo 3.g: Guio de entrevista a promotoras de eventos; Anexo 3.h: Guio de entrevista a pblicos e music lovers.11

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Figura 4.1: Enunciao do espao relacional do rock alternativo considerado

Figura 4.1: Enunciao do espao relacional do rock alternativo considerado

Projectos musicaisLegendary Tigerman, The Poppers, Wraygunn, Dapunksportif, Bunnyranch, Pop DellArte, X-Wife, Mo Morta, Alexandre Soares, GNR, Barbez, Stealing Orchestra, Motornoise, Most People Have Been Trained To Be Bored, Lost Gorbachevs, F.R.I.C.S., Madredeus, Dead Combo, Rdio Macau, Xutos & Pontaps, Gala Drop, Wordsong, Clube dos Nadadores de Inverno, Ana Deus, Bulllet, Balla, Blasted Mechanism, Contrabando, Megafone, A Naifa, Mesa, Andrew Thorn, Real Combo Lisbonense, No Noise Reduction, Green Machine, Alto!, Censurados, Tara Perdida, Little Friend, Sublime Impulse, The Gift, Cooltrain Crew, Ces aos Crculos, Tenaz, Jorge Ferraz, JP Simes, Buraka Som Sistema, 1-Uik Project, Linda Martini, If Lucy Fell, Reprter Estrbico, Riding Pnico, Foge Foge Bandido, Internal Sync, Ena P 2000, The Bombazines, Blind Zero, Norberto Lobo; Norman; Munchen, Nuno Rebelo, Caveira, Paus, The Vicious Five, Lobster, Loosers, Sizo, Tiago Sousa, D3, Kubik, Micro Audio Waves.

Editoras e lojas de discos

Promotoras e agenciamentoRaging Planet, Bola de Sabo, Ghude, Vachier & Associados, Lda., Metrnomo, Lets Start a Fire, Filho nico, Everything is New, Anomalia Productions, Lovers & Lollypops, Ritmos, Msica no Corao, Lstima, Xuxa Jurssica, BluePrint, Team Judas, Rastilho Records, Subotnick

Raging Planet, Compact Records, JO-JOs, AnAnAnA, Louie Louie, Carbono, Matria Prima, Musak, Flur, Lux Records, Discoleco, Transformadores, MiMi Records, Enougth Records, Lovers & Lollypops, Lstima, Norte Sul, Universal Music Portugal, Rastilho Records, MC | MonoCromatica, Test Bor Land, Tube, loop:recordings, Merzbau, Enchufada.

Espao social do rock alternativo

Passos Manuel, Cabaret Maxime, Maus Hbitos, Plano B, Contagiarte, Uptown, Porto Rio, Left, Lounge, Lux, Music Box, Z dos Bois, Casa da Msica, Pitch, Incgnito, Mini Mercado, Frgil, Santiago Alquimista, Europa, Absolute Beginner, Juramento Sem Bandeira, April Skies, Atritos Sonoros, BrainDance, Duas Coisas Muito Importantes, Grandes Sons, Intervenes Sonoras, Narita, O Homem que Sabia Demasiado, Razes e Antenas, A Trompa, Sound & Vision, 1 Pouco Mouco, Antena 3, Bodyspace, Radar, Dirio Digital, Mondo Bizarre, Blitz, psilon, Dirio de Notcias, Expresso, Bblia.

Espaos e instncias de divulgao e de legitimao

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Figura 4.2: Musicult, Outubro de 2006

Figura 4.3: Musicult, Outubro de 2006

Fonte: MUSICULT_2005 | 2009

Fonte: MUSICULT_2005 | 2009

O acercamento realidade pelas entrevistas Mais frente, colocaremos discursivamente as histrias de vida, por ora, impem-se umas notas acerca das entrevistas realizadas para alm dessas. Apesar de inmeras tentativas, as entrevistas, como procedimentos tcnicos, parecem resistir a intuitos de formalizao metodolgica e, em boa medida, esta situao est intimamente relacionada com o facto de com as entrevistas estar em causa um procedimento tcnico ancorado num saber fazer alicerado em competncias to diversas que vo desde a capacidade de escuta activa at empatia interactiva (Kaufmann, 1996:11-32). Uma das particularidades do cosmos social a de que produto de inumerveis representaes de si prprio (Bourdieu, 1993:11). O social em si mesmo no existe, no tem qualquer tipo de tangibilidade. O social o nome dado s interaces onde elas efectivamente tm lugar e que elas descrevem enquanto podem, na ordem da sua posio (Karsenti, 1995:661). Evidentemente que estamos cientes de que a procura de verdades absolutas sobre o real um exerccio fracassado, por isso, procuramos aproximaes realidade, propondo um conjunto de leituras possveis, encarando-a como mltipla, plurifacetada e diversa (Burgess, 1997). A aplicao de entrevistas em profundidade de carcter semi-estruturado obedeceu a uma estratgia de procura dos sentidos sociais permitidos pelas narrativas dos agentes quando compelidos a reflectir acerca do passado, do presente e do futuro. Trata-se da tcnica mais eficaz de procura de sentido por intermdio de argumentos discursivos apresentados numa situao de conversao localizada. Assim, talvez possamos enquadrar as entrevistas realizadas no que usualmente se apelidam de entrevistas compreensivas, considerando os agentes sociais como depositrios de um saber importante, o mais importante (Kaufmann, 1996:11-32). Enquanto procedimento que se enquadra na observao indirecta, a entrevista um meio privilegiado para apreender dados de ndole subjectiva, designadamente ideias, crenas, atitudes, sentimentos, etc., proporcionando informao com algum nvel de profundidade. A realizao das entrevistas permitiu-nos aceder aos universos de significao dos actores a fim de apreender as suas representaes, os seus conhecimentos e as suas vivncias sobre o rock alternativo nos planos sincrnico e diacrnico. No obstante, no descuramos que seja qual for o mtodo a ensaiar, nas entrevistas compreensivas os sujeitos tomam o estatuto de informadores privilegiados. () No entanto, no trabalho sociolgico, o acento no colocado na interioridade dos sujeitos, ma sim no que lhes exterior, isto , nos contextos sociais sobre os quais adquiriram um conhecimento prtico (Guerra, 2006:18). No perdendo de vista esse cuidado, desenvolvemos um programa de entrevistas alargado s diferentes categorias de agentes intervenientes no campo: msicos, DJ e produtores; bloggers, jornalistas e crticos; editoras; espaos de divulgao musical; responsveis por lojas de discos; promotores de eventos e managers. Ao longo do vasto tempo de inquirio, as entrevistas foram assumindo uma configurao plstica ajustada aos objectivos orientadores da pesquisa, assim, primeiro foram exploratrias, depois, semi-estruturadas e, finalmente, conversacionais informais (Patton In Valles, 1999:180).

Captulo 4 - Para um esboo do espao social do rock alternativo

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Os guies de entrevista assumiram quatro eixos de explorao categorial transversais aos agentes interactuantes neste subcampo: os consumos, gostos e posies dentro do campo cultural e ldico e relao com o meio e o tecido urbano; os posicionamentos e representaes face msica, modos de vida e vinculaes; a abordagem acerca das tendncias e estruturaes do campo musical portugus; consideraes acerca de tendncias de estruturao do campo do rock alternativo/indie rock; discusso do projecto e/ou rea de interveno do agente social em presena. i) Consumos, gostos e posies dentro do campo cultural e ldico e relao com o meio e o tecido urbano. - Principais consumos culturais e forma de ocupao dos tempos livres e importncia qualitativa e quantitativa da msica na esfera dos consumos culturais (sentido lato). - A vivncia da cidade e a adopo de modos de vida especficos que potenciaram a trajectria/ carr