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PONTY, M. M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007. Pg 16 Explicar aos outros. O mesmo é preciso que se diga do mundo. [Incessantemente, vê-se o filósofo] obrigado a rever e redefinir as noções mais fundadas, criar novas, com novas palavras para designá-las, empreender uma verdadeira reforma do entendimento, ao término da qual a evidencia do mundo, que parecia a mais clara das verdades, surge apoiada em pensamentos aparentemente os mais sofisticados, onde o homem natural não mais se reconhece, o que vem reavivar o mau humor contra a filosofia, e a censura, que sempre se lhe faz, de inverter os papéis do claro e do obscuro. Que pretenda falar em nome da evidencia ingênua do mundo, que se proíba a si próprio de acrescentar-lhe algo, que se limite a dela tirar todas as conseqüências, isso não é desculpa, pelo contrário, ele apenas a [a humanidade]** despoja mais completamente, convidando-a a pensar-se como enigma. Assim é e nada pose-se fazer em contrário. Ao mesmo tempo é verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo, precisamos aprender a vê-lo. No sentido de que, em primeiro lugar, é mister nos igualarmos, pelo saber, a essa visão tomar posse dela, dizer o que é nós e o que é ver, fazer, pois, como se nada soubéssemos, como se a esse respeito tivéssemos que tudo aprender. Mas a filosofia não é um léxico, não se interessa pelas “significações das palavras”, não procura substituto verbal para o mundo que vemos, não o transforma em coisa dita, não se instala na ordem do dito ou do escrito, como o lógico no enunciado, o poeta na palavra ou o músico na música. São as próprias coisas, do fundo de seu silêncio, que deseja conduzir à expressão. Se o filósofo interroga e assim finge ignorar o mundo e a visão do mundo, que nele operam e se realizam continuamente, é precisamente para fazê-los falar, porque acredita nisso e espera deles toda a ciência futura. Aqui a interrogação não é um começo de negação, um talvez (peut- être) posto em lugar de ser (être). Para a filosofia, a única maneira de concordar com a nossa visão de fato, de corresponder ao que nela, nos leva a pensar, aos paradoxos de que é feita; e única maneira de ajustar-se a esses

(2) Maurice Merleau-Ponty - O Visível e o Invisível

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PONTY, M. M. O visvel e o invisvel. So Paulo: Perspectiva, 2007. Pg 16 Explicar aos outros. O mesmo preciso que se diga do mundo. [Incessantemente, v-se o filsofo] obrigado a rever e redefinir as noes mais fundadas, criar novas, com novas palavras para design-las, empreender uma verdadeira reforma do entendimento, ao trmino da qual a evidencia do mundo, que parecia a mais clara das verdades, surge apoiada em pensamentos aparentemente os mais sofisticados, onde o homem natural no mais se reconhece, o que vem reavivar o mau humor contra a filosofia, e a censura, que sempre se lhe faz, de inverter os papis do claro e do obscuro. Que pretenda falar em nome da evidencia ingnua do mundo, que se proba a si prprio de acrescentar-lhe algo, que se limite a dela tirar todas as conseqncias, isso no desculpa, pelo contrrio, ele apenas a [a humanidade]** despoja mais completamente, convidando-a a pensar-se como enigma. Assim e nada pose-se fazer em contrrio. Ao mesmo tempo verdade que o mundo o que vemos e que, contudo, precisamos aprender a v-lo. No sentido de que, em primeiro lugar, mister nos igualarmos, pelo saber, a essa viso tomar posse dela, dizer o que ns e o que ver, fazer, pois, como se nada soubssemos, como se a esse respeito tivssemos que tudo aprender. Mas a filosofia no um lxico, no se interessa pelas significaes das palavras, no procura substituto verbal para o mundo que vemos, no o transforma em coisa dita, no se instala na ordem do dito ou do escrito, como o lgico no enunciado, o poeta na palavra ou o msico na msica. So as prprias coisas, do fundo de seu silncio, que deseja conduzir expresso. Se o filsofo interroga e assim finge ignorar o mundo e a viso do mundo, que nele operam e se realizam continuamente, precisamente para faz-los falar, porque acredita nisso e espera deles toda a cincia futura. Aqui a interrogao no um comeo de negao, um talvez (peut-tre) posto em lugar de ser (tre). Para a filosofia, a nica maneira de concordar com a nossa viso de fato, de corresponder ao que nela, nos leva a pensar, aos paradoxos de que feita; e nica maneira de ajustar-se a esses enigmas figurados, a coisa e o mundo, cujo ser e verdade macios fervilham de pormenores incompossveis. Pg 17 Pois se certo que vejo minha mesa, que minha viso termina nela, que ela se fixa e detm meu olhar com sua densidade insupervel, como tambm certo que eu, sentado diante de minha mesa, ao pensar na ponte da Concrdia, no estou mais em meus pensamentos, mas na ponte da Concrdia; e que, finalmente, no horizonte de todas essas vises ou quase-vises est o prprio mundo que habito, o mundo natural e o mundo histrico, com todos os vestgios humanos de que feito certo tambm de que esta certeza combatida, desde que atento para ela, porquanto se trata de uma viso minha. No estamos pensando propriamente no secular argumento do sonho, do delrio ou das iluses, convidando-nos a examinar se o que vemos no falso, pois tal argumento se vale dessa mesma f no mundo que ele parece abalar: nem saberamos ns o que o falso, se algumas vezes no o tivssemos distinguido do verdadeiro. Postula, assim, o mundo em geral, o verdadeiro em si invocando-o secretamente para desclassificar nossas percepes, que, misturadas com nossos sonhos, a despeito de todas as diferenas observveis, so por ele lanadas em nossa vida interior, em virtude dessa nica razo: a de terem eles sido, naquele instante, to convincentes quanto elas, esquecendo que a prpria falsidade dos sonhos no pode ser estendida as percepes,

pois aquela s aparece relativamente a estas, e que, para podermos falar de falsidade, preciso termos experincias de verdade. Vlido contra a ingenuidade, contra a idia de uma percepo que fosse surpreender as coisas alm de qualquer experincia, qual luz que as tirasse da noite onde preexistiam, o argumento no [esclarecedor?], estando ele prprio impregnado da mesma ingenuidade, na medida em que s se iguala a percepo e o sonho colocando-os face a um Ser que somente seria em si. Se, ao contrrio, como mostra o argumento no que tem de vlido, devemos rejeitar inteiramente esse fantasma, ento as diferenas intrnsecas, descritivas, do sonho e do percebido, adquirem valor ontolgico, e damos valor ontolgico ao pirronismo mostrando que h diferena de estrutura e, por assim dizer, de granulo entre a percepo e a viso verdadeira, dando lugar a uma srie aberta de exploraes concordantes, e o sonho, que no observvel e, quando examinado, quase s lacunas. Efetivamente, isso no liquida o problema de nosso acesso ao mundo: nada mais faz, ao contrrio, do que inici-lo, pois resta saber como podemos ter a iluso de ver o que no vemos, como os farrapos do sonho podem, diante do sonhador, ter o mesmo valor do tecido cerrado do mundo verdadeiro, como a inconscincia de no ter observado pode, no home fascinado, substituir a conscincia de ter observado. Se se diz que o vazio do Pq18 Imaginrio sempre permanece o que , jamais equivale ao pleno do percebido , e que jamais da lugar mesma certeza, que essa vazio no vale por si, que o homem adormecido perdeu todo o ponto de referncia, todo modelo, todo cnone do claro e do articulado, que uma nica parcela do mundo percebido nele introduzida desmancha num timo o encantamento, ainda resta que, que se podemos perder nossos pontos de referncia sem o sabermos, nunca estamos seguros de t-los quando acreditamos possulos; se podemos, ainda que o ignoremos, retirar-nos do mundo da percepo, nada nos prova que nele estivemos alguma vez, nem que o observvel o seja inteiramente, nem ainda que seja feito de tecido diferente do sonho; uma vez que a diferena entre eles no absoluta, podemos coloc-los juntos com nossas experincias, e acima da prpria percepo que precisamos procurar a garantia e o sentido de sua funo ontolgica. Percorremos esse caminho, que o da filosofia reflexiva, quando ele se nos abrir. Mas comea muito alm dos argumentos pirronianos, que, por si prprios, nos desviariam de toda elucidao, pois se referem vagamente a idia de um Ser inteiramente em si e, por contraste, juntam confusamente o percebido e o imaginrio como estados de conscincia. No fundo, o pirronismo partilha das iluses do homem ingnuo. a ingenuidade que se dilacera a si mesma dentro da noite. Entre o Ser em si e a vida interior, nem mesmo entrev o problema do mundo. Ns, ao contrrio, em direo a esse problema que caminhamos. O que nos interessa no so as razes que se podem ter para tomar como incertaa existncia do mundo como se j soubssemos o que existir e como se toda a questo fosse aplicar corretamente esse conceito. O que nos importa precisamente saber o sentido de ser do mundo; a esse propsito nada devemos pressupor, nem a idia ingnua do ser em si, nem a idia correlata de um ser de representao, de um ser para a conscincia, de um ser para o homem: todas essas so noes que devemos repensar a respeito de nossa experincia do mundo, ao mesmo tempo que pensamos o ser do mundo. Cabe-nos reformular os argumentos cticos fora de todo preconceito ontolgico. Justamente para saber o que o ser-mundo, o ser-coisa, o ser imaginrio e o ser consciente. Agora que tenho na percepo a prpria coisa e no uma representao, acrescentarei somente que a coisa est no ponto extremo do meu olhar e, em geral, da minha

explorao: sem nada supor do que a cincia do corpo alheio me possa ensinar, devo constatar que a mesa diante de mim mantm uma relao singular com meus olhos e meu corpo: s a vejo se ela estiver no raio de ao deles; Pg19 Acima dela, est a massa sombria da minha fronte, em baixo, o contorno mais indeciso de minhas faces, ambos visveis no limite, e capazes de escond-la, como se minha prpria viso de mundo si fizesse de certo ponto do mundo. Ainda mais: meus movimentos e dos de meus olhos fazem vibrar o mundo como se pode, com o dedo, fazer mexer um dlmen, sem abalar-lhe a solidez fundamental. A cada batida de meus clios, uma cortina se baixa e se levanta, sem que eu pense, no momento, em imputar esse eclipse s prprias coisas; a cada movimento de meus olhos varrendo o espao diante de mim, as coisas sofrem breve toro, que tambm atribuo a mim mesmo; e quando ando pela rua, os olhos fixos nos horizontes das casas, todo o meu ambiente mais prximo, a cada rudo de salto de sapato sobre o asfalto, estremece para depois voltar a acalmar-se em seu lugar. Exprimiria muito mal o que se passa dizendo que um componente subjetivo ou uma contribuio corporal passa a recobrir as prprias coisas; no se trata de uma outra camada ou de um vu que viria colocar-se entre mim e elas. Assim como as imagens monoculares no intervm quando meus dois olhos operam em sinergia, assim tambm a deslocao da aparncia no quebra a evidncia da coisa. A percepo binocular no feita de duas percepes monoculares sobrepostas, de outra ordem. As imagens monoculares no so, no mesmo sentido em que a coisa percebida pelos dois olhos. So fantasmas, e ela o real, so pr coisas e ela a prpria coisa, desaparecem quando passamos a viso normal, voltam para dentro da coisa como para sua verdade meridiana. Esto muito de ter densidade capaz de rivalizar com ela: no so mais do que certo distanciamento em relao verdadeira viso iminente, inteiramente desprovidas dos [prestgios?] dessa viso e, por isso mesmo, esboos ou resduos da viso verdadeira que os completa na medida em que os reabsorve. As imagens monoculares no podem ser comparadas percepo sinrgica: no podemos coloc-las lado a lado, mister escolher entre a coisa e as pr-coisas flutuantes. Pode-se efetuar a passagem olhando ativamente, despertando para o mundo, no se pode assistir a ela como espectador. No sntese, mas metamorfose pela qual as aparncias so instantaneamente destitudas de um valor que possuam unicamente em virtude da ausncia de uma percepo verdadeira. Assim, a percepo nos faz assistir a este milagre de uma totalidade que ultrapassa o que se acredita serem condies ou suas partes, e as domina de longe, como se existissem apenas em seu limiar, estando destinadas a nela se perderem. Mas para desloc-las Pg20 Como faz, preciso que a percepo guarde, no fundo de si, todas as relevncias corporais delas: olhando, ainda com meus olhos que chego coisa verdadeira, esses mesmos olhos que h pouco me davam imagens monoculares, simplesmente, funcionam agora em conjunto e como que a srio. Assim, a relao entre as coisas e meu corpo decididamente singular: ela a responsvel de que, s vezes eu permanea na aparncia, e outras, atinja as prprias coisas; ela produz o zumbir das aparncias, ainda ela quem o emudece e me lana em pleno mundo. Tudo se passa como se meu poder de ter acesso ao mundo e o de entricheirar-me nos fantasmas no existissem um sem o outro. Mas ainda: como se o acesso ao mundo no fosse seno o outro aspecto de um recuo, e esse

recuo margem do mundo, uma servido e outra expresso de meu poder natural de entrar nele. O mundo o que percebo, mas sua proximidade absoluta, desde que examinada e expressa, transforma-se tambm, inexplicavelmente, em distncia Irremedivel. O homem natural segura as duas pontas da corrente, pensa ao mesmo tempo que sua percepo penetra nas coisas e que se faz aqum de seu corpo. Se, todavia, na rotina da vida, as duas convices coexistem sem esforo, to logo reduzidas a tese e enunciados, destroem-se mutuamente, deixando-nos confundidos. Que aconteceria se eu contasse, no somente com minhas vises de mim mesmo, mas tambm com as que outrem teria de si e de mim? Meu corpo, como encenador de minha percepo, j destruiu a iluso de uma coincidncia e ela, h, doravante, poderes ocultos, toda essa vegetao de fantasmas possveis que ele s consegue dominar no ato frgil do olhar. Sem dvida, no inteiramente meu corpo quem percebe: s sei que pode impedir-me de perceber, que no posso perceber sem sua permisso; no momento em que a percepo surge, ele se apaga diante dela, e nunca ela o apanha no ato de perceber*. Se minha mo esquerda toca a minha mo direita e se de repente quero, com a mo direita, captar o trabalho que a esquerda realiza ao toc-la, esta reflexo do corpo sobre si mesmo sempre aborta no ultimo momento: no momento em que sinto minha mo esqueda com a direita, correspondentemente paro de tocar minha mo direita com a esquerda. Mas este malogro de ltimo instante no retira toda a verdade a esse meu pressentimento de poder tocar-me tocando: meu corpo no percebe, mas est como que construdo em Pg21 torno da percepo que se patenteia atravs dele: por todo o eu arranjo interno, por seus circuitos sensori-motores, pelas vias de retorno que controlam e relanam os movimentos, ele se prepara, por assim dizer, para uma percepo de se, mesmo se nunca se ele que ele prprio percebe ou ele quem o percebe. Antes da cincia do corpo que implica a relao com outrem -, a experincia de minha carne como ganga de minha percepo ensinou-me que a percepo no nasce em qualquer lugar, mas emerge no recesso de um corpo. Os outros homens que vem como ns, que vemos vendo e que nos vem vendo, apenas nos oferecem uma amplificao do mesmo paradoxo. Se j difcil dizer que minha percepo, tal como vivo, vai s prprias coisas, impossvel outorgar percepo dos outros o acesso ao mundo; e, guisa de revide, tambm eles me recusam o acesso que lhes nego. Pois, em se tratando dos outros (ou de mim, visto por eles), no preciso dizer apenas que a coisa envolvida pelo turbilho dos movimentos exploradores e dos comportamentos perceptivos, e puxados para dentro. Se talvs no tenha para mim sentido algum dizer que minha percepo e a coisa visada por ela esto em minha cabea (a nica certeza a de que no esto em outra parte), no posso deixar de colocar o outro, e a percepo que tem, atrs de seu corpo. Mais precisamente, a coisa percebida pelo outro se desdobra: h aquele que se percebe, sabe Deus onde, e h aquela que vejo eu, fora do seu corpo e que chamo coisa verdadeira como ele chama ciosa verdadeira a mesa que v e remete as aparncias a que eu vejo. As coisas verdadeiras e os corpos que percebem no se situam, desta vez, na relao ambgua que h pouco encontraramos entre minhas coisas e meu corpo. Uns e outros, prximos ou afastados, esto, em todo caso, justapostos no mundo, e a percepo, que talvez no esteja em minha cabea, no est em parte alguma a no ser em meu corpo como coisa do mundo. Parece, doravente, impossvel limitarmo-nos certeza ntima daquele que percebe: vista de fora, a percepo desliza por sobre as coisas, e no as toca. Quando muito se dir, se quer fazer jus perspectiva da percepo sobre si mesma, que cada um de ns tem do mundo privado: tais mundos privados no so

mundos a no ser para seu titular, eles no so o mundo. O nico mundo, isto , o nico mundo seria o [xovos ...], e no sobre ele que se abrem as percepes. Mas ento em que desembocam elas? Como nomear, como descrever essa vivencia de outrem, tal como a vejo de meu lugar, vivncia que, todavia, nada para mim, j que creio em outrem e que, alis, concerne a mim Pg 22 Mesmo, j que a est como viso de outrem sobre mim? Eis este rosto bem conhecido , este sorriso, estas modulaes de voz, cujo estilo me to familiar como eu o sou a mim mesmo. Talvez, em muitos momentos de minha vida, o outro se reduza para mim a esse espetculo que pode ser um sortilgio. Mas altere-se a voz, que surja o inslito na participao do dilogo ou, ao contrrio, que uma resposta responda bem demais ao que eu pensava sem t-lo dito inteiramente e, sbito, irrompe a evidncia de que tambm acol, minuto por minuto, a vida vivida: em algum lugar atrs desses olhos, atrs desses gestos, ou melhor, diante deles, ou ainda em torno deles, vindo de no sei que fundo falso do espao, outro mundo privado transparece atravs do tecido do meu, e por um momento nele que vivo, sou apenas aquele que responde interpelao que me feita. Por certo, a menor retomada da atenome convence de que esse outro que me invade todo feito de minha substancia: suas cores, sua dor, seumundo, precisamente enquanto seus, como os conceberia eu seno a partir das cores que vejo, das dores que tive, do mundo em que vivo? Pelo menos, meu mundo privado deixou de ser apenas meu; , agora, instrumento manejado pelo outro, dimenso de uma vida generalizada que se enxertou na minha. No prprio instante, porm, em que creio partilhar da vida de outrem, no fao mais que reencontr-la em seus confins, em seus plos exteriores. dentro do mundo que nos comunicamos, atravs daquilo que nossa vida tem de articulado. a partir desse gramado diante de mim que acredito entrever o impacto do verde sobre a viso de outrem, pela msica que penetro em sua emoo musical, a prpria coisa que me d acesso ao mundo privado de outrem. Ora, a prpria coisa, j vimos, sempre para mim a coisa que eu vejo. A interveno de outrem no resolve o paradoxo interno de minha percepo: acrescenta este enigma da propagao no outro da minha vida Pg 23 mais secreta outra e mesma, j que, evidentemente, s atravs do mundo posso sair de mim mesmo. Ento mesmo verdade que os mundo privados se comunicam entre si, em cada um deles se d a seu titular como variante de um mundo comum. A comunicao transforma-nos em testemunhas de um mundo nico, como a sinergia de nossos olhos os detm numa nica coisa. Mas tanto num caso como no outro, a certeza, embora inelutvel, permanece inteiramente obscura; podemos viv-la, no podemos nem pens-la, nem formul-la, nem erigi-la em tese. Toda tentativa de elucidao traznos de volta aos dilemas. Ora, essa certeza injustificvel de um mundo sensvel comum a todos ns , em ns, o ponto de apoio da verdade. Que uma criana perceba antes de pensar, que comece a colocar seus sonhos nas coisas, seus pensamentos nos outros, formulando com eles um bloco de vida comum, onde as perspectivas de cada um ainda no se distinguem, tais fatos de gnese no podem ser ignorados pelo filsofo, simplesmente em nome das exigncias da anlise intrnseca. A menos que se instale aqum de toda nossa experincia, numa ordem pr-emprica, onde no mais mereceria seu nome, o pensamento no pode ignorar sua histria aparente, precisa encarar o problema da gnese de seu prprio sentido. segundo o sentido e a estrutura intrnsecos que o

mundo sensvel mais antigo que o universo do pensamento, porque o primeiro visvel e relativamente contnuo e o segundo, invisvel e lacunar; primeira vista, este no constitui um todo, e s se tem e s se tem a sua verdade com a condio de apoiarse nas estruturas cannicas do outro. Se reconstituirmos a maneira pela qual nossas experincias dependem umas das outras segundo seu sentido mais prprio e se, para melhor revelarmos as relaes essenciais de dependncia, tentarmos romp-las no pensamento, perceberemos que tudo o que para ns se chama pensamento, exige essa sua distancia, esta sua abertura inicial que constituem para ns campo de viso, campo de futuro e passado... em todo caso, j que se trata aqui apenas de tomar um primeiro contato com nossas certezas naturais, no h duvidas, de que elas repousam, no respeito ao esprito e verdade, sobre a primeira camada do mundo sensvel, e de que nossa segurana de estar na verdade e estar no mundo uma s. Falamos e compreendemos a palavra muito antes de aprender com Descartes (ou descobrimos por ns mesmos) que nossa realidade o pensamento. A linguagem onde nos instalamos, ns aprendemos a manej-la significativamente muito antes de aprender com a lingstica (supondo-se que ela os ensine) os princpios inteligveis sobre os quais repousam Pg 24 A nossa lngua e todas as lnguas. Nossa experincia do verdadeiro, quando no se reporta imediatamente a da coisa que vemos, no se distingue, inicialmente, das tenses que nascem entre os outros e ns, e das resolues dessas tenses. Como a coisa, como o outro, o verdadeiro cintila atravs de uma experincia emocional e quase carnal, onde as idias as de outrem c Omo as nossas so antes so traes de sua fisionomia e da nosa, e so menos compreendidas do que acolhidas ou repelidas no amor ou no dio. Por certo, muito precocemente, motivos, categorias abstratissimas funcionam nesse pensamento selvagem, como o mostram as antecipaes extraordinrias da vida adulta na infncia; podemos dizer que o homem total j est ali. A criana compreende muito alm do que sabe dizer, responde muito alm do que poderia definir, e, alis, com o adulto, as coisas no se passam de modo diferente. Um autntico dilogo me conduz a pensamento de que eu no me acreditava, de que eu no era capaz, e s vezes sinto-me seguido num caminho que eu prprio desenhava e que meu discurso, relanado por outrem, est abrindo para mim. Supor aqui um mundo inteligvel a sustentar a troca, seria tomar um nome por uma soluo isso, alis, viria corroborar o que sustentamos: que tomando emprestado da estrutura do mundo que se contri para ns o universo da verdade e do pensamento. Quando queremos exprimir de um modo percuriente a conscincia que temos de uma verdade, nada encontramos de melhor do que invocar um [ tomos ...] que seja comum aos espritos e aos homens, como o mundo sensvel comum aos corpos sensveis. E no se trata apenas de uma nalogia: o mesmo mundo que contm nossos corpos e nossos espritos, desde que se entenda por mundo no apenas a soma das coisas que caem ou poderam cair sob nossos olhos, mas tambm o lugar de sua compossibilidade, o estilo invarivel que observam, que unificam nossas perspectivas, permite a transio de uma a outra e nos d o sentimento quer se trate de descrever um pormenor da paisagem quer de pr-nos de acordo sobre uma verdade invisvel de sermos duas testemunhas capazes de sobrevoar o mesmo objeto verdadeiro ou, ao menos, de mudar nossa situao em relao a ele, assim como podemos, no mundo visvel no sentido estrito, trocar nossos pontos de permanecia. Ora, ainda aqui, e mais do que nunca, a certeza ingnua do mundo, a antecipao de um undo inteligvel tanto fraca quando pretende converte-se em tese, quanto forte na prtica. Quando se trata do visvel, uma massa de fatos vem apoi-lo: alm das divergncias dos

testemunhos, frequentemente fcil restabelecer a unidade e a concordncia do mundo. Ao contrrio, to logo se ultrapassa o Pa 25 Circulo das opinies institudas, indivisas entre ns como o so Madeleine ou o Palais de Justice, muito menos pensamentos do que monumentos de nossa paisagens histrica, desde que se tem acesso ao verdadeiro, isto , ao invisvel, parece, sobretudo, que cada homem habita a sua pequena ilha, sem transio de uma a outra, sendo mesmo para admirar que concordem algumas vezes sobre uma coisa qualquer. Por enfim, cada um comeou por ser frgil acmulo de gelia viva e, se j muito que tenham tomado o mesmo caminho da ontognese, muito mais ser ainda que todos eles, do fundo de seus redutos, se tenham deixado envolver pelo mesmo funcionamento social e pela mesma linguagem. Quando, porm, se trata de usar esse funcionamento e essa linguagem conforme seus propsitos ou de dizer o que ningum v, nem o tipo de espcie nem o da sociedade garantem que cheguem a proposies compatveis. Quando pensamos na massa de contingncias que podem alterar tanto um como o outro, nada mais improvvel que a extrapolao, que trata tambm como um mundo sem fissuras e sem incompossveis, o universo da verdade. Ia cincia supe a f perceptiva e no a esclarece Poderamos ser tentados a dizer que estas antinomias insolveis pertencem ao universo confuso do imediato, do vivido ou do homem vital, que por definio sem verdade, sendo pois necessrio esquec-las enquanto espera que a cincia, o nico conhecimento rigoroso, venha explicar, por suas condies e de fora, esses fantasmas em que nos enleamos. O verdadeiro no nem a coisa que vejo, nem o outro homem que tambm vejo com meus olhos, nem enfim essa unidade global do mundo sensvel e, em ltima instancia, do mundo inteligvel que h pouco tentvamos descrever. O verdadeiro o objetivo, o que logrei determinar pela medida ou, mais geralmente, pelas operaes autorizadas pelas variveis ou entidades por mim definidas a propsito de uma ordem de fatos. Tais determinaes nada devem a nosso contacto com as coisas: exprimem um esforo de aproximao que no teria sentido algum em relao vivncia, j que est deve ser tomada tal qual, no podendo ser considerada em si mesma. Assim, a cincia comeou excluindo todos os predicados atribudos s coisas por nosso encontro com elas. A excluso, alis, apenas provisria: quando aprender investi-lo, a cincia reintroduzir a pouco e pouco o que de inicio afastou como subjetivo; mas integr-lo- como caso particular das relaes e dos objetos que definem o mundo para ela. Ento o Pg 26 O mundo se fechar sobre si mesmo e, salvo por aquilo que em nos pensa e faz a cincia, salvo por esse espectador imparcial que nos habita, viremos a ser parte ou momento do Grande Objeto. Teremos muitas ocasies de retomar, em mltiplas variantes, essa iluso para que dela nos ocupemos desde j; cabe, por ora, dizer apenas o necessrio para afastarmos a objeo do principio que paralisaria, em seu comeo, nossa investigao: sumariamente, que o {kok...] capaz de construir ou de reconstruir o mundo existente graas a uma srie indefinida operaes suas, muito ao invs de dissipar as obscuridades de nossa f ingnua no mundo, ao contrrio, sua expresso mais dogmtica, pressupondo-a e sustentando-se apenas graas a ela. Durante os dois sculos em que levou avante sem

dificuldades sua tarefa de objetivao, a fsica pde crer que se limitava a seguir as articulaes do mundo e que o objeto fsico preexistia, em si, cincia. Hoje, porm, quando o prprio rigor de sua descrio a obriga a reconhecer como seres fsicos ltimos e de pleno direito as relaes entre o observador e o observado, as determinaes que somente possuem sentido para determinada situao do observador, a ontologia do [koo....] e de seu correlativo, o Grande Objeto, que figura como preconceito pr-cientfico. Ele , entretanto, to natural que o fsico continua a pensar-se como o esprito absoluto diante do objeto puro, e a fazer constar entre as verdades em si, os prprios enunciados que exprimem a solidariedade de todo o observvel com um fsico situvel e encarnado. No entanto, a frmula que permite passar de uma perspectiva real sobre os espaos astronmicos para o outro, e que, sendo verdadeira para todas elas, ultrapassa a situao de fato do fsico que fala, no a ultrapassa em direo a um conhecimento absoluto: pois no tem significao fsica a no ser reportada a observaes e inserida numa vida de conhecimentos, estes sempre situados. No uma viso de universo mas somente a prtica metdica permite unificar umas s outras vises que so, todas elas, perspectivas. Se atribumos a essa frmula o valor de um Saber absoluto, se a procuramos, por exemplo, o sentido do ltimo e exaustivo do tempo e do espao, que a operao pura da cincia retoma aqui, em seu proveito, a nossa certeza, muito mais velho e muito menos clara do que ela, de ter acesso s prprias coisas ou de ter sobre o mundo um poder de sobrevo absoluto. Ao ter acesso aos domnios no abertos naturalmente ao homem aos espaos astronmicos ou as realidades microfsicas , a cincia tanto mostrou inveno na manipulao do algoritmo quanto deu provas do conservantismo Pg 27 No que respeita a teoria do conhecimento. Verdades que no deveriam deixar sem mudana sua idia do Ser so a custa de grande dificuldade de expresso e de pensamento traduzidas na linguagem da ontologia tradicional como se a cincia tivesse necessidade de excetuar se das relatividades que estabelece, de pr-se ela prpria fora do jogo, como se a cegueira para o Ser fosse o preo que tivesse de pagar por seu xito na determinao dos seres. As consideraes de escala, por exemplo, se levadas verdadeiramente a srio, deveriam, no fazer passar todas as verdades da fsica para o lado do subjetivo, o que manteria os direitos a idia de uma objetividade inacessvel, mas contestar o prprio principio dessa clivagem e fazer entrar na definio do real o contato entre o observador e o observado. No entanto, vimos muito fsicos procurar, quer na estrutura serrada e na densidade e na estrutura das aparncias macroscpicas, quer, ao contrrio, na estrutura frouxa e lacunar de certos domnios microfsicos, argumentos a favor de um determinismo ou, ao contrrio de uma realidade mental ou acausal. E essas alternativas mostram suficientemente a que ponto a cincia, desde que, trate de compreender se em ultima instancia, se enraza, na prcincia, conservando-se alheia a essa questo no sentido do ser. Quando os fsicos falam de partculas que s existem durante um bilionsimo de segundo, o primeiro movimento deles, sempre, pensar que elas existem no mesmo sentido que partculas diretamente observveis, s que por um tempo muito mais breve. O campo microfsico tido como um campo macroscpico de dimenses muito pequenas, onde os fenmenos de horizonte, as propriedades sem suporte, os seres coletivos ou se localizao absoluta, de direito no so amais do que aparncias subjetivas que a viso de algum gigante [traria de volta ] interao de indivduos fsicos absolutos. Isso, entretanto, implica em postular que as consideraes de escala no so as ltimas, em pens-las de novo na perspectiva do em si, no momento mesmo em que nos sugerida a renuncia a tal

perspectiva. Assim, as noes entre estranha da nova Fsica s so estranhas para ela na medida em que uma opinio paradoxal surpreende o senso comum, isso , sem instru-lo profundamente e sem nada mudar em suas categorias. No queremos dizer que as propriedades dos novos seres fsicos demonstrem uma nova lgica ou uma nova ontologia. Se tomarmos demonstrao no sentido matemtico, o cientistas, os nicos capazes de fornecerem uma, tambm so os nicos capacitados para Pg 28 Apreci-la. Basta que alguns deles a recusem como petio de principio, para que o filsofo no tenha o direito, e ainda menos a obrigao, de nela se basear. O que o filsofo pode observar o que lhe da o que pensar que precisamente os fsicos que conservam uma representao cartesiana no mundo manifestam suas profecias, como um msico ou um pintor falaria de suas preferncias por um estilo. Isso nos permite adiantar que seja qual for a sorte da teoria microfsica nenhuma ontologia exatamente exigida pelo pensamento fsico operante, e, em particular, a ontologia clssica, e do objeto no pode socorrer-se dela, nem reivindicar o privilgio de principio, j que entre os que as conservam, no passa de uma preferncia. Ou se entende, por fsica e por cincia, certas maneiras de operar sobre os atos por meio de algoritmos, certa prtica do conhecimento, de que so juzes somente os que possuem os instrumentos e, ento, so eles tambm os nicos juzes do sentido em que tomam suas variveis, no tendo, todavia, nem a obrigao nem mesmo o direito de darem a elas uma traduo imaginativa, de decidirem em nome delas da questo do que a, nem recusarem o eventual contato com o mundo. Ou, ao contrrio, a fsica pretende dizer o que , mas ento no tem hoje mais fundamento para definir o Ser pelo Ser-objeto, nem para isolar a vivencia na ordem de nossas representaes, no setor de nossas curiosidades psicolgicas; preciso que reconhea como legtima a anlise dos procedimentos pelos quais o universo das medidas e das operaes se constituem a partir do mundo vivido considerando como fonte, eventualmente como fonte universal. Na ausncia dessa anlise, onde o direito relativo e os limites da objetivao clssica sejam reconhecidos, uma fsica que conservasse intato o equipamento filosfico da cincia clssica e projetasse na ordem do saber absoluto seus prprios resultado viveria, como se a f perceptiva de onde este procede, em estado de crise permanente. surpreendente ver Einstein desclassificar como psicolgica a experincia que temos do simultneo pela percepo de outrem e pela confrontao dos horizontes perceptivos nossos e dos outros: ele no poderia dar valor ontolgico a essa experincia por que puro saber de antecipao ou de principio, fazendo-se sem operaes e sem medidas afetivas. Implica em postular que o que , no aquilo para que temos abertura, mas somente aquilo sobre o que podemos operar: e Einstein no dissimula que essa certeza de uma adequao entre a operao da cincia e o ser nele anterior a sua fsica. At sublinha Pg 29 Com humor o contraste entre sua cincia selvagemente especulativa e sua reivindicao para ela de uma verdade em si. Teremos que mostrar como a idealizao fsica ultrapassa e esquece a f perceptiva. Bastaria, por ora, constatar que procede dela, que no suprime suas contradies, no dissipa sua obscuridade, no nos dispensando, de modo algum, longe disso, de enfrent-lo. Chegamos a mesma concluso se, ao invs de sublinharmos as inconsistncias da ordem objetiva, nos enderessemos a ordem subjetiva que, na ideologia da cincia, e a contrapartida daquela e seu necessrio

complemento talvez, por sua via, fosse mais facilmente aceita. Porque so patentes, aquilo, a desordem e a incoerncia, podendo dizer-se sem exagero que nossos conceitos fundamentais o do psiquismo e o da psicologia so to mticos como as classificaes das sociedades ditas arcaicas. Acreditou-se reencontrar a clareza exorcizando-a introspeco. E era preciso, com efeito, exorciz-la: pois onde, quando e como houve alguma vez uma viso do interior? H e isto uma coisa totalmente diferente que conserva seu valor uma vida ao p de si uma abertura a si, mas que no desemboca em outro mundo diferente do mundo comum e que no necessariamente fechamento aos outros. A critica da introspeco desvia-se frequentemente dessa maneira insubstituvel de ter acesso ao outro tal qual est impecvel em ns por outro lado, o recurso ao exterior, por ele mesmo, no garante de modo algum contra as iluses da introspeco, da apenas novas figuras a nossa idia confusa de uma viso psicolgica: no faz mais que transport-la de dentro pra fora. Seria instrutivo explicitar o que os psiclogos entendem por psiquismo e outras noes anlogas. como que uma camada geolgica profunda, coisa invisvel, que se acha em alguma parte, por detrs de certos corpos vivos, e a respeito da qual se supe que basta encontrar o ponto justo da observao. ela em mim que anseia por reconhecer o psiquismo, mas h nele, como que uma vocao continuamente frustrada: como que uma coisa se reconheceria? O psiquismo opaco a si mesmo e somente se encontrar em suas replicas exteriores, certificando-se em ultima analise, de que estas se assemelham a ele, como o anatomista est certo de encontrar no rgo que disseca a estrutura de sues prprios olhos: pois h uma espcie homem... Uma explicao completa de atitudes psicolgica e dos conceitos de que se serve o psicolgico, como se fosse evidente, revelaria nela uma massa de conseqncias sem premissas, um trabalho constitutivo muito antigo que no tirado a limpo e cujos resultado so aceitos integralmente, sem mesmo suspeitar-se a que ponto so confusos. O que aqui opera Pg 30 sempre a f perceptiva nas coisas e no mundo. A convico que ela nos incute de atingirmos o que por um sobrevo absoluto ns a aplicamos ao homem como as coisas, e por essa via que chegamos a pensar o invisvel do homem como uma coisa. O psiclogo, por sua vez, instala-se na posio absoluto. Como a investigao do objeto exterior, e do psquico s progride, de inicio, colocando-se fora do jogo das relatividades que descobre, subentendendo o objetivo absoluto diante do qual se desdobra o psiquismo em geral, o meu ou o do outro. A clivagem do subjetivo e do objetivo, pela qual a Fsica em seus incios define o seu domnio, e a psicologia correlativamente, o seu, no impede mas, ao contrrio, exige que eles sejam conseguidos segundo a mesma estrutura fundamental: so finalmente, duas ordens de objetos, as serem conhecidos em suas propriedades intrnsecas por um pensamento puro que determina o que so em si. Mas, como tambm na fsica, chega tambm um momento, em que o prprio desenvolvimento do saber pe em causa o espectador absoluto sempre pressuposto. Apesar de tudo, o fsico de que falo e a quem atribuo um sistema de referencia tambm um fsico que fala. Apesar de tudo o psiquismo de que fala o psiclogo o seu. Essa fsica do fsico, essa psicologia do psiclogo, anunciam que de agora em diante, para a prpria cincia, o ser-objeto, no pode ser mais o prprio-ser: objetivo e objetivo so reconhecidos como duas ordens construdas apreciadamente no interior de uma experincia total cujo contexto seria preciso restaurar com total clareza.

Essa abertura intelectual, cujo diagrama acabamos de traar a histria da psicologia de h 50 anos e, em especial, da psicologia da Forma. Quis ela constituir seu domnio de objetividade, e acreditou descobri-lo nas formas de comportamento. No haveria ai um condicionamento original que daria o objeto de uma cincia original como outras estruturas menos complexas davam o objeto da cincias da natureza? Domnio distinto, justaposto ao da Fsica, o comportamento ou o psiquismo tomados objetivamente, em principio eram acessveis aos mesmos mtodos possuindo a mesma estrutura ontolgica: aqui e ali o objeto era definido por suas relaes funcionais que ele observa universalmente. Havia seguramente em psicologia uma via de acesso descritiva ao objeto mas, por principio no poderia conduzir alm das mesmas determinaes funcionais. E, com efeito, foi possvel, precisar as condies de que depende de fato tal realizao perceptiva. Tal percepo de uma figura ambgua, tal nvel espacial ou colorido. A psicologia acreditou, enfim encontrar uma base firme e esperava de agora em diante, Pg 31 Numa acumulao de descobertas que confirmassem em estatuto de cincia. Hoje, porm, quarenta anos aps o inicio da Gestaltpsychologie, temos de novo o sentimento de estarmos no ponto morto. Por certo, em muitos setores, precisaram-se os trabalhos iniciais da escola, adquiriu-se e adquire-se ainda uma quantidade de determinaes funcionais. Mas o entusiasmo desapareceu, no se tem mais o sentimento de aproximarse de uma cincia do homem. que e os seus autores dessa escola logo tomaram conscincia do fato as relaes que estabeleceram no tm vigncia em todos os casos, s sendo explicativas nas condies artificiais dos laboratrios. No representam a primeira camada do comportamento, de onde se poderia passar, de uma em uma, sua determinao total: antes, so uma primeira forma de integrao, casos privilegiados de estruturao simples, diante da qual as estruturas mais complexas so, na realidade, qualitativamente, diferentes. A relao funcional que enunciam s tem sentido no seu nvel, no possui fora explicativa em relao aos nveis superiores e, finalmente, o ser do psiquismo deve ser definido , no como um cruzamento de causalidades elementares, mas por estruturaes heterogneas e descontnuas que a se realizam. Na medida em que nos ocupamos com estruturas mais integradas, percebemos que cada vez menos as condies do conta do condicionado; para este, elas no so mais do que a ocasio para se desencadearem. Assim de desmentia o paralelismo postulado entre o descritivo e o funcional. Tanto fcil, por exemplo, exemplificar segundo suas condies tal movimento perante de uma mancha luminosa num campo artificialmente simplificado e reduzido pelo dispositivo experimental, como uma determinao total do campo perceptivo concreto de tal individuo vivo num dado momento aparece, no provisoriamente acessvel mas definitivamente desprovida de sentido porque oferece estruturas que nem mesmo possuem nome no universo OBJETO das condies separadas e separveis. Quando olho uma estrela que se distancia de mim em direo ao horizonte, posso relacionar o que chamo a largura aparente da estrela a tal distancia isto , a que eu meo olhando com um s olho e em relao ao lpis que seguro diante de mim com outros elementos do campo determinados tambm por algum processo de medida, estabelecendo, assim, que a constncia da grandeza aparente depende de tais e tais variveis, segundo o esquema de dependncia funcional que define o objeto da cincia clssica. Mas ao considerar o campo tal como o tenho, quando olho livremente com os dois olhos, fora de toda atitude isolante, no posso explic-lo graas a condicionamentos. No que tais condicionamentos me escapem

Pg 32 Ou me permaneam escondidos, mas porque o prprio condicionado deixa de ser uma ordem que me permite ser descri9to objetivamente. Para o olhar natural que me da a paisagem, a estrada ao longo no possui largura alguma que se possa, ainda que idealmente, determinar numericamente ela to larga como a curta distncia , j que a mesma estrada, mas tambm no o , j que no posso negar que haja uma espcie de encolhimento perceptivo. Entre ela e a estrada prxima h identidade e no entanto {............}, passagem do aparente ao real, e estes so incomensurveis. Alm do mais, no devo, neste caso, compreender a aparncia como um vu lanado entre mim e o real: o encolhimento perceptivo no uma deformao, a estrada prxima no mais verdadeira: o prximo, o longnquo, o horizonte em seus indescritveis contrastes forma um sistema e suas relaes no campo total que constituam a verdade perceptiva. Entramos na ordem ambgua do ser percebido, onde a dependncia funcional no pega. apenas artificial e verbalmente que se pode manter nesse quadro ontolgico a psicologia da viso: as condies da profundidade o desaparecimento das imagens retinianas, por exemplo -, no consistem propriamente em condies, j que as imagens no se definem como dspares a no ser em relao a um aparelho perceptivo que procura seu equilbrio na fuso de imagens anlogas, de sorte que o condicionado condiciona aqui a condio. Um mundo percebido, certamente no pareceria a um homem se no se dessem condies para que isso em seu corpo: mas no so elas que o explicam. Ele segundo suas leis de campo e de organizao intrnseca e no como o objeto, segundo as exigncias de uma causalidade existente de um extremo a outro. O psiquismo no objeto; mas, note-se, no se trata de mostrar, conforme a tradio espiritualista, que certas realidades escapam a determinao cientifica: esse gnero de demonstrao sempre redunda em circunscrever um domnio de anticincia que, comumente, permanece concebido nos termos da ontologia que precisamente est sendo posta em questo, como se desse outra ordem de realidades. Nosso objetivo no opor aos fatos coordenados pela cincia objetiva outro grupo de fatos sejam eles chamados psiquismo ou fatos subjetivos, ou fatos interiores que lhe escapam mas mostrar que o ser-objeto e tambm o ser-sujeito, este concebido em oposio quele e relativa,ente a ele, no constituem uma alternativa, que o mundo percebido est aqum ou alm da antinomia que p fracassado da psicologia objetiva deve ser compreendido juntamente com o fracasso da fsica objetivista no como uma vitria do interior sobre o Pg 33 exterior, do mental sobre o material, mas como apelo reviso de nossa ontologia, ao reexame das noes de sujeito e de objeto. As mesmas razes que impedem de tratar a percepo como um objeto, tambm impedem de trat-la como operao de um sujeito, seja qual for o sentido em que possa ser tomada. Se o mundo sobre o qual ela se abre, o campo ambguo dos horizontes, e dos confins, no uma regio do mundo objetivo, repugna tanto situ-lo do lado dos fatos de conscincia como dos atos espirituais: a imanncia psicolgica ou transcendental no pode, melhor do que o pensamento objetivo, dar conta do que um horizonte ou o longe; a percepo que se d a si mesma, - no poderia abrir-se sobre horizontes e lonjuras, isto , sobre um mundo que, desde o inicio, est ai para ela e unicamente a partir do qual ela se sabe como titular annima em cuja direo caminham as

perspectivas da paisagem. A idia de sujeito tanto como a de objeto transformam em adequao de conhecimento a relao que estabelecemos com o mundo e conosco mesmos, na f perceptiva. No a iluminam, utilizam-na tacitamente, dela tirando as conseqncias. E j que o desenvolvimento do saber mostra que essas conseqncias so contraditrias, cabe-nos necessariamente voltar a ele a fim de elucid-lo. Dirigimo-nos psicologia da percepo em geral para melhor mostrarmos que as crises da psicologia vinculam-se a razes de principio no a qualquer atraso das investigaes em tal domnio particular. Mas, desde que a vimos em sua generalidade, encontramos a mesma dificuldade de principio nas investigaes especializadas. No se v, por exemplo, como uma psicologia social ser possvel em regime de ontologia objetivista. Se se pensa verdadeiramente que a percepo funo de variveis exteriores, este esquema no (muito aproximadamente) aplicvel a no ser ao condicionamento corporal e fsico, e a psicologia est condenada a est abstrao exorbitante de apenas considerar o homem como um conjunto de terminaes nervosas sobre as quais incidem os agentes fsico-qumicos. Os outros homens, uma constelao social e histrica, s podem intervir como estmulos se reconhecermos tambm a eficincia de conjuntos que no possuem existncia fsica e que operam sobre ele, no segundo suas propriedades imediatamente sensveis, mas em vista de sua configurao social, num espao e num tempo sociais, conforme um cdigo social e finalmente, antes como smbolos do que como causas. Pelo Pg 34 Mero fato de praticar-se a psicologia social, j se est fora da ontologia objetivista; nela s se pode permanecer exercendo sobre o objeto, que a gente se d, uma coerso que compromete a pesquisa. A ideologia objetivista aqui diretamente contrria ao desenvolvimento do saber. Era, por exemplo, uma evidencia, para o homem formado no saber objetivo do Ocidente, que a magia e o mito no tinham verdade intrnseca, que os efeitos mgicos e a vida mtica e ritual devem ser explicados por causas objetivas e reportados no restante s iluses da Subjetividade. A psicologia social, se pretende verdadeiramente ver nossa sociedade tal qual , no pode, contudo, partir desse postulado, que faz dele mesmo parte da psicologia ocidental, pois, adotando, presumiramos nossas concluses. Como o etnlogo, diante das sociedades ditas arcaicas, no pode prejulgar que o tempo, por exemplo, seja vivido como o entre ns, segundo as dimenses de um passado que no mais, de um futuro que no ainda e de um presente, o nico a ser plenamente, devendo descrever um tempo mtico onde certos acontecimentos do comeo guardam uma eficcia continuada do mesmo modo a psicologia social, precisamente se quer conhecer verdadeiramente nossa sociedade, no pode excluir a a priori hiptese do tempo mtico como componente de nossa histria pessoal e pblica. Por certo recalcamos o mgico na subjetividade, mas nada nos garante que a relao entre os homens no comporte inevitavelmente componentes mgicos e onricos. J que o objeto, neste caso, justamente a sociedade dos homens, as regras do pensamento objetivista no o podem determinar a priori, devendo, ao contrrio, ser vistas como particularidades de certos conjuntos scio-histricos, que no do necessariamente a chave. Acresce, evidentemente, que no cabe postular no inicio que o pensamento objetivo no mais do que um efeito ou um produto de certas estruturas sociais, no tendo direito sobre as outras: isso seria aceitar que o mundo humano repousa sobre um fundamento incompreensvel, e esse irracionalismo tambm seria arbitrrio. A nica atitude que convm a uma psicologia social consiste em tomar o pensamento objetivo pelo que : isto , como um mtodo que fundou a cincia e que

deve ser empregado sem restrio at o limite do possvel, mas que no que concerne histria representa antes uma primeira fase de eliminao que um meio de explicao total. A psicologia social, como psicologia reencontra necessariamente as questes do filosofo o que um outro homem? o que um acontecimento histrico? Onde se encontra o aconteciPg 35 mento histrico ou o Estado? , de sorte que no pode de antemo, situar os outros homens e a histria entre os objetos ou os estmulos. No trata estas questes de frente, pois so do domnio da Filosofia. Trata-as lateralmente pela prpria maneira pela qual cerca o seu objeto e avana em direo a ele. No torna intil, mas, ao contrrio exige um esclarecimento ontolgico que lhes diga respeito. Por no aceitar resolutamente as regras da objetividade verdadeira no domnio do homem, e no admitir que as leis de dependncia funcional so para ela antes uma maneira de circunscrever o irracional do que de elimin-lo, a psicologia dar, das sociedades que estuda, apenas uma viso abstrata e superficial, em comparao com a que a Histria pode oferecer, e isto o que amide acontece. Dizamos acima que o fsico enquadra numa ontologia objetivista uma Fsica que no mais o . Caberia acrescentar o mesmo para o psiclogo, e que do interior da prpria psicologia que os preconceitos da prpria psicologia vm obscurecer as concepes gerais e filosficas dos fsicos. Choca-nos ver os fsicos, que libertou sua prpria cincia dos cnones clssicos, do mecanicismo e do objetivismo, retomar sem hesitao, desde que passe ao problema da realidade ltima do mundo fsico, a distino cartesiana das qualidade primeiras e qualidades segundas como se a crtica dos postulados mecanicistas do interior do mundo fsico no alterasse em nada nossa maneira de conceber sua ao sobre nosso corpo, como se deixasse de valer na fronteira de nosso corpo e no reclamasse uma reviso de nossa psicofisiologia. Paradoxalmente, mais difcil renunciar aos esquemas de explicao mecanicista quando se aplicam ao do mundo sobre o homem aplicao, entretanto, que nunca deixou de levantar dificuldades evidentes do que quando se aplicam s aes fsicas no interior do mundo, onde, durante sculos, puderam, com todo direito, passar por justificados. que essa revoluo do pensamento na prpria Fsica pode ser feita aparentemente nos quadros ontolgicos tradicionais, ao passo que, na fisiologia dos sentidos, pe imediatamente em xeque, nossa idia mais arraigada das relaes do ser e do homem, e da verdade. Desde que se pare de pensar a percepo como ao do puro objeto fsico sobre o corpo humano e o percebido como resultado interior dessa ao, parece que toda distino entre o verdadeiro e o falso, o saber metdico e os fantasmas, a cincia e a imaginao, vem por gua abaixo. Assim que a fisiologia participa Pg 36 Menos efetivamente do que a fsica da renovao metodolgica contempornea, que o esprito cientifico a sem mantm algumas vezes sob formas arcaicas, permanecendo os bilogos mais materialistas do que os fsicos. No entendo, tambm eles os so muito mais como filsofos do que na prtica de bilogos. Seria preciso um dia libert-la inteiramente, colocar tambm a respeito do corpo humano, a questo de saber se um objeto e, ao mesmo tempo, se mantm com natureza exterior a mesma relao existente entre funo e varivel. Desde agora e isto o que nos importava , essa relao deixou de ser consubstancial psicofisiologia e com ela todas as noes que lhes so solidrias a de sensao como efeito prprio e constante de um estmulo fisicamente

definido, ainda mais, as de ateno e de juzo, como abstraes complementares, encarregadas de explicar o que no segue as leis da sensao... Ao mesmo tempo que idealizava o mundo fsico, definindo-o por propriedades inteiramente intrnsecas, de um pensamento ele tambm purificado, o cartesianismo, que tambm o decompe num entrelaamento de processos objetivos prolongando essa analise, juntamente com a noo de sensao at o psiquismo. Ambas as idealizaes so solidrias e devem ser destrudas juntas. somente regressando f perceptiva para retificar a analise cartesiana que faremos cessar a situao de crise em que encontra nosso saber quando acredita fundar-se sobre uma filosofia que as suas prprias tentativas destri. Porque a percepo nos da a f num mundo, num sistema de fatos naturais rigorosamente unido e contnuo acreditamos que esse sistema poderia incorporar todas as coisas, at mesmo a percepo que nele nos inicia. Hoje no mais acreditamos que a natureza seja um sistema contnuo desse gnero; com a mais forte razo estamos longe de pensar que os ilhes de psiquismo, que nela flutuam aqui e ali, estejam secretamente vinculados por meio do solo contnuo da natureza. Impe-se-nos, portanto, a tarefa de compreender se e em que sentido o que no natureza forma um mundo e, antes de tudo o que um mundo, finalmente se h mundo, quais podem ser as relaes entre o mundo visvel e o mundo invisvel. Esse trabalho, por mais difcil que seja, indispensvel para sairmos da confuso em que nos deixa a filosofia dos cientistas. No pode ser inteiramente realizado por eles porquanto o pensamento cientfico move-se no mundo e o pressupe invs de tom-lo por tema. Mas esse trabalho no estranho cincia, no nos instala fora no mundo. Quando dizemos, com outros filsofos que os estmulos da percepo no Pg 37 So as causas do mundo percebido, mas que so eles que as revelam ou desencadeiam, no queremos dizer que se possa perceber sem corpo mas, ao contrrio, que preciso reexaminar a definio de corpo como puro objeto para compreendermos como pode ser nosso vnculo vivo com a natureza. No nos estabelecemos num universo de essncias; pedimos ao contrrio que se reconsidere a distino that e do what, da essncia e das condies de existncia, repostando-se experincia do mundo que a precede. A Filosofia no cincia porque a cincia acredita poder sobrevoar seu objeto, tendo por adquirida a correlao do saber e do ser, ao passo que a Filosofia o conjunto das questes onde aquele que questiona ele prprio posto em causa pela questo. Uma Fsica, porm, que aprendeu a situar o psiclogo num mundo scio-histrico perderam a iluso do sobrevo absoluto: elas no apenas toleram mas impe antes de toda cincia o exame radical de nossa pertena ao mundo. A f perceptiva e a reflexo Os mtodos de prova e de conhecimento que inventa um pensamento j instalado no mundo, os conceitos de objeto e de sujeito que introduz no nos permitem compreender o que seja a f perceptiva, precisamente porque uma f, isto , uma adeso que se sabe alm das provas, no necessria, tecida de incredulidade, a cada instante ameaada pela no f. A crena e a incredulidade esto aqui to estreitamente ligadas que uma se encontra sempre na outra, e, em particular, um germe de no-verdade dentro da verdade: a certeza que tem de estar vinculado ao mundo por meu olhar j me promete um pseudomundo de fantasmas, se o deixar errante. Tapar os olhos para no ver um perigo , segundo dizem, no acreditar nas coisas, acreditar somente no mundo privado; no

entanto, antes acreditar que o que para ns o absolutamente, que um mundo que logramos ver sem perigos sem perigo; isso , portanto, acreditar, da maneira mais firme, que nossa viso vai s prprias coisas. Talvez essa experincia nos ensine, melhor que qualquer outra, o que seja a presena perceptiva do mundo: no, o que seria impossvel afirmao e negao da mesma coisa sob a mesma relao, juzo positivo e negativo como dizamos a pouco, crena e incredulidade; nossa experincia que est aqum da afirmao e da negao, aqum do juzo opinies crticas, operaes ulteriores mais velha que qualquer opinio, a experincia de habitar o mundo por meio de nosso Pg. 38 Corpo, a verdade ns mesmos inteiramente sem que seja necessrio escolher nem mesmo distinguir entre a segurana de ver e a de ver o verdadeiro, pois que so por princpio uma mesma coisa portanto f, e no saber, porquanto o mundo aqui no est separado do domnio que temos sobre ele, sendo, ao invs de afirmado, tomado como evidente, e ao invs de revelado, no dissimulado, no refutado. Se a Filosofia seve apropriar-se dessa abertura inicial ao mundo, compreendendo-a abertura que no exclui uma possvel ocultao no pode contentar-se com descrevla, mister que nos diga como h abertura sem que a ocultao do mundo seja excluda, como a cada instante permanece possvel, embora sejamos naturalmente dotados de luz. Cumpre ao filsofo compreender como essa s duas possibilidades que a f perceptiva guarda em si prpria, lado a lado, no se anulam. No o lograr se se mantiver em seu nvel, oscilando de uma para outra, dizendo que hora a minha viso est na prpria coisa ora que minha viso minha ou est em mim. preciso que renuncie a esses dois pontos de vista, que se abstenha tanto de um como de outro, que os chame, j que so incompossveis em sua literalidade, a si prprio, que seu titular devendo pois, saber o que os motiva internamente; preciso que os perca como estado de fato para reconstrulos como possibilidades suas, a fim de aprender por si mesmo o que em verdade, significam, o que o destina no s percepo como aos fantasmas; numa palavra, mister que reflexione. Ora, logo que o faz, alm do prprio mundo e alm daquilo que somente em ns, alm do ser em si e do ser para ns, parece abrir-se uma terceira dimenso onde desaparece sua discordncia. Pela converso reflexionante, perceber e imaginar nada mais so do que duas maneiras de pensar. Da viso e do sentido guardamos apenas o que os anima e os sustm indubitavelmente, o puro pensamento e de ver ou de sentir, e possvel descrever esse pensamento, mostrar que feito de uma correlao rigorosa entre minha explorao do mundo e as respostas sensoriais que suscita. Submeteremos o imaginrio a uma anlise paralela e perceberemos que o pensamento de que feito no , nesse sentido preciso, pensamento de ver ou de sentir, sendo antes a deciso de no aplicar e at mesmo de esquecer os critrios de verificao, de tomar como bom o que no visto e no poderia s-lo. Assim, parece que se abolem as antinomias da f perceptiva, bem verdade que percebemos a prpria coisa, j que a coisa nada mais Pg. 39 Do que aquilo que vemos, no, porm, pelo poder oculto de nossos olhos: eles no so mais sujeitos da viso, passaram para o nmero das coisas vistas, e o que chamamos viso faz parte da potncia de pensar que atesta que esta aparncia respondeu, segundo uma regre, aos movimentos de nossos olhos. A percepo o penamento de perceber

quando pelna ou atual. Se, pois, atinge a propria coisa, preciso dizer sem contradio, que inteiramente um feito nosso e, de uma ponta outra, nossa, como todos os nossos pensamentos. Aberta sobre a prpria coisa no deixa de ser menos nossa, porquanto a coisa , doravante, o que pensamos ver coitatum ou noema. No sai mais do circulo de nossos pensamentos do que a imaginao, tambm ela pensamento de ver mais pensamento que no procura o exerccio, a proca, a plenitude, portanto a si mesma e s se pensa pela metade. Assim, o real se transforma no correlativo do pensamento e o imaginrio , no interior do mesmo domnio, o crculo estreito dos objetos de pensamento pensados pela metade, meio objetos ou fantasmas que no possuem consistncia alguma, lugar prprio, desaparecendo ao sol do pensamento como os capores da manh, no consistindo, entre o pensamento e o que ele pensa, mais do que em uma fina camanda de impensado. A reflexo guarda tudo da f perceptiva: a convico de que h qualquer coisa que h o mundo, a idia de verdade, a idia verdadeira dada. Simplesmente, essa brbara convico de ir as prprias coisas incompatvel com o fato da iluso ela a reduz ao que pretende dizer ou significa converte-a em sua verdade, descobrindo a a adequao e o conseintimento do pensamento ao pensamento, a transparncia do que penso para mim que o penso. A existncia bruta e previa do mundo que acreditava encontrar j ali, abrindo os olhos, apenas o smbolo de um ser que para si logo que , porque todo o seu ser aparecer e, portanto, aparecer-se e que se chama esprito. Graas converso reflexicionante, que s deixa subsistir diante do sujeito puro ideadir cogitata ou noemas, samos, enfim, dos equvocos da f perceptiva, que, paradoxalmente, nos assegurava levar-nos as prprias coisas, dando-nos acesso a elas por meio do corpo, que portanto, nos abria para o mundo, fechando-nos nas sries de nossos acontecimentos privados. De agora em diante, tudo parece claro, a mistura de dogmatismo e de ceticismo, as convices enevoadas da f perceptiva so postas em duvida, no mais creio ver com meus olhos exteriores a mim que as vejo: so Pg 40 Exteriores apenas ao meu corpo, no ao meu pensamento, que sobrevoa a ambos. Alm do mais, j no me deixo impressionar pela evidencia de que os outros sujeitos no vo alm das prprias coisas, que suas percepes se passam neles evidencia que termina por repercutir em minha prpria percepo, j que, enfim, aos olhos deles, sou um outro, e meu dogmatismo, comunicando-se aos outros, retorna para mim como ceticismo se verdade que, vista de fora, a percepo de cada um parece encerrada em algum reduto atrs de seu corpo, essa percepo exterior precisamente colocada, pela reflexo, entre fantasmas sem consistncia e pensamentos confusos: no se pensa um pensamento de fora; por definio, o pensamento s se pensa intrinsecamente; se os outros so pensamentos, no esto, na qualidade de pensamentos, atrs de seus corpos que vejo, no esto, como eu, em parte alguma; so, como eu, coextensivos ao ser no havendo o problema da encarnao. Ao mesmo tempo que a reflexo nos libera dos falsos problemas suscitados por experincias bastardas e impensveis, ela os justifica, alias, por simples transposio do sujeito encarnado em sujeito transcendental, e da realidade do mundo em idealidade: todos ns atingimos o mundo e o mesmo mundo, ele para todos cada um de ns, sem diviso, nem perda, porque o que pensamos perceber, o objeto indiviso de todos os nossos pensamentos; sua unidade, no sendo a unidade numrica, no vem a ser a unidade especfica; est unidade ideal ou de significao que faz com que o triangulo do gemetra seja o mesmo em Tquio ou em Paris, no sculo V antes de Jesus Cristo e no presente. Essa unidade basta e desarma

qualquer problema, j que as divises que podemos opor-lhe, a pluralidade dos campos da percepo e das vidas, so como nada diante dela, no pertencem ao universo da idealidade e do sentido, no podendo mesmo formular-se ou articular-se em pensamentos distintos, enfim, porque reconhecemos pela reflexo, no mago de todos os pensamentos situados, enredados e encarnados, o puro aparecer do pensamento ante si mesmo, o universo da adequao interna, onde tudo o que possumos de verdadeiro se integra sem dificuldade. . . Esse movimento reflexionante, sempre ser, a primeira vista, convincente: num sentido ele se impe, a prpria verdade, e no se v como a filosofia poderia dispens-lo. A questo saber se a conduz a um ponto seguro, se o universo do pensamento a que conduz verdadeiramente uma ordem a que se basta e que se encerra toda a questo. J que a f perceptiva paradoxo, como permanecer nela? E se no permaneo nela, que posso fazer seno voltar a mim prprio e procurar a a morada da verdade? Pq 41 No evidente, precisamente se minha percepo percepo do mundo, que devo encontrar no meu comrcio com ele as razes que me persuadem a v-lo e, na minha viso, o sentido de minha viso? Eu, que estou no mundo de quem aprenderia o que estar no mundo de no de mim mesmo, e como poderia dizer que estou no mundo se no o soubesse? Sem presumir que saiba tudo de mim mesmo, certo, ao menos, que eu sou, entre as coisas, saber; esse atributo me pertence seguramente, mesmo que tenha outros. No posso imaginar que o mundo irrompa em mim e eu nele: a este saber que eu sou, o mundo no pode apresentar-se a no ser oferecendo-lhe um sentido, a no ser sob a forma de pensamento do mundo. O segredo do mundo que procuramos preciso, necessariamente, que esteja contido em meu contato com ele. De tudo o que vivo enquanto vivo, tenho diante de mim o sentido, sem o que no viveria e no posso procurar nenhum a luz concorrente ao mundo a no ser interrogando, explicando minha freqentao do mundo, compreendendo-a de dentro. O que sempre far da filosofia reflexionante, no somente uma tentao, mas um caminho que preciso percorrer, que ela verdadeira no que nega: e relao exterior entre o mundo em si e mim mesmo, concebida como um processo do tipo daqueles que se desenvolvem no interior do mundo, que se imagina como uma intruso do mundo em mim ou, ao contrrio, como alguma viagem do meu olhar por entre as coisas. Mas o vnculo natal entre mim que percebo e o que vejo concebido como se faz mister? E porque devemos certamente rejeitar a idia de uma relao exterior do percebedor e do percebido, preciso passar a anttese da imanncia , ainda que ideal e espiritual, e dizer que eu que percebo sou pensamento de perceber e o mundo percebido a coisa pensada? Porque a percepo no entrou do mundo em mim, no centrpeta, preciso que seja centrfuga, como um pensamento que formo, ou como a significao que atribuo a por meio do juzo a uma aparncia indecisa? A interrogao filosfica e a explicao dela resulta, a filosofia reflexionante as pratica num estilo que no o nico possvel, mistura pressupostos que temos de examinar e que, finalmente, se revelam contrrios a inspirao reflexiva. Nosso vinculo natal com o mundo, ela somente pensa poder compreend-lo desfazendoo para refaz-lo, constituindo-o, fabricando-o. ela acredita encontrar a clareza pela analise, isto , se no nos elementos mais simples, ao menos nas condies mais fundamentais, implicadas no produto bruto, em premissas de onde ele resulta como conseqncia, numa fonte de sentido de onde

Pg 42 Deriva. , pois, essencial a filosofia reflexionante recolocar-nos, aqum da nossa situao de fato, num centro das coisas, donde procedamos, mas em relao ao qual estvamos descentrados, refazer, partindo de ns, um caminho j traado dele para ns: o prprios esforo em direo a adequao interna, a empresa de reconquistar explicitando tudo o que somos e fazemos implicitamente significa que o que somos enfim como naturados o somos primeiramente como naturantes de modo ativo, que o mundo s nosso lugar natal porque somos, de inicio, como espritos, o bero do mundo. Ora, nisto, se se mantm em seu primeiro movimento, se nos instala por regresso no universo imanente de nossos pensamentos e, na medida em que h resto, o destitui, como pensamento confuso, mutilado ou ingnuo, de toda potncia probatria em relao a si mesma, a reflexo falha em sua tarefa e no radicalismo que sua lei: pois o movimento de retomada, de recuperao, de retorno a si mesmo, a marcha de adequao interna, o prprio esforo para coincidir com o naturante que j ns e que desdobra, ao que tudo indica, diante de si as coisas e o mundo, precisamente como retorno ou reconquista, tais operaes segundas de re-constituies ou de restaurao no podem, por principio, ser a imagem em espelho de sua contituio interna e se dua instaurao, como o caminho da toile de Notre-Dame o inverso do caminho de Notre-Dame toile: a reflexo recupera tudo exceto a si mesma como esforo de recuperao, esclarece tuso salvo seu prprio papel. O olho do esprito tambm tem seu ponto cego, mas, porque esprito, no pode ignorar nem trat-lo como simples estado de no-viso, que no exige meno particular alguma, o prprio ato de reflexo que quoad nos seu ato de nascimento. Se no se ignora o que seria contra a sua definio no pode fingir desenrolar o mesmo fio que o esprito teria antes enrolado, ser o esprito que retorna a si em mim, quando sou eu por definio que reflexiono: deve aparecer como marcha em direo a um sujeito X, apelo a um sujeito , e a prpria segurana que se encontra de atingir um naturalmente universal, no podendo advir-lhe de algum contato prvio com ele, porquanto precisamente ainda ignorncia, evoca-o e no coincide com ele, s pode vir-lhe do mundo ou de meus pensamentos enquanto formam um mundo, enquanto sua coeso, Pg 42 Suas linhas de fuga designam aqum dela mesma, um foco virtual com o qual ainda no coincido. Enquanto esforo para fundar o mundo existente sobre um pensamento do mundo, a reflexo se inspira a casa instante na presena prvia do mundo de que tributria, e a empresta toda sua energia. Quando Kant justifica cada passo de sua analtica pelo famoso se um mundo deve ser possvel, sublinha que seu fio condutor lhe dado pela imagem irrefletida do mundo, que a necessidade dos passos reflexionantes est suspensa da hiptese mundo e que o pensamento do mundo, que a analtica est encarregada de desvendar, no tanto o fundamento como a expresso segunda do fato de que houve para mim a experincia de um mundo, que, em outros termos, a possibilidade intrnseca do mundo como pensamento repousa no fato de que posso ver o mundo, isto , numa possibilidade de um tipo totalmente diferente, que, como vimos, confina com o impossvel. por um apelo secreto e constante a esse possvel-impossvel que a reflexo pode ter a iluso de ser retorno a si e instalar-se na imanncia, nosso poder de entrar em ns mede-se exatamente pelo poder de sair de ns que no nem mais antigo nem mais recente do que ele, sendo exatamente seu sinnimo. Toda analise reflexionante no falsa, mas ainda ingnua, enquanto

dissimular sua prpria mola e, para constituir o mundo, for preciso ter noo do mundo como pr-constitudo, de modo que o processo se retarda, por principio, em si mesmo. Responder-se-, talvez, que as grandes filosofias reflexivas bem o sabem como mostram em Spinoza, em referncia idia verdadeira dada ou, em Kant, a referncia muito consciente a uma experincia pr-crtica do mundo; mas que o circulo irrefletido e da reflexo nelas deliberado, que se comea pelo irrefletido porque preciso um comeo, mas que o universo do pensamento que se abre pela reflexo contm tudo o que preciso para explicar o pensamento mutilado do inicio, que a escada que se recolhe depois de ter subido. . . Mas se assim, no h mais filosofia reflexionante, pois no h mais originrio ou derivado, h um pensamento em circulo onde condio e condicionante, reflexo e irrefletido esto numa relao recproca, seno simtrica, e onde o fim est no comeo e o comeo no fim. O mesmo dizemos ns. As observaes feitas sobre a reflexo no se destinavam, de modo algum, a desqualific-la em proveito do irrefletido ou do imediato (que somente atravs dela conhecemos). No se trata de pr a f perceptiva no lugar da reflexo mas, ao contrrio, de abarcar a situao total que comporta reenvio de uma a outra. O que se obtm no um mundo macio e opaco ou um universo Pg 44 Do pensamento adequado; uma reflexo que retorna sob a espessura do mundo para ilumin-lo mas que em seguida lhe devolve somente a sua prpria luz. Tanto verdade que no posso, a fim de sair das dificuldades em que me lana a f perceptiva, apelar apenas para a minha experincia do mundo, para essa mistura do mundo que para mim recomea cada manha, logo que abro os olhos, para esse fluxo de vida perceptiva entre ele e mim que no pra de pulsar, da manh a noite, fazendo que meus pensamentos mais secretos me alterem o aspecto dos rostos e das paisagens, como os rostos e as paisagens, inversamente, me trazem alternadamente socorro e ameaa de uma maneira de ser homem que infundem em minha vida quanto certo que a relao de um pensamento com o seu objeto do cogito com o cogitato, no contm nem a totalidade nem o essencial de nosso comercio com o mundo, de sorte que devemos recoloc-la em uma relao mais surda com o mundo, numa iniciao ao mundo na qual repousa, e que j est sempre feita quando intervm o retorno reflexionante. Essa relao que chamaremos a abertura para o mundo deixamo-la escapar no momento em que o esforo reflexivo tenta capt-la e, concomitantemente, podemos entrever as razes que o impedem de vencer e o caminho pelo qual teremos bom xito. Vejo, sinto e certo, para me dar conta de que seja ver e sentir, devo para de acompanhar o ver e o sentir no visvel e no sensvel onde se lanam, circunscrevendo, aqum deles mesmo, num domnio que no ocupam e a partir do qual se tornam compreensveis segundo seu sentido e sua essncia, compreend-los e surpreende-los, pois a viso ingnua me ocupa inteiramente, pois a ateno na viso que se acrescenta a ela, retira alguma coisa desse dom total, sobre tudo, porque compreender traduzir em significaes disponveis com sentido inicialmente ativo na coisa e no mundo. Mas essa traduo visa a apresentar o texto, ou antes, o visvel explicitao filosfica do visvel no esto lado a lado como dois conjuntos de signos como um texto e sua verso noutra lngua. Se fosse um texto seria um estranho texto, dado diretamente a todos, de sorte que no estamos reduzidos traduo do filsofo, pois podemos confront-la com ele; de seu lado, a filosofia mais e menos do que traduo; mais, porque s ela nos diz o que quer dizer, menos, porque inutilizvel se no dispusermos do texto. O filosofo, portanto, somente suspense a viso

bruta para transpor para a ordem do expresso, ela permanece seu modelo ou sua medida, sobre ela que deve Pg 45 Abre-se a rede de significaes que ela organiza para reconquist-la. No cabe, pois, supor inexistente o que era visto ou sentido e tambm a viso e o sentir, substituindo conforme a palavra de Descartes, pelo pensamento de ver e de sentir, esse sendo considerado inabalvel porque nada presume sobre o que efetivamente, porque se entrincheira na apario do que pensado no pensamento, de onde, com efeito, inexpugnvel. Reduzir a percepo ao pensamento de perceber, sob o pretexto de que s a imanncia segura, implica em assinar um seguro contra a duvida, cujos prmios so onerosos do que a perda que deve ser indenizada por que implica em renunciar ao mundo efetivo e passar a um tipo de certeza que nunca nos dar o h do mundo. Ou a duvida um estado de dilaceramento e obscuridade, e ento nada me ensina ou se me ensina alguma coisa, porque deliberada, militante, sistemtica, sendo ento um ato, de modo que, mesmo se em seguida sua prpria existncia se impe a mim como limite da dvida, como algo que nada , esse algo da ordem dos atos em que doravante estou encerrado. A iluso das iluses acreditar, nesse momento que em verdade nunca estivemos certos a no ser de nossos atos, que desde sempre a percepo foi uma inespeco do esprito e que a reflexo somente a percepo renascendo para si mesma, a converso do saber, da coisa no saber de si de que a coisa feita, a emergncia de um vinculante que era a prpria vinculao. Essa espiritualizao cartesiana, essa identidade do espao e do esprito que acreditamos provar, dizendo que como toda evidncia, o objeto longnquo s o em virtude de sua relao com outros objetos mais longnquos ou menos afastados que esta no pertence propriamente a nenhum deles, sendo a presena imediata do esprito para todos ns, e que finalmente substitui nossa pertencena ao mundo por um sobrevo ao mundo sua aparente evidencia decorre apenas de um postulado muito ingnuo (e que nos sugerido justamente pelo mundo) segundo o qual sempre a mesma coisa que eu penso, quando o olhar da ateno se desloca dela mesma aquilo que a condiciona: convico macia tirada da experincia exterior, onde tenho, com efeito, a segurana de que as coisas sobre meus olhos permanecem as mesmas enquanto delas me aproximo para inspecion-las melhor, mas isso porque o funcionamento de meu corpo como possibilidade de mudar de ngulo de viso, aparelho de ver conscincia sedimentada do ngulo de viso, me asseguro que me aproximo da prpria coisa que h pouco Pg 46 Eu via de mais longe. a vida perceptiva do meu corpo quem sustenta aqui e garante a explicao perceptiva e, longe de ser, ela prpria, reconhecimento das relaes intramundanas ou intersubjetivas entre meu corpo e as coisas exteriores, est pressuposta em toda noo de objeto, sendo ela que realiza a abertura primeira para o mundo: minha convico de ser a prpria coisa que no resulta da explorao perceptiva, no uma palavra para designar a viso proximal, ela,ao contrrio, que me da a noo do proximal, do melhor ponto de observao da prpria coisa. Tendo, pois, aprendido pela experincia perceptiva o que ver bem a coisa, que preciso e possvel, para o conseguirmos, dela nos aproximarmos, sendo os novos dados assim adquiridos determinaes da prpria coisa, transportamos para o interior essa certeza, recorremos fico de um homenzinho dentro do homem, e assim chegamos a pensar

que refletir sobre a percepo , permanecendo a coisa percebida e a percepo o que era um, desvendar o verdadeiro sujeito que as habita e que sempre os habitou. Na realidade, eu deveria dizer que havia uma coisa percebida e uma abertura para essa coisa que a reflexo neutralizou, transformou em percepo-reflexiva e em coisapercebida-numa-percepo-reflexiva, e que o funcionamento refletido, como o do corpo explorador, usa de poderes obscuros para mim, transpassa o ciclo da Curaao que separa a percepo bruta do exame reflexionante e s mentem durante esse tempo a permanecia do percebido e da percepo sobre o olhar do esprito porque minha inspeo mental e minhas atitudes de esprito prolongam o eu posso de minha explorao sensorial, e corporal. Fundar esta sobre aquela e a percepo do fato sobre a essncia da percepo, tal qual aparece para reflexo, esquecer a prpria reflexo como um ato distinto da retomada. Noutros termos, entrevemos a necessidade de uma operao diferente da converso reflexionante, mais fundamental do que ela, espcie de sobre-reflexo que tambm a levaria em conta, assim como as mudanas que introduz no espetculo, sem, portanto, perder a vista a coisa e a percepo bruta e, conseqentemente, sem apagar nem contar nelas, preciso que no suspenda a f no mundo nicas da percepo e da coisa percebida atribuindo-se ao contrrio, a tarefa de pensar-las de refletir sobre a transcendncia do mundo como transcendncia, e falar desta no segundo a lei das significaes das palavras inerentes a linguagem dada, mas por um esforo, talvez difcil, que as emprega para exprimir alm delas mesmas nosso contato mudo com as coisas, quando ainda no so coisas ditas. Se, pois, a reflexo no deve presumir o que encontra e condenar-se a por nas coisas o que depois fingir enPg 47 Contrar nelas preciso que no suspenda a f no mundo a no ser para v-lo, para ler nele o caminho por ele seguido ao tornar-se mundo para ns, preciso que nele procure o segredo de nossa ligao perceptiva com ele, que empregue as palavras para dizer essa ligao pr-lgica e no conforme sua significao preestabelecida, que mergulhe no mundo ao invs de domin-lo, que desa em sua tal como ele ao invs de ascender a uma possibilidade prvia de pens-lo que lhe imporia de antemo as nossas condies de controle sobre ele que interrogue, que entre na floresta das referencias que nossa interrogao levanta nele, que se faa fizer, enfim, que o que em seu silencio ele quer dizer . . . No sabemos nem o que essa ordem e essa concordncia com o mundo s quais no entregamos, nem, portanto, no que a empresa resultar, nem mesmo se verdadeiramente possvel. Mas a escolha entre ela e um dogmatismo da reflexo, cujo ponto de chegada conhecemos em demasia porquanto a filosofia termina no momento em que o dogmatismo comea, e, precisamente por essa razo, no nos deixa compreender a nossa prpria obscuridade. Uma filosofia reflexionante, como duvida metdica e reduo da abertura do mundo aos atos espirituais, s relaes intrnsecas da idia e seu ideado, muito infiel ao que se prope esclarecer: ao mundo visvel, quele que o v e as suas relaes com os outros visionrios. Dizer que a sua percepo e sempre foi inspeo do esprito definila, no pelo que ela nos d, mas pelo que nela resiste a hiptese de inexistncia, identificar de imediato o positivo como uma negao da negao, impor ao inocente a prova de sua no-culpabilidade e, de antemo, reduzir nosso contato com o Ser s operaes discursivas pelas quais nos defendemos da iluso, reduzir o verdadeiro ao verossmil, o real ao provvel. O simples fato, amide observado, que a imaginao mais verossmil, mais conforme ao contexto de expresso no nos faz avanar um passo na direo da realidade, sendo imediatamente posta por ns do lado do imaginrio, e

que, inversamente, tal como barulho inesperado e imprevisvel de imediato percebido como real, por fracas que sejam suas ligaes com o contexto, impe a idia de que se trata, com o real e o imaginrio, de duas ordens, dois palcos ou teatros o do espao e o dos fantasmas montados em ns antes dos atos de discriminao, que apenas intervm nos casos equvocos, e onde o que vivemos vem instalar-se por si, fora de todo controle criteriolgico. Que algumas vezes os controles se tornem necesPg 48 Srios e terminem em juzos de realidade que retificam a experincia ingnua, isso no prova que juzos dessa espcie estejam na origem dessa distino ou a constituem, nos dispensando, por conseguinte, de compreende-la por si prpria. Se o fizermos, no ser preciso definir o real por sua coerncia e o imaginrio por sua incoerncia ou suas lacunas: o real coerente e provvel por ser real, e no real por ser coerente: o imaginrio incoerente ou improvvel porque imaginrio, e no imaginrio porque incoerente. A menor parcela do percebido o incorpora de imediato ao percebido, o fantasma verossmil escorrega na superfcie do mundo; esta presena do mundo inteiro num reflexo, sua ausncia irremedivel nos delrios mais ricos e mais sistemticos, que devemos compreender, e essa diferena no do mais ao menos. verdade que d lugar a enganos ou a iluses; da se conclui, algumas vezes, que no pode, pois, ser natural e que o real, apesar de tudo, no mais que o menos improvvel ou o mais provvel. pensar o verdadeiro pelo falso, o positivo pelo negativo, e descrever mal a experincia da des-iluso, onde justamente aprendemos a conhecer a fragilidade do real. Pois quando uma iluso se dissipa, quando uma aparncia irrompe de repente, sempre em proveito de uma nova aparncia que retoma por sua conta a funo ontolgica da primeira. Acreditava ver sobre a mesa um pedao de madeira polido pelo mar mas era uma pedra argilosa. A irrupo e a destruio da primeira aparncia no permitem doravante definir oreal como simples provvel, porquanto eles no so mais outro nome da nova apario que deve, pois, figurarem nossa anlise da des-iluso. A des-iluso s a perda de uma evidncia porque a aquisio de uma outra evidncia. Se, por prudncia, chego a dizer que est em si prpria duvidosa, ou somente provvel (nela prpria, isto , para mim, h pouco, quando me teria aproximado um pouco mais ou olhado melhor), isso no impede que, no momento em que falo, ela se apresente como real fora de toda contestao e no como muito possvel ou provvel; se em seguida, por sua vez, se estilhaar, isto se far graas ao impulso de uma nova realidade. O que posso concluir dessas desiluses ou decepes , portanto, que talvez a realidade no pertena definitivamente a nenhuma percepo particular, e que, nesse sentido, est sempre mais longe; isto, porm, no me autoriza a romper ou silenciar a ligao que as rene, uma aps a outra, ao real, que no pode ser rompida com uma, sem antes estabelecer-se com a seguinte, de forma que no h Schein sem Erscheinung, que todo Schein contrapartida de uma Erscheinung, e o sentido do real no se reduz ao do Pg 49 provvel, ao contrrio , o provvel evoca uma experincia definitiva do real, cuja ocorrncia apenas adiada. Diante de uma aparncia perceptiva, no sabemos unicamente que pode, em seguida, romper-se; sabemos tambm que isso se dar porque foi to bem substituda por outra que dela no restam vestgios e que em vo procuramos nesta pedra gredosa aquilo que a pouco era um pedao de madeira polido pelo mar. Cada percepo mutvel e somente provvel ; isto, se quisermos, no passa

de uma opinio: mas o que no o , o que cada percepo mesmo falsa verifica a pertencena de cada experincia ao mesmo mundo, seu poder igual de manifest-lo, a ttulo de possibilidades do mesmo mundo. Se uma toma to bem o lugar da outra a ponto de no mais lhe encontramos vestgios logo depois da iluso que precisamente no so hipteses sucessivas concernentes a um Ser no-conhecvel, mas perspectivas sobre o mesmo Ser familiar, o qual, sabemos, no pode excluir uma sem incluir a outra e, em qualquer situao de causa. Est fora de contestao. Da a prpria fragilidade de tal percepo, atestada por seu desaparecimento e pela substituio por outra percepo, longe de nos autorizar a apagar nelas todas o ndice de realidade, obrigando-nos a atribu-lo a todas, a reconhec-las todas como variantes do mesmo mundo e, enfim, a consider-las no como todas falas mas como todas verdadeiras, no como malogros repetidos na determinao do mundo mas como aproximaes progressivas. Cada percepo envolve a possibilidade de sua substituio por outra e, portanto, uma espcie de desautorizao das coisas, mas isso tambm quer dizer: cada percepo o termo de uma aproximao, de uma srie de iluses, que no eram apenas simples pensamentos, no sentido restritivo do Ser-para-si e do nada mais que pensado, mas possibilidades que poderiam ter sido, irradiaes desse mundo nico que h. . . e que, desse modo, nunca retornaram ao nada ou a subjetividade, como se nunca tivessem aparecido, sendo antes como bem diz Husserl riscadas ou barradas pela nova realidade. A filosofia reflexionante no se engana considerando o falso como uma verdade mutilada ou parcial: seu engano antes fazer como se o parcial fosse apenas a ausncia de fato da totalidade, que no tem necessidade que se d conta dela, o que finalmente suprime toda consistncia prpria da aparncia, integra-a de antemo no Ser, tira-lhe, como parcial, seu contedo de verdade, escamoteia-o numa adequao interna onde o Ser e as razes de ser coincidem. A marcha para a adequao que os fatos de des-iluso testemunham no o retorno a si de um Pensamento adequado que inexplicavelmente se Pg 50 Teria perdido de vista nem, alis, um progresso cego da probabilidade, fundada sobre o nmero de sinais e concordncias a pr-posse de uma totalidade que est a antes que se saiba como e porque, cujas realizaes nunca so o que tnhamos imaginado que fosse e que, contudo, preenche em ns uma espera secreta j que nelas acreditamos infatigavelmente. Respoder-se-, sem dvida que, para salvarmos o que h de original no mundo como tema pr-objetivo, nos recusarmos a transform-lo no correlato imanente de um ato espiritual, a luz natural, a abertura de minha percepo sobre o mundo somente pode resultar de uma pr-ordenao cujo resultado registro, de uma finalidade da qual sofro a lei como sofro a de todos os meus rgos, e que, alias, essa passividade, uma vez em mim introduzida corromper tudo, quando eu passar, como ser necessrio, a ordem do pensamento, e tiver de explicar como penso sobre minhas percepes: seja que eu restabelea nesse nvel a autonomia que eu renunciei no nvel da perpcepo mas ento no se v como esse pensador ativo poderia reaprender as razes de uma percepo que lhe dada inteiramente pronta , seja que, como em Malebranche, a passividade tambm o conquiste, que El perca, como a percepo, toda eficcia prpria que ele tenha que esperar sua luz de uma causalidade que nelefunciona sem ele como a percepo somente obtem a sua pelo jogo das leis da unio da alma e do corpo que, por conseguinte, a tomada do pensamento sobre si mesmo e a lz da inteligibilidade se tornam um mistrio imcompreensvel, num ser para quem o verdadeiro est no fim de uma inclinao natural, conforme ao sistema preestabelecido segundo o qual funciona

seu esprito, e no verdade, conformidade de si a si, luz . . . certo, com efeito, que toda tentativa para retribuir uma passividade a uma atividade redunda ou a um estender a passividade ao conjunto, o que implica em separa-nos do Ser, j que, faltando um contato de mim comigo, sou, em toda operao de conhecimentos, entregue a uma organizao de meus pensamentos cujas premissas me so dissimuladas, a uma constituio mental que me dada como um fato, ou em restaurar, no conjunto, a atividade. A reside, em particular, o defeito das filosofias reflexivas que no vo at o extremo de si prprias e que, tendo definido os requisitos do pensamento, acrescentam que estes no impe sua lei s coisas e evocam uma ordem das prprias coisas que, por oposio de nosso pensamento, s poderia receber regras exteriores. No opomos, porm, a uma luz interior uma ordem de coisas em si, na qual ela no poderia penetrar. No se pode tratar de pr de novo em concordncia a passiPg51 Vidade em relao a um transcendente com uma atividade de pensamento imanente. Trata-se de reconsiderar as noes solidrias de ativo e de passivo, de tal maneira que no nos coloquem mais diante da antinomia de uma filosofia que explica o ser e a verdade mas que no explica o mundo, e de uma filosofia que explica o mundo mas nos desenraiza do ser e da verdade. A filosofia reflexionante substitui o mundo pelo ser pensado. No se pode, embora reconhecendo esse dficit, justific-la, apesar de tudo, pelas conseqncias insubstituveis de uma regulao externa de nossos pensamentos, pois a alternativa reside neste ponto unicamente na perspectiva de uma filosofia reflexionante, e a anlise reflexionante que pomos em causa. O que propomos no deter a filosofia reflexionante depois de termos partido com ela isso impossvel e, pensando bem, uma filosofia de reflexo total nos parece ir mais longe, mesmo que apenas circunscrevendo o que, em nossa experincia, lhe resiste -; o que propomos tomar outro ponto de partida. Para evitar todo equvoco a respeito, reafirmamos que no censuramos apenas a filosofia reflexionante por transformar o mundo em noema, mas tambm por desfigurar o ser do sujeito reflexionante, concebendo-o como pensamento- e para terminar, por tornar impensveis suas relaes com outros sujeitos no mundo que lhes comum. A filosofia reflexionante parte do principio de que, se uma percepo deve poder ser minha, preciso que, de agora em diante, seja uma de minhas representaes, em outras palavras, que eu seja como pensamento, aquele que efetua a ligao dos aspectos sob os quais o objeto se apresenta, e sua sntese num objeto. A reflexo, o retorno ao interior, no modificaria a percepo, visto que se limitaria a liberar o que desde logo constitua o conjunto de seus membros ou a juntura, e que a coisa percebida, se no nada, o conjunto das operaes de ligao que a reflexo enumera e explicita. Mal se pode dizer que o olhar reflexionante se volta do objeto em minha direo, j que sou, como pensamento, o que faz com que haja, de um ponto a outro do objeto, uma distancia e, em geral, uma relao qualquer. A filosofia reflexionante metamorfoseia de golpe o mundo efetivo num campo transcendental, limita-se a repor-se a repor-me na origem de um espetculo que s pude ter porque, contra minha vontade eu o organizo. Faz apenas que eu seja, quando consciente, o que sempre fui distraidamente, que d seu nome a uma dimenso atrs de mim, a uma profundidade onde, de fato, minha viso j se fazia. Pela reflexo, o eu perdido em suas percepes se reencontra, reencontrando-as como pensamentos. Acreditava ter-se

Pg 52 Abandon