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2 Santos Invenção Do Brasil

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  • ARTIGOS

    A inveno do Brasil: um problema nacional?

    Afonso Carlos Marques dos Santos Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro

    Em 1790, um colono portugus, oculto sob o pseudnimo de Amador Patrcio de Portugal observava, numa carta ao Ministro Martinho de Melo e Castro que, ao tentar escapar da ascendncia europia, os brasileiros tinham "somente duas a que recorrer, que so os negros do serto da frica, ou os ndios naturais da Amrica" (1). No imaginava o autor da-quela carta cujo objetivo era alertar a Coroa sobre o anti-lusitanismo cres-cente no Rio de Janeiro, que suas palavras soariam como verdadeira maldio lanada sobre a gente do Novo Mundo que ousava, no findar dos idos setecentistas, pensar a liberdade e a autonomia poltica da colnia. O impasse se colocava, portanto, desde as primeiras manifestaes em di-reo independncia. Por onde caminharia a construo da identidade de uma nao que, emergindo da condio colonial, continuaria a ter, no sistema escravista, as bases da sustentao econmica do Estado?

    Para os primeiros autonomistas brasileiros, os "brancos nacionais" constituam o "corpo da nao", como informara Jos Joaquim de Maia a Thomas Jefferson (2). Porm, a nao que se iria constituir no era com-posta somente de brancos, mas de uma grande massa de mestios, negros livres e escravos, sem contar a populao indgena. Ao buscar a autonomia

    Carta de Amador Patrcio de Portugal a Martinho de Melo e Castro. Rio de Janeiro, 4 de maro de 1790 (manuscrito), Lisboa, Arquivo Histrico Ultrama-rino (Documentos do Rio de Janeiro, Caixa 144).

    Carta de Thomas Jefferson a John Jay, Paris, 4 de maio de 1787, Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, 47 (1), 1884, p. 127.

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    poltica, os construtores da nao teriam de se defrontar com este dilema, que aparece explcito na obra de um Jos Bonifcio de Andrada e Silva, especialmente nas suas representaes sobre o indgena e a escravido (3). Nestes textos, a questo central a prpria constituio do povo do Brasil, verdadeiro drama para os construtores e intrpretes do novo pas.

    A ruptura poltica com Portugal e a organizao do Estado Nacional implicariam a elaborao de um aparato ideolgico que deveria dar legiti-midade ao prprio processo de construo da nao. Tratava-se agora de inventar o Brasil, no apenas no plano geo-poltico, mas tambm no plano simblico, forjando as bases da sua identidade. neste sentido que devem ser compreendidos os esforos dos letrados brasileiros contemporneos formao do Estado Imperial, e a produo artstica do perodo, tanto no campo das letras como das artes plsticas. organizao poltica do Estado Nacional deveria corresponder uma produo simblica que delineasse os contornos da Nao e a integrasse no mundo civilizado, segundo os par-metros europeus.

    O projeto poltico de Imprio, esboado pelos estadistas portugueses desde o sculo XVIII, e que na pena de Silvestre Pinheiro Ferreira fora apresentado em 1814 a D. Joo VI, tomaria corpo mesmo antes da inde-pendncia. A idia de construir um Imprio na Amrica Portuguesa se consolidaria desde a implantao da sede da monarquia nos trpicos. A transplantao da corte, por sua vez, seria seguida por tentativas de adaptar o Rio de Janeiro a sua nova condio de cenrio do centro do poder impe-rial, o que se verifica nas medidas urbansticas tomadas aps a chegada da famlia real. A partir de 1816, porm, com a vinda dos mestres da Miso Artstica francesa, importavam-se as bases do projeto esttico que deveria acompanhar o projeto poltico de Imprio e no era certamente por acaso que estes mestres eram originrios de um outro Imprio, o Napo-lenico.

    Um fato ocorrido com o pintor Jean-Baptiste Debret aps a Indepen-dncia, e narrado por este na sua Viagem Pitoresca ao Brasil, nos permite perceber as exigncias que a implantao do projeto de Imprio impunha at mesmo a um artista estrangeiro. Trata-se do caso do "Pano de boca do teatro da corte por ocasio da coroao de D. Pedro I" e que se cons-titui em bom exemplo. Registrou Debret:

    "Pintor de teatro, fui encarregado de nova tela, cujo bosquejo repre-sentava a fidelidade geral da populao brasileira ao governo imperial sentado em um trono coberto por rica tapearia estendida por cima de

    (3) Silva, Jos Bonifcia de Andrade e, Obras Cientficas Polticas e Sociais (org. por E. de C. Falco) So Paulo, Rev. dos Tribunais, 1965, 2. volume.

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    palmeiras. A composio foi submetida ao primeiro-ministro Jos Boni-fcio que a aprovou. Pediu-me apenas que substitusse as palmeiras naturais por um motivo de arquitetura regular, a fim de no haver nenhuma idia de estado selvagem. Coloquei ento o trono sob uma cpula sustentada por caritides douradas..." (4)

    Com estes cuidados Jos Bonifcio tentava ocultar, no plano da repre-sentao imaginria, qualquer vnculo com a realidade local que permitisse revelar as contradies do projeto poltico que ento se implantava. As caritides deveriam substituir as palmeiras, afastando a "idia de estado selvagem". O mesmo Jos Bonifcio, que foi uma das figuras fundamentais na implantao do projeto de Imprio, numa carta de 1813 escrevera:

    "... amalgamao muito difcil ser a liga de tanto metal hetero-gneo, como brancos, mulatos, pretos livres e escravos, ndios, etc., em um corpo slido e poltico..." (5)

    Ao construir o Estado, portanto, aqueles homens teriam de se defron-tar com uma realidade que tentaro ocultar atravs de alegorias, que sim-bolizavam os seus esforos no sentido de civilizar o pas, criando "um corpo slido e poltico". Verdadeiros cenrios foram projetados pelos mes-tres da misso e seus discpulos, a ocultar, durante festas e celebraes, a cidade colonial com fachadas neo-clssicas e arcos triunfais. A este processo corresponderia tambm uma espcie de tarefa civilizatria permanente que deveria ser assumida pelos construtores da Nao. Tarefa que deveria ser conduzida pelo Estado Imperial, centralizado e autoritrio, capaz de pro-mover e assegurar uma unidade nacional. Maria Odila L. da Silva Dias chamou a ateno, num estudo sobre a ideologia liberal e a construo do Estado do Brasil, para o fato de que as vises sombrias e pessimistas sobre a composio social do pas atuavam como "um convite a uma arregimen-tao das elites para sua misso paternalista de vigilantes ilustrados de um povo brbaro, carente de luzes, necessitando de liderana e de disciplina" (6)

    neste caminho que os intelectuais se constituiro em promotores da civilizao, introjetando atitudes antes afeitas ao colonizador. Assumiam assim os construtores do Estado a misso de civilizar, ao mesmo tempo em que tentavam forjar a Nao. Em outros momentos cruciais a misso

    Debret, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histrica do Brasil, citado por Elizabeth Carbone Baez. "A Academia e seus modelos", Gvea. Revista de Histria da Arte e Arquitetura, 1, Rio de Janeiro, PUC, s/d.

    Revista de Histria, v. XVII, n. 55, p. 226. Dias, Maria Odila L. da Silva, "Ideologia Liberal e Construo do Estado

    do Brasil", Anais do Museu Paulista, XXX, So Paulo, 1980/1981, p. 217.

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    ressurgiria sob novas roupagens e novos enfoques, constituindo-se no drama permanente dos homens ilustrados da elite brasileira, durante muitas ge-raes.

    Lembremo-nos de que a idia de nao se constitui na representao mais perfeita para cumprir a tarefa fundamental da ideologia, ocultar a diviso social. Marilena Chau chama ateno para o fato de que "no por obra do acaso, mas por necessidade, que o discurso do poder o do Estado Nacional, pois a ideologia nacionalista o instrumento poderoso da unificao social, no s porque fornece a iluso da comunidade indi-visa (a nao), mas tambm porque permite colocar a diviso fora do campo nacional (isto , na nao estrangeira)" (7). O discurso ideolgico sobre a nao realiza, por sua vez, a lgica do poder ao produzir, no plano imaginrio, um sistema de identificaes para a "comunidade indivisa". No caso de uma sociedade como a brasileira entretanto, a questo nacional se agrava por estar atravessada, no apenas pelas questes de classe, mas tambm pela questo racial, o que dificulta a organizao da identidade.

    Antonio Gramsci verificou que a histria, enquanto "biografia da nao", nasce com o prprio sentimento nacional e tem como funo servir de instrumento poltico para coordenar e consolidar nas massas os elemen-tos constitutivos deste sentimento (8). Esta modalidade de conceber a his-tria pressupe que o que se deseja existiu sempre e no pde afirmar-se e manifestar-se abertamente devido interveno de foras externas e por-que as virtudes ntimas estavam "adormecidas". Gramsci afirmava que era compreensvel que tal forma de tratar a histria tivesse nascido por razes prticas de propaganda, mas indaga por que se continuam a manter estas tradies. Referindo-se Histria italiana, Gramsci considera que este en-foque era duplamente anti-histrico: primeiro, porque se contradiz com a realidade e, segundo, porque impedia de avaliar adequadamente o esforo cumprido pelos homens do Risorgimento, diminuindo sua figura e origina-lidade, esforo que no s esteve orientado para os inimigos externos, mas especialmente contra as foras internas conservadoras que se opunham unificao (9). No caso da Histria brasileira, tal atitude corresponderia a considerar a colnia como a fase de gestao da nao, como momento que, no tempo, antecede formao do Estado Nacional; o que certamente significa -nerder a percepo das contradies prprias do sistema colonial e da formao social da colnia, uma vez que esta tomada no plano puramente cronolgico.

    Tomada nesta perspectiva, enquanto obra de imaginao constituinte,

    Chau, Marilena de Sousa, "Crtica e Ideologia". In: Cultura e Demo-cracia; o discurso competente e outras falas. So Paulo, Ed. Moderna, 1980, p. 21.

    Gramsci, Antonio. El "Risorgimento", trad. esp., Buenos Aires, Granica, 1974, p. 91.

    Id., p. 92.

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    como diria Paul Veyne, a Histria Nacional deixa de ser objeto para ser parmetro. Isto , a categoria nao passa a nortear a anlise, sendo tomada no somente como dado, mas como conceito funtamental. De construo ideolgica e abstrata, a nao passa a ser referncia a partir da qual se reconstri o pasado de maneira retrospectiva.

    No plano da relao Estado-produo intelectual, dois momentos his-tricos de afirmao de autonomia parecem ser os fundamentais, em espe-cial no que se refere produo historiogrfica que tem a nao como categoria chave. O primeiro momento pertence fase de luta pela auto-nomia poltica e afirmao do Estado Imperial na primeira metade do s-culo XIX, onde uma instituio cumpre um papel fundamental no sentido de realizar a "biografia da nao", ao organizar a Histria do Brasil. Esta instituio foi o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro fundado em 1838. O segundo momento pertence conjuntura de luta pela autonomia nacional no plano econmico, e de tentativa de superar o subdesenvolvi-mento e os entraves para o desenvolvimento. Trata-se da era do nacional-desenvolvimentismo nos anos 1950 e incio dos anos 60. Em ambos os momentos, verifica-se a busca da identidade, sendo que o segundo pretende ser a crtica radical e a negao dos resultados intelectuais do primeiro. O ISEB, Instituto Superior de Estudos Brasileiros, vinculado ao Ministrio da Educao e Cultura, cumpriria, na segunda fase autonomista, papel seme-lhante ao do Instituto Histrico e Geogrfico da primeira metade do s-culo XIX.

    O ISEB tem sido, desde a 2.a metade da dcada de 70, objeto de discusses e trabalhos acadmicos, principalmente no campo da filosofia e da sociologia da cultura. Tambm surgiram memrias e depoimentos de seus antigos integrantes, em grande parte intelectuais ainda ativos. Todavia, as marcas deixadas pelo ISEB na produo cultural brasileira levam-nos a concordar com Renato Ortiz ao observar que sua influncia foi profunda, uma vez que "toda uma srie de conceitos polticos e filosficos que so elaborados no final dos anos 50 se difundem pela sociedade e passam a constituir categorias de apreenso e compreenso da realidade brasileira" (10)

    Em dezembro de 1955, ao pronunciar conferncia no auditrio do MEC no Rio de Janeiro, no Curso de "Introduo aos Problemas do Brasil", promovido pelo ISEB, que ento se estruturava, Roland Corbisier, que seria indicado para a direo daquele Instituto, assim se expressava, ao definir o que considerava como a "misso das novas geraes brasileiras":

    (10) Ortiz, Renato Cultura Brasileira e Identidade Nacic nal. So Paulo, Bra-siliense, 1985. p. 47.

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    "Descobrir o Pas, tomar conscincia de sua realidade, de seus problemas, e forjar a ideologia capaz de configurar o seu futuro, pro-movendo o seu desenvolvimento e a sua emancipao. No temos outra coisa a fazer, seno inventar o nosso destino, construindo uma cultura que seja a expresso, a forma adequada do novo Brasil que devemos criar" (11).

    Tratava-se, portanto de "inventar o destino" e isto se faria "construin-do uma cultura" adequada ao "novo Brasil" que se pretendia criar, ou melhor, que se pretendia inventar. Partia aquele autor da concepo de que o Brasil era um pas "que no tem passado e, por isso mesmo, s pode ter futuro" (12). Corbisier faz o discurso da fundao/inveno da nao vinculando-a autonomia econmica, ou melhor, ideologia do desenvol-vimento nacional que era, naquela conjuntura, o discurso do poder, o dis-curso do Estado. Para Corbisier, o Brasil somente comearia "a despertar e a tomar conscincia dele prprio" (13) em 1922, com a Semana de Arte Moderna e quando surgira, em torno da crise e da revoluo de 30, auten-ticidade em arquitetura, em pintura, em romance, em poesia. Para ele a "inteligentzia" se convertia em "rgo da conscincia nacional" que deveria realizar, no plano cultural, a oposio ativa ao imperialismo.

    Ao intelectual, portanto, estava reservado um grande papel no projeto ou na ideologia do desenvolvimento nacional, desde que tomasse "cons-cincia da nao como de uma tarefa, de uma empresa comum a realizar no tempo" (14). Corbisier faz crtica da importao de "idias prontas e acabadas" e critica o que chama uma "forma especfica de existncia hu-mana, que a existncia colonial" (15). Avaliando as condies do inte-letual no Brasil afirma:

    "No possumos o instrumento que nos tornaria capazes de triturar o produto cultural estrangeiro a fim de utiliz-lo como simples matria-prima, como suporte de uma forma nossa, original. Exportamos o no ser e importamos o ser. Somos o invlucro vazio de um contedo que no nosso porque alheio. Enquanto colnia no temos forma prpria porque no temos destino". (16)

    Renato Ortiz apontou para a contemporaneidade que o pensamento isebiano tem com as posies defendidas por Franz Fanon aplicadas ao

    Corbisier, Roland, Formao e Problema da Cultura Brasileira. ed., Rio de Janeiro, ISEB, 1960.

    Id., p. 50. Id., p. 47. Id., p. 87. Id., p. 73. Id., p. 70.

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    caso africano. A luta pela superao da dominao colonialista vai buscar, num caso e noutro, embasamento nos conceitos de alienao e de situao colonial que, por sua vez, tm sua origem nas mesmas fontes: Hegel, via traduo francesa de J. Hyppolite e Kojve, o jovem Marx, Sartre e G. Balandier (17). H, entretanto, na leitura que Corbisier faz da condio colonial outras fontes alm da literatura anti-colonialista e da leitura dos pensadores europeus. No h dvida, porm, de que Corbisier cita explicita-mente Balandier quando afirma que

    "funcionando como um "instrumento" da metrpole, o complexo colonial globalmente alienado..., e nessa alienao reside... o que h de essencial nesse complexo" (18).

    O conceito de alienao para os isebianos, como mostra Caio Navarro de Toledo o conceito central usado pela instituio, "procurando desem-penhar funes tericas em quase todos os ensaios isebianos" (19). Cor-bisier, por outro lado, faz crtica dos trabalhos de "interpretao do Brasil", considerando que seus erros mais graves decorrem da "falta da conscincia histrica, ou melhor, da falta de conscincia crtica da histria". Entre os ensaios arrolados criticamente esto desde o livro famoso do Conde Afonso Celso at Paulo Prado, com Retrato do Brasil, Plnio Salgado, com Psico-logia da Revoluo; Srgio Buarque de Holanda, com Razes do Brasil, Afonso Arinos, com Introduo ao Estudo da Realidade Brasileira e Con-ceito de Civilizao Brasileira e Gilberto Freyre, com Interpretao do Brasil (20). Estes trabalhos refletiriam, na viso do ISEB, as formulaes do pensamento importado. O Brasil, ao contrrio do que pensavam esses ensastas, no teria um "ser", uma "substncia" nacional. Como afirma Corbisier, no se constituiria em "coisa", em "objeto", sendo na realidade uma "funo", um processo, que transcorre no tempo" (21).

    Capistrano de Abreu, nos seus Captulos de Histria Colonial lanara uma inquietante afirmao, no ltimo captulo, a partir de observaes do ingls Lindley:

    "Vida social no existia, porque no havia sociedade, questes pbli-cas to pouco interessavam e mesmo no se conheciam: quando muito sabem se h paz ou guerra" (22).

    Ortiz, Renato, op. cit., pp. 50/54. Corbisier, R., op. cit., p. 68. Toledo, Caio Navarro de, ISEB: Frbrica de Ideologias. So Paulo, tica,

    1982, p. 67. Corbisier, R., op. cit., p. 55. Id., p. 58. Abreu, Joo Capristano de, Captulos de Histria Colonial. Rio de Janei-

    ro, 1928, p. 301.

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    Afirmaes como estas constituram o desafio que Caio Prado jr. tentou enfrentar em Formao do Brasil Contemporneo, onde buscou com-preender a Colnia a partir de sua articulao no movimento do capital comercial buscando, a partir da, a especificidade da sociedade colonial. Um autor como Caio Prado, entretanto, parece no ter sido lido por Cor-bisier, quando trata do homem colonial. Na realidade, a viso do ISEB que Corbisier representa nessa anlise fazia tbula rasa de estudos como estes. Numa passagem extremamente reveladora, afirma o Diretor do ISEB:

    "No tempo vazio, porque privado de protagonismo, o homem colo-nial no tem o que fazer, e a nica forma de cultura que lhe possvel o conhecimento da cultura alheia. Metafisicamente oco, enche o seu vazio interior com os produtos culturais estrangeiros, que nele se depo-sitam, arbitrria e caprichosamente, sobre um fundo de torpor e sono-lncia vegetal, como as folhas mortas na superfcie das guas estagnadas. Desvinculado da realidade do pas, o intelectual brasileiro carecia de tarefa prpria e podia fazer o que quisesse, porque tudo o que fazia era igualmente arbitrrio e indiferente". (23)

    Ainda se apoiaria Corbisier em Alberto Zum Felde para dizer que o "homem real da Amrica anda como sonmbulo; e sua conscincia inte-lectual de viglia algo postio, alheio. Intelectualmente estrangeiro no pas de sua prpria realidade, v tudo atravs de lunetas de sua cultura livresca. O homem culto americano e o intelectual em grau mximo um colono, no um nativo" (24).

    O que, na verdade, Corbisier concebe para o letrado colonial a ausncia de Histria, na medida em que o homem colonial vive "no tempo vazio" e "privado de protagonismo". Na leitura isebiana, o tempo histrico somente comearia com a conscincia nacional e com a autonomia na-cional. A especificidade da formao social da Colnia e a historicidade da condio de Colono so por eles ignorados. No se trata de desconhe-cimento de textos como o de Caio Prado Jr., que deu uma perspectiva nova, em 1942, anlise da colonizao. Tratava-se aqui de uma forma especfica de ver a histria, e exemplo concreto de uma interpretao con-duzida pela projeo da categoria nao, tomada como conceito norteador da anlise. Desta forma, a categoria nao, abstrata e fruto de construo ideolgica, tomada no apenas como elemento periodizador, mas como base epistemolgica e verdade indiscutvel. Nelson Werneck Sodr, histo-riador do ISEB e militar da ativa, na poca, orientou sua obra nessa dire-o, promovendo uma verso brasileira do enviesado casamento do mar-xismo com o nacionalismo. Sodr, em Razes Histricas do Nacionalismo

    Corbisier, R., op. cit., p. 75. Id., p. 75.

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    Brasileiro, publicado pelo ISEB, acentuaria que "no existe paixo pelo abstrato, e que o nacionalismo traduz uma verdade a verdade do quadro histrico e a verdade concreta" (25).

    Esta afirmao em torno da verdade e que subjacente ao pensamento nacionalista isebiano leva-nos a refletir, com Paul Veyne, a assertiva: "A verdade que a verdade varia". Isto , entre a cultura e a crena numa verdade, necessrio escolher (26) . A ideologia nacional desenvolvimen-tista era, para a maioria dos isebianos a nica ideologia adequada, por isso mesmo, que promovida em verdade, como afirma Caio Navarro de Toledo (27) . O nacional institudo em verdade programada na cabea dos intelectuais daquele momento constitua-se em mais uma inveno do Brasil, desvinculada da histria e da memria das classes trabalhadoras. O discurso do ISEB, no trato com a Histria, era o discurso do Estado Nacional e que correspondia, naquela conjuntura, lgica do exerccio do poder. A nao, enquanto projeto da "intelligentzia", para usar a forma de Corbisier, continuava a ser um projeto para o Estado, tomado como protagonista fundamental. Por outro lado, o imaginrio produzido pelos intelectuais continuava distante da compreenso do espao social fragmen-tado que constitui o Brasil. Vestgios do iluminismo difusor de cultura esto presentes em todas estas atitudes que se configuram to civilizatrias, como as dos patriarcas da nacionalidade do sculo XIX. Alguns j conse-guem ver a "classe mdia", no o proletariado, como o "locus privilegiado da criao cultural, interagindo entre a modernizao dependente e a busca de uma indentidade que somente pode vir das razes populares" (28) . Esta afirmao, do economista Celso Furtado, num artigo sobre cultura, revela que a gerao dos inventores do Brasil desenvolvimentista continua a so-brepor filtros para a assimilao das expresses culturais dos dominados. Reconhece que a fonte da criao cultural provm "das razes populares", considerando que "uma nova sntese cultural, que recolha a fora criativa do povo, pressupe o aprofundamento do processo de democratizao e a reduo de heterogeneidade social".

    O mesmo economista neste artigo opera com as categorias de "identi-dade cultural" e de "gnio criativo de nossa cultura", indicando para o debate contemporneo que "o objeto central de uma poltica cultural deve-ria ser a liberao das foras criativas da sociedade". Resta saber de qual

    Sodr, N. W. Razes Histricas do Nacionalismo Brasileiro. 2. ed., Rio de Janeiro, ISEB, 1960, p. 31.

    Veyne, Paul. "Entre la culture et la croyance en une vrit, il faut choisir", in: Les Grecs ont-ils cru leurs mythes? Paris, Seuil, 1983, pp. 126-127.

    Toledo, C. N., op. cit., p. 178. Furtado, Celso. "Que Somos". In: Revista do Brasil n. 2/84 (nova srie)

    Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cincia e Cultura, p. 17.

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    sociedade nos fala Celso Furtado e o que so, para ele, a "nossa identidade cultural" e "o nosso gnio criativo". O discurso genrico da unidade que tem o imaginrio nacional de fundo continua, certamente, a orientar suas reflexes. Neste sentido, creio que ser enriquecedor para todos ns, inven-tores provisrios do Brasil, a observao de Michel Foucault:

    ... o que os intelectuais descobriram desde o avano recente que as massas no tm necessidade deles para saber, e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, probe, invalida este discurso e este saber (...) Eles prprios, os intelectuais, fazem parte deste sistema de poder; a idia de que eles so agentes da "cons-cincia" e do discurso, ela prpria, faz parte deste sistema". (29)

    Acreditamos, todavia, que os historiadores tm ainda muito a oferecer no processo de libertao do homem. Paul Veyne recentemente nos chamou a ateno, atravs do livro Les Grecs ont-ils cru leurs mythes?, que a historiografia de ponta, h 40 ou 80 anos, tem por programa implcito a idia de que escrever a histria escrever a histria da sociedade. O que tem limitado a concepo de sociedade ao espao que se estende do que se chama economia ao que se pode classificar sob o rtulo de ideologia. Para Paul Veyne, nos limites da apreenso dessas pesquisas, a maior parte da vida cultural e social fica, assim, fora do campo da historiografia, mesmo da no factual, como o mito, a religio, a arte, a literatura, a cincia e, por que no, a prpria produo social da histria e das cincias sociais.

    A proposta de Veyne se faz justamente no sentido do que poderia ser chamado de uma Histria da Cultura ou das Culturas. Para ns, trata-se da recuperao da histria das nossas metforas e das nossas alegorias, to mltiplas e fragmentadas como mltiplo e fragmentado este Brasil que, por vezes, tentamos reinventar.

    (29) Foucault, M. e Deleuze, G. (Entrevista). In: Psicanlise e Cincia da Histria. Rio de Janeiro, Eldorado, Tijuca, 1974, pp. 140-141.