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38 Le Monde Diplomatique Brasil JANEIRO 2010 CONTROLE SOCIAL De olho nas licitações Maringá tem uma das maiores rendas per capita do país. No início dos anos 2000, um grande esquema de corrupção foi descoberto em que US$ 57 milhões haviam sido desviados dos cofres públicos. Indignados, voluntários uniram forças para criar um observatório que acompanha a aplicação correta do orçamento na cidade © Santiago O que move um prefeito como o de Florianópolis a contratar, sem lici- tação, os serviços de uma empresa para construir uma árvore de Natal por R$ 3,7 milhões? A suspeita é de um superfaturamento superior a R$ 2 mi- lhões! Nas ruas, os brasileiros buscam res- postas para essa e outras mazelas que acom- panham a rotina dos nossos representantes públicos. A “certeza da impunidade” e a “fal- ta de vergonha na cara” estão entre as afir- mações mais frequentes. Certamente, as duas coisas andam jun- tas. Nos últimos anos, muitas Organizações não-governamentais (ONGs) nasceram Brasil afora para denunciar esse tipo de comportamento ligado ao poder público. Mas, no noroeste do Paraná, uma ONG fugiu dos padrões e está fazendo a diferença. Tra- ta-se do Observatório Social de Maringá (OSM), que este ano ganhou o primeiro lu- gar em um prêmio das Nações Unidas que reconhece as “experiências em inovação so- cial”. E olha que os paranaenses concorre- ram com outros 485 projetos de 33 países. Mas o que diferencia o Observatório Social de Maringá de outras ONGs? Antes de responder diretamente a essa questão, é interessante lembrar como ele foi criado. Com 335 mil habitantes, Maringá tem uma das maiores rendas per ca- pita do país. No início dos anos 2000, um grande esquema de corrupção foi descoberto, com superfaturamento nas compras, o que abalou a economia da prefeitura local, comprometendo sua capacida- de de realizar investimentos. Foram desviados cerca de US$ 57 milhões dos cofres públicos – metade do orçamento anual da cidade. sura nos processos fizeram que os preços das compras caíssem. Com as mudanças, dos US$ 300 milhões previstos em gastos da pre- feitura em 2009, o controle pode ter gerado uma economia superior a US$ 100 milhões. Esta é a grande diferença do Observató- rio Social de Maringá: ele acompanha to- das as licitações, desde a elaboração de uma proposta, passando pelo processo de lances, até a entrega do produto. Com isso, garante a aplicação correta dos recursos. Dessa forma, o município pôde investir mais em áreas básicas. Nos últimos 36 me- ses, por exemplo, o investimento em capa- citação de educadores e reforma de escolas cresceu em média 25% ao ano. Os depósi- tos da prefeitura passaram por reforma e o controle de estoque foi informatizado. Au- mentou-se a verba para a segurança públi- ca e para a prevenção de doenças. Foram criadas dezenas de Academias da Terceira Idade e hortas comunitárias. Antes do Ob- servatório, a prefeitura investia, em média, de 1% a 3% do orçamento em ações sociais e de infraestrutura. No ano passado, che- gou-se a 13%. Estamos falando apenas de verbas do município, do dinheiro arreca- dado diretamente pela prefeitura, e não oriundo do governo federal ou estadual. CIDADANIA E COMPORTAMENTO ÉTICO Além da economia na aplicação de re- cursos da prefeitura, outra mudança provo- cada pelo Observatório Social é a conscien- tização da população sobre os seus direitos em relação ao Estado. A imprensa também está mais atenta a essas questões e os resul- tados obtidos chamaram a atenção de todo o Brasil. Pregando cidadania, educação fis- cal e comportamento ético de todos os indi- víduos, o exemplo do OSM já serviu como incentivo para o surgimento de instituições semelhantes em 41 cidades brasileiras. Essas organizações trabalham de forma integrada, com suporte total por parte do Observatório Social de Maringá. Ou seja, co- meça a florescer no país uma nova esperan- ça de dias melhores. Um projeto que não nasceu de nenhum governo. De nenhum grupo político e, por isso mesmo, tem gran- des chances de mudar a realidade do Brasil. De combater a pobreza sem Bolsa Família, de melhorar o sistema de saúde sem criar uma nova CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), de pro- mover melhorias na educação, nos serviços sociais de apoio às populações jovens e ido- sas, sem o aumento de impostos. A própria ONU, ao premiar o Observató- rio Social, entendeu que, se o Brasil está en- tre as dez maiores economias do mundo, por consequência sua população deveria ter qualidade de vida. É um reconhecimento de que essa organização não tem caráter filan- trópico e que não procura fazer o papel que cabe ao poder público. Pelo contrário, o Ob- servatório luta para que o poder público cumpra o seu verdadeiro papel. Se existe a certeza da impunidade e da falta de vergonha na cara, pelo menos há al- ternativas que podem blindar a aplicação dos recursos públicos. Em Maringá para- mos com os discursos inflamados da socie- dade contra a alta carga tributária. Paramos de lamentar a corrupção envolvendo ho- mens públicos e começamos a ter atitude na correta aplicação dos recursos. A carga tributária no Brasil é do tama- nho que o país necessita para rodar a má- quina. Porém, hoje está embutida nela cer- ca de 32% de corrupção. É dinheiro mal aplicado. Se acabarmos com o mau uso da verba pública, o Brasil passará a ser um dos melhores países do mundo. Somente a par- tir daí é que poderíamos sonhar com uma carga tributária menor. Vamos dar um pas- so de cada vez. Queremos, com o Observatório So- cial, expurgar dos nossos noticiá- rios escândalos como esse da árvore de Natal de Floria- nópolis. É um investi- mento que, com certeza, poderia ter um direcio- namento mais justo. *Dirceu Herrero Gomes é jornalista e escritor. Preocupado com o futuro, um grupo de voluntários sem filiação político-partidária decidiu formar a ONG Sociedade Eticamen- te Responsável (SER), que trabalharia pela disseminação de um sentimento de cidada- nia na população local, ressaltando a im- portância dos impostos e do controle dos gastos públicos. Há seis anos, a SER promove palestras, seminários, apresentações teatrais e con- cursos nas redes de ensino, estimulando o interesse sobre a gestão pública. Em 2006, a SER criou o Observatório Social de Ma- ringá, com o objetivo de trabalhar pela correta aplicação do dinheiro público na cidade. Conscientes da importância da ONG, a cidade se uniu em torno do projeto, reunindo empresários, funcionários pú- blicos, profissionais liberais, entidades de classe e universidades. Os voluntários do Observatório passam periodicamente por treinamento especiali- zado em órgãos de controle e fiscalização de governo. A ONG tem um comitê gestor que se reúne semanalmente para discutir ques- tões relacionadas ao controle dos gastos pú- blicos. Em Maringá, as compras públicas são feitas através de licitação e a entidade acompanha o processo de seleção de em- presas fornecedoras até a entrega final do produto ou serviço contratado. Em três anos de acompanhamento, a ONG analisou 532 processos e descobriu que muitos dos produtos adquiridos pela Prefeitura estavam com preços acima do va- lor de mercado. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o anti-inflamatório Tenoxi- cam. O município pagava pelo remédio um valor quase 8 mil por cento superior ao pre- ço praticado pelas farmácias. Com o controle do Observatório, um conjunto de 64 medicamentos custou, em 2009, 40% menos do que havia sido pago em 2005. As mudanças geraram credibilidade aos processos de licitação na cidade, atrain- do muitos empresários que antes se recusa- vam a participar, pois acreditavam que se tratava de um jogo de “cartas marcadas”. O aumento no número de participantes e a li- POR DIRCEU HERRERO GOMES*

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controle Social POR DiRceu HeRReRO GOmeS* cidadania e comportamento ético *Dirceu Herrero Gomes é jornalista e escritor. © Santiago

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38 Le Monde Diplomatique Brasil janeiro 2010

controle Social

De olho nas licitaçõesMaringá tem uma das maiores rendas per capita do país. No início dos anos 2000, um grande

esquema de corrupção foi descoberto em que US$ 57 milhões haviam sido desviados dos cofres públicos. Indignados, voluntários uniram forças para criar um observatório que acompanha a aplicação correta do orçamento na cidade

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o que move um prefeito como o de Florianópolis a contratar, sem lici-tação, os serviços de uma empresa para construir uma árvore de natal por r$ 3,7 milhões? a suspeita é de

um superfaturamento superior a r$ 2 mi-lhões! nas ruas, os brasileiros buscam res-postas para essa e outras mazelas que acom-panham a rotina dos nossos representantes públicos. a “certeza da impunidade” e a “fal-ta de vergonha na cara” estão entre as afir-mações mais frequentes.

Certamente, as duas coisas andam jun-tas. nos últimos anos, muitas organizações não-governamentais (onGs) nasceram Brasil afora para denunciar esse tipo de comportamento ligado ao poder público. Mas, no noroeste do Paraná, uma onG fugiu dos padrões e está fazendo a diferença. Tra-ta-se do observatório Social de Maringá (oSM), que este ano ganhou o primeiro lu-gar em um prêmio das nações Unidas que reconhece as “experiências em inovação so-cial”. e olha que os paranaenses concorre-ram com outros 485 projetos de 33 países.

Mas o que diferencia o observatório Social de Maringá de outras onGs? antes

de responder diretamente a essa questão, é interessante lembrar como ele foi criado. Com 335 mil habitantes, Maringá tem

uma das maiores rendas per ca-pita do país. no início dos anos 2000, um grande esquema de

corrupção foi descoberto, com superfaturamento nas compras, o

que abalou a economia da prefeitura local, comprometendo sua capacida-

de de realizar investimentos. Foram desviados cerca de US$ 57 milhões dos cofres públicos – metade do orçamento

anual da cidade.

sura nos processos fizeram que os preços das compras caíssem. Com as mudanças, dos US$ 300 milhões previstos em gastos da pre-feitura em 2009, o controle pode ter gerado uma economia superior a US$ 100 milhões.

esta é a grande diferença do observató-rio Social de Maringá: ele acompanha to-das as licitações, desde a elaboração de uma proposta, passando pelo processo de lances, até a entrega do produto. Com isso, garante a aplicação correta dos recursos. Dessa forma, o município pôde investir mais em áreas básicas. nos últimos 36 me-ses, por exemplo, o investimento em capa-citação de educadores e reforma de escolas cresceu em média 25% ao ano. os depósi-tos da prefeitura passaram por reforma e o controle de estoque foi informatizado. au-mentou-se a verba para a segurança públi-ca e para a prevenção de doenças. Foram criadas dezenas de academias da Terceira idade e hortas comunitárias. antes do ob-servatório, a prefeitura investia, em média, de 1% a 3% do orçamento em ações sociais e de infraestrutura. no ano passado, che-gou-se a 13%. estamos falando apenas de verbas do município, do dinheiro arreca-dado diretamente pela prefeitura, e não oriundo do governo federal ou estadual.

cidadania e comportamento éticoalém da economia na aplicação de re-

cursos da prefeitura, outra mudança provo-cada pelo observatório Social é a conscien-tização da população sobre os seus direitos em relação ao estado. a imprensa também está mais atenta a essas questões e os resul-tados obtidos chamaram a atenção de todo o Brasil. Pregando cidadania, educação fis-cal e comportamento ético de todos os indi-víduos, o exemplo do oSM já serviu como incentivo para o surgimento de instituições semelhantes em 41 cidades brasileiras.

essas organizações trabalham de forma integrada, com suporte total por parte do observatório Social de Maringá. ou seja, co-meça a florescer no país uma nova esperan-ça de dias melhores. Um projeto que não nasceu de nenhum governo. De nenhum

grupo político e, por isso mesmo, tem gran-des chances de mudar a realidade do Brasil. De combater a pobreza sem Bolsa Família, de melhorar o sistema de saúde sem criar uma nova CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), de pro-mover melhorias na educação, nos serviços sociais de apoio às populações jovens e ido-sas, sem o aumento de impostos.

a própria onU, ao premiar o observató-rio Social, entendeu que, se o Brasil está en-tre as dez maiores economias do mundo, por consequência sua população deveria ter qualidade de vida. É um reconhecimento de que essa organização não tem caráter filan-trópico e que não procura fazer o papel que cabe ao poder público. Pelo contrário, o ob-servatório luta para que o poder público cumpra o seu verdadeiro papel.

Se existe a certeza da impunidade e da falta de vergonha na cara, pelo menos há al-ternativas que podem blindar a aplicação dos recursos públicos. em Maringá para-mos com os discursos inflamados da socie-dade contra a alta carga tributária. Paramos de lamentar a corrupção envolvendo ho-mens públicos e começamos a ter atitude na correta aplicação dos recursos.

a carga tributária no Brasil é do tama-nho que o país necessita para rodar a má-quina. Porém, hoje está embutida nela cer-ca de 32% de corrupção. É dinheiro mal aplicado. Se acabarmos com o mau uso da verba pública, o Brasil passará a ser um dos melhores países do mundo. Somente a par-tir daí é que poderíamos sonhar com uma carga tributária menor. Vamos dar um pas-so de cada vez.

Queremos, com o observatório So-cial, expurgar dos nossos noticiá-rios escândalos como esse da árvore de natal de Floria-nópolis. É um investi-mento que, com certeza, poderia ter um direcio-namento mais justo.

*Dirceu Herrero Gomes é

jornalista e escritor.

Preocupado com o futuro, um grupo de voluntários sem filiação político-partidária decidiu formar a onG Sociedade eticamen-te responsável (Ser), que trabalharia pela disseminação de um sentimento de cidada-nia na população local, ressaltando a im-portância dos impostos e do controle dos gastos públicos.

Há seis anos, a Ser promove palestras, seminários, apresentações teatrais e con-cursos nas redes de ensino, estimulando o interesse sobre a gestão pública. em 2006, a Ser criou o observatório Social de Ma-ringá, com o objetivo de trabalhar pela correta aplicação do dinheiro público na cidade. Conscientes da importância da onG, a cidade se uniu em torno do projeto, reunindo empresários, funcionários pú-blicos, profissionais liberais, entidades de classe e universidades.

os voluntários do observatório passam periodicamente por treinamento especiali-zado em órgãos de controle e fiscalização de governo. a onG tem um comitê gestor que se reúne semanalmente para discutir ques-tões relacionadas ao controle dos gastos pú-blicos. em Maringá, as compras públicas são feitas através de licitação e a entidade acompanha o processo de seleção de em-presas fornecedoras até a entrega final do produto ou serviço contratado.

em três anos de acompanhamento, a onG analisou 532 processos e descobriu que muitos dos produtos adquiridos pela Prefeitura estavam com preços acima do va-lor de mercado. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o anti-inflamatório Tenoxi-cam. o município pagava pelo remédio um valor quase 8 mil por cento superior ao pre-ço praticado pelas farmácias.

Com o controle do observatório, um conjunto de 64 medicamentos custou, em 2009, 40% menos do que havia sido pago em 2005. as mudanças geraram credibilidade aos processos de licitação na cidade, atrain-do muitos empresários que antes se recusa-vam a participar, pois acreditavam que se tratava de um jogo de “cartas marcadas”. o aumento no número de participantes e a li-

POR DiRceu HeRReRO GOmeS*