2009 - Cartografias Do Envelhecimento

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    CARTOGRAFIAS DO

    ENVELHECIMENTO NA

    CONTEMPORANEIDADE

    MARIELE RODRIGUES CORREA

    VELHICE E TERCEIRA IDADE

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    CARTOGRAFIASDO

    ENVELHECIMENTONA

    CONTEMPORANEIDADE

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    MARIELE RODRIGUES CORREA

    CARTOGRAFIASDO

    ENVELHECIMENTONA

    CONTEMPORANEIDADE

    VELHICEETERCEIRAIDADE

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    Editora afiliada:

    CIP Brasil. Catalogao na fonte

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    C844c

    Correa, Mariele Rodrigues

    Cartografias do envelhecimento na contemporaneidade : velhice e ter-

    ceira idade / Mariele Rodrigues Correa. So Paulo : Cultura Acadmica,

    2009.Inclui bibliografia

    ISBN 978-85-7983-003-7

    1. Envelhecimento Aspectos antropolgicos. 2. Envelhecimento

    Aspectos sociais. 3. Velhice. 4. Idosos. 5. Idosos Poltica governamental.

    I. Ttulo. II. Ttulo: Velhice e terceira idade.

    09-6049. CDD: 305.23

    CDU: 316.346.32-053.9

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de

    Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP)

    2009 Editora UNESP

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 108

    01001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171

    Fax: (0xx11) 3242-7172

    www.editoraunesp.com.br

    [email protected]

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    SUMRIO

    Prlogo 6

    Apresentao 27

    1 Sobre a cartografia: percursos metodolgicos 35

    2 Linhas cartogrficas: a velhice e a terceira idade 41

    3 Ensaios sobre o envelhecimento na contemporaneidade:

    relevos cartogrficos 87

    Consideraes finais 115

    Referncias bibliogrficas 121

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    PRLOGOREGISTROSDAMEMRIA: UMINVENTRIODEEXPERINCIAS

    Nossa herana nos foi deixada sem nenhum

    testamento.

    Hannah Arendt

    Com essa epgrafe, Hannah Arendt inicia seu texto Entre o pas-sado e o futuro (1972) sobre os legados que uma gerao deixa aoutra e que so guias imprescindveis para que cada uma seja capazde posicionar-se no presente como sujeito da Histria. Para tanto,segundo ela, necessrio que as geraes sejam capazes de nomearsuas realizaes, seus feitos, dar sentido a eles e, assim, poder ofert-

    los queles que chegam ao mundo.Colocamo-nos nessa tarefa de nomear alguns feitos e apresentar

    seus sentidos e direes, no entanto, sem pretender ser intrpretede uma gerao ou de um tempo, mas to somente como portadorade uma razovel experincia de trabalho com a terceira idade quejulgamos oportuna comunicar a outros.

    Uma tarefa aparentemente simples, quando encarada como

    uma descrio do se fez, se disse e se ouviu, mas deveras complexa,quando se coloca o desafio de expressar seus sentidos e no o feito emsi. So muitas as incertezas e dilemas quando se pretende fazer uminventrio que no apenas indique o que se quer deixar como efeito

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    de um trabalho, mas que o se selecionou e que valores se atriburam,a fim de apreciar e analisar criticamente o que foi construdo.

    Primeiro, o ato de apresentar e inventariar todo um percurso derealizaes quase nunca permite resgatar tudo que se fez, afinal, nemtudo possui um registro e, nesse sentido, tratam-se de realizaessem testamento, eventualmente perdidas na memria. Segundo,daquilo que est presente na memria, difcil escolher aquilo quepode ser inventariado como um cristal de tempo e que valha a penaser passado adiante. Tal escolha exige um exame crtico e uma refle-xo cuja principal dificuldade , exatamente, vislumbrar ou atribuirsentidos s diversas realizaes, sentidos esses que no se refiramapenas s idiossincrasias de quem os realizou, mas que sejam capazesde conectar-se com aspiraes e desejos coletivos.

    Nesses quase cinco anos de convvio com o grupo de idosos, somuitas as histrias que vivenciamos e permaneceram, suscitandopensamentos e inquietaes que nos levaram a analisar a relao dohomem com a finitude e o envelhecimento, esse rosto perdido no

    espelho do narcisismo contemporneo que preza por um ideal debeleza baseado na juventude. Foi uma experincia profunda e enri-quecedora, no somente para as questes curriculares e profissionais.

    As reflexes realizadas neste livro advm do contato com a terceiraidade propiciado pelas oficinas de psicologia oferecidas dentro daprogramao da Universidade Aberta Terceira Idade da Unesp,campusde Assis. No incio, a participao em tais oficinas foi como

    estagiria da graduao e, posteriormente, como coordenadora dogrupo.

    Quando passamos a atuar nessas oficinas, elas j existiam h umbom tempo, pelo menos outros cinco anos antes de nossa chegada.Portanto, herdamos um legado construdo por geraes anteriores deestagirios e por muitos participantes que ali passaram. Prosseguimosuma tradio j criada, um grupo formado, com algumas pessoas que

    foram seus fundadores e tantas outras que estavam nele havia bas-tante tempo. Um grupo que j constitura certas prticas, com razesfirmes na instituio que lhe dava guarida, com marcas identitriasreferenciadas na sua histria, na sua continuidade no tempo e nas

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    formaes discursivas sobre a terceira idade, especialmente aquelasdo campopsino qual estava inscrito.

    Certamente acolhemos de nossos antecessores, acerca dessa ofi-cina, heranas testadas e outras sem qualquer testamento. Daquelastestadas, ou seja, devidamente nomeadas e zelosamente transmitidaspelo docente responsvel pelo projeto das oficinas e seu mentor, re-cebemos a indicao do referencial terico e de princpios e objetivosnorteadores deste livro.

    No referencial terico, havia uma nfase especial na concepo dePichn-Rivire de grupo operativo, sobretudo no que dizia respeito importncia da constituio dos vnculos afetivos, da articulaoentre o implcito e as exteriorizaes grupais, dos papis emergentesna interao e da tarefa como ponto de convergncia e de articulaodas aes individuais.

    Outra vertente do referencial terico destacava a importncia dalinguagem na constituio do sujeito e do grupo, linguagem enten-dida no como mera representao ou conjunto de signos arranjados

    sob normas gramaticais e utilizados para comunicao, mas comoferramenta de produo de subjetividade, de produo de relaese de realidade social, mediante a atividade simblica e a intervenodo discurso na materialidade do mundo. Roland Barthes, Eni Or-landi, Isidoro Blikstein, dentre outros, eram autores sempre citadose lembrados no campo da semitica, da anlise do discurso e dalingustica.

    Tambm se enfatizava o papel da sensopercepo no processode subjetivao, porm, sensaes e percepes compreendidasno campo da fenomenologia, tomadas como funes psicolgicasembrenhadas de intencionalidade, articuladoras das relaes dosujeito com seu mundo, compreendidas como produtoras de sentidoe inteligibilidade, e no estabelecidas mecanicamente ou medianteatuaes cegas. Merleau-Ponty e Ana Vernica Mautner foram

    autores bastante mencionados nesse sentido.Em menor grau, porm tambm citado, comparecia o psicodra-

    ma e, por meio dele, as preocupaes com os papis constitudos oupotencializados nos grupos, os relacionamentos e aes deflagradas

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    na atividade grupal e as condies geradas para o acolhimento dosparticipantes e para a promoo da empatia e da espontaneidade.

    As oficinas possuam uma estrutura bem definida. Subdividiam-seem trs momentos assim delimitados: o do aquecimento, o da tarefae o da reflexo. O aquecimento, como tal, continha atividades pre-paratrias e preliminares, com o intuito de criar um clima favorvelpara a realizao da oficina programada para o dia. Eram utilizadosrecursos como brainstormingou relaxamento, por exemplo, e tantosoutros que se prestavam entronizao do trabalho principal ou dotema norteador do encontro.

    O momento da tarefa abrangia a realizao da atividade centraldo dia, programada em torno de uma questo sugerida pelo prpriogrupo ou trazida pela equipe. As oficinas eram temticas, ou seja,cada encontro organizava-se em torno de um tema orientador datarefa. Evidentemente, sempre que ocorressem emergentes grupaisdestoantes do tema, esses eram objetos de considerao at quefossem superados e permitissem o retorno tarefa programada, se

    fosse o caso.Por ltimo, o momento da reflexo tomava como objeto a pr-

    pria oficina, a experincia ocorrida, em todos os seus aspectos, ocontedo da tarefa, os acontecimentos deflagrados em torno dela, osrelacionamentos entre os participantes, deles com a equipe e tantosoutros que pudessem emergir. Tratava-se da ocasio da passagemda experincia para o plano intelectual, quando o pensamento e a

    linguagem predominavam e procurava-se, na interlocuo, construircoletivamente um conhecimento daquilo que havia ocorrido no en-contro. Era o momento privilegiado para transmitir ao coletivo o quehavia sido vivido no plano individual, para simbolizar, dar sentido einteligibilidade para aquilo que fora experimentado pelas sensaes,de realizar um debate que envolvesse as dimenses de passado, depresente e de futuro e as contingncias do envelhecimento.

    A composio do grupo era basicamente de 15 a 25 pessoas, comidades entre 45 e 82 anos, predominantemente mulheres. Os homenseram bem menos numerosos, de dois a trs. O nvel de escolaridadetambm era diversificado, desde a primeira srie do Ensino Funda-

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    mental at a formao universitria. Alguns eram casados, outros,solteiros, separados ou vivos. Alm dessas caractersticas bsicas,havia outras diferenas entre os participantes que no impediam aconvivncia entre si nem criavam obstculos para o funcionamentodo grupo.

    Fomos herdeiros do nome Oficina de Psicologia da Terceira Idadee, embora essa designao, como todo nome prprio, no contivesseindicaes precisas de seu sentido, alguns foram bem assinaladosno nosso testamento. Oficina lugar de produo, de trabalho, deatividade. lugar de criao, de realizaes artesanais, ainda que seopere com algumas tecnologias mais sofisticadas. lugar de encon-tro, reunio, de trabalho coletivo, compartilhado; de trabalho noalienado no qual o sujeito participa decisivamente do processo e dadestinao final do seu resultado, do produto.

    O testamento sublinhava, ainda, que nessa oficina a preocupaoprincipal era com o processo e no com o produto, ou seja, interes-sava mais a maneira de fazer, os relacionamentos estabelecidos em

    torno da tarefa, do que o produto final. Alis, o produto visado era oprocesso grupal, as realizaes do coletivo, a constituio do grupo.

    Assim, o grande e principal objetivo de tais oficinas era, segundonos foi legado, a construo de um grupo, definido nos seus moldesmais tradicionais. Compreendemos essa noo como a conjuno depessoas em um tempo e lugar determinados, mediante o compar-tilhamento de objetivos racionais, vinculaes afetivo-emocionais

    e fantasias inconscientes capazes de impulsionar e articular aes epapis individuais na direo de realizaes e gratificaes comuns.

    Em outras palavras, tratava-se de criar um espao dentro dauniversidade de existncia para um grupo de velhice e de terceiraidade, um espao de encontro entre eles e deles com a comunidadeuniversitria. Um espao diferente daqueles habituais, no qual pu-dessem, diante do grande espelho da universidade e, em particular,

    sob o espelhamento da psicologia, projetar e recolher imagens de simesmos at ento impossveis de serem forjadas.

    Diante da empreitada de abrir caminhos possveis para o trabalhocom a velhice, cada semana era um grande exerccio de reflexo e

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    criao na tentativa de elaborar oficinas que pudessem oportunizarexperincias grupais capazes de expandir o universo do idoso, apartir do questionamento dos seus papis e de seus lugares possveisna atualidade.

    A Oficina de Psicologia constituiu um espao de referncia, deagrupamento e de relaes sociais entre os idosos e a Universidade.Alm disso, as atividades ofereceram-nos um lugar de anlise daspossibilidades de envelhecimento na atualidade, isto , tomamos aoficina como um analisador (Lourau, 1975) da condio da velhicee da terceira idade e do homem com a finitude, reflexes estas emer-gentes em nosso livro.

    Incitando grupos e socialidades nas oficinas

    Soa extemporneo falar em grupo em um tempo no qual se vi-sualiza o neotribalismo como paradigma de socialidade (Maffessoli,

    1998). Contudo, se insistimos em promover a associatividade gru-pal e no tribal em nossas oficinas com a terceira idade, no foi pordesconhecimento, por aquiescncia cega s nossas heranas ou poralgum lapso, mas sim por uma clara determinao.

    Nosso objetivo de situar o envelhecimento na contemporaneidadea partir das oficinas era uma preocupao constante nas prticas queexercamos com os idosos. Vrios autores (Bauman, 1998; Harvey,

    1998) tm destacado que uma das caractersticas do mundo atual atendncia ao isolamento, ao individualismo, solido e privatiza-o da vida humana. Portanto, falar em grupo ou coletividade podeparecer um arcasmo frente a uma sociedade produtora de contatosinterpessoais mnimos e at efmeros.

    na velhice que recai, de forma mais intensa, o isolacionismo dasociedade contempornea. A condio de solido a que muitos idosos

    esto submetidos avassaladora. O afastamento do mundo do traba-lho, nica condio de expresso e valor humanos, da vida social, dolazer e isolados no prprio espao domstico, suas possibilidades decontato e apropriao do mundo encontram-se bastante reduzidas.

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    Dessa forma, o trabalho centrado na formao de grupos com avelhice e a terceira idade permite uma experincia de enfrentamentodessa tendncia de individualizao e sujeio na atualidade que tam-bm afeta a velhice. Alm disso, possvel romper com a experinciade segregao a que essa populao est submetida.

    certo que o mpeto grupalista pode resultar em guetificao,abafamentos das singularidades e padronizao de condutas. igual-mente seguro que a retroao a modelos anteriores nem sempre amelhor estratgia de enfrentamento de modelos de associatividadeemergentes, considerados dissipadores da vida coletiva. Entretanto,para o caso especfico da terceira idade, o grupo pode ser uma arma,ainda que ultrapassada, de fcil manuseio. Alm disso, no contextodo projeto da Universidade Aberta Terceira Idade, o grupo podeser beneficiado pelo respaldo da instituio, por mais paradoxal quepossa parecer.

    Em nossa experincia, pudemos observar que a terceira idade bem recebida pela Universidade na qual realizamos nossas ati-

    vidades, a Unesp, campusde Assis. Verificamos que o contato dosestudantes com os idosos ocorria sempre de forma amistosa e nemsempre a partir de alguma atividade diretamente relacionada s ofi-cinas. Logo nos corredores, quando o grupo caminhava em direo sua sala, havia a aproximao de universitrios que cumprimentavame entabulavam conversas com os idosos. Eram dilogos prosaicos,como aqueles relatados por algumas senhoras que diziam sentir-se

    como avs daqueles alunos, pois eles sempre lamentavam com elasa saudade que sentiam da casa materna. Isso demonstrava o quantoeram assimiladas nesse espao da socialidade, construdo no interiorda instituio, socialidade, que significa relacionamentos no subme-tidos ao controle e esfera do funcionamento formal da instituio,mas sim emergentes no plano da informalidade, a partir de encontrosfortuitos e das iniciativas dos prprios atores.

    Alm desse contato informal com os estudantes, havia outrosencontros decorrentes das atividades das oficinas. Muitas oficinastinham exatamente o propsito de deflagrar interaes do grupo daterceira idade com a comunidade universitria. Os idosos, em sub-

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    grupos, entrevistavam os alunos e tambm professores e funcionriossobre diversos temas com filmadoras, gravadores ou anotando asrespostas. Esse material era discutido no contexto da atividade, ana-lisando-se os pontos principais de discrdia ou concordncia das opi-nies e as impresses geradas no grupo a partir daquela interveno.

    Realizamos, ainda, outras intervenes no espao da Universi-dade, como festas, bingos, exposies de objetos e cartazes, idas biblioteca e laboratrios, comemoraes e bailes. A presena da ve-lhice e da terceira idade em diversos lugares, algumas vezes, provocouquebras da rotina institucional, chegando a gerar descontentamentose protestos de professores e funcionrios em determinadas ocasies.Reaes desse tipo foram to importantes quanto as de tolerncia eaceitao incondicional para firmar o grupo perante os demais gruposda instituio sem protecionismos ou tutelas.

    O corpo nas oficinas

    As possibilidades de experimentao na velhice encontram umasrie de barreiras e interditos. Uma das mais severas diz respeito aoprprio corpo. Em nossas oficinas, procuramos problematizar essaquesto utilizando como disparador de imagens e sensaes prim-rias um espelho no qual todos deveriam mirar-se. As reaes foramvariadas, porm, carregadas de sentimentos e expresses imediatas.

    Alguns manifestaram espanto, dizendo: O espelho est mentindo!Deixe eu me arrumar... Oh, Deus, podia ser mais nova... Que coisaterrvel! (sic).

    De fato, encarar a face da velhice passando pelo corpo em umasociedade como a nossa vivenciar o estranhamento desse outroque habita em ns. Simone de Beauvoir (1990) diz que a velhice sempre o outro, pois o sujeito no a imagina em si mesmo. Para ela,

    o velho dificilmente se v como tal, e o jovem ignora a velhice quej reside em seu corpo.

    A associao entre fealdade e velhice tambm algo recorrenteno imaginrio social. A beleza da juventude cede lugar para o seu

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    oposto no percurso da vida: Eu vejo uma mulher feia, velha e magra.Olha o estado a que voc chegou.... Muitas vezes, busca-se o rostoperdido no espelho do tempo: O que vejo uma mulher que, nopassado, era bonita, e hoje s barriga, ou ainda, Olho a foto deum homem de 72 anos que ele parece no ter.

    Outras frases nos chamaram a ateno, como Voc no podeficar pensando que est velho. s manter o cabelo arrumado queest bom. Parafraseando Clarice Lispector, a experincia do enve-lhecimento a harmonia secreta da desarmonia: Voc vai ficandofeio, mas harmonioso, como disse uma senhora do grupo.

    Os anos parecem acrescentar um fardo em alguns casos: Euolho para uma pessoa de 45 anos que parece ter 70; Vejo umamulher com muita vontade de tirar o peso das costas. Mas as pos-sibilidades de vivncia do envelhecimento podem guardar outrossentidos, como bem-estar, felicidade: Estou me vendo velha, gordae saudvel!; Estou vendo eu mesma. No poderia estar melhor;Sou uma mulher de 59 anos e feliz; Os anos passaram! Tenho

    paz e tranquilidade.Ao discutirmos as sensaes atualizadas por essa atividade, outras

    falas remeteram chegada do envelhecimento espraiando a existnciahumana: Achei que a velhice ia ser gostosa. Depois que apareceu, ador piorou... O novo disposto. Mas a velhice vai calando na gente. Aidade chega, e a gente se submete. O silncio ensurdecedor na expe-rimentao do envelhecimento no corpo. Ele o destino irremedivel

    do homem: Deus perdoa. A natureza, no. Vem a idade, e a gentesente no corpo o tempo e as desgraas. As perdas fsicas e emocionaisaparecem, mas o tempo ajuda a perceber o que voc tem pela frente.

    Experimentar a finitude humana no corpo algo nico frente aointerdito do contemporneo que prega a impossibilidade da vivnciado envelhecimento com a cultura de valores relativos juventude.Tais valores correspondem no rebeldia que consideramos tpica

    em adolescentes, mas aos padres de beleza impostos pelo mercado.No mundo atual, a velhice colocada como algo indesejvel.

    As mudanas que ela impe aos corpos so objetos de intervenesvrias visando suas reverses, como cirurgias plsticas, cosmticos,

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    exerccios, dietas etc. No deixa de ser interessante a contradio denosso tempo: com tanto arsenal tecnolgico produzido na atualidade,a expectativa de vida aumentou substancialmente. No entanto, aomesmo tempo em que o mundo moderno promete a eternidade ealonga o chronosda vida, ele no lhe reserva um campo de possibi-lidades. Assim, a velhice fica confinada e interditada no plano dasexperincias possveis do homem. Todo esse carter da dimensotemporal na relao do homem com a finitude incitou-nos a analisaras vicissitudes do tempo na sociedade contempornea e sua interfacecom o envelhecimento em nosso livro.

    Frente a um cenrio de abolio do tempo, no qual a velhice negada e se exalta a figura perene da juventude, no deixa de ser umgrande desafio pensar no papel do profissionalpsina atuao comidosos. preciso romper as barreiras que impedem a vida de avanarno tempo e no espao e diversificar as formas de subjetivao.

    A sensopercepo nas oficinas

    O trabalho com a sensopercepo em grupo com idosos umaferramenta importante para conhecer e ampliar o universo de sen-tidos e formas de aparecer do corpo humano. Conforme destacaIsidoro Blikstein (1983) em sua obra Kaspar Hauser ou a fabricaoda realidade, as sensaes e as percepes funcionam como momento

    inaugural da produo de sentido e da subjetividade. Constitudasna prxis, as sensaes bsicas e as percepes elementares fornecemas impresses e figuraes ou imagens primeiras mediante as quais opensamento e a linguagem passam a operar (Rouanet, 1990).

    Nas atividades de sensopercepo, procuramos potencializar eaguar os sentidos bsicos do corpo humano, muitas vezes enrijecidose esquecidos. Trabalhar com essa temtica foi muito interessante,

    pois buscamos dar novos significados experincia corporal de ver,tocar, ouvir, sentir...

    Nas oficinas sobre a viso, por exemplo, exercitamos a presenae a ausncia desse sentido em uma atividade na qual havia uma troca

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    de papis entre o participante com os olhos vendados e o outro que oguiava. Houve uma situao muito interessante nesse contexto, poishavia um casal cujo homem sofria de uma deficincia visual grave, esua companheira o ajudava no dia a dia. Quando fizemos a inversodas duplas, ou seja, quando ele foi o guia e ela passou a ser guiada,percebemos sua ansiedade ao se deixar conduzir.

    Ainda sobre essa temtica da viso, realizamos outras atividadesque procuraram questionar o aspecto seletivo do olho humano, quemuitas vezes no percebe as nuances do dia a dia. Em outra oficina,trabalhamos com as vrias possibilidades de olhar o mundo por meioda troca de culos entre os participantes. Cada um vestia as lentesdo outro para experimentar as formas de ver e perceber as coisas aoredor. Essa atividade abriu margem para analisarmos e reconhecer-mos as diferentes perspectivas e vises de mundo.

    Os outros sentidos do corpo humano tambm foram trabalha-dos ao longo desses anos de experincia, como o olfato, o paladare a audio. Procuramos aguar essas sensaes por meio de um

    contato direto com diferentes objetos, como tambm pelo resgatede lembranas de cheiros, sons e gostos da infncia.

    Esse trabalho de sensopercepo com o grupo foi deveras sig-nificativo. Muitos idosos apresentavam dificuldades em algum dossentidos, como a perda da audio, da viso, do olfato, do paladarou at mesmo do tato, devido maior sensibilidade provocada pe-las dores de reumatismos. Dessa forma, ao colocarmos em anlise

    essas restries advindas com os anos, pudemos vislumbrar outraspossibilidades de experimentao dos sentidos, seja pelo seu agu-amento, seja pelo resgate de memrias relacionadas s diversassensaes revividas.

    Ao realizarmos atividades a partir dessa temtica nas oficinas,julgamos ser necessrio analisar em nosso livro a viso dos estudiososdo envelhecimento sobre o corpo idoso. Constatamos, conforme

    discutiremos ao longo do livro, que muitos insistem em acentuar aperda da acuidade dos sentidos e no suas potencialidades de expe-rimentao, encerrando esse corpo em uma materialidade institudae engessada.

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    O papel da linguagem nas oficinas

    A funo da linguagem como possibilidade de ruptura e subversodo institudo, conforme destaca Roland Barthes em seu textoAula(1996), foi nosso referencial no trabalho com a palavra nas oficinas ounas ofissignas, de acordo com o neologismo criado, certa vez, por um es-tagirio, para nomear especificamente as oficinas que tinham o signo eo processo de produo de sentido como alvo (Justo et. al., 1997, p.95).

    De acordo com Barthes (idem), a lngua possui um carter emi-nentemente fascista por impor uma forma de dizer: uma gramticapor si s constrangedora das mltiplas condies de possibilidadesde produo de sentidos. Segundo ele, o fato de a enunciao ter quese fazer a partir de um euou um tuj representa um amordaamentoe constrio da linguagem. Porm, adensa essa tese radical o fato deque no possvel sobreviver fora da lngua e, portanto, o que resta trapacear com ela, como fazem os poetas. Era o que buscvamosfazer modestamente, sem a pretenso de produzir grandes revolues

    ou golpes criativos na linguagem.Algumas ofissignasforam marcantes. Em uma delas, propusemos

    ao grupo a recriao de mensagens padro utilizadas em datas come-morativas como o natal e ano novo ou as mensagens de felicitaes deaniversrio. O objetivo foi questionar a estereotipia de tais mensagensprontas e reinstituir a condio de fruio da linguagem medianteuma participao ativa de cada membro do grupo na construo

    de sentidos e experincias com a palavra. Em outra ocasio, o alvoforam os ditados, frases e dizeres populares, veiculadores de men-sagens normativas, tais como Deus ajuda quem cedo madruga. Aproposta era subverter esses ditados, desconstru-los epossibilitara ecloso da polissemia, ou melhor, a produo de sentidos inversosqueles cristalizados e assimilados mecanicamente.

    Muitas outras oficinas tiveram a linguagem como centro do tra-

    balho, utilizando-se como expediente, por exemplo, a produo deautobiografias, de poemas coletivos, relatos de causos, escrita decartas para entes queridos, produo e divulgao de mensagens emmurais ou por meio de pequenos livretos e assim por diante.

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    Explorvamos as conexes possveis da linguagem com o pen-samento, a memria, a percepo, a prxis, os relacionamentosemocionais, afetivos e sociais, enfim, com toda a constelao quecompe os processos de subjetivao.

    A velhice e a lei

    Para analisar com o grupo a emergncia e a configurao da velhicena atualidade, utilizamo-nos de vrias estratgias nas oficinas. Por

    exemplo, tematizamos com os idosos o papel da lei na produo socialda velhice e recorremos ao Estatuto do Idoso para analisar e refletir osdireitos e deveres que lhes so consignados e o tipo de envelhecimentonele concebido e implementado. Muitos participantes desconheciamseu contedo, por isso providenciamos cpias do Estatuto, realizamosuma apresentao sobre as principais leis e promovemos um debatesobre suas implicaes. Por fim, confeccionamos diversos cartazes

    sobre cada aspecto da legislao, que foram expostos na Universi-dade, nos postos de sade, pontos de nibus e no comrcio em geral.A partir dessa atividade, percebemos que seria indispensvel car-

    tografar as polticas pblicas dirigidas velhice em nosso livro, poiselas poderiam nos fornecer elementos importantes para analisarmosa viso do Estado sobre essa populao e as estratgias de gesto doenvelhecimento, conforme discutiremos adiante.

    Cabelos brancos na rua: a ocupao dos espaosurbanos pela terceira idade

    Um dos princpios bsicos das oficinas estabelecia a sada paula-tina do grupo do espao no qual habitualmente se reunia para se prem movimento, deixar-se afetar por cineses, circular por recantos

    desconhecidos e habitar novos espaos. Afinal, se era imprescind-vel expandir o universo da velhice e da terceira idade e romper comprticas de recluso, no se poderia mant-los confinados em umasala de reunies nem mesmo nos interiores da Universidade.

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    A sada da toca era fundamental e fazia-se mediante incurses porregies cada vez mais distantes e estranhas: primeiro, os corredoresdo prdio e reas adjacentes sala de reunies do grupo, realizandoentrevistas, afixando mensagens em murais e paredes, promovendouma festa junina no saguo, por exemplo; depois, visitando e fazendointervenes em espaos do campuspara, finalmente, aventurar-sepela cidade, sobretudo, pela cidade proibida.

    Realizamos passeios por lugares diversos, como museus da ci-dade, parques, bailes do clube da terceira idade e, em ocasies maisraras, lanamo-nos com mais arrojo aos espaos proibidos, porexemplo, levando o grupo a uma balada de uma prestigiada casanoturna frequentada por jovens.

    Ainda que as visitas e invases de redutos que proscrevem avelhice no tenham se realizado na intensidade desejada, elas servi-ram como experincia paradigmtica da importncia e das possibi-lidades de romper com as especializaes e guetificaes dos espaosurbanos, fundamentais na produo de estigmas e na modelao da

    subjetividade.Alm das intervenes diretas nos espaos da cidade, ela foi tema

    de oficinas que possibilitavam interrog-la e situ-la no plano sim-blico. Programvamos exerccios individuais de perambulao porlugares no frequentados, ainda que fossem os arredores do prpriobairro, ou simples mudanas de itinerrios ou ainda de localizaeshabituais, como o lugar que comumente ocupavam na igreja ou no

    ambiente domstico.Essas experimentaes com o grupo incitaram-nos a refletir sobre

    a presena e as memrias da velhice acerca da urbe e sua relao como espao diante das incitaes do mundo contemporneo, conformeser desenvolvido neste livro.

    Remexendo o ba de memrias

    As oficinas sobre a memria talvez tenham sido as principaisferramentas de nosso trabalho para promover nosso objetivo com

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    o grupo. Era preciso testar a herana construda ao longo da vida etambm aquela transmitida pelos antepassados, da qual esses idososeram portadores. O legado cultural, para ns, era o bem maior quecada um possua, pois no relato de histrias de vida havia a memriacoletiva de um tempo. Por isso, julgamos necessrio abordar algumasreflexes acerca dessa temtica em nosso livro.

    Dessas atividades sobre a experincia narrativa resultaram diver-sos cartazes e revistas que circularam na Universidade. A primeirarevista que confeccionamos chamava-se O dinossauro e suas hist-rias; o nome foi criado e escolhido pelos prprios participantes. Ocontedo da revista era todo de causos e lendas de terror. Histriasde bruxas, mulas sem cabea, fantasmas, lobisomens, cemitrios evelrios, heranas de um mundo fantstico perdido na memria. Pormeio dessas histrias, questionamos o lugar, ou melhor, o no lugardesse legado cultural, pois at mesmo muitos netos dos participantesno se interessavam por elas.

    Com as oficinas sobre a memria, analisamos a condio de nar-

    rador do idoso, uma prtica hoje quase anulada, pois suas histriasmuitas vezes carecem de ouvintes a quem testar suas heranas. EclaBosi, em sua obra Memria e sociedade (1987), menciona que a me-mria s pode existir quando evocada por outrem. Encontramos essasituao em nosso grupo, quando, ao incitarmos as lembranas, mui-tos dos participantes alegavam que haviam praticamente se esquecidode diversas histrias de vida. Essas memrias ganharam corpo em

    forma de relatos, fotografias ou objetos trazidos para as oficinas.Editamos, ainda, o segundo volume de O dinossauro e suas lem-

    branas(com o subttulo recordar viver), no qual recorremosa memrias de costumes, hbitos e prticas do dia a dia, como ocuidado com o prprio corpo e o zelo pelo outro. No terceiro volu-me, realizamos um levantamento das doenas, dos medicamentoscaseiros e simpatias utilizados para a cura dos males da poca. A

    produo do grupo foi bastante extensa, e constatamos uma sriede prticas hoje j extintas.

    Esses dois trabalhos ajudaram a refletir sobre a sujeio do homemmoderno ao estatuto mdico e cientfico, que extirpa do sujeito sua

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    condio de cuidar de si e do outro, inserindo-o na lgica da governa-bilidade e pedagogizao da vida humana, ainda mais acentuada navelhice. Tais observaes fizeram-nos recorrer reflexo sobre o papelda cincia na construo das categorias de envelhecimento e nas prti-cas de gesto dessa populao para a elaborao de nossa cartografia.

    Nas oficinas, buscamos os movimentos de contrapoder e aspossibilidades de linhas de fuga com relao a esses paradigmasdominantes sobre a populao idosa. Mas muitas dessas linhas se per-deram ou se aprisionaram a discursos institudos. H pouco tempo, aosolicitarmos que o grupo levantasse propostas de temas para oficinas,um participante pediu a presena de um mdico geriatra para falar so-bre as doenas da velhice e os cuidados com o corpo para envelhecerbem. No podemos deixar de assinalar nosso espanto diante dessasugesto, depois de tanto tempo pensando que estvamos quebrandoestereotipias. De fato, o saber especialista encontra-se amplamentedifundido no cotidiano. Mas qualquer prtica que pretenda proble-matizar o institudo um exerccio constante de enfrentamento dos

    saberes hegemnicos e que, mesmo assim, pode ser capturada pelasforas da biopoltica (Pelbart, 2003) institudas no contemporneo.

    Terceira idade, velhice e a finitude humana

    A experincia com grupos de idosos, alm de se constituir em um

    espao de exerccio do pensamento, tambm a possibilidade de en-trar em contato com a condio de finitude a que somos sujeitos. Aolongo de nosso trabalho, pessoas muito queridas deixaram-nos parasempre. Vivenciar esses lutos, sem dvida, foi uma vivncia radicalpara ns e para o grupo: o fantasma da morte e da dor elaborados apartir do enfrentamento das perdas em uma relao com a vida e opensamento. Alm da falta dessas pessoas to caras para ns, outros

    participantes tiveram de abandonar o grupo por adoecimento. Ocorpo, muitas vezes cansado, pedia repouso.

    A morte continua indecifrvel e incontornvel, apesar de todosos avanos das cincias e das demais tentativas de dar-lhe um con-

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    torno e uma inteligibilidade aceitvel, como a religio. Os grupos daterceira idade constituem-se ambiguamente em relao ao espectroda morte: por um lado, fornecem o amparo e a presena dos outros,confirmando a possibilidade da manuteno e do prolongamentoda vida; por outro, na medida em que aqueles que esto ao ladosucumbem, vem tona a constatao de que ela continua em suainsidiosa ronda.

    As preocupaes, temores e receios pela iminncia da chegada damorte imiscuam-se em contos e causos, em narrativas nas quais ela a personagem principal ou oplot(ncleo central) da histria, como,por exemplo, em histrias que contavam sobre os cuidados com osmortos velados em casa e at mesmo em situaes cmicas relacio-nadas a esses eventos. Certa vez, uma pessoa do grupo contou que otradicional cafezinho servido em um velrio caseiro fora feito com agua com que haviam dado banho no defunto. Lendas ou realidades parte, a questo que essa temtica da morte e da experincia dafinitude est posta sempre no grupo, seja pela perda de algum ente

    querido, seja pelo afastamento de um participante por adoecimento.Essa gerao que hoje denota a velhice e a terceira idade apre-

    sentou uma convivncia maior com a presena da morte. As tantashistrias e casos de velrio que relatam no deixam dvidas daproximidade que mantinham com a morte ou mesmo com a doena,tratada em casa.

    Atualmente, com o poderoso arsenal mdico e cientfico, a finitu-

    de humana tratada por uma srie de procedimentos que transfor-maram a morte em uma experincia distal, assptica e higinica. Ainternao do doente, os exguos horrios de visitao e a delegaodos cuidados do enfermo aos mdicos e enfermeiros criam um dis-tanciamento em relao morte e um certo cordo de isolamentoentre aquele que se encontra na iminncia de morrer e os outros quelhe so prximos.

    O prolongamento da vida e as tecnologias mdicas colocam a ex-perincia com a morte como algo intangvel e afastado do ser humano.Alm disso, o morrer tornou-se objeto de mercado de funerrias,floriculturas, cemitrios e velrios vidos em oferecer seus servios.

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    A relao do homem com a finitude passa por diversos intermediriosque cada vez mais distanciam o sujeito da sua condio de ser finito.

    A experincia com o grupo da terceira idade, nesse sentido, tam-bm disparadora dessas questes relacionadas presena da morteno curso da vida. No caso das oficinas, vivenciamos essa relao demaneira muito prxima e, passado o luto, o desejo pela eternidade iaalm da presena fsica daqueles que se foram, pois, tal como diziao poeta Drummond,

    Por muito tempo achei que a ausncia falta.E lastimava, ignorante, a falta.Hoje no a lastimo.No h falta na ausncia.A ausncia um estar em mim.E sinto-a, branca, to pegada, aconchegada nos meus braos,que rio e dano e invento exclamaes alegres,porque a ausncia, essa ausncia assimilada,

    ningum a rouba mais de mim.

    Cenas introdutrias do itinerrio cartogrfico

    Esses relatos arquivados na memria e agora testados so o pontode partida, os primeiros passos, para apresentar o percurso percorrido

    na construo de nossa cartografia sobre o envelhecimento na con-temporaneidade. Uma trajetria que nos apresentou alguns caminhosde possibilidades para a anlise da compreenso desse fenmeno nomundo atual, cujas principais vias foram a velhice e a terceira idade,diferentes faces da relao do homem com sua condio de finitudenos espelhos do tempo.

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    Retrato

    Eu no tinha este rosto de hoje,

    assim calmo, assim triste, assim magro,

    nem estes olhos to vazios,

    nem o lbio amargo.

    Eu no tinha estas mos sem fora,

    to paradas e frias e mortas;

    eu no tinha este corao

    que nem se mostra.

    Eu no dei por esta mudana,

    to simples, to certa, to fcil:

    Em que espelho ficou perdida a minha face?

    Ceclia Meireles

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    APRESENTAO

    Eu no tinha esse rosto de hoje...Foi no ano de 1970 que Simone de Beauvoir lanou o livroA velhi-

    ce, que at hoje referncia na rea das cincias do envelhecimento.

    A denncia da condio de abandono da velhice pela sociedade emgeral ecoa ao longo de toda sua obra, cujo intuito, de acordo com aautora, era quebrar a conspirao de silncio em torno dessa popu-lao. J na apresentao de seu texto, a autora faz um apelo: porisso que urge quebrar esse silncio: peo aos meus leitores que meajudem a faz-lo (1990, p.14).

    O silncio social em torno da velhice expresso no abandono e no

    descaso dessa populao apontava o modo pelo qual a sociedade tra-tava seus velhos: como um refugo. Essa era uma das faces da velhice,estigmatizada e indesejvel, objeto de obras de caridade, confinadaem asilos ou na solido do desamparo familiar e social e preterida nombito das polticas pblicas.

    Mesmo que tenham surgido leis que procuram garantir a proteoaos idosos, resqucios dessa velhice indesejvel so encontrados com

    facilidade ainda hoje, seja de forma explcita, como a violncia prati-cada contra os velhos nos espaos urbanos e no interior das famlias,seja travestida de outras faces, como o aumento excessivo da prticade cirurgias plsticas a fim de evitar os efeitos do envelhecimento.

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    Atualmente, a regra no envelhecer. No somente a velhice porsi s indesejvel, mas a finitude humana tambm o . Por isso oenvelhecimento permaneceu na orla social por tanto tempo comouma espcie de tabu, da ordem de um interdito em relao ao qualo silncio seria o melhor aliado.

    Essa velhice silenciada, da qual Beauvoir se fez porta-voz, aospoucos foi encontrando ressonncias em alguns setores da sociedade,como o meio acadmico, os servios de assistncia social e o poderpblico. O que antes era uma conspirao de silncio em torno davelhice passou a uma intensa produo discursiva sobre o assunto,desvelando e engendrando outras facetas desse rosto, mais revitali-zado e valorado, com alguns traos diferentes daqueles descritos porSimone de Beauvoir ou pela poeta Ceclia Meireles, assim calmo,assim triste, assim magro, nem estes olhos to vazios nem o lbioamargo. Entra em cena uma nova velhice... Eu no dei por estamudana,/to simples, to certa, to fcil.

    A face da velhice, na atualidade, apresenta, enquanto construo

    social, aspectos muito diferentes em relao quela que se exibia noincio do sculo XX. At mesmo a nomenclatura para essa fase da vidamodificou-se com o aparecimento de outras designaes. Terceira ida-de, melhor idade, feliz idade, maturidade, segunda juventude...: novasmaterialidades, novos sujeitos e novos procedimentos para referir-se velhice, assim como aluses a novas possibilidades de viv-la.

    No somente as palavras, mas tambm os signos ticos e as ima-

    gens visuais, registram as mudanas da produo de sentido sobre avelhice. Ao olharmos fotografias antigas com idosos, identificamosalguns signos tpicos da velhice de pocas passadas: senhores comternos, chapus e bengalas, e senhoras com vestidos mais recatados ecabelos penteados. Se antes a valorizao do homem velho era calcadano signo do recato, do comedimento, da sobriedade, da sabedoria,da experincia de vida, hoje ela tambm passa pela possibilidade de

    ser uma fase de realizaes, de atividade, de atualizao, de acom-panhamento das inovaes e modismos, como se pode observar naiconografia expressa, por exemplo, nas novelas e anncios comerciaisdirigidos para esse segmento. Certamente, essa velhice modificou-se,

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    ou pelo menos abriu-se um leque maior de modos de ser e de viveressa fase da vida.

    A mudana do olhar sobre a velhice e tambm do prprio velho acompanhada por um importante fato ocorrido no sculo XX: oenvelhecimento da populao. Com o aumento da expectativa devida e a queda da taxa de natalidade, ao longo das ltimas dcadas,temos assistido a um processo de envelhecimento populacionalem nvel mundial, relatado em pesquisas desde a dcada de 1950(Martins, 1997).

    O mundo est mais velho. Conhecido por ser um pas jovem,o Brasil tem ficado cada vez mais grisalho. O progresso cientfico,a biotecnologia, os mtodos contraceptivos, a maior produo e oacesso a medicamentos, enfim, poderamos elencar uma srie defatores que podem ter contribudo para o aumento da expectativa devida. Mas esses no seriam fatores isolados, pois um processo aindamais complexo aconteceu em poucas dcadas, levando a velhice aum statusat ento inalcanado, promovendo mudanas na forma

    de ver e viver o envelhecimento: a visibilidade social.Tais mudanas com relao velhice configuraram-se na medida

    em que ela se expandiu na composio demogrfica. O aumento donmero de idosos, praticamente em propores globais, gerou avisibilidade desse segmento e, como um objeto socialmente visvele uma presena cada vez mais insistente, ele acabou por tornar-seum problema social. Outro fator importante na modificao do

    olhar sobre a velhice foi seu forte impacto na economia e em outrasesferas da sociedade, criando a premente necessidade de delimitaressa populao, caracteriz-la, conhecer seu potencial, estabelecersua funcionalidade, enfim, geri-la de forma eficiente.

    Na sociedade brasileira, a visibilidade alcanada pela velhice deveser analisada por um duplo movimento que segue sua transforma-o em preocupao social (Debert, 2004). De um lado, houve um

    processo de socializao progressiva da gesto dessa categoria. Pormuito tempo, ela foi considerada como objeto da esfera privada efamiliar. Cabia aos parentes e familiares ou iniciativa de associaesfilantrpicas cuidar de seus idosos. Com a constituio de um saber

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    especfico, por meio da gerontologia e da geriatria, e com o adventoda aposentadoria sob responsabilidade do Estado, a velhice passoua ocupar o lugar de objeto de gesto pblica.

    Entretanto, temos assistido a um processo de reprivatizao davelhice, no qual o idoso incitado a dobrar-se sobre si mesmo pro-cura de realizao e satisfao pessoal, resgatando projetos antigos ebuscando o prazer individual. Nesse movimento, as mudanas ocor-ridas em relao ao olhar sobre essa fase da vida sugerem a reviso deesteretipos, que vem sendo substitudos por outros, principalmentecom a emergncia e propagao do conceito de terceira idade.

    Esse conceito sugere algumas diferenas em relao ao de velhice.Assim como a criao do conceito de adolescncia, no sculo XIX,como fase intermediria entre a infncia e o mundo adulto, os concei-tos de meia-idade, terceira idade e aposentadoria ativa emergem inter-postos etapa adulta e ao envelhecimento em meados do sculo XX.

    A criao de conceitos intermedirios entre a maturidade e avelhice provocou mudanas significativas no modo de olhar e viver

    essa fase da vida. Atualmente, a aposentadoria deixou de ser o marcode passagem da fase adulta para a velhice propriamente dita (idem),principalmente a partir de novas polticas que visam alocar o tempodos aposentados e criar outros estilos de vida. Nesse sentido, h umaintensa produo de demanda para o consumo de produtos destina-dos a essa populao e a propagao da ideia de que a velhice umafase prpria para o resgate e a realizao de sonhos adiados ou no

    concretizados durante a existncia do indivduo.Esses novos sentidos dirigidos velhice, que procuram sub-

    dividir essa fase e extrair dela uma categoria de idade cronolgicaintermediria, colocam-se mais adiante da questo do aumento daexpectativa de vida da populao. A inveno da terceira idade foipossvel graas forte incitao econmica gerada no mercado capi-talista frente ao potencial de consumo dessa populao. De acordo

    com Laslett,

    essa inveno requer a existncia de uma comunidade de aposen-

    tados, com peso suficiente na sociedade, demonstrando dispor de

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    sade, independncia financeira e outros meios para tornar reais as

    expectativas de que essa etapa propcia realizao e satisfao

    pessoal. (apud Debert, 2004, p.19)

    A abertura do mercado velhice algo recente em nossa socie-dade. At algumas dcadas atrs, o que se tinha voltado para essacategoria resumia-se em remdios, asilos, assistncia sade oualguns poucos objetos de consumo, como o ramo do vesturio. Hojeem dia, o mercado dispe de uma srie de produtos e servios dire-

    cionados a essa populao, sobre os quais discutiremos no decorrerde nosso livro.Tantas mudanas com relao ao objeto denominado velhice

    saltam aos nossos olhos de maneira complexa e emaranhada; solinhas que emergem ao longo da tentativa de traar um rosto, cujaface transborda diferentes signos e impresses.

    Em que espelho ficou perdida a minha face? Os versos de

    Ceclia Meireles descrevem bem nossas inquietaes, suscitadas aoolharmos os contornos do envelhecimento. Ao traarmos suas linhas,perdemo-nos diante de seus vrios rostos. Terceira idade, velhice,velho, ancio, melhor idade, feliz idade, idoso, maturidade, enfim,diferentes percursos que revelam diversas inscries e sentidos comrelao a essa fase da vida.

    A necessidade de diferenciar e conceituar essa faixa etria parece

    ser uma preocupao que revela algo curioso: a velhice foi finalmentedescoberta. No apenas o mercado descobre o potencial desse seg-mento, como tambm o estado de direito registra seu reconhecimentomediante a criao de leis especficas. O Estatuto do Idoso, elaboradoem 2003, ao estabelecer os direitos dessa populao, evidencia sobre-tudo o reconhecimento social desse segmento. A cincia, por meio dagerontologia e da geriatria, alavanca pesquisas e cria especialidades

    mdicas. Novos corredores de circulao so abertos velhice, que convidada a sair do confinamento do lar e mostrar sua face em bailes,clubes de convivncia, projetos de universidades abertas terceiraidade (Unatis), no comrcio e no turismo.

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    certo que, ao lado dessas e de outras tantas novas ofertas deespaos sociais, existe ainda uma velhice segregada pela sociedade.Nesse cenrio, o abandono, o preconceito e a desvalorizao aindarecaem sobre o idoso de forma violenta. Casos de maus-tratos nocomrcio, nos transportes coletivos, nas ruas e at no interior dafamlia so cada vez mais comuns. Algumas dessas ocorrncias sonoticiadas nos jornais, porm muitas so silenciadas no mbito sociale pelos prprios idosos, s vezes por desconhecerem seus direitos ouainda por se sentirem envergonhados e at culpados pelas situaesem que foram vtimas de algum tipo de violncia.

    Como podemos observar, os modos como a sociedade lida com epercebe a velhice so variados. Propusemo-nos tratar essa temticanas Oficinas de Psicologia com a velhice e a terceira idade. Na ocasio,pedimos aos participantes do grupo que procurassem uma palavraque pudesse expressar a condio do idoso, na sociedade atual, e amaneira como eles prprios se percebiam. As respostas foram asmais diferenciadas, tais como esquecido, abandonado, desrespeita-

    do, desprezado, valorizado, experiente, incapacitado, usado, bom,conselheiro, respeitado na famlia, sentir-se bem, parar no tempo,doenas, sade, poeta, conformado, viver melhor, espanto, disposi-o, felicidade, diverso, privilgios, sair mais, ser mais feliz agora.

    O conjunto desses campos de sentidos revela, grosso modo,percepes associadas a corredores semnticos positivos e nega-tivos. Por um lado, tm-se formas expressivas associadas a uma

    vida melhor na velhice, uma fase mais feliz, com poesia, diverso,sade, cercada de privilgios, valorizada e desconfinada do lar. Poroutro lado, aparecem imagens extremamente negativas, como a deuma velhice esquecida, abandonada, desvalorizada, incapacitadae doente.

    A coexistncia de significaes to contraditrias sugere um mo-mento de transio do statusda velhice, de um lugar desprestigiado

    para outro um pouco mais valorizado e dentro de uma demandasocial de refuncionalizao do idoso. Em nossos dias, o mercadono descarta mais qualquer espcie de consumidores, criando ne-cessidades especficas e realizando uma insero social baseada no

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    consumo. Esse parece ser o caso da velhice, um dos ltimos redutosagora cooptado pela economia capitalista.

    O momento de transio pelo qual passa a velhice parece delinear,na atualidade, contornos diferenciados e mpares, tal como se podeconstatar a partir das falas anteriormente mencionadas. A descobertada terceira idade pela sociedade contempornea, ainda que diferen-ciando um segmento da velhice, fomenta outros olhares construdosacerca do idoso. Em nosso livro, temos por objetivo mapear algumasressonncias da revitalizao da figura da velhice, que atualmentesurge como uma importante categoria social e econmica.

    A velhice da qual falamos se apresenta a partir de diferentes ma-terialidades, sujeitos e procedimentos, uma vez que as possibilidadesde envelhecimento, na contemporaneidade, encontram-se circuns-critas a duas formas de sujeio, a saber, o conceito de velhice e aemergncia e difuso do conceito de terceira idade. Cada um dessesaspectos trata da finitude humana com base em objetos, sujeitos,procedimentos, saberes, instituies, discursos, prticas, regimes de

    verdade, condies de exerccio de poder e condies econmicas quediferem entre si. No presente livro, traaremos alguns perfis dessasduas faces do envelhecimento, emergentes na atualidade, medianteensaios calcados na literatura sobre o idoso e na nossa experinciade trabalho com grupos da terceira idade.

    Como um objeto complexo, o envelhecimento humano inscreve-se em diferentes planos conectados entre si. A compresso do tempo

    e do espao, como plano social de fundo, promove outra inscriodo homem no mundo contemporneo (Harvey, 1998; Virilio, 1996),cujas consequncias ressoam nos modos de ver e vivenciar a finitude.A acelerao do ritmo da vida e a ampliao dos espaos sociais tam-bm afetam a velhice, que passa a ser vista e tratada como uma faseque pode receber algum aditivo para incrementar a circulao dosidosos. A cincia e demais produes discursivas, somadas s pol-

    ticas pblicas, ao criarem a categoria denominada idoso ou terceiraidade, promovem um conhecimento racional e instrumental do qualo mercado se apropria, para produzir demandas apresentadas comodessa populao. At mesmo a memria e a narrativa na velhice, tidas

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    como bens maiores dessa idade, encontram-se diretamente afetadaspor todos esses atravessamentos contemporneos que fomentam umarelao diferenciada do homem com o passado, com a experincianarrativa e com a (im)possibilidade de ter interlocutores no exercciode rememorar e transmitir um legado cultural.

    Para dar conta de toda a amplitude que cerca as apresentaes doenvelhecimento do ponto de vista social, em nosso tempo, elegemosalgumas temticas abordadas em diferentes ensaios, os quais se en-contram interligados por diversas linhas, tal qual um mapa em quevrias cidades so conectadas por diferentes estradas. Escolhemosalguns destinos cujas rotas podero nos oferecer uma cartografia doenvelhecimento. Um desenho composto de diversos traados, rea-lizados tanto no encontro com o campo de trabalho, como tambmem seu distanciamento. Em cada um desses rabiscos dos desenhos,foi-nos possvel vislumbrar diferentes aspectos da velhice: sua cons-truo enquanto saber especializado pela cincia, como objeto deinterveno do Estado, como apropriao pelo mercado capitalista,

    como possibilidades de vivncia do envelhecimento pelos sujeitos,como objeto imerso nas conjunturas contemporneas e tantas outrasforas que atuaram em nosso percurso cartogrfico.

    A pergunta que nos perseguiu durante todo esse percurso foiaquela expressa nos versos de Ceclia Meireles: Em que espelhoficou perdida a minha face?. Afinal, se antes a velhice era silenciada,ignorada e escondida, hoje ela est sendo to exposta, investigada e

    colocada em cena por mltiplas imagens e retratos, que estes chegama embaralhar o olhar e a cognio de quem procura enxerg-la comalguma nitidez. Foram tantas as formas surpreendidas por ns emnossa trajetria, que precisamos nos perder no objeto para que entopudssemos encontr-lo.

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    1SOBREACARTOGRAFIA:PERCURSOSMETODOLGICOS

    A cartografia, de acordo com uma definio geogrfica, a cinciae a arte de expressar graficamente, por mapas ou cartas, os variadosaspectos de uma paisagem ou de uma superfcie. Nessa cincia,

    o olhar do cartgrafo parte da construo daquilo que pretendeapresentar. Seu percurso, cujas marcas esto registradas no cami-nho percorrido e em seu dirio de bordo, traduzido em cartas queapontam aquilo que v e sente.

    Nas cincias humanas, a cartografia diz respeito, basicamente,ao mapeamento de signos, rastreando suas formaes, contornosde regies de produo de sentido, tenses que divisam e instauram

    discursos, estratgias de enunciao e toda significao que recortaum tempo e um lugar. Assim, ela acompanha as modulaes que doformas significativas s relaes e afetos entre os homens (Rolnik,1989).

    Como um modo de anlise social e de suas narrativas, a carto-grafia coloca-se como uma das possveis ferramentas na pesquisa emcincias humanas (Mairesse & Fonseca, 2002). Nessa perspectiva,

    ela confronta o saber e o fazer pesquisa institudos na modernidade,tal como o mtodo cartesiano, que fixa um lugar para o pesquisadore para o objeto que se deixa conhecer.

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    Pesquisas que procuram impor suas verdades universalizantes,arrogando para si o estatuto de cincia, tm por princpio a chamadaneutralidade cientfica, ou seja, supem o pesquisador como umelemento neutro, no processo de conhecimento da verdade e do sa-ber, sem estar incitado pelo momento histrico, pelas conjunturaseconmicas, polticas e sociais. Como um procedimento tipicamentepositivista, a investigao com base no pressuposto de neutralidaderealiza uma ciso entre sujeito do conhecimento e objeto a conhecer(S/O). Ao sujeito do conhecimento cabe conhecer a natureza dohomem para conhecer a natureza do objeto, uma vez que seu objeto o prprio ser humano. Nesse caso, a metodologia o que ir pos-sibilitar a construo da natureza em si do objeto, isto , concebersua verdade originria e sua essncia (Dreyfus & Rabinow, 1995).Para Patrcia Kirst, esse o indivduo neutro da modernidade que,esterilizado pelo mtodo, adquire a assepsia e a pureza necessriaspara investigar o real sem infect-lo (2003, p.93).

    Na pesquisa cartogrfica, o cartgrafo, parte integrante da inves-

    tigao, no se pretende neutro e com um lugar pr-fixado. Dessaforma, nossa cartografia visa mapear a produo dos processos deenvelhecimento, na dimenso social e histrica, especificamente osperfis engendrados na velhice e na terceira idade, mediante concep-es criadas sobre elas e as gestes que as tomam como objeto depolticas pblicas, no cenrio brasileiro contemporneo.

    Para tanto, foi a partir do encontro entre objeto e cartgrafo que

    os traados deste livro ganharam seus contornos. O que se pretendeno a configurao de um mapa, na sua totalidade homeosttica,nem o desvelamento de uma verdade antes oculta. Nossa ferramentade pesquisa incita a busca de percursos possveis, principalmenteaqueles investidos de bom sentido ou de um sentido verdadeiro, detal maneira que escapemos da captura de caminhos anteriormentedados.

    As primeiras paisagens de nossa cartografia foram avistadas aindana graduao, quando do encontro e experimentao com um grupode idosos que frequentavam as Oficinas de Psicologia, dentro doprojeto Universidade Aberta Terceira Idade, no campusda Unesp

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    de Assis.1A partir dessas oficinas, realizadas semanalmente e co-ordenadas por ns durante mais de quatro anos, surgiram algumasinquietaes sobre as vrias faces do envelhecimento. Rostos que nosapontavam as diferentes possibilidades de experimentaes, comoa vivncia do luto na viuvez, a constrio ou a expanso dos espaosde circulao social, a vida de senhora recatada, da apaixonada pelosbailes da terceira idade, da alegria de ser av, bisav, das dores quetomam conta do corpo, as perdas, a utilizao do tempo livre, assaudades e os projetos... Territrios que nos encorajaram a trilharos diversos percursos referentes a esse objeto to complexo, com

    diversas materialidades.Ao longo desses anos de experincia com o grupo de idosos, uma

    das oficinas foi deveras intrigante e, ao mesmo tempo, elucidativa.Com o intuito de construir um conceito de velhice, realizamos umaatividade na qual os participantes teriam de se expressar com gestos ecomportamentos tpicos, de acordo com as vrias idades da vida. Nafase referida infncia, eles a representaram de forma ldica, imitan-

    do brincadeiras e fazendo gracejos. O olhar sobre a adolescncia foicaracterizado por gestos tpicos, tais como um andar desmazelado, oemprego de uma fala com grias e trejeitos consumistas e frvolos. Afase adulta foi caracterizada pela escassez do tempo, na figura de umadulto envolto com seu trabalho, na correria do dia a dia. Por fim, aosolicitarmos que os idosos representassem a velhice, eles a caracteri-zaram como uma fase decrpita, como se o corpo estivesse em francoestgio de degenerescncia e runa. Esses gestos chamaram-nos aateno, pois percebemos claramente que o grupo no se via nessacondio de velhice. Afinal, que velhice era aquela significada poreles? E como esse grupo de fato se representava?

    1 As oficinas de psicologia com a terceira idade aconteceram semanalmente comum grupo de cerca de 25 idosos. O principal objetivo dessas atividades eraconstruir um espao grupal de expresso e compartilhamento de experincias

    comuns a essa faixa etria. A cada encontro, trabalhamos um tema elaboradopreviamente a partir de questes emergentes do prprio grupo ou dos coorde-nadores. A estrutura das oficinas era baseada no modelo de grupo-operativo dePichn-Rivire, contemplando atividades na direo do plano sensorial para ocognitivo e do individual para o coletivo.

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    Com base nessa atividade, percebemos que um novo movimentose engendrava entre a idade adulta e a velhice propriamente dita.Uma nova face que, aos poucos, foi se diferenciando do que habi-tualmente denominamos velhice. Estvamos lidando com a terceiraidade, que apresenta atributos prprios pela relao do homem comsua finitude, conforme discutiremos ao longo deste livro. Segura-mente, essa relao no a mesma, tal como foi vivida por geraesanteriores, nem segue um fluxo de tempo unidirecional. Portanto,trata-se de conhecer as materialidades que estruturam esses novosdesenhos do envelhecimento delineados na contemporaneidade,seja a partir do encontro direto com o campo de trabalho, seja naliteratura sobre o tema.

    Em nosso trabalho com idosos, iniciado ainda na graduao,pudemos entrar em contato com as mais diferentes histrias de vida.Dessa convivncia vinda de muitos encontros surgiram questes defundo sobre as expresses da condio da finitude humana, princi-palmente com as narrativas da experincia de vida dos integrantes

    do grupo, relevos de uma cartografia dotada de diferentes camposde enunciao.

    Para a construo dessa cartografia, foi possvel observar algunsdesenhos expressos em ensaios que se fizeram necessrios na compre-enso do fenmeno da descoberta da velhice na atualidade. Por isso,os objetos tericos a serem utilizados sero explicitados de acordocom a necessidade da anlise, no momento em que cada um deles

    for til leitura de um dado de pesquisa (Ferraz & Ferraz, 1994).Nesses anos de atuao com o grupo de idosos, pudemos realizar oregistro de algumas falas, histrias e imagens que sero empregadasconforme o desenrolar de nosso livro. importante ressaltar quehouve a permisso do grupo para o aproveitamento do materialproduzido nas oficinas, uma vez que esse material faz parte tambmda vida desta pesquisadora. Seu contedo est inscrito na memria

    e no pensamento.Em nosso livro, elegemos alguns percursos para mapearmos a

    condio da velhice e da terceira idade na contemporaneidade. Paratanto, na primeira parte deste livro, buscamos na literatura sobre o

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    tema a emergncia dessas categorias nas polticas pblicas e na cin-cia, especificamente na geriatria e na gerontologia. Tal ferramenta necessria e indispensvel para compreendermos as materialidades eos atributos envoltos no processo do envelhecimento humano, pois oaumento da populao idosa e a consequente aliana entre o Estadoe a cincia engendraram novas prticas e saberes que incidem sobrea velhice e a terceira idade hoje em dia.

    Ao interrogarmo-nos sobre a condio de envelhecimento nasociedade contempornea, alguns relevos cartogrficos emergiramem nosso livro, levando-nos a analisar sua relao com o tempo, oespao, a memria, o mercado capitalista e a linguagem, ou seja, ascondies de expresso das formas da velhice e da terceira idade naatualidade. Tais ensaios esto calcados na literatura sobre o tema eprincipalmente na nossa atuao com o grupo de idosos, uma vez quenessa relao sempre procurvamos questionar o lugar da velhice notempo presente.

    As cartas geogrficas no se pretendem findas e definitivas. Assim

    como as paisagens fsicas, as paisagens sociais tambm se modificam,ganham outros contornos. O olhar do cartgrafo constri uma pos-sibilidade de paisagem, mas o mapa expande-se para alm de seuscontornos. Por isso, a pesquisa deve comportar espaos vazios deinterlocuo e de recriao a partir do encontro entre cartgrafo e seucampo de trabalho. Esses espaos fazem-se necessrios a fim de quea pesquisa tenha autonomia e possa experimentar as perdas que o

    conhecimento impe, porque, de acordo com Kirst et al., o cartgrafotambm quer perder-se, pois o nico modo de ganhar: ganhara experincia de se rever e de manter um certo grau de desprendi-mento perante a pesquisa e conhecimento produzido (2003, p.97).Fundamentalmente, o que se pretende dar passagem s narrativase aos afetos da velhice, tantas vezes e por tanto tempo confinada esilenciada. Por conseguinte, esta cartografia no se constitui enquanto

    um fim, e sim como um meio.

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    2LINHASCARTOGRFICAS: AVELHICEEATERCEIRAIDADE

    A gesto do envelhecimento nas polticas pblicas

    Os pases em desenvolvimento envelhecero antes de se tor-

    narem ricos. Foi com um tom quase proftico que a coordenadorado Estudo Global sobre o Envelhecimento e a Sade Adulta daOrganizao Mundial da Sade (OMS), Somnath Chatterji, deu suadeclarao por ocasio da divulgao de um estudo realizado pelaOrganizao das Naes Unidas (ONU) sobre o envelhecimentoda populao mundial, em 11 de abril de 2007. De acordo com apesquisa, no ano de 2050, a populao idosa ser maior do que a de

    crianas pela primeira vez na Histria. Para Chatterji, as consequ-ncias econmicas e sociais motivadas por essas projees devem serobjeto de preocupao pblica e poltica: (...) minha mensagem que o envelhecimento da populao algo que deve ser abordado.H uma mudana dramtica que atingir tanto o mundo em desen-volvimento como o desenvolvido (idem, ibidem).

    Os dados da pesquisa demonstram que, no ano de 2050, as pes-

    soas com mais de 60 anos representaro 32% da populao mun-dial, triplicando dos 705 milhes atuais para quase dois bilhes. Asprojees indicam um significativo aumento do nmero de idosos,em nvel global. A Europa dever ter 35% de sua populao idosa;

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    a Amrica do Norte, 27%; a frica, 10%; a Amrica Latina, 24%,enquanto a populao infantil deve diminuir um tero, chegando a19% nos pases em desenvolvimento e a 16% nos chamados pasesdesenvolvidos.

    Dados como esses e tantos outros que dizem respeito vidahumana no so novidades na imprensa ou no meio cientfico. Oemprego de estatsticas e de projees em pesquisas que envolvemindicadores humanos constitui-se em uma estratgia para sensibilizare mobilizar tanto os indivduos quanto os governos para o que pareceser imprescindvel no corpo social: preciso gerir a vida da populao.

    Essa gesto (Castel, 1987; Foucalt, 2003 e 2006) envolve umasrie de expedientes que auxiliam a construo de um modelo degerncia da vida humana. A demografia um desses pilares. Deacordo com o Dicionrio Aurlio, demografia o estudo estatsticodas populaes, no qual se descrevem as caractersticas de umacoletividade, sua natalidade, migraes, mortalidade etc.. Para agesto da populao, essa ferramenta torna-se imperiosa, visto que

    est ligada aos dimensionamentos econmicos e sociais, ou seja, aoscustos despendidos no governo das populaes. Com base em indi-cadores, so elaboradas as polticas pblicas que ditam as formas deorganizao e gesto da vida humana.

    Os dados destacados pela ONU na recente pesquisa sobre oenvelhecimento mundial mais uma vez buscam alertar para a ne-cessidade de elaborar polticas para a velhice. Projees como essa

    datam de algumas dcadas atrs, quando a populao idosa adquiriuvisibilidade por meio da divulgao de estatsticas como as realiza-das pela ONU, pela OMS e pelo Instituto Brasileiro de Geografiae Estatstica (IBGE). Os dados levantados por essas organizaesbuscavam alertar os governos para a necessidade de um plano degesto do envelhecimento populacional, atribudo aos avanos damedicina, ao aumento da expectativa de vida e diminuio da taxa

    de natalidade. Dessa maneira, a inverso da pirmide etria acaboupor transformar-se em um problema de ordem pblica, principal-mente por acarretar demandas de investimento econmico dirigidopara a ateno a essa populao tida como economicamente inativa.

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    No caso do Brasil, a preocupao com a temtica do envelheci-mento populacional tambm se traduziu na divulgao de pesquisascujos dados demogrficos apontavam um aumento da populaoidosa em nosso pas (a este respeito ver Canoas, 1985; Haddad, 1986;Kaufmann, 1982; Magalhes, 1986; Martins, 1997; Salgado, 1978;Simes, 1998; Veras, 2003). Atualmente, segundo os dados do IBGE,o Brasil conta com uma populao de 13 milhes de habitantes commais de 60 anos, com estimativas de que, aps o ano de 2020, o Paster aproximadamente trinta milhes de idosos e poder ser consi-derado o sexto em populao idosa no mundo. A partir de pesquisascomo essa, que destacavam o inexorvel aumento do nmero deidosos, a velhice acabou por transformar-se em um novo problemasocial para o Pas.

    Desde a dcada de 1950, as pesquisas que abordam o envelhe-cimento populacional so amplamente divulgadas, com o intuitode chamar a ateno para o problema social emergente na poca.No entanto, no o fato isolado do aumento do nmero de idosos

    no pas que constitui por si s uma problemtica. Enquanto objetoconstrudo e produzido historicamente pela sociedade, a velhicetem implicaes polticas, econmicas e sociais que dizem respeito,inclusive, necessidade de dar visibilidade e de engendrar uma po-ltica de gesto e controle dessa populao em franco crescimento.O crescimento do nmero de idosos criou uma preocupao emdiversos segmentos da sociedade acerca dos velhos: o que fazer com

    esse contingente humano?Para Milnitzky et al., a velhice ganha visibilidade quando se pe

    em xeque a prpria sociedade, impondo-se como um risco social,que deve ser enfrentado com polticas pblicas (2004, p.59, grifosnossos). Que riscos sociais a velhice poderia trazer ao mundo pblico?Ao ser enquadrada como categoria de risco, a velhice torna-se umobjeto de gesto e controle social, j que o envelhecimento da popu-

    lao tornou-se uma espcie de ameaa continuao da sociedade(Debert, 1998 e 2004).

    Uma das grandes preocupaes de diversos governos refere-se previdncia social. No Brasil, essa questo tem suscitado muitas

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    discusses e reformas, sem que as medidas tomadas revertam napretendida melhora do que se denomina grande rombo nos cofresda previdncia. O aumento do nmero de idosos, nesse sentido, tido como um risco prpria continuidade dos benefcios da apo-sentadoria, hoje um direito universal em nosso pas.

    A emergncia da aposentadoria no contexto brasileiro pode sercompreendida como resultado de modificaes ocorridas nas prticasde assistncia populao carente (Groisman, 2001). Aos poucos, asempresas e o prprio Estado assumiram um papel at ento ocupadopelas entidades filantrpicas. A institucionalizao da aposentadoria,com base no critrio da idade, promoveu uma homogeneizao dessacamada da populao ao relacionar a velhice incapacidade para otrabalho:

    (...) a aposentadoria causou uma profunda modificao nos signifi-

    cados da velhice. Associando a velhice invalidez, tornou a idade

    um fator determinante para o afastamento do indivduo do trabalho,

    independentemente de suas reais condies de sade (idem, p.53).

    A palavra inativo, de acordo com o Dicionrio Aurlio, significainerte, ou seja, aquele que no age. Essa designao bastante utiliza-da no Brasil para referir-se aos aposentados. Inativos no trabalho ouna economia, como so chamados, muitos idosos aposentados tm-sededicado atualmente, contudo, a outras atividades de complemen-

    tao de renda. Em algumas cidades, h agncias especializadas emempregar esse tipo de mo de obra. A necessidade econmica ou odesejo de no se tornar inativo tm ajudado a promover outras pos-sibilidades de vivncia da aposentadoria que, presentemente, umimportante meio de sobrevivncia de diversas famlias sustentadaspor idosos, alm de constituir questo preocupante para alguns espe-cialistas, os quais acreditam ser necessria uma preparao adequada

    para entrar nessa nova fase da vida.A preocupao com a aposentadoria para a velhice, no Brasil

    (Haddad, 1986), data de 1923, quando foram criadas as Caixasde Aposentadoria e Penses (CAPs), inicialmente destinadas aos

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    ferrovirios, estendendo-se aos estivadores, em 1926. Desde 1930,somaram-se s CAPs os Institutos de Aposentadoria e Penses(IAPs), fundados pelo Estado a fim de atender apenas a algumasparcelas da populao urbana economicamente ativa, de acordocom determinadas categorias profissionais. Elaborada no governo deGetlio Vargas (1951-1954), a Lei Orgnica da Previdncia Social(LOPS) foi promulgada em 1960, no governo de Juscelino Kubits-chek, com o intuito de uniformizar a legislao previdenciria comrelao s contribuies salariais.

    Leis e portarias sobre a previdncia social foram construdas, der-rubadas e aprimoradas segundo diferentes governos que ocuparam apresidncia do Pas. possvel notar que, aos poucos, a previdnciasocial dirigida aos idosos adquire statusde poltica governamental,sendo necessria sua gerncia e controle. Os contornos de uma ve-lhice como um problema de Estado comeam a se delinear.

    Em 1966, foi criado o Instituto Nacional de Previdncia Social(INPS) e, em 1973, foi garantida ao segurado da previdncia a apo-

    sentadoria aos 60 anos para as mulheres e aos 65 para os homens. Achamada aposentadoria por velhice foi estabelecida a partir dos 65anos para mulheres e dos 70 para os homens. As garantias de apo-sentadoria normalizadas pela lei acontecem em um momento emque a sociedade civil inaugura o Movimento Pr-Idoso (Mopi), noano de 1972, o qual, junto a entidades pblicas e privadas, buscavapromover a integrao e a participao do idoso no campo social.

    Nota-se que h uma busca pelo reconhecimento do homem idosocomo parte integrante da sociedade, pleiteando-lhe um lugar e algummodo de participao.

    nos anos de chumbo da ditadura militar, mais especificamenteem 1974, que o ento presidente General Geisel assina a Lei no6179,que dispe sobre o amparo previdencirio para idosos acima de70 anos e para invlidos incapacitados pelo trabalho. O direito a meio

    salrio mnimo vigente ou a 60% do salrio do local de trabalho eragarantido aos trabalhadores contribuintes do INPS por um perodode pelo menos 12 meses. Esse benefcio, na poca muito comemoradoe elogiado, foi concedido em um momento em que se apregoava,

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    com ufanismo o milagre brasileiro. Sob a mscara de seguridadesocial, seu objetivo era reduzir a mendicncia na velhice, tida comoum problema nessa poca de domnio militar e de atos institucionais.Ou seja, mais uma estratgia para abrandar, mascarar a miserabi-lidade social com medidas populistas e paliativas, ainda hoje em-pregadas na mquina de produo de polticas de assistncia social.

    A criao, ainda em 1974, do Programa de Assistncia ao Idoso(PAI), ligado inicialmente ao INPS, procurou formar grupos deconvivncia com idosos segurados da previdncia, com o objetivode criar condies de promoo social dos participantes por meiode uma srie de aes como atividades fsicas, recreativas, culturaisetc. (Silva, 2006). No ano de 1977, esse programa foi expandidopara a Legio Brasileira de Assistncia Social e, em 1979, passou aser responsvel pela assistncia ao idoso em todo o Pas, em parceiracom ONGs, estados e municpios. Aos poucos, a velhice comea atornar-se objeto de gesto do Estado por intermdio de medidas quevisavam criar uma imagem de envelhecimento ativo com base em

    uma srie de programas direcionados aos idosos (Cardoso, 2004),como o j mencionado PAI, embrio dos atuais clubes voltados parao segmento chamado de terceira idade.

    A preocupao com o processo de envelhecimento populacionallevou, em 1978, criao de uma Comisso Parlamentar Mista deInqurito (CPMI), na Cmara dos Deputados Federais, a fim deinvestigar solues e prticas para a problemtica do idoso, uma vez

    que as estatsticas j alardeavam o crescimento do nmero de velhosno Pas (Salgado, 1978). Na ocasio, o professor de AdministraoRegional do SESC-SP, Marcelo Antnio Salgado, foi convidado pelosparlamentares para prestar depoimento sobre a atuao da referidaentidade com seu programa direcionado populao idosa.

    De acordo com a declarao de Salgado Comisso, a velhiceno se constitui por si s em um problema social e se diferencia das

    demandas sociais de outros nveis etrios. Na ocasio de seu depoi-mento, o professor questionou a falta de iniciativas polticas paracom os idosos, alegando que os governantes se voltavam somentepara a juventude, e alertava-os para a urgncia de uma poltica para

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    a velhice, principalmente no preparo do indivduo para a aposenta-doria, mantendo-o ativo e til, pois quando o aumento do nmerode idosos no pas no processado pela sociedade, a velhice passa aser um problema social e objeto de interveno poltica.

    Sob a gide do processo de envelhecimento populacional, perce-bemos que essa fase da vida acabou por transformar-se em uma novademanda social, com a necessidade da atuao direta do Estado naelaborao de polticas no direcionamento da ltima etapa da vida,para alm da questo previdenciria. Alm disso, a aposentadoria j sinalizada na fala de Marcelo Salgado como um objeto problem-tico, e seria necessria a preparao do indivduo para esse ritual depassagem para a velhice. Nesse sentido, a preocupao da medicinae do Estado tambm se voltar para esse aspecto da aposentadoria,principalmente na gesto e administrao do tempo ocioso do idosoaposentado, conforme veremos mais adiante.

    No Estado de So Paulo, em 1981, o ento governador Paulo Ma-luf props a criao do Programa Pr-Idoso, cujas diretrizes gerais

    focalizavam a necessidade de conscientizao e mobilizao social noatendimento ao idoso institucionalizado ou no, alm de treinamentode recursos humanos, levantamento de dados sobre a condio do ido-so e estabelecimento de contratos e convnios (Haddad, 1986, p.35).

    Com o objetivo de fomentar aes de promoo, preveno eassistncia, o programa visava, por meio da conscientizao e mo-bilizao popular, resgatar o papel da comunidade e da famlia no

    cuidado ao idoso, a fim de mant-lo no seio familiar. Essa estratgiademonstra que a velhice adquire um statusde preocupao polticacom o reconhecimento da necessidade de uma interveno do Estadono papel da famlia na sua relao com o idoso. De acordo com GuitaDebert, durante muito tempo considerada como prpria da esferafamiliar, uma questo de previdncia individual ou de associaesfilantrpicas, ela (a velhice) se transformou numa questo pblica

    (apud Groisman, 2001, p.44).Alm disso, com o treinamento de recursos humanos para o

    atendimento das pessoas idosas, possvel vislumbrar a tentativa deconstruir uma mo de obra especializada para a educao da velhice.

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    Foi na dcada de 1980 que a geriatria e a gerontologia comearam aganhar fora e abrangncia dentro do campo da cincia. Dessa forma,tornou-se necessrio formar e sensibilizar profissionais de diversasreas da sade no somente para o cuidado especfico dos idosos, mastambm para a consolidao de um saber e de uma categoria socialque emergia dentro do mbito da sade.

    Outras diretrizes do Programa Pr-Idoso suscitaram outros pro-cedimentos de gesto da velhice, como a atividade de levantamentode dados sobre as condies dos idosos. Ora, para gerir os corpos preciso que se saiba quem se est governando. possvel que, na po-ca da elaborao desse programa houvesse poucos dados referentesaos modos de vida do idoso, gerando a necessidade de conhecer esseobjeto, que comeava a ter visibilidade. Esse modelo de pesquisa comlevantamento de perfil de populao ainda bastante utilizado, prin-cipalmente com o intuito de conhecer as demandas da comunidadee implementar programas para a melhoria da qualidade de vida dosindivduos. Tais demandas no deixam de ser socialmente produzidas

    e incitadas, inclusive pelos mecanismos de gesto que atuam por meiode programas de assistncia, como os direcionados para a velhice. interessante notar que a diretriz seguinte do programa de PauloMaluf refere-se criao de contratos e convnios possivelmentepara a execuo de projetos de interveno.

    O plano elaborado para o idoso contou, ainda, com a elaboraode dois subprogramas: o de Assistncia Social ao Idoso Institucio-

    nalizado e o de Assistncia ao Idoso em Meio Aberto. Essa medidaconstitui uma tecnologia de controle social amplo, com vistas gesto dos corpos, seja nas instituies fechadas (asilos), seja emespaos sociais abertos. Dentre os objetivos desses dois programas,destacamos a valorizao do idoso como um ser socialmente til evinculado famlia e comunidade, por intermdio de atividadesocupacionais, grupos de convivncia, recreao etc. Nesse sentido,

    a velhice comea a emergir como um objeto com destinao utilitriano meio social, de alguma serventia ou proveito.

    O Programa Pr-Idoso no chegou a se concretizar enquantopoltica pblica, mas configura-se como um importante meio para

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    compreender a viso do Estado sobre a velhice, especialmente emuma poca em que ela comea a se tornar um problema social devidoao aumento do nmero de idosos no pas.

    No mesmo ano em que a ONU alertou os pases quanto ao in-discutvel aumento do nmero de velhos no mundo, foi institudo oAno Internacional do Idoso (Kaufmann, 1982; Martins, 1997). Naocasio, os pases integrantes dessa organizao foram convidadosa participar da Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, nacidade de Viena, de 26 de julho a 6 de agosto de 1982, com a presenade geriatras e gerontlogos de mais de cem pases.

    Ao final do evento, foi redigida a Carta de Viena, com um planode ao internacional sobre o envelhecimento, incluindo cerca de120 recomendaes aos pases participantes de sorte a alertar para anecessidade de um planejamento de uma poltica de atendimento aoidoso nas reas social, econmica, mdica e legal. Nesse documento,a afirmao de que o envelhecimento bem-sucedido seria possvelsomente se houvesse uma parceria entre o Estado e a sociedade civil

    j apontava a urgncia de adeso social frente aos planos de gesto davelhice, que deveria contemplar os campos da cidadania, da sade,moradia, trabalho e bem-estar. O Brasil, atendendo proposio daONU, instituiu no pas o Ano Nacional do Idoso, pelo decreto pre-sidencial no86.880, de 27 de janeiro de 1982, e criou uma ComissoNacional para estudar a problemtica da velhice que se delineava nocampo social brasileiro. No estado de So Paulo, a Lei Complemen-

    tar no3.464, de 26 de julho de 1982, instituiu o Dia do Idoso, a sercomemorado no dia 21 de setembro.

    A preocupao mundial com o envelhecimento global, conformepodemos perceber, data de mais de vinte anos, com divulgao deestatsticas, previses, alertas e pesquisas que cada vez mais afirmama necessidade de ter o controle social da populao que envelhece.De acordo com Edna Martins,

    pesquisas sobre o envelhecimento e as vrias fases da vida adulta

    so relativamente recentes. Consideradas incipientes nas primeiras

    dcadas desse sculo (XX), foi a partir dos anos 50 que se assiste

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    exploso de trabalhos cientficos sobre o envelhecimento, ganhando

    fora e se firmando nos anos 70 e hoje, em todas as reas, esto em

    franca expanso, revelando a preocupao gerada pelo acelerado

    aumento de sexagenrios do mundo. (1994, p.22)

    Ao mesmo tempo em que se produz o aumento da expectativa devida, atribudo principalmente s cincias, tem-se uma preocupaogeneralizada com esse contingente humano que exibe uma srie deimplicaes que sero tomadas como objeto de gesto da velhice:grande nmero de aposentados, que representam um problema paraos cofres da previdncia; uma populao que possui amplo tempolivre, o que tambm pode ser visto como uma questo de gesto; como aumento do nmero de velhos, h tambm um aumento de gastoscom essa populao no sistema de sade pblica. Dessa maneira, acriao de polticas pblicas para a velhice respondeu a uma neces-sidade frente ao grande desafio na direo e controle dos rumos doenvelhecimento.

    Ainda no ano de 1982, no Estado de So Paulo, foi assinada aportaria no2.864 (Haddad, 1986), que dispunha sobre uma srie dejustificativas para uma poltica assistencial para a velhice. Dentreelas, destacamos os servios prestados pelas entidades assistenciaisdo governo que, de acordo com a referida portaria, seriam de naturezapreventiva, teraputica e promocional no atendimento s pessoasidosas. As aes de natureza preventiva deveriam ser dirigidas para

    o desenvolvimento de atitudes positivas frente ao envelhecimento.No caso das aes teraputicas, elas se orientariam para o tratamentode dificuldades e de problemas referentes aos idosos. Por fim, asatitudes promocionais deveriam proporcionar ao idoso condiesde ser socialmente til junto famlia e sociedade.

    Percebe-se que as polticas pblicas assistenciais se dirigem nosentido de uma tentativa de otimizao da figura do idoso, tornando-o,

    de alguma forma, til sociedade. O discurso dos estudiosos doenvelhecimento (Debert, 2004), na dcada de 1980, enfatizava que oEstado, o sistema capitalista e a cultura brasileira eram responsveispela desvalorizao do idoso, um sujeito sem lugar na organizao

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    social, por ser considerado inativo economicamente, um nus para asociedade. Assim, as polticas voltadas para a velhice comeam a tera tnica de propor programas de promoo