2009 Manual Cooperac%c3%a3oCivil

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Ministrio da Justia Secretaria Nacional de Justia Departamento de Recuperao de Ativos e Cooperao Jurdica Internacional

Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de AtivosCooperao em Matria Civil

1a. Edio

Braslia

MINISTRIO DA JUSTIAMINISTRO De eSTADO DA JUSTIA Tarso Genro SeCReTRIO exeCUTIvO DO MINISTRIO DA JUSTIA Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto SeCReTRIO NACIONAl De JUSTIA Romeu Tuma Jnior DIReTORIA DO DepARTAMeNTO De ReCUpeRAO De ATIvOS e COOpeRAO JURDICA INTeRNACIONAl Marcilndia de Ftima Arajo - Diretora Arnaldo Jos Alves Silveira - Adjunto COORDeNADOR-GeRAl De COOpeRAO JURDICA INTeRNACIONAl Boni de Moraes Soares eqUIpe DA COORDeNAO-GeRAl De COOpeRAO JURDICA INTeRNACIONAl Fabiana Vieira de Queiroz Luciana Dinah Ribeiro Helou Hozani Pereira de Siqueira Maria Zlia da Silva Britto Larisse Cavalcante Lino Corra Mnica Bulhes e Silva eSTAGIRIOS Diego Antnio Maia Vinhas Gabriel Luiz Arajo Clemente Guilherme de Carvalho Sigmaringa Seixas TRADUO Ricardo de Oliveira Nemetala (ingls-portugus) Sheila Maria Batista Alves (espanhol-portugus) RevISO: Cidlia SantAna Stia Marini pROJeTO GRfICO e DIAGRAMAO: Artecor Grfica e Editora CApA: Marcelo Moreles Arevalos TIRAGeM: 5.000 Distribuio Gratuita

permitida a reproduo total ou parcial desta publicao desde que citada a fonte. Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos - Matria Civil. Departamento de Recuperao de Ativos e Cooperao Jurdica Internacional, Secretaria Nacional de Justia, Ministrio da Justia. 1a ed. Braslia:2008. Total de pginas: 412 p. I. Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos. II. Departamento de Recuperao de Ativos e Cooperao Jurdica Internacional. III. Secretaria Nacional de Justia. Artecor Grfica e Editora Ltda, 2008Secretaria Nacional de Justia Ministrio da Justia

ApresentaoO mundo globalizado vivencia uma crescente circulao de pessoas, bens e servios. Como conseqncia, os Estados passam a enfrentar situaes nas quais necessitam de auxlio para o exerccio da jurisdio. A cooperao entre os Estados no mbito jurdico faz-se, assim, imprescindvel e, por isso, constitui rea de grande desenvolvimento nos dias atuais. Dentro desse contexto, o Ministrio da Justia diariamente exerce atividades que envolvem a cooperao jurdica internacional por meio do Departamento de Recuperao de Ativos e Cooperao Jurdica Internacional, da Secretaria Nacional de Justia. Em auxlio aos operadores jurdicos brasileiros, sua atuao de fundamental importncia na instruo e na tramitao de cartas rogatrias, de pedidos de auxlio jurdico direto, bem como na ampliao do dilogo com as autoridades estrangeiras para o aperfeioamento da cooperao. Pensando na necessidade de divulgao da cooperao jurdica internacional nos crculos jurdicos brasileiros, bem como no aperfeioamento da elaborao dos pedidos de cooperao por nossos operadores, a Secretaria Nacional de Justia apresenta este Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos. Composto por dois livros - que dividem a cooperao em matria civil da cooperao em matria penal -, o Manual fruto do esforo da equipe do Departamento de Recuperao de Ativos e Cooperao Jurdica Internacional, de representantes de outras instituies nacionais que trabalham com o tema e da colaborao de renomados juristas brasileiros. Os planos da Secretaria Nacional de Justia vo alm da simples publicao deste documento, para alcanar a edio futura de novas verses do Manual. Nesse sentido, colocamo-nos disposio dos leitores para receber qualquer crtica ou sugesto de melhoria do texto atual. Acreditamos que essencial atuar na disseminao da matria em nosso pas, da qual deve resultar uma cooperao jurdica internacional cada vez mais efetiva. Para tanto, eis a nossa contribuio institucional. Romeu Tuma Jnior Secretrio Nacional de Justia

SUMRIO1. A COOpeRAO JURDICA INTeRNACIONAl .................................................. 09 A Cooperao Jurdica Internacional e o Propsito deste Manual.............................11 Tarso Genro Autoridade Central e seu Papel na Cooperao Jurdica Internacional .....................15 Romeu Tuma Jnior Mecanismos de Cooperao Jurdica Internacional no Brasil....................................21 Jos Antonio Dias Toffoli Virgnia Charpinel Junger Cestari Carta Rogatria e Cooperao Internacional ..............................................................31 Gilson Langaro Dipp A importncia da Cooperao Jurdica Internacional para a Atuao do Estado Brasileiro no Plano Interno e Internacional................................................................. 39 Nadia de Araujo Adoo Internacional ...................................................................................................49 Coordenao-Geral de Cooperao Jurdica Internacional Alimentos ..................................................................................................................... 50 Coordenao-Geral de Cooperao Jurdica Internacional Busca e Apreenso de Menores..................................................................................52 Coordenao-Geral de Cooperao Jurdica Internacional 2. ROTeIRO DA TRAMITAO INTeRNA DA COOpeRAO eM MATRIA CIvIl ... 55 Roteiro Explicativo....................................................................................................... 57 Fluxograma - Pedidos de Cooperao Passiva ......................................................... 61 Fluxograma - Pedidos de Cooperao Ativa .............................................................. 65 3. peDIDOS De COOpeRAO JURDICA INTeRNACIONAl ............................... 67 3.1. Carta Rogatria Modelo Simplificado de Carta Rogatria ............................................................71 Exemplo de Preenchimento 1 ..............................................................................72 Exemplo de Preenchimento 2 ..............................................................................74 3.2. Formulrios A e B do Protocolo Adicional Conveno Interamericana sobre Cartas Rogatrias Exemplo de Preenchimento..................................................................................79 3.3. Formulrio do Convnio de Cooperao Judiciria em Matria Civil entre o Governo da Repblica Federativa do Brasil e o Reino da Espanha Exemplo de Preenchimento..................................................................................85

4. ORIeNTAeS pOR pAS pARA SOlICITAO De COOpeRAO JURDICA INTeRNACIONAl ................................................................................................... 87 Alemanha .......................................................................................................................... 89 Angola ............................................................................................................................... 91 Argentina ........................................................................................................................... 92 ustria ............................................................................................................................... 94 Bahamas ........................................................................................................................... 96 Blgica .............................................................................................................................. 97 Bolvia ................................................................................................................................ 99 Canad ............................................................................................................................ 101 Chile ............................................................................................................................... 103 China ............................................................................................................................... 107 Cingapura ....................................................................................................................... 109 Colmbia ......................................................................................................................... 110 Coria do Sul .................................................................................................................. 112 Costa Rica ....................................................................................................................... 113 Equador .......................................................................................................................... 115 Espanha .......................................................................................................................... 117 Estados Unidos da Amrica ........................................................................................... 120 Frana ............................................................................................................................. 122 Hong Kong ...................................................................................................................... 124 Irlanda do Sul .................................................................................................................. 126 Israel ............................................................................................................................... 129 Itlia ............................................................................................................................... 131 Japo .............................................................................................................................. 133 Lbano ............................................................................................................................. 137 Mxico ............................................................................................................................. 138 Nicargua ........................................................................................................................ 140 Pases Baixos (Holanda) ................................................................................................. 142 Panam ........................................................................................................................... 144 Paraguai .......................................................................................................................... 146 Peru ............................................................................................................................... 150 Portugal ........................................................................................................................... 152 Reino Unido (Gr-Bretanha) ........................................................................................... 154 Sua ............................................................................................................................... 156 Uruguai............................................................................................................................ 158 Venezuela ........................................................................................................................ 160 5. qUADRO DeMONSTRATIvO DOS TRATADOS De COOpeRAO JURDICA INTeRNACIONAl AplICADOS NO BRASIl (MATRIA CIvIl, COMeRCIAl, TRABAlHISTA e ADMINISTRATIvA) .................................................................. 163

6. ATOS NORMATIvOS ............................................................................................ 176 Constituio da Repblica Federativa do Brasil....................................................... 177 Lei de Introduo ao Cdigo Civil - Decreto-Lei n 4.657 de 4 de setembro de 1942 ...181 Cdigo de Processo Civil Brasileiro - Lei n 5.869, de 11 de janeiro de 1973 ........ 187 Resoluo n 9, de 4 de maio de 2005, do Superior Tribunal de Justia .............. 193 Portaria Interministerial n 26, de 14 de agosto de 1990, do Ministrio da Justia e do Ministrio das Relaes Exteriores .................................................................. 197 6.1. Acordos Multilaterais Conveno sobre a Prestao de Alimentos no Estrangeiro Decreto n 56.826, de 2 de setembro de 1965 ................................. 207 Texto da Conveno ........................................................................... 208 Conveno sobre os Aspectos Civis do Seqestro Internacional de Crianas Decreto n 3.413, de 14 de abril de 2000 .......................................... 219 Texto da Conveno ........................................................................... 220 Conveno relativa Proteo das Crianas e Cooperao em Matria de Adoo Internacional Decreto n 3.087, de 21 de junho de 1999 ........................................ 235 Texto da Conveno ........................................................................... 236 Conveno Interamericana sobre Cartas Rogatrias Decreto n 1.899, de 9 de maio de 1996 .......................................... 253 Texto da Conveno ........................................................................... 254 Protocolo Adicional Conveno Interamericana sobre Cartas Rogatrias Decreto n 2.022, de 7 de outubro de 1996 ...................................... 263 Texto do Protocolo.............................................................................. 264 Conveno Interamericana sobre Prova e Informao acerca do Direito Estrangeiro Decreto n 1.925, de 10 de junho de 1996 ........................................ 277 Texto da Conveno ........................................................................... 278 Conveno Interamericana sobre Obrigao Alimentar Decreto n 2.428, de 17 de dezembro de 1997 ................................ 285 Texto da Conveno ........................................................................... 286 Conveno Interamericana sobre a Restituio Internacional de Menores Decreto n 1.212, de 3 de agosto de 1994 ........................................ 297 Texto da Conveno ........................................................................... 298 Conveno Interamericana sobre Trfico Internacional de Menores Decreto n 2.740, de 20 de agosto de 1998 ...................................... 309 Texto da Conveno ........................................................................... 310

Protocolo de Cooperao e Assistncia Jurisdicional em Matria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa - MERCOSUL Decreto n 2.067, de 12 de Novembro de 1996 ................................ 321 Texto do Protocolo.............................................................................. 322 Protocolo de Medidas Cautelares - MERCOSUL Decreto n 2.626, de 15 de junho de 1998 ........................................ 333 Texto do Protocolo.............................................................................. 334 Acordo sobre o Benefcio da Justia Gratuita e a Assistncia Jurdica Gratuita entre os Estados-Partes do MERCOSUL, a Repblica da Bolvia e a Repblica do Chile Decreto n 6.679, de 8 de dezembro de 2008 .................................. 343 Texto do Acordo.................................................................................. 344 6.2. Acordos Bilaterais Conveno entre o Brasil e a Blgica sobre Assistncia Judiciria Gratuita Decreto n 41.908, de 29 de julho de 1957 ....................................... 351 Texto da Conveno ........................................................................... 352 Convnio de Cooperao Judiciria em Matria Civil, Repblica Federativa do Brasil e o Reino da Espanha entre o Governo da

Decreto n 166, de 3 de julho de 1991 ............................................. 357 Texto do Convnio .............................................................................. 358 Acordo de Cooperao em Matria Civil entre o Governo da Repblica Federativa do Brasil e o Governo da Repblica Francesa Decreto n 3.598, de 12 de setembro de 2000 ................................. 373 Texto do Acordo.................................................................................. 374 Tratado Relativo Cooperao Judiciria e ao Reconhecimento e Execuo de Sentenas em Matria Civil entre a Repblica Federativa do Brasil e a Repblica Italiana Decreto n 1.476, de 2 de maio de 1995 ........................................... 385 Texto do Tratado ................................................................................. 386 Acordo sobre Assistncia Judiciria entre o Brasil e o Japo - Troca de notas no dia 23 de setembro de 1940 I - Nota do Governo Brasileiro ............................................................ 395 II - Nota da Embaixada do Japo ....................................................... 396 Conveno entre os Estados Unidos do Brasil e o Reino dos Pases Baixos (Holanda) Decreto n 53.923, de 20 de maio de 1964 ....................................... 399 Texto da Conveno ........................................................................... 400 Conveno sobre Assistncia Judiciria Gratuita entre o Brasil e Portugal Decreto Legislativo n 26, de 25 de outubro de 1963 ....................... 405 Texto da Conveno ........................................................................... 406 Acordo relativo ao Cumprimento de Cartas Rogatrias entre o Brasil e Portugal - Troca de Notas nos dias 23 e 29 de agosto de 1895 I - Nota do Consul geral de Portugal .................................................. 411 II - Nota do Governo Brasileiro ........................................................... 412

A Cooperao Jurdica Internacional e o propsito deste ManualTarso Genro Ministro da Justia

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A Necessidade da Cooperao Jurdica Internacional

O fenmeno da globalizao, tradicionalmente reconhecido por transformar setores como a economia e o comrcio internacional, causa, tambm, vrios reflexos no ambiente jurdico mundial e nacional. De fato, a idia de um mundo sem fronteiras j modificou a forma pela qual conceitos tradicionais como a soberania e o acesso justia so definidos e aplicados. O conceito de que um Estado tem o direito e o dever de zelar pela justia em sua jurisdio est diretamente relacionado com o prprio conceito de Estado e de soberania. Tradicionalmente, a cooperao jurdica vista como o resguardo de interesses entre Estados: por um lado, o interesse de um Estado em solicitar auxlio ou cooperao e, por outro, a soberania do Estado requerido na hora de responder solicitao de auxlio1. Hoje em dia, no entanto, j no se pode vincular os conceitos tradicionais de soberania cooperao jurdica internacional. A cooperao jurdica entre Estados pode ser vista, de certa forma, como um meio de preservar a prpria soberania. No existe uma definio absoluta de soberania. No entanto, no mbito da cooperao jurdica internacional, a soberania pode ser vista como o poder do Estado em relao s pessoas e coisas dentro de seu territrio2. Assim, a soberania representa um rol de competncias e poderes sobre um determinado territrio e obedece a princpios e regras que lhe imporo restries e limites3. Dessa forma, cabe ao Estado soberano proteger-se de ingerncias externas4 e, ao mesmo tempo, garantir o seguimento e a execuo das regras estabelecidas em seu territrio. De acordo com os conceitos de soberania acima narrados, cada Estado tem seu prprio servio jurisdicional e capaz de julgar e fazer executar o julgado somente dentro de seu territrio5. Quando certos atos processuais devam ser desenvolvidos no territrio de outro Estado, faz-se necessria a cooperao jurdica. Nesse contexto, a negativa cooperao pode causar uma frustrao do interesse legtimo das partes6, limitando o direito e o dever do Estado requerente de resguardar o andamento da Justia em seu territrio.1

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GONZLEZ, S. A.; REMACHA Y TEJADA, J. R. (org.) Cooperacin Jurdica Internacional. Coleccin Escuela Diplomtica, n 5. Madri, Boletin Oficial del Estado, 2001. p. 61. LITRENTO, Oliveiros. Curso de direito internacional pblico. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 116. GOYARD-FABRE, Simone. Os Fundamentos da Ordem Jurdica. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 2. REZEK, Franscico. Direito Internacional Pblico: Curso Elementar. 10. ed. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 225. GONZLEZ, S. A.; REMACHA Y TEJADA, J. R. (org.) Cooperacin Jurdica Internacional. Coleccin Escuela Diplomtica, n 5. Madri, Boletin Oficial del Estado, 2001. p. 65. id. Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 11

A necessidade da cooperao jurdica internacional resta ainda mais clara considerando que as mudanas tecnolgicas e polticas e o aumento no deslocamento de pessoas e bens entre fronteiras tm causado maior interesse por parte dos Estados no estabelecimento de regras e procedimentos especficos que possibilitem e facilitem o acesso justia para alm das fronteiras7. Hoje em dia, as partes e as provas de um processo judicial podem estar espalhadas por vrias jurisdies. Conseqentemente, para dar andamento a seus processos jurdicos, um Estado deve recorrer a outra jurisdio para obter as aes por ele buscadas. Em tais situaes, a cooperao entre Estados transformou-se em uma das maneiras mais viveis para resguardar o andamento da Justia. Portanto, um ato de cooperao, que tradicionalmente poderia ser visto como uma violao da soberania de Estados, hoje em dia, pode ser reconhecido como uma forma de manuteno de um novo conceito de soberania, estabelecido pelas atuais relaes entre Estados. Assim, o direito e o dever de um Estado soberano na manuteno de sua Justia permaneceriam resguardados. Portanto, a cooperao jurdica internacional garante o direito de o Estado e seus cidados processarem e julgarem litgios de sua competncia, mesmo quando elementos indispensveis conduo do processo se encontrem em jurisdio estrangeira.

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O propsito deste Manual de Cooperao Jurdica Internacional

A experincia do Ministrio da Justia como Autoridade Central brasileira para a cooperao jurdica internacional demonstra que os nmeros de pedidos de auxlio direto e cartas rogatrias que transitam no Brasil so crescentes. Em 2004, por exemplo, tramitaram pelo Departamento de Recuperao de Ativos e Cooperao Jurdica Internacional da Secretaria Nacional de Justia (DRCI-SNJ) cerca de 2.907 solicitaes de cooperao jurdica. Esse nmero aumentou consideravelmente para aproximadamente 3.653 solicitaes no ano de 2007. Os nmeros acima explanados apontam para uma crescente importncia da cooperao jurdica internacional para a Justia brasileira. Cabe ressaltar que dentre esses nmeros encontram-se casos de grande relevncia para o Brasil. Tramitam no DRCISNJ, por exemplo, mais de 600 casos relacionados recuperao de ativos enviados ao exterior ilicitamente. Os referidos casos de recuperao de ativos incluem processos de grande repercusso no Brasil e no mundo, relacionados a organizaes criminosas transnacionais e a crimes como corrupo e lavagem de dinheiro. Outras solicitaes de cooperao jurdica internacional de grande relevncia para a comunidade brasileira, como pedidos de prestao de alimentos, tambm tramitam diariamente pela Autoridade Central brasileira. Desde 2004 foram protocoladas no DRCISNJ cerca de 2.532 solicitaes de cooperao jurdica para prestao internacional de alimentos. Esse nmero representa algo prximo a 38% de toda a cooperao em matria civil que tramita no Brasil.7

McLEAN, David. International Co-operation in Civil and Criminal Matters, Oxford, Oxford University Press, 2002. DRCI/SNJ

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Cabe ressaltar ainda que, no geral, o Brasil um pas requerente de cooperao jurdica. Em outras palavras: ns solicitamos mais cooperao do que recebemos solicitaes. Dessa forma, de suma relevncia que as autoridades brasileiras dominem os procedimentos necessrios obteno de cooperao jurdica, para que, assim, as solicitaes brasileiras sejam cada vez mais eficientes. Pelas experincias acima narradas, o Ministrio da Justia est cada vez mais convencido da importncia da cooperao jurdica internacional e da necessidade de investir na habilidade do Estado brasileiro cooperar e, principalmente, solicitar, de forma eficaz, cooperao jurdica internacional. No entanto, tratando-se de atos entre jurisdies, a cooperao jurdica internacional deve seguir regras estabelecidas pelo Estado cuja cooperao requerida ou, em alguns casos, poder tambm seguir normas adotadas no mbito internacional. Assim, para se obter a cooperao desejada, necessrio que a solicitao de cooperao seja formulada de acordo com os requisitos apropriados para cada caso. Para tanto, as autoridades brasileiras que desejam solicitar cooperao jurdica de outro Estado devem ser instrudas sobre a melhor forma de proceder. Por reconhecer a importncia da cooperao jurdica internacional para a Justia brasileira, e por estar ciente da necessidade de instruir as autoridades brasileiras sobre a melhor forma de obter a cooperao jurdica internacional, o Ministrio da Justia elaborou este Manual de Cooperao Jurdica Internacional. O propsito deste Manual disponibilizar informaes pontuais sobre a cooperao jurdica internacional e seus mecanismos, bem como informaes relevantes sobre os requisitos para realizao da cooperao com pases especficos. Ademais, por meio deste Manual, o Ministrio da Justia encontrou uma maneira adequada de difundir conhecimentos reunidos durante sua experincia como Autoridade Central para a cooperao jurdica internacional. Este Manual servir tambm como guia para as autoridades brasileiras que desejam solicitar a cooperao jurdica de outros pases. Inicialmente, os leitores encontraro textos, elaborados por autoridades brasileiras e por membros da academia, que abrangem, de forma simples e didtica, temas fundamentais para a melhor compreenso da cooperao jurdica internacional e sua utilizao no mbito nacional e global. Em seguida, o leitor encontrar informaes pontuais, reunidas pelo Ministrio da Justia, sobre a cooperao jurdica com pases especficos. O texto referente a cada pas foi elaborado de forma a reunir as informaes mais importantes para a obteno da cooperao com aquele pas. Ademais, foram elaborados textos explicativos sobre as convenes multilaterais referentes cooperao jurdica internacional ratificadas pelo Brasil. Por esses motivos, o Ministrio da Justia apresenta o Manual de Cooperao Jurdica Internacional.

Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 13

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Bibliografia

GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurdica. So Paulo: Martins Fontes, 2002. GONZLEZ, S. A.; REMACHA Y TEJADA, J. R. (org.). Cooperacin jurdica internacional. Coleccin Escuela Diplomtica, n 5. Madri, Boletin Oficial del Estado, 2001. LITRENTO, Oliveiros. Curso de direito internacional pblico. 4a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. MAGALHES, Jos Carlos. Competncia internacional do juiz brasileiro e denegao de Justia. Revista dos Tribunais, So Paulo v. 630. 1988. p. 152. McLEAN, David. International co-operation in civil and criminal matters. Oxford: Oxford University Press, 2002. REALE, Miguel. Teoria do direito e do Estado. 2a. ed. So Paulo: Martins, 1960. REZEK, Francisco. Direito internacional pblico: curso elementar. 10a. ed. So Paulo: Saraiva, 2005.

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DRCI/SNJ

Autoridade Central e seu papel na Cooperao Jurdica InternacionalRomeu Tuma Jnior Secretrio Nacional de Justia

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Noes Iniciais

A Autoridade Central um rgo administrativo que centraliza a cooperao jurdica internacional. Desde seu surgimento nos primeiros tratados de cooperao jurdica internacional, na dcada de 60 do sculo passado, a Autoridade Central foi concebida com o propsito de facilitar as relaes entre os Estados-Partes de determinado tratado de cooperao jurdica internacional, por meio da unificao de todas as suas atribuies em uma s instituio. A idia que um nico rgo especializado nas funes administrativas exercidas na cooperao jurdica possa aprimorar essa forma de relao entre os Estados, de modo a tornar a cooperao mais clere e eficaz. Isso representa o advento de um segundo estgio de comunicao que surge na cooperao jurdica internacional, posterior quele em que tal comunicao somente ocorria pelos canais diplomticos. Nesse sentido, possvel perceber a importncia do trabalho administrativo desenvolvido pela Autoridade Central em todas as fases da cooperao internacional, desde a chegada do pedido de cooperao em determinado pas at sua devoluo, passando por todos os esforos que visam a assegurar a satisfao dos interesses do Estado estrangeiro que o solicita. Alm disso, o trabalho administrativo exercido pela Autoridade Central muito diversificado. Pode-se atuar em pedidos que solicitam desde uma simples comunicao de atos processuais at a obteno de uma deciso judicial para atender aos interesses do outro Estado. por isso que se deve encarar a Autoridade Central como rgo que busca a efetividade da cooperao, e no como um rgo que simplesmente envia e recebe documentos. A Autoridade Central, por bvio, no o nico rgo estatal envolvido na cooperao jurdica internacional. O Ministrio das Relaes Exteriores, por meio da Secretaria de Estado das Relaes Exteriores e de seus rgos no exterior, exerce papel de relevncia na formulao da poltica externa referente cooperao jurdica e na tramitao dos pedidos de cooperao que seguem pelos canais diplomticos. A Advocacia-Geral da Unio e o Ministrio Pblico, por sua vez, so imprescindveis para o exerccio da representao judicial quando necessrio obter uma deciso judicial em nosso territrio.Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 15

O Poder Judicirio, como no poderia ser diferente, exerce com absoluta integridade o papel de guardio das leis brasileiras e da Constituio Federal no que toca cooperao internacional, ao proferir, por exemplo, o juzo de delibao nos pedidos de cooperao feitos por meio de carta rogatria ou ao de homologao de sentena estrangeira. Alm destes, rgos como Polcia Federal, Receita Federal e Controladoria-Geral da Unio atuam de modo relevante, dentro de suas esferas de atribuio, para que a cooperao jurdica desenvolvida pelo Brasil seja desempenhada com sucesso. A cooperao internacional algo que antecede o surgimento das Autoridades Centrais. Desde que passaram a atuar, essas lanaram mo dos instrumentos de cooperao internacional ento conhecidos. A carta rogatria, como se sabe, a forma clssica de realizar cooperao, pela qual, via de regra, um juzo pede a ajuda de outro, em jurisdio estrangeira, para a prtica ou comunicao de determinado ato processual. Nas ltimas dcadas, todavia, crescente a substituio da carta rogatria pelo mecanismo de cooperao chamado, entre ns, de auxlio direto1. Por ele, no h um pedido de cooperao de um juzo para outro, mas a busca de uma deciso genuinamente estrangeira que se refira a um litgio interno. No auxlio direto, o papel das Autoridades Centrais ainda mais importante, no sentido de auxiliar o interessado a propor sua demanda da melhor maneira possvel, valendo-se da utilizao dos rgos nacionais do Estado onde desejada a obteno de algum provimento judicial. Alm disso, quando estabelecida em tratado, a cooperao por meio de Autoridades Centrais pode trazer ao ordenamento jurdico brasileiro algumas regras que tornam a cooperao mais clere, como a dispensa de legalizao e autenticao de documentos, a dispensa de traduo juramentada, o provimento de assistncia jurdica gratuita, a estipulao legal de prioridade em favor do procedimento, a comunicao direta entre Autoridades Centrais, entre outras. A doutrina enfatiza os benefcios que advm da cooperao por meio de Autoridades Centrais: A transmisso e o recebimento da cooperao jurdica internacional via Autoridades Centrais constitui a forma moderna de ajuda jurdica internacional, existente primeiro na cooperao civil e comercial e agora tambm na [cooperao] penal. Trata-se de um procedimento que permite uma comunicao gil e tcnica entre as autoridades requerente e requerida, capaz de superar os encadeamentos burocrticos que tornam lento o processo, prprios da tradicional via diplomtica ou consular (traduo nossa)2.1

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BRASIL. Resoluo n 9, de 4 de maio de 2005. Dispe, em carter transitrio, sobre competncia acrescida ao Superior Tribunal de Justia pela Emenda Constitucional n 45/2004. Disponvel em: . Acesso em: 09 abr. 2008. BERGMAN, Eduardo Tellechea. Cometidos y funcionamiento de la autoridad central en el Tratado de Asistencia Juridica Mutua en Asuntos Penales entre la Republica Oriental del Uruguay y los Estados Unidos de Amrica, especialmente en lo relativo al rehusamiento de la cooperacion impetrada. In: ARAJO, Joo Marcelo de (Org.). Curso de cooperacion penal internacional. Montevideo: Carlos Alvarez, 1994. p. 209. DRCI/SNJ

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Autoridades Centrais no Brasil

No Brasil, foi designada para exercer o papel de Autoridade Central em cooperao jurdica internacional a Secretaria Nacional de Justia, por meio do Departamento de Recuperao de Ativos e Cooperao Jurdica internacional (DRCI), criado pelo Decreto n 4.991, de 18 de fevereiro de 2004. Atualmente, o regramento dessa atribuio est presente no Anexo I do Decreto n 6.061/2007, que assim dispe, especificamente: Art.11. Ao Departamento de Recuperao de Ativos e Cooperao Jurdica Internacional compete: I - articular, integrar e propor aes do Governo nos aspectos relacionados com o combate lavagem de dinheiro, ao crime organizado transnacional, recuperao de ativos e cooperao jurdica internacional; II - omissis; III - negociar acordos e coordenar a execuo da cooperao jurdica internacional; IV - exercer a funo de autoridade central para tramitao de pedidos de cooperao jurdica internacional; V - coordenar a atuao do Estado brasileiro em foros internacionais sobre preveno e combate lavagem de dinheiro e ao crime organizado transnacional, recuperao de ativos e cooperao jurdica internacional; VI - instruir, opinar e coordenar a execuo da cooperao jurdica internacional ativa e passiva, inclusive cartas rogatrias; e VII - promover a difuso de informaes sobre recuperao de ativos e cooperao jurdica internacional, preveno e combate lavagem de dinheiro e ao crime organizado transnacional no Pas3. H, todavia, designao de outros rgos para exercer as funes de Autoridade Central no Brasil, em alguns casos especficos, quais sejam: 1) Conveno da Haia sobre os Aspectos Civis do Seqestro Internacional de Menores, de 1980; e Conveno da Haia sobre Cooperao Internacional e Proteo de Crianas e Adolescentes em Matria de Adoo Internacional, de 1993. Para essas duas Convenes, a Autoridade Central a Secretaria Especial de Direitos Humanos4.3

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BRASIL. Decreto n 6.061, de 14 de maro de 2007. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comisso e das Funes Gratificadas do Ministrio da Justia, e d outras providncias. Disponvel em: . Acesso em: 09 abr. 2008. BRASIL. Decreto n 5.174, de 9 de agosto de 2004. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comisso da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, rgo integrante da Presidncia da Repblica, e d outras providncias. Disponvel em: . Acesso em: 09 abr. 2008. Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 17

2) Conveno de Nova Iorque sobre Prestao de Alimentos no Estrangeiro, de 1956; e o Tratado de Auxlio Mtuo em Matria Penal entre o Governo da Repblica Federativa do Brasil e o Governo da Repblica Portuguesa, de 1991. Em ambos, as atribuies de Autoridade Central so desempenhadas pela Procuradoria Geral da Repblica5. A Secretaria Nacional de Justia possui estrutura e capital humano qualificados para bem desempenhar as tarefas que se anunciam no cenrio da cooperao jurdica internacional. Se comparado aos dados de 2004, quando o DRCI foi criado, o nmero de pedidos de cooperao jurdica internacional tramitados por seu intermdio teve um aumento de aproximadamente 70% (setenta por cento), apenas em matria penal. Desse modo, evidente o crescimento da cooperao internacional desenvolvida no Estado brasileiro. visvel, tambm, o largo campo de atuao ainda inexplorado, de maneira que o desenvolvimento da cooperao jurdica internacional algo inevitvel. Assim, cabe aos atores pblicos da cooperao jurdica internacional preparar a mquina administrativa do Brasil, visando o funcionamento perene da complexa estrutura estatal, fortalecendo-se o papel da Autoridade Central, que deve atuar sempre como instituio de Estado, nunca como instrumento de pessoas ou de governos. Tudo isso tende a colocar o Brasil em posio de destaque no cenrio internacional, para que se assegure ao nosso pas o papel, que j lhe pertence, de protagonista na cooperao jurdica desenvolvida em nvel mundial.

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Referncias Bibliogrficas

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BRASIL. Decreto n 1.320, de 30 de novembro de 1994. Promulga o Tratado de Auxlio Mtuo em Matria Penal, entre o Governo da Repblica Federativa do Brasil e o Governo da Repblica Portuguesa, de 07.05.91. Disponvel em: . Acesso em: 09 abr. 2004; BRASIL. Lei n. 5.478, de 25 de julho de 1968. Dispe sobre ao de alimentos e d outras providncias. Disponvel em: . Acesso em: 09 abr. 2008. DRCI/SNJ

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BRASIL. Decreto n 6.061, de 14 de maro de 2007. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comisso e das Funes Gratificadas do Ministrio da Justia, e d outras providncias. Disponvel em: . Acesso em 9 de abril de 2008. BRASIL. Lei n 5.478, de 25 de julho de 1968. Dispe sobre ao de alimentos e d outras providncias. Disponvel em: . Acesso em 9 de abril de 2008. BRASIL. Resoluo n 9, de 4 de maio de 2005. Dispe, em carter transitrio, sobre competncia acrescida ao Superior Tribunal de Justia pela Emenda Constitucional n 45/2004. Disponvel em: . Acesso em 9 de abril de 2008. MCCLEAN, J. D. International co-operation in civil and criminal matters. London: Oxford University Press, 2002. MEIJKNECHT, Paul. Service of documents in the European Union: The Brussels Convention of 1997. European Review of Private Law, Amsterdam, v. 4. p. 445-457. 1999. VERVAELE, John. Cooperao em matria penal na Unio Europia. In: VENTURA, Deisy e Freitas Lima (Org.). Direito Comunitrio do Mercosul. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.

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Mecanismos de Cooperao Jurdica Internacional no BrasilJos Antonio Dias Toffoli Advogado-Geral da Unio virgnia Charpinel Junger Cestari Advogada da Unio Diretora do Departamento Internacional Procuradoria Geral da Unio

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Introduo

Apesar de no constituir novidade na rea jurdica, o estudo da cooperao jurdica internacional1 adquire particular relevo na atualidade, diante da conjuntura internacional de um mundo globalizado, por possibilitar o dinamismo e a eficcia da prestao da tutela jurisdicional estatal. Isso deve-se ao fato de as transformaes ocorridas nas sociedades refletirem-se nos ordenamentos jurdicos, forando-os a amoldarem-se s novas realidades2. A intensificao das relaes internacionais no perodo seguinte Segunda Guerra Mundial, segundo Eduardo Felipe P Matias3, deve-se, principalmente, a dois . fatores fundamentais: O primeiro relaciona-se com a conscincia dos Estados quanto ao fato de que no so auto-suficientes, de que o isolamento representa um retrocesso e de que o crescimento est vinculado cooperao. O segundo fator a coexistncia de mltiplos Estados independentes. O contexto atual fez com que os Estados deparassem com problemas que no conseguiriam resolver sozinhos, ou, pelo menos, resolveriam melhor por meio da cooperao4. Nessa nova ordem global, inevitvel que haja uma srie de polticas pblicas que no podem ser implementadas sem a cooperao de outros pases, enquanto vrias funes tradicionais dos Estados no poderiam ser cumpridas sem se recorrer a formas internacionais de colaborao5.1

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BAPTISTA, Brbara Gomes Lupetti. Breves consideraes sobre o anteprojeto de lei de cooperao jurdica internacional. Disponvel em: . Acesso em 3.06.2008. CAPUTE, Yolanda de Souza. As inovaes introduzidas com a EC 45/2004 no mbito da cooperao jurdica internacional. Disponvel em: . Acesso em 3.06.2008. MATIAS, Eduardo Felipe. A humanidade e suas fronteiras do Estado soberano sociedade global. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 206. VAN KLEFFENS, E. N. Sovereignty in international law: five lectures. Recueil de Cours de lAcadmie de Droit International de la Haye, v. 82, 1953, p.8. HELD, David. Democracy and the global order: from the modern state to cosmopolitan governance. Stanford: Stanford University, 1955, Apud MATIAS, Eduardo Felipe. A humanidade e suas fronteiras do Estado soberano sociedade global. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 21

Na esteira do exposto, a cooperao internacional essencial medida que, proporcionando o estreitamento das relaes entre os pases, por meio da intensificao da assinatura de tratados, convenes e protocolos, fundamentados no auxlio mtuo6, facilita o intercmbio de solues para problemas estatais quando o aparato judicial/administrativo de determinado Estado mostra-se insuficiente para solucionar a controvrsia, necessitando recorrer ao auxlio que lhe possam prestar outras naes. Em nome dessa nova realidade, concepes ultrapassadas acerca do conceito de soberania necessitaram ser afastadas, sendo injustificvel o receio de que a cooperao internacional ofenda o poder soberano de cada pas, mesmo porque o atendimento aos pedidos de cooperao condicionam-se sua consonncia aos preceitos da ordem pblica e do interesse nacional. Cabe mencionar tambm tratar-se de instituto da prpria Carta Magna, que prev, em seu artigo 4, inciso XI, que o Brasil rege-se, nas relaes internacionais, pelo princpio da cooperao entre os povos para o progresso da humanidade. Portanto, a imprescindibilidade da cooperao internacional nos termos atuais indiscutvel, fazendo com que essa prtica deixe de ser um mero compromisso moral (comitas gentium), tornando-se obrigao jurdica7.

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O Direito Internacional do Sculo xxI: do Direito de Coordenao ao Direito de Cooperao

O dinamismo da cincia jurdica fenmeno de todos conhecido. No apenas as regras so modificadas, mas a leitura e a interpretao das normas jurdicas alteram-se no espao e no tempo. No diferente com o Direito Internacional. Nascido no sculo XVI, simultaneamente com o Estado moderno, o Direito das Gentes alcana, na atualidade, fora e eficcia inimaginveis no tempo das monarquias absolutistas. De fato, o Direito das Gentes foi concebido para viger num ambiente de inexistncia de poder central, pois no h na sociedade das naes nenhuma autoridade constituda com poder de imprio que lhe permita ordenar o relacionamento entre as soberanias. Dessa forma, a juridicidade das normas internacionais decorre, sobretudo, da vontade dos Estados, que reconhecem e aceitam previamente as regras que lhes sero aplicadas no relacionamento com os demais atores da cena internacional. Da a noo bsica de que o Direito Internacional um direito intergovernamental, de coordenao. A etimologia da palavra coordenao elucidativa: os Estados soberanos estabelecem, em conjunto, a ordenao a vigorar no plano internacional. Essa a tradio histrica do relacionamento interestatal, traduzida pelo brocardo par in parem non habet imperium (entre pares no h imprio), evidente ode soberania dos Estados.6

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CAPUTE, Yolanda de Souza. As inovaes introduzidas com a EC 45/2004 no mbito da cooperao jurdica internacional. Disponvel em: . Acesso em 3.06.2008. ARAJO, Nadia de; GAMA JUNIOR, Lauro. Sentenas estrangeiras e cartas rogatrias: novas perspectivas da cooperao internacional. Disponvel na Internet: . Acesso em 3.06.2008. DRCI/SNJ

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Nesse diapaso, o voluntarismo estatal que determina a submisso do ente soberano s normas de direito pblico externo. No obstante, a complexidade crescente das relaes internacionais e, em especial, dos desafios impostos comunidade das naes a partir do sculo XX, sobretudo aps a Segunda Guerra Mundial, levou os Estados a privilegiarem, cada vez mais, solues multilaterais para problemas globais. Esse fenmeno tem implicaes na dogmtica jurdica. Leva, por exemplo, necessidade de releitura das fontes de Direito Inter Gentes, enfatizando-se o dever de cooperao contido nas normas internacionais, contrapondose, assim, feio de direito de manuteno do status quo. 8 Neste ponto, convm operar breve digresso acerca da justia internacional idealizada pela sociedade dos Estados do ps-guerra, a partir da tomada de conscincia de que um simples transpor de fronteiras no poderia mais tornar o indivduo inacessvel ao jus imperii estatal. Com esse esprito, passam a ser desenvolvidos novos mecanismos de interlocuo dos Estados no plano externo, com vistas a dar aplicao aos princpios da justia universal e da efetividade da justia. Multiplicam-se, assim, os tratados concebidos para servir de base jurdica para a prestao de cooperao interjurisdicional, o que impacta decisivamente a construo da convico hoje vigente na comunidade internacional de que cooperar no significa prestar um favor, mas cumprir com uma obrigao jurdica. Destarte, no sculo XXI, j possvel atestar a existncia de um costume internacional (norma jurdica no escrita, de eficcia e hierarquia equivalentes s do tratado), acatado pela generalidade dos pases, determinante da obrigao jurdica de prestar cooperao internacional, em especial no plano jurisdicional. Nesse contexto, o Direito Internacional contemporneo rompe a barreira da mera ordenao coletiva (coordenao), passando a orbitar na esfera da operao conjunta, do efetivo trabalho de todos (cooperao) em prol da coletividade.

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A Cooperao Jurdica Internacional

Cooperao pressupe trabalho conjunto, colaborao. nesse sentido que toda e qualquer forma de colaborao entre Estados, para a consecuo de um objetivo comum, que tenha reflexos jurdicos, denomina-se cooperao jurdica internacional. Na lio de Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva9, a preferncia pela expresso cooperao jurdica internacional decorre da idia de que a efetividade da jurisdio, nacional ou estrangeira, pode depender do intercmbio no apenas entre rgos judiciais, mas tambm entre rgos judiciais e administrativos, de Estados distintos. A cooperao jurdica internacional pode ser classificada nas modalidades ativa e passiva, como os lados de uma mesma moeda, de acordo com a posio de cada um dos Estados cooperantes. A cooperao ser ativa quando um Estado (requerente) formular a outro (requerido) um pedido de assistncia jurdica; a cooperao, por outro lado, ser passiva quando um Estado (requerido) receber do outro (requerente) um pedido de cooperao.8 9

SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de direito internacional pblico. So Paulo: Atlas, 2002. p. 136. SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. O direito internacional contemporneo estudos em homenagem ao professor Jacob Dolinger. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 798. Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 23

A cooperao jurdica internacional tambm pode ser classificada em direta e indireta. Esta, para ser efetivada, depende de juzo de delibao, como o caso da homologao de sentena estrangeira e das cartas rogatrias. A cooperao direta aquela em que o juiz de primeiro grau tem pleno juzo de conhecimento. Trata-se da assistncia direta. Ainda no tocante classificao, a cooperao jurdica internacional pode ocorrer em matria penal ou em matria civil, a depender da natureza do processo ou do procedimento em trmite no Estado requerente. necessrio, ainda, salientar que alguns doutrinadores distinguem entre a cooperao jurdica e a jurisdicional. Esta ocorreria quando um ato de natureza jurisdicional reclamado do Estado cooperante, ao passo que naquela a cooperao demandada no envolveria necessariamente a interveno do Poder Judicirio, requerendo somente atividade administrativa.

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Mecanismos Tradicionais de Cooperao Jurdica InternacionalCom efeito, pode-se afirmar que a cooperao jurdica entre Estados no um

fenmeno moderno. Na verdade, h indcios de que, desde a civilizao antiga, egpcios, babilnios, assrios e persas j colaboravam para obter a captura de fugitivos procurados por ofensas polticas ou religiosas. Segundo Kimberly Prost10, registros apontam que, por volta do ano 1280 a.C., Ramss II teria celebrado um dos primeiros instrumentos de cooperao jurdica internacional conhecidos quando previu a possibilidade de retorno extradicional de criminosos em tratado de paz firmado com o povo hitita. H sculos, portanto, os Estados reconhecem a importncia de atuar em conjunto para conferir uma maior eficcia atividade jurisdicional desenvolvida em seus territrios. Nesse sentido, alguns mecanismos, por fora do costume ou de tratado, passaram a incorporar-se, com maior freqncia, prtica da cooperao jurdica interestatal. Entre as modalidades mais tradicionais de assistncia jurdica internacional, pode-se citar a carta rogatria, a extradio, a homologao de sentena e a transferncia de presos, das quais a seguir trataremos.

Carta RogatriaA carta rogatria representa um dos mecanismos mais antigos de cooperao jurdica entre Estados. Em geral, a tramitao das cartas rogatrias efetivada por canais diplomticos, sendo seu cumprimento sujeito s determinaes legais do pas rogado.

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PROST, Kimberly. Breaking down the barriers: International cooperation in combating transnational crime. Disponvel em: . Acesso em 3.06.2008.

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Como assevera Luiz Csar Ramos Pereira11, a carta rogatria utilizada quando se faz mister o acionamento da autoridade judiciria estrangeira a praticar diligncias solicitadas por autoridades jurdicas domsticas (ou vice-versa), no sentido de auxiliar a instruo processual, angariando provas ou efetuando outros termos processuais (citaes, notificaes, etc.). Atualmente, o processo de aferio de comisses rogatrias encaminhadas para cumprimento no Brasil regulado pelo artigo 105, inciso I, alnea i, da Constituio Federal, o qual dispe que compete ao Superior Tribunal de Justia (STJ) autorizar o cumprimento das comisses rogatrias no territrio brasileiro. O exequatur, ou seja, a autorizao para o cumprimento das diligncias rogadas, concedido somente aps a verificao de que a carta rogatria estrangeira no atenta contra a soberania ou a ordem pblica nacionais, nos termos do artigo 6 da Resoluo n 9 do STJ.

Homologao de Sentena estrangeiraOutra modalidade de cooperao jurdica a homologao de sentena estrangeira. Cuida a homologao do processo mediante o qual se confere eficcia, em territrio nacional, a decises judiciais exaradas em solo estrangeiro. Cumpre, aqui, distinguir o instituto da homologao de sentena estrangeira da carta rogatria, pois a homologao destina-se ao reconhecimento autnomo da deciso judicial de carter definitivo, enquanto a carta rogatria presta-se essencialmente ao reconhecimento e cumprimento de decises interlocutrias da Justia estrangeira. Assim como no caso das rogatrias, compete ao Superior Tribunal de Justia, o processo de homologao da sentena estrangeira, conforme o disposto no artigo 105, inciso I, alnea i, da Constituio Federal.

extradioSegundo as lies de Celso D. de Albuquerque Mello12, a extradio pode ser definida como sendo o ato por meio do qual o indivduo entregue por um Estado a outro, que seja competente, a fim de process-lo e puni-lo. A extradio contem plada em inmeros tratados internacionais, mas, mesmo na ausncia de instrumento internacional, poder tambm ser solicitada com base no princpio da reciprocidade. No Brasil, o instituto regulado pela Lei n 6.815/1980, que dispe sobre o estatuto jurdico do estrangeiro em territrio nacional.

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PEREIRA, Lus Cezar Ramos. Carta rogatria, instrumento processual internacional, seus efeitos, processamento e caractersticas no sistema jurdico brasileiro. Revista de Processo, abril/junho 1984, p. 292. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito constitucional internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, p. 169. Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 25

Transferncia de presosA transferncia de presos consiste na remoo de um indivduo condenado em um Estado para cumprir pena no territrio do seu Estado de origem. Trata-se de mecanismo de cooperao jurdica de natureza humanitria, visto que tem como escopo contribuir para a reintegrao social do apenado junto ao seu ambiente familiar. No Brasil, cabe acrescentar, inexiste qualquer regulamentao legal sobre esta modalidade de cooperao. A transferncia, quando cabvel, efetuada com base em tratados bilaterais ou multilaterais dos quais o Estado brasileiro seja parte.

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Novos Mecanismos de Cooperao Jurdica Internacional

No mundo atual, a reduo das fronteiras e o incentivo das relaes multilaterais entre os pases trouxeram consigo outros fenmenos caractersticos dos tempos modernos. Com o incremento exponencial dos ndices migratrios, a expanso das negociaes comerciais globais e a disseminao dos crimes transnacionais, passou-se a constatar a insuficincia dos mtodos clssicos de cooperao jurdica internacional para lidar com o novo panorama ftico e jurdico trazido por essas mudanas. Nesse sentido, os Estados viram-se diante da necessidade de criar mecanismos ainda mais arrojados de colaborao interestatal. Surgiu, ento, uma nova forma de cooperao, mais verstil e compatvel com a era atual, que se convencionou chamar de Auxlio Direto13 (ou cooperao judiciria internacional stricto sensu). No Brasil, ao contrrio dos meios de cooperao judiciria tradicionais, cuja competncia constitucional atribuda ao Superior Tribunal de Justia (Carta Rogatria e Homologao de Sentena Estrangeira) para exerccio de mero juzo de delibao, o auxlio direto instituto que permite cognio plena. Para cumprir tal finalidade, sua competncia atribuda ao juiz de primeira instncia. O prprio STJ esclareceu a questo na Resoluo n 9, de 4/05/200514. No pargrafo nico do artigo 7, a Presidncia da Corte Superior estabeleceu que os pedidos de cooperao judiciria stricto sensu no sero cumpridos pelo Superior Tribunal de Justia, devendo ser levados, quando impliquem a necessria interveno do Poder Judicirio, ao conhecimento do primeiro grau de jurisdio. A figura da autoridade central, prevista nos ajustes internacionais da matria,

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Perlingeiro (2006, p. 806 e 807) aponta como raiz do termo auxlio direto, disseminado no decorrer das discusses com a finalidade de disciplinar legislativamente a matria, na Conveno de Auxlio Judicial Mtuo da Unio Europia. Art. 7 As cartas rogatrias podem ter por objeto atos decisrios ou no decisrios. Pargrafo nico. Os pedidos de cooperao jurdica internacional que tiverem por objeto atos que no ensejem juzo de delibao pelo Superior Tribunal de Justia, ainda que denominados como carta rogatria, sero encaminhados ou devolvidos ao Ministrio da Justia para as providncias necessrias ao cumprimento por auxlio direto.

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rgo designado pelo Estado para efetuar o trmite de pedidos, tanto na modalidade ativa quanto na passiva. Caber a ela encaminhar os casos s autoridades competentes para pleitear as medidas cabveis perante o juzo de primeiro grau. Os pedidos de auxlio direto so, em regra, alicerados em tratados ou acordos bilaterais (os chamados Mutual Legal Assistance Treaties ou MLATs). Inexistindo ajuste expresso entre os dois Estados, a assistncia poder ser realizada baseando-se na garantia de reciprocidade do requerente. possvel cooperar nos mais diversos temas, como tributrio, trabalhista e previdencirio. No entanto, os tratados mais freqentes no cenrio internacional versam sobre matria penal e civil. O auxlio direto de carter penal utilizado, em regra, quando um Estado, a fim de subsidiar procedimento em trmite em seu prprio territrio, necessita de providncia judicial a ser obtida em outra jurisdio. Crimes de lavagem de dinheiro e trfico ilcito de entorpecentes, por exemplo, freqentemente, ao serem processados e julgados em um pas, precisam de produo de provas testemunhais ou documentais em outros pases. Em virtude da natureza muitas vezes fluida da prova, a rapidez em sua obteno indispensvel, o que faz com que o auxlio direto seja o instituto mais adequado para a consecuo do pedido. Medidas ainda mais contundentes tambm podem ser efetivadas pela via da cooperao stricto sensu, como seqestro de bens e congelamento de depsitos bancrios. Ressalte-se novamente que o juiz de primeiro grau que recebe o pedido tem cognio plena para apreci-lo, estabelecendo contraditrio para cristalizar seu livre convencimento. Entre os ajustes internacionais em matria penal, pode-se citar o Protocolo de Assistncia Jurdica Mtua em Assuntos Penais, assinado no mbito do Mercosul15, a Conveno da ONU contra Crime Organizado Transnacional16 e o Acordo Bilateral BrasilEstados Unidos17, entre diversos outros assinados e ratificados pelo Estado brasileiro. Na esfera civil, a obteno de provas tambm pode ser de extrema valia para os Estados requerentes18. Porm, o espectro de atuao da cooperao ainda mais amplo. Os Estados requerentes podem solicitar, por exemplo, a restituio de menores ilicitamente subtrados de seus lugares de residncia habitual ou a fixao e reviso de obrigaes alimentcias. So exemplos de convenes internacionais que tratam de auxlio direto em matria civil a Conveno da Haia sobre os Aspectos Civis do Seqestro Internacional de Crianas19, a Conveno de Nova Iorque sobre a Prestao de Alimentos no Estrangeiro20, patrocinada pela Organizao das Naes Unidas, e a Conveno da Haia sobre Direito15 16 17 18

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Promulgada no Brasil pelo Decreto n 3.468/2000. Promulgada no Brasil pelo Decreto n 5.015/2004. Promulgada no Brasil pelo Decreto n 3.810/2001. Segundo Rechsteiner, o Brasil no ratificou nenhuma das convenes modernas sobre obteno de provas em matria civil (RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado: teoria e prtica. 9. ed. So Paulo: Saraiva, 2006, p. 306). Promulgada no Brasil pelo Decreto n 3.413/2000. Promulgada no Brasil pelo Decreto n 56.826/65. Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 27

Processual Civil21. No mbito do Mercosul, o Protocolo de Las Leas sobre Cooperao Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa22 rege a questo. Alm destes ajustes, diversos acordos bilaterais foram negociados pelo Brasil. Outro moderno mecanismo de cooperao jurdica internacional a transferncia de processos. Previsto em alguns diplomas internacionais23, esse instrumento de colaborao viabiliza o deslocamento de um procedimento penal, j instaurado na jurisdio de um Estado, para outro Estado tambm competente para processar e julgar aquele ato (hipteses comuns em crimes transnacionais) sempre que o traslado for benfico ao trmite do processo. Importante lembrar que no h disposio especfica sobre o instituto na legislao interna brasileira.

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Concluso

Diante das demandas do mundo atual, resta ao nosso pas adequar-se s inovaes do direito internacional contemporneo. Para isso, no se pode ignorar instrumentos, como o auxlio direto, que se propem a diminuir distncias, agilizar procedimentos, evitar a burocracia desmedida, respeitando, sempre, princpios bsicos como a soberania, a ordem pblica e os costumes nacionais. Ademais, a adoo de tais instrumentos acaba tambm por preservar direitos individuais e difusos, na medida em que contribui para a soluo eficaz das controvrsias, para a preveno e o combate ao crime. Ressalte-se que os princpios da justia universal e da efetividade da justia, embasadores da cooperao jurdica internacional, so, acima de tudo, garantias individuais.

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Esta conveno, de 1 de maro de1954, no foi promulgada pelo Brasil. O Protocolo de Las Leas, de 27 de junho de 1992, foi promulgado pelo Brasil em 12 de novembro de 1996, pelo Decreto n 2.067. Conveno da ONU sobre Crime Organizado Transnacional Artigo 21 Transferncia de processos penais Os Estados-Partes consideraro a possibilidade de transferirem mutuamente os processos relativos a uma infrao prevista na presente Conveno, nos casos em que esta transferncia seja considerada necessria no interesse da boa administrao da justia e, em especial, quando estejam envolvidas vrias jurisdies, a fim de centralizar a instruo dos processos. Conveno Europia sobre a Transferncia de Processos em Matria Penal (traduo livre do original European Convention on the Transfer of Proceedings in Criminal Matters) Os Estados membros do Conselho Europeu, signatrios da presente Conveno, Considerando que o objetivo do Conselho Europeu alcanar maior unidade entre seus membros; Desejando suplementar o trabalho j realizado pelos membros no mbito do direito penal com o intuito de alcanar sanes mais justas e eficientes; Considerando til para tal finalidade assegurar, num esprito de confiana mtua, a organizao de procedimentos criminais a nvel internacional, em particular, evitando as desvantagens resultantes dos conflitos de competncia, Acordaram no seguinte: (...) No original: The member States of the Council of Europe, signatory hereto, Considering that the aim of the Council of Europe is the achievement of greater unity between its members; Desiring to supplement the work which they have already accomplished in the field of criminal law with a view to arriving at more just and efficient sanctions; Considering it useful to this end to ensure, in a spirit of mutual confidence, the organisation of criminal proceedings on the international level, in particular, by avoiding the disadvantages resulting from conflicts of competence, Have agreed as follows: (...)

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De outro lado, prestar cooperao jurdica internacional um compromisso assumido pelo Estado brasileiro em vrios tratados internacionais. Nessa premissa est includo o dever de prestar rpida e eficientemente a cooperao, de forma que a medida requestada no se torne intil ao Estado requerente. Para tanto, necessrio superar conceitos ultrapassados e difundir novas prticas, sem o que arriscaremos perecer diante da nova ordem mundial.

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Carta Rogatria e Cooperao InternacionalGilson langaro Dipp Ministro do Superior Tribunal de Justia Corregedor-Nacional de Justia O presente trabalho pretende analisar o exequatur s cartas rogatrias, em face da nova competncia do Superior Tribunal de Justia, abordando os seguintes aspectos: I) contedo da carta rogatria. Competncia do STJ para conhecer cartas rogatrias stricto sensu; II) legitimidade de autoridade no-judicante para solicitar assistncia judiciria por meio de carta rogatria; III) possibilidade de a carta rogatria encaminhar atos decisrios delibao do STJ e IV) possibilidade e limites da concesso de exequatur sem oitiva prvia da parte interessada. O correto balizamento das questes em anlise exige a compreenso de que nem todo pedido de assistncia jurdica, encaminhado por autoridades estrangeiras a autoridades brasileiras, enquadra-se no conceito de carta rogatria a que se refere a Constituio Federal, no art. 105, I, a1, ainda que tal assistncia tenha sido encaminhada sob esse rtulo. Em outras palavras, haver, no universo de medidas que podem ser rogadas por Estados estrangeiros ao Estado brasileiro, as que exigem e as que dispensam o prvio juzo de delibao como condio de seu atendimento. Imagine-se a hiptese de investigao ou processo judicial em jurisdio estrangeira carecer, para seu deslinde, de informaes disponveis ao pblico no Brasil. Por exemplo, informaes constantes de processo judicial em curso no Brasil, no protegido por segredo de justia. O pedido de fotocpia desses autos, ainda que encaminhado pela autoridade estrangeira sob o rtulo carta rogatria, no se enquadraria na hiptese do procedimento judicial que a Constituio, pela Emenda Constitucional n 45, reservou competncia do Superior Tribunal de Justia. Tratar-se-ia, por bvio, de mera cooperao administrativa. Apesar do rtulo de carta rogatria na origem, no teria a substncia do procedimento judicial constitucional de mesmo nome. A prxis da cooperao internacional est repleta de pedidos rotulados como carta rogatria, que, em substncia, no passam de pedidos de cooperao jurdica de natureza administrativa. Na eventualidade de o Ministrio das Relaes Exteriores ou o Ministrio da Justia repassarem, indevidamente, pedidos de cooperao administrativa ao STJ, para fins de delibao, estes no deveriam ser reconhecidos. Em juzo de admissibilidade, preciso ir alm do rtulo e identificar, na substncia, o pedido de cooperao, os traos caractersticos da carta rogatria a que se refere a Constituio. A carta rogatria com sede constitucional e que, portanto, deve ser analisada em juzo de delibao, a chamada carta rogatria em sentido estrito. Na carta rogatria stricto sensu, cabe autoridade judiciria brasileira, na atual ordem constitucional o Superior Tribunal de Justia, exercer o juzo de delibao

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da deciso/solicitao estrangeira. No h, nesse juzo, anlise de mrito das razes que levaram a autoridade estrangeira a decidir pela realizao da diligncia solicitada. Analisam-se, como se sabe, apenas os elementos formais e a violao ordem pblica, conceito no qual se inserem a soberania e os bons costumes. Note-se que a carta rogatria stricto sensu embute na sua origem uma deciso judicial estrangeira, mesmo que de natureza meramente processual, geralmente destinada ao impulso processual. Roga-se ao Estado requerido, por esse instrumento, que d eficcia a determinaes como citaes e intimaes, produo de provas, percias, medidas cautelares, etc. Sem o exequatur concedido pelo Superior Tribunal de Justia, essas decises processuais no poderiam ter eficcia no Brasil. Portanto, no apenas o procedimento da ao de homologao de sentenas estrangeiras, mas, tambm, a carta rogatria stricto sensu, encaminha Justia brasileira decises judiciais que precisam da concesso de exequatur para serem eficazes aqui. A carta rogatria em sentido estrito no o nico meio de cooperao entre Estados. Muitas vezes, em lugar de pedir para que o Estado rogado d execuo a uma deciso judicial do Estado rogante, ainda que de natureza processual, a autoridade estrangeira pode optar por solicitar a assistncia jurdica direta do Estado requerido, procedimento tambm conhecido como auxlio jurdico direto. Pelo pedido de auxlio jurdico direto, o Estado estrangeiro no se apresenta na condio de juiz, mas de administrador. No encaminha uma deciso judicial a ser aqui executada, mas solicita assistncia para que, no territrio nacional, sejam tomadas as providncias necessrias satisfao do pedido. Se as providncias solicitadas no pedido de auxlio estrangeiro exigirem, conforme a lei brasileira, deciso judicial, deve a autoridade competente promover, na Justia brasileira, as aes judiciais necessrias. O Estado estrangeiro, ao se submeter alternativa do pedido de auxlio jurdico direto, concorda que a autoridade judiciria brasileira, quando a providncia requerida exigir pronunciamento jurisdicional, analise o mrito das razes do pedido. O mesmo no ocorre no julgamento da carta rogatria pelo STJ, cujo sistema exequatur impede a reviso do mrito das razes da autoridade estrangeira, salvo para verificar violao ordem pblica e soberania nacional. Na carta rogatria, d-se eficcia a uma deciso judicial estrangeira, ainda que de natureza processual ou de mero expediente. No pedido de auxlio, busca-se produzir uma deciso judicial domstica e, como tal, no-sujeita ao juzo de delibao. A deciso de cooperar com um Estado estrangeiro, prestando-lhe o necessrio auxlio, insere-se no contexto das relaes internacionais que devem ser mantidas pelo Presidente da Repblica. Portanto, os pedidos de auxlio, assim como as cartas rogatrias, ambos meios de cooperao jurdica internacional, so encaminhados por via diplomtica ou por meio de Autoridade Central prevista em tratado. Se um pedido de auxlio jurdico direto encaminhado por equvoco ao STJ, como se fosse uma carta rogatria em sentido estrito, no cabe conhecimento. Nesse

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sentido, o art. 7, pargrafo nico, da Resoluo n 9 da Presidncia do STJ, de 4 de maio de 2005, explcito: Art. 7 As cartas rogatrias podem ter por objeto atos decisrios ou no decisrios. Pargrafo nico. Os pedidos de cooperao jurdica internacional que tiverem por objeto atos que no ensejem juzo de delibao pelo Superior Tribunal de Justia, ainda que denominados como carta rogatria, sero encaminhados ou devolvidos ao Ministrio da Justia para as providncias necessrias ao cumprimento por auxlio direto2. Em recente julgado no STJ, discutiu-se se os membros do Ministrio Pblico italiano, pela singular razo de pertencerem mesma carreira de magistratura naquele pas, estariam autorizados a praticar atos que, em tese, estariam reservados ao Poder Judicirio. As funes que um membro da magistratura italiana exerce, em determinado momento, como membro do Ministrio Pblico, no se confundem com as que pode exercer, em outro momento, como juiz. Pertencem a uma mesma carreira, mas exercem funes distintas. Um acusa, outro julga. No se questiona porm, a legitimidade de o Ministrio Pblico italiano, ou outro, de sistema similar, solicitar auxlio jurdico ao Estado brasileiro. Na verdade, uma vez que o pedido tramitou por via diplomtica ou por meio de Autoridade Central prevista em tratado, o pedido se converte em solicitao de cooperao do Estado italiano, dirigido ao Estado brasileiro e, como tal, deve ser analisado. Note-se que o Supremo Tribunal Federal, por deciso monocrtica do Ministro Maurcio Corra, admitiu a Carta Rogatria n 10.9253, requerida na origem pelo Ministrio Pblico italiano, no caso, a Procuradoria da Repblica, junto ao Tribunal de Turim. Porm, preciso observar se a autoridade do Estado rogante competente para determinar a medida cuja eficcia pretende ser estendida ao territrio nacional. Trata-se, nesse caso, do critrio da competncia na origem. possvel que determinada medida que, no Brasil, somente seria processada por autoridade do Poder Judicirio seja, na origem, atribuio de outra autoridade, como um membro do Ministrio Pblico. Considerando as medidas de quebra de sigilo bancrio e de seqestro de bens, o Ministrio Pblico italiano poderia requer-las. Ou seja, admite-se que, na Itlia, um membro do rgo acusador poderia requerer dados bancrios e o seqestro de bens. Mas tambm preciso levar em considerao, alm da competncia na origem, outras disposies do ordenamento jurdico brasileiro, especialmente as garantias constitucionais. De acordo com o ordenamento jurdico brasileiro, a quebra de sigilo bancrio e o seqestro de bens situados no territrio nacional somente podem ser obtidos por meio de ordem judicial, ainda que proveniente de juiz ou tribunal estrangeiro. No se exige que a deciso seja nacional, mas sim judicial, conforme deixou claro o Ministro Seplveda Pertence, do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Carta Rogatria n 7.154, em 17/11/1995: (...) quebra de sigilo bancrio bem como o bloqueio de contas, dependem, no Brasil, de sentena que os decrete. Desse modo, chegase concluso que as medidas em comento no podero ser desde logo executadas, sem que antes se proceda homologao, na jurisdio brasileira, da sentena estrangeira que as tenha determinado5.Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 33

O Ministrio Pblico italiano pode requerer cooperao internacional por carta rogatria para as medidas de quebra de sigilo bancrio e seqestro de bens. certo que o Supremo Tribunal Federal, em algumas decises no exerccio de juzo de delibao, hoje de competncia deste Superior Tribunal de Justia, entendeu que a carta rogatria no pode ter efeito executrio e, conseqentemente, no pode se prestar quebra de sigilo bancrio e ao seqestro de bens. Na prpria Carta Rogatria n 7.1544, anteriormente citada, essa a concluso a que chega o ento Presidente do STF, Ministro Seplveda Pertence. Em 1953, na Carta Rogatria n 337, relatada pelo Ministro Jos Linhares, o STF j decidia no seguinte sentido: Carta rogatria executria. Inadmissibilidade. Seqestro, importando em execuo forada5. Desde ento, principalmente em decises monocrticas, o STF, reiteradamente, entendeu que as cartas rogatrias no podem ter efeito executrio. Tem o STF ressalvado a possibilidade de rogatria executria quando prevista em acordos internacionais. Nesse sentido, o Ministro Maurcio Corra, ao julgar a Carta Rogatria n 11.0056, afirma: Convm ressaltar que esta Corte firmou entendimento de que so insuscetveis de cumprimento, no Brasil, cartas rogatrias que caracterizem ofensa ordem pblica ou soberania nacional ou que tenham carter executrio, ressalvadas as expedidas com fundamento em acordos ou convenes internacionais (Cf. CR 8622 (Agr), Min. Marco Aurlio, DJ de 01/02/2002 e CR 9511, Min. Carlos Velloso, DJ de 01/02/2001)6. Em deciso proferida ainda este ano, o Ministro Nelson Jobim, ao julgar pedido de liminar no habeas corpus n 87.8517, lembrou que, naquele caso, na base do pedido de carta rogatria est o Tratado de Cooperao Internacional firmado entre o Brasil e a Itlia, que prev a possibilidade de cooperao entre os pases signatrios, mesmo quando o pedido envolve cumprimento de diligncias de carter executrio ou o envio de informaes sigilosas: O pedido de carta rogatria foi formulado com base no Tratado de Cooperao Internacional firmado entre o Brasil e Itlia. Conforme exposto na deciso ora atacada, o art. 2 do tratado prev a possibilidade de cooperao entre os pases signatrios, mesmo quando o pedido envolve cumprimento de diligncias de carter executrio ou o envio de informaes sigilosas. Isso porque o direito privacidade e intimidade, embora protegidos constitucionalmente, no so absolutos. Podem sofrer limitaes. No caso concreto, no verifico flagrante ilegalidade na deciso que concedeu o exequatur, pois est devidamente fundamentada e respeitou os limites estabelecidos na legislao aplicvel7. Assim, em tese, estaria em consonncia com a jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal a concesso de exequatur em carta rogatria executria proveniente da Itlia, haja vista a existncia de acordo de assistncia jurdica mtua com aquele pas. Haveria ainda,DRCI/SNJ

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para embasar o exequatur, a Conveno das Naes Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, promulgada no Brasil pelo Decreto n 5.015, de 12 de maro de 20048, e que tambm prev a cooperao em medidas executrias. preciso haver, no pedido de cooperao formulado pelo Ministrio Pblico italiano, deciso que possa ser delibada pelo STJ para posterior execuo no territrio nacional. No compete ao Superior Tribunal de Justia, no exerccio da competncia atribuda pela Constituio Federal para conceder exequatur a cartas rogatrias e homologar sentenas estrangeiras, produzir uma deciso de quebra de sigilo bancrio ou de seqestro de bens, mas, to somente dar eficcia a uma deciso estrangeira. O papel do STJ, como juzo de delibao, no o de analisar fatos, provas e produzir decises originrias, mas de permitir ou no que decises estrangeiras tenham eficcia no territrio nacional. Entretanto, ressalva-se que a carta rogatria stricto sensu possui natureza tambm de procedimento homologatrio de atos decisrios estrangeiros e poderia, se fosse o caso, carrear atos decisrios. No serviria a rogatria homologao de sentenas estrangeiras, mas de decises que, embora judiciais, no tm o carter de sentenas definitivas. Esta hiptese est prevista no caput do art. 7 da Resoluo n 9/2005 da Presidncia do STJ, que dispe: as cartas rogatrias podem ter por objeto atos decisrios ou no decisrios. O processo de homologao de sentenas estrangeiras tem sido tradicionalmente reservado no Brasil s sentenas terminativas. Segundo Agustinho Fernandes Dias da Silva, a sentena a significa o julgado, ou, melhor, a deciso proferida por um rgo jurisdicional, pondo termo a um conflito ou determinando uma situao9. Contudo, isso no significa que decises judiciais estrangeiras que no tenham esse carter terminativo no possam ter eficcia no territrio brasileiro, desde que previamente delibadas pelo Superior Tribunal de Justia, como manda a Constituio. As cartas rogatrias stricto sensu so, ao lado da carta de ordem e da carta precatria, instrumentos de comunicao entre autoridades judicirias, reservadas, contudo, comunicao interjurisdicional. Neste sentido, podem, perfeitamente, encaminhar a comunicao de autoridade judiciria de outro pas que roga autoridade judiciria brasileira a execuo de sua deciso. O Supremo Tribunal Federal, ao analisar o Protocolo de Las Leas, que regulamenta cooperao jurdica no mbito do Mercosul, reconheceu que a carta rogatria tambm pode ser instrumento para a homologao de sentenas estrangeiras. Nesse caso, o STF incluiu as decises interlocutrias no conceito de sentena, como se v do trecho da ementa do acrdo proferido no agravo regimental na Carta Rogatria n 7.613, julgado em 3/4/1997, tendo como Relator o Ministro Seplveda Pertence: (...) O Protocolo de Las Leas no afetou a exigncia de que qualquer sentena estrangeira qual de equiparar-se a deciso interlocutria concessiva de medida cautelar para tornar-se exeqvel no Brasil, h de ser previamente submetida homologao do Supremo Tribunal Federal, o que obsta admisso de seu reconhecimento incidente, no foro brasileiro, pelo juzo a que se requeira a execuo; inovou, entretanto, ao prescrever que a homologao (dito reconhecimento) de sentenaManual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 35

provinda dos Estados-Partes se faa mediante rogatria, o que importa admitir a iniciativa da autoridade judiciria competente do foro de origem e que o exequatur se defira independentemente da citao do requerido, sem prejuzo da posterior manifestao do requerido, por meio de agravo deciso concessiva ou de embargos ao seu cumprimento10. Conforme Antenor Madruga, no h, do ponto de vista do controle de delibao, diferena ontolgica entre o procedimento da carta rogatria e o da homologao de sentenas estrangeiras: Ambos instauram juzos de delibao ou, como prefere a doutrina, provocam instncia de exequatur, onde se exercer o controle judicial das decises estrangeiras (...) A diferena apenas procedimental, tendo a homologao a natureza de ao judicial, posto que deve ser provocada pela parte interessada. (...) Tanto a deciso encaminhada pela autoridade judiciria estrangeira, via rogatria, no interesse da cooperao internacional, como a apresentada diretamente pela parte privada interessada, recebero da instncia de exequatur o mesmo controle de delibao11. necessrio haver, no pedido de cooperao, recebido como carta rogatria, ato decisrio que, na origem, determine a quebra de sigilo bancrio ou o seqestro de bens para haver o juzo de delibao. Logo, embora admita que a carta rogatria possa encaminhar atos decisrios delibao do STJ, no que concerne ao pedido de quebra de sigilo bancrio e seqestro de bens, essencial a existncia de deciso judicial que decrete essas providncias. O Ministro Nelson Jobim, ao analisar o pedido de liminar no habeas corpus n 87.851, impetrado junto ao Supremo Tribunal Federal, afastou, nos seguintes termos, a alegao de que houve cerceamento de defesa por falta de intimao dos interessados para apresentar impugnao carta rogatria: O Presidente do STJ poder deixar de intimar os interessados quando tal comunicao puder frustrar o cumprimento das diligncias solicitadas. o que est previsto no pargrafo nico do art. 8 da Resoluo n 09/05STJ: Art. 8 (...). Pargrafo nico. A medida solicitada por carta rogatria poder ser realizada sem ouvir a parte interessada quando sua intimao prvia puder resultar na ineficcia da cooperao internacional. De fato, o art. 8 da Resoluo n 9/05-STJ claro ao permitir a tutela de urgncia dos pedidos de cooperao internacional. Do contrrio, medidas essenciais de preveno e combate ao crime transnacional, como escutas telefnicas e seqestro de bens, poderiam resultar ineficazes com a intimao prvia dos interessados. Ao julgar a Carta Rogatria n 7.613, o pleno do Supremo Tribunal Federal entendeu ser possvel que o exequatur se defira independentemente da citao do requerido, sem prejuzo da posterior manifestao do requerido, por meio de agravo deciso concessiva ou de embargos ao seu cumprimento. Ademais, no processo penal brasileiro, a realizao

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de quebras de sigilo legais e seqestros pode ocorrer sem a prvia manifestao da parte interessada, no possibilitando alegaes de cerceamento de defesa. Deve-se, contudo, ter a preocupao de determinar apenas as medidas necessrias garantia da eficcia do pedido de cooperao. A jurisprudncia do Superior Tribunal de Justia, que comea a se delinear, encaminha-se na direo acima explicitada.

Notas1

BRASIL. Constituio (1988). Emenda Constitucional n 45, 8 dez. 2004. Altera dispositivos da Constituio Federal. Dirio Oficial da Unio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia, DF: Senado Federal, 2004. BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Resoluo n 9, de 4 de maio de 2005. Dispe, em carter transitrio, sobre competncia acrescida ao Superior Tribunal de Justia pela Emenda Constitucional n 45/2004. Dirio da Justia, Braslia, DF, 10 maio 2005. Seo I. p. 163. Disponvel em: . Acesso em: 13 fev. 2008. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Carta Rogatria n 10.925 - Repblica Italiana. Relator: Ministro Maurcio Corra. Julgado em 5 de maio de 2004. Dirio da Justia, Braslia, DF, 17 maio, 2004, Seo I, p. 7. _____________. Carta Rogatria n 7.154 Sua. Relator: Ministro Seplveda Pertence. Julgado em 17 nov. 1995, Braslia, DF. _____________. Carta Rogatria n 337. Ministro Jos Linhares. Julgado em 10 de maio de 1953. Dirio da Justia, Braslia, DF, 13 ago. 1953. Seo I.

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_____________. Carta Rogatria n 11.005 Repblica Portuguesa. Relator: Ministro Maurcio Corra. Julgado em 28 nov. 2003. Dirio da Justia, Braslia, DF, 12 dez. 2003, Seo I, p. 5.

_____________. Habeas Corpus n 87.851. Relator: Ministro Carlos Britto. Deciso proferida Ministro Nelson Jobim em 31 jan. 2006. Dirio da Justia, Braslia, DF, 7 fev. 2006. Seo I, p. 2.7 8

BRASIL. Decreto n 5.015, de 12 de maro de 2004. Promulga a Conveno das Naes Transnacional. Dirio Oficial da Repblica Federativa do Brasil, Poder Executivo, Braslia, DF: Senado Federal. 13 mar. 2004. SILVA, Agustinho Fernandes Dias da. Direito processual internacional: efeitos internacionais da jurisdio brasileira e reconhecimento da jurisdio estrangeira. Rio de Janeiro: Villani, 1971. p. 93.Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 37

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Carta Rogatria n 7.613 Repblica Argentina. Relator: Ministro Seplveda Pertence. Julgado em 3 abr. 1997. Dirio da Justia, Braslia, DF, 9 maio 1997. Seo I. p. 18154.

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MADRUGA FILHO, Antenor Pereira. O Brasil e a jurisprudncia do STF na Idade Mdia da Cooperao Jurdica Internacional. In: MACHADO, Mara Rocha; REFINETTI, Domingos Fernando (Org). Lavagem de dinheiro e recuperao de ativos: Brasil, Nigria, Reino Unido e Sua. So Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 94-96.

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A importncia da Cooperao Jurdica Internacional para a Atuao do estado Brasileiro no plano Interno e InternacionalNadia de Araujo Doutora em Direito Internacional, USP Mestre em Direito Comparado, GWU Professora de Direito Internacional Privado, PUC-Rio Procuradora de Justia do Estado do Rio de Janeiro The scale of that activity which forms the subject matter of this book, international co-operation in civil and criminal matters, has grown quite dramatically in very recent years. It increasingly engages the attention of lawyers in private practice, in the offices of corporate legal counsel and in government service. David McLean

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Importncia do Tema e seu desenvolvimento

O mundo como aldeia global tem cada dia mais interaes instantneas e internacionais. Toda essa comunicao gera relaes de ordem pessoal, institucional e comercial sem levar em considerao as fronteiras nacionais, a cada dia mais tnues. A acentuada internacionalizao da vida diria contm muitas conseqncias para a vida jurdica, de ordem positiva e negativa. Na primeira, destacam-se as questes ligadas pessoa humana, ao direito de famlia, e ao aumento das transaes internacionais, tanto entre comerciantes como entre esses e os consumidores. Na segunda, o aumento da litigiosidade com caractersticas internacionais, ligadas s esferas cvel e penal. A preocupao do Estado brasileiro com a cooperao jurdica internacional tem aumentado, porque cada dia cresce o contingente de brasileiros que esto no exterior, os novos contornos da insero internacional do pas e o combate ao crime de carter transnacional. Alm disso, como pano de fundo da cooperao jurdica internacional, est presente a questo do respeito aos direitos humanos e dos direitos fundamentais do indivduo, ponto axial de todo o ordenamento jurdico brasileiro, especialmente depois da proeminncia que lhe foi dada pela Constituio de 1988. Por isso, no pode faltar discusso do tema, um olhar sobre dois prismas distintos que dizem respeito perspectiva a ser adotada na hora de concretizar a cooperao internacional: de um lado, uma perspectiva ex parte principis, ou seja, a lgica do Estado preocupado com a governabilidade e com a manuteno de suas relaes internacionais; de outro, a perspectiva ex parte populi, a dos que esto submetidos ao poder, e cuja preocupao a liberdade, tendo como conquista os direitos humanos. 11

Para uma discusso mais aprofundada desses conceitos, ver Celso Lafer, A Reconstruo dos Direitos Humanos. So Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 125 e seguintes. Manual de Cooperao Jurdica Internacional e Recuperao de Ativos 39

O Estado brasileiro no pode abdicar dessas duas perspectivas ao estabelecer os mecanismos de cooperao jurdica internacional, seja quando entra em acordos internacionais, assumindo obrigaes perante outros Estados soberanos, seja quando procura dar assistncia a brasileiros que esto no exterior, ou que esto aqui mas tm necessidades com reflexos internacionais.

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Definio

Cooperao jurdica internacional, que a terminologia consagrada,2 significa, em sentido amplo, o intercmbio internacional para o cumprimento extraterritorial de medidas processuais do Poder Judicirio de um outro Estado. Tradicionalmente tambm incluirse-ia nessa matria o problema da competncia internacional. Alm disso, hoje h novas possibilidades de uma atuao administrativa do Estado nessa matria, em modalidades de contato direto entre os entes estatais. O fluxo de atos de cooperao jurdica internacional intensificou-se nos ltimos anos pelos fatores j mencionados, com especiais reflexos na rea penal. No entanto, essa prtica j era conhecida do judicirio brasileiro desde o imprio. No plano internacional, a cooperao jurdica tem sido objeto de negociaes visando o estabelecimento de regras uniformes para a matria, para serem utilizadas pelos pases. Essas normas, de origem internacional, so convenientes porque garantem maior rapidez e eficcia ao cumprimento das medidas provenientes de outro pas ou endereadas ao estrangeiro. O crescimento do volume de demandas envolvendo interesses transnacionais acarretou o incremento das aes de carter legislativo, jurisprudencial e doutrinrio dos mecanismos de cooperao jurdica internacional3. O respeito obrigao de promover a cooperao jurdica internacional imposto pela prpria comunidade internacional4. Qualquer resistncia ou desconfiana com relao ao cumprimento de atos provenientes do estrangeiro deve ceder lugar ao princpio da boa-f, que rege as relaes internacionais de pases soberanos tanto nos casos cveis quanto nos penais. Afinal, o mundo est cada dia menor e mais prximo.

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PERLINGEIRO, Ricardo, Cooperao Jurdica Internacional In O Direito Internacional Contemporneo, org. Carmen Tibrcio e Lus Roberto Barroso. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.797/810. Sobre a definio: A preferncia pela expresso cooperao jurdica internacional decorre da idia de que a efetividade da jurisdio, nacional ou estrangeira, pode depender do intercmbio no apenas entre rgos judiciais, mas tambm entre rgos administrativos, ou, ainda, entre rgos judiciais e administrativos, de Estados distintos. O Ministrio da Justia est liderando essa transformao, com a elaborao de uma Lei de Cooperao Jurdica Internacional. Tambm criou um Departamento especializado para isso, o DRCI, www.mj.gov.br/drci. Nesse sentido, enfatizando a necessidade dos Estados de cooperar, confira-se a Resoluo da Assemblia Geral da ONU, n 2526, 1970, disponvel em www.un.org. DRCI/SNJ

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Caractersticas da Cooperao Jurdica Internacional

As relaes internacionais voltadas para a cooperao jurdica int