2016 Artigo 29022016 Economia Solidaria Agricultura Familiar

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    A questão que norteou nosso esforço de ava-liação do programa foi o desenvolvimento sus-tentável da agricultura familiar, ou seja, a ca-pacidade de as famílias implementaremestratégias de reprodução possíveis de se per-petuarem, oferecendo a seus componentescondições de bem-estar e de permanência no

    campo, de forma que os recursos sociais, eco-nômicos e ambientais sejam utilizados tam-bém na perspectiva de sua preservação comomeio para gerações futuras.

    Considerando-se que a sustentabilida-de da agricultura familiar está baseada em di-versos fatores – desde a organização da famíliaaté as relações de poder presentes nas diversascadeias produtivas em que a agricultura fami-liar está inserida –, sua análise também se dá apartir de arranjos complexos. Alguns fatores,porém, destacam-se no que diz respeito à cons-

    trução de uma forma de produzir que apontaestratégias mais sustentáveis.O centro das conclusões a que chega-

    mos é o fato de que o acesso ao crédito já não éum problema. Com a generalização da disponi-bilidade de crédito, segundo nossa pesquisamostrou e apontado pela totalidade dos atorescom que tivemos contato, os(as) agricultores(as)familiares já não convivem com o problema (queexistiu por muitas décadas) da falta de recursos.Hoje, as questões que se apresentam dizem res-peito à qualidade desse crédito e a que tipo dedesenvolvimento está dirigido.

    Berço de experiências

    A partir de algumas conclusões a que chega-mos na pesquisa realizada em 2006, aponta-remos formas inovadoras que se apresentamcomo possibilidades para a agricultura famili-ar e o desenvolvimento com mais justiça, pre-servação ambiental e solidariedade. Os princi-pais obstáculos à construção desse caminhoapontam para soluções no âmbito da organi-zação da economia em forma associativa e co-

    operativa. A economia solidária e a concepçãoque a norteia sobre a relação das pessoas coma produção e o consumo de produtos e servi-ços representam essas alternativas. A econo-mia solidária, por meio de empreendimentosautogestionários e direcionados ao desenvol-vimento local, tem uma identidade muito for-te com a forma de produção da agriculturafamiliar, como veremos a seguir.

    Particularmente no Paraná, a associaçãoentre agricultura familiar e economia solidáriaé bastante forte, sendo esse estado o berço de

    diversas experiências – em que pese ainda se-rem incipientes e marginais se comparadas àforça do agronegócio e da lógica do mercadointernacional – que já mostram a potencialidadedas alternativas cooperativadas.

    No Paraná nasceu a União Nacional deCooperativas de Agricultura Familiar e Econo-

    mia Solidária (Unicafes), primeira experiênciaampla de organização que pretende associaros dois campos. Assim como é originário doestado o sistema Cresol, de crédito cooperati-vo, que está presente também em SantaCatarina e no Rio Grande do Sul. A Ancosol,organização que congrega cooperativas de cré-dito solidário de todo o país, igualmente éoriginária do estado.

    Uma das questões que chamam a aten-ção com relação à agricultura familiar noParaná é a dependência de agricultores(as) das

    exigências do mercado quanto ao tipo de pro-duto. Existe uma significativa concentração daprodução no binômio soja–milho. A restriçãoda produção a poucos produtos tem conse-qüências em várias esferas. Uma delas, porexemplo, é a questão ambiental. O plantioseguido de soja é um fator de esgotamentodo solo, além de ter impacto significativo paraa diminuição da diversidade biológica, fatores já reconhecidos por extensionis tas rurais eentidades ligadas à agricultura familiar.

    Outra conseqüência preocupante é que,com o plantio generalizado de poucos produ-

    tos, uma das características históricas da agri-cultura familiar, a produção para o autocon-sumo fica prejudicada, tornando as famíliasaltamente vulneráveis no que diz respeito asua subsistência e segurança alimentar.

    Por fim, a dependência com relaçãoaos preços de produtos que também sãocommodities  internacionais, voltados para aexportação (como a soja), faz com que os(as)agricultores(as) se insiram de forma fragilizadano mercado, além de fortalecer circuitos deescoamento de riqueza do campo.

    É necessário apontar que a própria for-ma com que o crédito é operacionalizado peloBanco do Brasil estimula o plantio de grãoscom grande aceitação no mercado exportador.As garantias e condições exigidas para a con-cessão de crédito estão ligadas à suposta se-gurança que a soja e o milho oferecem, bemcomo as formas tradicionais de produção, ba-seadas no que se chama de “pacote tecno-lógico”. O pacote é a base para uma produçãocom uso intensivo de fertilizantes e defensi-vos químicos, altamente tecnificada.

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    A possibilidade de inserir a agriculturafamiliar em circuitos que não estejam dirigi-dos aos grandes mercados exportadores edominados pelas multinacionais é um vetorna direção de maior independência dos(as)agricultores(as) familiares. Para isso, a associ-ação entre agricultores(as) é fundamental.

    Apenas a associação de produtores(as) de ummesmo produto já apresenta um incrementosignificativo no poder da agricultura familiardentro de diversas cadeias produtivas, comomostram algumas experiências com as quaistivemos contato durante a pesquisa.

    No entanto na perspectiva da economiasolidária, a cooperação se apresenta como pos-sibilidade muito mais ampla. Por exemplo: apossibilidade de, mais do que poder prescindir

    de atravessadores ougrandes empresas

    (que, em geral, apro-priam-se da maiorparte da r iquezaproduzida), ter con-tato direto com opúblico consumidor,oferece vantagensem vários sentidos.

    Primeiramen-te, a produção volta-da diretamente aopúblico consumidorobriga a uma varie-

    dade maior de pro-dutos . Quanto àapropriação de re-cursos, os(as) agri-cultores(as) têm apossibilidade de seapropriarem de mai-or proporção do pre-ço, quem sabe atépodendo diminuiros custos para o con-sumo. Não se pode

    desprezar, também, apossibi l idade decontrole social da

    qualidade do que chega ao(à) consumidor(a)final. O poder desse público também crescequando pode exigir produtos mais saudáveis.

    Além da variedade de produtos agríco-las, o envolvimento das famílias com ativida-des econômicas não-agrícolas pode ser umfator de diminuição da dependência da famí-lia com relação ao mercado. O turismo rural eo artesanato, por exemplo, são atividades que

    se combinam à agricultura (com a valorizaçãoda cultura camponesa e o aproveitamento deresíduos da própria produção agrícola) e esti-mulam o aproveitamento de potencialidadesde todos os membros da família. As experiên-cias no Paraná nesse sentido são muito resi-duais, e o modelo de concessão de crédito por

    meio do Pronaf é um dos entraves a esse de-senvolvimento – embora exista consenso en-tre as entidades e organizações de que a plu-riatividade é um caminho importante.

    Com a diminuição das propriedades,por causa da sucessiva divisão das terras porherança, a ocupação de jovens é uma questãocrítica. A fuga para as cidades na busca pormelhores condições de vida é uma preocupa-ção constante de famílias e organizações liga-das à agricultura familiar. Um dado preocu-pante da pesquisa é que os estabelecimentos

    rurais não são capazes de absorver toda a for-ça de trabalho das famílias.É importante ressaltar que o Pronaf vem

    sendo uma força importante de fixação da po-pulação no campo, mas que pode e deve serincrementada, já que as soluções devem ser delongo prazo e com vistas ao desenvolvimentodo país. Mais uma vez, a alternativa pela pluria-tividade nos estabelecimentos é potencializada(e possibilitada no que diz respeito à escala)pela associação e integração com o público con-sumidor na cidade e no campo.

    Inserção produtiva

    Em geral, como concluímos na pesquisa sobreos impactos do Pronaf, a inserção da agriculturafamiliar nas cadeias produtivas se dá de formasubordinada, tornando os(as) agricultores(as)dependentes de decisões e diretrizes sobre asquais não possuem qualquer poder. Devemosconsiderar as cadeias produtivas não apenascomo uma seqüência de fases da produção, mascomo um lugar social onde os diversos atoressociais dispõem de mecanismos diferenciados

    de poder. Assim, cada elo da cadeia se apropriade quantidades desiguais das riquezas gera-das e conta com poder diferente de decisão. Adependência com relação a grandes empre-sas, aos preços internacionais e à disponibili-dade limitada do público consumidor para seusprodutos, deixam os(as) agricultores(as) emposição dominada.

    Uma das formas de aumentar o poderdos(as) agricultores(as) é formar grupos que,aumentando a escala de produção e incremen-tando os produtos com agregação de valor,

    A inserção da

    agricultura familiar

    nas cadeias

    produtivas se dá de

    forma subordinada,

    tornando

    agricultores(as)

    dependentes de

    decisões e diretrizes

    sobre as quais

    não possuem

    qualquer poder

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    ECONOMIA SOLIDÁRIA E AGRICULTURA FAMILIAR, UMA INTEGRAÇÃO NECESSÁRIA 

    tornam-se mais fortalecidos dentro do merca-do. Um dos exemplos com que tivemos conta-to no Paraná foi o Sistema de Cooperativas deLeite da Agricultura Familiar (Sisclaf), por meiodo qual pequenos produtores de leite podemobter maiores preços pelo produto, além deaumentar o valor agregado da produção com

    estruturas de beneficiamento do leite e pro-dução de derivados.

    As experiência de comercialização pormeio de organizações econômicas solidárias sãomais recentes no Paraná. Estão ligadas a umdiagnóstico de que a comercialização é um dosprincipais gargalos para o desenvolvimento daagricultura familiar. O Sistema de Cooperativasda Agricultura Familiar Integrada (Coopafi) éuma experiência bastante recente, que preten-de organizar de forma cooperativada produ-tores(as) familiares para a comercialização de

    seus produtos.O acesso ao mercado é geralmentemediado por setores que dispõem de grandepoder na definição política e de formas de pro-duzir. Esses setores impõem preços, padrõesde produtos e até mesmo quais produtos se-rão consumidos. Na direção da criação de ummercado mais diversificado, e que aproximequem produz de quem consome, está a cria-ção de selos a partir de certificação. Acertificação solidária e participativa, como aEcoVida, oferece a possibilidade de criação demercado integrando demanda e produção. Os

    próprios produtores criam os parâmetros quese adequam à demanda por produtos orgâni-cos e às possibilidades e inovações existentesno campo da agricultura familiar.

    A certificação participativa passa a serum importante instrumento de agregação devalor, homogeneização da produção (impor-tante para a comercialização), além de estimu-lar práticas que visam ao respeito ao meio am-biente e à saúde do público consumidor edos(as) produtores(as).

    Limites

    Nossa pesquisa foi centrada na modalidade cré-dito do programa, assim, a operacionalizaçãodo crédito foi um dos objetos da análise. En-tendido como um processo que envolve o agen-te financeiro, diagnóstico dos extensionistasrurais e de outras organizações, o processo deconcessão de crédito à agricultura familiar éum processo atravessado por diversas dificul-dades e muitos aspectos positivos. No entanto,o que se destaca é que, nesse processo, estão

    implícitas concepções sobre o papel e a formade produzir da agricultura familiar. Ou seja, aforma de conceder o crédito (o que se chamana região de “modelo Pronaf”) tem forte cará-ter normativo e indutivo.

    O crédito concedido pelo Banco do Bra-sil, principal agente de operação do Pronaf, tem

    vários limites. O pri-meiro deles é um li-mite atribuído a umacultura bancária quenão está preparadapara atender pobres.Com o Pronaf, umtipo de público queantes não tinha aces-so aos serviços ban-cários passou a serdemandante. A es-

    trutura e o corpo fun-cional do banco nãoestariam preparadospara atender a essepúblico. Com o gran-de aumento do cré-dito Pronaf, a ques-tão se agravou. Alémdisso, é comum nasagências do interiorse dar prioridade a cli-entes com mais recur-sos, deixando as de-

    mandas do Pronaf por último – o que pode sig-nificar descompasso entre os recursos do créditoe as necessidades da produção.

    É verdade também que em algumas ci-dades do Paraná a relação com a agência dobanco que recebe as demandas do Pronaf ésatisfatória. O fato é que o atendimento aagricultores(as) familiares depende muito desua capacidade de pressão e da sensibilidadedo gerente da agência bancária.

    Outra questão bastante séria que envol-ve a forma como o Banco do Brasil lida com a

    concessão de crédito pelo Pronaf tem a ver comas planilhas – o sistema a partir do qual as ga-rantias e os parâmetros para recebimento dosrecursos são registrados. Essas planilhas são aponta mais visível de um sistema que percebeformas de produzir tradicionais como objetosseguros de investimento cultural com aceitaçãono mercado. Isso faz com que o sistema bancá-rio seja um indutor da monocultura de grãos eque alternativas mais sustentáveis, comoagroecologia e agrofloresta, encontrem barrei-ras no próprio sistema. O que acontece mesmo

    A certificação

    participativa é um

    instrumento de

    agregação de valor,

    importante para a

    comercialização,

    além de estimular

    práticas que

    respeitam o meio

    ambiente

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    a despeito da existência de linhas de crédito es-pecíficas para essas formas de produção. Porém,não é necessário que seja assim. A realidade doParaná mostra que existem alternativas eficien-tes à operacionalização pelo Banco do Brasil. Osistema Cresol (no destaque) é uma das maisexitosas experiências de crédito solidário no país.

    As questões apontadas mostram queexistem caminhos e exemplos de outras for-mas de relação entre o campo e a cidade, en-tre o(a) agricultor(a) e a terra. Pensar na sus-tentabilidade da agricultura familiar é umaquestão inescapável, que cada vez mais, devefazer parte do debate de quem pretende pen-sar um país mais justo. A integração da agri-cultura familiar com a economia solidária éuma estratégia de distribuição de recursos ede poder, essencial para um desenvolvimento

    * Eugênia Motta 

    Antropóloga,

    pesquisadora do Ibase

    sustentável. As opções disponíveis para a agri-cultura familiar submetida ao mercado doagronegócio e subordinada a grandes empre-sas transnacionais são limitadas e condenamos(as) agricultores(as) a uma posição subor-dinada e marginal, a despeito da grande im-portância econômica e social de as famílias

    camponesas permanecerem no campo e usu-fruírem de maior bem-estar.

    Não é exagero propor que a economiasolidária seja condição necessária para lidar comos diversos problemas enfrentados poragricultores(as) familiares. A integração da agri-cultura familiar com a economia solidária, maisque soluções de pequena escala, pode ser umaalternativa de desenvolvimento mais saudávelpara o país, tanto em termos econômicos comosociais e culturais, entre campo e c idade.

    Criado em 1996, o Cresol é um ator funda-mental na universalização do crédito. O siste-ma é composto pelas chamadas cooperativassingulares, nas quais sócios e sócias tomamempréstimos do Pronaf, por exemplo, e dis-põem de uma quantidade razoável de servi-ços bancários. Surgiu a partir de uma peque-na cooperativa no sudoeste do Paraná e hojeestá presente em dezenas de cidades nos trêsestados da região Sul.

    O sistema absorve a demanda de um pú-blico que pouco interessa ao Banco do Brasilpor manipular recursos muito pequenos. A li-nha de crédito B do Pronaf, por exemplo, queé fortemente subsidiada, só vem se expandin-do na região por meio do sistema. Mas o fun-damental com relação ao Cresol, e ao sistemade crédito solidário em geral, é a relação dife-rente que se estabelece entre agricultores(as)e crédito. A participação dos(as) agricultores(as)na gestão do sistema, na tomada de decisões,é fundamental para aumentar a autonomia naagricultura familiar e priorizar o interesse daspessoas beneficiárias do crédito em detrimen-to do interesse bancário. Como um sistemacooperativo de crédito, pode acolher agricul-tores(as) com pouquíssimos recursos e tam-bém conta com maior autonomia no que dizrespeito às regras para concessão de crédito.

    Uma das características importantes dosistema é a forma como cresceu duranteseus dez anos de existência. Diferente dosistema financeiro estabelecido, o sistemade crédito cooperativado se expande comdescentralização e não com concentração.Em vez de formas cooperativas cada vezmaiores e absorvendo outras, no Cresol, a

    cooperativa é desmembrada quando atingecerto patamar, multiplicando-se em outrascooperativas. Assim, o ganho de escala nãose traduz em concentração.

    Outra característica fundamental é o re-conhecimento de que o crédito tem papelindutor e, por isso, as organizações devemestar mobilizadas com as questões mais ge-rais da agricultura familiar. Ou seja, as coo-perativas, como são administradas pelos(as)

    agricultores(as), devem operar o crédito paraque questões como inserção menos subordi-nada ao mercado, preservação ambiental,manutenção de ocupação, por exemplo, se- jam contempladas .

    A assistência técnica tem papel fundamen-tal na relação entre agricultores(as) e crédito.Da mesma forma como a assistência técnicapode reforçar os sistemas tradicionais de pro-dução (monocultura de grãos, altamentetecnificada, com uso intensivo de agrotóxi-cos), também pode se tornar um instrumen-to importante para criar e reforçar alternati-vas sustentáveis. Assim, a associação entre ocrédito solidário e uma assistência técnica queatue na mesma direção é um fator funda-mental na direção da sustentabilidade da agri-cultura familiar.

    Embora reconhecendo que no caso parti-cular do Paraná ainda há muito o que avançarnas discussões sobre o aperfeiçoamento docrédito solidário, acreditamos que o sistemaCresol – e seu caráter participativo e compro-metido com o avanço na sustentabilidade daagricultura familiar – é um exemplo de esfor-ços que indicam outra opção para a agricultu-ra e que já mostra seus resultados.

    Exemplo bem-sucedido

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