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    Geografizar a Cidade Olhando Fotografias

    Making the City Geographic by Looking at Photographs

    Eugnia Maria Dantasi

    Universidade Federal do Rio Grande do NorteNatal, Brasil

    Resumo: A leitura das cidades pode ser feita por meio de diferentes fontes. Neste artigo,privilegiamos o registro fotogrfico da cidade de Caic, localizada na regio do Serid, noestado Rio Grande do Norte, e o olhar como ferramenta que possibilita geografizar essaiconografia. O livrolbum fotogrfico de Caic(1995) um reservatrio que constelaimagens importantes e o suporte para adentrarmos no espao urbano. Para ler as ima-

    gens, geografizando-as, utilizaram-se algumas noes como as defendidas por AlbertoManguel (2001) de que as imagens e as palavras so a matria pelas quais somos feitos; areferncia imagem imaginada de Gaston Bachelard (1993); a perspectiva de similitudede Michel Foucault (1988); e a complexidade de Edgar Morin (2008). A aproximaoentre essas ideias significa uma estratgia para conduzir o olhar na geografizao dasimagens urbanas, fazendo reverberar lembranas, sensaes, devaneios na composioda leitura do espao citadino.

    Palavras-chave: geografizar, cidade, olhar, fotografia.

    Abstract: Reading cities can be done through different sources. Gazing as a tool for

    making cities geographic is used in this article to treat photographic representations ofCaic, a city located in the Serid region of Rio Grande do Norte State. The book lbumFotogrfico de Caic (1995) is a rich source of images of this city which permits contemplatingits urban space. To read the images geographically a number of ideas from differentauthors is used: from Manguel (2001) that images and words are the matter of which weare made, the concept of image from Bachelard (1993), Foucaults similitude perspective(1988) and Morins notion of complexity (2008). The combined approach results in astrategy of looking at urban images geographically, elucidating memories, sensations andreveries concerning city space.

    Keywords:reading citiesgeographically, gaze, photography.

    Introduo

    Todos guardam imagens de alguma cidade ou de uma cidade especial. So imagens-lembranas que cativam, despertam saudades, desalentos, desejos, temores. Dos recnditosda memria, as lembranas so embaladas, delineando uma paisagem que traz imagensdo passado, marcas significativas da teia imaginria que tece a cartografia citadina.

    _____________________________________________________

    i Professora do Departamento de Geografia, [email protected].

    Espao Aberto, PPGG - UFRJ, V. 1, N.2, p. 91-100, 2011ISSN 2237-3071

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    O encontro com os fragmentos citadinos permite despertar o olhar para produzir revela-es dos espaos, expondo uma geografia que foi adormecida sob o efeito incandescentedas luzes do passado espera de um estmulo que a faa acordar de novo.

    Neste artigo, a geografia adormecida est na fotografia na qual a cidade revelada

    Caic, localizada na regio do Serid, no Rio Grande do Norte. Parte da geo-histria deCaic, assim como de muitas cidades do interior do Brasil, est dispersa em diferentessuportes que aprisionam as lembranas e as memrias em teias invisveis de difcil acesso.A fotografia um desses suportes que abriga uma imagem capaz de revelar um momentoque no se repete a no ser por meio dos fios que tecem as lembranas. A publicao dolivrolbum fotogrfico de Caic(1995) um reservatrio que constela imagens desselugar e o suporte para adentrarmos as imagens urbanas em uma clara indicao de que afotografia mostra, denota, problematiza, torna vivo o mundo que expressa. Ento,constri-se uma composio entre texto e imagem para religar os espaos do desejo spaisagens mentais de seus habitantes. A morfologia urbana o oxignio que estimula a

    leitura do mapa imagtico citadino. Nessa cartografia imaginria, o mapa traadocom as linhas da imaginao, cuja escala apresenta o nvel de interao afetiva entre ohomem e o lugar.

    A organizao dessa composio se alimenta de algumas noes bsicas, como asdefendidas por Alberto Manguel (2001) de que as imagens, assim como as palavras, soa matria de que somos feitos; a referncia imagem imaginada de Gaston Bachelard(1993); a perspectiva de similitude de Michel Foucault (1988); e a complexidade de EdgarMorin (2008). A aproximao entre essas ideias significa uma estratgia para conduzir oolhar na geografizao das imagens urbanas que foram congeladas pela fotografia.

    Geografizar trazer tona a espacialidade aprisionada pela iconografia, fazendo reverberarlembranas, sensaes, devaneios na composio da leitura do espao citadino.

    Estratgias para Ler Imagens

    Ao ser desafiado a falar das caractersticas da Geografia, Paul Vidal de La Blache adistingue das demais reas de conhecimentos, chamando a ateno para o fato de que aGeografia compreende, por definio, o conjunto da Terra (1985). Tal definio j haviasido evidenciada pelos matemticos-gegrafos da Antiguidade que enxergavam a uni-

    dade terrestre para alm das descries empricas das diferentes pores paisagsticas.Para La Blache, o germe da Cincia Geogrfica encontra-se nesse princpio de unidadeque envolve correspondncias e solidariedades entre os fenmenos terrestres. Assim, oolhar sobre a Terra estava inicialmente subordinado a uma ideia de conjunto, de visogeral que fecunda o encontro com as particularidades. A fisionomia da Terra vai serdesenhada a partir do reconhecimento da unidade na diversidade das expressespaisagsticas, na medida em que estas so testemunhas das diferentes formas de interaesda sociedade com o meio. A paisagem denota e esconde a trama que rege a(des)organizao do cenrio geogrfico.

    Em La Blache, a fonte da pesquisa geogrfica est nas relaes e combinaes que

    compem a trama fisionmica da Terra. O esprito do gegrafo deve se alimentar daordem diversa do mundo, das provenincias heterogneas e das combinaes mltiplas.

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    A partir da possvel perceber que o equilbrio resultante dessas combinaes no tmabsolutamente nada de estvel, que ela est merc de modificaes cuja multiplicidadede fatores abre uma ampla margem (La BLACHE, 1985, p.43). Os estudos geogrficossobrevivem das transformaes remanejadas no tempo, das misturas, dos resduos que se

    incrustam nas formas espaciais resultantes da indissocivel relao entre o homem e anatureza. Afirma Vidal de La Blache que A obra do passado persiste atravs do presentecomo matria sobre a qual se exercem as foras atuais. A partir da, estamos em plenaGeografia (ibidem, p.42).

    As lies lablachianas a respeito da Geografia nos legam caminhos importantes paraolharmos e refletirmos a respeito do mundo que nos rodeia. Podemos extrair estratgiasmetodolgicas que se movem pelos meandros da observao/descrio, dos resduos edas combinaes para perscrutar outras fontes e materiais, ampliando o escopo de inter-veno do olhar sobre o meio. A tradio geogrfica elege o ambiente como o laboratrioda produo do conhecimento, sendo ele fsico e concreto, e a atividade de campo como

    meio para aprender e ensinar sobre a realidade. Nesse caminho, precisamos fazer uso dediferentes registros, sendo a iconografia um deles. O registro das informaes por meio dedesenhos e fotografias fundamental para o gegrafo, independentemente de terem sidogeradas por meio da atividade de campo. A iconografia precisa ser incorporada ao seutrabalho, ampliando o universo de possibilidades para ler, interpretar e interferir noespao geogrfico.

    A iconografia se impe sociedade moderna como fonte inesgotvel de revelaese possibilidades de aprendizagem, da anunciada unidade terrestre, e o olhar a senhapara adentrar e compreender o labirinto espacial em que se transformou a Terra. La

    Blache, ao eleger a observao/descrio como caminho para interpretar a realidade,transforma o gegrafo em um sujeito privilegiado para olhar e encontrar aquilo queapenas se mostra, sem jamais falar. Em outras palavras, o gegrafo est imerso no mundodas imagens, estejam elas grafadas em suportes diversificados ou estejam elas disponveisno grande cenrio que a paisagem. Ensinar a olhar as imagens do mundo se constitui emum desafio para esse leitor entender o mundo ao seu redor.

    Na contemporaneidade no mais possvel negar que um grande patrimnio cultu-ral legado do sculo XX para o XXI a imagem, a forma como produzida e como interfereno cotidiano. Uma espcie de carimbo existencial que acompanha o gegrafo em seuoficio, mesmo que no faa parte do seu repertrio de aes e reflexes no exerccio deleitura do mundo. A imagem ultrapassa o cdigo da escrita e se instaura no seio do processoeducativo, trazendo superfcie o que j se sabia, mas pouco se explorava, ou seja, o fato deque ver precede as palavras. E mais: o ato de ver estabelece nosso lugar no mundocircundante (BERGER, 1999, p.9), influenciado pela forma como vemos e cremos.

    Palavra e imagem constituem, conforme nos sugere Alberto Manguel (2001), a ma-tria da qual ns somos feitos. A partir dessa noo, o dito, esteja configurado em umaexpresso verbal ou visual, se torna constituinte e instituinte do ser e das coisas. Nesseaspecto, quando tomamos a imagem pelo objeto estamos (re)dizendo aquilo que , demodo a conferir a imagem imutvel uma vida infinita e inesgotvel (ibidem, p.27). Trata-

    se de como a palavra prolonga a imagem e como a imagem excita a palavra, colocando oobjeto em um redemoinho de incertezas e probabilidades.

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    Esse terreno de incertezas que abarca a leitura de imagens a seiva que provocaMichel Foucault (1998) a abordar a questo da semelhana e da similitude como noesimportantes para discutir e problematizar a representao que se institui entre a imagem ea palavra. Para ele, semelhana a estratgia da palavra para diminuir e confinar a imagem

    a um referente, enquanto que a similitude, embora no possa fugir dessa armadilha,estimula o olhar a querer encontrar as zonas vazias ou os simulacros que podemprolongar a imagem para outros referentes. Pela similitude, a leitura da imagem ocorrepelo movimento do mergulho e do afastamento, o que possibilita ampliar suas margens.O mergulho permite o encontro com o evidente, o terreno da calma, o porto seguro, ocaminho estabelecido para revelar. O afastamento impe o contato com a incerteza, ovazio, a falta de direcionamento. A juno desses dois movimentos constitui o desafiopara ler as imagens.

    Desse modo, religar o que parece separado constitui um caminho complexo quepara Edgar Morin (2008) requeira superar as barreiras paradigmticas que confinam o

    olhar a enxergar as partes em detrimento do todo, ou vice-versa. Religar aproximar semfundir, combinar elementos e linguagens heterclitas, prolongando os fios em direo aoutras redes de significados.

    A apropriao do conhecimento depende de aes que so desenvolvidas na esferados sujeitos. Assim, de nada vale pensar em estratgias se as pessoas no estiveremdispostas a agir utilizando informaes que sirvam para alimentar os processos de orga-nizao da aprendizagem. Para Morin (2005, p.250-1), o conhecimento programa eestratgia. Segundo ele, a nossa organizao cerebral funciona a partir de estruturas e

    patterns, base rgida que assimila, codifica, decodifica e propicia as possibilidades de

    sinapses organizadoras do conhecimento. fundamental que essa base rgida sejaalimentada por informaes que diversifiquem as competncias, favorecendo umaampliao das possibilidades de combinaes sinpticas que complexificam, enriquecema construo da realidade fenomnica.

    Nesse sentido, o programa um conjunto de instrues codificadas que, quandoaparecem as condies especficas de sua execuo, permite o desencadeamento, ocontrole, o comando por um aparelho sequencial de operaes definidas e coordenadaspara alcanar certo resultado (ibidem). O programa opera a partir do que est informadopreviamente, sendo vinculado a processos executivos. Pensar sobre essa perspectiva criar uma base de informaes fixas que alimentam o sistema, procurando respostas quepermitam organizaes, visando atender quilo que j est estabelecido.

    No mbito da imagem, poderamos supor que uma viso programtica guia o olharpelo referente, procurando, sempre, descrever o fato ou acontecimento revelado dentrodos limites de suas margens. Os desvios, rudos e frustraes, quando observados, devemservir para colocar novamente no eixo aquilo que tende a desequilibrar ou pr em riscoo que foi revelado.

    J a estratgia comporta, assim como o programa, de acordo com Morin, odesencadeamento de sequncias de operaes coordenadas. Porm, diferente do pro-grama, a estratgia no est baseada apenas em decises iniciais, mas naquilo que se

    apresenta no processo, estando atenta aos acontecimentos, eventos, rudos e desvios queaparecem. A estratgia se desconstri, submete-se a riscos. Assim, supe a aptido para

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    empreender uma ao na incerteza e para integrar a incerteza na conduta da ao.Significa que a estratgia necessita de competncia e de iniciativa (ibidem).

    Na leitura da imagem, o programa importante para proporcionar ao leitor asdiretrizes iniciais sobre as quais o olhar se debrua. Essas condies iniciais orientam as

    aes, mas no se constituem em um fim em si mesmas. A estratgia fundamental paraincorporar sua ao, o risco, os desvios, os rudos, os desafios e erros que se apresentamno decorrer do processo, tornando a imagem uma estrutura aberta. Nesse sentido, ampliaa base estrutural na qual a imagem foi revelada, fornecendo elementos que favorecemnovas sinapses cognitivas, assumindo o acontecimento e o evento como estruturantesnos processos iconogrficos.

    Desse modo, programa e estratgia recorrem um ao outro. Porm, a riqueza daestratgia est em assumir sem culpas ou medos a tomada de deciso em situaesde incerteza. A estratgia significa encontrar caminhos diante de situaes inesperadas.O professor convive sempre com o inesperado e, muitas vezes, pensa que deve

    desconsider-lo, mantendo aquilo que est estabelecido no programa, pois se senteinseguro diante do que no domina. Ento precisamos aprender a lidar com a incerteza ea novidade, incorporando-as leitura do espao. A estratgia no um meio de ao,mas a a arte da ao viva.

    Tornar viva a ao pode ser tambm o desejo de Bachelard (1993) quando fala daimagem imaginada. Para esse pensador, o sujeito se move dentro de um campo que lhe prximo, de algo que parece evidente, que est perto do olhar. dessa proximidade queaflora a imagem imaginada. Se a imagem visual tende a aprisionar o olhar ao que foirevelado, a imaginao sobre o que est evidente constitui o motor que faz girar a roda

    das sensaes, produzindo o devaneio nas palavras e nos espaos, mobilizando o sujeitopara agir.Geografizar as imagens supe colocar em movimento os espaos que foram conge-

    lados pelo tempo em suportes como a pintura e fotografia, por exemplo, estimulando aGeografia adormecida a retornar ao palco, tornando-se um personagem da vida real,material e concreta que encena as distintas histrias da vida coletiva e privada da cidade.Esse retorno provoca reordenaes na composio da leitura geogrfica do espao, tor-nando evidente sua estruturao. Nesse aspecto, a Geografia no apenas uma cinciado presente, mas um conhecimento que dialoga com o tempo, procurando elaborar umaescrita que entende o espao como uma inscrio material das diferentes temporalidadesvivenciadas pela sociedade.

    A elaborao dessa escrita requer do gegrafo aportar-se naquilo que produzido,procurando encontrar nas aes do grupo a presena geogrfica. Isso porque, se o espa-o geogrfico condio e reflexo para o desenvolvimento da sociedade, como nossugere Milton Santos (1978), a presena fsica, objetiva e material dele uma imposioque atravessa todos os objetos socialmente produzidos.

    A espacialidade torna o espao uma clula viva da sociedade. Ou seja, o ponto deebulio que transforma uma matria em outra matria, constituindo-se como a foramotriz que enreda a produo e a leitura do espao geogrfico. Mas como estud-lo?

    Onde encontr-lo? O espao como objeto de estudo deve ser procurado e revelado apartir das diferentes formas de agir da sociedade e dos seus diversos registros.

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    Aqui se pretende utilizar a imagem fotogrfica como meio para conhecer aespacialidade do lugar, fazendo uso de dispositivos que possibilitam aproximar imageme texto. Ento, saber olhar fundamental, como um operador cognitivo que medeia arelao entre imagem e palavra utilizando coordenadas que orientam sua trajetria, reve-

    lando-se como o dispositivo a prioripara navegar pelas informaes imagticas. Saberolhar dispor de programas e estratgias que possibilitem o mergulho e o afastamento, areligao sem a fuso, a imagem e a imaginao. Operando com esses movimentos, oolhar encontra o visvel e o contraria, alargando o sentido; a moldura e a estilhaa,recolocando a imagem no movimento da vida.

    Em uma expedio que rejunta a vontade de saber ao prazer de conhecer, e munidode algumas estratgias, o olhar trilha as ruas da cidade, registrando o meio caminho entreuma passagem e outra. Nessa expedio, vai encontrando imagens que desenham opainel urbano, de onde se infere que toda fotografia portadora de uma geo-histria,posto que sobre elas recaem perguntas e informaes que permitem ensinar sobre a

    poca incrustada nos espaos, o comportamento, a paisagem ou o lugar. So, por umlado, como os biografemasde Barthes (1984), que demonstram a fora do tempo presentena fotografia. Mas, por outro, uma matria que pode ser contemplada, fonte inesgotvelpara ativar os meandros da imaginao, parodiando a realidade. Os fragmentos fotogr-ficos, ao interromper o fluxo espao-temporal, transformam o mesmo espao em objetosportadores de outros significados, que mesmo trazendo aspectos originrios do lugarretratado, o ultrapassam e o alteram.

    Geografizar as imagens dolbum fotogrfico do Caicsignifica encontrar na fotogra-fia que foi feita de Caic em meados de sculo XX a possibilidade de ler o espao,

    revelando a sua espacialidade. A fotografia, ao tornar visvel um objeto de modo idntico,desperta naquele que olha uma sensao de impotncia, de solido, de insuficinciavocabular. Parece que a imagem substitui a palavra, tornando-se definitiva. A semelhanaentre imagem e objeto fotografado irrefutvel, levando o observador a querer apenasidentificar e descrever o que pode ser visto. Dessa perspectiva, a imagem torna-seempobrecedora da realidade, na medida em que nada pode ser acrescentado a ela. Parafugir dessa armadilha necessrio que a fotografia seja pensada pelo dispositivo dasimilitude, e nisso que reside a sua fora: poder habitar o vazio que a imagem provoca,despertar seu simulacro, prolong-la para alm das suas molduras.

    Geografizar Imagens

    O olhar vagueia e encontra olbum de fotografias de Caic. Folheando suas pginasencontramos a rua sombria e calma. Parece mais um cenrio abandonado de um filme defaroeste americano. Os personagens cumpriram seus papis e retornaram para o abrigoseguro de suas casas. O silncio s quebrado pelo passo do personagem desavisado que,tomando conscincia de que no h mais setde gravao, apressa-se para no perder onico meio de locomoo que ainda lhe resta: o burrico esquecido embaixo de uma rvore.

    A cidade fotografada est vazia. Nas imagens, um ensaio de solido. Abandonada,

    em suas ruas no pulsa o corao do transeunte, a vida submergiu nas entranhas docimento, da cal, dos tijolos que, pouco a pouco, do contornos cidade. Inofensiva,

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    distante e desabitada, a cidade perde em sonoridade e ganha em visibilidade. Tudo silncio! A fisionomia urbana esconde a fisionomia dos habitantes. Como em um ensaiofuturista, a cidade projeta uma profundidade vazia, silenciosa e solitria, que o olhar captadinamizando a topofilia da imaginao. Por isso, subtrai do espao aquilo que pode

    perturbar ou surpreender o voo devaneante da solido. A imagem encena o reencontrodos espaos habitados pela solido das lembranas.Solitrias so as ruas por onde trafegava a solido dos loucos da cidade. A doida

    ia e vinha/danava solenemente a orao: no se sabe o qu?, escreve o poeta e profes-sor Francisco Ivan da Silva. O devaneio solitrio desses personagens toma as ruas dacidade para encenar papis, provocar a ordem estabelecida. Ferrolho, Juju, JoaninhaPecadora, Boi de Fogo, entre tantas outraspersonas, tinham na rua o cenrio ideal parasuas aparies. Como para todo artista, a vida s existe no palco, e nesse espao que elepode partilhar a solido do choro e do riso, revelando as faces antagnicas e complemen-tares da existncia humana.

    A animao da rua foi pouco a pouco sendo substituda por outros tipos de diverso,de entretenimento. A fotografia no macula esse cenrio. Pelo contrrio, ela mostra deforma superlativa essa realidade, deixando para o leitor suas possibilidades de interpreta-o. O vazio que ela revela a possibilidade de ser habitada de forma mltipla, semrestries, como faziam os loucos da cidade, mas ao mesmo tempo deixa como reservaa impossibilidade de tocar no silncio que acalenta as lembranas. O vazio a presenademasiadamente forte da incerteza do que vir, mas tambm a fora daquilo que j foi eque no pode existir novamente. Por isso, em cada fotografia, o olhar do espectador perdede vista o final da rua. A profundidade silencia, esconde e revela o vazio do tempo.

    No silncio do espao, a vibrao de um tempo que, aprisionadopelo que foi, teimaem dizer o que ser. O mapa fotogrfico esconde e revela uma cidade que quer sergrande, mas prova a sensao de incerteza, que seduz e embriaga a passagem da adoles-cncia para a vida adulta. Certamente que a cidade do passado est presa ou escondidano desenvolvimento que transformou as ruas do centro de barro batido em ruas asfalta-das e caladas; na igreja de Santana, que ganhou mais uma torre, tornando-se maisimponente aos olhos do viajante que chega; no velho Ford preso s guas do rio Serid,que foi sucumbido pela sofisticao dos automveis velozes que trafegam nas principaisavenidas da cidade; no movimento rotineiro dos habitantes que transitam diariamentepor suas ruas, atrados pelas promessas de consumo das lojas, das vitrines, dos outdoors.

    Quando olhamos as fotografias do lbum, vemos a cidade transformando-se, asforas que impulsionaram esse movimento, a imbricao do tempo e do espao a dese-nhar os contornos imagticos da cidade. L no est o passado estanque em um dadomomento; percebemos, sim, o movimento que sedimenta a condio humana construindoe reconstruindo sua trajetria espao-temporal.

    O que a imagem fotogrfica permite a escrita de uma potica urbana marcada pelatravessia entre tempo, histrias e vazios. O homem rende-se escrita pela luz e montauma morfologia urbana pelos cenrios que expressam a natureza fragmentada e articuladada constituio desse territrio. As imagens no registram a particularidade para separar

    Caic das outras cidades. Assim, como sugeriu La Blache, o singular apenas uma das muitasfeies que o todo pode assumir e, nesse sentido, parte assemelhada a outras partes.

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    Procurar a singularidade uma forma que permite a reintegrao, a regenerao darelao parte e todo. Assim, a cidade revela-se nos passos do fotgrafo devorador deimagens, que retira do anonimato as paisagens urbanas, e comea a registrar a histriapela escrita da luz. As imagens terminam por se revelar em movimentos de distanciamentos

    e aproximaes, tornando-se isso a condio para a travessia de um lugar que provin-ciano, mas deseja acasalar-se com a modernidade.Nessa travessia, encontramos espaos que so objetos biogrficos da cidade. O

    grupo escolar Senador Guerra, o mercado pblico, a prefeitura municipal, a construodo aude Itans, so espaos que se encravaram na memria daqueles que vivem oumesmo que j partiram e revelam a intimidade do homem com o lugar. Bachelard (1993,p.33) afirma que a casa natal uma casa habitada. Ele nos mostra que a casa primeiraest povoada de sonhos, fantasmas, medos, valores de uma intimidade que se dispersam,sofrem transformaes, mas ao mesmo tempo nos impregnam, constituindo-se em umgrupo de hbitos orgnicos. De forma anloga, podemos dizer que tambm a cidade

    guarda recantos que encantam e alimentam a imagem potica do lugar. Sobre determina-dos lugares existe uma atmosfera por onde vibram espaos vividos, contaminados pela par-cialidade da imaginao. Esses recantos engendram uma cartografia que reflete a imagem deum lugar borrado pela inexatido da imaginao humana. Aqui os mapas, os croquis, asmaquetes so construes que espelham uma cartografia mental, cuja escala dimensionadapela bricolagem dos elementos materiais e espirituais em que os resultados so uma polissemiade imagens que constroem e reconstroem os lugares perdidos do desejo.

    No jogo obsessivo de visibilidade e invisibilidade, de semelhanas e similitudes, olivro de registro dos lugares perdidos do desejo, ao interromper o fluxo do tempo, salva

    do esquecimento uma cidade que tende a ser soterrada. As imagens, tomadas isoladas ouem conjunto, so sempre a presena definitiva de uma totalidade que esconde o fio deAriadne ou o lugar por onde se deve comear a olhar. Como as narrativas mticas, elasso a ausncia do tempo em sua estrutura linear, ou melhor, so a presena simultnea dopresente, do passado e do futuro, sem cises ou separaes.

    Os objetos biogrficos escola, prefeitura, praa, feira, igreja, rua, casa, sobrado guardam em suas estruturas a presena de uma Geografia adormecida que pode serdespertada pelo olhar que geografiza as imagens, recolocando-as, mesmo que por uminstante, no redemoinho da vida. Assim, no cenrio da produo de imagens h muitasfotografias reveladas e tantas outras impossveis de o serem, que ficam guardadasapenas na imaginao daquele que se pe a olhar as imagens do mundo.

    O espao citadino visto pelo vis da imagem um reservatrio especial para religar aGeografia do passado a do presente e a fotografia um suporte fundamental para isso.Durante muito tempo a imagem fotogrfica esteve presa aos lbuns de famlia, verdadei-ros bas de recordaes do ncleo familiar. Hoje, de forma ampliada, se transformam emlivros de fotografias, constituindo-se em reservatrios que despertam um exercciogeografizante do olhar. Os livros de fotografias deixam os recantos das salas, os bas damemria, os fundos das gavetas e ocupam as estantes das bibliotecas, as escrivaninhasdos intelectuais, as prateleiras das livrarias, os sites de internet, mas guardam dos velhos

    lbuns de famlia a natureza plural e diversa que os alimentam, ou seja, as imagensborradas pela existncia humana. O lbum de famlia no deixou de existir, ele foi

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    ressignificado, reimpresso, reciclado e ampliado, permitindo o acesso mais generalizadodas matrizes culturais.

    Essa segunda forma de existir do lbum de famlia coloca a fotografia em uma posiode destaque, pois no passado acondicionava-se unicamente no espao da casa e da

    famlia. Habita, hoje, espaos coletivos, estantes e museus. O que antes era o registro dens mesmos para ser visto em famlia, hoje a imagem de um fragmento que se inscreve emum contexto ou representa um coletivo que permite a inscrio do sujeito em uma totalidadeque o recebe e o transcende. Ainda, dentro do mesmo movimento de ressignificao dosprimeiros livros de fotografias esto as biografias. Contextualizadas pelas imagens, elas possi-bilitam visualizar e conhecer mais que os sujeitos dos quais falam. O contexto, os objetos, asimagens de poca oferecem a identificao e o contorno de um sujeito enraizado em seutempo e desenraizado pelo olhar que devora as fotografias.

    Em sntese, o lbum de fotografia do passado pode ser entendido, a um s tempo,como a matriz dos livros fotogrficos de hoje, tanto quanto o reduto da permanncia das

    imagens primordiais impressas nos lbuns de famlia. As fotografias dolbum fotogrficode Caicamplificam os registros da cidade na medida em que propiciam perguntas,informaes, criaes, regeneraes e religaes. Outras incurses so possveis, de-monstrando que qualquer fotografia um exerccio de montagem que mantm campostencionais do olhar, desdobrando a realidade em suas camadas arqueolgicas.

    No exerccio de olhar fotografias temos a dimenso da narrativa do tempo, como umcenrio de runas e de regenerao, em que a memria tambm vive do esquecimento.Ao contrrio de Ireneu Funes, personagem borgiano que consegue lembrar tudo, mas incapaz de pensar, Mnemosyne a deusa grega prodigiosa na arte de lembrar para poder

    esquecer. Assim, a lembrana no se constitui em uma repetio do passado simplesmen-te. Mas entre o que foi e como foi tem-se um hiato que alimenta a escolha e, portanto,o ato de pensar. A memria um processo de reorganizao dos fatos vividos, no umarepresentao imitativa da vida. A fotografia institui-se como uma leitura do mundo e umaprxis do olhar que joga com as artimanhas da semelhana e da similitude, da matria e daimaginao, da fragmentao e da religao, na construo dos dispositivos narrativos.

    Quando olhamos fotografias, somos levados a querer identificar o nome da rua,quem morava ali, de quem era as casas, a data, o fato revelado. Um desejo de catalogar,descrever e localizar impe-se, e podemos dizer: essas imagens so de Caic, de SoPaulo, de Paris, de Joo, de Maria, da festa de aniversrio, da primeira comunho, docasamento, entre outros. Assim, sempre queremos lidar com a fotografia pelo que ela foie esquecemos, quase sempre, de ver nela o que ser. Sendo assim, estamos participandodo enigmtico jogo que envolve as regras da fidelidade e da traio realidade,geografizando as imagens para desvelar as mltiplas espacialidades do espao citadino.

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    Recebido em 23/06/2011 Aceito em 24/09/2011

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