14
93 Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014 Estrutura e Agência em Anthony Giddens: Uma análise crítica do estruturacionismo Maria Angélica Peixoto * Anthony Giddens é hoje um dos mais renomados e respeitados sociólogos da contemporaneidade. A sua volumosa produção intelectual está exposta em diversos livros e artigos publicados em diversos idiomas. É possível dizer que, ao lado de Zigmut Bauman e Pierre Bourdieu, ele é um dos maiores sociólogos contemporâneos. É importante analisar tal obra não somente devido a estar em evidência, mas também para ver sua contribuição para a sociologia contemporânea e seus limites. Giddens iniciou sua carreira universitária em 1969, na Universidade de Cambridge e suas primeiras obras ainda não manifestam a originalidade de suas teses que mais tarde ficaram conhecidas como “estruturacionismo”. É somente com o decorrer dos anos que vai construindo seu próprio pensamento sociológico. Esse processo tem início nos anos 1980, especialmente com as obras A Constituição da Sociedade; As Consequências da Modernidade e Modernidade Reflexiva. Após 1994 avança em suas proposições políticas, que ficaram conhecidas como “Terceira Via”, ligado ao processo de derrota do Governo Margareth Tcheater e retorno do Partido Trabalhista ao governo, com Tony Blair, de quem Giddens foi assessor. Isso rendeu * Professora do IFG – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás; Mestre em Sociologia/UnB e Doutoranda em Sociologia/UFG.

212-499-1-PB

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Giddens, Estrutura e Agência Uma análise crítica do estruturacionismo

Citation preview

  • 93Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    Estrutura e Agncia em Anthony Giddens:Uma anlise crtica do estruturacionismo

    Maria Anglica Peixoto*

    Anthony Giddens hoje um dos mais renomados e respeitados socilogos da

    contemporaneidade. A sua volumosa produo intelectual est exposta em diversos

    livros e artigos publicados em diversos idiomas. possvel dizer que, ao lado de Zigmut

    Bauman e Pierre Bourdieu, ele um dos maiores socilogos contemporneos.

    importante analisar tal obra no somente devido a estar em evidncia, mas tambm para

    ver sua contribuio para a sociologia contempornea e seus limites.

    Giddens iniciou sua carreira universitria em 1969, na Universidade de

    Cambridge e suas primeiras obras ainda no manifestam a originalidade de suas teses

    que mais tarde ficaram conhecidas como estruturacionismo. somente com o

    decorrer dos anos que vai construindo seu prprio pensamento sociolgico. Esse

    processo tem incio nos anos 1980, especialmente com as obras A Constituio da

    Sociedade; As Consequncias da Modernidade e Modernidade Reflexiva. Aps 1994

    avana em suas proposies polticas, que ficaram conhecidas como Terceira Via,

    ligado ao processo de derrota do Governo Margareth Tcheater e retorno do Partido

    Trabalhista ao governo, com Tony Blair, de quem Giddens foi assessor. Isso rendeu

    * Professora do IFG Instituto Federal de Educao, Cincia e Tecnologia de Gois; Mestre em

    Sociologia/UnB e Doutoranda em Sociologia/UFG.

  • 94Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    diversas crticas a este socilogo, sendo que sua obra propriamente sociolgica ficou

    esquecida pelos crticos.

    As principais influncias no pensamento de Giddens so as de Marx, Weber,

    Durkheim, interacionismo simblico, fenomenologia e Wittgenstein57. A partir dessas

    influncias ele ir produzir o que ficou conhecido como estruturacionismo, que ser o

    objeto de estudo do presente trabalho.

    O ESTRUTURACIONISMO

    A proposta bsica de Giddens e de sua concepo estruturacionista realizar

    uma sntese entre estrutura e ao (agncia). Assim, a sua concepo no

    estruturalista, pois no parte das estruturas invariveis e sim da unio sinttica entre

    estrutura e ao. O nome estruturacionismo justamente derivado de estruturao, que

    une estrutura e ao. Ele constitui sua sociologia a partir da busca de superar o

    objetivismo e o subjetivismo. Para tanto, ele realiza a crtica do funcionalismo e do

    estruturalismo.

    Giddens coloca que uma exposio preliminar dos principais conceitos da

    teoria da estruturao torna necessrio comear pelas divises que separaram esta

    concepo de outras. Ele coloca dois blocos de teorias para mostrar isso. No primeiro

    bloco, temos as concepes que podem ser chamadas objetivistas. o caso do

    funcionalismo, teoria dos sistemas, estruturalismo, entre outras. O seu foco no

    funcionalismo e estruturalismo, que possuem semelhanas e diferenas. Essas duas

    concepes tendem a manifestar uma posio naturalista e objetivista e possuem um

    carter mais holista, enfatizando fortemente o predomnio do todo sobre as partes

    individuais. O funcionalismo se inspira, desde o positivismo de Comte, na cincia

    biolgica, a cincia em evidncia no sculo 19. O estruturalismo recusa o

    evolucionismo e a biologia, e passa a pensar em termos cognitivos e cai no formalismo.

    Por outro lado, h a hermenutica e as sociologias interpretativas. Nesse

    campo, a subjetividade, abandonada nas demais concepes anteriormente citadas, o

    centro privilegiado. O mundo passa a ser interpretado a partir da experincia subjetiva, e

    pouco se fala em coero. As sociologias interpretativas do primazia ao e ao

    57 Em menor grau se pode falar da influncia do funcionalismo, estruturalismo, psicanlise, abordagens que Giddens retirou algo mas em escala muito menor e no poupou crticas mais fortes, tal como se pode ver nesse trecho: o estruturalismo e tambm o ps-estruturalismo so tradies mortas de pensamento. Apesar das promessas de juventude, no conseguiram promover a revoluo que apregoavam na filosofia e na teoria social (GIDDENS, 1999, p. 281).

  • 95Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    significado na explicao do comportamento humano. Giddens coloca que necessrio

    relacionar estas duas concepes para romper com o imperialismo do objeto social e

    tambm com o imperialismo do sujeito. Giddens busca romper com esses

    imperialismos e apresenta a alternativa da teoria da estruturao.

    Uma de minhas principais ambies na formulao da teoria da estruturao por um fim a cada um desses esforos de estabelecimento de imprios. O domnio bsico de estudo das cincias sociais, de acordo com a teoria da estruturao, no a experincia do ator individual nem a existncia de qualquer forma de totalidade social, mas as prticas sociais ordenadas no espao e no tempo (GIDDENS, 2009, p. 2).

    Giddens aceita a hermenutica como ponto de partida, pois enfatiza que as

    condies sociais so recursivas e que o ator no as cria, mas as recria e o fazem isso a

    partir de uma determinada cognoscibilidade, no natural, mas sob a forma reflexiva.

    A reflexividade no deve ser entendida apenas como autoconscincia, mas como um

    carter monitorado do fluxo contnuo da vida social.

    Ser um ser humano ser um agente intencional, que tem razes para suas atividades e tambm est apto, se solicitado, a elaborar discursivamente essas razes (inclusive mentindo a respeito delas). Mas termos como propsito ou inteno, razo, motivo etc. tm de ser tratados com cautela, porquanto o seu uso na literatura filosfica tem sido muito frequentemente associado a um voluntarismo hermenutico, e porque eles retiram a ao humana da contextualidade espao-tempo (GIDDENS, 2009, p. 3).

    No entanto, Giddens questiona como podemos ter certeza de que as pessoas

    no dissimulam a respeito das razes para suas atividades?. Ele afirma que o

    conhecimento mtuo incorporado em encontros no diretamente acessvel

    conscincia dos atores, que pode ou no haver coerncia com a conscincia discursiva.

    A linha de separao entre conscincia discursiva e conscincia prtica flutuante e

    permevel. No entanto, acrescenta Giddens, tambm h a barreira do inconsciente, tal

    como elaborado pela teoria freudiana, o que no quer dizer concordar com o conjunto

    da anlise de Freud e que no se deve ficar atento contra o reducionismo do

    inconsciente.

    Em sntese, Giddens define a estruturao como o processo de relaes sociais

    no qual elas se estruturam no tempo e no espao via dualidade estrutural. A Estrutura

    seria, para ele, um verdadeiro sistema composto por regras, recursos, limites,

    possibilidades. A dualidade estrutural apontada por Giddens marcada por duas

    estruturas que so resultados de aes anteriores e condies para aes posteriores e

  • 96Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    por isso podem ser consideradas condies e produtos da ao. A estrutura o resultado

    de uma ao anterior.

    Para entender melhor a concepo de Giddens da estruturao, importante

    discutir alguns conceitos bsicos elaborador por ele. O primeiro o de agente e agncia.

    Os agentes controlam e regulam o fluxo de suas atividades e monitoram aspectos fsicos

    e sociais nos contexto em que atuam, bem como esperam o mesmo por parte dos outros.

    Nisso consiste a reflexividade. A competncia justamente o processo no qual os

    agentes competentes esperam dos outros, que que sejam capazes de explicar o que

    fazem quando indagados. A monitorao reflexiva e a racionalizao da ao so

    distintas das motivaes. A motivao est mais ligada ao potencial para a ao e no ao

    modo como ela executada. A motivao tende a ter uma influencia direta apenas em

    processos incomuns, que rompem com a rotina. O elemento fundamental da anlise de

    Giddens, no entanto, o conceito de agncia.

    Agncia no se refere s intenes que as pessoas tm ao fazer as coisas, mas capacidade delas para realizar essas coisas em primeiro lugar (sendo por isso que agncia subentende poder: cf. uma definio de agente do Oxford English Dicitionary como algum que exerce poder ou produz um efeito). Agncia diz respeito a eventos dos quais um indivduo o perpetuador, no sentido de que ele poderia, em qualquer fase de uma dada sequencia de conduta, ter atuado de modo diferente. O que quer que tenha acontecido no o teria se esse indivduo no tivesse interferido. A ao um processo contnuo, um fluxo, em que a monitorao reflexiva que o indivduo mantm fundamental para o controle do corpo que os atores ordinariamente sustentam at o fim de suas vidas no dia-a-dia. Sou o autor de muitas coisas que no tenho a inteno de fazer e que posso no querer realizar, mas que, no obstante, fao. Inversamente, pode haver circunstncias em eu pretendo realizar alguma coisa, e a realizo, embora no diretamente atravs de minha agncia (GIDDENS, 2009, p. 11).

    A relao entre agncia e poder requer uma discusso sobre o conceito de

    poder, que nas cincias humanas geralmente esto ligados ao dualismo sujeito-objeto. A

    agncia remete ao poder enquanto possibilidade de ao. O poder teria dois aspectos,

    que seria a capacidade dos atores efetivar suas decises em suas atividades e

    mobilizao de tendncias embutidas nas instituies. Contudo, Giddens rompe com

    essa linguagem e com a abordagem foucaultiana no sentido de trabalhar com a ideia de

    recursos, meios existentes que possibilitam ao, e que mesmo em situao de

    dependncia, em situao institucional, podem influenciar as atividades dos superiores.

    A estrutura se relaciona como regras e recursos, que so inseparveis. As

    regras esto relacionadas com a constituio de significados e sancionamento dos

  • 97Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    modos de conduta social e os recursos remetem a procedimentos metdicos de interao

    social. A dualidade estrutural caracterizada por estruturas que so resultados de aes

    anteriores e condies para aes posteriores, condies e produtos da ao. A estrutura

    resultado de uma ao anterior que condiciona a ao posterior. Esse condicionamento

    da ao posterior, que impede cair no voluntarismo, se expressa atravs do seu carter

    limitador e habilitador (o idioma, por exemplo, limita mas habilita). A estrutura , no

    fundo, um instrumento abstrato do socilogo para reconhecer o que estabilizado, que

    no se inventa a cada interao, mas que s compreensvel empiricamente quando

    atualizado na ao e interao.

    PROBLEMAS DO ESTRUTURACIONISMO

    A proposta de Anthony Giddens conseguiu um grande espao na literatura

    sociolgica e nas cincias sociais. Contudo, nos ltimos anos vem perdendo espao e

    flego. Segundo Silva (2010), as cincias sociais tambm so vtimas de modismos e o

    caso de Giddens um exemplo disso. Ele teve razes extra-acadmicas (ter se

    envolvido com a discusso em moda sobre globalizao, a assessoria de Tony Blair) e

    acadmicas para alcanar um relativo sucesso. Aps o sucesso vem o esquecimento

    progressivo das modas. O fracasso aps o sucesso tambm contou com fatores extra-

    acadmicos, tal como a derrota da Terceira Via. O mais importante so os fatores

    internos:

    O mais bvio que ele simplesmente no publica mais obras tericas de

    sociologia desde 1994. Por mais importante que estas obras sejam, depois da torrente

    inicial de trabalhos secundrios de anlise, de se esperar que o interesse diminua. Isto,

    de qualquer forma, no de preocupar, pois a histria da sociologia e da teoria social

    est repleta de eventos cclicos, onde autores crescem e mnguam em diferentes

    perodos. bastante possvel que Giddens apenas esteja em sua primeira fase

    minguante, depois de um crescimento quase ininterrupto desde o incio dos anos 1970

    (SILVA, 2010, p. 09).

    por isso que uma avalanche de crticas foram direcionadas a Anthony

    Giddens, o que se iniciou com mais fora nos anos 1990, focalizando especialmente a

  • 98Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    questo da Terceira Via58 e depois deslocando para sua teoria sociolgica. Alis, alguns

    deixaram claro o vnculo de sua teoria da terceira via com a sua teoria sociolgica

    geral59. As crticas sua concepo se desenvolvem tanto no que se refere sua teoria

    em geral quanto a aspectos particulares, tais como a falta de uma epistemologia

    (SILVA, 2009; MCLENNAN, 2009)60, a falta de espao em sua concepo para a ao

    coletiva, a tese da modernizao reflexiva (COSTA, 2004) ou at mesmo se ele

    realmente conseguiu superar a dicotomia entre sujeito e objeto (BAUMAN, 2009), entre

    outras que poderiam ser citadas.

    Dentro dos objetivos do presente trabalho, no ser possvel uma avaliao

    mais ampla de todas as objees que a teoria sociolgica de Giddens sofreu e por isso a

    opo aqui foi de avaliar criticamente a contribuio deste socilogo a partir do seu

    confronto com o materialismo histrico.

    O confronto entre materialismo histrico e Giddens tem como eixo bsico,

    retirando as questes de diferenas metodolgicas, o foco deste autor na relao entre

    estrutura e ao, sujeito e objeto. A ideia de superao do objetivismo um dos

    elementos chaves nesse contexto de discusso. A interpretao mais comum a de que

    o materialismo histrico objetivista e que a concepo de Giddens superou o

    objetivismo com sua concepo de agncia. Ento necessrio analisar as duas

    coisas, ou seja, se o materialismo histrico realmente um objetivismo e se Giddens o

    superou e aps isso possvel comparar as duas escolas de pensamento.

    58 Contra Giddens, as crticas centraram-se, nos ltimos anos, em sua converso poltica, por meio do

    programa da terceira via. Para os crticos, o programa da terceira via no faz mais do que conferir uma roupagem retrica progressista resignada capitulao diante da dinmica de um capitalismo global que multiplica as desigualdades sociais e no atende a outro comando que no seja sua prpria lgica expansiva (COSTA, 2004, p. 74).

    59 parte a questo da coerncia terica ou, na verdade, dos mritos dessas propostas, a discusso de Giddens sobre a economia global amplamente prejudicada por seu malogro em considerar sejam os obstculos contrapostos ou as foras passveis de serem mobilizadas em apoio s medidas por ele advogadas. Surpreendentemente, na obra de um terico cujos primeiros escritos preocupavam-se em conceptualizar a natureza e as diferentes modalidades da dominao social, A terceira via no apresenta nenhum exame das estruturas de poder altamente desiguais no mundo contemporneo. Contudo, mesmo que a natureza da modernidade recente fosse realmente tal que tornasse obsoleta a crtica socialista clssica, qualquer esforo srio no sentido de um pensamento estratgico para a Esquerda teria ainda, por certo, que atentar sistematicamente para a distribuio de poder prevalecente. Como Giddens no o faz, seu intento de renovar a social democracia parece quase frvolo. Um cnico poderia concluir que as relaes de dominao deixam de ser visveis para aqueles que decidiram aceit-las (CALLINICOS, 2009, p. 265).

    60 Isso defendido explicitamente por Giddens (2009) e analisado por outros (COHEN, 1999), pois para ele a preocupao com questes metodolgicas serve para desviar das questes ontolgicas, o que no aceito pelos seus crticos acima mencionados.

  • 99Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    A respeito do materialismo histrico, interessante observar que Marx o

    primeiro a ser acusado de objetivista. As estruturas, a economia, o modo de produo

    ou a luta de classes seriam os elementos determinantes das aes sociais e individuais.

    Esta posio , por sua vez, questionada por inmeros autores e sob inmeras formas.

    Recentemente vem sendo produzida uma ampla bibliografia que questiona essas

    interpretaes do pensamento de Marx (EAGLETON; 2012; MANACORDA, 2012;

    WILLIAMS, 2011; VIANA, 2007a; VIANA, 2007b). Os intrpretes nos servem para

    abrir caminhos interpretativos, mas no dispensa a leitura dos autores por eles mesmos.

    A relao entre indivduo e sociedade em Marx aponta para uma percepo segundo a

    qual os homens fazem sua histria, sob condies determinadas (MARX, 1986). Essa

    afirmao, tantas vezes repetidas e comentadas, coloca dois elementos bsicos: os

    indivduos no fazem a histria ao seu bel prazer, no atuam arbitrariamente, no

    determinam a histria voluntariamente.

    Isso pode parecer determinismo ou objetivismo. Mas uma afirmao genrica

    sobre a transformao histrica e que no diz quais so essas condies num sentido

    mais concreto. Essas condies so as foras produtivas herdadas do passado, das

    geraes anteriores, e as relaes de produo instauradas. nesse contexto que os

    homens agem e essa ao que define o futuro histrico. No algo como Deus ou

    natureza que marca o desenvolvimento histrico e sim as relaes sociais entre os

    homens (MARX, 1983a). Nessas relaes sociais os indivduos possuem vontades,

    interesses, necessidades e agem diante das condies existentes para realiz-las.

    O problema da conscincia, das representaes, aparece nesse momento. Sem

    dvida, Marx pensa que os seres humanos agem no de acordo apenas com sua

    conscincia. Essa conscincia ela mesma social, no cai do cu e nem produto de um

    esprito parte (MARX e ENGELS, 1992). Segundo uma de suas frmulas mais

    conhecidas, no a conscincia que determina a vida, mas a vida que determina a

    conscincia (MARX, 1983b). A vontade, os interesses, as necessidades, no so

    derivadas da conscincia, como pensa o racionalismo, amplamente criticado na

    atualidade pelo ps-estruturalismo61 e que confunde tal pensamento com o de Marx. As

    necessidades dos indivduos so variadas, algumas tm origem biolgica (as

    61 Entenda-se, por ps-estruturalismo, o que comumente chamado de ps-modernismo. Contudo, a

    primeira expresso mais exata por que a pretenso de superao, seja do modernismo seja da modernidade, ilusria e uma autoimagem ideolgica (VIANA, 2009).

  • 100Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    necessidades bsicas), outras sociais, como produto da prpria evoluo humana

    (MARX e ENGELS, 1992). A vontade est ligada tanto s necessidades quanto

    conscincia, embora Marx e Engels no tenham feito nenhuma afirmao textual sobre

    isso e que visvel no conjunto da obra. Os interesses esto ligados vontade,

    conscincia e necessidades, sem dvida. necessrio perceber que alm disso e acima

    disso h as necessidades socialmente produzidas, que no so os indivduos apenas mas

    eles na sociedade e de acordo com as classes sociais, poca, sociedade.

    No possvel abstrair esses processos na abordagem de Marx, j que a

    totalidade um princpio metodolgico presente em toda a sua construo (MARX,

    1983b; VIANA, 2007a; VIANA, 2007b). O fundamental na concepo de Marx a

    respeito da relao entre indivduo e sociedade entender que tal relao histrica,

    social, e no uma abstrao j definida a priori por uma determinada ideologia. O grau

    de liberdade do indivduo varia com a poca, com as condies sociais, com o conjunto

    histrico e social de um dado momento. por isso que ele pensava o comunismo como

    o reino da liberdade, pois na nova sociedade ps-capitalista os indivduos poderiam

    usufruir de uma liberdade mais ampla como nunca vista na histria da humanidade: No

    lugar da velha sociedade burguesa com as suas classes e antagonismos de classes

    surge uma associao na qual o livre desenvolvimento de cada um a condio para o

    livre desenvolvimento de todos (MARX e ENGELS, 1988).

    Mas mesmo na sociedade de classes, possvel afirmar que para Marx existe

    uma margem de liberdade individual, uma autonomia relativa do indivduo (VIANA,

    1999). No se trata de uma autonomia absoluta, pois as condies esto dadas, o

    indivduo nasce numa sociedade j construda, com um determinado modo de produo,

    organizao estatal, sociedade civil, cultura e portanto nesse processo que ele

    socializado e vai constituindo sua individualidade. No seu processo histrico de vida ele

    torna-se o que (MARX e ENGELS, 1992). Ele vai se constituindo como indivduo e

    em sua individualidade age e luta por suas necessidades, vontade, interesses,

    conscincia e busca alterar e mudar a histria, ou conserv-la. Se houvesse um

    determinismo completo agindo sobre o indivduo, como alguns supem encontrar na

    obra de Marx, no seria possvel a revoluo que ele esperava e nem seria possvel que

    indivduos da burguesia ou de outras classes aderissem luta proletria, como ele

    colocou certa vez (MARX e ENGELS, 1988) e ele foi um exemplo vivo disso.

  • 101Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    O desenvolvimento do materialismo histrico trouxe novas contribuies alm

    das apresentadas por Marx. No possvel realizar aqui um histrico do conjunto de

    contribuies e discusses inspiradas pela concepo marxista, pois trata-se de uma

    enorme quantidade de autores, obras, tendncias. Mesmo no que se refere ao caso

    especfico do indivduo, isso englobaria milhares de autores e teses, desde os mais

    antigos (PLEKHANOV, 1974) at os mais recentes (THOMAS, 1997). Por isso

    podemos pensar o processo de que, no caso do indivduo, ele adquire uma autonomia

    relativa, o que j pode ser interpretado em Marx, que varivel e depende das

    condies sociais e histricas em geral, por um lado, e pela histria de vida do indivduo

    e sua insero especfica em determinadas relaes sociais (VIANA, 2011). A partir

    desse contexto, e acrescentando a contribuio psicanaltica (VIANA, 2008), possvel

    entender o indivduo como um todo complexo que adquire uma singularidade psquica

    com seu desenvolvimento histrico (VIANA, 2011). Essa singularidade psquica e a

    posio social do indivduo pode aumentar ou diminuir sua autonomia relativa e, por

    conseguinte, estar mais ou menos submetido aos ditames da sociedade em que est

    inserido.

    Dito isto, importante avaliar a concepo estruturacionista de Giddens para

    uma posterior comparao. J foi dito antes que ele recebeu muitas crticas e entre elas a

    sua proposta de superao do dualismo sujeito e objeto para superar o objetivismo.

    til ver a este respeito o que coloca outro grande socilogo da contemporaneidade:

    As coeres que reduzem as opes de indivduos sem propriedades a apenas uma e, hoje em dia, cada vez mais opo do desemprego so parcialmente impostas pelas condies da produo e troca capitalistas; e eu j afirmei que enganador e no muito til tentar forar estas condies no molde conceitual da estrutura qua regras e recursos. O segundo problema trata da relao entre coero estrutural e ao. Um tema central da teoria de Giddens que o conceito de ao implica que uma pessoa poderia ter agido de outra forma: um agente que no tem opo alguma, ele insiste, no mais um agente. Entretanto, em sua discusso da coero estrutural, Giddens reconhece a possibilidade de que tal coero pode reduzir as opes de um indivduo a apenas uma. No difcil enxergar que um indivduo que s tem uma opo no tem opes, pois no h nenhum outro curso de ao que o indivduo poderia escolher, e, assim, parece no fazersentido dizer que ele ou ela poderia ter agido de outra forma. A estrutura e a ao no parecem mais serem termos complementares de uma dualidade, esim os polos antagonistas de um dualismo, de modo que a coero estrutural pode limitar tanto as opes de um indivduo, que a ao efetivamente se dissolve (BAUMAN, 2009, p. 238).

    O que Bauman questiona em Giddens que, no fundo, ele no rompe com a

    oposio entre estrutura e ao, e percebe esta de forma desligada da estrutura social,

  • 102Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    caindo num subjetivismo. A sua ideia de agncia cai justamente nesse equvoco e sua

    anlise da estrutura ou coero estrutural deixa a desejar. Bauman continua:

    Creio que um confronto mais direto com estes assuntos requereria uma concepo mais satisfatria de estrutura e coero estrutural, assim como uma anlise mais sistemtica das vontades e desejos relevantes para a ao e escolhas individuais. Todas as opes so opes factveis no sentido em que elas dependem das vontades e desejos dos atores cujas opes elas so: um curso de ao possvel no seria uma opo para um agente se ele no tivesse relevncia alguma para qualquer coisa que o agente quisesse. Mas as opes variam muito em seu alcance, natureza, e no carter das vontades e desejos dos quais dependem. Uma das principais tarefas da anlise social explorar este espao de possibilidades, tanto em termos da distribuio diferencial das opes de acordo com classe, idade, sexo, e assimpor diante, quanto tambm em termos dos tipos de vontades e desejos, interesses e necessidades, que so eles mesmos possudos de forma variada. A distribuio variada de opes e necessidades implica que certos indivduos ou grupos de indivduos tm um escopo maior de ao e escolha que outros indivduos ou grupos de indivduos: poderamos dizer que aliberdade desfrutada por pessoas diferentes em graus variados. Explorar oespao entre a distribuio diferencial de opes, por um lado, e as vontadese necessidades de tipos diferentes e de categorias diferentes de indivduos, por outro, examinar os graus de liberdade e coero que so implicados pela estrutura social. Tal anlise mostraria que, ainda que a estrutura e a aono sejam antinomias, no obstante elas no so to complementares, nem sesustentam to mutuamente como Giddens gostaria que acreditssemos(BAUMAN, 2009, p. 238).

    Essas colocaes de Bauman so bastante prximas da concepo de Marx,

    apesar deste usar outra linguagem. A ideia de agncia no sentido de Giddens fornece

    uma iluso de liberdade no existente em determinadas relaes sociais, pois os

    processos sociais no permitem aos indivduos uma ampla liberdade, mas somente uma

    liberdade relativa e que varia de acordo com um conjunto de condies que varia com

    as classes, posio social, cultura, indivduos.

    No muito difcil entender que um indivduo burgus tem uma margem de

    liberdade muito maior que um indivduo proletrio, pois os seus recursos financeiros,

    capital cultural, para utilizar expresso de Bourdieu (), influncia social, lhe permite

    maior quantidade de opes para escolher e maior poder de coero sobre os outros. O

    indivduo proletrio tem uma restrio muito maior, devido aos seus recursos

    financeiros muito inferiores, sua posio na empresa e na sociedade inferior, seu menor

    capital cultural, e, logo, menos opes e possibilidade de escolhas. Claro que isso

    derivado das relaes sociais e da posio de ambos nas relaes de produo

    capitalistas. O proletrio s ganha mais fora quando se une com outros proletrios, ou

    seja, quando age coletivamente e no individualmente, embora isso seja uma deciso

  • 103Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    individual (de diversos indivduos). Nesse processo, preciso entender que as condies

    sociais no so iguais para todos os indivduos e por isso a oposio abstrata entre

    indivduo e sociedade realizada por Giddens (assim como por diversos outros

    socilogos, sendo que sempre existiram aqueles que tambm se opuseram a tal

    percepo) no resolve a questo e exatamente isso que Bauman questiona, bem como

    Callinicos (2009) que critica o novo individualismo representado por Giddens.

    A partir dessas reflexes possvel entender que o materialismo histrico,

    desde que superado a vulgarizao e simplificao do mesmo, oferece uma posio

    sobre a relao indivduo-sociedade muito mais rica e complexa do que a concepo de

    Giddens e que alguns autores buscaram discutir e recuperar (MANACORDA, 2012;

    EAGLETON, 2012; VIANA, 1999; VIANA, 2011). O estruturacionismo coloca um

    problema da teoria sociolgica e se prope a resolv-lo, mas, como constata Baumann

    (2009) e McLennan (2009), isso no se concretiza na prtica.

    CONSIDERAES FINAIS

    A anlise efetivada no presente texto consistiu de uma breve apresentao da

    teoria da estruturao de Anthony Giddens e sua comparao com o materialismo

    histrico. Sem dvida, a abordagem de Giddens poderia ter sido criticada a partir de

    outras concepes em evidncia na atualidade, tal como a de Foucault, autor criticado

    por ele e defendido por outros62 e tambm numa comparao com Bourdieu haveria de

    se considerar diferenas e excesso de autonomia individual em Giddens em contraste

    com o socilogo francs63. O materialismo histrico sofreu durante sua histria muitos

    ataques e teve muitas crises, mas sempre ressurgiu e o que ocorre hoje. No este, no

    entanto, o motivo pela preferncia por sua abordagem e sim por ter apresentado uma

    concepo de indivduo e sociedade que no transforma nem um nem o outro em

    absolutos fora da histria e sim como construes histricas que se alteram e cuja

    62 Giddens critica em algumas oportunidades a ideia de corpo dcil e disciplina em Foucault

    (GIDDENS, 2009), do biopoder (GIDDENS, 1993) teses segundo as quais a liberdade dos indivduosseria restrita e que no perceberia o avano da reflexividade na sociedade atual (GIDDENS, 2002), o que lhe vale algumas crticas sob este aspecto (SILVA, 2010).

    63 Para Giddens, o individuo modifica suas circunstncias no s em razo de sua faculdade eletiva, mas tambm devido sua capacidade de acesso e controle de recursos de poder e sua posio nas redes de relaes humanas A reflexibilidade do sujeito a faculdade especfica da agncia humana que o habilita a pensar o que faz, as regras que segue e, portanto para transformar as prticas e as regras (CARNEIRO, 2006, p. 46), Para esta autora, haveria em Giddens uma margem de manobra maior para os indivduos. possvel discordar dessa abordagem, pois em Bourdieu h um peso muito maior do social sobre o indivduo e em Giddens uma margem de liberdade muito mais extensa.

  • 104Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    relao no pode ser fixada abstratamente sem anlise das relaes concretas e

    histricas construdas em determinada poca, lugar, contexto e sem levar em

    considerao as posies sociais distintas, a correlao de fora entre classes, indivduos

    e muitos outros aspectos.

    A abordagem de Giddens tem o mrito de criticar a fossilizao do

    funcionalismo e estruturalismo, tentar superar o objetivismo. A forma como ele

    apresenta sua soluo que se torna problemtica e sua interpretao problemtica de

    Marx e do materialismo histrico acaba lhe impedindo de perceber que a soluo que

    ele procura j tinha elementos nessa abordagem.

    Desta forma, interessante repensar a ideia de liberdade e ao num sentido

    mais histrico e social, reconhecendo que os indivduos, na sociedade capitalista,

    possuem uma autonomia relativa e bastante restrita, principalmente aqueles que

    pertencem s classes sociais desprivilegiadas. A abordagem de Giddens no faz essa e

    outras distines necessrias para compreender a relao indivduo e sociedade e por

    isso acaba apresentando uma noo excessivamente ampla de liberdade. Por isso a

    contraposio entre Giddens e materialismo histrico importante e necessria e nos

    ajuda a sair do enfoque neoindividualista do primeiro.

    REFERNCIAS

    CALLINICOS, Alex. A teoria social e o teste da poltica. Pierre Bourdieu e Anthony Giddens. Revista Brasileira de Cincia Poltica, n 1. Braslia, janeiro-junho de 2009. CARNEIRO, Cristina M. Q. Estrutura e Ao: Aproximaes entre Giddens e Bourdieu. Revista Tempo da Cincia (13 ) 26 : 39-47 2 semestre 2006. COHEN, Ira. Teoria da estruturao e prxis social. GIDDENS, A. e TURNER, J. Teoria social hoje. So Paulo: Unesp, 1999. COSTA, Srgio. Quase crtica: insuficincias da sociologia da modernizao reflexiva. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, v. 16, n. 2, 2004. EAGLETON, Terry. Marx estava certo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. GIDDENS, Anthony. A Constituio da sociedade. So Paulo: Martins Fontes, 2009. GIDDENS, Anthony. A transformao da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. So Paulo: Ed. Unesp, 1993.

  • 105Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    GIDDENS, Anthony. Estruturalismo, ps-estruturalismo e a produo da cultura. GIDDENS, A. e TURNER, J. Teoria social hoje. So Paulo: Unesp, 1999. MANACORDA, Mrio Alighiero. Karl Marx e a liberdade. Aquele velho liberal do comunista Karl Marx. Campinas: Alnea, 2012.

    MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alem (Feuerbach). So Paulo: Hucitec, 2002. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Petrpolis: Vozes, 1988. MARX, Karl. Contribuio crtica da economia poltica. 3 edio, So Paulo: Martins Fontes, 1983b. MARX, Karl. Manuscritos Econmico-Filosficos. In: FROMM, Erich. O Conceito marxista de Homem. 8 edio, Rio de Janeiro: Zahar, 1983a. MARX, Karl. O Dezoito Brumrio e Cartas a Kugelmann. 5 edio, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. MCLENNAN, Gregor. Teoria crtica ou positiva? Um comentrio sobre o estatuto da teoria social de Anthony Giddens. in: SILVA, Fbio R. R. Realismo e redes: dilemas metodolgicos na obra de Anthony Giddens. So Paulo: USP, 2010 (Dissertao de Mestrado). PLEKHANOV, G. A Concepo Materialista da Histria. 4 Edio, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. SILVA, Fbio R. R. Realismo e redes: dilemas metodolgicos na obra de Anthony Giddens. So Paulo: USP, 2010 (Dissertao de Mestrado). THOMAS, Tom. Breve histria do indivduo. Lisboa: Edies Dinossauro, 1997. VIANA, Nildo. A Conscincia da Histria. Ensaios sobre o Materialismo Histrico-dialtico. 2 edio, Rio de Janeiro: Achiam, 2007a. VIANA, Nildo. Escritos metodolgicos de Marx. 3 edio, Goinia: Alternativa, 2007b. VIANA, Nildo. Individualismo e Holismo na Metodologia das Cincias Sociais. Fragmentos de Cultura (Goinia), Goinia, v. 9, n.6, p. 1259-1282, 1999. VIANA, Nildo. Introduo Sociologia. 2 edio, Belo Horizonte: Autntica, 2011. VIANA, Nildo. O Capitalismo na era da acumulao integral. So Paulo: Ideias e Letras, 2009.

  • 106Revista Sociologia em Rede, vol. 4, num. 4, 2014

    VIANA, Nildo. Universo psquico e reproduo do capital. So Paulo: Escuta: Autntica, 2011. WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. So Paulo: UNESP, 2011.