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9 ISSN 1809-2616 ANAIS VI FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2008-2009 __________________________________________________________________ JERZY GROTOWSKI: O ator- performer – aproximações com o Teatro Essencial de Denise Stoklos Jaqueline Valdívia Pereira * [email protected] Resumo: O presente estudo discute o conceito de ator - performer no Teatro Pobre de Jerzy Grotowski. Através de uma abordagem teórica, este trabalho relaciona os procedimentos de ator concebidos por Grotowski – em suas aproximações com a idéia de performer. Tal proposta visa apresentar as transformações de aspectos técnicos e poéticos que, ao estabelecer uma nova relação entre o ator, autor e seu ofício, culminam na consolidação do Teatro Pobre. Palavras-chave: Ator- performer, Teatro Pobre, Jerzy Grotowski. Jerzy Grotowski nasceu na Polônia (1955), onde estudou interpretação na Escola de Teatro de Cracóvia e direção no (GITIS) Instituto Lunacharsky de Artes Teatrais. Grotowski é referência constante para estudiosos da prática e teoria do teatro do século XX. Ao longo de sua trajetória, enquanto pesquisador e diretor teatral, explorou fundamentalmente o lugar do ator enquanto criador, dando continuidade às pesquisas de Constantin Stanislavski. O presente estudo procura compreender a ética e a disciplina apresentadas no espetáculo Príncipe Constante (1965) trabalho desenvolvido pelo ator Risard Cislak, na Polônia, sob orientação de Jersy Grotowski, no desenvolvimento da estética do Teatro Pobre (1959-1980). O espetáculo referido servirá como farol para o desenvolvimento de uma nova orientação para o ator na contemporaneidade, a transição da ética (ethos, Mestre em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2007). Atualmente é professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Ao longo de sua trajetória estudou e trabalhou com Denise Stoklos, André Carreira, Luiz Carlos Vasconcelos - Grupo Piolin e no CPT - Centro de Pesquisas Teatrais sob orientação de Antunes Filho.

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ISSN 1809-2616

ANAISVI FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2008-2009__________________________________________________________________

JERZY GROTOWSKI:

O ator- performer – aproximações com o Teatro Essencial de Denise Stoklos

Jaqueline Valdívia Pereira∗

[email protected]

Resumo: O presente estudo discute o conceito de ator - performer no Teatro Pobre de Jerzy Grotowski. Através de uma abordagem teórica, este trabalho relaciona os procedimentos de ator concebidos por Grotowski – em suas aproximações com a idéia de performer. Tal proposta visa apresentar as transformações de aspectos técnicos e poéticos que, ao estabelecer uma nova relação entre o ator, autor e seu ofício, culminam na consolidação do Teatro Pobre.Palavras-chave: Ator- performer, Teatro Pobre, Jerzy Grotowski.

Jerzy Grotowski nasceu na Polônia (1955), onde estudou interpretação na

Escola de Teatro de Cracóvia e direção no (GITIS) Instituto Lunacharsky de Artes

Teatrais. Grotowski é referência constante para estudiosos da prática e teoria do teatro

do século XX. Ao longo de sua trajetória, enquanto pesquisador e diretor teatral,

explorou fundamentalmente o lugar do ator enquanto criador, dando continuidade às

pesquisas de Constantin Stanislavski.

O presente estudo procura compreender a ética e a disciplina apresentadas no

espetáculo Príncipe Constante (1965) trabalho desenvolvido pelo ator Risard Cislak, na

Polônia, sob orientação de Jersy Grotowski, no desenvolvimento da estética do Teatro

Pobre (1959-1980). O espetáculo referido servirá como farol para o desenvolvimento

de uma nova orientação para o ator na contemporaneidade, a transição da ética (ethos,

Mestre em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2007). Atualmente é professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Ao longo de sua trajetória estudou e trabalhou com Denise Stoklos, André Carreira, Luiz Carlos Vasconcelos - Grupo Piolin e no CPT - Centro de Pesquisas Teatrais sob orientação de Antunes Filho.

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costume) do ator dito tradicional, submentido a ordem textual, para outro modelo – ator/

performer – cuja força criadora é determinada pelo ator enquanto compositor.

O ethos como lei é, verdadeiramente a casa ou a morada da liberdade. Essa é a experiência decisiva que está na origem da criação ocidental da sociedade política como espaço ético da soberania da lei. No inicio das Leis, Platão nos fala da educação (VAZ, 1999, p. 16).

A partir da década de 1960, importantes transformações culturais impulsionaram

um processo de atualização do teatro em âmbito mundial. Neste período, Jerzy

Grotowski apareceu como um importante colaborador, fundamentalmente no que diz

respeito a estudos sobre o trabalho do ator, pois nele encontramos uma proposta

teórica submetida à prática atorial. Conforme definição encontrada no dicionário de

teatro de Patrice Pavis, o termo ator consta como sendo “vinculo vivo entre o texto do

autor, as diretivas de atuação do encenador e o olhar e a audição do espectador”.

Propondo outras formas de estruturação, Grotowski considerou o ator como autor de

sua prática, desde o processo de pesquisa ao procedimento de construção do

acontecimento dramático.

Grotowski tem uma trajetória marcada por fases1, sendo que em sua última fase

de trabalho conceitua o ator como um doer, que traduzida do inglês significaria um

fazedor ou autor. A tradução do termo nos permite compreender um pouco mais sobre

o que Grotowski estava tentando proclamar: um ator que produza as próprias ações por

meio de habilidades diversas, tais como o canto, a dança, a produção de uma

dramaturgia corporal e pessoal. Esse fazedor solicita outras possibilidades expressivas,

o que difere da estrutura até então vigente, em que a estrutura do trabalho de ator

encontrava-se ligada a procedimentos próprios de conservatório, os quais privilegiavam

sobremaneira o uso do texto como ponto de partida.

O lugar outrora ocupado pelo ator “de conservatório” precisava ser atualizado, e

nesse sentido Grotowski soube perceber o seu tempo, tendo experimentado na própria 1 1ª fase (1958 a 1969) – Arte como Representação: diz respeito à fase dos espetáculos Fausto e Acrópoles. Em 1959 deu inicio ao teatro laboratório, período de muitas divisões e subperíodos de pesquisa, já a estética do teatro pobre só vem a se definida a partir de 1961 e 1962. 2ª fase (1970 a 1979) Parateatro – projeto coletivo – em grego significa algo que está ao lado, mas que não é mais teatro – os atores buscavam um encontro essencial para isso utilizavam o canto e a dança. 3ª fase (1979 a 1982) - Teatro das fontes: Aspectos opostos à fase anterior, volta ao trabalho individual, retorno as ideias de Stanislavski, sobretudo no que diz respeito ao trabalho sobre si mesmo. Aquilo que o ator pode fazer a partir da sua solidão. 4ª fase: Período Californiano serviu como embrião para a Fase da Arte Como Veículo, neste caso, a palavra veículo tem a ver com o que se faz e não com quem assiste.

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carne as dificuldades de sua época. Consta, por exemplo, que ele e seu grupo

chegaram a passar por necessidades financeiras no contexto da devastação perpetrada

pelos nazistas em sua pátria. O ator ou performer grotowskiano deixa de trabalhar a

partir de uma dramaturgia específica, ou seja, um papel (personagem), passando a

atuar sob muitos pontos de vista, explorando o corpo do performer até construir uma

matriz pessoal. Tal matriz, compartilhada ou não, passaria então a ser manipulada

como partitura para posteriormente ser colada à dimensão dramatúrgica. Nesta

abordagem não convencional, os elementos basilares do teatro – dramaturgia e ator –

são tratados de forma invertida em relação a modelos mais tradicionais, privilegiando-

se o trabalho do ator para posteriormente construir-se uma dramaturgia, à qual se cola

o material levantado pelos atores.

Em artigo publicado na revista Máscara e intitulado O performer, Grotowski utiliza

a seguinte figura simbólica do pontiflex para definir o performer: para ele, o performer é

aquele que faz pontes ou aquele que, através da sua arte, instaura a possibilidade de

um encontro potencializado com a vida, deslocando as fronteiras entre a arte e a vida.

Este vínculo se dá por meio do próprio corpo do ator, isto é, de sua estrutura física e

também por meio da voz, para então chegar à sua trajetória de vida, ou seja, sua

memória.

Na prática grotowskiana, é possível observar a construção dessas pontes na

montagem O príncipe Constante2, na performance do ator Richard Cieslak. Cieslak

trabalhou sem o apoio de um papel, partindo de suas próprias memórias e imagens

pessoais, compondo pequenas partituras corporais. Posteriormente editadas pelo

diretor, tais partituras vieram a construir a cena, atreladas a um texto de cunho mítico -

religioso. Neste caso, o texto – revelador de ancestralidade cultural – estreitava a

relação entre arte e vida, unindo as duas como elos de uma mesma corrente. Sobre

este trabalho, em artigo de Cristina Tolentino, plublicado no site Caleidoscópio,

Grotowski nos diz:

Durante meses e meses o ator trabalhou só comigo. Nada em seu trabalho estava ligado ao martírio que na peça de Caldéron/Slowacki era o tema do personagem. Toda a torrente da vida do ator estava ligada a uma recordação

2 El Príncipe Constante de Calderón de la Barca é uma obra escrita em 1628. Calderón faz uso da história da figura histórica de Dom Fernando, para construir um personagem que se apresenta como personagem cavaleiro e nobre, que no decorrer de sua jornada, perde sua nobreza cavaleiresca, passando a ser reconhecido como mártir e santo.

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feliz, as ações pertenciam a essa recordação precisa de sua vida, as mais pequenas ações e impulsos físicos e vocais desse momento rememorado. Foi um momento de sua vida ligado ao tempo amoroso de sua adolescência. Este adolescente rememorado se liberava com seu corpo, se liberava passo por passo do peso do corpo, de todo aspecto doloroso. Através da multidão de detalhes, de todos os pequenos impulsos e ações ligadas a esse momento de sua vida, o ator encontrou o fluxo do texto. Porém, a lógica do texto, a estrutura do espetáculo sugeria que fosse um prisioneiro martirizado e que se mantém fiel à sua verdade até o final. E é através desse martírio que chega ao cume.

A figura do performer, em Grotowski, é representada por uma ação de cunho

pessoal, como instrumento para desenvolver a estruturação de um trabalho a partir de

diversos pontos de vista: cantando, dançando, realizando mímica, fundindo diferentes

habilidades em prol da cena. Tal abordagem, diz respeito à noção de um sujeito que

constrói sua dramaturgia a partir das experiências do corpo. Tal dramaturgia pode ser

entendida como uma busca pela essência do ser que se revela para uma platéia. Cabe

ainda lembrar o fato de que o próprio Jerzy Grotowski é um artista cuja origem

encontra-se associada ao universo das artes plásticas.

No entanto, Grotowski não parou por aí, em sua última fase de seu trabalho,

quando ele abandona o teatro, propôs um encontro cada vez mais próximo do ser, tão

próximo a ponto de fazer desaparecer a necessidade a presença do ator e

conseqüentemente o teatro, propondo neste ultimo momento um mergulho no próprio

ser humano, dissolvendo a figura do ator por outra: o “doer" (fazedor), um veículo de

forças que se oferece em sacrifício, para si mesmo, desconsiderando a presença de

uma platéia em prol do exercício da presença.

Por meio de uma exigência ética de compromisso mais ativo com o

procedimento criativo, no sentido de construir uma preparação e execução cênica

deliberadamente apoiada no corpo em sua dimensão total (corpo e voz), Grotowski

assinala o ator como “el Performer, con mayúscula, es el hombre de acción. No es el

hombre que hace la parte de otro. Es el danzante, el sacerdote, ele guerrero: está fuera

de los gêneros estéticos” (GROTOWSKI, 1993, p. 78)3. Por uma atitude mais autônoma,

esse ator governa-se por leis próprias e exige de si mesmo uma revisão do seu

trabalho.

Neste sentido, penso que Jerzy Grotowski é uma referência importante para

ajudar a compreender o conceito de ator que se revela no teatro contemporâneo,

3 O Performer com maiúscula, que “é o homem de ação, não é o homem que faz parte de outro. É o dançarino, o sacerdote, o guerreiro: está fora dos gêneros estéticos (Tradução da autora).

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contaminando inclusive o panorama nacional, como no caso do Teatro Essencial

desenvolvido pela performer Denise Stoklos. Grotowski ampliou o entendimento do

termo expressão, quando propôs outras formas de estruturação da performance teatral,

ao considerar o ator como autor de sua prática cênica, do processo ao procedimento de

construção espetacular.

A figura do performer, tal como Grotowski havia concebido, aparece no Teatro

Essencial de Denise Stoklos, como instrumento para desenvolver a estruturação de um

trabalho a partir de diversos pontos de vista: cantando, dançando, realizando mímica,

fundindo diferentes habilidades em prol da cena. Tal abordagem nos permite associar

as idéias Grotowskianas às de Stoklos, no que diz respeito à noção de um sujeito que

constrói sua dramaturgia a partir das experiências do corpo. Tal dramaturgia pode ser

entendida em Grotowski como uma busca pela essência do ser que se revela, enquanto

expressão de grupo, para uma platéia, enquanto que para Stoklos o lugar da essência

está no sujeito individualizado na construção da cena, na limpeza dos elementos que

constituem a mesma, da cenografia ao gestual, permitindo a revelação do ator para a

platéia. Cabe ainda lembrar o fato de que o próprio Jerzy Grotowski é um artista cuja

origem encontra-se associada ao universo das artes plásticas e do teatro de grupo

(processos colaborativos), enquanto Denise Stoklos teve sua origem marcada pela

escrita e performance solo (processos individualizados), tendo ambos posteriormente

migrado para o teatro.

Trazendo o Teatro Essencial para este contexto de discussão, pode-se verificar

que um dos seus principais preceitos é o lidar com a transgressão que se origina da

tentativa de agir na superação de si mesmo. Trata-se de afirmar que a transformação

social só é possível se o ponto de partida for a micropolítica: “Não são mais necessários

fuzis, canhões, batalhões ou guerrilheiros. A tática agora é outra: quanto mais

mudarmos o pequeno espaço onde estamos, mais mudaremos a sociedade”.4 A

mudança ocorre, portanto, por meio do engajamento pela vida, reforçando-se

convicções através da postura que o artista assume em sua vida cotidiana, bem como

no palco.

Duvignaud (1980) afirma ainda que as formas de criação e representação estão diretamente comprometidas com as tramas da vida e que, por esse motivo, nunca estão fora do ambiente social. Faz, portanto, referência ao “fora” como um lugar criado e ocupado pelo próprio homem (o outsider, o que está à

4 Entrevista de Denise Stoklos ao Jornal Brasil de Fato, n. 128, 11-17 ago. 2005.

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deriva ou na periferia), seja pela falta de espaço ou excesso do mesmo (PEREIRA, 2007, p. 23).

Neste sentido é que localizo, no Teatro Essencial, o “fora” como elemento próprio

do corpo performático, em seu comprometimento com alternativas oferecidas por este

corpo mesmo. É um teatro que realiza o exercício de reconhecer as profundas, porém

fugidias conexões entre o lugar e o “fora de lugar”, o grupo e o performer, o certo e

errado, a obediência e a desobediência, a fidelidade e a traição, a tradição e a

renovação, o monólogo e a solo performance. Busca a transcendência a partir do

próprio contexto, engendrando transgressões, “questionando as estruturas de poder,

desmistificando mestres, reconquistando o ‘fora’ do ator para garantir sua evolução”

(MOURA, 1997, p. 59).

No Teatro Essencial, bem como, no Teatro Pobre o tema da essencialidade

aparece vinculado às escolhas do ator, e no lugar de alguma personagem, é localizado

a persona que serve para designar tanto um papel social, quanto um papel a ser

interpretado. Presente na elaboração dos discursos de Jerzy Grotowski e Denise

Stoklos, o conceito de essencial que se revela como condição para a criação de um

novo aspecto cênico em consonância com a natureza própria do performer, partindo do

contexto de onde vem, para refletir sobre a realização de um teatro calcado na essência

do próprio sujeito, ou seja, em trajetória própria, única e intransferível e até mesmo

autobiográfica.

REFERÊNCIAS

GROTOWSKI, Jerzy. Em busca do teatro pobre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.

_____. El Performer. Revista Máscara, Escenologia, n. 11-12, jan. 1993.

JORNAL BRASIL DE FATO, n. 128, 11-17 ago. 2005.

MOURA, Cristiane. Solidão anárquica: Vocabulário da atitude no Teatro Essencial. Dissertação (Mestrado) UNIRIO. Rio de Janeiro, 1997.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad.: Jacó Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.

PEREIRA, Jaqueline Valdívia. Denise Stoklos: Uma noção de ator: reflexões a partir do Teatro Essencial. Dissertação (Mestrado). UDESC. Santa Catarina, 2007.

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TOLENTINO, Cristina. Disponível em: <http://www.caleidoscopio.art.br/cultural/artes cenicas/teacontemp/jerzygrotowski05.html>. Acesso em: 13 ago. 2008.

VAZ, H. C. de L. Escritos de Filosofia II – Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1999.

Filmografia:

GROTOWSKI, Jerzy. O Príncipe Constante (espetáculo). Direção e Produção: Jerzy Grotowski. Polônia, 1962.