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27.1 - Comentario as Cartas de Sao Paulo - I_ Vol - Sao Joao Crisostomo

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  • ndice

    APRESENTAOINTRODUOTomo I

    HOMILIAS SOBRE A CARTA AOS ROMANOS1 DE SO JOOCRISSTOMO, PADRE DA IGREJA, ARCEBISPO DE CONSTANTINOPLA.

    Tomo 2COMENTRIOS SOBRE A CARTA AOS GLATAS1 DE SO JOOCRISSTOMO, PADRE DA IGREJA, ARCEBISPO DE CONSTANTINOPLA.

    Tomo 3HOMILIAS SOBRE A CARTA AOS EFSIOS1 DE SO JOOCRISSTOMO, PADRE DA IGREJA, ARCEBISPO DE CONSTANTINOPLA.

  • APRESENTAO

    Surgiu, pelos anos 40, na Europa, especialmente na Frana, um movimento de interesse voltadopara os antigos escritores cristos, conhecidos tradicionalmente como Padres da Igreja, ousantos Padres, e suas obras. Esse movimento, liderado por Henri de Lubac e Jean Danilou,deu origem coleo Sources Chrtiennes, hoje com centenas de ttulos, alguns dos quais comvrias edies. Com o Conclio Vaticano II, ativou-se em toda a Igreja o desejo e a necessidadede renovao da liturgia, da exegese, da espiritualidade e da teologia a partir das fontesprimitivas. Surgiu a necessidade de voltar s fontes do cristianismo.

    No Brasil, em termos de publicao das obras destes autores antigos, pouco se fez. A PaulusEditora procura, agora, preencher esse vazio existente em lngua portuguesa. Nunca tarde oufora de poca para rever as fontes da f crist, os fundamentos da doutrina da Igreja,especialmente no sentido de buscar nelas a inspirao atuante, transformadora do presente. Nose prope uma volta ao passado atravs da leitura e estudo dos textos primitivos como remdio aosaudosismo. Ao contrrio, procura-se oferecer aquilo que constitui as fontes do cristianismopara que o leitor as examine, as avalie e colha o essencial, o esprito que as produziu. Cabe aoleitor, portanto, a tarefa do discernimento. Paulus Editora quer, assim, oferecer ao pblico delngua portuguesa, leigos, clrigos, religiosos, aos estudiosos do cristianismo primevo, uma sriede ttulos, no exaustiva, mas cuidadosamente traduzida e preparada, dessa vasta literatura cristdo perodo patrstico.

    Para no sobrecarregar o texto e retardar a leitura, procurou-se evitar anotaes excessivas,as longas introdues estabelecendo paralelismos de verses diferentes, com referncias aosemprstimos da literatura pag, filosfica, religiosa, jurdica, s infindas controvrsias sobredeterminados textos e sua autenticidade. Procurou-se fazer com que o resultado desta pesquisaoriginal se traduzisse numa edio despojada, porm, sria.

    Cada obra tem uma introduo breve com os dados biogrficos essenciais do autor e umcomentrio sucinto dos aspectos literrios e do contedo da obra suficientes para uma boacompreenso do texto. O que interessa colocar o leitor diretamente em contato com o texto. Oleitor dever ter em mente as enormes diferenas de gneros literrios, de estilos em que estasobras foram redigidas: cartas, sermes, comentrios bblicos, parfrases, exortaes, disputascom os herticos, tratados teolgicos vazados em esquemas e categorias filosficas de tendnciasdiversas, hinos litrgicos. Tudo isso inclui, necessariamente, uma disparidade de tratamento e deesforo de compreenso a um mesmo tema. As constantes, e por vezes longas, citaes bblicas ousimples transcries de textos escritursticos devem-se ao fato de que os Padres escreviam suasreflexes sempre com a Bblia numa das mos.

    Julgamos necessrio um esclarecimento a respeito dos termos patrologia, patrstica e Padresou Pais da Igreja. O termo patrologia designa, propriamente, o estudo sobre a vida, as obras e adoutrina dos pais da Igreja. Ela se interessa mais pela histria antiga, incluindo tambm obras deescritores leigos. Por patrstica se entende o estudo da doutrina, das origens dessa doutrina, suas

  • dependncias e emprstimos do meio cultural, filosfico, e da evoluo do pensamento teolgicodos pais da Igreja. Foi no sculo XVII que se criou a expresso teologia patrstica para indicara doutrina dos padres da Igreja, distinguindo-a da teologia bblica, da teologia escolstica,da teologia simblica e da teologia especulativa. Finalmente, Padre ou Pai da Igreja serefere a escritor leigo, sacerdote ou bispo, da antiguidade crist, considerado pela tradioposterior como testemunho particularmente autorizado da f. Na tentativa de eliminar asambiguidades em torno desta expresso, os estudiosos convencionaram em receber como Pai daIgreja quem tivesse estas qualificaes: ortodoxia de doutrina, santidade de vida, aprovaoeclesistica e antiguidade. Mas os prprios conceitos de ortodoxia, santidade e antiguidade soambguos. No se espere encontrar neles doutrinas acabadas, buriladas, irrefutveis. Tudo estavaainda em ebulio, fermentando. O conceito de ortodoxia , portanto, bastante largo. O mesmovale para o conceito de santidade. Para o conceito de antiguidade, podemos admitir, sem prejuzopara a compreenso, a opinio de muitos especialistas que estabelece, para o Ocidente, Igrejalatina, o perodo que, a partir da gerao apostlica, se estende at Isidoro de Sevilha (560-636).Para o Oriente, Igreja grega, a antiguidade se estende um pouco mais, at a morte de s. JooDamasceno (675-749).

    Os Pais da Igreja so, portanto, aqueles que, ao longo dos sete primeiros sculos, foramforjando, construindo e defendendo a f, a liturgia, a disciplina, os costumes e os dogmas cristos,decidindo, assim, os rumos da Igreja. Seus textos se tornaram fontes de discusses, deinspiraes, de referncias obrigatrias ao longo de toda tradio posterior. O valor dessas obrasque agora Paulus Editora oferece ao pblico pode ser avaliado neste texto: Alm de suaimportncia no ambiente eclesistico, os Padres da Igreja ocupam lugar proeminente naliteratura e, particularmente, na literatura greco-romana. So eles os ltimos representantes daAntiguidade, cuja arte literria, no raras vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendoinfluenciado todas as literaturas posteriores. Formados pelos melhores mestres da Antiguidadeclssica, pem suas palavras e seus escritos a servio do pensamento cristo. Se excetuarmosalgumas obras retricas de carter apologtico, oratrio ou apuradamente epistolar, os Padres,por certo, no queriam ser, em primeira linha, literatos, e sim, arautos da doutrina e moralcrists. A arte adquirida, no obstante, vem a ser para eles meio para alcanar este fim. () Hde se lhes aproximar o leitor com o corao aberto, cheio de boa vontade e bem-disposto verdade crist. As obras dos Padres se lhe revertero, assim, em fonte de luz, alegria e edificaoespiritual (B. Altaner e A. Stuiber, Patrologia, S. Paulo, Paulus, 1988, pp. 21-22).

    A Editora

  • INTRODUOBento Silva Santos

    A obra que ora apresentamos ao leitor o primeiro volume que abarcar quase a totalidade docomentrio de S. Joo Crisstomo (347-407) ao corpus paulinum, isto , s quatorze epstolasarroladas no cnon catlico: Rm, 1/2 Cor; Gl; Ef; Fl; Cl; 1/2 Ts; 1/2 Tm; Tt; Fm; Hb.1 Essescomentrios so assaz extensos, o que exigir mais de um volume da coleo Patrstica. Ao lado deS. Agostinho (354-430) no mundo ocidental, S. Joo Crisstomo representa um dos maioresintrpretes do pensamento de S. Paulo para o Oriente cristo, o que pode ser comprovado pelaabundante documentao e pelas constantes citaes de suas obras. No caso de S. Joo Crisstomo,sua estupenda interpretao se reflete na extenso, na eloquncia, na riqueza espiritual e na ortodoxiainquestionvel de suas homilias dedicadas a cada uma das epstolas, bem como a eminente categoriaalcanada em muitos aspectos entre os grandes mestres espirituais da Igreja oriental. No caso de S.Agostinho, a abundncia de seus escritos, a importncia de sua sntese doutrinal, a situaopreeminente que ocupa no surgimento do cristianismo medieval no Ocidente e sua importnciadecisiva em todos os debates ulteriores, asseguraram sua influncia inquestionvel.2 Em vista deressaltar a importncia da interpretao bblica dos Padres da Igreja para a reflexo teolgica e,particularmente, a obra exegtica de S. Joo Crisstomo, cognominado Boca de Ouro,discorreremos sobre os seguintes pontos: Por que recorrer aos Padres na exegese bblica?; Ahermenutica patrstica: escola antioquena versus escola alenxandrina?; A exegese bblica de S.Joo Crisstomo.

    Por que recorrer aos Padres na exegese bblica?

    Eis uma pergunta qual o pastor, o exegeta, o estudante e o leigo poderiam responder sob ainspirao patrstica e margem das preocupaes do mundo acadmico: a Palavra pregada quepermite conhecer o que, por exemplo, S. Joo Crisstomo e/ou outros Padres da Igreja tinham dedizer sobre um texto concreto para a pregao, o estudo e a meditao. Recorrer exegese bblicados Padres significa aprofundar a pregao vital da Palavra de Deus e a formao espiritual doscrentes, abrindo-nos assim os olhos a outras dimenses, as da exegese espiritual e as dahermenutica, que completariam aquela histrico-crtica enriquecendo-a de intuies profundamenteteolgicas.

    O Conclio Vaticano II (1962-1965), em sua Constituio Dogmtica Dei Verbum 9-10, fala daestreita relao entre Escritura e tradio patrstica. Com efeito, so os Padres que atestam etransmitem a presena vivificadora da Tradio na Igreja; em Dei Verbum 24 recordado que aSagrada Escritura deve ser como a alma da teologia. Mas no se explica qual tipo de exegese,praticada hoje em mbito acadmico, pode ser verdadeiramente a alma da teologia.3 evidenteque a exegese histrico-crtica no deve tornar-se a forma exclusiva de interpretao, no obstante oinegvel progresso realizado por este tipo de anlise seja no Antigo Testamento, seja no Novo

  • Testamento.4 Em se tratando de um eventual confronto entre exegese contempornea e exegesepatrstica, notrio que os Padres da Igreja descortinaram uma inteligncia cada dia mais profundadas Sagradas Escrituras, na certeza de que Deus fala por intermdio dos textos sagrados quele que,com humildade, dobra sua cerviz para poder penetrar na caverna da Sagrada Escritura e adescobrir seus mistrios.5 Ora, adquirir a inteligncia ou a compreenso da Escritura ou deveriaser justamente o escopo da exegese bblica; deve procurar penetrar sempre melhor no sentido dostextos. Falar de compreenso cada dia mais profunda significa dizer que o sentido das SagradasEscrituras era e permanece presente nos textos, mas parcialmente escondido, implcito; era epermanece presente dentro do texto bblico, mas deve-se procur-lo tambm alm das formulaesexplcitas. Portanto, no basta estudar o texto como texto. Interpretar quer dizer transcender oslimites das expresses, explicitar o implcito, revelar a vida profunda dos textos.

    Se muitas das interpretaes patrsticas dos textos sagrados gozam de atualidade, exatamenteporque feitas in medio Ecclesiae, podemos dizer que a exegese , sim, uma cincia, mas no somenteuma cincia histrica, mas uma cincia hermenutica e teolgica, isto , uma cincia da f. preciso, portanto, abrir-se pergunta sobre o sentido, sobre a profundidade, sobre a aberturateleolgica e dinmica dos textos sagrados. Como bem observou Ignace De La Potterie, serianecessrio introduzir uma reflexo filosfica sobre duas questes:6 1) Que coisa um texto escrito,enquanto se distingue do kerigma (anncio fundamental da f) oral no incio? 2) Naquele textoescrito que, portanto, distinto do anncio anterior que interpelava os ouvintes, onde est o sentidodaquele texto? Somente em sua formulao explcita? No interpela tambm os futuros leitores? Ointeresse da exegese bblica no mais somente histrico, mas formalmente hermenutico: adimenso teleolgica do texto faz parte da prpria estrutura do ato interpretativo, comoevidenciaram Martin Heidegger, Paul Ricoeur e Hans-Georg Gadamer.

    Impe-se assim a necessidade de reencontrar hoje junto com os Padres da Igreja o sentidoespiritual da Sagrada Escritura, isto : O Esprito na letra. No se trata pura e simplesmente deretomar ao modo de mera transposio mecnica, para os nossos dias, o que eles pensaram eescreveram (pensemos, por exemplo, na exegese tipolgica e cristolgica do Antigo Testamento e ainteligncia espiritual do Novo Testamento que, alis, admitamo-lo, foram, em no poucos casos,arbitrrias e fantasiosas), mas, sim, de aprender a ler a Sagrada Escritura no esprito dos Padres, isto, reencontrar hoje a inteligncia espiritual da Escritura tal qual os sculos cristos acompreenderam (Henri de Lubac); aquela inteligncia espiritual que S. Gregrio Magno chamavade inteligncia interna, o sentido interior do texto bblico.

    A hermenutica patrstica:escola antioquena versus escola alexandrina?

    Em muitos tratados gerais sobre o tema da exegese patrstica, convencionou-se opor a exegesehistrico-literal da Igreja de Antioquia do sculo IV, iniciando-se com a obra de Diodoro de Tarso( 390?), aos mtodos alegricos da Igreja de Alexandria,7 tal como os praticava principalmenteOrgenes (ca. 185-254) e aqueles que posteriormente nele se inspiraram.8 Chegou-se assim a falar deuma escola de Antioquia em oposio escola de Alexandria sob a forma de uma realcontraposio entre o literalismo da exegese antioquena9 e o alegorismo alexandrino. Como bem

  • observou Manlio Simonetti, esta oposio radical foi redimensionada em vista da valorizao decertas aberturas no literalistas dos mais qualificados expoentes antioquenos.10 Assim, por exemplo,Diodoro de Tarso contrape alegoria a theria (contemplao), no sentido de que, enquanto aquelamaltrata e at mesmo suprime a letra do texto sagrado, esta, ao contrrio, a entrev um significadosuperior que a ela se sobrepe sem elimin-la ou prejudic-la. Desta e de outras afirmaessemelhantes de Diodoro de Tarso e Teodoro de Mopsustia (350-428) se depreendeu que a exegeseantioquena no foi exclusivamente literal e, por essa razo, reduziu-se a entidade da contraposioentre alexandrinos e antioquenos.

    Na verdade julga-se que a especificidade da exegese antioquena radical est no tanto no meroprocedimento de interpretao literal do texto sagrado, mas, sim, nos xitos aos quais a aplicaodeste mtodo conduz. Ora, em alguns escritores da Sria e da Palestina do sculo IV, a exegeseliteralista do Antigo Testamento acompanhada de um apreo largamente cristolgico do textosagrado.11 Diferentemente, em Diodoro de Tarso e Teodoro de Mopsustia, tal componentecristolgico foi radicalmente redimensionado. O xito ao qual o literalismo conduz de tal modonovo que no parece ser explicado somente aduzindo o esprito de reao ao excessivo alegorismoalexandrino a tendncia moderna de ler mais historicamente o Antigo Testamento e nem tampoucoadotando critrios interpretativos deduzidos da exegese pag de carter gramatical e filosfico. Se osalegoristas interpretavam alegoricamente o Antigo Testamento para nele vislumbrar a antecipaoproftica e simblica de Cristo e da Igreja e, ao contrrio, os literalistas antioquenos, com aaplicao de seu literalismo, renunciam a esta finalidade, isto quer dizer que mudou justamente omodo de ver a relao entre Cristo e o Antigo Testamento. Sem excluir a concomitncia de outrosfatores,12 para explicar tal mudana, concorreram fundamentalmente motivaes de ordemideolgica.

    Para entender, portanto, concretamente a grande novidade da exegese antioquena do AntigoTestamento, faamos as seguintes consideraes.13 Alm de no haver mais a exigncia de revelar,em sentido antignstico, a continuidade e o progresso do Antigo Testamento ao Novo Testamento,acrescentemos tambm o xito aparentemente paradoxal da controvrsia ariana, que, enquantoassegura a Cristo a mesma natureza e dignidade do Pai, redimensiona, porm, a sua ao especficano mundo, limitando-a encarnao.14 justamente este conceito que Teodoro de Mopsustiaparece ter assimilado perfeitamente em mbito exegtico. Neste sentido de fundamental importnciaa passagem do Comentrio a Zacarias no qual Teodoro interpreta o cavaleiro sobre o cavalovermelho que aparece ao profeta em Zc 1,8 e que ele entende como um anjo: excluindo que nestecavaleiro possamos entrever o Filho de Deus, ele observa que antes do advento de Cristo ningumpde conhecer o Pai e o Filho; de fato, no Antigo Testamento, Deus dito Pai em razo de suabenevolncia para com os homens, que, por sua vez, so definidos filhos de Deus pela familiaridadecom relao quele. Com efeito, o Antigo Testamento conheceu somente a Deus e a criao, e, porfora das profecias, Cristo, isto , o Messias, mas somente na dimenso humana e no naqueladivina, que s o prprio Cristo revelou no tempo de sua vinda ao mundo. Consequentemente, segundoTeodoro, insensatez sustentar que, quando o Antigo Testamento menciona um anjo ou um senhor,tenha em vista referir-se ao Filho de Deus. Verdade que Teodoro tem em vista aqui a interpretaodas teofanias dominantes do sculo II at a metade do sculo IV, que reconhecia sistematicamente noLogos divino, isto , no Filho, o sujeito das teofanias das quais so objeto os patriarcas e Moiss e

  • prefere, ao contrrio, atribuir essas teofanias aos anjos. Mas aquela interpretao das teofanias eraelemento basilar da concepo que via o Logos agindo no mundo desde o momento da criao; poressa razo, Teodoro procura negar justamente esta presena anterior Encarnao. Em outroscomentrios, Teodoro, antes justapondo entre si Antigo Testamento e Novo Testamento do queintegrando-os um no outro, sugere ao intrprete o desinteresse de procurar os vestgios do Logos, oFilho de Deus, no Antigo Testamento, limitando-se a reencontrar com parcimnia aqueles de Cristo,isto , os prenncios profticos do Encarnado. Assim, Teodoro interpretou o Antigo Testamento porsi mesmo, prescindindo da relao com o Novo Testamento e, por isso, radicalizando especialmentea interpretao literal.15

    Mas como nos interessa especialmente examinar a tcnica exegtica dos Padres da Igreja e, sobeste ponto de vista, os comentrios paulinos de S. Joo Crisstomo, devemos explicitar tambm queele foi um dos representantes da exegese antioquena. S. Joo Crisstomo preferiu ter como objeto dasua exegese homiltica mais os textos do Novo Testamento do que do Antigo Testamento: dada adestinao preponderantemente pastoral de sua atividade, podemos pensar que ele tenha preferidoexaminar textos cuja significao crist fosse direta e imediata, sem obrigar a empenhos exegticosno plano terico.16 O comentrio de S. Joo Crisstomo adota a forma de homilias pregadasprincipalmente em Antioquia da Sria, quando exercia o episcopado nesta cidade, durante os anosprecedentes ao de 387, embora alguns comentrios, como os da Epstola aos colossenses, pertenamaos seus ltimos anos, quando j era patriarca de Constantinopla.17

    A exegese bblica de S. Joo CrisstomoUma consulta s obras de S. Joo Crisstomo mostra no somente o seu apreo estupendo pelas

    epstolas paulinas, mas tambm que a synkatbasis (condescendncia) est presente na aocriadora, nas teofanias, na kenosis (esvaziamento) da Encarnao,18 nos milagres,19 nossacramentos e, particularmente, no batismo e na Eucaristia.20 Em direo Encarnao, expressomxima da condescendncia, eram orientadas as vrias expresses que a prpria condescendnciateve ao longo da histria da salvao, porque Deus no faz todas as coisas de uma s vez, mas seserve da sua condescendncia em virtude da sua grande filantropia. No que tange Encarnao,notemos a estreita relao da synkatbasis com a knsis de Fl 2,6-8. Comentando o hinocristolgico, S. Joo Crisstomo afirma que o Filho de Deus, no recusando tomar a forma de servo,no receou perder a prpria dignidade como fazem os homens e, com uma imagem, explica que oFilho no se apegou ciosamente sua dignidade como um tirano, mas agiu como um bom rei que semistura com os seus soldados.21

    Vejamos, portanto, como S. Joo Crisstomo um discpulo enamorado do Apstolo Paulo para,em seguida, examinar a especificidade de sua exegese.

    A. So Joo Crisstomo, discpulo e fiel intrprete de So Paulo

    Do ponto de vista das fontes gregas dos comentrios sobre S. Paulo, contamos felizmente comtodos os comentrios em grego de S. Joo Crisstomo e Teodoreto de Ciro (393-466), bem comoextensos fragmentos de Teodoro de Mopsustia e Severiano de Gbala (morto depois de 408) sobreas epstolas paulinas. Todos os escritores prximos no tempo, em relao composio de suas

  • obras do final do sculo IV at meados do sculo V se acham estreitamente relacionados quanto doutrina teolgica e mantm uma dependncia literria como pertencentes que so Igreja antioquenada Sria. A exegese neste mbito concentrava seus esforos na interpretao literal dos textos e estrepleta de detalhes histricos, de crtica textual.

    Se desejarmos avaliar a importncia dos comentrios de S. Joo Crisstomo, no h melhorcaminho do que ler o que escreve Isidoro de Pelusio na Epstula 5,32: Se o divino Paulo tivessedesejado interpretar-se a si mesmo, no o teria feito de maneira diversa de como o fez este clebremestre do estilo tico. Entre os comentadores da poca dos Padres da Igreja, S. Joo Crisstomo foisempre reconhecido no somente pelo seu sentido pastoral e sua sagaz e maravilhosa empatia com oApstolo Paulo, mas tambm por sua brilhante retrica na hora de expressar-se e em sua ateno aosdemais momentos crticos para a f crist. Esta ateno emerge especialmente dos temasrelacionados com a profunda humildade do Apstolo, com o equilbrio pastoral entre a firmeza e aternura de que se gaba para com todos aqueles cristos que tem sob o seu cuidado, e com o convitecontnuo virtude e ao sofrimento paciente, como os meios mais adequados de exemplo para com osdemais. Na opinio de S. Joo Crisstomo, no h maior virtude do que a renncia s riquezas e asua fascinao em favor dos pobres e da identificao com seus sofrimentos. H tambm em S. JooCristomo a absoluta convico de que uma firme adeso f, transmitida por admirado mestre aosseus devotos pupilos no seio de uma relao paterno-filial, como sucede em Timteo e Tito, constituia maior garantia da ortodoxia. A capacidade de S. Paulo como homem polidrico, de converter-seem todo necessrio para a pregao e salvao das pessoas evidenciada com grande habilidadepor S. Joo Crisstomo para dar nfase e fora s palavras de Paulo, e perceber matizes e motivos,inclusive naquilo que possa parecer-nos fora de lugar.

    Se, de um lado, verdade que sua viso de Paulo pode parecer uma idealizao onde no sepermitem nem falhas nem debilidades, de outro lado, o reconhecimento que S. Joo Crisstomo fazde Paulo como representante de Cristo para aqueles que foram encomendados aos seus cuidadospermite-nos adquirir um sentido mais amplo do significado das palavras do Apstolo para todapoca e ministrio pastoral:22 De fato, mesmo quando fale inevitavelmente a linguagem do passado,e suas obras se interpretem como prprias de uma poca remota, sua viva imaginao, unida ao amore compreenso da Sagrada Escritura e dos coraes extraviados, proporciona sua obra umaqualidade e relevncia imperecveis. O Cristianismo nunca constitui um elenco de doutrinasdiscutveis, mas um modo de vida, e o Crisstomo jamais permite que isto se esquea.23

    Mas, para explicitar a especificidade da interpretao bblica de S. Joo Crisstomo, destacamoso seguinte aspecto de sua obra exegtica:

    B. A condescendncia divina na Escritura24

    Qual ter sido a maneira prpria que S. Joo Crisstomo encontrou para expor e interpretar asepstolas paulinas? Quem l as homilias e os comentrios bblicos de S. Joo Crisstomo, verificaque as Escrituras so consideradas como manifestao da condescendncia plena e precisa do CristoSalvador, que nos guia, desterrados, para a suprema theria e viso de sua face por meio dahumildade da Carta escrita humanidade: synkatbasis (condescendncia), akrbeia (preciso,exatido), theria (contemplao). A Escritura o prolongamento da Encarnao que esta preparou eque se manifesta na liturgia, lugar por excelncia do acolhimento e da eficcia da Palavra divina por

  • esta transmitida. Vejamos ento o tema da condescendncia sob trs tpicos:

    a) A condescendncia do Deus salvadorS. Joo Crisstomo recorreu condescendncia para expressar, com um mtodo mais preciso, o

    comportamento de Deus para com a humanidade, particularmente com o dom da Escritura, de sorte atornar-se o doutor da condescendncia.25 Segundo o nosso autor, a condescendncia de Deus oaparecer e o mostrar-se de Deus, no como Ele , mas como pode ser visto por aquele que capazde tal viso, proporcionando o seu aspecto fraqueza de quem o v. Tal condescendncia, que temum papel na viso beatfica dos anjos e dos homens, est presente desde as origens da histriareligiosa da humanidade. O conceito de condescendncia implica uma descida ao nvel inferior, umaadaptao capacidade do outro. Segundo S. Joo Crisstomo, serve magnificamente para expressara maneira como o Deus transcendente pe a sua Revelao e a sua obra de salvao ao alcance dohomem, pequeno e frgil, seja no Antigo Testamento, seja no Novo Testamento, bem como na aopastoral da Igreja. Como um mestre para com seus alunos, como os genitores que imitam o balbuciarde seus filhos, Deus desce ao nosso alcance. Como os instrutores ensinam s crianas os primeiroselementos e reservam para depois os ensinamentos mais elevados, assim Moiss, como pedagogo,inculcou os primeiros rudimentos e deixou a Paulo e a Joo a preocupao de complet-los.

    As homilias sobre o Gnesis (In Genesim homiliae 1-67) evocam com admirao e insistncia aextrema condescendncia divina para com os homens. No incio Deus conversava de modo familiar,sem o intermedirio da Escritura, com Ado, Caim, No, Abrao. Quando a humanidade degenerou,Deus no se afastou dela, mas queles que viviam longe dele, atravs de Moiss, enviou um cartapara reconduzi-los sua amizade. Ns a recebemos como que instalados em um grande pasestrangeiro. Neste contexto, S. Joo Crisstomo exalta frequentemente no s a condescendnciadivina, mas tambm aquela da Escritura: a propsito de Gn 2,21 (Eva formada da costela de Ado),declara que Deus se serviu dessas palavras para adaptar-se nossa fraqueza e nos pede paraobservar atentamente a condescendncia da escritura divina. Graas ao conceito decondescendncia divina, S. Joo Crisstomo, no comentrio ao Salmo 6, justificava o fato de queDeus tenha falado de si mesmo, puro esprito, de modo a ser compreendido por homens materiais esimples, imperfeitamente conscientes de sua prpria espiritualidade, em vez de calar-se com opretexto de no engan-los. Um Deus eternamente impassvel podia, sem nada negar suaimpassibilidade, tomar a linguagem das paixes humanas para fazer-se compreender por homenspassionais. Graas ao conceito da condescendncia divina, S. Joo Crisstomo podia demonstrarque, no Antigo Testamento, no h conivncia com as representaes pags dos deuses agitados porpaixes semelhantes quelas dos pecadores; podia tambm anular a tese dos antropomorfismosegpcios, que interpretavam literalmente todas as expresses bblicas sobre a clera, as mos, osdedos, a face de Deus, considerado um ser no espiritual mas material. Tais expresses testemunhama condescendncia divina de um ser espiritual que deseja dar-nos os instrumentos para alcan-Lo,com metforas adaptadas nossa materialidade.

    O Antioqueno insiste no fato de que na Bblia se encontram metforas, parbolas, semelhanas,enigmas, smbolos, metonmias etc. Assim Deus se abaixa a uma linguagem que poderia aparecer nodigna dele; mas o faz no em vista de sua dignidade, mas em vista de nossa utilidade e salvao. Amesma vontade salvfica explica aquilo que a h de obscuro e j esclarecido nas profecias e noAntigo Testamento. Este tema desenvolvido em suas homilias Sobre a obscuridade das

  • profecias.26 Certas coisas so obscuras no Antigo Testamento, mas no todas, do contrrio nosteriam sido reveladas inutilmente. Na Homilia 32 sobre o Gnesis insiste: O Deus da misericrdiano quis que todas as verdades contidas na Escritura aparecessem evidentes e luminosas a umasimples leitura para sacudir a nossa indolncia e para que, com esforo, consegussemos extrair oquanto nos til. Aquilo que alcanado com fadiga e prolongado estudo se imprime maisprofundamente em nosso esprito do que aquilo que aprendemos com rapidez e que, em seguida,rapidamente se esquece.27

    Segundo S. Joo Crisstomo, a imensa vantagem da condescendncia consiste em unir em um svocbulo a exaltao da transcendncia de Deus, que no pode descer entre os homens senohabitando acima deles (kata: do alto para baixo), e aquela da sua imanncia: a sua superioridade nolhe impede de estar com (syn) eles. Enfim, a ideia da condescendncia divina deve conduzir oexegeta a uma interpretao histrica e gramatical. Em razo disso, S. Joo Crisstomo, no obstantea popularidade das suas homilias e os limites da sua erudio, se impe a regra de no elevar-se aconsideraes espirituais seno depois de ter examinado atentamente o sentido bvio e literal dotexto bblico. Todas as vantagens da condescendncia divina se encontram ulteriormente reforadaspelo conceito de exatido, que passamos agora a examinar.

    b) A condescendncia de Deus e a exatido (akrbeia) do texto inspirado

    Segundo S. Joo Crisstomo, a condescendncia de Deus se manifesta tambm na akrbeia oupreciso, exatido e inerrncia do texto inspirado. Falando de tal exatido, ele afirma que averacidade da Escritura vence qualquer outro testemunho, incluindo aquele de um morto ressuscitadoou de um anjo descido do cu. A Escritura nada tem de suprfluo, nem de contraditrio; a suaveracidade se estende s circunstncias de tempo, de lugar e de pessoa, e s circunstncias histricasem geral, porque palavra de Deus infalvel, sobre a qual recairia todo erro se a estivesse presente.Todavia, ele admite a presena de divergncias e dissonncias, ou diaphonie, sobre tempos e lugaresentre as diversas narraes evanglicas, mas para sublinhar que estas no implicam contradiocomo sucede entre mestres de retrica e filsofos. Longe de contradizerem-se, os evangelistasmanifestam uma sinfonia que contm um aspecto mais profundo: a afinidade de cada expressobblica com todas as outras. As discordncias aparentes dizem respeito a pontos secundrios, isto ,sobre expresses ou construes de linguagem ou tambm sobre tempo e lugar, uma vez que asprecises cronolgicas e topogrficas so funcionais do ponto de vista do autor inspirado.

    H, ao contrrio, um acordo perfeito entre os autores sagrados sobre verdades essenciais efundamentais da f, sobre problemas necessrios e urgentes que concernem vida e ao kerigma; porexemplo, que Deus se fez homem, que realizou milagres, que foi crucificado, que subiu ao cu, quevir como juiz, que nos compartilhou ensinamentos aptos para a nossa salvao, que introduziu umalei que no se ope antiga, que Filho nico, verdadeiro, da mesma natureza do Pai, e outrascoisas semelhantes.28 As diferenas sobre pontos secundrios no significam contradio. procura da sinphonia entre os autores do Novo Testamento se associa a preocupao pela akrbea epela verdade exata e precisa. Uma reflexo mais atenta revela que a akrbea menos umcomplemento necessrio do que um aspecto da condescendncia. Aquele Deus, que ultrapassa todadeterminao extrnseca, o Deus transcendente, quando se volta para outros fins, limitados,circunscritos, isto , aos homens, na linguagem deles no vaga e quando deseja ser por eles

  • compreendido e faz-lhes conhecer os fatos particulares e histricos da sua economia de salvao, seabaixa at estar com eles (condescendncia) com a preciso delimitada dos pensamentos e dasexpresses.

    Em relao essncia divina na polmica com o arianismo anomeu29 e com as pretensesracionalistas de Eunmio, S. Joo Crisstomo remete insistentemente para a incompreensibilidade deDeus: Tu pretendes, diz a Eunmio, circunscrever a essncia [de Deus]. Ns conhecemos aexistncia de Deus, mas ignoramos a sua essncia. Aos olhos de S. Joo Crisstomo, coisa mpiapretender um conhecimento completo (akribs) da essncia divina; sob a sua pena volta sempre apalavra akrbeia. Uma vez que os profetas (= os escritores sagrados) no podem delimitar comexatido a essncia divina, que loucura aquela daqueles que acreditam poder submeter a suaessncia aos seus raciocnios!. Para S. Joo Crisstomo, o Deus inefvel, incognoscvel, invisvel,incompreensvel, superior fora da linguagem humana, escapa das malhas de toda intelignciamortal; somente o Filho e o Esprito o conhecem. Excetuando esses, ningum jamais viu a Deus,isto , conheceu a Deus em sua essncia com toda exatido (meta akribeas apass).30

    Enfim, em relao aos textos relativos akrbeia de Deus, no-akrbeia dos homens diante deDeus e akrbeia da linguagem bblica, faamos as seguintes observaes: De um lado, S. JooCrisstomo no sintetizou os polos opostos de seu pensamento: o homem no pode conhecer a Deus ea sua vida ntima com akrbea, ou exatido, mas pode conhecer as expresses plenas de akrbea queDeus, autor da Sagrada Escritura, utiliza para dirigir-se ao homem colocado no tempo e no espao,circunscrito, governado por Deus com uma akrbea que este homem capaz de compreender. Deoutro lado, a akrbea e a preciso se fazem para o homem possibilidade de reconhecimento,mediante a akrbea e a exatido da palavra escrita que Deus lhes dirige como instrumento humano,do Deus que supera toda akrbea criada e conhece ele mesmo com perfeita e infinita exatido eakrbea, sem nenhuma indeterminao ntima. Sob este aspecto, a condescendncia divina seexpressa na akrbea da palavra de salvao e mais genericamente na akrbea do governo divino domundo.

    c) Escritura e theriaPor fim, com a condescendncia e a akrbea da sua palavra, Deus nos guia em direo

    contemplao (theria) de seu Filho Jesus Cristo. Sob este aspecto, so fundamentais as cartasescritas por S. Joo Crisstomo durante o seu exlio.31 Trata-se da comovente descrioautobiogrfica de uma longa agonia, a ltima preparao contemplao do alm-tmulo, mastambm o smbolo, s avessas, de um aspecto de sua teologia bblica: ele pde escrever as suascartas do exlio, porque lera e relera, antes de seu exlio pessoal e com a tomada de conscincia dasua participao no exlio coletivo da humanidade exilada do paraso em Ado, a correspondnciaenviada por Deus humanidade para reconduzi-la ao seu amor misericordioso. As palavrasdemonstram a vizinhana com Deus daqueles com os quais o Criador dialogava. A carta, aocontrrio, mesmo tendo em vista uma aproximao, mostra a distncia. A carta de Deus no endereada somente a Israel segundo a carne, ou a Israel de Deus, isto , a Igreja, mas a todo ognero humano com uma finalidade de amizade salvfica. Para S. Joo Crisstomo, portanto, aEscritura um grande livro de correspondncia de Deus com a humanidade e, unindo-a ao gneroepistolar, retira-lhe o carter annimo e impessoal das obras literrias, introduzindo no corao de

  • cada livro, tambm daqueles histricos, o sopro afetivo prprio da correspondncia; por isso, aBblia no pode ser considerada um escrito morto, onde estariam consignadas a histria do povoeleito e os mandamentos ditados por Deus: mas um documento vivo, no qual se expressa a troca deideias entre Deus e o gnero humano. uma carta vibrante, da filantropia divina, que desejaconservar a todo o custo o contato com o homem rebelde. o meio inventado por Deus para manterum liame com o gnero humano.

    Contemporaneamente, a carta imagem que expressa adequadamente a imperfeio do dilogoentre Deus e o gnero humano. Deus continua a dirigir-se ao homem e comunicar-lhe a suamensagem, mas as consequncias do pecado no permitem mais um discurso direto. A mensagem deDeus se fixa em um escrito e por sua forma tributria da condio humana. A Escritura se encontraligada s vicissitudes da histria, comprometendo a sua transmisso. Um esforo , portanto,necessrio para reencontrar o sentido profundo da mensagem divina, e o homem, enfraquecido pelopecado, no o descobre sem ascese. Assim, na Bblia, todo livro corresponde a uma etapa daRevelao desejada por Deus. A Bblia, em seu complexo, dominada pela preocupao educativade Deus, que guia progressivamente a humanidade do abismo no qual caiu sublimidade da salvaooperada pela Encarnao, at o dilogo entre o homem e Deus, restabelecido inicialmente na Liturgiae totalmente na viso beatfica do homem ressuscitado dos mortos. Sobre a terra, a Bblia o suportedo dilogo renovado, tal como acontece na liturgia. O homem, longe de Deus, que lhe enviou a suacarta, diante do pregador, torna-se ouvinte do Deus que lhe fala de perto, e que se fez seu alimento naEucaristia. Em um verdadeiro hino Escritura, enquanto caminho de salvao, afirma S. JooCrisstomo: O conhecimento da Escritura alenta o esprito, purifica a conscincia, liberta daspaixes que subjugam, semeia a virtude, estimula pensamentos do cu, impede de ser submergidopelas vicissitudes inesperadas dos acontecimentos, nos ergue para alm das flechas do diabo, nostransporta para o cu, liberta dos laos do corpo, torna geis as asas deste e introduz no nimo doleitor tudo quanto se pode dizer de bem.32 Por fim, segundo S. Joo Crisstomo, a leitura da Bbliano somente individual, mas tambm familiar e social; por meio da Escritura enquanto carta deDeus ao homem a sociedade deve retornar a Deus e unir-se na theria que antecipa a visobeatfica.

    1 Para introduzir o leitor no mundo de cada epstola paulina em uma viso de conjunto (classificao e formato das cartas no NovoTestamento; vida e pensamento de S. Paulo; contexto e mensagem), dispomos de muitos manuais de introduo geral ao NovoTestamento. Cf., por exemplo,Jordi SNCHEZ BOSCH, Escritos Paulinos (Coleo Introduo aoEstudo da Bblia, vol. 7). So Paulo: Editora Ave-Maria, 2002. O que se pretende aqui expor sucintamente a maneira peculiar de fazerexegese nos Padres da Igreja, destacando particularmente a contribuio de S. Joo Crisstomo.

    2 Para o contexto geral e a sntese da exegese patrstica, cf. Bertrand DE MARGERIE, Introduction lhistoire de lexgse , vol.I: Les Pres grecs et orientaux . Paris: Cerf, 1980; vol. II: Les premiers grands exgtes latins . Paris: Cerf,1983; vol. III: SaintAugustin. Paris: Cerf, 1983; vol. IV: LOccident latin, de Lon le Grand Bernard de Clairvaux. Paris: Cerf, 1990.

    3 Enquanto Leo XIII na Encclica Providentissimus Deus mencionava o uso da Bblia nas disciplinas teolgicas, com aConstituio Dogmtica Dei Verbum (= DV) assistimos a uma mudana substancial: o documento conciliar assevera que o estudoda Escritura deve ser veluti anima Sacrae Theologiae (DV 24). Em sntese: a frase conciliar exige, portanto, que a exegese seja comoque a alma da Teologia. Acerca das relaes entre exegese bblica e teologia sistemtica, cf. J. M. SNCHEZ CARO, Escritura yTeologia (DV 24), em ALONSO SCHKEL,L. & MARIA ARTOLA, A. (ed.). La Palabra de Dios en la Historia de los hombres .Bilbao, 1991, p. 607-629.

    4 Ainda que haja uma multiplicidade de mtodos de interpretao da Escritura (crtica textual, crtica literria, crtica das fontes, crticadas formas, crtica da redao, crtica cannica, crtica narrativa, crtica retrica etc.: cf. J. A. FITZMYER, A Bblia na Igreja . SoPaulo: Loyola, 1997), o mtodo histrico-crtico foi predominante na exegese do sculo XX, e os resultados positivos desta abordagem,que renovaram profundamente a pesquisa bblica no mbito catlico, so irrenunciveis.

  • 5 Cf. S. AGOSTINHO, Confessiones III, 5, 9.6 Cf. I. DE LA POTTERIE, I Padri della Chiesa nello studio attuale della Sacra Scrittura, in VV. AA., Lo Studio dei Padri

    della Chiesa nella ricerca attuale. Roma: Istitutum Patristicum Augustinianum, 1991, 486-494.7 Iniciador da escola crist de Alexandria foi Panteno ( ca. 200), cujos comentrios no chegaram at ns. Seu discpulo e sucessor

    foi Clemente de Alexandria ( ca. 215), que escreveu a clebre trilogia: Discurso aos gregos (Protrptico) O Pedagogo (trs livros) Strmata (sete livros).

    8 Por exemplo: S. Dionsio Alexandrino, S. Gregrio Taumaturgo, Eusbio de Cesareia, S. Atansio, Ddimo o Cego, S. Baslio, S.Gregrio de Nissa e S. Gregrio Nazianzeno.

    9 Diodoro de Tarso pode ser considerado, juntamente com Teodoro de Mopsustia, o representante mais tpico da exegese antioquena,na medida em que tende a valorizar a interpretao literal do texto bblico. Ambos propem a theria, isto , a tradicional superposiode dois nveis de leitura na interpretao dos fatos histricos do Antigo Testamento (por exemplo: Caim e Abel, figuras da sinagoga e daIgreja).

    10 Cf. M. SIMONETTI, Lettera e/o Allegoria. Un contributo alla storia dellesegesi patristica. Roma: Istitutum PatristicumAugustinianum, 1985, 156-230.

    11 Isto , a ateno se direcionava para as figuras de Cristo na leitura do Antigo Testamento, sem que tal procedimento destrusse ainterpretao literal da Escritura. As origens da chamada escola de Antioquia est justamente na exegese siro-palestinense do sculoIV. Entre os seus principais representantes encontram-se Accio de Cesareia, Eusbio de Emesa, Apolinrio de Laodiceia.

    12 Reao antialegorista, aumento de sensibilidade filolgica e histrica, influxo da exegese judaica.13 Cf. D. Z. ZAHAROPOULOS, Theodore of Mopsuestia on the bible: a study of this Old Testament exegesis . Nova

    Iorque/Mahwah (NJ): Paulist Press, 1989.14 Para a contextualizao da heresia ariana, cf. R. FRANGIOTTI, Histria das heresias (sculos I-VII). Conflitos ideolgicos

    dentro do Cristianismo. So Paulo: Paulus, 2007, 85-98.15 Cf. M. SIMONETTI, Lettera e/o Allegoria..., 167-177.16 Pertencendo ao ambiente antioqueno, S. Joo Crisstomo segue a orientao exegtica tpica de seu ambiente, mas dados os seus

    interesses, sobretudo pastorais, ele evita empenhar-se em discusses tericas e especialmente polmicas, como, ao contrrio, amavamDiodoro e Teodoro.

    17 Para um estudo e uma introduo geral a S. Joo Crisstomo, consultar J. N. D. KELLY, Golden Mouth: The Story of JohnChrysostom. Ascetic, Preacher, Bishop. Ithaca/Nova Iorque: Cornell University Press, 1995, especialmente 90-103.

    18 S. JOO CRISSTOMO, In Epistolam ad Hebraeos, VII, 2, Patrologia Graeca (= PG) 63,64.19 S. JOO CRISSTOMO, Expositio in Psalmum XLIII, 4, PG 55,173.20 S. JOO CRISSTOMO, In Matthaeum homiliae, LXXXII,4, PG 58, 743.21 S. JOO CRISSTOMO, In Epistolam ad Philippenses Homiliae, VII, PG 62, 227-230.22 Cf. P. GORDAY, Introduccin, in GORDAY, Peter & ODEN, Thomas C. (org.). Colosenses, 1-2 Tesalonicenses, 1-2

    Timoteo, Tito, Filemn (La Bblia comentada por los Padres de la Iglesia y otros autores de la poca patrstica. Volume 9:Nuevo Testamento). Madrid-Buenos Aires-Bogot-Montevideo-Santiago: Ciudad Nueva, 2002, 34-35.

    23 F. M. YOUNG, From Nicaea to Chalcedon: A Guide to the Literature and its Background . Philadelphia: Fortress Press, 1983,158-159.

    24 Cf. M. H. FLANAGAN, St. John Chrysostoms doctrine of condescension and accuracy in the scriptures . Napier: DailyTelegraph Print, s/d. Cf. tambm Bertrand DE MARGERIE, Introduction lhistoire de lexgse , vol. I: Les Pres grecs etorientaux, captulo oitavo: So Joo Crisstomo, doutor da condescendncia bblica (214-239); N. CAPIZZI, Parola di Dio esynkatbasis divina, Gregorianum 89/2 (2008) 396-419.

    25 N. CAPIZZI, Parola di Dio e synkatbasis divina, 405.26 Cf. PG 56, 163-192.27 S. JOO CRISSTOMO, Hom. XXXII in Genesim, PG 55,292-293.28 S. JOO CRISSTOMO, Homilia I in Matthaeum, PG 57, 16-17.29 A doutrina do anomesmo atribuda ao antiniceno radical Acio ( 350), que identificou a essncia divina com a noo de no

    engendrado, tpica do Pai, pelo qual o Filho resultava diferente, dessemelhante (anmoios) do Pai. S. Joo Crisstomo polemizou contraesta heresia em suas De Christi precibus (Contra Anomoeos, homilia 10); cf edio francesa na clebre coleo Sources Chrtiennesn 396: JEAN CHRYSOSTOME, Sur lgalit du Pre et du Fils: Contre les Anomens homlies VII-XII (ed. MALINGREY, A.-M.). Paris: Cerf, 1994.

    30 Cf. S. JOO CRISSTOMO, Da incompreensibilidade de Deus Da Providncia de Deus Cartas a Olmpia . (ColeoPatrstica, n 23). So Paulo: Paulus, 2007.

    31 Id., ibid.32 S. JOO CRISSTOMO, Hom. V, De studio praesentium I, PG 63,485.

  • TOMO I

  • HOMILIAS SOBRE A CARTA AOS ROMANOS1 DE SO JOOCRISSTOMO, PADRE DA IGREJA, ARCEBISPO DE CONSTANTINOPLA.

    PRLOGO DA CARTA AOS ROMANOS1. Quando ouo a leitura das Cartas de So Paulo, o que acontece frequentemente (em cada semanaduas, no raro trs ou quatro vezes, na ocorrncia de uma festa dos santos mrtires), alegro-me com osom desta trombeta espiritual, rejubilo, sinto ardoroso desejo ao reconhecer esta voz amiga, e tenhoquase a impresso de v-lo presente a discursar, mas angustia-me e atormenta-me o pensamento deque nem todos conhecem devidamente to grande homem, e alguns cheguem mesmo a ignor-lo aponto de no saberem exatamente nem mesmo o nmero das suas Cartas. No por no conseguiremaprender, mas porque no querem tratar frequentemente com o bem-aventurado Paulo. Tambm nsquanto conhecemos, se conhecemos alguma coisa, no devido a talento prprio e intelignciapenetrante, mas porque assiduamente lemos os escritos dele, e os acolhemos com timasdisposies. Efetivamente, os amigos conhecem melhor que os demais as aes de seus amigos,porque se preocupam com eles. Este santo homem o demonstra, dizendo aos filipenses: justo queeu assim pense de todos vs, porque vos trago no corao, a todos vs, nas minhas prises e nadefesa e confirmao do evangelho (Fl 1,7). De sorte que, se quereis tambm vs dar-vos comardor leitura, no precisais de procurar outra coisa, segundo a palavra de Cristo: Buscai eachareis; batei e abrir-se-vos- (Mt 7,7). Mas, visto que muitos de vs aqui reunidos assumirammulher e filhos para sustentar e o andamento de uma casa, e por isso no podeis ocupar-vosinteiramente nessa tarefa, deveis vos esforar por receber o que outros coligiram, e pr tantadiligncia em ouvir quanto se emprega em acumular riquezas. Se , contudo, uma vergonha no exigirmais de vs, oxal deis ao menos isto.

    Pois da ignorncia das Escrituras originaram-se inmeros males; dela deriva muitas vezes o lodode heresias, surgiram as vidas desleixadas, os esforos infrutferos. Pois, como os que se achamprivados da luz no podem caminhar direito, assim os que no fixam o olhar na direo dos raios dasdivinas Escrituras, forosamente pecam com frequncia, porque caminham em trevas assaz densas. Afim de evit-lo, abramos os olhos ao fulgor das palavras do Apstolo. Com efeito, sua lngua fulguramais que o sol, e ele supera a todos os outros por seus ensinamentos. Tendo trabalhado mais do quetodos, alcanou grande graa do Esprito Santo. E eu o asseguro, no somente baseado nas Cartas,mas tambm nas suas aes. Se, de fato, fosse ocasio de proferir discursos, eles sempre lhe cediama palavra. Foi tido por Mercrio pelos infiis, porque era ele quem tomava palavra (At 14,11), poisprimava na eloquncia. Estando para ingressar no estudo desta Carta, necessrio mencionar otempo em que foi escrita. De fato, no foi escrita, como muitos pensam, antes de todas as outras, mas a primeira das que foram enviadas de Roma, mas posterior a outras, embora no a todas.Efetivamente, ambas as Cartas aos Corntios foram enviadas antes. evidente por aquilo que eleescreveu no fim desta, nesses termos: Mas agora vou a Jerusalm, a servio dos santos. AMacednia e a Acaia houveram por bem fazer uma coleta em prol dos santos de Jerusalm queesto na pobreza (Rm 15,25-26). E na Carta aos Corntios, diz: E, se valer a pena que eu mesmo

  • v, eles faro a viagem comigo (1Cor 16,4), referindo-se aos portadores dos recursos financeiros.Da faz-se patente que, ao escrever aos corntios, era incerta a viagem; ao invs, por ocasio daCarta aos Romanos, era questo decidida. Comprovado isto, certo que esta carta foi escrita depoisdaquelas. A Carta aos Tessalonicenses parece-me anterior Carta aos Corntios. De fato, tendoprimeiramente lhes escrito a respeito das esmolas, quando assegura: No precisamos vos escreversobre o amor fraterno; pois aprendestes de Deus a amar-vos mutuamente; o que fazeis muito bempara com todos os irmos (1Ts 4,9-10), em seguida escreveu aos corntios. E isto ele o manifesta,dizendo: Conheo a vossa boa vontade e por causa dela me ufano de vs junto dos macednios,dizendo-lhes: A Acaia est preparada desde o ano passado. E o vosso zelo tem servido de estmulo maioria (2Cor 9,2). Com isto demonstra que a primeira vez que lhes fala deste assunto. Porconseguinte, esta Carta, a primeira das que escreveu de Roma, posterior quelas outras. Pois aindano havia chegado a Roma, quando escreveu esta Carta; o que indica nesses termos: Realmente,desejo muito ver-vos, para vos comunicar algum dom espiritual (Rm 1,11). De Roma,porm,escreveu aos filipenses, onde assim se exprime: Todos os santos vos sadam, especialmenteos da casa do Imperador (Fl 4,22). Aos hebreus igualmente da escreveu, e diz que os sadam osque estavam na Itlia (Hb 13,24). Preso em Roma, enviou a Timteo uma carta, que parece ser altima de todas as Cartas de Paulo, conforme se manifesta no final: Quanto a mim, j fui oferecidoem libao, e chegou o tempo de minha partida (2Tm 4,6). sabido que ele a chegou ao termo davida. Tambm a Carta a Filemon conta-se entre as ltimas, pois a escreveu na extrema velhice,quando dizia: Sendo tal como sou eu, o velho Paulo e agora tambm prisioneiro em Cristo Jesus(Fm 1,9). A esta, portanto, precedeu a Carta aos Colossenses, conforme o final assinala, ao escrever-lhes: Tquico vos dar todas as informaes. Vai com Onsimo, irmo fiel e amado (Cl 4,7.9). Foipor causa de Onsimo que ele escreveu Carta a Filemon. E que no se trata de outro homnimo,manifesta-o por meio de Arquipo, uma vez que Paulo, na Epstola a Filemon, o toma por auxiliar afim de obter favor para Onsimo; a ele tambm na Carta aos Colossenses estimula com estaspalavras: E dizei a Arquipo: Atende ao ministrio que recebeste, cumprindo-o bem (Ib. 17). Ameu ver, porm, a Carta aos Glatas precedeu a Carta aos Romanos. Se, contudo nas Escriturasaparecem noutra ordem, no de admirar; s vezes, tambm os doze profetas no aparecem segundoa ordem temporal, mas apesar de serem de pocas muito diferentes, esto colocados seguidamente naBblia. Ageu, Zacarias e outros profetizaram depois de Ezequiel e Daniel; e muitos aps Jonas eSofonias e todos os outros, e, no entanto, todos eles esto congregados, apesar de separados por togrande intervalo de tempo.

    2. Ningum, no entanto, considere este trabalho fora do assunto, nem que se trata de perscrutarcoisa suprflua ou v, porque a poca das Cartas nos muito til para soluo de certas questes.Quando vejo Paulo escrever aos romanos e aos colossenses acerca dos mesmos problemas, mas node modo semelhante, aos primeiros com grande condescendncia, como ao dizer: Acolhei ao fracona f sem querer discutir suas opinies. Um acha que pode comer de tudo, ao passo que o fraco scome verdura (Rm 14,1), aos colossenses, porm, no assim acerca dos mesmos problemas, mascom maior liberdade: Se morrestes com Cristo para os elementos do mundo, por que que vossujeitais, como se ainda vivsseis no mundo, a proibies como: No pegues, no proves, notoques? Tudo isso est fadado ao desaparecimento por desgaste, mas no tm valor algum senopara satisfao da carne (Cl 2,20-23), no encontro outra causa desta diferena seno ascircunstncias de tempo. No incio, na verdade, importava usar de condescendncia, no, contudo, na

  • poca seguinte. Vers que ele assim age sempre e em todo lugar. Desta forma costumam fazer osmdicos e os mestres. O mdico no procede de igual forma para com os que esto no comeo dadoena e os doentes terminais; nem o mestre ensina de idntica maneira aos meninos e aos queprecisam de ensinamentos mais perfeitos. Por conseguinte, Paulo escrevia a uns e outros, movido pordeterminadas causas e assuntos. Ele o manifesta ao dizer aos corntios: Passemos aos pontos sobreos quais me escrevestes (1Cor 7,1); aos glatas, contudo, logo no prlogo e por toda a cartaassinala a mesma coisa. A estes, todavia, diz por que, qual o motivo por que escreve e parece dartestemunho de que eles esto cheios de bondade e repletos de todo conhecimento de forma a poderemadmoestar os demais. Por que, ento, enviou a carta? Em virtude da graa que me foi concedidapor Deus de ser o ministro de Jesus Cristo (Rm 15,15-16). Por isso, diz no princpio: Pois eu mesinto devedor. Da meu propsito de levar o evangelho tambm a vs que estais em Roma (Rm1,14-15). Na verdade, as suas palavras, por exemplo, acerca de lhes ser possvel admoestar osoutros etc., exibem principalmente louvor e exortao; mas era-lhes tambm necessria uma emendapor meio de cartas. Como, pois, ainda no havia chegado at a, por dupla maneira os orienta: pelascartas e com a expectativa de sua vinda. Era assim aquele santo. Assumia todo o orbe e carregava atodos consigo, considerando ser o maior parentesco o contrado segundo Deus. Desta forma, amava atodos como se os tivesse gerado, ou antes demonstrava maior amor do que um pai. Pois a graa doEsprito ultrapassa o nascimento carnal e causa afeto mais ardente. Verifica-se tal fato primeiro naalma de Paulo, que guisa de um pssaro, frequentemente visita a todos por efeito da caridade, semjamais permanecer ou parar. Pois como ouvira que Cristo dissera: Pedro, tu me amas? Apascenta asminhas ovelhas (Jo 21,16) e que assegurara que isto constitua o mximo limite da caridade, eleexerceu este mnus de forma extraordinria. Tambm ns o imitamos, se, visto no conseguirmosorientar o mundo todo, nem inteiramente as cidades e os povos, cuidarmos cada qual ao menos daprpria casa, da mulher, dos filhos, dos amigos e dos vizinhos. Nem me diga algum: Sou imperito eincapaz. Ningum mais indouto do que Pedro, nem menos perito que Paulo. Ele mesmo o confessa, eno se envergonha de dizer: Ainda que seja imperito no falar, no o sou no saber (2Cor 11,6). Noentanto, este imperito e aquele indouto venceram milhares de filsofos, impuseram silncio ainmeros oradores, realizando tudo diligentemente e pela graa de Deus. Que desculpa teremos ns,que nem ao menos para vinte pessoas bastamos, e no somos teis aos co-habitantes conosco? Sodesculpas e vs escusas. No a ignorncia e impercia que impedem a educao, mas a preguia e asonolncia. Sacudindo, portanto este sono, com toda aplicao cuidemos de nossos membros, a fimde gozarmos na terra de muita tranquilidade, dispondo segundo o temor de Deus o que nos adequado, e no alm conseguiremos inmeros bens, pela graa e benignidade de nosso Senhor JesusCristo, por quem e com o qual seja dada glria ao Pai, na unidade do Santo Esprito, agora e sempree pelos sculos dos sculos. Amm.

    PRIMEIRA HOMILIA

    Endereo2

    1. Paulo servo de Jesus Cristo, chamado para ser apstolo, escolhido para o evangelho de Deus,

    2. que ele j tinha prometido por meio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras,Nunca aps o prprio nome, tanto Moiss, nos cinco livros que escreveu,3 quanto os que depois

    dele registraram os fatos. Nem Mateus, nem Joo, nem Marcos, nem Lucas. Entretanto So Paulo, em

  • todas as suas Cartas, sempre coloca primeiro seu nome. Por qu? Porque eles escreviam para oscoetneos e, portanto, era intil revelar o prprio nome. Paulo, contudo, remetia escritos para longe,na forma de epstolas; por conseguinte, era necessrio previamente nomear-se. Se, porm, na Cartaaos Hebreus no o faz, por prudncia.4 Com efeito, era muito odiado por eles e a fim de no lhe serimpedido o acesso desde o incio, no caso de conhecerem o nome do autor, decidiu omiti-lo para queeles o ouvissem. Se, porm, os profetas e Salomo colocaram seus nomes, deixo-vos o trabalho depesquisar por que uns colocaram e outros no. No preciso que aprendais tudo de mim, mastambm vs deveis vos esforar e investigar, a fim de no ficardes preguiosos. Paulo servo deJesus Cristo. Por que Deus lhe trocou o nome e a Saulo deu a denominao de Paulo? Quis noficasse ele nesta questo abaixo dos apstolos, mas tambm tivesse a prerrogativa do prncipe dosdiscpulos, e mais estreitamente se unisse ao seu colgio. No sem motivo que se diz servo deCristo. De fato, h muitas espcies de servido. A primeira, pela pertena criao, conforme sediz: Todas as coisas te servem (Sl 119,91); e ainda: Nabucodonosor, meu servo (Jr 25,9), pois aobra do Criador servo seu. A segunda espcie a da f, sobre a qual se disse: Mas graas aDeus, vs, outrora escravos do pecado, vos submetestes de corao forma de doutrina qualfostes entregues, e assim livres do pecado, vos tornastes servos da justia (Rm 6,17-18). Outraespcie a do estilo de vida, conforme foi escrito: Moiss, meu servo, morreu (Js 1,2). Emboratodos os judeus fossem servos, Moiss especialmente brilhava pelo estilo de vida. Visto que Pauloera servo segundo todas as espcies de servido, ele as prefere mxima honra declarando: Servode Jesus Cristo, e relaciona os dois nomes do plano divino, subindo de baixo para cima. Um anjoveio do cu trazendo o nome de Jesus, quando nasceu da Virgem; o de Cristo deriva do termo uno,que se refere carne. E com que leo, perguntas, foi ungido? No foi ungido com leo, mas com oEsprito. A Escritura costuma dar a tais pessoas o nome de ungidos (Christous). Na verdade,quanto uno, o principal agente o Esprito; e utiliza-se o leo. E onde a Escritura denominacristos os que no foram ungidos com leo? Na passagem: No toqueis nos meus ungidos, no faaismal aos meus profetas (Sl 105,15). Ento no havia o uso do leo para a uno. Chamado paraser apstolo. Paulo, mostrando-se agradecido, sempre se diz chamado, e assegura que no foi porter ele prprio procurado que encontrou, mas por ter obedecido ao chamado. Aos fiis, porm, assimqualifica: chamados santos. Estes ltimos foram chamados f, mas foi confiado a Paulo outromnus, repleto de inmeros bens, o apostolado, que supera e abrange todos os carismas. E o quedizer ainda seno que Cristo, ao partir, entregou aos apstolos o que ele mesmo fez quando viera? o que Paulo tambm clama e assegura, exaltando a dignidade dos apstolos: Em nome de Cristoexercemos a funo de embaixadores e por nosso intermdio Deus mesmo que vos exorta (2Cor5,20), isto , em lugar de Cristo. Escolhido para o evangelho de Deus. Numa casa cada qual escolhido para determinada obra; assim na Igreja so distribudos os diversos ministrios. A meuver, portanto, aqui no designa a prpria sorte, mas insinua que ele h muito fora deputado para tal.Igualmente Jeremias declara que Deus dissera a seu respeito: Antes que sasses do seio materno, eute consagrei. Eu te constitu profeta para as naes (Jr 1,5). Ele escrevia para uma cidade arrogantee orgulhosa, e por isso manifesta que tudo provm de uma disposio divina. Efetivamente, foi Deusquem chamou, quem escolheu. Assim procede para tornar a carta fidedigna e bem acolhida. Para oevangelho de Deus. Por conseguinte, no somente Mateus e Marcos so evangelistas, nem somentePaulo apstolo, mas tambm os outros, apesar de ser ele denominado por excelncia apstolo eeles, evangelistas. Quanto ao evangelho, assim o designa no somente por causa dos bens j

  • outorgados, mas igualmente por causa dos que viriam no futuro. Por que, ento, afirma que Deusevangeliza por meio dele? Escolhido para o evangelho de Deus. O Pai, na verdade, semanifestara antes do evangelho. Mas se era conhecido, era apenas pelos judeus, mas nem por todoseles o quanto conviria; nem sabiam que ele era Pai e era indigno o que imaginavam a seu respeito.Por este motivo Cristo dizia: Os verdadeiros adoradores adoraro e: Tais so os adoradores queo Pai procura (Jo 4,23). Por fim, contudo, o Pai, com o Filho, manifestou-se a todo o orbe.Prenunciando-o, Cristo dizia: Que eles te conheam a ti, o Deus nico e verdadeiro e aquele queenviaste, Jesus Cristo (Jo 17,3). Refere-se a um evangelho de Deus, elevando imediatamente onvel do ouvinte. No veio, como os profetas, para anunciar eventos lastimveis, tais como censuras,acusaes, repreenses, mas a boa-nova e o evangelho de Deus, inmeros tesouros de bens firmese imutveis.

    3. que ele j havia prometido por meio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras,O Senhor deu uma ordem aos que anunciam com grande coragem a boa-nova (Sl 67,12). Quo

    graciosos so os ps dos que anunciam a paz! (Is 52,7). Vs a eloquncia com que enunciado onome e o lugar do evangelho no Antigo Testamento? No o pregamos apenas com palavras, diz, mastambm com obras. No se tratava de algo de humano, mas de divino, de indizvel e sobrenatural.Como, na verdade, o denunciavam como novidade, mostra que ele mais antigo do que o povo gregoe que fora prenunciado pelos profetas. Mas no foi dado desde o incio, porque no o quiseramreceber; de fato, os que quiseram, ouviram-no. Diz a Escritura: Abrao, vosso pai, exultou por ver omeu dia. Ele o viu e encheu-se de alegria! (Jo 8,56). Por que razo, ento, diz: Muitos profetas ejustos desejaram ver o que vedes e no viram (Mt 13,17)? De tal forma, porm, diz ele, que vedes eouvis a prpria carne, os sinais, que os olhos percebem. Queria que considerasses a antecednciacom que estes eventos foram preditos; pois quando Deus est preparando grandes acontecimentos,ele os anuncia muito tempo antes, abrindo os ouvidos para captar sua presena. Nas SagradasEscrituras. Os profetas no apenas proferiam, mas tambm escreviam as profecias; no sescreviam, mas ainda as aes se transformavam em figuras, por exemplo, Abrao que conduz Isaac,Moiss que exalta a serpente, estende as mos na luta contra Amalec, e imola o cordeiro pascal. Oque fazes, Paulo? Elevaste-nos os nimos a coisas sublimes, ofereceste-nos imaginao realidadesgrandes e ocultas, citaste o evangelho, o evangelho de Deus, introduziste o coro dos profetas emostraste que todos eles muitos anos antes prenunciaram o futuro; por que remontas a Davi? Dize-me. Quem este de quem falas e cujo pai afirmas ser o filho de Jess? Como possvel ser dignodele o que dizes? Sem dvida alguma; absolutamente, so dignas. No nos referimos a um simpleshomem. Por isso acrescentei: Segundo a carne, dando a entender que sua gerao era segundo oEsprito. E por que comea deste ponto, e no dos fatos mais sublimes? Porque assim tambmfizeram Mateus, Lucas e Marcos. Pois quem quiser guiar para o cu tem de conduzir de baixo paracima. Nesta ordem foram dispostos os eventos salvficos. Em primeiro lugar, portanto, viu-se umhomem sobre a terra, e percebeu-se que era Deus. Da mesma forma em que ele transmitiu a doutrina,seu discpulo abre o caminho que para l conduz. Em primeiro lugar, portanto, fala da geraosegundo a carne, no porque fosse a primeira, mas porque desta conduz o ouvinte para aquela.

    4. estabelecido Filho de Deus com poder, segundo o Esprito de santidade, por sua ressurreiodos mortos, Jesus Cristo

    A frase obscura devido s expresses complicadas; por isso necessrio distinguir. clara a

  • razo por que diz: Anunciamos aquele que nasceu de Davi. Mas de onde vem a assero de queaquele que se encarnou o Filho de Deus? Primeiramente veio por intermdio dos profetas. Por issodeclara: Que ele j havia prometido por meio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras. importante esta assero. Em segundo lugar, tambm pela forma da gerao, declarada nessestermos: nascido da estirpe de Davi segundo a carne; na verdade, no observada a lei danatureza. Em terceiro lugar, pelos milagres que operou, provas de seu grande poder; o sentido daexpresso: Com poder. Em quarto lugar, pelo Esprito que comunicou aos seus fiis, e por quemsantificou a todos; diz: segundo o Esprito de santidade, porquanto a Deus somente compete doartais dons. Em quinto lugar, pela ressurreio do Senhor, uma vez que ele foi o primeiro e nico aressuscitar a si mesmo. Ele prprio afirmou que este sinal o mais idneo de todos para fazer calaros insolentes. Pois disse: Destru este templo, e em trs dias eu o levantarei (Jo 2,19); e: Quandome tiverdes elevado da terra, ento sabereis que Eu sou (Jo 8,28); e ainda: Esta gerao... buscaum sinal, mas nenhum sinal lhe ser dado, exceto o sinal do profeta Jonas (Mt 12,39). O quesignifica: Estabelecido? Mostrado, declarado, julgado, reconhecido, de acordo com o juzo e votode todos, pelos profetas, pelo extraordinrio nascimento segundo a carne, pelo poder dos milagres,pelo Esprito por cujo intermdio santificou, pela ressurreio com a qual eliminou a tirania damorte.

    5. por quem recebemos a graa e o apostolado, para a obedincia da fV a gratido do servo! No atribui algo a si, mas ao Senhor. Alis, so dons do Esprito, por isso

    diz: Tenho ainda muito a vos dizer, mas no podeis agora compreender. Quando vier o Esprito daVerdade, ele vos conduzir verdade plena (Jo 16,12). E ainda: Separai-me Barnab e Saulo (At13,2). E na Carta aos Corntios diz: A um o Esprito d a palavra da sabedoria; a outro, a palavrada cincia, e: O mesmo Esprito distribui a cada um os seus dons, conforme lhe apraz (1Cor12,8.11). E discursando em Mileto, diz: O Esprito Santo vos estabeleceu pastores e bispos (At20,28). Vs como afirma que o que do Esprito do Filho, e o que do Filho, do Esprito? Agraa e o apostolado, isto , no fomos ns que nos fizemos apstolos. Com efeito, no obtivemosesta dignidade com nosso esforo e labor, mas recebemos qual graa e o mnus nos foi conferido porum dom do alto. Para a obedincia da f.

    Por conseguinte, no foram os apstolos que o realizaram, mas a graa preveniente. Com efeito,competia-lhes viajar e anunciar; mas persuadir era obra de Deus neles, conforme enuncia tambmLucas: Abriu-lhes o corao (At 16,14) e ainda: Aqueles aos quais fora dado ouvir a palavra deDeus (cf. At 4,4). Para a obedincia. No disse: Para pesquisa ou raciocnio, mas: Para aobedincia. No fomos enviados, disse, para construirmos silogismos, mas para transmitir o querecebemos. De fato, quando o Senhor profere uma palavra, no devem os ouvintes curiosamenteperscrutar e indagar, e sim acolher. Os apstolos foram enviados, a fim de narrarem o que ouviram, eno para acrescentarem algo de prprio; quanto a ns, compete-nos somente crer. O que devemosacreditar? Em seu nome. No faamos inquisies curiosas a respeito de sua substncia, e simacreditemos em seu nome. Este, de fato, operava milagres. Em nome de Jesus Cristo, levanta-te eanda! (At 3,6). E para tal a f necessria e nada disto podemos captar por meio de raciocnios.

    Entre todos os gentios,

    6. dos quais fazeis parte tambm vs, chamados de Jesus Cristo,O que isto? Acaso Paulo pregou a todos os gentios? certo, atravs do que escreveu aos

  • romanos, que ele peregrinou de Jerusalm at o Ilrico, e da chegou aos confins da terra. Emborano tenha atingido a todos, nem assim falso o que afirma, porque no fala apenas de si mesmo, masainda dos doze apstolos, e daqueles que na companhia deles anunciaram a palavra. Alis, no podesretrucar que no se trata de Paulo se considerares seu fervor, e que nem aps a morte cessa de pregarem todas as partes da terra. Pondera como exalta o dom e mostra que grande e mais sublime do queo Antigo. Na verdade, o Antigo Testamento toca apenas a um s povo; este dom, porm, abrangeterra e mar. Gostaria que mais uma vez pensasses quanto a alma de Paulo estava longe de qualqueradulao. Efetivamente, ao dirigir-se aos romanos, estabelecidos de certo modo no pice de todo oorbe, no lhes atribui mais do que aos restantes povos, nem, pelo fato de que ento dominavam ereinavam, diz que possuam mais relativamente s realidades espirituais. Mas, diz, como pregamos atodos os povos, assim tambm a vs, e enumera-os entre os citas e os trcios, porque, se noquisesse acentuar isto, seria suprfluo dizer: Entre todos os gentios, dos quais fazeis parte tambmvs. Assim procede, purificando-lhes a mente, humilhando-lhes a soberba e declarando-lhes queso iguais aos demais. Por isso, acrescenta: Dos quais fazeis parte tambm vs, chamados deJesus Cristo, isto , entre eles estais tambm vs. E no disse: Os outros convosco; mas: Vs comeles. Se, pois, em Cristo Jesus no h servo nem livre, muito mais nem rei nem homem do povo; defato, tambm vs fostes chamados, e no vos aproximastes espontaneamente.

    7. a vs todos que estais em Roma, amados de Deus e chamados santidade, graa e paz da partede Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo.

    V com que frequncia utiliza a denominao de chamados: Chamado para ser apstolo;dos quais fazeis parte tambm vs, chamados; a vs todos que estais em Roma... chamados.No suprflua a repetio, mas quer relembrar-lhes o benefcio da vocao. Com efeito, eraverossmil que entre os fiis houvesse antigos prefeitos e consulares, e tambm pobres e homensvulgares; ele desfaz a desigualdade social, reunindo todos sob um nico ttulo. Se, portanto, nascoisas mais necessrias e nas espirituais tudo comum entre servos e livres, por exemplo, o amor deDeus, a vocao, o evangelho, a adoo, a graa, a paz, a santificao etc., como no seria extremaloucura criar distines nas questes terrenas entre aqueles que Deus uniu e fez pares? Porconseguinte, desde o incio o santo Apstolo, curando-lhes a grave enfermidade, leva-os humildade, me de todos os bens. Melhorava os servos, informando-os de que a servido no lhescausaria dano, uma vez que gozassem da verdadeira liberdade; os senhores tambm aprendiam adiscrio, instrudos de que a liberdade no lhes traria lucro algum se as realidades da f notivessem precedncia. E para que saibas que Paulo com isso no introduzia confuso, nem misturavatudo, mas tinha timo discernimento, no escreveu simplesmente: Todos vs que estais em Roma,mas destacou: Amados de Deus. tima diferenciao! Assinala donde se origina a santidade.

    Donde provm, ento, a santidade? Do amor. Pois, aps declarar: Amados, aditou: Chamados santidade, indicando a estar a fonte de todos os bens. Chama de santos, porm, a todos os fiis.Graa e paz. saudao portadora de inmeros bens! Cristo ordena aos apstolos que, aoentrarem numa casa, a pronunciem. Por isso, Paulo sempre comea desta forma, a saber, pela graa ea paz. Cristo no levou a termo uma pequena luta, mas vrias, completas e diuturnas; no foramterminadas devido a nossos labores, mas por sua graa. E visto que o amor doou a graa, e a graatransmitiu a paz, denomina-as em srie, roga que permaneam perptuas e imutveis, no intuito deque no rebentasse outra guerra. Suplica ao doador que as conserve estveis, dizendo: Graa e pazda parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo. Nesta passagem, a palavra: da comum

  • ao Pai e ao Filho, como se dissesse: Vem dele. E no disse: Graa e paz da parte de Deus nossoPai por nosso Senhor Jesus Cristo, e sim: Da parte de Deus nosso Pai e de nosso Senhor JesusCristo. Ah! Quanto pde o amor de Deus! Os inimigos e os rprobos de repente se tornaram santos efilhos. Com efeito, quando nomeia o Pai, destaca que somos filhos; quando, porm, fala em filhos,revela o tesouro de todos os bens. Perseveremos, ento, em mostrar-nos dignos da ddiva de nossacidadania, e em conservar a paz e a santidade. As outras dignidades so, na verdade, temporrias eso supressas no final da vida presente; as riquezas so venais. Por isso ningum se referepropriamente a dignidades, mas apenas profere nomes, que vigoram devido magnificncia dasvestes e adulao dos satlites. A que Deus confere, porm, o dom da santificao e da adoo, no tirada pela morte; mas na terra produz homens ilustres e emigra conosco para a vida futura. Comefeito, quem conserva a adoo, e com todo cuidado guarda a santificao, muito mais esplndido efeliz do que aquele que cinge o diadema, e veste a prpura, e na vida presente usufrui da maiortranquilidade, fiado numa firme esperana, sem ter ocasio alguma de tumulto e perturbao; masgoza de perptuo gozo. Efetivamente, a alegria e o regozijo no costumam provir da grandeza doimprio, nem da quantidade das riquezas, nem do fausto do poder, nem da fora corporal, nem dalauta mesa, nem do ornato das vestes, nem de qualquer outra coisa humana, mas provm apenas dabenfica ao espiritual e da boa conscincia. Quem a conserva pura, esteja embora esfarrapado,faminto, mais alegre do que os que vivem em sumas delcias; e vice-versa, quem est consciente domal que praticou, cercado embora da abundncia de todas as riquezas, o mais miservel doshomens. Por esta razo, Paulo, que vivia com assdua fome e despojamento, cotidianamenteflagelado, mais se alegrava e regozijava do que os reis. Acab, entretanto, que reinava e gozava delautos banquetes, por ter admitido aquele pecado, gemia, estava angustiado, com o rosto desfeito,antes e depois do pecado. Se queremos, portanto, usufruir de prazer, fujamos sobretudo da maldade,e sigamos a virtude, porque no podemos de outro modo ter prazer, mesmo se ascendermos aoprprio trono imperial. Por isso Paulo dizia: Mas o fruto do Esprito amor, alegria, paz (Gl5,22). Conservemos este fruto entre ns, para gozarmos na terra desta alegria, e conseguirmos o reinofuturo, pela graa e amor aos homens de nosso Senhor Jesus Cristo, ao qual com o Pai seja glria, naunidade do Esprito Santo, agora e sempre e nos sculos dos sculos. Amm.

    SEGUNDA HOMILIAAo de graas e orao1,8. Em primeiro lugar, eu dou graas ao meu Deus mediante Jesus Cristo, por todos vs, porquevossa f anunciada em todo o mundo.

    Exrdio conveniente da alma feliz este, e prprio para instruir a todos a que ofeream a Deus asprimcias das palavras e das obras boas; deem graas no somente pelas suas prprias aes, mastambm pelas dos outros, o que livra a alma da inveja e do cime, e atrai maior benevolncia deDeus para com os que lhe do graas. Por isso, o Apstolo diz em outra passagem: Bendito seja oDeus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abenoou com toda a sorte de bnos espirituais(Ef 1,3).

    Devem dar graas no somente os ricos, mas tambm os pobres; no apenas os sadios, masigualmente os doentes; no s na prosperidade, mas tambm na adversidade.

    De fato, dar graas a Deus por ocasio de acontecimentos felizes no admirvel; mas, quandosurge grande tempestade, e a nave periclita e soobra, ento aparece a extrema prova de pacincia e

  • de gratido. Por este motivo J foi coroado, tapou a boca insolente do diabo e mostrou claramenteque no dava graas por causa da prosperidade, do dinheiro, mas movido por grande amor a Deus.V igualmente por que motivo Paulo d graas. No foi por bens terrenos e perecveis, tais comoimprio, poder, glria, que devem ser reputados como nada, mas por causa dos verdadeiros bens, af, a liberdade de falar. E com que afeto d graas! Pois no diz: A Deus, mas a Meu Deus,conforme fazem tambm os profetas, reivindicando para si o que comum a todos. de admirar queos profetas assim procedam? O prprio Deus assim age para com seus servos, declarandoparticularmente a respeito de cada um deles que o Deus de Abrao, de Isaac e de Jac. Porquevossa f anunciada em todo o mundo. Como? Toda a terra ouviu falar da f dos romanos? Inteira,por meio dele, e no inverossmil; no se tratava de uma cidade obscura, mas de uma cidadesituada de certo modo no alto de um pico, e universalmente ilustre. Pondera a fora do anncio dapalavra, como em to breve tempo por meio de publicanos e pescadores foi invadida a principal dascidades, e homens da Sria se tornaram mestres e preceptores dos romanos. O Apstolo atesta arespeito deles duas boas aes: Eles acreditaram, acreditaram com coragem, e de tal modo que afama deles percorreu a terra. Afirma ele: Vossa f anunciada em todo o mundo. A f, no asdiscusses, no os questionamentos, no os silogismos, embora ali houvesse muitos impedimentos doutrina. Efetivamente, os romanos, que recentemente haviam conquistado o imprio de todo omundo, estavam orgulhosos, e viviam no meio das riquezas e dos prazeres, e o anncio se realizavaatravs de pescadores, judeus e descendentes dos judeus, povo malvisto e geralmente abominvel, eordenavam adorar um crucificado, educado na Judeia. E os mestres prescreviam, alm da doutrina,uma vida austera a homens entregues aos prazeres, e ambiciosos apenas dos bens presentes. E os queanunciavam isto eram pobres, homens vulgares, obscuros e de pais obscuros. Entretanto, nada dissoimpediu o percurso da palavra. To grande era o poder do crucificado que a propagava por todaparte. anunciada em todo o mundo. No disse: publicada, e sim: anunciada, como seestivesse na boca de todos. Testificando o mesmo acerca dos tessalonicenses, acrescenta outra coisa;de fato, tendo dito: Partindo de vs, se divulgou a palavra de Deus, adita: No necessriofalarmos disso (1Ts 1,8). Os discpulos, com efeito, se colocavam no lugar de mestres, instruindo atodos corajosamente, e atraindo-os a si. A pregao nunca se interrompia, mas de modo maisveemente que o fogo invadia todo o orbe. Nesta passagem, porm, s se diz: anunciada.Expressou-se bem: anunciada, mostrando que nada devia ser acrescentado, nem subtrado spalavras. O papel do nncio (ngelos) este: Somente transmitir o que lhe foi dito. Por conseguinte,o sacerdote denominado anjo porque no anuncia o que seu, mas a mensagem daquele que oenvia. No entanto, Pedro ali pregou, mas Paulo considera seu o ensinamento dele; desta sorte,conforme disse mais acima, estava isento de qualquer espcie de inveja.

    9. testemunha Deus, a quem sirvo em meu esprito, anunciando o evangelho do seu Filho.Palavras do corao do Apstolo, sentena de solicitude paterna! O que quer ele dizer, e com que

    inteno invoca a Deus como testemunha? A palavra provinha de suas disposies. Uma vez queainda no os visitara, no chama por testemunha homem algum, mas aquele que perscruta oscoraes. Aps haver assegurado que os ama, e ter dado um sinal da instante orao por eles e dodesejo de visit-los, como isto no era bvio, recorre a um testemunho fidedigno. Ou poderia algumde vs gloriar-se porque se lembra, ao rezar em casa, da Igreja inteira? Certamente no. Mas Paulono rezava unicamente para uma cidade, mas suplicava a Deus por todo o orbe; e isto no uma, duas,ou trs vezes, mas continuamente. S possvel a uma pessoa lembrar-se assiduamente de outra

  • devido a uma grande caridade. Pondera que provm de grande afeto e amor ter presente sem cessar aum outro nas oraes. Ao declarar, porm: A quem sirvo em meu esprito, anunciando o evangelhodo seu Filho, demonstra-nos simultaneamente a graa de Deus e a humildade de Paulo. A graa deDeus, que lhe confiou to grande misso; a humildade, que no atribui tudo ao prprio zelo, mas aoauxlio do Esprito. Ao acrescentar: evangelho, assinala qual o ministrio. Alis, muitas ediversas so as formas de ministrio, e igualmente as do culto. Ao servio dos reis todos esto sob ogoverno de um prncipe, mas nem todos exercem o mesmo ministrio. Um comanda o exrcito, outrogoverna as cidades, outro guarda as riquezas nos tesouros; assim nas questes espirituais, um pela fcultua a Deus, serve-o, e ordena retamente sua vida, um outro recebe os hspedes, outro cuida dospobres. Assim entre os apstolos, Estvo servia a Deus cuidando das vivas; um outro ensinando apalavra, de cujo nmero era Paulo, que servia a Deus pregando o evangelho. Era o seu servio, oqual lhe fora confiado. Por isso no s invoca a Deus como testemunha, mas diz que lhe foi entregue,e jamais invocaria por testemunha falsa aquele que lhe confiara o servio.

    Alm disso, quer mostrar que a caridade e a solicitude que tinha para com eles eram necessrias,e eles no pudessem dizer: Quem s tu, e de onde vem afirmares que assumiste o cuidado de togrande e rgia cidade? Torna-se clara a necessidade de tal solicitude com a declarao da espciede servio, a saber, anunciar o evangelho. De fato, aquele a quem foi confiado este mnus,obrigatoriamente ter sempre em mente aqueles que ho de receber a palavra. Em outra parte oassinala, nesses termos: Em meu esprito, porque sua religio era muito mais sublime do que ados gentios e judeus; pois a dos gentios era errnea e carnal, enquanto a judaica era verdadeira,apesar de ser tambm carnal; a da Igreja, porm, era oposta dos gentios, e muito mais sublime doque a judaica. Nosso culto no utiliza ovelhas, vitelos, fumaa e odores das vtimas, mas espiritual.Demonstrando-o, dizia Cristo: Deus esprito e aqueles que o adoram devem ador-lo em esprito everdade (Jo 4,24).

    O evangelho do seu Filho. Aps ter dito mais acima que o evangelho era do Pai, aqui afirmaser do Filho; deste modo diz-se ser indistintamente do Pai e do Filho. Aprendeu-o por intermdio davoz sagrada que assegurava ser do Filho o que do Pai, e ser do Pai o que do Filho. Foi dito:Tudo o que meu teu e tudo o que teu meu (Jo 17,10).

    Lembro-me continuamente de vs em minhas oraes, Caridade genuna! A meu ver, diz uma scoisa, embora apresente quatro asseres: Que se lembra, continuamente, nas oraes, e os pedidosso importantes.

    10. pedindo que, de algum modo, com o beneplcito de Deus, se me apresente uma oportunidadede ir ter convosco.

    11. Realmente, desejo muito ver-vos,Vs o grande desejo que tem de v-los, segundo o beneplcito divino, num misto de amor de Deus

    e temor? De fato, amava-os e tinha pressa de ir ter com eles; mas embora amasse, no queria v-losse no fosse de acordo com o beneplcito de Deus. caridade genuna; no como ns, quetransgredimos ambos os preceitos da caridade porque no amamos, ou se amamos, fazemo-lo semconsiderar o beneplcito de Deus. Ambas as aes so contra a lei divina. Se isto oneroso de sedizer, mais oneroso certamente de se fazer.

    E quando amamos sem considerar o beneplcito de Deus? Quando desprezamos a Cristo faminto,e despendemos com os filhos, amigos e parentes alm do necessrio. Ou melhor, qual a utilidade de

  • continuar falando? Se, de fato, cada um examinar a prpria conscincia, descobrir quefrequentemente assim acontece. O bem-aventurado Apstolo, porm, no era tal, mas sabia amar, eamar conforme devido. Apesar de superar a todos na caridade, no transgrediu a medida noexerccio da caridade. V, portanto, que ele possui com abundncia ambas as coisas, tanto o temor deDeus quanto o amor aos romanos. Era sinal de exmia caridade rezar continuamente por eles, e nodesistir mesmo quando no impetrava o objeto desejado. Constitua suma piedade obedecer vontade de Deus, perseverando no amor. Em outra passagem tambm, tendo rogado trs vezes aoSenhor, sem obter o que pedia, ou melhor, sucedia-lhe o oposto, dava graas pela recusa (2Cor12,8). Desta forma sempre voltava o olhar para Deus. Em nosso caso, contudo, recebeu lentamente eno quanto pedia, sem se aborrecer. Digo isto a fim de no nos contrariarmos se no somos ouvidos,ou somos atendidos com tardana. Na verdade, no somos melhores do que Paulo, que, por ambos osmotivos, deu graas e com toda razo. Uma vez que se entregara inteiramente s mos daquele quetudo dirige, e com sujeio igual do barro nas mos do oleiro, ele seguia a Deus aonde quer que oconduzisse. Tendo dito, pois, que pedia a graa de poder visit-los, enuncia a causa destes desejos.Qual ?

    Para vos comunicar algum dom espiritual, que vos possa confirmarNo , portanto, sem motivo, conforme atualmente o proceder de muitos que assumem suprfluas e

    inteis peregrinaes, mas queria tratar de questes indispensveis e urgentes; ele no o enunciaclaramente, mas de forma enigmtica. E no disse: Para vos ensinar, vos instruir, completar o quefalta, e sim: Para vos comunicar, asseverando que no distribuiria do que era seu, mas dodepsito que recebera para transmitir-lhes. Mais uma vez fala modestamente: Algum dom, poucacoisa e minha medida. E o que aquele pouco que j haveria de dar? Diz ele: Que vos possaconfirmar. Por conseguinte, provm igualmente da graa o fato de no vacilar, mas de ficar firme.Ao ouvires falar de graa, acautela-te de pensar que se exclui a recompensa devida ao bompropsito; o Apstolo a denomina graa, no porque reprove o esforo da vontade, mas para cortar aorgulhosa arrogncia. Se Paulo a denomina graa, no entanto no desanimes. Um nimo grato costumadenominar graa as boas obras, porque para isso carecemos muito do impulso do alto. Ao dizer,porm: Que possa vos confirmar, assinala implicitamente que eles precisavam de grandecorreo. Quer dizer o seguinte: H muito alimentava o desejo e anelo de vos ver, por nenhum outromotivo seno o de vos fortalecer, confirmar e firmar devidamente no temor de Deus, para novacilardes continuamente. Mas no se exprime deste modo, porque os teria melindrado. Insinua-omais levemente. Ao declarar: Que possa vos confirmar, o que d a entender. Em seguida, umavez que muito os molestaria, mitiga a expresso por meio do acrscimo. A fim de que eles noreplicassem: Como? Acaso vacilamos? Ou vagamos? E precisamos de tua lngua para ficarmosfirmes? previne a objeo nesses termos:

    12. ou melhor, para nos confortar convosco pela f que nos comum a vs e a mimComo se dissesse: No suspeiteis que assim me expressei para vos acusar. No falei com tal

    inteno. Mas o que quis dizer? Sofrestes muitas tribulaes dos que vos perseguiram, por issodesejei ver-vos para vos confortar; ou melhor, no somente para vos confortar, mas tambm para meconfortar.

    V a sabedoria do mestre. Assegura: Que possa vos confirmar. Sabia que seriam pesadas eonerosas aos discpulos as suas palavras, e por isso diz: Para vos confortar. Mas isto tambm eramolesto, embora no tanto quanto o que dissera antes. Mitiga a aspereza, suaviza inteiramente, para

  • tornar a palavra aceitvel. Pois no disse simplesmente: Confortar, mas: Para nos confortarconvosco. Nem isto lhe foi suficiente, mas aditou a mitigao: Pela f que nos comum a vs e amim. Ah! quanta humildade! Sugere que ele igualmente necessita e no apenas eles. Coloca osdiscpulos no mesmo posto que os mestres, sem reservar para si prerrogativa alguma, com grandeigualdade. A utilidade comum, diz ele, e precisamos de conforto, eu do vosso e vs do meu. Ecomo suceder isto? Pela f que nos comum a vs e a mim. Se algum acender do mesmo fogomuitas lmpadas, produz esplndida chama; o mesmo acontece entre os fiis. Separados uns dosoutros, seremos menos animosos; quando, porm, nos vemos mutuamente e nos abraamos comomembros, recebemos muito conforto. No me oponhas o tempo presente, em que pela graa de Deusnas aldeias, nas cidades, no prprio deserto existem muitas fileiras de fiis, e toda impiedade foiexpulsa, mas pensa no tempo em que era timo o mestre visitar os discpulos, e para os irmos verirmos provenientes de outra cidade. Para tornar mais claro o que digo, usaremos de um exemplo. Seacontecesse (outrora acontecia, agora tal no acontea), que fssemos trasladados em exlio para aterra dos persas ou dos citas ou outros brbaros, dispersos em grupos de dois ou trs naquelascidades, e vssemos de repente algum vir de nossa terra, calcula o conforto que sentiramos. Novedes que os encarcerados, quando os visita um dos familiares, levantam-se e saltam de alegria? Note admires, na verdade, se comparo aqueles tempos ao cativeiro e ao encarceramento. Sofriam muitomais, dispersos, expulsos, famintos e em guerras, com ameaas cotidianas de morte, e suspeitas dosamigos, familiares e parentes; habitavam em toda parte como estranhos, ou o que pior, viviam emcondies piores do que os que moram em terra estrangeira. Por isso assim se exprime (para nosconfortar convosco pela f que nos comum a vs e a mim). Assim se exprimia, apesar de noprecisar, de forma alguma, deles por companheiros de milcia. Como precisaria deles a coluna daIgreja, mais forte do que o ferro e a rocha, espiritualmente de ao, que bastava a inmeras cidades?)Mas, para que o discurso no fosse molesto, nem a correo veemente, dizia necessitar do confortodeles. Se algum afirmar que Paulo teve necessidade da consolao e da alegria oriundas doincremento da f neles, certamente no erraria. Se, portanto, dizes, desejas e optas receber e darconforto, qual o impedimento de vires? Dissipando esta suspeita, acrescenta:

    13. E no escondo, irmos, que muitas vezes me propus ir ter convosco e fui impedido at agora.V a medida de obedincia do servo, e a prova de intensa gratido. Diz que estava impedido, no,

    porm, qual o motivo. No perscruta o mandato do Senhor, mas somente obedece. Era possvel umahesitao diante do fato de que por tanto tempo Deus impedisse usufruir da palavra de to grandedoutor uma cidade to grande e to esplndida e para a qual se voltava o olhar da terra inteira. Poisquem vence a cidade dominante facilmente subjuga os sditos. Quem, contudo, deixa-a de lado eataca os sditos negligencia o principal. Entretanto, Paulo nada disso indaga curiosamente, mas cedediante da incompreensvel providncia, e tanto se apresenta moderado quanto instrui a todos ns anunca perguntarmos a razo das aes de Deus, embora muitos se mostrem perturbados a esserespeito. Apenas ao Senhor compete dar ordens; aos servos cabe obedecer. Por isso diz que estavaimpedido; mas no informa por que razo. Pois, diz ele, nem eu sei. No me interrogues, portantoqual seja a vontade ou o plano de Deus. Vai acaso a obra dizer ao artfice: Por que me fizesteassim? (Rm 9,20) Por que desejas saber? Acaso desconheces a providncia e sabedoria divina, quenada faz sem causa e em vo, que te ama mais do que teus pais, que supera de longe o afeto paterno ea solicitude materna? Por conseguinte, nada mais perguntes, nem procedas avante. Sirva-te isto desuficiente conforto. Na verdade, ento o imprio romano era governado com sabedoria. Se ignoras o

  • modo, no te irrites. sobretudo peculiar f que, se algum desconhece o modo de realizao doplano divino, admita, contudo, a razo da providncia.

    Tendo Paulo determinado corretamente o que lhe competia (De que se tratava? Mostrar que noera por desprezo que no ia ter com eles, mas apesar de seu grande desejo, estava impedido), eremovido a acusao de indolncia, e aps persuadi-los de que no era menor o seu desejo de v-losdo que, por sua vez, o deles, ainda de outras maneiras manifesta seu amor. Pois, diz ele, nem pelofato de estar impedido, desistiu do empenho, mas sempre tentava, e sempre era coibido; nuncadesistiu, sem resistir, contudo, vontade de Deus, e conservando a caridade. Pois, com o fato de sepropor sem desistncia, mostrava seu amor; por ser impedido sem resistir, revelava amor extremo aDeus.

    Para colher algum fruto tambm entre vs, apesar de mais acima ter apresentado a causa dodesejo, e ter mostrado que lhe convinha, no entanto aqui tambm a formula, eliminando inteiramente asuspeita deles. Visto que a cidade era ilustre, e nica em terra e mar de to grande beleza, e muitospara l imigraram somente pela vontade de v-la, a fim de que ningum opinasse a respeito de Pauloalgo de semelhante, nem suspeitasse que Paulo desejava v-los para se tornar mais ilustre d