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1,
n.1,
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abr.2008.
www.e-compos.org.br
| E-ISSN 1808-2599 |
Experincia urbanae narrativas de crime
Paulo Vaz e Galle Rony
ResumoNeste artigo, propomos que as notcias de crime
so, hoje, um elemento decisivo na conformao
da experincia da cidade e da alteridade. Para
sustentar terica e empiricamente a proposio,
argumentamos, em primeiro lugar, que a retrica
dos meios de comunicao usa as lgicas do medo
e da compaixo para favorecer a identificao
da audincia com o sofrimento de estranhos. Na
seqncia, analisamos o modo como a descrio
da cidade por jovens da elite carioca articula
insegurana, pobreza e justia, reiterando em suas
grandes linhas as possibilidades de construo de
identidade oferecidas pelas notcias de crime.
Palavras-chave
Cidade. Crime. Insegurana. Vtima. Identidade.
Alteridade.
1 Corpo, cidade e insegurana
Em diversas metrpoles do mundo, o medo
do crime afeta o modo como indivduos
experimentam a cidade, pesando tanto sobre
escolhas com conseqncias de longo prazo,
como a do bairro onde morar, quanto nas decises
cotidianas sobre trajeto para o trabalho e opes
de lazer. A eventualidade de ser vtima tambm
uma questo poltica maior, com os cidados
exigindo do Estado que suas rotinas no estejam
perpassadas pela possibilidade de serem vtimas
de crimes violentos.
Por ser elemento de decises de indivduos e
objeto de polticas pblicas, nos ltimos 40 anos,
o medo do crime (ou sentimento de insegurana)
modificou a aparncia das metrpoles ao
reforar diferenas entre bairro de classe
mdia e periferia, ao estimular a existncia
deshoppingse de condomnios fechados e ao
banalizar as grades por todo lugar.
Talvez pela amplitude, essas mudanas foram
descritas e discutidas por diversos cientistas
sociais e arquitetos. O sentimento de insegurana
Paulo Vaz| [email protected] em Comunicao pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ. Professor do Programa de Ps-Graduao da Escola de
Comunicao da UFRJ.
Galle Rony| [email protected] em Cincias Sociais pela Universit Catholique de Louvain.
Bolsista recm-doutor da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado
do Rio de Janeiro FAPERJ
Os autores agradecem ao CNPq e FAPERJ pelo apoio pesquisa.
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implica, de fato, uma nova articulao entre os
corpos e a cidade. O objeto de preocupao
o crime cometido por estranhos que ameaa a
integridade fsica e patrimonial dos indivduos
e que ocorre no espao pblico, com seleo
aleatria de vtimas. O crime de proximidade,
entre conhecidos, usualmente por razes
passionais e que ocorre em espaos privados, como
agresses entre cnjuges, no tende a gerar medo
e, assim, no afeta a sociabilidade nas metrpoles.
A possibilidade de ser vtima passa a orientar
as prticas dos indivduos nas cidades quando
os crimes no so vistos como incidentes, como
instncias isoladas, mas sim como incidncias,
como mais um caso de um fenmeno por
exemplo, a violncia urbana que os antecede
e que os suceder. Atravs da generalizao dos
casos, a percepo do crime uma representao
sobre a cidade que associa a possibilidade de
ser vtima a caractersticas de indivduos e
lugares. Como muitos sabem, embora poucos
digam abertamente, no Rio de Janeiro elementos
da aparncia de estranhos, como raa, etnia
e ndices de pobreza, so tomados comomarcadores de risco, imprecisos, mas usados na
ausncia de alternativa.
Para a maior parte dos indivduos, essa
representao sobre a cidade no formada a
partir da experincia direta de ser vtima. Mesmo
em cidades com altas taxas de crime, poucos,
percentualmente, so vtimas diretas; desse
modo, a crena na existncia de ameaas rotina
formada a partir da experincia indireta, isto
, a crena construda a partir do relato de
parentes e amigos sobre suas experincias e a
partir do relato sobre sofrimento de estranhos
que aparecem nos meios de comunicao. De
fato, se para haver medo preciso que os crimes
sejam apreendidos como incidncia, os meios de
comunicao de massa so uma fonte necessria
para os indivduos se pensarem como vtimas
virtuais (VAZ et al., 2005; 2006). Pelo seu modo de
funcionamento, por selecionar os acontecimentos
que podem interessar a muitos, por articular um
acontecimento vida de cada membro de sua
audincia, a mdia necessariamente generaliza os
incidentes e cria um nexo entre o sofrimento de
estranhos e a rotina de cada indivduo.
As notcias sobre crime so um dos modos,
hoje, de articular os corpos e a cidade. So
representaes ricas em significados. Implcita
ou explicitamente, como na j costumeira
representao do mapa da violncia que por
vezes aparece nas pginas e telas dos meios
de comunicao, essas notcias descrevem a
cidade segundo o critrio do risco de vitimizao.Mas elas tambm so uma representao da
alteridade, seja pela possibilidade da morte na
rotina, seja porque a diferena entre vtima e
criminoso est a disponvel para ser articulada
a outras separaes sociais, como aquelas entre
ricos e pobres, morais e imorais e prximos e
estranhos. De modo mais direto, nas conversas
sobre crime hoje, tambm se fala sobre cidade,
pobreza e moralidade.
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As notcias de crime so, ainda, um discurso
sobre a boa ordem. Ao narrar um crime, no
apenas se descreve o incidente; tambm se expe
como ele poderia no ter ocorrido e por que ele
no deveria existir. Quando se fala sobre crime,
tambm se discute concretamente a justia, a
partir da existncia de um sofrimento.
Duas questes aparecem imediatamente. A
primeira saber como os meios de comunicao
narram os crimes, determinando ento os
modos de sua retrica participar da constituio
do sentimento de insegurana. A segunda
correlata; trata-se de saber como os indivduos
efetivamente apreendem as narrativas miditicas
de crime, construindo seus mapas mentais
da cidade pela estimativa das possibilidades
de vitimizao. De fato, a apreenso das
informaes miditicas depende das condies
sociais de recepo. Como diversos estudos
o demonstraram, a apreenso do sentido de
mensagens no feita por um indivduo abstrato;
ela depende de gnero, idade, faixa de renda,
educao, familiaridade com a mdia, etc.
Essas questes precisam ser elaboradas
empiricamente. Na seqncia do artigo,
apresentaremos, primeiro, uma sntese de
diversas pesquisas empricas sobre a forma
com que o jornal O Globoe o telejornalRJ-TV
2 edionarram os crimes ocorridos na regio
metropolitana do Rio de Janeiro nos anos de
2001, 2002 e 2004. A seguir, analisaremos como
jovens cariocas, pertencentes elite social e
econmica, pensam as relaes entre segurana e
hedonismo nas suas experincias da cidade.
2 A lgica do medo
As notcias de crime so narrativas sobre o
sofrimento de estranhos. Pensar seus possveis
efeitos ticos e polticos requer analisar as
propostas miditicas de identificao da
audincia com os personagens bsicos de uma
notcia de crime: a vtima, o criminoso e o
Estado. Nas culturas ocidentais contemporneas,
uma forma de subjetividade desponta: a vtima
virtual. Compreender sua produo analisar os
procedimentos narrativos para articular vtima
e audincia. Aqui, duas lgicas de identificao,
interligadas, so decisivas: a lgica do medo e a
lgica da compaixo.
Em relao lgica do medo, pode ser dito que
praticamente todas as notcias de crime que
coletamos de 2001 em diante continham dois
fragmentos narrativos. O primeiro prope que o
crime ocorrido poderia ter atingido qualquer um;
o segundo, que esse tipo de crime pode ocorrer
novamente. A presena insistente desses dois
fragmentos prope o lugar de vtima virtual
audincia ao afirmar que o crime ocorrido
incidncia e que o problema concerne a todos como
indivduos, pois cada um pode ser a prxima vtima.
O privilgio concedido nas pginas e telas aos
crimes cometidos por estranhos e ocorridos
no espao pblico com seleo aleatria de
vtimas modo de generalizar a eventualidade
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da vitimizao. Quando a mdia seleciona como
notcia os tiroteios ou assaltos em vias expressas
da cidade do Rio de Janeiro (Linha Vermelha,
Amarela, Avenida Brasil), o discurso implcito
prope que qualquer um poderia ter passado de
carro ou nibus naquela hora e que foi por sorte
que o indivduo no se tornou vtima.
Tomemos o caso da televiso. NoRJ-TV 2
edioem 2004, foram coletadas 82 notcias
que tratavam de crime em 36 dias selecionados
aleatoriamente. Pouco menos de 40 notcias
narrava um crime; as outras tratavam de aes
policiais, eventos no sistema judicirio ou na
priso e de polticas pblicas de segurana.
Focando apenas nas narrativas de crimes
ocorridos, se somarmos assaltos (particularmente
latrocnios), tiroteios entre bandidos ou entre
policiais e bandidos, crimes como arrastes e
balas perdidas e, por fim, demonstrao de fora
dos traficantes, notamos que 68% das notcias
de crime privilegiaram a seleo aleatria de
vtimas. Para tornar mais visvel essa preferncia
editorial pela vitimizao aleatria, pesquisamos
em todas as notcias se elas mencionavam ou noos termos bala perdida ou vtima de tiroteio. O
resultado surpreendente que 26% mencionavam
esses termos.
Quando classificamos os crimes segundo seu
local de ocorrncia, a distribuio claramente
indicava que os espaos pblicos e semi-pblicos
da cidade ruas, praias, universidades, bancos,
etc. so constitudos como lugares perigosos.
E mesmo nas sete notcias de crimes em que o
local de ocorrncia era a residncia, trs casos
referem-se a assaltos, um ordem de despejo
de uma moradora de favela promulgada por
traficantes e outro a uma chacina que a polcia
afirmou ser de responsabilidade do trfico. O
telejornal constitui a cidade por inteiro como
arriscada; no surpreende, pois, que o pai de uma
vtima de tiroteio ocorrido num assalto a banco
em novembro de 2004 diga: complicado voc
sair hoje de casa; at em casa voc corre risco.
Uma ltima classificao aplicada s ocorrncias
criminais noticiadas noRJ-TV 2 edio
distinguia as formas possveis de relao entre
criminoso e vtima. Se o atributo de existncia
de um fenmeno for sua veiculao pela mdia,
no houve crimes tipicamente passionais no Rio
de Janeiro em 2004, pois no houve nenhum
caso onde o agressor era conhecido e tinha
relao de familiaridade com a vtima. Ao mesmo
tempo, 75% dos crimes teriam sido cometidos por
pessoas absolutamente estranhas.
O privilgio ntido dado aos crimes cometidos
por estranhos no espao pblico com seleo
aleatria de vtimas modo de incitar a
identificao da audincia com a vtima sob
a lgica do medo. Embora esse privilgio seja
forma de propor que esses tipos de crime
podem acontecer com qualquer um, as notcias
insistem em mostrar que eles podem acontecer
novamente. No noticirio televisivo, a estratgia
retrica mais utilizada colocar uma vtima,
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direta ou virtual, comentando o sentido desse
evento para a vida na cidade e, portanto,
transformando o incidente em incidncia. Eis
algumas frases ditas ao longo do ano de 2004:
No vou viver aqui de jeito nenhum (moradora
aps um tiroteio na Linha Amarela); Com
essa insegurana, com essa instabilidade,
com essa sensao de impotncia, a gente no
pode continuar vivendo numa cidade como
essa (moradora da Lagoa aps um assalto a
edifcio); Pessoas esto aterrorizando a cidade
e o bairro, e a gente ainda tem que compactuar
com isso daqui (pai de aluna que teve aula
interrompida pela disputa de ponto de venda
de drogas na Rocinha); No agento mais de
medo; no consigo mais sair de casa (moradora
de Santa Teresa, durante um protesto); umterror, ns vivemos em desespero constante
e sempre com aquele pensamento de que vai
haver alguma coisa, n? (moradora comentando
sua experincia de morar perto da casa de
deteno de Benfica). E quem j no leu ou ouviu
a inevitvel pergunta sobre se a vtima vai
continuar a morar na cidade?
Colocar indivduos comuns para falar do medo
que afeta a muitos no a nica estratgia
retrica de identificao da audincia com a
vtima. O discurso dos ncoras ou dos reprteres
tambm costuma repetir que o incidente
uma incidncia: Em menos de um ms, outros
dois moradores morreram por balas perdidas;
Essa foi mais uma madrugada de medo para a
comunidade; Mais um confronto entre policiais
e bandidos; mais duas vtimas; E desde a noite
da ltima quarta-feira 16 pessoas foram mortas
em confronto com a polcia; Mais um caso de
seqestro-relmpago no Rio; Em seis meses,
pelo menos 23 pessoas j morreram, etc.
Uma terceira estratgia discursiva, mais radical,
de identificao entre vtima e audincia sob a
lgica do medo aparece em notcias sugerindo
que at a polcia est intimidada pela violncia
urbana. Aps relatar a morte de um motorista
baleado durante o assalto ao seu carro, o reprter
mostra que a delegacia prxima se trancou com
cadeado. A justificativa do delegado significativa:
a delegacia estava rodeada por 14 favelas.
Nessa ltima notcia, est implcita a relevncia
do segundo aspecto na constituio do medo:a imagem do criminoso (e dos lugares onde
dito que mora). Por seu uso poltico nos Estados
Unidos aps o atentado de 11 de setembro,
possvel perceber que o medo ser tanto maior
quanto mais os criminosos forem descritos
pelos adjetivos organizados e conspiradores.
Quanto mais se repetia que a Al-Qaeda era
uma organizao descentralizada, com clulas
espalhadas pelo mundo, prontas para agirem
autonomamente, sempre capazes de renascerem
se por acaso alguma fosse destruda, mais fcil
era sustentar a possibilidade de um novo ataque.
Do mesmo modo, a tendncia da cobertura
miditica dos crimes no Rio de Janeiro , em
primeiro lugar, atribuir muitos crimes aos
traficantes, mesmo aqueles onde a informao
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disponvel ao reprter escassa. Em segundo
lugar, os traficantes tendem a ser descritos
como mais organizados do que so ao menos
se for aceita a descrio de cientistas sociais
brasileiros como Misse (2006) e Zaluar (1998) e
com penetrao cada vez maior na sociedade;
comum os jornais e a televiso destacarem que
cantores, jogadores de futebol e celebridades
conhecem algum traficante poderoso. A
identificao da audincia com a vtima sob a
lgica do medo forma aqui uma separao entre
ns e eles: cada membro da audincia
convidado a se conceber como ameaado por um
grupo de indivduos estranhos e organizados.
A variao do medo segundo a imagem do
criminoso depende tambm da possibilidade
ou no de compreender suas aes. Parte
do temor dos terroristas dependia de serem
descritos ora como dispostos a tudo, ora como
fanticos, com crenas exticas, absolutamente
convencidos no s da existncia de vida aps
a morte, mas de que haveria recompensas
espetaculares no alm para seus sacrifcios.
Na cobertura do crime, essa incompreenso realada seja atravs da maldade monumental
dos chefes, seja atravs do singular desprezo
pela vida alheia comum a todos os bandidos. Nos
anos de 2001 e 2002, o jornal O Globo, quando
narrava um assalto mo armada, colocava a
vtima a dizer que no reagiu diante da arma
apontada, sugerindo implicitamente que reagir
seria arriscado quando se lida com bandidos
sem considerao pela vida. Para confirmar
a imagem, nos assaltos em que a vtima foi
baleada, o jornal frisava que ela ou reagiu, ou
tentou fugir. Talvez o caso mais revelador dessa
construo de imagem tenha sido um assalto
onde houve a quebra do quase-contrato entre
indivduo e bandido: uma senhora, mesmo
no tendo reagido e entregado o dinheiro, foi
baleada na cabea. Ao lado da notcia, o jornal
coloca numboxum policial afirmando seu
espanto diante de tanto desprezo pela vida
(sobre esses casos, ver VAZ et al., 2006).
Essa imagem do criminoso afeta, por derivao,
as favelas, o lugar onde esses criminosos so ditos
morar ou se refugiar e, por aproximao, todos
os moradores que podem parecer criminosos,
notadamente jovens do sexo masculino. Ao
longo do ano de 2004, por diversas vezes alguma
favela apareceu visualmente no telejornal. Uma
imagem tpica era a de policiais sobrevoando
de helicptero a comunidade, com fuzis
apontados para baixo. Ou policiais entrando a
p, com armas empunhadas, prestes a atirar.
E os comentrios de jornalistas ou indivduos
apenas reforam a associao entre favela erisco. Alm da j mencionada justificativa do
delegado para colocar correntes na delegacia,
a cidad que morava perto da antiga Casa de
Custdia de Benfica, ao comentar a resoluo do
governo estadual de torn-la centro de triagem
para prisioneiros que estavam no fim de suas
penas, afirma: Vo misturar outra vez faces
diferentes, num bairro que tem vrias favelas; vai
ser muito pior.
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Essa associao entre favela e risco tem efeitos,
como veremos mais frente, quando analisarmos
a fala de jovens da elite carioca sobre o crime.
Mas um desses efeitos, a naturalidade com que se
aceita a interveno policial violenta nas favelas,
j est presente no discurso miditico. No incio
de 2004, um tiroteio entre traficantes e policiais
perto da Linha Amarela provocou a morte de um
pastor e sua mulher por bala perdida quando
passavam de carro. No final, o reprter anuncia
as medidas tomadas pela autoridade policial aps
o evento: em primeiro lugar, para evitar que
motoristas sejam atingidos em caso de tiroteio,
as equipes da polcia no vo ficar mais baseadas
perto da via expressa; em segundo lugar, vo
aumentar o nmero de policiais de 100 para
240 que ocupam o Complexo da Mar. Deve sersurpreendente para um estrangeiro saber que um
modo de proteger os indivduos na cidade do Rio
de Janeiro afast-los da proximidade da polcia;
tambm deve ser surpreendente que o noticirio
no questione se o aumento do efetivo policial
acarretaria ou no mais confrontos e, portanto,
mais riscos de bala perdida para quem mora no
Complexo da Mar.
3 Compaixo e indignao
Assim como o medo, a compaixo tambm tem
sua lgica. Embora seja comum a crena de que
as emoes so naturais, tendo forma e sentido
independente da cultura, para quem investiga se
os meios de comunicao so capazes de produzir
subjetividade e comunidade, interessante
tomar como ponto de partida a possibilidade de
as emoes implicarem crenas que as definem.
No caso da compaixo como sentimento doloroso
endereado ao sofrimento de outro indivduo ou
ser vivo, trs crenas so reconhecidas desde
Aristteles como decisivas para sua existncia
(NUSSBAUM, 2001).
A primeira condio um juzo de gravidade
sobre o sofrimento. Se porventura o observador
acreditar que o sofrimento do outro foi
ocasionado por algo insignificante, ele recusa
a compaixo; inversamente, possvel que um
observador sinta compaixo por algum que
no saiba que est sofrendo, como o caso na
atitude perante a alienao de modo geral,
seja em relao loucura, seja na crtica
miditica ao entretenimento.
Fica claro, portanto, que a compaixo uma
emoo de observador, pois ele quem decide
sobre a gravidade do sofrimento do outro. E
como emoo de observador, a compaixo tem
laos estreitos com a vergonha e a culpa. So
emoes sociais e socializantes. Vergonha e
culpa paralisam a ao ao desdobrarem um
indivduo entre o que ele deseja fazer e o que
deve ser; o dever, por sua vez, mantm relaes
mais ou menos diretas com o sofrimento que
a ao desejada supostamente causa no outro.
Vergonha e culpa, portanto, limitam as aes
que supostamente causam danos a outros; a
compaixo completa o elo de sociabilidade
ao estimular a solidariedade, ao incitar os
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indivduos a agirem para reduzir o sofrimento
de terceiros.
O segundo juzo necessrio para a existncia
da compaixo define a inocncia do sofredor.
A solidariedade existe se o observador pensar
que o sofrimento no foi merecido, que sua
existncia se deveu m sorte. A compaixo
orientada pela moralidade, na medida em que
ser negada a compaixo para aqueles que,
por seu comportamento imoral, so tidos como
responsveis pelo seu sofrimento, como na
distino entre vagabundo e desempregado
que orientou a ajuda aos pobres durante parte
do sculo XIX. Mais radicalmente, a moralidade
orienta a compaixo por que institui duas crenas
correlacionadas: que a moralidade forma
de prevenir sofrimentos e que a contingncia
negativa, o que deve ser paulatinamente
eliminado. De modo mais simples, comum se
pensar que o sofredor, se for tido como imoral,
teve o que merecia, o que significa, sob outro
ponto de vista, que o comportamento moral
seria capaz de impedir sofrimentos e que nas
ocasies onde no foi capaz, ocasies em queo observador sente compaixo, isso se deveu
ao negativa da contingncia.
H, porm, uma possibilidade de sentir
compaixo pelo sofredor, mesmo quando se
pensa que suas aes imorais provocaram seu
sofrimento. O observador mantm a validade
da regra moral, mas recusa sua aplicao para
o caso. A recusa depende de uma construo
especfica do comportamento do sofredor. Ao
invs de agir livremente, suas aes imorais
foram determinadas: por uma parte dele mesmo,
pelas circunstncias, pela educao recebida,
etc. Generalizando, as aes imorais estavam
alm de seu controle, como se ele fosse um
doente mental, um anormal: mais do que ser
condenado, precisa ser curado. Mas tanto nas
ocasies onde s sente compaixo pelos morais,
quanto naquelas em que recusa a aplicao da
regra moral para o caso, o observador mantmseu olhar inocente ao se identificar com a vtima,
mantm seu vnculo com as regras morais da
sociedade em que vive1.
O terceiro juzo necessrio existncia da
compaixo o de possibilidades similares.
preciso se colocar no lugar do sofredor e imaginar
como seria experimentar aquele sofrimento.Embora esteja distncia por ser um observador,
quem experimenta compaixo tambm
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1 H uma segunda possibilidade de estender a compaixo para o imoral recusar a prpria regra moral, e no simplesmentesua aplicao para o caso. No se pode, porm, classificar imediatamente essa emoo como compaixo. Em primeiro lugar, por
que o imoral deixa de ser vtima e torna-se seno alternativa de vida, ao menos ponto de inquietao sobre o sentido da vida
para o observador. Em segundo lugar, por requerer a crtica da moralidade pelo observador, aquele que a experimenta est em
luta contra a vergonha e a culpa. Em terceiro lugar, essa atitude talvez recuse a construo da contingncia como adversrio a
ser eliminado. Certamente essa forma de extenso da compaixo foi proposta por Foucault em sua cr tica do dispositivo de
normalizao; mas tambm orientava socilogos pertencentes teoria do rtulo nas suas anlises da criao do desviante, comoGoffman e Gusfield. Por fim, tambm fica clara a raridade histrica dessa extenso da compaixo; para ela existir, preciso que
parte significativa da sociedade no esteja apenas questionando a forma social de distribuio de riquezas, mas tambm as regras
morais sob as quais cada um experimenta a si mesmo e ao outro.
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experimenta medo. E sua intensidade depende
de o quanto o observador pensa estar distncia
daquele sofrimento. Como argumentamos
anteriormente, no caso dos crimes ocorridos
no espao pblico e com seleo aleatria de
vtimas, essa distncia se reduz brutalmente.
Pelo juzo de possibilidades similares, percebe-se
como os processos discursivos de identificao
entre vtima e audincia mesclam as lgicas do
medo e da compaixo. Mas a compaixo est
tambm misturada com a indignao. Existe
uma tradio filosfica, que comea com os
Esticos e chega a Nietzsche, que crtica da
compaixo exatamente pelos seus laos com
a ira e o ressentimento. A compaixo observa
o sofrimento a partir de uma compreenso da
responsabilidade. Essa compreenso tanto
determina a inocncia do sofredor, quanto busca
os responsveis se o que sofre tido como vtima.
Em outras palavras, a compaixo requer a crena
de que a imoralidade causa sofrimento; se o
sofredor for tido como inocente, se ele no teve
o que merecia, a tendncia do observador ser
buscar a causa do sofrimento na imoralidade deterceiros. A compaixo requer a crena na idia
de sofrimento evitvel.
Por seguir a lgica da compaixo, o noticirio de
crime fonte de crenas sobre a responsabilidade
pela existncia de crimes. Semelhante a outras
narrativas sobre o sofrimento de estranhos, como
notcias sobre catstrofes naturais ou acidentes
de carro e avio, o discurso miditico no insiste
apenas sobre o horror do experimentado pelas
vtimas inocentes e como essa experincia poderia
ter sido a de muitos; o discurso insiste tambm em
descobrir as causas para a ocorrncia do evento e,
assim, como ele poderia ter sido evitado ou seus
efeitos danosos reduzidos.
Para pensar que um furaco poderia no ter
provocado tantas vtimas, a atribuio de
responsabilidade no pode se deter apenas
no agente natural; preciso supor que seres
humanos teriam poder para prevenir ou agir
a tempo para reduzir os sofrimentos. No caso
do crime, tambm a responsabilidade causal
pelo sofrimento no lanada apenas sobre os
criminosos. Desde a dcada de 1980, quando se
deixou de acreditar em revoluo e engenharia
social, torna-se cada vez mais desacreditada
a causalidade estrutural para os sofrimentos
humanos. Desse modo, se um crime ocorre, a
responsabilidade ser atribuda a falhas das
agncias estatais de controle social: o judicirio,
a priso e a polcia. Sob esse ponto de vista, cada
reportagem tanto um drama moral, quanto
forma de apontar uma crise de legitimidadedo Estado, ao se denunciar suas falhas que
teriam permitido a existncia do sofrimento,
aprofundando a distncia entre os polticos
e os cidados. Para algumas notcias de crime,
de fato, difcil determinar se seu objetivo
maior era suscitar a compaixo pela vtima, ou
apontar a imoralidade (na forma da maldade)
dos criminosos, ou alimentar a indignao em
relao ao Estado. De todo modo, uma vez mais,
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os incidentes tornam-se incidncias; todo crime
hoje, praticamente todo tipo de sofrimento
pode ser exemplo da incompetncia, descaso
e corrupo daqueles que deveriam zelar por
nossa segurana.
Para apreender essa forma historicamente
singular de construir a idia de sofrimento
evitvel, uma estratgia analisar se as notcias
de crime apontam falhas do Estado e quais falhas
so privilegiadas. Retomemos o noticirio do
RJ-TVem 2004. Considerando toda e qualquer
notcia de crime, independentemente de seu
foco principal crime, ao policial, evento no
judicirio ou priso, etc. do total de 82 matrias,
52 (63%) continham algum tipo de crtica. Em
termos de freqncia diria, em apenas trs dos
36 dias sorteados no houve reportagem que
inclusse alguma denncia sobre a atuao falha
de um desses dispositivos estatais de segurana.
Em relao ao judicirio, as crticas privilegiaram
a concesso dehabeas corpusa suspeitos e
a oposio dos juzes proposta da polcia de
distribuir listas com os nomes de baderneiros
contumazes s boates. Em relao priso, os
temas dominantes foram a freqncia de motins,
rebelies e fugas, a corrupo dos agentes
penitencirios e a ocorrncia de homicdios no
espao pblico que teriam sido ordenados de
dentro da prpria priso. No que diz respeito
polcia, as crticas expem uma polcia que no
soluciona crimes, que nunca est onde deveria
estar e que quase sempre chega tarde demais
(e quando chega a tempo, ou os bandidos
conseguem escapar, ou sua atuao expe a
populao a riscos ainda maiores). Igualmente
comum a referncia de que o reforo de
contingente em determinadas reas s acontece
aps a notcia de crimes pela imprensa e que os
bandidos, de modo geral, no se intimidam com a
proximidade da polcia.
Em 71% das crticas atuao do Estado em
relao segurana, v-se claramente a retrica
caracterstica do populismo penal, tipicamente
conservador, a saber: se as leis fossem mais
rigorosas, se a priso contivesse os criminosos,
e se houvesse mais polcia para intimidar os
bandidos, no haveria tantos crimes na cidade
do Rio de Janeiro. Uma poro significativa
das demais crticas atuao da polcia (cerca
de 20%) refere-se aos excessos cometidos por
policiais durante suas aes nas favelas. Parte
da audincia pode interpretar as notcias
como denncias de violao dos direitos dos
moradores; outros, contudo, podem avaliar os
excessos como danos colaterais inevitveis na
guerra contra o trfico. O caso tpico o demoradores de favela inocentes mortos por balas
perdidas durante incurso policial. notvel,
ainda, que apenas em menos de 10% do total de
crticas ao do Estado, houve referncia a m
conduta ou abuso de poder por parte de policiais.
No cmputo geral, para o ano de 2004, foi
de cerca de 80% a probabilidade de que um
indivduo, assistindo aoRJ-TV, se defrontasse
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com reportagens em que o poder dos criminosos
aliava-se ineficincia do Estado em prover
segurana s pessoas. Pela reiterao
cotidiana, pode-se supor que grande parte da
audincia tenda a acolher esse diagnstico,
que correlaciona o poderio dos criminosos
ineficincia do Estado como sendo uma
explicao razovel do quadro atual da segurana
pblica. Sobretudo porque as crticas no
aparecem na forma de editoriais, mas por meio
de comentrios curtos, expresses corporais dos
jornalistas ou frases selecionadas do pblico
em geral. Eis mais alguns casos: Mesmo aps
confessar, a Justia concedeu habeas-corpus; No
dia seguinte ao assassinato do comerciante pelos
bandidos, o carro-patrulha da polcia desapareceu
(da esquina perto do assalto); impressionantea reincidncia de coisas (assaltos), e ningum faz
absolutamente nada.
4 A elite fala da cidade e do crime
Aps a anlise de como a mdia constri a
realidade do crime usando as lgicas do medo
e da compaixo, cabe investigar como se d a
apropriao dessa construo. Para tanto, foram
realizadas 15 entrevistas semi-estruturadas,
cada uma com cerca de 1 hora de durao,
com jovens que cursavam Direito ou Economia
na PUC-Rio, todos de famlia de classe mdia
alta, moradores da Zona Sul e que tinham
feito o segundo grau em colgios tidos como
dos melhores da cidade; em suma, todos os
entrevistados podem ser tidos como membros
da elite econmica e social. Anteriormente,
argumentamos que as conversas sobre o crime
eram tambm modos de falar da cidade, da
alteridade e do Estado. Durante as entrevistas,
ficou clara a imbricao entre experincia da
cidade, ordem moral, escolhas de polticas de
segurana e modo de se atribuir uma identidade.
A entrevista foi conduzida por um dos autores;
como se trata de uma francesa que pode
ser considerada da mesma faixa etria dos
entrevistados, os jovens da elite procuravam ao
longo da entrevista argumentar como a cidade
do Rio era interessante e bela. Como todos j
tinham viajado ao exterior, como tinham olhado
para a realidade brasileira sob a perspectiva
da diferena, os jovens colocavam-se no lugar
da entrevistadora e se esforavam tambm para
justificar aquilo que a seus olhos seria chocante,
especialmente a desigualdade social. Embora
no fossem consumidores vidos de notcias,
cabe dizer ainda que assistiam ocasionalmente
a telejornais noturnos ou liam jornais dirios;
ao longo do dia, passeavam pela Globo News
ou entravam em sites de notcias e liam demodo intermitente alguma revista semanal,
principalmente a Veja esses jovens eram
bastante homogneos no que se refere ao acesso a
fontes de informao.
A primeira pergunta da entrevista pedia para
os jovens descreverem o bairro onde moravam.
Sistematicamente, essa pergunta sobre a vida
cotidiana e a cidade conduzia os entrevistados a
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falar sobre insegurana e pobreza. Uma expresso
onipresente resume esse nexo: Eu tenho vista
pro mar e pra favela. Voc tem a favela e o bairro
mais nobre da cidade (B)2. Essa coincidncia
no se deve apenas ao fato de que o Rio de
Janeiro uma cidade efetivamente perigosa;
como indicam diversos estudos, a possibilidade
de ser vtima elemento de descrio mesmo
em cidades com taxas de crime bem menores
que as do Rio.
O sentimento de insegurana est situado; o
medo depende da significao que os indivduos
do ao espao habitado (PAIN, 2000). Desse
modo, as questes do crime e da pobreza so
cada vez mais pensadas atravs de categorias
espaciais, como o mostra a recorrncia das
oposies entre cidade e periferia (ou favela e
asfalto) no Brasil e em outros pases.
Um primeiro lugar para se perceber a relevncia
das notcias de crime o modo como os
entrevistados descrevem a diferena entre o
bairro em que moram e o resto da cidade. Como
se sabe, s notcia o excepcional; inversamente,
para a maior parte das pessoas, na maior parte
do tempo, nada acontece em suas rotinas. Essa
diferena espacializada; os lugares da cidade
que fazem parte da rotina dos indivduos so
conhecidos e raramente algo acontece neles,
mesmo que a taxa de crimes seja elevada.
Os lugares que se desconhece ou pelos quais
pouco se passa, ao contrrio, s so objetos de
experincia mediada: s se sabe deles o que foi
noticiado. A relevncia dessa diferena entre
rotina e experincia mediada aparece com
clareza no comportamento de quem pouco sai de
casa, como idosos ou turistas; para estes, a cada
lugar, o que aconteceu a estranhos na mdia pode
acontecer com eles: um arrasto na praia, um
assalto em nibus, um tiroteio em alguma linha
expressa, etc.
A diferena entre lugares pertencentes ao
rotineiro e aqueles que se conhece atravs da
mdia existe mesmo para aqueles que moram
em bairros tidos como violentos: uma moradora
de uma favela do Rio de Janeiro temia passar
pelo Largo do Machado, uma praa da Zona
Sul (CAVALCANTI, 2007). Para os jovens
entrevistados, essa diferena entre rotina e
experincia mediada aparece quando descrevem
seu bairro, sempre apresentado como tranqilo,
enquanto o resto da cidade descrito como
catico, desorganizado, perigoso.
De modo genrico, os jovens entrevistados
descrevem suas rotinas como caracterizadas pela
proximidade com a natureza (a praia, a Lagoa),
pelo acesso cultura e pelas oportunidades de
prazer; em suma, a rotina como lugar de valor
definida por um hedonismo difuso. Reivindicam,
assim, a pertinncia Cidade maravilhosa,
identificando-se como cariocas e moradores da
Zona Sul vrios sublinharam que seus pais e
avs j moravam em Ipanema ou Lagoa. Embora
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2 As letras A, B, C se referem aos entrevistados.
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reconheam que a possibilidade de ser vtima
elemento do modo como calculam suas rotinas,
vrios insistiram que, apesar do risco, no mudam
seus hbitos; a frase emblemtica Eu no deixo
de fazer o que gosto (D). A rotina prazerosa
o que est ameaado pelo crime e tambm o
justo, o que se deve lutar para existir, mesmo que
individualmente: Eu posso ser assaltado, n. Isso
d medo, d medo! Agora viver com medo, eu no
vivo. Isso no me aprisiona (B).
Essa posio de justia pode ser generalizada,
reconhecida como direito de todos. A sociedade
deveria estar ordenada de modo a permitir que
todos tivessem oportunidades de ter prazer. Essa
posio moral implica uma forma de humanismo
onde a violncia condenada por princpio
(MICHAUD, 2002) e a sorte daqueles que no tm
tantas oportunidades e ainda sofrem com o crime
pode ser lamentada.
Esse discurso de tom humanista tem um limite
que aparece claramente quando os entrevistados
discutem as causas e solues para a violncia
urbana. A partir desse humanismo, a segregao
social e a falta de oportunidades so designadas
como causas do crime; contudo, quando apontam
solues, vrios entrevistados privilegiaram as
polticas de pulso firme mais polcia, leis mais
rigorosas, etc. sobre polticas de reduo das
desigualdades sociais. Por que essa disjuno
entre a causa designada e a soluo? Se os
entrevistados acreditam que os crimes ocorrem
pelo fato de os jovens pobres terem poucas
oportunidades legtimas de ascenso social, por
que os entrevistados no defendem polticas de
reduo de desigualdades?
Essa disjuno , de fato, o lugar onde o
sentimento de insegurana afeta o sentimento
moderno bsico de justia, que a igualdade.
De um lado, os jovens admitem que a segregao
social causa o crime, ao reconhecerem que a
desigualdade pode limitar as oportunidades;
nessa posio, os pobres, a includo os
criminosos, so construdos como vtimas. De
outro lado, pelo sentimento de insegurana e
pela causalidade atribuda segregao social,
esses jovens da elite se concebem como vtimas
dos criminosos pobres, se concebem como
injustiados porque so impedidos de extrarem
de suas rotinas todo prazer a que teriam direito.
Ao mesmo tempo, pelo descrdito recente das
crenas e prticas de engenharia social (crise
do Estado de Bem-Estar e da revoluo) e pela
crise da poltica, no mercado de idias, h
poucas crenas disponveis para que esses jovens
se vejam como responsveis pela existncia do
crime por serem capazes de mudar a sociedade,reduzindo as desigualdades sociais e, assim,
supostamente, o nmero de criminosos e a
incidncia de crimes. O outro lado da descrena
na transformao do homem e da sociedade
a presena insistente da crena nas falhas
do Estado; como vimos, o discurso miditico
reitera que a existncia de crimes se deve
incompetncia e corrupo dos agentes estatais
de controle social.
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Vedada a alternativa de se conceber ao mesmo
tempo como vtima e responsvel, restaro
possibilidades restritas de articular a injustia
relativa rotina ameaada com a injustia
relativa desigualdade das condies sociais.
Elisa Reis, em suas pesquisas sobre a viso da
elite brasileira sobre a pobreza, descreve uma
resposta possvel: a pobreza no tanto um
problema para o pobre e, sim, para o no-pobre
(REIS, 2005). Em outras palavras, a pobreza
problema porque o crime reduz a qualidade da
vida urbana, porque ameaa propriedade e
integridade fsica dos no-pobres. O ponto de
fixao do juzo de valor no a desigualdade
entre os homens, mas o fato de ela ser excessiva,
sendo o excesso o que teria papel causal na
existncia de crimes. Ou ainda, o lugar de valor apartir do qual se pensa a justia social a rotina
ameaada. Nessa perspectiva, a associao entre
crime e desigualdade torna a pobreza um objeto
de polticas de reduo do risco e um marcador de
aparncia a ser usado na experincia com o outro.
A grande maioria dos entrevistados citou a
educao como resposta de longo prazo para oproblema do crime. Como disse um jovem, o
que mais me desagrada no Rio a questo da
pobreza, no sentido de que voc no est entre
iguais, no tem oportunidades iguais (B). No
contexto da entrevista, porm, essa proposio
coloca a educao como modo de desviar os
jovens pobres de seu destino quase inevitvel
de se tornarem traficantes ou bandidos. Essa
juventude , assim, definida como um conjunto
de criminosos em potncia, como um risco para o
grupo com o qual os entrevistados se identificam.
Uma segunda perspectiva mantm o privilgio da
vtima de crime como lugar de se pensar a boa
ordem (e, portanto, mantm o lugar dos jovens
entrevistados como vtimas), mas articula essa
posio com a desigualdade social, agora no
como o que explica a existncia de crimes, mas
como o que pode tornar um grupo mais vtima do
que outro. Os pobres seriam as vtimas maiores
da violncia urbana tanto porque so os que mais
sofrem diretamente com a ao dos criminosos,
quanto porque a associao entre pobreza e
risco faz com que sejam vtimas de preconceito
de todos e, em especial, da ao dos agentes
estatais de controle social: no se preocupam
em policiar os locais onde moram; se a polcia
est nas favelas, trata a todos como criminosos; o
judicirio condena indivduos nem tanto pelo que
fizeram, mas pelo que so (ZALUAR, 1998) , etc.
A diferena entre as duas perspectivas se d
na extenso do ns das vtimas de crime. A
variao entre os jovens a respeito da extenso
da comunidade das vtimas no dependeu to
somente de diferenas individuais, at pelo
fato de que em todas as entrevistas a extenso
era diferentemente definida de acordo com
o que estava sendo discutido. De acordo com
as proposies tericas sobre a lgica da
compaixo, em especial o juzo de possibilidades
similares, parece-nos que a variao dependia
da intensidade do sentimento de insegurana
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suscitada por um dado crime. Se os jovens
conseguiam se colocar distncia da vtima, mais
fcil era haver outros elementos de justia na sua
apreenso do outro alm da rotina ameaada;
se a proximidade com a vtima era maior, a
posio de vtima virtual preponderava na
descrio das solues possveis para a questo
da violncia urbana.
Os argumentos de Machado da Silva sobre a
geometria varivel da justia na sociedade
brasileira apresentam um caminho para se
pensar a variao na extenso do ns (SILVA,
2004). A vida nas grandes cidades brasileiras
seria organizada pelo princpio do recurso
fora, sem que se abandone a referncia ordem
institucional e legal. De fato, essa referncia
mantida, mas sempre podendo ser transgredida
em certos contextos isto , sob certas
condies, como na frase estamos em guerra,
o uso da violncia do Estado necessrio. Para
simplificar, denominaremos essas duas ordens
morais em convivncia de Lei e Fora.
A ordem moral da Lei marcada pelo
humanismo, com referncias s normas dos
direitos humanos e do direito vida. Nessa
ordem, a comunidade das vtimas inclusiva,
compreende todos os que so vtimas da
violncia, com alguns jovens at expressando
a crena de que os pobres inocentes so as
maiores vtimas. A ordem da Fora, por sua vez,
aquela onde o uso da violncia, privada ou
estatal, tem o estatuto de necessidade. Nesse
caso, a comunidade imaginada de vtimas pode se
reduzir ao grupo social das classes favorecidas.
Essa interao curiosa entre a Lei e a Fora
pode ser reveladora. Nossa hiptese a de que o
discurso sobre o crime contm inevitavelmente
um problema na identificao da vtima que est
associado co-existncia das duas ordens morais
e do lugar dos pobres ora como riscos para a elite,
ora como tambm vtimas. A dificuldade cognitiva
reside na determinao da fronteira simblica do
seu grupo.
5 O registro inclusivo
No registro inclusivo, no grupo alargado, as
fronteiras da segregao social no determinam
totalmente a separao entre vtimas e
criminosos. Ao mesmo tempo em que se
consideram vtimas virtuais, os entrevistados
escolhem entre os outros (os pobres) aqueles
que podem aceder ao estatuto de vtima. Os
critrios so morais e humanistas, reiterando, de
diversos modos, o esteretipo do bom pobre,
caracterizado pela honestidade, pelo trabalho
e pela perseverana. comum os entrevistados
citarem como exemplo sua empregada domstica.
O outro vtima no faz parte da elite, mas visto
como igual a partir de uma viso humanista: Eu
tento quebrar essa barreira, eu no vejo a favela
como um outro lugar, ou como um problema
[...] So pessoas, so vidas, ali voc tem pessoas
interessantssimas, tem coraes formidveis [...]
O que vale quem a pessoa, como o corao
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dessa pessoa (B). Ou ainda: Eu sei que tem
muita gente que boa e que mora l (F). Este
outro tambm aquele com quem o entrevistado
teve contato. Todos os jovens dizem ter tido
contatos cordiais e mesmo amizades com pessoas
das classes desfavorecidas.
O conhecimento pessoal permite aos
entrevistados colocarem-se no lugar do outro com
mais facilidade. Essa a ocasio em que os bons
pobres so vistos como aqueles que mais sofrem
com o crime. A partir dessa perspectiva, as
operaes da polcia nas favelas so chamadas de
chacina. Mesmo nesse registro inclusivo, porm,
aparecem aqui e ali os signos da ordem moral
da Fora, que constri os pobres como classe
perigosa. Se o registro inclusivo fosse o nico
a dominar, todos os pobres, com exceo dos
criminosos, seriam includos no ns das vtimas.
Contudo, no discurso dos entrevistados, essa
ordem lgica invertida: todos os pobres podem
ser perigosos, embora conheam alguns que so
bons. A fronteira do ns alargada, mas no a
relao de base associando o grupo das vtimas s
classes favorecidas.
Um outro ndice da coexistncia das duas ordens
ocorre quando os jovens pensam a soluo para
o crime; as polticas sociais (como melhoria do
ensino fundamental) so sempre associadas a
polticas de pulso firme. Embora a operao
policial no Complexo do Alemo seja percebida
como uma soluo de curto prazo, que no resolve
grandes coisas e causa o sofrimento de inocentes,
mesmo assim uma soluo. O uso da fora no
totalmente desqualificado, mesmo se atinge
inocentes: Se voc quer resolver isso para hoje,
tem que ser esse tipo de ao. S que horrvel,
voc acaba afetando muitas pessoas inocentes,
que no tem culpa nenhuma na histria, mas isso
o preo a pagar. Mas fcil de falar quando o
preo no comigo. No vo invadir minha casa
para matar os traficantes. Mas visto de fora,
parece o preo a pagar (F). Mais radicalmente, a
ordem moral da Fora est presente no discurso
simplesmente porque a violncia policial no
recusada, apenas a falta de critrios na sua
aplicao. Para os bandidos, a Fora legtima.
6 Registro exclusivo
No registro exclusivo, a tendncia restringiro grupo das vtimas elite. Marcados por
um forte sentimento de insegurana, os
entrevistados recusam, de diferentes modos,
o estatuto de vtima aos pobres, que tendem a
ser caracterizados como classe perigosa. Um
primeiro modo de restrio trat-los como
massa, utilizando a imagem das inmeras favelas
que teriam invadido a Cidade Maravilhosa.
O pronome eles utilizado sem que se saiba
precisamente a quem esto se referindo.
Como os pobres so percebidos apenas no que
tm de diferentes e no no que podem ter de
semelhantes, aqui os jovens entrevistados no
se esforam para se colocar no lugar do outro,
apenas temem: Eu me sinto mal de estar no
meio de pessoas to diferentes de mim, sei
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l, eu no sei como elas se sentem, sabe, se
elas so conformadas com isso, com que elas
nasceram numa classe pobre mesmo (C). Essa
representao dos pobres faz da diferena apenas
um marcador de risco. Paralelamente, o que
identificado como causa da violncia no a
segregao social, mas a proximidade espacial:
uma segregao social que necessariamente
te deixa muito inseguro, porque voc esta
convivendo ali cara a cara com uma classe
social que est inferior a voc. Ento um medo
constante de uma coisa acontecer (C).
A partir desse desconhecimento reconhecido
e almejado, os jovens entrevistados recorrem a
esteretipos para falar da vida urbana, fazendo
dos pobres causadores de perturbao e caos.
surpreendente a semelhana das entrevistas
com o discurso da elite paulista nas dcadas de
80 e 90 sobre o crime analisado por Caldeira
(2001). Aparece at a relao entre sujeira,
desordem e violncia como caracterstica das
favelas e dos pobres. Diz um entrevistado; Assim
(sem favela por perto), voc se sente um pouco
mais seguro. No que a favela me incomodenecessariamente, mas d uma sensao de
segurana. Outra coisa tambm que me passa
essa sensao de segurana pouco mendigo na
rua... No que eles sejam sujos, mas, assim, d
uma sensao meio ruim, n. (F)
Os entrevistados usam o termo violncia no
apenas para se referirem ao risco de assaltos
ou de homicdios. Violncia designa tudo o que
simbolicamente agride o indivduo: a circulao
agressiva de vans ou motos (o trnsito
uma conseqncia da favelizao (C)) ou os
mendigos, que pedem sem cessar e tentam se
aproveitar de ns. Mas o pobre , sobretudo,
aquele que traz o risco do crime. Existe uma
forte associao no discurso entre o pobre e o
criminoso, mesmo quando o entrevistado sabe
que a associao um esteretipo: horrvel
desconfiar das pessoas. Eu procuro no mostrar
que eu desconfio. Porque eu acho que muito
desagradvel. Eles no esto fazendo mal
nenhum, e a gente desconfia (F).
Quando narrava um assalto, diante da questo
como era o agressor, o entrevistado, no sem
rodeios, descreveu os criminosos: Tinham a cara
de 20 anos, claramente moradores de favela ou
comunidade pobre, e, sei l, tipo pele escura, mas
no necessariamente negros, mas claramente
pobres [...] Mas, com certeza moradores de
favela da zona sul (C). Se os fatos contradizem
o marcador de risco, eles tm o valor de
exceo: Tenho um amigo que foi assaltado e
ficou impressionado pela aparncia do meninoque assaltou ele. No tinha cara de assaltante
[...] Bem vestido, com roupa como se fosse um
menino daqui da zona sul, da classe mdia. Podia
ser um menino que estudasse comigo! (F)
Essa percepo, associando pobreza com o caos, a
sujeira, o desconhecido e o crime, est articulada
s solues preconizadas pelos entrevistados
para gerir a questo da violncia urbana. No
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registro exclusivo, o apoio s medidas de pulso
firme predomina. Se a Fora predomina sobre a
Lei, a forma de justificar a operao do Complexo
do Alemo difere: a soluo de primeira ordem.
O objetivo matar os bandidos (no o de julgar e
prender) e a morte de inocentes preo aceitvel.
Mesmo nessa situao onde a ordem moral da
Fora impulsiona o discurso, a ordem da Lei
no est totalmente ausente. De fato, diante da
questo o que voc pode fazer em relao ao
problema do crime, os entrevistados afirmavam
que nada e que tudo cabia ao Estado. A diviso
, uma vez mais, contextual: o pulso firme seria
temporrio e, depois, haveria uma polcia sem
corrupo e o respeito lei. Essa impotncia
declarada de indivduos e onipotncia desejada do
Estado lugar tanto midiaticamente designado,
quanto posio prpria da poltica contempornea:
a vtima inteiramente passiva e cabe ao Estado
competente proteger seus cidados.
7 A vtima virtual e a rotina
Pode parecer que a oscilao na extenso
da comunidade de vtimas e a aceitao do
crescente rigor penal e policial sustentado
pela construo dos criminosos como quase
monstros a ameaar os cidados so prprias
da sociedade brasileira, com suas altas taxas de
crime, com sua imensa desigualdade social e
grande homogeneidade do discurso miditico.
Diversos livros e artigos mostram, porm, que origor penal e o privilgio poltico e existencial
da vtima esto presentes em diversos pases
do mundo, mesmo naqueles em que as taxas de
crime so relativamente baixas (sobre a frica
do Sul, COMAROFF; COMAROFF, 2006; sobre
os Estados Unidos, GARLAND, 2001, e SIMON,
2007; sobre a Nova Zelndia, PRATT, 2005; sobre
a Inglaterra, LIANOS, 2001; sobre a Frana,
CASTEL, 2003). Diferentes governantes vm a
pblico afirmar que os direitos humanos no so
universais, pois ou so para seres humanos e no
para ratos (CHEVIGNY, 2003), ou o primeiro
e mais importante entre todos os Direitos
Humanos o da vtima uma frase de 2006 do
presidente francs Sarkozy dita ao pai de uma
criana morta por um pedfilo. Cabe notar que
o crime suscitou a aprovao de uma lei que
autoriza usar tcnicas preditivas para impedir
que um criminoso saia da priso aps cumprirsua pena. De modo mais genrico, a partir de
algum crime particularmente sensvel, no qual
o criminoso tinha acabado de sair da priso por
indulto ou por liberdade condicional, a legislao
penal de diferentes pases passou a incluir algum
procedimento de clculo de riscos, de punio
preditiva, com a pena sendo adequada no ao ato
cometido pelo criminoso, mas ao que se presume
cientificamente que ele pode vir a fazer. Tambm
cabe notar como, em diferentes cidades globais,
marcadores de raa, etnia e condio social esto
presentes na estigmatizao de bairros onde
predominam negros, imigrantes e pobres.
Essa semelhana global nos obriga a pensar
que as polticas vinculando medo e alteridade
no so uma conseqncia nica e direta da
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intensidade do sentimento de insegurana ou das
taxas efetivas de crime. De incio, a semelhana
parece estar associada mudana moral recente.
As culturas ocidentais contemporneas so
marcadas pela generalizao da exigncia de
autenticidade: cada um deve buscar o que o
realiza como indivduo (TAYLOR, 2007). Essa
generalizao implica a hegemonia do princpio
do no-dano (no harm), formulado por Stuart
Mill ainda no sculo XIX, que prope como
nico limite busca individual da felicidade o
dano que se causa ao outro. Assim, no h, no
nvel imediato, nenhum consenso sobre a boa
vida; ao contrrio, o que esse princpio exige a
tolerncia em relao s mltiplas formas de ser
e de se obter prazer. A vtima de crime violento,
por sua vez, torna-se o lugar de consenso moralmnimo, at pela clareza moral de seu sofrimento
(BOUTELLIER, 1999). Essa mudana responde
tambm pela valorizao cada vez maior da vida
privada e do consumo. Sob outro ponto de vista,
essa transformao erige a rotina segura como
lugar de justia.
Uma segunda razo o surgimento de umanova relao entre indivduo e Estado que pode
ser conceituada como direito ao risco. Numa
cultura em que a administrao do presente e o
cuidado de si encontram-se sobredeterminados
por conseqncias futuras, o risco se torna o
paradigma a partir do qual so pensadas noes
fundamentais da vida pblica, tais como a de
liberdade e responsabilidade. Ainda que no
formalizado juridicamente, o crescente papel
desempenhado pela noo de risco nos processos
contemporneos de subjetivao sinaliza para
emergncia dessa nova figura do direito, isto
, o direito no escrito, mas provavelmente j
internalizado pelos indivduos, de que ningum
deveria ser obrigado a alterar seu estilo de
vida por que outros o expem a riscos. Sua
contrapartida positiva : as pessoas podem
expor-se aos riscos que voluntariamente esto
dispostos a correr. Cabe ao Estado impedir que
outros inescrupulosos, sem corao, dispostos
a tudo por nada, sem nenhum respeito pela vida,
ameacem nossa rotina.
Nesse modo de pensar, a responsabilidade
de cada indivduo em relao aos outros
e coletividade reduz-se ora a pagar seus
impostos, ora a considerar como suas decises
privadas de consumo podem afetar os outros.
A responsabilidade prescinde da mediao da
poltica como forma da ao coletiva. Peas
publicitrias institucionais sobre segurana
pblica tornam essa ausncia evidente: nos
Estados Unidos, um consumidor de drogas em
boates alertado por um amigo de que seudinheiro financiava a Al-Qaeda; no Brasil, a pea
publicitria mostra que o uso de drogas pode ter
como conseqncia a morte de um prximo.
Cabe indagar se esse estreitamento da poltica
capaz de propiciar polticas pblicas que
efetivamente transformem a segurana ou se s
abre espao para polticas de pulso firme que,
circularmente, pela legitimao da violncia
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dos agentes estatais de controle social, agravam
a violncia urbana e, assim, ampliam o
sentimento de insegurana
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Urban experience
and crime narrativesAbstract
In this article, we propose that crime news
constitute today a key element in shaping the
experience of the city and of otherness. We argue
that the media deploys the logics of fear and of
compassion as means of fostering the audiences
identification with the suffering of strangers. We
then analyze how descriptions of the city voiced by
young members of Rio de Janeiros elite articulate
insecurity, poverty and justice, thus generallyrestating the possibilities of identity building
offered by crime news.
Keywords
City. Crime. Insecurity. Victim.
Identity. Otherness.
Experiencia urbana
y narrativas de crimenResumen
En este artculo, proponemos que las noticias son,
hoy, un elemento decisivo en la conformacin
de la experiencia de la ciudad y de la alteridad.
Para sustentar tericamente y empricamente la
propuesta, argumentamos, en primer lugar, que
la retrica de los medios de comunicacin usa las
lgicas del miedo y de la compasin para favorecer
la identificacin de la audiencia con el sufrimiento
de extraos. En la secuencia, analizamos el cmola descripcin de la ciudad por jvenes de la lite
carioca articula inseguridad, pobreza e injusticia,
reiterando en sus grandes lneas las posibilidades
de construccin de identidad ofrecidas por las
noticias de crimen.
Palabras clave
Ciudad. Crimen. Inseguridad. Vctima.
Identidad. Alteridad.
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Recebido em:25 de setembro de 2008
Aceito em:1ode outubro de 2008
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COMISSO EDITORIAL
Ana Gruszynski | Universidade Federal do Rio Grande do Sul, BrasilJoo Freire Filho | Universidade Federal do Rio de Janeiro, BrasilRose Melo Rocha | Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil
CONSULTORES AD HOC
Bianca Freire-Medeiros | Fundao Getulio Vargas, BrasilJosimey Costa da Silva | Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Maria Conceio Golobovante | Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, BrasilMarlyvan Moraes de Alencar | Centro Universitrio SENAC-SP, BrasilMiriam de Souza Rossini | Universidade Federal do Rio Grande do Sul, BrasilPaulo Ribeiro | Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil
Rita Alves de Oliveira | Centro Universitrio SENAC, BrasilREVISO DE TEXTO E TRADUO | Everton Cardoso
ASSISTNCIA EDITORIAL E EDITORAO ELETRNICA | Raquel Castedo
CONSELHO EDITORIAL
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Alberto Carlos Augusto KleinUniversidade Estadual de Londrina, Brasil
Alex Fernando Teixeira PrimoUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Alfredo VizeuUniversidade Federal de Pernambuco, Brasil
Ana Carolina Damboriarena EscosteguyPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Brasil
Ana Silvia Lopes Davi MdolaUniversidade Estadual Paulista, Brasil
Andr Luiz Martins LemosUniversidade Federal da Bahia, Brasil
ngela Freire PrysthonUniversidade Federal de Pernambuco, Brasil
Antnio Fausto NetoUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil
Antonio Carlos HohlfeldtPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Brasil
Arlindo Ribeiro MachadoUniversidade de So Paulo, Brasil
Csar Geraldo GuimaresUniversidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Cristiane Freitas GutfreindPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Brasil
Denilson LopesUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
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Hector OspinaUniversidad de Manizales, Colmbia
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Itania Maria Mota GomesUniversidade Federal da Bahia, Brasil
Janice Caiafa
Universidade Federal do Rio de Janeiro, BrasilJeder Silveira Janotti JuniorUniversidade Federal da Bahia, Brasil
ExpedienteA revista E-Comps a publicao cientfica em formato eletrnico da
Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao(Comps). Lanada em 2004, tem como principal finalidade difundir aproduo acadmica de pesquisadores da rea de Comunicao, inseridos
em instituies do Brasil e do exterior.
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Revista da Associao Nacional dos Programas
de Ps-Graduao em Comunicao.Braslia, v.11, n.1, jan./abr. 2008.A identificao das edies, a partir de 2008,
passa a ser volume anual com trs nmeros.
John DH DowningUniversity of Texas at Austin, Estados Unidos
Jos Luiz Aidar PradoPontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Brasil
Jos Luiz Warren Jardim Gomes BragaUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil
Juremir Machado da SilvaPontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, Brasil
Lorraine LeuUniversity of Bristol, Gr-Bretanha
Luiz Claudio MartinoUniversidade de Braslia, Brasil
Maria Immacolata Vassallo de LopesUniversidade de So Paulo, Brasil
Maria Lucia SantaellaPontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Brasil
Mauro Pereira PortoTulane University, Estados Unidos
Muniz Sodre de Araujo CabralUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Nilda Aparecida JacksUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Paulo Roberto Gibaldi VazUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Renato Cordeiro GomesPontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Brasil
Ronaldo George HelalUniversidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Rosana de Lima SoaresUniversidade de So Paulo, Brasil
Rossana ReguilloInstituto Tecnolgico y de Estudios Superiores do Occidente, Mxico
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Sebastio Carlos de Morais SquirraUniversidade Metodista de So Paulo, Brasil
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Suzete VenturelliUniversidade de Braslia, Brasil
Valrio Cruz BrittosUniversidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil
Veneza Mayora Ronsini
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