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27 o DOMINGO DO TEMPO COMUM – São Francisco de Assis (Gn 2,18-24; Sl 217; Hb 2,9-11; Mc 10,2-16) Neste dia que celebramos a memória de São Francisco de Assis, fundador de nossa Ordem, a igreja também nos convida, de acordo com a liturgia da palavra, a fazermos uma reflexão sobre as relações humanas. Creio ser providencial que a liturgia da palavra toque neste tema, porque Francisco de Assis criou ou recuperou um ideal de família, de relação que ele chamará de fraternidade. Logo na primeira leitura temos uma frase, que o autor do livro do Genesis coloca na boca de Deus: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). De fato, não é da natureza humana a solidão, o isolamento. Ao demonstrar o homem dando nome aos animais e coisas criadas por Deus, ofício que o próprio criador concedeu ao homem, segundo o Gênesis. Mas, em meio a tanta diversidade, o homem percebe se descobre sozinho. Mas não é bom que o homem esteja só, diz o autor. Ele mesmo tirado da terra, agora Deus “tira” do homem a mulher. Os dois, feitos a imagem e semelhança de um Deus comunidade, como nos revelou Jesus, devem também formar sua comunidade. Não cabe objetar sobre a precedência que o autor bíblico dá ao macho em relação a fêmea (homem= ish/ mulher=isshá). Sabemos que o escrito bíblico revela um outro momento histórico, traços da cultura que a nossos olhos “pós-modernos” podem parecer no estranhos. Importante ler as entrelinhas e perceber que da solidão percebida pelo homem, Deus resolve a partir dele mesmo. Deus não criará algo estranho ao homem para sua companhia, mas algo “tirado” do seu ser, do seu interior. Não muito romântico, o autor bíblico nos diz que Deus fez o homem da “costela de Adão”. Outras culturas falarão de um ser duplicado, esférico, mas separado por causa de seu orgulho (gregos). Deus age aqui, de acordo com os padres gregos como um mediador (“nymphagogos”) ou seja, aquele que apresenta a esposa ao esposo. Por isso Jesus retoma no Evangelho algo de essencial que no seu tempo havia-se perdido: o porque do homem se unir a mulher. Os dois buscam um no outro sua essência, seu complemento diziam os gregos. Buscam afastar a solidão e o vazio. Fazer um ao outro companhia, por isso

27o Domingo Do Tempo Comum – São Francisco de Assis

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Francisco de Assis e a questão da fraternidade

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27o DOMINGO DO TEMPO COMUM – São Francisco de Assis(Gn 2,18-24; Sl 217; Hb 2,9-11; Mc 10,2-16)

Neste dia que celebramos a memória de São Francisco de Assis, fundador de nossa Ordem, a igreja também nos convida, de acordo com a liturgia da palavra, a fazermos uma reflexão sobre as relações humanas. Creio ser providencial que a liturgia da palavra toque neste tema, porque Francisco de Assis criou ou recuperou um ideal de família, de relação que ele chamará de fraternidade.

Logo na primeira leitura temos uma frase, que o autor do livro do Genesis coloca na boca de Deus: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). De fato, não é da natureza humana a solidão, o isolamento. Ao demonstrar o homem dando nome aos animais e coisas criadas por Deus, ofício que o próprio criador concedeu ao homem, segundo o Gênesis. Mas, em meio a tanta diversidade, o homem percebe se descobre sozinho. Mas não é bom que o homem esteja só, diz o autor. Ele mesmo tirado da terra, agora Deus “tira” do homem a mulher. Os dois, feitos a imagem e semelhança de um Deus comunidade, como nos revelou Jesus, devem também formar sua comunidade. Não cabe objetar sobre a precedência que o autor bíblico dá ao macho em relação a fêmea (homem= ish/ mulher=isshá). Sabemos que o escrito bíblico revela um outro momento histórico, traços da cultura que a nossos olhos “pós-modernos” podem parecer no estranhos. Importante ler as entrelinhas e perceber que da solidão percebida pelo homem, Deus resolve a partir dele mesmo. Deus não criará algo estranho ao homem para sua companhia, mas algo “tirado” do seu ser, do seu interior. Não muito romântico, o autor bíblico nos diz que Deus fez o homem da “costela de Adão”. Outras culturas falarão de um ser duplicado, esférico, mas separado por causa de seu orgulho (gregos). Deus age aqui, de acordo com os padres gregos como um mediador (“nymphagogos”) ou seja, aquele que apresenta a esposa ao esposo.

Por isso Jesus retoma no Evangelho algo de essencial que no seu tempo havia-se perdido: o porque do homem se unir a mulher. Os dois buscam um no outro sua essência, seu complemento diziam os gregos. Buscam afastar a solidão e o vazio. Fazer um ao outro companhia, por isso companheiro e companheira, que compartilha, que convive. Neste sentido está o relacionamento entre homem e mulher: ao mesmo tempo que se completam e afastam a solidão, criam laços maiores que chamamos família, comunidade.

São Francisco de Assis entra aqui. Ao chamar sua nova família de fraternidade, cria laços tão grandes que vão além da relação homem/mulher. Ele chama de fraternidade as relações estabelecidas entre os irmãos e irmãs da Ordem dos frades menores e das Damas pobres de Assis, chamadas depois de Clarissas. Chama de fraternidade a relação estabelecida entre o ser humano e todo o mundo criado, a “mãe terra” e para além do planeta “o irmão sol”. Francisco de Assis expande o conceito de família e faz uma reaproximação do que leu no Genesis quando Deus criou o Jardim do Édem (=delicia). Se neste jardim/parque há uma interação, uma recreação entre Deus e o homem, entre o homem e o mundo criado, então esse é o objetivo da fraternidade universal: devolver ao mundo o projeto de Deus.

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São Francisco inaugurou a verdadeira globalização que não reduzia o ser humano apenas ao econômico. A verdadeira globalização é aquela que parte da solidariedade, do conceito de humanidade (o que nos faz humanos). A fraternidade franciscana busca gerar no mundo aquele amor com o qual Jesus relatou que deve ter o verdadeiro matrimônio: um amor tão grande e verdadeiro que é capaz de deixar seu lugar seguro (a casa dos pais) para ir ao encontro do outro. A fraternidade é este ideal que aproxima os povos, que transcende barreiras sociais, culturais, econômicas ou qualquer outra que possa ser apenas barreira e não características de povos diferentes. Traz a harmonia tão desejada nos dias de hoje entre o humano e a natureza. Há um divórcio atualmente entre o homem e a terra. O homem é filho da terra, não seu dono. A terra é nossa mãe dizia São Francisco. Nada novo porque ele leu isso no livro do Genesis: “Deus tirou o homem do barro da terra”, Adão de Adamah.

Neste dia de São Francisco, vamos reatar os laços que por vezes andam soltos entre nós humanos: “onde há ódio que eu leve o amor, onde há ofensa que eu leve o perdão, onde há discórdia que eu leve a união, onde houver dúvida que eu leve a fé”. reatar os laços entre nós e a natureza: “louvado sejas meu Senhor por todas as tuas criaturas: pelo irmão sol e pela lua, pelo vento, pelo ar e pelo tempo, pela água e pelo fogo pela nossa irmã, a mãe terra que nos sustenta e governa”.

Que o projeto de São Francisco de Assis, escrito e vivido a quase 900 anos possa nos fortalecer nestes tempos de desencontros, de divórcios entre as pessoas e a natureza.

Curitiba. Solenidade de São Francisco de Assis, 04 de outubro de 2015.

Edson Claiton Guedes, OFMcap.