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101 3 A DIMENSÃO FINANCEIRA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Jorge Munhós de Souza 1 sumário: 1. Introdução. 2. Atividade financeira, Ciência das Finanças e Direito Financeiro: por uma visão ampliada do conceito de Direito financeiro. 3. A ampliação do rol de princípios: o exemplo do princípio da distribuição de renda. 3.1 Distribuição como um fato natural da vida em sociedades de economia mista. 3.2 Musgrave e as funções do Estado. 3.3 uma proposta de adequado estado de distribuição: as possíveis teorias da justiça distributiva. 3.4 Distribuição, dimensão financeira dos direitos fundamentais e realidade jurídica brasileira 4. Conclusão 1. INtroDução Em 1977 Ronald Dworkin conclamou, de forma feliz e influente, a ne- cessidade de se levar os direitos a sério. 2 Sem dúvidas tal momento foi um marco fundamental para todos os futuros desenvolvimentos teóricos que desde então se seguiram, quer seja nos países de common law, quer seja nos de civil law. Tamanha foi a importância do trabalho do jurista ame- ricano, que, para muitos, o advento de sua obra é considerado o marco paradigmático de rompimento com a tradição positivista 3 , na teoria jurí- dica, bem como um forte aliado no ataque geral recebido pela linhagem de filosofia política conhecida como utilitarismo. 4 Podemos afirmar que, segundo Dworkin (colocando aqui entre aspas sutilezas e dificuldades marginais de sua teoria), levar os direitos a sério era não submetê-los aos cálculos de custo-benefício da teoria utilitarista. Jamais o maior saldo líquido de felicidade geral na sociedade poderia jus- tificar a transgressão de um direito individual. Direitos somente poderiam 1 Formado em Direito pela uFES (universidade Federal do Espírito Santo), Mestre em Direito Pú- blico pela uERJ, Procurador da República no Espírito Santo. 2 DwORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard university press, 1977. 3 Cf. FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito. Temas e desafios. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 4 Para uma boa abordagem dos aspectos filosóficos do utilitarismo como linha de filosofia política vale a pena conferir KYMLICKA, will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 11-62; e SANDEL, Michel. Justice: What´s the right thing to do? New York: Farrar, Straus and Giroux, 2009, p. 31-57. Temas atuais MPF.indb 101 04/06/2013 23:10:47

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3a dimeNSão fiNaNCeira doS direitoS

fuNdameNtaiS

Jorge Munhós de Souza1

sumário: 1. Introdução. 2. Atividade financeira, Ciência das Finanças e Direito Financeiro: por uma visão ampliada do conceito de Direito financeiro. 3. A ampliação do rol de princípios: o exemplo do princípio da distribuição de renda. 3.1 Distribuição como um fato natural da vida em sociedades de economia mista. 3.2 Musgrave e as funções do Estado. 3.3 uma proposta de adequado estado de distribuição: as possíveis teorias da justiça distributiva. 3.4 Distribuição, dimensão financeira dos direitos fundamentais e realidade jurídica brasileira 4. Conclusão

1. INtroDução

Em 1977 Ronald Dworkin conclamou, de forma feliz e influente, a ne-cessidade de se levar os direitos a sério.2 Sem dúvidas tal momento foi um marco fundamental para todos os futuros desenvolvimentos teóricos que desde então se seguiram, quer seja nos países de common law, quer seja nos de civil law. Tamanha foi a importância do trabalho do jurista ame-ricano, que, para muitos, o advento de sua obra é considerado o marco paradigmático de rompimento com a tradição positivista3, na teoria jurí-dica, bem como um forte aliado no ataque geral recebido pela linhagem de filosofia política conhecida como utilitarismo.4

Podemos afirmar que, segundo Dworkin (colocando aqui entre aspas sutilezas e dificuldades marginais de sua teoria), levar os direitos a sério era não submetê-los aos cálculos de custo-benefício da teoria utilitarista. Jamais o maior saldo líquido de felicidade geral na sociedade poderia jus-tificar a transgressão de um direito individual. Direitos somente poderiam

1 Formado em Direito pela uFES (universidade Federal do Espírito Santo), Mestre em Direito Pú-blico pela uERJ, Procurador da República no Espírito Santo.

2 DwORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard university press, 1977. 3 Cf. FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito. Temas e desafios. São Paulo: Martins

Fontes, 2006. 4 Para uma boa abordagem dos aspectos filosóficos do utilitarismo como linha de filosofia política

vale a pena conferir KYMLICKA, will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 11-62; e SANDEL, Michel. Justice: What´s the right thing to do? New York: Farrar, Straus and Giroux, 2009, p. 31-57.

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ceder diante de outros direitos de igual importância. Valeriam incondicio-nalmente como trunfos. Não se confundiriam, em hipótese alguma, com questões de política, ou seja, considerações de bem-estar coletivo. Em ou-tras palavras, Dworkin afirmava o mesmo que Rawls havia dito dois anos antes: “Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem o bem-estar da sociedade como um todo pode sobrepujá-lo”5. um exemplo caricato que pode estremar as diferenças entre o utilitarismo e o libera-lismo de Dworkin e Rawls é o da escravidão.

Os utilitaristas clássicos6 a defendiam sob o argumento de que a ins-trumentalização de uns poucos era uma prática socialmente aceitável, uma vez que gerava um resultado social final mais interessante, qual seja: aumentava o saldo líquido de felicidade da sociedade. Por saldo líquido de felicidade entende-se a soma de cada felicidade individual dos sujeitos envolvidos no jogo social. E, dessa forma, o raciocínio (propositalmente por nós simplificado) se completa: ainda que a escravidão trouxesse per-da de felicidade para o escravizado, o ganho de felicidade que tal prática proporcionaria para os beneficiários da exploração de seu trabalho justi-ficaria a escravatura.

Já para o pensamento liberal, do qual fazem parte Dworkin e Rawls, tal prática se afigurava inaceitável. O primeiro afirmaria que isso violaria o imperativo de tratar a todos com igual respeito e consideração7, ao passo que o segundo justificaria sua posição por meio da prioridade léxica8 do primeiro princípio de justiça sobre o segundo9. Vale notar que no âmago desses dois raciocínios se encontra a filosofia moral kantiana de valoriza-

5 RAwLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes. 2000, p. 4. 6 Como exemplo de um utilitarista clássico pode-se citar Jeremy Bentham. Destaca-se que o

utilitarismo pode se apresentar sob outras vertentes. Stuart Mill, por exemplo, apesar de utilitarista era um liberal que, além de repudiar a escravidão, defendia o direito das mulheres e o forte investimento em educação para os menos favorecidos.

7 Cf. DwORKIN, Ronald. A virtude soberana: teoria e prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 3.

8 Prioridade léxica significa que “ao aplicar o princípio partimos do pressuposto de que o outro já foi satisfeito”. (RAwLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 61).

9 A formulação final dos dois princípios de justiça de Rawls pode ser encontrada em sua última obra da seguinte forma: “a) cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; e b) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidade; e, em segundo, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio da diferença).” (Idem, Ibidem, p. 60).

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ção da autonomia individual, e, por conseguinte, da construção de todo um sistema deontológico baseado no imperativo categórico, do qual de-corre o imperativo prático da dignidade da pessoa humana: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simples-mente como um meio”.10

Alguns anos mais tarde, ainda no cenário norte americano, Cass Susntein e Stephen Holmes lançaram um influente livro no qual afirma-ram que levar os direitos a sério é levar a sério o custo dos direitos11. A mencionada obra tinha o objetivo bastante específico de demonstrar como até mesmo os direitos liberais clássicos de primeira dimensão - como, por exemplo, a propriedade, a liberdade de expressão, a liberdade religiosa e proteção contra abusos policiais - dependiam do dispêndio de recursos públicos para serem garantidos.

Como uma verdadeira apologia às virtudes estatais, a obra dos dois autores se inseria no contexto de uma discussão ideológica muito parti-cularizada do cenário yankee entre liberais igualitários e libertários con-servadores. As características comuns a ambas as correntes de filosofia política está na primazia que conferem ao indivíduo como núcleo central da convivência em sociedade e fim último de qualquer corpo coletivo, bem como, na atenção na defesa das liberdades individuais, máxime, na liberdade de escolha, com a consequente impossibilidade de que o Estado encampe determinada concepção de “vida boa” e tente impô-la como cor-reta. Destaca-se, contudo, que ao passo que os primeiros defendem uma forte ação estatal (por meio da tributação e dos gastos com serviços pú-blicos) para fins de proporcionar as condições básicas de liberdade para todos, os segundos são fortemente contrários a qualquer intervenção estatal e defensores do mercado livre. Como afirma o título do clássico livro de Nozick, o Estado libertário está entre o Estado utópico, que pre-ga intervenção estatal para fins de proporcionar algum ideal de justiça

10 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. In. Textos selecionados. Immanuel kant. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 135.

11 SuNSTEIN, Cass; HOLMES, Stephen. The cost of rights. Why liberty depends on costs. New York: w. w. Norton & Company, 1999. A discussão ganhou eco no Brasil principalmente a partir dos trabalhos de GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: Direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2005 e AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

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social, e o não-Estado, ou seja, a plena anarquia.12 O Estado libertário é o Estado mínimo conforme concebido no ocaso das revoluções burguesas sec. xVIII, que apenas atua para garantir os direitos de liberdade, ou seja, os direitos supostamente sem custos. Para os libertários o Governo é um mal necessário.

um dos grandes méritos do trabalho de Susntein e Holmes foi, sem dúvidas, reforçar o coro de pensadores que já denunciavam a perversi-dade e a incoerência do pensamento libertário.13 Isso se dá quando afir-mam que as liberdades privadas possuem custos públicos14, ou seja, sem a existência de um estado forte que aja corrigindo as falhas de mercado e promovendo alguns objetivos coletivos democraticamente selecionados, nem mesmo as liberdades econômicas, os direitos de propriedade e de não intervenção na esfera privada, tão celebrados pelos libertários, po-deriam ser garantidos. Sunstein e Holmes demonstram que em 1996 os contribuintes norte-americanos destinaram ao menos $ 11.6 bilhões para proteger propriedades privadas por meio de reservas e seguros públicos contra desastres (dinheiro este muitas vezes utilizado para a reconstru-ção de casas em zonas luxuosas dos EuA quando da ocorrência de algu-ma intempérie, como incêndios e tornados). Conforme bem destacado, aqueles que criticam o governo parecem facilmente se esquecer que os direitos individuais e as liberdades dependem fundamentalmente de vi-gorosas ações estatais.15

Outro ponto de destaque na obra aqui trabalhada é a amenização da distinção rígida entre direitos de bem-estar (de segunda dimensão, posi-tivos ou prestacionais, considerados aqueles dependentes de recursos es-tatais) e direitos de liberdade (direitos de primeira dimensão, negativos ou à abstenções estatais, considerados aqueles que independem de re-cursos públicos). Direitos custam dinheiro. Tanto os direitos de bem-es-tar quanto os direitos de propriedade privada possuem custos públicos. O direito à liberdade de contratar possui não menos custos públicos do

12 NOzICK, Robert. Anarchy, state, and utopia. New York: Basic books, 2001.13 A mesma crítica formulada por um jurista de esquerda, inicialmente integrante do movimento

conhecido como critical legal studies (CLS) nos EuA, pode ser encontrada em TuSHNET, Mark. Weak Courts, Strong Rights: Judicial Review and Social Welfare Rights in Comparative Constitutional Law. Princeton: Princeton university Press, 2008, 167: “Todo exercício de direitos ´privados´ depende do potencial exercício do poder estatal para que previna outros atores privados de interferirem nos direitos garantidos”.

14 SuNSTEIN; HOLMES, 1999, p. 221.15 Idem, Ibidem, p. 14.

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que o direito à assistência médica, assim como a liberdade de expressão não é menos custosa do que o direito a uma moradia decente. Todos os direitos são pretensões sobre o tesouro público.16 Hoje, depois de muita discussão, parece que o melhor entendimento é o de que entre ambos há uma diferença de grau.17

Para finalizar esta análise superficial do trabalho aqui explorado, vale ressaltar um último ponto que nos interessa mais de perto para os fins do presente trabalho, relacionado com a idéia de “troca compensatória entre direitos” (tradeoff). Seguindo o raciocínio já delineado, parece lógico che-gar à conclusão de que, já que todos os direitos possuem custos orçamen-tários, escolher entre promover direitos a abstenções estatais ou direitos prestacionais não é uma decisão neutra, mas uma escolha política, ambas com reflexos financeiros para o Estado. Acrescente-se a isso um fator to-talmente negligenciado pelos estudos jurídicos, mas que está no cerne do desenvolvimento dos estudos econômicos18 e de filosofia política19, qual seja: há uma escassez moderada de recursos na sociedade, que impede a satisfação de todas as necessidades humanas ao mesmo tempo. Isso que dizer que em um contexto de recursos limitados é preciso permitir que

16 Idem, Ibidem, p. 15.17 No contexto internacional vale conferir a posição de Dixon: “A distinção entre a dimensão negativa

e positiva dos direitos não pode ser uma distinção entre o dever estatal de se abster de interferir em certos interesses individuais existentes, e entre o dever estatal de realizar ações positivas para assegurar o gozo de outros direitos. A distinção é, por óbvio, apenas de grau, uma vez que o gozo de direitos negativos depende, em última instância, de ações estatais básicas (background forms of government action) como o estabelecimento e a garantia de um sistema de direito de propriedade.” (DIxON, Rosalind, Creating Dialogue About Socioeconomic Rights: Strong-Form Versus weak-Form Judicial Review Revisited (July 2007). International Journal of Constitutional Law, Vol. 5, Issue 3, pp. 391-418, 2007. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=1156226 or doi:10.1093/icon/mom021, p. 409, nota de rodapé 91). No contexto brasileiro, depois de ter recebido algumas críticas, Ingo Sarlet parece ter caminhado para esta conclusão: “Assim, não há como se negar que todos os direitos fundamentais podem implicar “um custo”, de tal sorte que esta circunstância não poderia ser limitada aos direitos sociais de cunho prestacional”. (SARLET, Ingo wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8a ed. Porto Alegre: Livraria dos advogados. 2007, p. 302).

18 “Economia é a ciência social que estuda como os indivíduos e a sociedade decidem (escolhem) empregar recursos produtivos escassos na produção de bens e serviços, de modo a distribuí-los entre as várias pessoas e grupos da sociedade, a fim de satisfazer as necessidades humanas” (VASCOCELLOS, Marco Antônio Sandoval de; GARCIA, Manuel Enrique. Fundamentos de economia. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 4)

19 Cf. RAwLS, 2000, p. 137: “Os recursos naturais ou de outro tipo não são abundantes a ponto de tornarem supérfluos os esquemas de cooperação, e nem as condições são tão difíceis a ponto de condenarem empreendimentos frutíferos ao insucesso. Embora ordenações mutuamente vantajosas sejam factíveis, os benefícios gerados por elas ficam aquém das exigências apresentadas pelos homens.”.

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a sociedade (que se auto-financia principalmente por meio dos tributos) escolha democraticamente qual necessidade social deve ser satisfeita em detrimento de outras. Em outras palavras, é preciso levar ao crivo da so-ciedade questões como as seguintes: é socialmente desejável canalizar recursos públicos para melhorar o quadro de pessoal da polícia ou para comprar novos computadores para o Fórum da Capital? É preferível me-lhorar a qualidade da merenda escolar ou contratar novos professores? É preferível contingenciar despesas para pagar a dívida pública e manter a política de superávit primário ou adotar uma política orçamentária anticí-clica de fortes gastos públicos para fins de superar momentos de recessão econômica? É preferível aumentar a carga tributária para oferecer maior quantidade de serviços públicos ou diminuí-la, permitindo que os recursos privados não arrecadados sejam utilizados livremente no mercado, pelos agentes econômicos, para a satisfação de suas necessidades individuais? Todas essas escolhas são de suma importância para que a proteção dos direitos humanos seja realmente implementada. A isso que denominamos dimensão financeira dos direitos fundamentais. Destacar a importância de revigorar essas questões no cenário jurídico é sem dúvidas um importante passo para quem realmente pretende levar os direitos a sério!

Mais do que uma preocupação com a dimensão moral dos direitos hu-manos, e com todo o discurso de legitimação que subjaz à sua definição em um contexto pós-positivista de abertura principiológica do Direito a outros ramos de conhecimento, é preciso que atentemos para a dimensão financeira dos direitos fundamentais, ou seja, é preciso atentarmos para o fato de que direitos possuem custos e que a forma de seu financiamento e a escolha da prioridade de gastos públicos é uma faculdade democrática da sociedade, faculdade essa que se renova ano após ano nas despresti-giadas Leis orçamentárias.

Não bastam belas declarações de direitos na Constituição. Não bas-tam 78 incisos garantindo direitos individuais e coletivos no art. 5º da CF. Não basta a ampla gama de direitos sociais elencados no art. 6º da Constituição e tratados heterotopicamente no Título VIII, que cuida da ordem social, se não atentarmos para o fato que a sua implementação pressupõe condições econômico-financeiras para a sua realização, e, que nesse contexto, se potencializa a importância das decisões verdadeira-mente democráticas sobre as duas principais faces da dimensão financei-ra dos direitos fundamentais, quais sejam: primeiro, como financiá-los; e, segundo, quais devem ser priorizados em detrimento de quais outros.

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Temos grande convicção de que esse é um dos grandes desafios de nossa geração, que liberta dos cortes reducionista proporcionados pelos positi-vismos do início do século passado, se abre a outras racionalidades (como ao estudo da filosofia política e moral, da economia, da psicologia, da an-tropologia) para fins de humanizar o estudo do Direito e buscar, fora dele, alguma substância. Nesse contexto, a revitalização do estudo do Direito Financeiro parece ser um caminho promissor.

Frisa-se, desde logo, que atentar para a dimensão financeira dos di-reitos fundamentais não é, em hipótese alguma, desprestigiar a dimensão moral dos mesmos, nem mesmo todos os avanços que já foram feitos nos últimos anos, quer seja por meio dos estudos de metodologia de inter-pretação (grupo no qual colocamos discussões sobre técnicas de ponde-ração, estudo sobre princípios, regras e eficácia das normas constitucio-nais), quer seja por esforços interdisciplinares de trazer para o debate jurídico a gramática das discussões filosóficas. O argumento do presente trabalho é de conciliação e de continuação de uma promissora tendência de se compreender o Direito brasileiro.

Se o Direito pretende se abrir a outras racionalidades, não pode ser tão seletivo, negligenciado importantes contribuições que derivam de se-tores como a Economia e as Finanças Públicas.

Se o argumento aqui delineado não for convincente à primeira vista, podendo ganhar críticas ácidas por aparentemente subordinar qualquer pretensão de normatividade do discurso moral, em geral, e do jurídico, em particular, aos determinismos econômicos, vale a pena afirmar com Sunstein e Holmes que o custo dos direitos é de fato moralmente rele-vante. Por isso que uma teoria dos direitos que nunca desce das alturas do discurso moral para o mundo dos recursos escassos é gravemente incompleta, mesmo de uma perspectiva moral. uma vez que “dever-ser implica poder-ser” e a carência de recursos implica não-poder, teóricos morais provavelmente deveriam prestar mais atenção do que usualmente o fazem sobre questões de arrecadação e dispêndio de recursos. E eles não poderão explorar completamente a dimensão moral da proteção dos direitos se falharem em levar em consideração questões de justiça distri-butiva. De tudo isso, recursos auferidos da coletividade são geralmente, por não boas razões, canalizados para segurar direitos de alguns cidadãos em detrimento de outros.20

20 SuNSTEIN; HOLMES, 1999, p. 118.

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As linhas mestras do desenvolvimento do presente trabalho estão es-boçadas. Tentaremos, a seguir, explorar de forma mais analítica algumas contribuições que o estudo da dimensão financeira dos direitos funda-mentais pode trazer.

Para tanto, dividiremos o texto em duas grandes partes. Na Parte II iremos expor alguns conceitos básicos de Direito Financeiro, para fins de propor uma concepção mais abrangente que não tente artificialmen-te apartar os conceitos de Direito Financeiro e Ciência das Finanças. Acreditamos que essa separação rígida, ligada à tradição positivista, li-mita em demasia o poder de investigação do jurista e transforma-o em um mero repositório de normas contábeis. Na Parte III buscaremos de-monstrar que o Direito Financeiro normalmente é sistematizado apenas sob a influência de valores ligados à segurança jurídica. Tal tradição re-presenta uma visão restrita do fenômeno financeiro e negligencia que, na regulamentação de sua atividade financeira, o Estado deve levar em conta a promoção de muitas outras virtudes sociais, tal qual a eficiência e a igualdade. Exemplificaremos nosso argumento trabalhando o princípio da distribuição.

2. atIvIDaDE fINaNCEIra, CIêNCIa Das fINaNças E DIrEIto fINaNCEIro: Por uMa vIsão aMPlIaDa Do CoNCEIto DE DIrEIto fINaNCEIro

O primeiro conceito necessário para se iniciar o estudo do Direito fi-nanceiro é o de atividade financeira do Estado. Esta compreende três momentos: i) o ingresso de dinheiro nos cofres do Estado; ii) a gestão do dinheiro e iii) o dispêndio do dinheiro arrecadado. Ricardo Lobo define-a como sendo o “conjunto de ações do Estado para a obtenção de receitas e a realização dos gastos para o atendimento das necessidades públicas”. 21 De forma semelhante afirma Régis de Oliveira que a atividade financeira é, pois, “arrecadação de receitas, sua gestão e a realização do gasto, a fim de atender às necessidades públicas.”.22

Do conceito de atividade financeira decorrem os de Ciência das finan-ças e de Direito financeiro. Seguindo a tradição inaugurada por Aliomar

21 TORRES, Ricardo Lobo. curso de direito financeiro e tributário. 16ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 3.

22 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. curso de direito financeiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 59.

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Baleeiro, a doutrina brasileira procura estremar ao máximo tais noções. A primeira seria uma ciência especulativa, pré-jurídica, não normativa, que efetua julgamentos de existência (o que é? porque é?). Seria a disciplina que, pela investigação dos fatos, procura explicar os fenômenos ligados à obtenção e dispêndio de dinheiro necessário ao funcionamento dos serviços a cargo do Estado, ou de outras pessoas de direito público, assim como os efeitos outros resultantes dessa atividade governamental instrumental.23 Já o segundo seria o conjunto de normas jurídicas que regulam a ativida-de financeira do Estado, quer seja em seu aspecto estático (conceituação dos institutos financeiros que compõem a atividade financeira do Estado) ou dinâmico (refere-se às relações jurídicas que se estabelecem entre o Poder público e outros titulares de direitos, que são indivíduos submeti-dos ao impacto da administração no desempenho dessa atividade).

Apesar da aparente inofensividade das idéias demarcadas, acredita-mos que, não obstante ser possível enxergar a existência de alguns pos-síveis benefícios na demarcação rígida da diferenciação entre Direito fi-nanceiro e Ciência das finanças (como, por exemplo, a demarcação mais precisa do objeto de investigação para fins de maior capacidade de apro-fundamento no estudo), a defesa da forte dicotomia mais atrapalha o de-senvolvimento científico da matéria, do que contribui. A obsessão positi-vista de demarcar rigidamente o estatuto epistemológico dos ramos do conhecimento (por exemplo, Direito, Economia, Contabilidade, Ciência Política, Sociologia, Filosofia...) para fins de conferir-lhes status de auto-nomia científica, assim como de diferenciar, com precisão, os sub-ramos didaticamente autônomos (no Direito, por exemplo, Direito Civil, Penal, Administrativo...), muitas vezes gerou a possibilidade de melhor compre-ensão das partes sob o alto preço de uma crescente perda de domínio de visão do todo. Muitas vezes, sob o argumento da necessidade de com-partimetalização do conhecimento, foi imposta uma artificial divisão de tarefas entre os estudiosos das ciências sociais, que, munidos das especi-ficidades de suas áreas de concentração, foram incapazes de perceber a unidade do conhecimento e a necessidade de ação conjunta para a reso-lução dos problemas sociais inevitavelmente integrados.

É de pouquíssima valia para um estudioso de Direito financeiro, enga-jado em utilizar seu conhecimento como instrumento de transformação social, saber todas as classificações das receitas e das despesas previstas

23 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 15a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

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nos artigos 12 e 13 da Lei 4.320/65; saber as fases administrativas da arrecadação e da despesa; saber as limitações constitucionais e legais ao endividamento público ou as particularidades das três Leis orçamentá-rias previstas em nosso ordenamento, se tudo isso não passa de um con-junto formal de regras que são instrumento para a consecução de neces-sidades públicas que não cabem a ele nem sequer especular quais sejam.

O jurista deve buscar resgatar seu papel decisivo no contexto das ci-ências sociais e abandonar a visão burocrática de um mero repositório de textos legais. Para esse fim se faz necessário buscar uma definição mais ampla de Direito financeiro, que não o restrinja a ser apena um conjun-to de normas que controla a atividade financeira. Nesse sentido, ensina Ricardo Lobo Torres que o Direito Financeiro pode ser estudado sobre duas óticas: como ordenamento (sistema objetivo/interno) ou como ciên-cia (sistema científico/externo). O primeiro caso compreende as normas, a realidade, os conceitos e os institutos jurídicos, ao passo que o segundo é o conhecimento, a ciência, o conjunto de preposições sobre o sistema objetivo. Sobre a segunda ótica, destaca ainda Ricardo Lobo serem suas características: i) a normatividade24; ii) a abertura25 e a iii) pluralidade26.

O grande mérito dessa proposta teórica é trazer para a pauta de dis-cussões jurídicas temas que por muito tempo foram considerados ex-trajurídicos, principalmente diante do caráter de abertura do Direito Financeiro visto como sistema científico. O principal desses temas é a dis-cussão sobre o conceito de necessidades públicas sob o qual se constrói a noção de atividade financeira. Diante da existência de uma Constituição extremamente analítica como a de 1988, parece claro que o legislador constituinte já foi capaz de traçar muitos limites e possibilidades de fu-turas definições de necessidades públicas pelas maiorias democráticas e seus representantes. Certamente o art. 3º da CF, no qual constam os objetivos fundamentais da República, é um grande guia nesse processo.

24 “Ser um sistema de dever-ser no sentido deontológico e axiológico”. (TORRES, 2009a, p. 14) 25 “Vai buscar fora de si, na ética e na filosofia, o seu fundamento e a definição básica dos valores.

Temas como o da justiça fiscal, da redistribuição de rendas, do federalismo financeiros, da moralidade nos gastos públicos voltam a ser examinados sob a perspectiva da Ética, da Filosofia Política e da Teoria da Justiça, que recuperam o seu prestígio nos últimos anos.” (Idem, ibidem.)

26 “Abre-se para o pluralismo metodológico, apoiando-se em vários métodos – racionais e empíricos, dedutivos e indutivos, explicativos e normativos. Admite o pluralismo de doutrinas e a crítica permanente, pois sua identificação com uma só doutrina conduz ao fechamento totalitário e ao absurdo de se aceitar o sistema científico global; não há nenhuma proposta teórica pronta e acabada sobre Direito Financeiro, mas uma permanente, democrática e aberta discussão sobre os valores fundamentais do Estado Social de Direito.” (Idem, ibidem.)

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Mas, mesmo que admitamos isso, não nos parece correta a visão positi-vista inclusivista de que o texto é suficiente para a completa definição do que sejam necessidades públicas. O texto é apenas o começo de um com-plexo processo interpretativo no qual muitas vezes princípios e regras se equilibram de forma dramática no contexto de um verdadeiro Estado de ponderação.

Sobre as necessidades públicas teremos ainda a possibilidade de falar um pouco adiante. Por ora basta a certeza de que uma a concepção fecha-da e tão somente normativista e legalista do Direito financeiro não parece ser um caminho interessante para construirmos as bases de uma teoria que leve a sério os direitos fundamentais, principalmente sua dimensão financeira.

3. a aMPlIação Do rol DE PrINCíPIos: o ExEMPlo Do PrINCíPIo Da DIstrIBuIção DE rENDa

Os princípios sofreram assustadora ascensão nos últimos anos. De instrumentos de aplicação subsidiária e colmatação de lacunas, conforme dispunha o art. 4 da LICC, passaram a ser considerados por muitos como a salvação para todos os males que infligiam a teoria e a prática do Direito. A grande vedete foi a dignidade da pessoa humana, que passou a justificar a não aplicação de qualquer regra que confrontasse as aspirações sub-jetivas do aplicador. O objetivo aqui não é criticar técnicas interpretati-vas, nem mesmo construir metodologias de interpretação. O que deve ser destacado é que, entre vícios e virtudes, a incorporação de uma cultura principiológica no direito é um fato que deve ser louvado em um contexto pós-positivista de abertura do Direito. É por meio deles que o sistema jurídico se abre a outros ramos de conhecimento, permitindo um frutí-fero diálogo com outros subsistemas como o da moral e o da economia. Conforme lapidar posicionamento de Alexy, é por meio dos princípios que o Direito se comunica com a moral e busca sua “pretensão de correção”27. Ou ainda, nos apropriando das idéias de Santiago Nino, é por meio dele que a Constituição real se comunica com a Constituição histórica.28

Se realizarmos um recenseamento rápido nos manuais de Direito fi-nanceiro é possível encontrar um núcleo comum de princípios que giram

27 ALExY, Robert. La Institucionalización de la Justicia. Trad. Antonio Seone et. Alli. Granada: Editorial Comares, 2005, p. 17-30.

28 NINO, Carlos Santiago. Ética y Derechos Humanos. 2ª ed. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1989.

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em torno dos seguintes: i) anualidade; ii) unidade; iiii) universalidade

29 ii) exclusividade30; iii) equilíbrio orçamentário31; vi) não- afetação32; viii) legalidade, ix) transparência33. Seguindo a classificação proposta pelo professor Ricardo Lobo, é possível verificar a grande preocupação da doutrina em desenvolver princípios que se relacionam com a idéia de segurança.

Temos a plena convicção de que a segurança é uma das mais impor-tantes virtudes da vida social, mas disso não se pode extrair a despreo-cupação com outras virtudes como, por exemplo, a justiça e liberdade. Diretamente relacionada com a idéia de liberdade está a necessidade de desenvolver princípios de Direito Financeiro que garantam a proteção do mínimo existencial, quer seja em sua dimensão negativa (por meio das imunidades), quer seja em sua dimensão positiva (por meio da reserva de recursos orçamentários necessário para o oferecimento de serviços públicos essenciais).34 Da idéia de justiça, possível se extrair princípios importantíssimos como os do custo/benefício, da economicidade, da soli-dariedade e da distribuição de renda.

Para reforçar o nosso ponto de vista de que levar a os direitos funda-mentais a sério é levar também em conta a sua dimensão financeira, vale explorar como o princípio da distribuição pode ser um importante aliado no combate à pobreza e desigualdade social no Brasil, fomentando uma cultura de respeito aos direitos fundamentais.

29 Lei 4.320/64: “Art. 2° A Lei do Orçamento conterá a discriminação da receita e despesa de forma a evidenciar a política econômica financeira e o programa de trabalho do govêrno, obedecidos os princípios de unidade, universalidade e anualidade.”

30 Art. 165, §8º da CF: “A lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, não se incluindo na proibição a autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito, ainda que por antecipação de receita, nos termos da lei.”

31 Dentre os muitos dispositivos que encampam esse princípio, é possível destacar os incisos I, II e III do art. 167 da CF e a alínea “a” do inc. I do art. 4º da Lei de Responsabilidade Fiscal.

32 Art. 167, inc. IV da CF: “Art. 167 São vedados:... IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)”.

33 Artigos 48 e seguintes da Lei Complementar 101/00.34 TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

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3.1 Distribuição como um fato natural da vida em sociedades de economia mista

A definição das funções estatais é um tema que desperta tantas pai-xões e discórdias, angaria tantas opiniões, tão abalizadas quanto diver-gentes, que qualquer tentativa de definição geral, abstrata e definitiva, que negligencie as particularidades históricas e geográficas do tema seria uma demonstração de cabal arrogância intelectual. O estágio de desen-volvimento moral, econômico e científico de determinado povo determi-na seu auto-entendimento como corpo coletivo.

No contexto atual parece existir uma certa unanimidade em torno da preferência pela vida em democracias constitucionais, no contexto de um Estado que respeite as liberdades individuais e garanta as precondições para o desfrute das mesmas (idéia que pode ser resumida sob a denomi-nação de direitos fundamentais).

No início do capitalismo alguns economistas clássicos acreditavam que tal processo seria conseguido por meio da não interferência estatal no domínio econômico. A mão invisível guiaria o mercado a uma situação de equilíbrio no qual as trocas livres, com base no sistema de preços, se-riam suficientes para gerar um grau desejável de bem-estar para todos os agentes econômicos. A idéia de Smith, muitas vezes mal compreendida e distorcida, ao invés de ser um tributo ao agir egoísta e uma conclamação de desprezo aos mais pobres, foi apenas uma visão equivocada de que o mercado livre era o meio ideal para se atingir um estado de desenvolvi-mento social mais desejável. Desta forma, desde já vale frisar o seguinte: o mercado distribui, assim como faz o Estado. O que os diferencia é o meio utilizado. O primeiro se vale do sistema de preços; o segundo de seu po-der coativo (poder legislativo, poder tributário, poder expropriatório...).

Pouco tempo foi necessário para demonstrar que o mercado não é sempre capaz de se auto-regular, e que o capitalismo de mercado livre tinha uma forte tendência de gerar concentração de riquezas nas mãos de uns poucos exploradores da atividade econômica. O mercado falha como mecanismo consecução de fins coletivos, motivo pelo qual, até mesmo os inicialmente defensores do mercado livre (por boas ou más razões), pas-saram a defender a intervenção estatal na economia para fins de limitar os efeitos perniciosos da concentração do poder econômico, poder esse que tende a se confundir deleteriamente com o poder político, enfraque-cendo o regime democrático. A intervenção do Estado no controle dos monopólios e na incessante busca pelo fomento da livre concorrência é

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um exemplo clássico da necessidade do Estado para a própria subsistên-cia do regime capitalista de mercado.

Importante frisar, que no extremo oposto da visão de alguns econo-mistas clássicos (que pregavam o mercado livre como solução para todos os males da sociedade) surgiram posicionamentos que enxergavam no Governo a mencionada panacéia. Pregavam eles o fim dos mercados livres e a existência de uma economia totalmente centralizada nos gabinetes estatais. Tal visão totalizante perdeu significativamente espaço após o fracasso do socialismo real na uRSS e na Alemanha oriental.

Superados os excessos de ambas as partes, a prática social atual pa-rece apontar para a busca de um meio termo entre Estado e mercado, no que hoje se denomina economia mista, ou seja, um regime em que ativi-dades econômicas são desenvolvidas no âmbito de uma inevitável intera-ção entre agentes privados e o Governo.35

Essa pequena digressão tem a finalidade de demonstrar que, apesar de reinar divergências sobre quais as funções do Estado, é importante perceber que as discussões sobre distribuição não são apenas debates ideológicos entre lados opostos dos defensores e opositores de atribuir ao Estado essa função. A distribuição é um fenômeno natural que ocor-re tanto pelo mercado, quanto por meio do Estado; é reconhecido tanto por capitalistas quanto por não-capitalistas; envolve momentos jurídicos e econômicos. A grande dificuldade é estabelecer qual seria o nível ade-quado de distribuição, ainda mais se levarmos em consideração que essa exigência social geralmente entra em rota de colisão com outras virtudes da vida coletiva, como a eficiência econômica e a segurança jurídica.

3.2 Musgrave e as funções do EstadoPara os fins específicos do presente trabalho, vale mencionar a respei-

tada visão de Musgrave que afirma que as funções do Estado na economia são três: i) assegurar ajustamentos na alocação de recursos (função de alocação); ii) conseguir ajustamentos na distribuição de renda e riqueza (função de distribuição) e iii) garantir a estabilização econômica (função de estabilização).36 Apesar de ser claro que todas as funções estão umbi-licalmente ligadas, parece interessante, para fins analíticos, manter artifi-cial manobra taxonômica.

35 STIGLITz, Joseph E. Economics of the public sector. 3rd. ed. New York: w. w. Norton & Company Inc, 1999, p. 11.

36 MuSGRAVE, Richard A. Teoria das finanças públicas. São Paulo: Atlas, 1974, p. 25.

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Dentro de sua proposta de teoria normativa, Musgrave atribui cada função a uma divisão imaginária, dentro de Departamento Fiscal. O admi-nistrador da divisão de alocação deveria determinar quais os ajustamen-tos necessários à alocação, quem deve responder pelos custos e quais as políticas de receitas e despesas necessárias à consecução dos objetivos desejados.

O setor de alocação parece estar mais preocupado com a questão da correção de falhas de mercado e da eficiência econômica, entendida, nos moldes neoclássicos, como a maximização da quantidade de riqueza social e a elevação para a direita da curva da possibilidade de produção, para fins de satisfação de necessidades públicas. um problema alocativo claramente ligado a este setor se verifica nas hipóteses de concentração de mercado consubstanciada em monopólios, oligopólios, monopsônios e oligopsônios. Nesses casos, há clara perda de eficiência econômica e restrição da liberdade de concorrência. uma forma de restabelecer uma situação de mercado mais próxima ao desejado ponto de equilíbrio se-ria utilizar mecanismos financeiros como as subvenções orçamentárias, a tributação com finalidade extrafiscal, as imunidades etc. Hoje em dia, a missão alocativa do Estado parece ser desempenhada preferencialmente por meio de regulação estatal e leis antitrustes.37

Importante ressaltar que a própria função alocativa possui reflexos distributivos. Isso porque em um cenário perfeitamente concorrencial, a alocação de recursos escassos é ótima, na medida em que o preço conferi-do ao produto pelo mercado é exatamente aquele que traduz o seu valor para a sociedade. Assim, não há gastos excessivos para adquiri-los (não há lucros excessivos), nem deixa de haver transferência de recursos entre os consumidores dispostos a adquirir o produto e os produtores (dea-dweight loss). Esta inexistência de lucros excessivos decorre da prática de preços mais baixos que é forçada pela pressão concorrencial, surgindo, desta forma, o benefício distributivo da concorrência.

O setor de distribuição deveria determinar quais os passos que preci-sariam ser dados de modo a estabelecer o Estado desejado ou apropriado de distribuição.38 O primeiro ponto que precisa ser aqui destacado é que a técnica de distribuição que é operada por meio de mecanismos finan-ceiros (tributação progressivamente mais onerosa daqueles que apresen-tam maios capacidade contributiva, bem como e definição de dispêndio

37 No Brasil vale mencionar a Lei 8.884/94. 38 MuSGRAVE, 1974, p. 26.

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de acordo com a razão inversa, quer seja no oferecimento gratuito de ser-viços essenciais, quer seja por transferências diretas como os benefícios assistenciais) não se confunde com aquela operada por meio de regulação estatal (legislação trabalhista como salário mínimo, limitação da jornada de trabalho, possibilidade de dissídio coletivo e reconhecimento de direi-to de greve; estabelecimento de tabelamento de preços; estabelecimento de normas de ordem pública nos contratos privados como a impenho-rabilidade do bem de família ou ainda regras relativas aos contratos de plano de saúde). O próprio Musgrave chegou a afirmar que “a legislação sobre o salário mínimo, a subvenção para certos produtos agrícolas, a pro-teção tarifária, a legislação de justo comércio, e assim por diante, são po-líticas que têm resultado distributivos importantes e, em grande extensão, metas igualmente distributivas”.39

Deve-se ressaltar que a distribuição de renda por meio da regulação deve servir como uma técnica subsidiária e complementar às transfe-rências diretas, como aquelas operada por meio da tributação e do for-necimento de serviços públicos. Isso porque, como bem destacado por Sunstein “um dos paradoxos do Estado regulador é que esforços para re-distribuir recursos através da regulação tende a prejudicar os menos fa-vorecidos, gerando, em muitos casos, efeitos complexos (muitos deles não esperados e perversos). O mercado é extremamente criativo para superar os esforços de transferência de renda por meio de regulação.”40 No mesmo sentido afirma o professor Ricardo Lobo: “No Estado Democrático e Social Fiscal a redistribuição de renda encontra a sua mais expressiva fonte no or-çamento público. Apenas depois que se lhe esgotam as possibilidades é que se inicia a reflexão sobre a redistribuição na via dos salários, dos preços, da reforma agrária, das normas de direito privado.”41 Disso, contudo, parece não ser possível se extrair a conclusão de que apenas as técnicas orça-mentárias deveriam servir como instrumento de redistribuição.42

O segundo ponto, que abre espaço para o próximo tópico, é que muito mais do que uma discussão meramente econômica ou jurídica, a determi-nação de um nível adequado de distribuição é um assunto a ser debatido segundo a gramática da filosofia política.

39 Idem, ibidem, p. 40.40 SuNSTEIN, Cass. After the rights revolution: reconceiving the regulatory state. Cambridge:

Harvard university Press, 1990, p. 56.41 TORRES, 2008, p. 285.42 Defendendo esse ponto de vista SHAVELL, Steven. A note on efficiency vs. Distributional Equity

in legal Rulemaking: Should Distributional Equity Matter Given optimal income taxation?, 71, American Economic Review. 414 (1981).

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3.3 uma proposta de adequado estado de distribuição: as possíveis teorias da justiça distributiva

Superados alguns empecilhos teóricos pré-modernos, que levavam al-guns teóricos a defender que os pobres eram uma classe particularmente imperfeita de pessoas, parece ser possível se dizer que surgiu, a partir do iluminismo, a noção moderna de justiça distributiva. Ela relacionava-se à ideia de invocar o Estado para garantir que a propriedade fosse distri-buída por toda a sociedade de modo que todas as pessoas pudessem se suprir com um certo nível de recursos materiais.43 A definição desse nível, assim como do estado adequado da distribuição, são questões sobre as quais os cientistas sociais se debatem sem perspectiva de alcançar um consenso abstrato e geral.

Apesar de ser possível se encontrar manifestações doutrinárias bas-tante críticas sobre a idéia de justiça distributiva, como a manifestada pe-los libertários muito bem retratados no pensamento de Nozick, é possível encontrar autores que, enquadrados nesse contexto teórico, afirmaram que ao menos um nível mínimo de subsistência deveria ser proporcio-nado pelo Estado.44 Parece-nos que qualquer manifestação em sentido diverso se aproxima das teorias darwinistas sociais que, sob o argumento de que os pobres seriam menos adaptados que os não pobres (e, conse-quentemente deveriam padecer no processo evolutivo) não viam qual-quer razão para que o Estado interviesse na ordem natural das coisas.

Rawls desenvolveu uma sofisticada construção que poderia indicar um parâmetro para a definição do estado ideal de distribuição. Após de-fender a prioridade léxica do princípio da igual liberdade em relação ao segundo, procurou desenvolver uma forma de conciliar eficiência econô-mica e igualdade. Para tanto, chegou à formulação final da segunda parte do segundo princípio de justiça, que afirma que as desigualdades sociais

43 FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 8.

44 “Não há razão do porquê em uma sociedade livre o Governo não deve assegurar para todos proteção contra severas privações na forma de uma renda mínima. A concessão deste seguro contra infortúnios extremos pode ser considerada como do interesse de todos, ou pode ser considerado como um claro dever moral de todos (em uma comunidade organizada) de assistir aqueles que não podem ajudar-se a si próprios. Tão logo esta renda mínima uniforme seja concedida fora do mercado a todos que, por alguma razão, não estão aptos a conseguir no mercado sua adequada subsistência, esse necessidade não conduz a uma restrição da liberdade ou conflita com o estado de Direito.” (HAYEK, Friedrich A. Law, legislation and liberty. A new statement of the liberal principles of justice and political economy. The mirage of social justice. Vol. 2. Chicago: The university of Chicago Press, 1976, p. 87)

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e econômicas devem satisfazer a condição de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio da diferença).45

Sem negar falhas, assim como a possibilidade de formulação de ou-tros princípios46, certamente a discussão de Rawls enriquece muito o de-bate sobre o desejado estado de distribuição. Talvez, mais importante do que a própria formulação final do segundo princípio, seja a fundamenta-ção do argumento de Rawls de que os talentos naturais que possuímos decorrem de uma loteria natural, sendo, dessa forma, imerecidos. Assim, qualquer vantagem que deles retiramos não é moralmente justificável, le-gitimando-se que compartilhemos os eventuais ganhos com aqueles que, por uma questão de azar, nasceram com aptidões físicas menos valoriza-das pelo mercado.

De todas essas reflexões, é importante não buscar um modelo abstra-to que possa ser autoritariamente imposto de cima para baixo na socie-dade, em função de preferências teóricas. A discussão moral tem a impor-tante função de permitir o que Rawls chamou de “equilíbrio reflexivo de nosso juízo ponderados”, que nada mais é do que submeter nossos sensos intuitivos sobre a justiça ao escrutínio racional, de tal forma que, por um sistema de idas e vindas, progressos e refluxos, possamos remodelá-los e buscar respostas melhores com o uso da razão crítica. Em uma sociedade democrática que se preocupa com a idéia de governo das maiorias, não parece ser preciso duvidar da capacidade dos cidadãos de, por meio do diálogo público franco, chegar a alguns consensos sobre o adequado esta-do de distribuição. Talvez a maior dificuldade seja construir mecanismos institucionais (para além do sufrágio e das regras meramente procedi-mentais) que permitam que a vontade popular se reflita nos atos estatais, aumentando o valor epistêmico da democracia.

3.4 Distribuição, dimensão financeira dos direitos fundamentais e realidade jurídica brasileira

Não parece haver dúvidas que a Constituição de 1988 veio permeada com uma forte preocupação distributiva. Apenas a título exemplificativo podemos verificar que o art. 3º, inc. I, trouxe como objetivo fundamental

45 Cf. nota 7 e 8.46 um outro exemplo de princípio distributivo, não menos preocupado com as desigualdades

sociais e a situação dos pobres, pode ser encontrado em SEN, Amartya K. Equality of what? In. MCMuRRIN. S. (org.) The Tanner Lecture on Human Values, i. university of utah Press, Salt Lake City, utah, 1979, p. 197-220. (Disponível em <www.tannerlectures.utah.edu/lectures/documents/sen80.pdf>)

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da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. O artigo 5º, em seu caput, trouxe a cláusula geral de proteção da igualdade. O art. 48, inc. I, determi-nou caber ao Congresso Nacional dispor sobre sistema tributário, arreca-dação e distribuição de rendas. O art. 170, inc. VII inseriu entre os princí-pios da ordem econômica a redução das desigualdades regionais e sociais.

Como já afirmamos, apesar de ser possível se atingir objetivos distri-butivos de outras formas (como na regulação), concordamos com a dou-trina majoritária que o instrumento mais eficaz para a consecução de tais fins são aqueles relacionados às finanças públicas. Nas eloquentes pala-vras do professor Ricardo Lobo, “o princípio fundamental do orçamento é o da redistribuição de renda, aspecto particular da justiça distributiva. Talvez fosse melhor classificá-lo como diretiva constitucional ou policy, em vista de sua íntima relação com as políticas públicas.”47

Para finalizar este tópico é necessário ainda frisar que a justiça distri-butiva opera tanto na vertente das receitas, quanto nas despesas48, sendo inevitável que a sua promoção somente se viabilize no processo orçamen-tário, no qual há um tratamento conjunto de ambas.49 Considerar que isso é indispensável para a promoção dos direitos fundamentais, principal-mente os sociais, é levar a sério sua a dimensão financeira.

4. CoNClusão

Muito ainda poderia ser falado sobre a dimensão financeira dos direi-tos fundamentais. As denúncias da distorcida prática orçamentária nacio-nal já são denunciadas de forma eloquente por boa parte da doutrina.50 Parece, contudo, que ainda nos faltam teorias que se arrisquem a elaborar

47 TORRES, 2008, p. 282.48 “Enquanto a justiça distributiva opera sobre os tributos mediante o princípio da capacidade

contributiva, tirando de cada qual segundo a sua riqueza, e sobre a despesa através da distribuição de bens e serviços públicos a quem deles carece, atualiza-se no plano orçamentário, pelo princípio da redistribuição de rendas, pelo qual se procura, genericamente e sem intuito personalista, tirar de quem tem mais para dar a quem tem menos.” (TORRES, 2009, p. 99)

49 “O princípio da redistribuição de renda apenas se viabiliza no processo orçamentário, pelo tratamento conjunto da receita e da despesa.” (TORRES, 2008, p. 282)

50 Cf. SABBAG. César, Orçamento e desenvolvimento. Recurso público e dignidade da pessoa humana: o desafio das políticas desenvolvimentistas. Campinas: Editora Milenium. 2007. No âmbito da Pós-graduação da uERJ vale mencionar o competente trabalho de dois colegas: MENDONçA, Eduardo Bastos Furtado. A constitucionalização das finanças públicas no Brasil. Rio de Janeiro: uERJ, 2008 e TRAVASSOS, Marcelo zenni. O controle da elaboração do orçamento à luz dos direitos humanos. Rio de Janeiro: uERJ, 2008.

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visões normativas sobre o orçamento público, buscando conciliar sua di-mensão jurídica, política e econômica, missão que reconhecemos não ser nem de perto das mais simples. A exigüidade de espaço, contudo, não nos permite continuar.

A título de epílogo recordamos os ensinamentos do professor Ricardo Lobo sobre a necessidade da unificação da razão dualista em matéria or-çamentária, para que, desta forma, seja possível estabelecer um encontro entre as justificativas das receitas e das despesas.

É preciso que desenvolvamos um sentimento social que permita transparecer aos cidadãos que suas expectativas a respeito das ações go-vernamentais não podem estar dissociadas de sua disposição de verter recursos para o financiamento do próprio ente Estatal. Tão mais severo será o sistema tributário, quanto maiores forem as funções atribuídas ao Estado. De forma diametralmente inversa, podemos afirmar que em um Estado cujas funções são mínimas, a tributação também deverá assim ser.

O período militar (1964-1979) reflete bem o mencionado desencon-tro entre as ideologias que orientavam a fixação da receita e da despesa pública. Na vertente da receita se acompanhou a elaboração do CTN de 1966, que favorecia demasiadamente o setor produtivo por meio de sua desoneração (alívio da incidência do imposto causa-mortis; eliminação da cobrança do causa-mortis sobre bens móveis; minimização da incidência do imposto de renda sobre lucros), prestigiava o conceito de legalidade absoluta e tipicidade fechada (ampliando o espaço do planejamento abu-sivo e da elisão fiscal ilícita) e minimizava o papel do juiz, relegado a se-gundo plano por normas de interpretação literal. Na vertente da despesa assistia-se a uma expansão dos gastos públicos que deveriam guiar o pro-cesso de desenvolvimento do país.51

Transplantando as mencionadas reflexões para o campo dos direitos fundamentais, é possível afirmar que não podemos nos perder em uma visão naive que apenas reclama a declaração de direitos, sem se preo-cupar minimamente com as condições econômicas e financeiras de sua implementação. Se levar a sério os direitos fundamentais é levar a sério sua dimensão financeira, é chagada a hora de atentarmos para a questão dos custos dos direitos.

51 TORRES, 2008, p. 38-39.

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