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    75PHILSOPHOS 2002.1

    RESUMO:Tanto Jean Jacques Rousseau como Hannah Arendt desenvolvem seus ideaisde repblica no conceito de luz e sombra. O artigo focaliza o dado obscuro da repblica: aesfera privada do cidado. De acordo com a lgica interna das duas teorias, a arqueologiada vida privada comea com um conceito do poltico. Ambos os autores so cticos comrelao concepo moderna da vida privada como uma prioridade. Eles tendem a concordarmais com a teoria poltica clssica. Hannah Arendt restaura a separao aristotlica entrePoliseOikos, as esferas privada e pblica. Rousseau, porm, quer uma unidade politica aoestilo platnico. A repblica exige a completa transparncia tanto da vida pblica quantoda privada.

    Palavras-chave: Rousseau, Hannah Arendt, repblica.

    Denn die einen sind im DunkelnUnd die andern sind im LichtUnd man siehet die im LichteDie im Dunkeln sieht man nicht.1

    Estes versos inconfundveis so de Bertold Brecht. Caso no

    marcassem o fim da Dreigroschenoper, poderiam ser interpretadoscomo a cena decisiva do drama filosfico sobre o pblico e o privadoem Jean-Jacques Rousseau e Hannah Arendt. Afinal, na metforade luz e sombra, os dois autores esboam seu ideal todo prprio derepblica.

    As reflexes seguintes abordam uma problemtica que apesquisa das obras de Rousseau e Hannah Arendt tem tratado,porm, com rigor diverso. Enquanto a noo de espao pblico

    atraiu a ateno primordial dos intrpretes, o estatuto do privadotem permanecido pouco analisado.2Com isso, quem quiser seguir

    LUZ E SOMBRA: O PBLICO E O

    PRIVADO EM JEAN-JACQUESROUSSEAU E HANNAH ARENDT

    Karlfriedrich HerbUniversitt Regensburg/ [email protected] (herb.kf)

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    a pista da vida privada ver-se- obrigado a orientar-se em direo ao

    pblico. A arqueologia do privado comea com o conceito do espaopblico e no por acaso, pois isso corresponde exatamente aoantigo vnculo entre a repblica e o cidado. Cabe, pois, esclarecerqual forma a vida privada assume sob tais condies e quais astransformaes presentes na transio para a modernidade.Tentaremos uma resposta em trs teses.

    Primeira tese: o homem se revela luz do pblico

    Rousseau um moderno com alma antiga, ou seja, cultivafilosofia poltica moderna com os meios antes prprios de uma teoriada plis. A querela entre os antigos e os modernos, encenadainteriormente por Rousseau, no deixa de ser surpreendente. ComoContrato social, Rousseau pretende constituir a poltica moderna.O ttulo da obra , simultaneamente, confisso e programa terico.No mais na ordem natural da plis, seno na unio contratual deindivduos livres e iguais, em sua artificial unio civilis, repousa oprincpio da dominao legtima. Um tal incio rompe com asnoes dos antigos, transformando o Estado e a cidadania emprodutos das aes humanas.

    Mais radical e conseqente que seus predecessores, Rousseautrata do princpio da autonomia, que determina o plano para a

    construo da repblica. A participao direta de todos na vontadegeral: eis a lei fundamental da repblica, que probe qualquer formade representao da vontade poltica dos cidados. Curiosamente,essa interpretao literal do princpio da autonomia termina, muitasvezes, por reconduzir seu ideal moderno de contrato ao ambienteda Antigidade.3A plis grega figura como modelo para a repblicamoderna, comportando ainda a prova histrica da possibilidade doreino republicano.De lexistant au possible!reza a divisa de sua auto-

    afirmao.4Como sua predecessora, a nova repblica ope-se sinvenes modernas, a saber, aos sistemas da representao e das

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    finanas. A repblica floresceria to-somente na condio pr-

    moderna, na qual o homem ainda pleno cidado, colocando-se,pois, sem reservas luz do espao pblico. O homo oeconomicusdoiluminismo escocs, voltado para interesses privados e materiais,no pode prestar-se cidadania republicana. Rousseau preferiria,ao contrrio, fazer retornar a histria, tornando inefetiva a divisodo trabalho, pecado original da modernidade. Afinal, ao dividirsuas atividades de reproduo, terminaria o homem por dividir oprprio homem. No por acaso, ao homem moderno alienado,

    Rousseau contraps, freqentemente, a imagem do cidadoespartano virtuoso, cuja vida, exemplo puro de virtude civil, se votainteira repblica. Voille citoyen.5

    Apesar de Rousseau, mais que qualquer outro autor do sculoXVIII, ter incitado cada cidado participao poltica, ele localizaa repblica alm da sociedade comunicativa ideal e da democraciavoltada ao discurso. Pelo contrrio, o discurso pblico j sinalizaria

    a atmosfera de crise prpria da repblica. Onde quer que se discutae se dispute publicamente, o politicamente justo tornou-se duvidoso.A publicidade republicana confia exclusivamente no voto silenciosodo cidado de bom senso. No precisa de deputados nem de filsofos.A paz, a unio e a igualdade so as inimigas das sutilezas polticas.6

    Tanto insiste Rousseau na coeso da repblica que qualquerdissonncia lhe parece um perigo. Pretende, assim, a fuso perfeitado cidado com o corpo poltico, pois a finalidade da repblica s serealiza quando a sociedade do direito contratual se torna umasubstancial comunidade tica. Em ltima instncia, portanto, acorrespondncia antiga entre comunidade e cidado suplanta algica original do contrato. Em um communitarian turn, Rousseausolda numa unidade a finalidade do indivduo e a do Estado. Naqualidade de comunidade de projetos e interesses vitais, a repblicatorna-se o lugar da auto-realizao do homem. Rousseau no hesita

    ento em declarar, bem na linha da teoria da plis: S comeamosa ser propriamente homens aps nos tornarmos cidados.7

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    Hannah Arendt teria simpatizado com tal configurao antiga

    da repblica. Em contrapartida, a fundamentao contratualistade Rousseau lhe pareceria um absurdo. O modelo do estado denatureza, que concebe o indivduo como original e a comunidadecomo posterior, revelar-se-ia o pecado capital do Iluminismo, ouseja, da poltica moderna. No a fico jurdica do isolamento,mas sim o fato de a pluralidade constituir o incio da filosofia poltica.Em outras palavras: o homem zoon politikon. Assim como oindivduo, a prpria repblica no deveria ser compreendida como

    unidade autrquica e hermtica. Hannah Arendt quer riscar osingular da gramtica do republicanismo, pois, com isso, o caminhopara as origens do poltico j estaria traado.

    Sem dvida, a Antigidade, tal como a privilegia HannahArendt na querela aberta entre os antigos e os modernos, no platnica nem espartana, mas sempre aristotlica, isto , carregadade reservas contra a plis de Plato. Em vez da unidade, a pluralidade a nota caracterstica essencial do pblico na plis, o que se torna,assim, o lugar onde se manifesta a liberdade, um lugar de comunhode palavras e aes, segundo a definio aristotlica da koinoniapolitik. Hannah Arendt complementa essa concepo da esferapblica com o momento da competio que se manifesta no agir eno falar dos cidados. Com isso, ela desdobra o esprito competitivona plis no sentido do aei aristeueinde Homero, ao tempo em queAristteles tinha visto os cidados ligados por laos da amizade. A

    prosperidade da plis seria posta em risco pela concorrncia. Esseesprito de competio, na repblica de Hannah Arendt, desenvolve-se na luta por reconhecimento mtuo e por eterna lembrana. Ela,desse modo, reconhece um correspondente moderno esferapblica antagnica na repblica americana em John Adams, queenaltecethe passion for distinctioncomo a virtude cardinal do cidadorepublicano.8

    digno de nota que Hannah Arendt pouco se interesse pelas

    motivaes ntimas que conduzem o cidado vida pblica. Querno modelo antigo da repblica, quer no moderno, ela silencia acerca

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    da dimenso interna dos desejos republicanos. Enquanto Rousseau

    desmascara le fureur de se distinguer9

    como patologia prpria dohomem em sociedade, Hannah Arendt insiste no valor do queaparece na superfcie, na fenomenologia da repblica. A plis revela-se como o espao do aparecimento da liberdade externa. Que avida ntima dos cidados possa e deva ser indiferente para arepblica, isso resulta da separao estrita entre o pblico e o privado.E a necessidade de uma tal separao pertence noo mesma dopoltico. Tal dualismo define o privado, simultaneamente, como

    defeito originrio e inevitvel e como condio externa da esferapblica.

    Partindo de premissas aristotlicas, evidente que o pblicopossui uma primazia absoluta com respeito esfera privada. Semreserva alguma, Hannah Arendt acompanha Aristteles ao declarara humanidade do homem uma conseqncia de ele pertencer plis, comunidade poltica. Quem no tem acesso ao espaopblico, por conseguinte, no realiza de forma autntica suahumanidade. A igualdade dos cidados no implica a igualdade doshomens; ao contrrio, a isonomieda plis antes pressupe adesigualdade social. Em suma, apropriando-se integralmente daconcepo antiga de esfera pblica, Hannah Arendt d a entenderque o poltico s pode realizar-se em meio excluso. Desse modo,o conflito com os princpios da democracia moderna torna-seinevitvel. Sofre, ento, o conceito de vida privada em Hannah

    Arendt o mesmo destino? Para Rousseau, em todo o caso, o modode pensar o privado j est determinado pelo espao pblicorepublicano.

    Segunda tese: A repblica de Rousseau teme a escurido doprivado, qual Hannah Arendt oferece um refgio

    O homem privado de Rousseau compartilha o destino docidado, move-se entre tempos antigos e modernos. primeira

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    vista, o contrato parece apenas salvaguardar os direitos privados

    dos indivduos: a garantia da independncia do indivduo comrelao a seus semelhantes somente se apresenta no estado civil sobleis republicanas. Torna-se, entretanto, cada vez mais evidente queas almejadas liberdades negativas ameaam o projeto republicano.Favorecem o regresso ao privado e esmaecem o sentido do pblicoe do comunitrio. Vista mais de perto, a liberdade civil traduz-seem mera liberdade do burgus, ou seja, como puro meio paraadquirir sem inibies e possuir com segurana.10

    difcil dizer se Rousseau pretende realmente destruir a esferaprivada, tal como nos sugere um seu intrprete amargo.11 bvio,porm, que ele no busca seriamente garantias jurdicas do privado.Mais ainda, em nome da repblica, recusa aos cidados o queMadame de Stal e Benjamin Constant (testemunhas da imitaofracassada da liberdade dos antigos) devero festejar como aquisioda Revoluo Francesa: a liberdade moderna, ou seja, lagarantie de

    lobscurit,12

    que protege a vida privada do olhar dos concidados eda interveno do Estado. Para Rousseau, bem como para seusdiscpulos jacobinos, a sombra do privado torna-se um perigo paraa vida pblica. A luz da repblica no admite nem suporta qualquerregresso do cidado sua cidadela ntima.

    Rousseau propagandeia, portanto, a repblica como casaaberta, ou seja, como transparncia total tanto da vida pblica comoda vida privada. Seu ideal o cidado romano, cuja casa no sefecha ao olhar dos outros. Ora, um tal ideal republicano s podeapagar os limites entre a esfera privada e a pblica. Na repblica deRousseau, as linhas de demarcao da plis antiga so destrudastanto quanto as exigncias liberais da liberdade moderna. No mbitoda repblica, afinal, o imperativo da transparncia impe-se comtodo o rigor: Quiconque aime se cacher a tt ou tard raison de secacher. Un seul prcepte de morale peut tenir lieu de tous les autres;

    cest celui-ci: Ne fais ni ne dis jamais rien que tu ne veuilles que toutle monde voye et entende.13

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    Hannah Arendt restabelece a linha divisria entre o pblico

    e o privado, outrora dissolvida pela repblica de Rousseau. A reserva,porm, em relao ao mero privado continua em vigor. A clebredistino davita activaem obra, trabalho e ao, apresentada emAcondio humana, confirma, a seu modo, o diagnstico negativo doprivado em face da vida poltica. Seguindo o padro aristotlico,Hannah Arendt localiza o privado no oikos: o governo da casa olugar da dominao em sentido prprio, o lugar da desigualdade eda violncia.14Trabalhar e produzir so as atividades prprias dessa

    esfera, e obedecem necessidade de reproduo da vida e lgicainstrumental da produo. Na obscuridade da esfera privada, nopode haver dilogo ou pluralidade. Aqui a vida ativa se desenvolveem um monlogo. Em contrapartida, o dilogo e a ao livretornam-se possveis no espao pblico, livre das exigncias da vidaprivada.

    Ao contraste luz e sombra, a esfera privada associa uma falta,conferindo-lhe um carter privativo. O conceito do privado est,com isso, condenado teoricamente sombra? Hannah Arendtparece referir-se sem a devida distncia crtica ao desprezo daAntigidade por homens que se restringem ao privado.15Seusilncio acerca da questo das mulheres irrita, mas nada tem decasual, pois se deve sua fidelidade tradio aristotlica. Aemancipao das mulheres e dos trabalhadores, isto , a destruiodo oikos, seria assim um fenmeno ambguo da modernidade.

    Diferentemente de Rousseau, Hannah Arendt recusa-se a pensar arelao entre liberdade poltica e opresso social como uma aporiada liberdade dos antigos.

    Enquanto o privado totalmente consumido pela repblicade Rousseau, Hannah Arendt lhe reserva alguma estima, conquantomodesta. A obscuridade do privado associa-se idia de proteo eptria, tornando-se um lugar do segredo. Natalidade, corporeidadee mortalidade (situao existencial do homem apoltico) so acolhidas

    nessa obscuridade. O segredo do incio e do fim de uma vida mortals pode ser assegurado onde a claridade da dimenso pblica no

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    penetra.16Para conservar os limites do espao privado, a instituio

    da propriedade privada mostra-se imprescindvel. A propriedadegarante ao homem privado a posse do mundo; no obstante, oprivado no pode tornar-se um fim em si. Mesmo concedendo oregresso ao privado, Hannah Arendt o justifica, em ltima instncia,por razes da prpria vida pblica. Quem deve sua personalidade eidentidade concorrncia exclusiva com seus iguais pode, tambm,reivindicar a obscuridade do privado e do ntimo. Apenas dessemodo o cidado est imune sua banalizao no mbito da

    competio pblica das palavras e dos atos.Entretanto, a tarefa republicana de proteger com cercas e

    limites a vida privada de cada cidado nada tem em comum com aidia moderna dos direitos do homem e do cidado. Para HannahArendt, uma tal concepo abstrata demais. A realidade dosdireitos individuais, alm das fronteiras de uma repblica concreta, impensvel. Em suas anlises histricas, ela transforma a bviaconcorrncia entre os direitos do homem e a soberania do Estadonuma contradio insupervel. Caracteriza os direitos humanoscomo um absoluto que, na sua forma positiva, arruna o Estadorepublicano. Essa crtica do universalismo jurdico acompanha umaviso ctica da moralidade puramente interna, a manifestar todaviaa retirada do indivduo do mundo das aes comuns. Obedecer lei individual equivale a recusar a pluralidade do poltico. Dessaforma, Hannah Arendt compreende a filosofia moral de Kant como

    um solipsismo sem mundo, responsvel contudo pela mentalidadedo petit bon hommena Alemanha e, em ltima instncia, pelasubordinao de um Eichmann ao sistema do terror.17

    Hannah Arendt relativiza amide sua modesta opo depensar positivamente o privado atravs de uma breve histria daperda da vida pblica. Dois eventos marcam esse processo. Os riscosdo espao pblico so to velhos quanto a prpria idia do poltico.E o conflito fundamental entre filosofia e poltica contemporneo

    da fundao da academia platnica. A liberdade do filsofo substituia liberdade poltica dos cidados, pois a vida filosfica pressupe o

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    esvaziamento do poltico, submetendo-o a seus prprios valores.18

    O afastamento do cidado da plis cresce com o surgimento docristianismo, porquanto seu abandono do mundo desvaloriza apreocupao com a res publica, doravante secundria. Nada nos mais estranho [afirma Tertuliano] que a coisa pblica. Essa visocrist dos primeiros tempos poderia figurar, no sentido de HannahArendt, como frmula secular do burgus da sociedade moderna.

    quase desnecessrio acentuar que Rousseau compartilhariaesse mal-estar para com a modernidade burguesa, talvez sem reserva

    alguma. Tambm ele expressa aquele ressentimento republicanoque identifica na prpria filosofia e na religio crist os adversriosda totalidade poltica. J em seu primeiroDiscurso sobre as cincias eas artespretendera resolver o conflito antigo entre os filsofos e arepblica, claro, em favor das exigncias da vida poltica. Aociosidade marca o incio da filosofia e o fim da repblica, advindoo golpe mortal do surgimento do cristianismo, uma vez que o cristodestri a unidade poltica ao separar o sistema poltico e o teolgico.A repblica, ao contrrio, despreza a indiferena do homem cristopela vida pblica. Como Rousseau escreve no fim doContrato social:No conheo nada mais oposto ao esprito social.19

    Terceira tese: ao transformar privacidade em intimidade, asociedade civil desfaz o contraste entre luz e sombra

    A Repblica de Rousseau no tolera a indiferena. Aoregulamentar as res privatae, reclama o corao dos seus cidados.Dessa maneira, toda a vida social predispe-se vontade geral. Noobstante, apesar de todo intento por incorporar os indivduos repblica e abolir a diferena entre o privado e o pblico, oimperativo da transparncia tem apenas carter hipottico, valendo,exclusivamente, no contexto da repblica ideal. Fica claro para

    Rousseau que a era doAncienRgimeno oferece qualquer futuroao ambicionado projeto do reino republicano. Como crtico da

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    sociedade contempornea, Rousseau julgava esse empreendimento

    uma utopia, cujo destino seria comparvel ao da Repblica de Plato.Demascara sua sociedade como sistema inexorvel de carncias, noqual cada um se torna escravo do outro e at o mais inocenteindivduo se transforma em fripon par necessit, malandro pornecessidade. Tal sociedade alis no muito distante da moralidadedo Mackie Messer, em Bertold Brecht no suporta nem exige atransparncia da vida civil. Pelo contrrio, precisa do obscuro, nosendo surpreendente que se inverta ento a metfora republicana

    de luz e sombra. O escuro do privado, inicialmente percebido comoameaa ao pblico, transforma-se, nas condies vigentes, em lugarprotetor do indivduo. Assim, a garantie de lobscuritse apresentacomo caracterstica ambgua da modernidade, pois a salvaguardado privado, na liberdade dos modernos, fez desaparecer o cidado sombra do burgus. Intimidade, est convicto o ctico Rousseau,antecipando talvez Hannah Arendt, no prpria do cidado, massim do homem moderno. Ela tem como condio a perda de ummundo pblico comum, e reconstruir esse mundo perdido no seriamais que ilusrio.

    A filosofia poltica de Hannah Arendt alimenta-se exatamentedessa iluso, pois ela interpreta a transformao do privado emespao ntimo como histria da perda do espao pblico. Essa trans-formao reflete a emergncia da sociedade civil. Ao tornar-se oindivduo um membro da sociedade civil, abre-se um novo captulo

    na histria da vida privada. O privado torna-se intimidade, sendoseu oposto no mais o poltico, mas o social. Com isso, a feiomoderna do privado no menos ambgua que a antiga. A inti-midade da vida privada oferece ao indivduo possibilidades inditasde se realizar, embora custa de um mundo pblico comum. Nessesentido, Hannah Arendt compartilha a preocupao do comuni-tarismo com o moderno unencumbered self. Intimidade e perda deum mundo comum representam assim as duas faces da medalha da

    sociedade moderna, de tal sorte que mesmo o fenmeno do tota-litarismo s pode ser visto sob o prisma dessa dupla perda do mundo

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    pblico e do privado. Primeiro se perde o cidado; em seguida, o

    homem privado. O sistema totalitrio corrompe a publicidadepoltica, servindo-se do terror para transformar intimidade emabandono, em solido, perverso ltima do privado.20

    No entanto, a modernidade burguesa como tal j mostratraos patolgicos. Rompe com o imperativo lgico do republica-nismo:Tertium non datur. O surgimento da sociedade civil marca adecomposio da unidade de oikose plis. Na viso da prpriaHannah Arendt, esse processo s pode ser lido como uma ameaa

    vida poltica. Com isso, os sinais da forma moderna do privado edo pblico burgus esto postos, no sendo surpreendente, dadasas premissas aristotlicas de Hannah Arendt, que o prprio fato dasociedade civil adquira uma conotao pejorativa. A sociedade civilapresenta-se, afinal, como aquele proibidomixtumno qual o pblicotorna-se coisa privada e o privado invade o espao pblico. Peladiluio dos contornos originais, o poltico perde sua feio plural:o pblico v-se reduzido ao governamental, e este, por sua feita, aoadministrativo. Dessa forma, a burocracia recebe the most social formof government. A sociedade moderna reduz, portanto, a comunidadelivre dos cidados a uma representao dos interesses dejobholders.Em linguagem antropolgica: o zoon politikonatrofia-se em homofabereanimal laborans.

    A aplicao dessa idia purista do poltico fica clara nos estudosde Hannah Arendt sobre a revoluo americana e a francesa, docu-

    mentos do desencanto republicano da modernidade.21

    A histriada Revoluo Francesa a histria do seu fracasso, pois, ao se obri-garem soluo da questo social, os revolucionrios arrastam arepblica para o terror. A revoluo americana, ao contrrio, esca-pa a esse perigo por conta de seus pressupostos sociais particulares.Por exemplo, no se confronta com o problema da pobreza e, noobstante tais condies favorveis, os founding fathersno conseguemtransformar a constituio revolucionria da liberdade numa prtica

    duradoura. E no cotidiano da repblica perde-se a paixo do seucomeo.

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    Essa viso ctica de Hannah Arendt resulta da constelao

    aportica em que ela situa liberdade individual e instituio poltica.Alm disso, apesar de toda sua simpatia, Hannah Arendt diagnosticano republicanismo americano uma traio sua prpria causa,porque, com o domnio do burgus sobre o cidado, o socialdetermina o poltico, naufragando a reconstituio revolucionriado espao pblico: a extenso da gora restringe-se cabina eleitoral.

    Hannah Arendt compartilha com Rousseau um profundoceticismo com relao s promessas do governo dos modernos.

    Desconfia tambm do sistema representativo e da profissionalizaoda poltica. E sua alternativa no menos paradoxal que a esperanade Rousseau na democracia silenciosa e forte. Hannah Arendt optapela repblica de conselhos (Rterepublik), metamorfose modernada plis antiga. Por isso simpatiza com associts populairesna Frana,com os sovietes russos, com a revolta do povo hngaro em 1956 ecom o movimento dos estudantes de 1968. Nessas formaesespontneas do poder, confia, realizar-se-ia a liberdade poltica noespao pblico.

    Mesmo privilegiando fortemente a idia da liberdade positiva,Hannah Arendt de modo algum exige a participao poltica detodos. O regime dos conselhos um governo de poucos. S quemefetivamente se interessa pelo mundo deveria ter voz no processodo mundo.22Dessa maneira, a instituio de eleies gerais revela-se dispensvel, e a retirada regulada da maioria da vida poltica

    pode-se dar atravs das liberdades civis negativas, antes desprezadas.Tais liberdades conferem substncia indiferena pelo mundopblico. Como o constata cinicamente, a liberdade moderna dapoltica revela-se a parte politicamente mais importante da nossaherana crist.23

    Seja qual for o julgamento que se faa dessa interpretaoparadoxal da liberdade poltica e da liberdade da poltica, nela seespelha exemplarmente a problemtica do conceito de liberdade

    em Hannah Arendt. Ao entender liberdade como espontaneidadee incio absoluto de um processo, Hannah Arendt coloca a liberdade

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    numa tenso insustentvel com qualquer forma de instituio. Por

    conseguinte, est excluda uma proteo duradoura do espaopblico. Na histria, a unidade de liberdade e poltica, espontanei-dade e instituio, realizada de forma paradigmtica na sua visoda Antigidade, aparece como fenmeno-limite, sendo ademaisraros os momentos histricos da liberdade. A prpria idia da purezado poltico leva a uma resignao inevitvel. Na forma de umaclaustrofobia republicana, Hannah Arendt v o espao pblicoameaado em todas as suas fronteiras: pela interveno do privado,

    pelas irrupes do social, pelas restries da lei e da constituio, e,finalmente, pelas exigncias do direito universal e da moralindividual. Em face de todos esses temores, coloca-se a questo desaber o que resta ainda como autntico objeto de uma poltica toesvaziada. Uma competio de palavras e aes? luz do pblico, afinalidade da poltica permanece s escuras.

    Pode-se perguntar se os problemas resultantes de umaconcepo antiga da poltica poderiam ser resolvidos pela obra tardiae no-escrita da faculdade do juzo, que ocuparia Hannah Arendtcom o acabamento de The life of mind.24Fica claro que a viradatardia de Aristteles a Kant exige uma nova determinao do pblicoe do privado. Com isso, a idia de um pensamento representativorelativiza a representao antiga de um agir comum e altamenteexclusivo dos cidados como paradigma do poltico. Um talpensamento de traos kantianos poderia deixar de lado a questo

    do fim ltimo da poltica para dedicar-se ao problema de comouma vontade geral razovel poderia ser produzida atravs de juzospolticos. A faculdade poltica de julgar (politische Urteilskraft) viria aser a terapia proposta por Hannah Arendt, em seus escritos tardios,contra o empobrecimento moderno do senso comum. Com essaviso bem kantiana da poltica, ela poderia qui minimizar o carterpatolgico e ameaador da modernidade.

    Ainda que a tentativa de Hannah Arendt de ler a crtica da

    faculdade de julgar como filosofia poltica deva ser um fecundo mal-entendido do pensamento de Kant, ela nos d impulso a uma nova

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    determinao do privado e do pblico. A faculdade de julgar permi-

    tiria romper a estrita contraposio das duas esferas, estabelecidassegundo o padro antigo. Levantar novamente o plano topogrficodo privado e do pblico e integrar o social dentro de suas fronteiras,isso ficaria sob a responsabilidade do julgamento crtico dacomunidade dos prprios cidados.25Seria necessrio, nessa comu-nidade, que tivessem voz mesmo os que Hannah Arendt deixarano obscuro do privado. Alm disso, esse privado no mais deveriaser compreendido como pura privao. Ele receberia o estatuto de

    um intocvel por conta do qual se conferiria dignidade esferapblica. Com isso, a relao antiga entre privado e pblico seriainvertida, no mais sendo passvel de dvida a prioridade doindivduo sobre a comunidade poltica. O homem cria o pblico.

    Essa idia figurava como ponto de partida no Contrato socialde Rousseau. O fato de ele t-la sacrificado pelo interesse da rep-blica algo que faz parte das vrias contradies do seu pensamento.

    Com seus paradoxos, porm, Rousseau parece mais prximo donosso presente do que com suas certezas tericas. Isso tambm podeser dito, a seu modo, da prpria filosofia poltica de Hannah Arendt.Mesmo se preferisse sua patologia da modernidade s visesnormativas, a importncia da sua obra na filosofia poltica contempo-rnea resta indubitvel. Afinal de contas, a verdade sobre a sociedadee a poltica no se restringe aos guardies da constituio. Tambmvem luz nas malandragens sombrias de um Mackie Messer.

    ABSTRACT: Both Jean Jacques Rousseau and Hannah Arendt develop their ideals of therepublic in the metaphoric concept of light and shadow. The paper focuses on the darkside of the republic: the private sphere of the citizen. According to the internal logic ofboth theories, the archeology of the private life starts with a political concept. Bothauthors are skeptical about the modern view of private life as being a priority. They tendto agree more with the classical political philosophy. Hannah Arendt recalls the Aristotelianseparation between Polis and Oikos, public and private spheres. Rousseau, however, callsfor political unity in a Platonic manner. The republic demands the complete transparencyof both public and private life.

    Key words: Rousseau, Hannah Arendt, republic.

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    LUZ E SOMBRA...

    89PHILSOPHOS 7 (1): 75-90, 2002

    DOSSIS

    Notas

    1. Bertold Brecht, Die Schlustrophen des Dreigroschenfilms, 1930. In:ders., Stcke 2(=Gesammelte Werke 2, Werkausgabe), Frankfurtam Main/ Zrich 1976, S. 497.

    2. Cf. Hanna Fenichel Pitkin, Justice: on relating private and public. In:Political Theory 1981, p. 327-352, 19; Seyla Benhabib, Modelle desffentlichen Raums: H annah Arendt, die liberale theorie und JrgenHabermas. In: Soziale Welt 1991, p. 147-165, 42.

    3. Cf. Denise Leduc-Fayette,Jean-Jacques Rousseau et le mythe de lantiquit,Paris, 1974.

    4. Par ce qui sest fait considrons ce qui se peut faire [...]. La Rpu-blique romaine toit, ce me semble, un grand Etat, et la ville deRome une grande ville [...]. Cependant il se passoit peu de semainesque le peuple romain ne fut assembl, et mme plusieurs fois. [...]ce seul fait incontestable rpond toutes les difficults: De lexistantau possible la consquence me paroit bonne [...]. Le peuple

    assembl, dira-t-on! Quelle chimere! Cest une chimere aujourdhui,mais ce nen toit pas une il y a deux mille ans (Du contrat social,III425sq.). Os escritos de Rousseau so citados segundo a seguinteedio: ROUSSEAU, Jean-Jacques, uvres compltes.Editado por B.Gagnebin. Paris: M-Raymond, 1959. (Bibliothque de la Pliade).

    5. mile ou de lducation,IV 249.

    6. Du Contrat social,III 437.

    7.Du Contrat social, manuscrit de Genve

    III 287. Cf.mile,

    IV 248:Forc de combattre la nature ou les institutions sociales, il fautopter entre faire un homme ou un citoyen; car on ne peut faire lafois lun et lautre.

    8. A condio humana. Traduo de Roberto Raposo, posfcio de CelsoLafer. Rio de Janeiro, 1997. p. 66.

    9. Discours sur lorigine de lingalitparmi les hommes,III 189.

    10. Lettres crites de la Montagne, III 881.

    11. Cf. Lester G. Crocker,Rousseaus social contract: a interpretative essay.Cleveland, 1968.

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    Karlfriedrich Herb

    90 PHILSOPHOS 7 (1): 7590 2002

    12.Benjamin Constant, De la libertchez les modernes. crits politiques,

    editado por Marcel Gauchet, Paris, 1980. Sobre a gnese da liberdadedos modernos, cf. Karlfriedrich Herb, Brgerl iche Freiheit. PolitischePhilosophie von Hobbes bis Constant, Freiburg im Breisgau/Mnchen,1999.

    13.La Nouvelle Hlose,II 424.

    14.Cf. A condio humana, captulo II: As esferas pblica e privada.

    15.A condio humana, p. 55.

    16.Traduo da verso alem: Vita activa oder vom ttigen Leben,

    Mnchen/ Zrich, 1981, p. 7017. EICHMANN. Jerusalem: a report on the banality of evil.New York, 1965.

    18. Cf.Was ist poli tik? fragmente aus dem Nachla, edio de Ursula Ludz,prefcio de Kurt Sontheimer, Mnchen/ Zrich, 1993, p. 54-57.

    19.Du contrat social, III, 465.

    20.The origins of totali tarism, New York, 1951. Um estudo mais profundopoderia mostrar at que ponto a anlise do fenmeno do

    totalitarismo j est determinada pelas futuras categorias da filosofiapoltica emThe human condition(1958).

    21. On revolution,New York, 1963.

    22. Ibidem, p. 360.

    23.Idem.

    24.Lectures on Kants political philosophy, Chicago, 1982.

    25.Cf. Seyla Benhabib,The reluctant modernism of Hannah Arendt. NewYork, 1997.