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São Luís – MA, 25 a 28 de agosto 2009
POLÍTICAS URBANAS PARA O RIO DE JANEIRO, SÃO PAULO E BELÉM NA BELLE ÉPOQUE
Fania Fridman Coordenação
“Rio da Belle Époque: grandes projetos no imaginário da cidade”
Lucia Helena Pereira da Silva
Universidade Severino Sombra/RJ A moderna configuração da cidade do Rio de Janeiro foi fruto da atuação de vários agentes. Neste trabalho buscamos identificá-la por meio de programas e do imaginário carioca acerca destas intervenções. A partir do aterro, do saneamento e da construção de dois bairros nos anos 1920 e 1930 - o Jardim Botânico/Lagoa e a Urca - analisamos de que forma tais projetos impactaram na população e na formulação ideológica construída pela imprensa e pelo Estado acerca desta nova estrutura urbana. Palavras chaves: planejamento urbano, imprensa, Rio de Janeiro
“A construção da São Paulo operária”
Luciana Alem Gennari
Universidade Federal do Rio de Janeiro Os bairros operários paulistanos foram constituídos e consolidados nas primeiras décadas do século XX. Se, por um lado, o Estado assumiu de maneira reticente o controle deste processo e, por outro, a diversidade do montante de capital investido nem sempre contou com mão de obra qualificada, a tecitura urbana resultante foi homogênea. Problematizando o papel de cada um dos atores envolvidos neste processo, discutimos os limites da atuação pública e privada na consolidação de alguns bairros da cidade de São Paulo. Palavras-chave: Habitação, São Paulo (cidade), Planejamento Urbano
“Interpretação da paisagem urbana de Belém através de seus jardins”
Rubens O. de Andrade
Universidade Federal do Rio de Janeiro Pretende-se aqui debruçar-se sobre uma Belém novecentista e seus jardins analisando como esses espaços físicos influenciaram no cotidiano do cidadão em uma cidade equatorial com matizes culturais diversas. A nova paisagem expôs o homem amazônico e/ou estrangeiro aos sentidos e desenhos forjados a partir de propostas urbanísticas e, neste sentido, procura-se desbravar, no campo disciplinar das relações cidade/sociedade versus natureza, os seus caminhos de formação. Palavras-chave: jardins, Amazônia, Belém
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RIO DA BELLE ÉPOQUE: grandes projetos no imaginário da cidade
Lúcia Silva1
RESUMO A moderna configuração da cidade do Rio de Janeiro foi fruto da atuação de vários agentes. Neste trabalho buscaremos identificar a ação do Estado por meio de grandes projetos e a relação destes com a construção do imaginário da população da cidade acerca do que seriam grandes e pequenas intervenções. O impacto construído socialmente pelos habitantes, “mídia” e Estado definiria nos anos 20 e 30 o que seriam grandes e pequenas intervenções na estrutura urbana. A partir do aterro, saneamento e construção de dois bairros, Jardim Botânico/Lagoa e Urca, analisaremos a construção de grandes projetos no imaginário da cidade. . Palavras-chave: Rio de Janeiro, urbanização, política.
ABSTRACT
The modern configuration of Rio de Janeiro city was a result of many actors. In this paper we try to identify the State’s activity regarding the big projects and this relation with the built of a popular imaginary concerning big and little interventions. Palavras-chave: Rio de Janeiro, urbanization, politics.
1 INTRODUÇÃO
Urca e Jardim Botânico, dois bairros da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro
que surgiram durante a gestão de Calos Sampaio (1920/22) em processos muito
semelhantes, mas o primeiro diferentemente do segundo não teve grande impacto na
imprensa da cidade, aparecendo muito pouco nos periódicos. Este trabalho procura discutir
as possíveis razões do silêncio ao processo de construção da Urca em detrimento do
grande espetáculo que foi o aterro, saneamento da lagoa e loteamento do bairro do Jardim
Botânico; e principalmente por que mesmo sendo similares um teve visibilidade social e o
outro não. Quais as possíveis razões deste silêncio.
A historiografia costuma se debruçar sobre os grandes projetos realizados pelo
Estado na cidade. No caso do Rio, a abertura da Avenida Central, da Presidente Vargas, do
1 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pós-Doutoranda do Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do GESTHU/IPPUR/UFRJ.
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aterro do Flamengo e o arrasamento do Morro do Castelo foram objetos de uma vasta
bibliografia em detrimento, por exemplo, do surgimento de bairros como Vila Isabel. Vários
autores como Osvaldo Porto Rocha e Sérgio Pechman quando analisam as duas primeiras
décadas do século XX discorrem sobre uma historiografia que ratifica a imagem das
transformações urbanas ocorridas no Rio de janeiro do inicio do século obedecem ao claro propósito de fazer do mesmo um território que pudesse, de um lado, servir de base para uma articulação mais orgânica da economia brasileira com sistema capitalista internacional, e de outro, expressar, nos planos político e ideológico, os ideais de progresso e modernidade decantados por suas classes dominantes (PECHMAN apud KESSEL, 2001:65)
Mesmo compartilhando a idéia que é possível identificar em muitos momentos
uma estreita relação entre a atuação do poder público e os interesses das classes
dominantes, deve-se ter em mente as complexas relações políticas destes grupos com o
governo municipal e com o federal no estudo das grandes intervenções na estrutura urbana.
Da mesma forma que as classes dominantes não são um bloco único, apesar de
hegemônica, elas não agem sob a égide de um interesse geral, principalmente no que se
refere aos usos da cidade.
Os governos, nos níveis municipal e federal, apesar de compromissos políticos
diferenciados, eram vistos como trabalhando em “sintonia”, pelo menos até a década de 30,
principalmente porque o prefeito era uma escolha do presidente da república. Ainda que
houvesse tensão entre as demandas dos políticos municipais e aquelas construídas pelo
governo federal para a cidade, a atuação da prefeitura, em última instância perfilava-se ao
segundo.
Parte da população, pelo menos aquela que lia os periódicos da cidade,
reconhecia esta tensão e via o Conselho Municipal como um espaço onde seria possível
explicitar suas demandas e fazer, se necessário, contraponto às ações do governo federal.
O Rio de Janeiro nos primeiros anos da década de 20, momento em que surgiram os dois
bairros na zona sul, se preparava para os festejos do centenário e convivia com propostas
políticas diferenciadas.
Para dimensionar socialmente os processos de emergência dos dois bairros,
muitos elementos podem ser analisados, aqui serão explorados três: os projetos e seus
principais agentes, os aspectos políticos envolvidos nos projetos e as imagens construídas
pela população a partir dos periódicos do período, naquilo que genericamente ficou
conhecido como Rio da Belle Époque.
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2 OS PROJETOS E SEUS PRINCIPAIS AGENTES
Pensada inicialmente para ser campus universitário, a região conhecida como
Praia da Saudade, antes das comemorações do Centenário da Abertura dos Portos em
1908 já possuía um conjunto de edificações ligado à administração pública. No início da
praia encontrava-se o hospital dos alienados, próximo a este encontrava-se a escola
Benjamin Constant (para crianças cegas). A região tinha sido planejada para abrigar uma
universidade ainda no Império. A sede da universidade, já com outra função foi concluída
em 1908 para a exposição nacional; desde 1900 havia uma linha de bonde cujo ponto final
era na escola superior de guerra na Praia Vermelha, integrando aquela localidade à cidade.
As águas da baia da Guanabara batiam nos morros da Urca e Pão de Açúcar e a
única forma de se chegar ao forte São João era pelo caminho margeando os paredões,
atual rua São Sebastião. A idéia de um aterro e a formação de um bairro novo eram
propostas que circulavam entre os empresários desde o final do XIX, mas só seria
concretizado na gestão do engenheiro Carlos Sampaio.
Fonte: Mapa feito por Agache em 1930. Extraído de www.urca.net/mapas.htm
Figura 1 - Mapa da área aterrada do bairro da Urca
Empresa da Urca S/A foi instituída em 1921 e deu início ao aterro sobre o qual
seriam construídas as 13 ruas e 4 avenidas, formando o bairro da Urca. O contrato de 1922
apresentava o plano de loteamento do bairro, deixando claro que área conquistada da
enseada de Botafogo seria destinada às classes abastadas. O loteamento foi concebido a
partir do conceito de cidade jardim, cuja inspiração era reintroduzir a cidade no campo por
meio dos jardins e arborização.
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Fonte: Foto Augusto Malta. Extraída de www.urca.net/mapas.htm
Figura 2 - Foto da Urca antes do Aterro
Com o aterro concluído em 1923 e com os arruamentos aprovados durante a
gestão de Alaor Prata (1922/26), os pequenos lotes que compunham o bairro começaram a
ser vendido. Segundo Mello Junior (1988) a partir da iniciativa de Otavio Moreira Penna e
com obras do engenheiro Eduardo Parissot, os lotes de pequena dimensão acompanharam
a escala do espaço do próprio bairro, inclusive com a construção do hotel de apenas 34
quartos, que em 1933 se transformaria no Cassino da Urca.
O processo de aterro foi pouco divulgado na imprensa carioca, e quando era
noticiado sempre em conjunto com as demais obras que “varriam“ a cidade para as
festividades do Centenário da Independência. Assim, a população de uma maneira geral,
acompanhou o surgimento de um novo bairro, cujo processo decorreu sem polêmicas nos
periódicos. Ao contrário do Jardim Botânico que surgiu do aterro da Lagoa Rodrigo de
freitas.
A Lagoa de Sacopenapã, denominação dada pelos indígenas à região
compreendida entre o sopé das montanhas do Maciço Carioca e a restinga de Ipanema.
Segundo Reis (1986) utilizando-se do dicionário Salvador Pires Ponte, Ipanema significa
lagoa pútrida (água imprestável) e Sacopenapã lagoa de socó, ave que costuma se
alimentar de peixes mortos, muito comum na Rodrigo de Freitas (nome de um dos
proprietários das terras que margeavam a lagoa).
Desde o século XIX, notadamente depois da chegada da família real e a
abertura do Jardim Botânico, a lagoa fora alvo de projetos de saneamento, principalmente
porque periodicamente ocorria mortandade de peixe e proliferação de algas. Ocorrência
fartamente documentada pelo Marques de Lavradio (1877) e Barão de Teffé (1880) a região
se tornou objeto de projetos em função das enchentes ocasionais que alagavam a rua que
dava ao Jardim Botânico.
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Área pouco povoada, inclusive abrigando nos anos de 1880 o Quilombo do
Leblon; no início da república receberia três indústrias têxteis (São Felix, Carioca e
Corcovado) causando rápido crescimento populacional. Subúrbio distante do centro,
denominado de Gávea, tinha em 4.712 habitantes em 1890 e em 1906 já contava com
12.570, destes, segundo Torres (1990), aproximadamente 5 mil eram composto pelos
operários e seus familiares. Assim, ainda no final da década de 10 a região podia ser
classificada como bairro operário.
Fonte: Pintura extraída do livro Rio Antigo by Camões, p.75
Figura 3 - Lagoa Rodrigo de Freitas em 1870
O governo, ainda em 1890, após concorrência entregou para empresa
Companhia de Melhoramento da Lagoa e Botafogo a concessão da execução das obras do
projeto de saneamento do engenheiro Révy. O projeto previa a construção de dois canais
para captar as águas dos rios que descem do maciço como forma impedir as enchentes,
previa o aterro da região de charco onde atualmente é o jóquei além de dragar o fundo da
lagoa. Nada disto foi feito e rapidamente a população apelidou a empresa de “companhia de
pioramentos da Lagoa e Botafogo”.
Se no século XIX a insalubridade da lagoa era vista materialmente a partir da
proliferação das algas e da mortandade de peixes, e esta deveria ser combatida como forma
de evitar a proliferação de miasmas que poderiam atingir o centro. No início século XX, a
insalubridade era vista como fruto da poluição das fábricas e dos hábitos da classe operária.
A região ocupava a freguesia da Gávea, ia desde a Fonte da Saudade até a Barra da Tijuca,
os terrenos da freguesia eram livres de pagamento de foros à municipalidade, exceto a zona
litorânea da Vila Ipanema (à marinha).
A linha de bonde Jardim Botânico incrementou a ocupação ainda no XIX, mas o
que acelerou o crescimento populacional foi a implantação das indústrias têxteis, tanto que
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em 1920 a freguesia contava com 15.270 habitantes. Segundo o censo, a região seria um
“arrabalde com vocação para centro industrial”. Terrenos baratos e com muitas áreas livres,
principalmente nas áreas alagadiças como as da praia do Pinto, uma população pobre se
instalou em torno das fábricas.
Durante os seis meses da gestão de Paulo de Frontin em 1919, foi construída
uma ponte ligando as avenidas Vieira Souto em Ipanema e Delfim Moreira no Leblon com
um vão de 9,8 m, pois naquele momento o projeto era impedir a renovação das águas
transformando-a lagoa de água doce. “Essa solução foi um fracasso: em pouco tempo
apareceu uma mosquitada infernal e a malaria voltou a grassar, em proporções alarmantes.
O mesmo Frontin mandou destruir o vertedouro que ele havia construído” (TORRES,
1990:46).
Fonte: Mapa extraído da Revista Brasileira de Engenharia, tomo V N ,1 jan 1923
Figura 4 - Projeto de saneamento de Saturnino de Brito
Carlos Sampaio ao assumir em junho de 1920 associou o arrasamento do Morro
do Castelo ao conjunto de intervenções em toda a cidade como forma de prepará-la para os
festejos do Centenário. Em resposta ao diretor da Repartição de Saneamento das Zonas
Rurais, Belisário Pena (O Dia de 22/4/21), que se mostrara preocupado com a possibilidade
das reformas serem apenas maquiagem para a efeméride, o prefeito em sua mensagem
anual à Câmara Municipal (1/6/21) detalharia todo o projeto:
Solução definitiva e de imediata execução a um problema proposto e discutido desde algumas dezenas de anos [...]. A execução deste projeto,
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estou convencido, operará uma transformação maravilhosa daquela zona, até aqui desacreditada pelo flagelo do impaludismo, e que passará a ser um dos bairros mais encantadores do Rio de Janeiro. As obras delineadas no projeto que aprovei compreendem: 1) Um cais de contorno da lagoa, construído sobre enrocamento e tendo a extensão de 5.100 metros 2) Um aterro das margens baixas e alagadiças, abrangendo uma área de 1.345.800 metros quadrados 3) A canalização e regularização de todos os rios e das águas pluviais para a bacia da lagoa 4) O calçamento e arborização de todos os logradouros públicos estabelecidos na área aterrada 5) A fixação do regime da comunicação entre a lagoa e do oceano” (Anaes do Conselho Municipal jun/jul 1921)
O projeto era do renomado engenheiro Saturnino de Brito. As discussões
técnicas tomaram as páginas das revistas especializadas, notadamente às questões
relativas ao tipo de água da lagoa (doce ou salgada) e largura do canal da barra (Jardim de
Alá), mas estas pouco saíram na grande imprensa. A grande discussão que mobilizou os
jornais foi a doação de grande parte do aterro para a construção do jóquei. Quase todo o
projeto foi realizado, no aterro surgiram ruas novas e o loteamento ficou por conta do
empresário Lineu de Paula Machado.
3 ASPECTOS POLÍTICOS DOS PROJETOS
Os dois bairros surgiram no bojo das reformas realizadas para as festividades do
Centenário da Independência. O engenheiro Carlos Sampaio assumiu a prefeitura logo após
seu antecessor em sua fala anual ao Conselho Municipal adotar a posição de sanear as
finanças municipais em detrimento das comemorações. Paulo de Frontin, em sua curta
passagem pela prefeitura havia deixado a municipalidade em péssima situação financeira,
fazendo com que seu sucessor, Sá Freire, cauteloso em relação a novos gastos. Essa
cautela lhe custou o cargo
Carlos Sampaio fora chamado com a incumbência de preparar a cidade os
festejos. Em nome das festividades ele legitimou sua intervenção, tendo apoio político da
maioria da bancada dos senadores, capitaneada pelo seu amigo Paulo de Frontin, e aval do
presidente para fazer os empréstimos necessários às obras, ele pode, ainda em 20
transformar a cidade “em um grande canteiro de obras”. Com total apoio federal ele
encontraria resistência na câmara municipal. A ação do prefeito para minimizar a oposição
dos vereadores foi desmoralizar a câmara, esta enfraquecida diminuía a oposição
organizada e aumentava a força política do prefeito, tornando a posição de Carlos Sampaio
inconteste. A revista Careta ainda em 21, por meio de artigo assinado por P T T, deixava
claro que percebia o jogo: “Não está direito, não é sincero, não é honesto. Se a queda do
prestigio do conselho tivesse como corolário o desprestigio do prefeito, compreende-se. Mas
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é o contrário. E isso se dá em tempos epitacianos. Insensatamente estamos concorrendo
para a criação das ditaduras” (CARETA de 31/12/21)
Com os holofotes nas comemorações, a oposição controlada e as atenções
voltadas para o maior empreendimento, o arrasamento do Morro do Castelo, Carlos
Sampaio pode colocar em prática um conjunto de idéias e projetos por anos acalentados.
Politicamente, a gestão do prefeito filiava-se ao do furacão Paulo de Frontin. Não se sabe ao
certo por que Epitácio Pessoa nomeou e destituiu Frontin, para seis meses depois colocar
no cargo um profissional que representava sua continuidade, tanto de idéias quanto no seu
jeito de agir; o certo é que Sampaio diferentemente do primeiro tinha liberdade e utilizava o
argumento do aparelhamento da cidade para as comemorações para legitimar suas ações.
Afirmando não ser político, portanto ressaltando o lado técnico, Carlos Sampaio
afirmava que tinha sido nomeado por ser engenheiro e que sua gestão seria ágil e eficiente
como as empresas dele. Administrativamente procurou articular lucratividade com
racionalização na alocação dos recursos, e efetivamente interveio em toda cidade. Desde a
construção do matadouro em Santa Cruz, passando pelo aterro de pântanos em Benfica e
Jacarepaguá, a construção de um hospital no Méier, saneamento e urbanização da Lagoa,
aterro e urbanização da Urca, até finalização das obras começadas por Frontin relacionadas
à urbanização dos bairros de Copacabana, Ipanema e Leblon.
Nenhuma destas obras teve o impacto do arrasamento do Morro do Castelo e
por conta disto algumas das discordâncias política ou mesmo técnicas em relação às outras
intervenções não tiveram tanta visibilidade. A oposição política, representada pela câmara
municipal foi habilmente desarticulada por meio de uma campanha de desmoralização.
Orquestrada pelos correligionários do prefeito, a campanha denunciou alguns negócios e
benefícios dos vereadores. Desacreditada, a câmara acompanhou a gestão. Quanto às
discordâncias técnicas, o próprio prefeito procurou respondê-las, sempre enfatizando o
domínio e o seu conhecimento da engenharia.
Formado pela politécnica em 1880, juntamente com Paulo de Frontin, foi um dos
sócios fundadores do Clube de Engenharia, amigo e sócio de Vieira Souto em vários
projetos, inclusive no arrasamento do Morro do Senado. Acionista da empresa
Melhoramento do Brasil em sociedade com outros membros do Clube, como Jacob
Niemeyer, Candido Gafrée, Eduardo Guinle e os dois amigos. Através da Melhoramentos
esteve envolvido nas principais obras da república, ganhas em concessão. A trajetória de
Carlos Sampaio o fazia representante de um grupo de profissionais cujo interesse misturava
atuação profissional, vida pública e articulação política.
A proximidade do engenheiro com os empresários se acentuaria em sua gestão.
Tal como apontou Kessel, Carlos Sampaio promoveria de forma inequívoca “a parceria entre
o poder público e os investidores privados” (2001; 53) em quase todas as obras realizadas
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em seu mandato. Em maio de 22 o semanário A Careta discretamente denunciava a
articulação do prefeito com os “capitalistas” no pequeno artigo de Lima Barreto. Irônico o
cronista nos conta que um empresário estava construindo uma fábrica entre os bairros de
Todos os Santos e Inhaúma e que por conta disto a prefeitura estava arrumando a rua onde
se localizava a indústria, o problema era que os meio-fios atrapalhavam o trânsito, pois
ainda não estavam colocados. No final Lima Barreto escrevia: “poetas por poetas sejam
lidos; capitalistas por capitalistas sejam... atendidos” (A CARETA de 28/05/22)
A gestão de Carlos Sampaio se notabilizou por inúmeros escândalos e o próprio
prefeito, anos mais tarde ainda tentando responder aos que ele designava de industriais da
calunia, queixava-se de o terem acusado de “ter entrado rico e saído podre de rico”
(SAMPAIO, 1924:4). Buscou responder sempre com argumentos técnicos, negando as
opções políticas ou interesses financeiros na escolha e na implementação dos projetos,
desqualificando aquilo que ele não reconhecia como discurso competente. Dentre os
diversos casos ruidosos apresentados na imprensa, um dizia respeito ao loteamento do
Jardim Botânico.
A discussão na imprensa começou no início da construção do Jóquei, em
novembro de 1922, com a colocação da pedra fundamental três dias antes do fim da gestão
da dupla Epitácio Pessoa e Carlos Sampaio. O interessante é que mesmo com a polêmica
da doação do terreno ao jóquei, a obra não parou na gestão seguinte de Alaor Prata. As
justificativas da doação foram de duas ordens: uma técnica, na medida em que o
engenheiro ratificava que naquele local não poderia ter edificações por causa das condições
do aterro; a outra extrapolava as questões técnicas, pois se relacionava ao uso e ao próprio
equipamento que o jóquei poderia representar ao novo bairro. Nas palavras do prefeito “a
imaginação e iniciativa do benemérito presidente do Jockey Club se deve este
importantíssimo melhoramento, qual a localização de um prado de corridas nesta zona,
onde o aterro feito não permitiria outra utilização imediata” (SAMPAIO, 1929: 59)
O benemérito citado era nada menos que Lineu de Paula Machado, com quem o
prefeito havia discutido o projeto e a escolha do lugar, pois alguns engenheiros queriam que
o prado fosse do lado de Ipanema ou Leblon. A gestão de um pouco mais de dois anos foi
rica em polêmica na imprensa, a maioria destas discussões utilizava-se dos aspectos
estético para ganhar visibilidade nos diversos periódicos. A população acompanhou e
participou dos grandes debates, principalmente aqueles referentes ao desmonte do morro
do Castelo. No final de seu mandato nenhuma obra estava concluída. Foi durante a gestão
de Alaor Prata, sob estádio de sítio, que todas as obras foram completadas, inclusive o
arrasamento do morro do Castelo.
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4 AS IMAGENS DO RIO DA BELLE ÉPOQUE
O Rio belle époque aparecia nas páginas dos periódicos por meio das notícias
de cinema, de imagens da Avenida Central e já no início dos anos 20, dos banhos de mar,
das festas, piqueniques e jantares. Era este Rio que estava exultante com a posse de
Carlos Sampaio e esperava que a cidade fosse embelezada para o Centenário. “Esse Rio
conhecia o prefeito de outros carnavais”, seja nas associações com Farqhuar, Pearson e
Mackenzie (Light), seja na associação pela engenharia com Passos e Frontin. As classes
que representavam esta cidade construíram um discurso que faziam do moderno a negação
do passado.
Desde os tempos de Passos, a Avenida Central representava no imaginário da
cidade, o desejo do fim da memória de um rio colonial em prol de um ideal cosmopolita,
tinha nos nomes afrancesados e no modo de vida urbano imaginado pelas letras do popular
Constallat, ícones de modernidade. Civilização, modernidade e progresso eram palavras de
ordem que se materializam em novos equipamentos e serviços urbanos. Aos que se
colocavam contrários às reformas urbanas preconizadas por este grupo eram designados
saudosistas e atrasados. Manchetes como “O Rio do amanhã” serve para ilustrar, a aposta
em um futuro sem referência no passado.
Se ficássemos apenas com os discursos deste grupo, a imagem que
sobressairia era de um grupo
caudatários de uma sólida vertente do pensamento político brasileiro, calcada no ideário cientificista de valorização dos padrões racionais, universalizantes, civilizatórios, aqueles que defendiam o arrasamento do morro se declaravam escandalizados diante da convivência promiscua da civilização com a barbárie. (MOTTA, 1992, p. 57).
A modernidade preconizada por este grupo passava pela modernização da
estrutura urbana, disciplinarização de seu uso e a exclusão de grande parte da população.
Com um discurso potente, esse grupo desqualificava os demais projetos de modernidade
que circulavam na sociedade, principalmente aqueles que buscavam de alguma forma não
dissociar o passado do presente (coisa que mais tarde os modernistas fariam) e integrar as
diversas classes pela educação. O grupo, naquele momento era capitaneado pelo prefeito,
estava pondo em prática um projeto acalentado e discutido desde início do século.
Apesar de polêmico na imprensa poucos articulistas perceberam o sentido do
conjunto das transformações implementado pelo prefeito, exceção feita a Lima Barreto que
desde o inicio se mostrou cético quanto a modernização patrocinada pelo governo municipal
com total apoio do governo federal. O escritor, em suas palavras explicita aquilo que Rolnik
(1997) denominou de modernização excludente. Artigo publicado quando a cidade era um
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grande canteiro de obras, é possível entender uma faceta do que seria o projeto Rio belle
époque para o grupo, a começar pelo título: o prefeito e o povo.
O senhor doutor Carlos Sampaio é um excelente prefeito, melhor do que ele só o Senhor Frontin. Eu sou habitante da cidade do Rio de Janeiro e, até, nela nasci; mas apesar disto, não sinto quase a ação administrativa de S. Exa. Para mim, sua excelência é um grande prefeito, não há dúvida alguma; mas de uma cidade de Zambézia ou Conchinchina. Vê-se que a principal preocupação do atual governador do Rio de Janeiro é dividi-lo em duas partes: uma será a européia e a outra, a indígena... Lembro-me dos silhares de caminhos romanos e do asfalto com que a prefeitura está cobrindo os areais desertos de Copacabana. Por que será que ela não reserva um pouquinho dos seus cuidados para essa útil rua das minhas vizinhanças, que até é caminho de defunto para o cemitério de Inhaúma... Penso que essa predileção dos prefeitos por Copacabana, há milonga; nada mais digo, porquanto tenho aconselhado aos meus vizinhos proprietários que a usem também... De resto, Municipalidade supõe-se ser, segundo origem, um governo popular que de atender, em primeiro lugar, ao interesse comum dos habitantes da cidade (comuna) e fornecer o mais possível a vida da gente pobre. Esses hotéis serão para ela? Municipalidades de todo o mundo constroem casas populares; a nossa, construindo hotéis chics, espera que, à vista do exemplo, os habitantes da Favela e do Salgueiro modifiquem o estilo de vida de suas barracas. Pode ser... O Senhor Carlos Sampaio também tem se preocupado muito com o plano de viação geral da cidade. Quem quiser, pode ir comodamente de automóvel da Avenida a Angra dos Reis, passando por Botafogo, Copacabana; mas, ninguém será capaz de ir a cavalo do Jacaré a Irajá Todos os seus esforços tendem para a educação do povo nas coisas do luxo e do gozo. A cidade e seus habitantes, ele os quer catitas... O Teatro Municipal é uma demonstração de como a municipalidade pode educar o povo, muito a contento. Construiu ali, na Avenida, aquele luxuoso edifício que nos está por mais de vinte mil contos. Para se ir lá, regulamente, um qualquer sujeito tem que gastar, só em vestuário, dinheiro que dá para ele viver e família, durante meses; as representações que lá se dão, são em línguas que só um reduzido número de pessoas entende; entretanto, o teatro Municipal, inclusive seu porão pomerizado, está concorrendo fortemente para a educação dos escriturários do Méier, dos mestres de oficina do Engenho de Dentro e dos soldados e lavadeiras da Favela. Não se pode negar... (CARETA 15/01/21)
Lima Barreto deixava claro que o prefeito considerava prioridade dotar uma parte
da cidade de serviços e equipamentos urbanos, inclusive porque em outros artigos ele se
manifestou contra os gastos excessivos das obras de urbanização que na prática estavam
gerando déficits de habitação para uma parcela da população e a estava empurrando para a
sub-urbe ou favelas. Entre os volumosos empréstimos, sempre com aval do governo federal
e senado, e o “silêncio” da câmara municipal, a gestão Carlos Sampaio consolidou a feição
do Rio moderno, com vias largas, calçadas espaçosas, transporte, luz, gás e telefone,
geograficamente em uma região da cidade, a zona sul.
O articulista buscou construir uma linearidade entre a construção do Teatro
Municipal, a gestão de Paulo de Frontin e a de Carlos Sampaio, montando a filiação de um
projeto que tem uma dupla face: a cidade indígena dos subúrbios abandonados a sua
própria sorte (e da iniciativa privada), e a cidade européia patrocinada pelas grandes
intervenções do Estado. Neste sentido, o aparecimento dos bairros da Urca e do Jardim
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Botânico pode ser visto como parte de um projeto de indução de determinado tipo de
ocupação da região, identificado pelo cronista como iniciado na gestão Passos.
O aterro e a urbanização da Urca se deram sem muitos problemas,
principalmente porque era uma área totalmente nova. O aterro da lagoa Rodrigo de Freitas e
a urbanização do Jardim Botânico tornaram-se problemáticos, pois a região era ocupada por
fábricas e operários. O projeto de ocupação da zona sul pelas classes mais altas não se
faria sem “guerra de posições” (ARANTES, 2000), notadamente porque passava pelo fim de
antigos usos e a expulsão dos moradores mais pobres.
Da mesma forma que o morro do Castelo fora identificado como lugar da
barbárie, a insalubridade da lagoa foi atrelada às fabricas e ao modo de vida dos operários.
Se de um lado, o saneamento começaria a inviabilizar o crescimento das indústrias (e suas
vilas operárias) como tinha acontecido até então; por outro lado, o loteamento e o jóquei
começaram a induzir um novo tipo de ocupação. Ainda haveria alguns rounds, como o do
Plano Agache ou o do conjunto habitacional Marquês de São Vicente até que o bairro se
consolidasse como um dos bairros mais elegantes da cidade.
5 AINDA ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A transformação da zona sul da cidade em de lugar de moradia e de lazer das
classes dominantes se deu pela dotação das maquinarias do conforto, símbolos da
modernidade e do progresso. Nos tempos do Império, apesar de Botafogo e Cosme Velho
abrigarem algumas residências da nobreza, São Cristóvão e adjacências concentraram a
Corte e justamente por isto as fábricas Corcovado e Carioca instalaram-se na lagoa,
subúrbio distante do centro. O processo de requalificação da zona sul deu-se ao longo da
república velha, capitaneado por um grupo, que entre outras coisas, conjugou política,
interesses financeiros e conhecimento técnico, pois muitos deles eram engenheiros.
Em pouco mais de dois anos o engenheiro prefeito além de algumas obras na
zona norte, arrasou o Morro do Castelo, e com o desmonte fez o aterro do calabouço, da
enseada da Glória e a Avenida Rui Barbosa (em torno do Morro da Viúva), além de parte da
Urca; dotou Copacabana, Ipanema e Leblon de moderna rede de telefone, saneou e aterrou
parte da lagoa e abriu novas ruas no jardim Botânico, reformou o passeio publico
construindo o cassino Beira Mar. Deixou a prefeitura coberta de dívidas, mas seu sucessor
concluiu todas as obras inacabadas.
A passagem de Carlos Sampaio pela prefeitura coincidiu com as festividades do
centenário e em função dela, as grandes intervenções puderam ser executadas. Foi também
durante a sua gestão que a zona sul começaria a ser identificada como lugar da
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modernidade e da elegância, inclusive foi com os concursos de sombrinha em Copacabana,
patrocinada pela prefeitura, que nasceria o famoso verão carioca.
Os periódicos nos dão conta das grandes transformações na estrutura urbana,
da mesma forma que permitem ver a construção das diversas imagens da cidade, seja do
subúrbio, seja da favela e da zona sul, esta última lócus do progresso, representado nas
corridas de baratinhas, dos telefones, nos usos da praia. No final do mandato de Sampaio a
zona sul emergia como produto da intervenção direta do Estado. Era este o Rio Belle
époque da qual faziam parte os novos bairros da Urca e Jardim Botânico. O outro lado deste
processo era o abandono dos subúrbios e a transformação da favela em questão social.
Faltam pesquisas e estudos mais aprofundados sobre os diversos projetos de
modernidade que estavam circulando na sociedade carioca desde o início do século. O
arrasamento Castelo permitiu que diversos grupos viessem a público expor suas leituras de
cidade, nesta discussão um grupo de engenheiros iniciou os debates que levariam a
constituição do urbanismo moderno, ao mesmo tempo em que consolidariam um projeto de
modernidade para uma parte da cidade.
Fonte: Extraído do livro A vitrine e o espelho, p. 108
Figura 5 - Mapa das obras realizadas durante a gestão de Carlos Sampaio
REFERÊNCIAS
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A CONSTRUÇÃO DA SÃO PAULO OPERÁRIA
Luciana Alem Gennari1
RESUMO
Os bairros tidos no imaginário paulistano como operários foram constituídos e consolidados nas primeiras décadas do século XX. Se, por um lado, o Estado assumiu de maneira reticente o controle deste processo e, por outro, a diversidade de interesses e de capital investido nem sempre contou com mão de obra qualificada, a tessitura urbana resultante foi homogênea. Problematizando o papel de cada um dos atores envolvidos neste processo, discutimos os limites da atuação pública e privada na consolidação de alguns bairros da cidade de São Paulo, tomando como exemplo o caso do Brás. Palavras-chave: São Paulo (cidade); urbanização;
ABSTRACT
São Paulo’s neighborhoods known as working-class districts were built and consolidated in the early twentieth century. On the one hand, the state has assumed reservedly this process’ control, and on the other hand the diversity of interests and investments couldn’t always count on specialized workforce; even so the urban form was uniform. Exposing the problems of the role of each agent involved in these proceedings, we discuss the limits of the public and the private participation relating to the process of the consolidation of several neighborhoods’ São Paulo, as Brás for example. Keywords: São Paulo; urbanization
1 INTRODUÇÃO2
A malha urbana da cidade de São Paulo hoje, conurbada e com seus limites
físicos difíceis de serem reconhecidos, tem consolidada em trechos contíguos parte da
história de sua constituição. Isto se deve pelo fato de sua tessitura urbana preservar as
estratégias de ocupação e de crescimento da cidade.
Desde meados do século XIX, diversas chácaras existentes nos subúrbios
começaram a ser retalhadas, subdividas em partes menores e vendidas, nos moldes de
1 Doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do GESTHU/IPPUR/UFRJ 2 Este trabalho é fruto da pesquisa para minha dissertação de mestrado em Estruturas Ambientais Urbanas, As casas em série do Brás e da Mooca: um aspecto da constituição da cidade de São Paulo, defendida em 2005 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
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lotes urbanos.3 De maneira geral, este foi o processo originário da abertura de diversos
bairros na cidade de São Paulo, localizados no entorno do antigo núcleo. Esta evolução não
foi homogênea ao longo do tempo, tampouco regida por interesses de mesma ordem.
IMAGENS 1-2. À esquerda, trecho extraído do Mappa Topographico do Municipio de São Paulo, executado pela empresa Sara Brasil, 1930, fls. 51 e 52. Acervo Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP; à direita, trecho extraído do Levantamento Aerofotogramétrico, executado pela empresa Base, 2002.
O trecho do bairro do Brás foi consolidado com esta forma até a década de 1930, a partir do loteamento de antigas chácaras e a construção majoritariamente habitacional. A estrutura dos lotes e o tipo de uso e ocupação do solo se preservaram até os dias de hoje, assim como muitos conjuntos de casas construídos até este período.
Os bairros que se formaram a partir deste movimento de expansão da cidade
para além do triângulo central,4 se constituíram tanto por intermédio de grandes capitais, que
de uma vez formaram áreas inteiras, como também por investimentos de menor vulto. Na
maioria das vezes esse processo de composição da micro-escala urbana é absorvido por
estudos de ordem mais abrangente sobre urbanização e aparece pouco ou genericamente
nas bibliografias.
No caso do presente trabalho, o adjetivo “operário” atribuído a alguns bairros
paulistanos, como Brás, Barra Funda, Mooca entre outros, mais do que um indicador sobre
sua ocupação, é um qualificador do tipo de edificações que formavam seu entorno, dos tipos
de uso que esses bairros comportavam. Indica as possibilidades de investimento que havia
no mercado imobiliário, majoritariamente no que diz respeito à construção de moradias ao
lado de galpões industriais.
3 Entendo aqui como lotes urbanos, os que foram fruto das subdivisões sucessivas destas chácaras suburbanas até o momento em que eles foram edificados. De maneira geral, eles apresentam grande profundidade e a testada estreita, cujas origens remetem à tradição medievo-renascentista portuguesa (REIS FILHO, 1995). 4 Ruas Direita, XV de Novembro e São Bento.
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Se, por um lado, era a iniciativa privada que investia massivamente neste
mercado, por outro lado o Estado ditava as diretrizes, através de promulgação de leis, do
que poderia coexistir nas diferentes áreas da cidade. Uma legislação aparentemente
genérica sobre as novas construções e reformas urbanas estabelecia de maneira
pragmática as fronteiras e a nova forma da cidade de São Paulo.
Este artigo procura problematizar o papel dos diferentes atores envolvidos no
curso do crescimento da malha urbana na virada para o século XX, durante a Primeira
República. O caso do bairro do Brás foi escolhido como emblemático de um lugar onde
havia a possibilidade de serem feitos diferentes tipos de investimentos, inclusive em
moradia.
2 ABERTURA DE BAIRROS E LEGISLAÇÃO
Até a promulgação do Código de Obras Arthur Saboya em 1929, o papel de
particulares na abertura de ruas e loteamentos era previsto por lei e sua ação neste sentido,
dentro da cidade de São Paulo, foi mais significativa que a do próprio poder público.
Segundo Bonduki (1998, p. 40), “[...] construir casas, ‘assumindo o papel de capitalista,’ era
incompatível com a concepção liberal do Estado vigente até 1930. Assim, durante a Primeira
República, privilegiou-se apenas o incentivo aos particulares [...].”
Brito (2000, p. 2) demonstra em seu trabalho como a atuação de empresas
privadas voltadas a “atividades urbanizadoras”5 define, a partir da contemplação dos
interesses de um grupo restrito ligado a este tipo de atividade, uma configuração urbana
que, entre outras coisas, evidencia no espaço as estratégias empresariais. É apresentada
essencialmente a produção urbana articulada pelo capital privado e empresarial, em
oposição à idéia da
[...] ausência de uma lógica articuladora dos interesses de proprietários imobiliários, empresas implementadoras de infra-estrutura urbana e administração pública, considerando que a abertura de arruamentos em São Paulo, na maior parte dos casos, foi fruto de iniciativas casuais, isoladas e desarticuladas entre si, muitas vezes encetadas por chacareiros, que se aproveitavam da valorização que beneficiou suas propriedades em virtude do crescimento da cidade, para retalhá-las.
5 Na introdução de sua dissertação, logo no primeiro parágrafo, Brito define genericamente o que considera ser “atividades urbanizadoras”: “[...] atividade empresarial privada voltada ao mercado imobiliário e à dotação material da cidade, incluindo aí a realização de loteamentos, as edificações, a produção de materiais para a construção, a implementação de equipamentos e serviços públicos urbanos, como transporte coletivo, abastecimento de água e iluminação, obras de saneamento e drenagem de várzeas, circulação viária.” (BRITO, 2000,p.1).
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Ela descarta a idéia do acaso que permeia os argumentos de alguns autores6
sobre a formação territorial da cidade de São Paulo e demonstra que houve uma lógica
organizadora neste processo, regida pelos interesses do capital privado articulado em torno
da atividade empresarial. Esta lógica voltada aos interesses de proprietários era a
confluência dos interesses ligados à abertura de novas áreas para negócios imobiliários e à
“dotação” da cidade de uma infra-estrutura urbana para sua valorização.
Estas grandes investidas da atividade empresarial privada, todavia, não
contemplaram a totalidade da constituição territorial da cidade. Há também os investimentos
privados de menor vulto, pouco ou não articulados e não necessariamente organizados no
sentido corporativista. Essas pequenas ações tinham participação nos meandros das
grandes transformações, posto que as ações locais particulares compreendessem uma
grande diversidade de investidores por não exigirem necessariamente grandes capitais
iniciais nem outros envolvimentos organizados de qualquer ordem.
São elas que estruturam uma significativa parte da cidade que não estava
compreendida nos loteamentos ou urbanização em grandes levas por investimentos em
extensas áreas de uma só vez. E ambas as ações não aconteciam necessariamente
isoladas uma da outra; se elas se interpolavam. Ambas também procuravam tirar algum
proveito do que a outra oferecia em suas áreas de atuação, como a infra-estrutura
implantada.7
Alguns estudos apontam modos de produção do espaço que indicam esses
processos parciais de transformação do tecido e da construção da/na cidade. Essas formas
de produção espacial se traduziam em grandes ou pequenos loteamentos produzidos para
todas as camadas da população. Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX,
algumas dessas atividades empreendedoras do capital privado, cuja ação se dava através
dessas empresas loteadoras, foram responsáveis pela construção de diferentes padrões de
áreas residenciais para atender às diferentes necessidades de uma população urbana
crescente.
Algumas dessas ações foram a abertura dos loteamentos dos Campos Elíseos
em 1880/90 por Glette e Nothmann; de Higienópolis em 1890 por Buchard e Nothmann; da
av. Paulista em 1890 por Joaquim Eugênio de Lima; a ação da Cia. City, com a implantação
a partir de 1914 dos bairros-jardins. O primeiro, e depois os outros sucessivamente,
inaugurou o modelo de bairro aristocrático exclusivamente residencial, uma maneira de se
ocupar e de se habitar a cidade. Estes bairros contaram no momento de sua constituição
com o respaldo de uma legislação específica, que delimitava tamanhos de lotes e recuos, de
6 É o caso de trechos citados dos trabalhos de: HOMEM, 1996: 25; MONBEIG, 1958: 190; PRADO JUNIOR, 1957: 137 (apud BRITO, 2000). 7 Refiro-me às áreas próximas ou intermediárias às que obtiveram investimentos urbanos de porte significativo para a cidade de São Paulo, como abertura de grandes loteamentos ou “dotação de infra-estrutura urbana," seja qual tenha sido a razão para que esses investimentos acontecessem em determinado local da cidade.
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forma a não permitirem a construção nestes espaços de imóveis destinados a usos menos
nobres (como fábricas), tampouco à população de baixa renda.
Esta ocupação passou a definir uma “geografia social da cidade,” cujas marcas
permaneceram no desenvolvimento urbano ao longo do século XX.8 Da mesma forma o
crescimento da cidade de São Paulo, para além dos limites de seu centro histórico, foi
influenciado por este movimento legal que já esboçava um zoneamento desses espaços, ou
pelo menos seu desejo (ROLNIK, 2003: 46-8). Uma sucessão de leis a partir do Código de
Posturas Municipal de 1886 apenas indicava os limites da cidade onde seus edifícios,
segundo seus padrões e seus equipamentos, deveriam estar.
Já neste código era previsto, no capítulo que tratava especificamente de
“cortiços, casas de operarios e cubículos,” que estes deveriam estar fora do “perimetro do
commercio.” Da mesma forma, as leis subseqüentes sempre determinaram que as
habitações de tipo operário fossem edificadas fora do perímetro urbano da cidade,
pretendendo com esta disposição cumprir dois objetivos principais. O primeiro era controlar
a salubridade das novas habitações a partir do estabelecimento de padrões mínimos de
construção, tendo como incentivo para quem os cumprisse alguns benefícios fiscais. O
outro, mais subjetivo, era o apartamento para as bordas da cidade de moradias destinadas
aos trabalhadores.9
Como aqueles bairros aristocráticos, outros também foram originados a partir do
retalhamento de propriedades ou chácaras, mas sem esse caráter exclusivista. O bairro do
Bom Retiro foi fruto do arruamento promovido por Manfredo Meyer em terras de sua
propriedade (BRITO, 2000). Segundo Rolnik (2003, p.114-5), o Bom Retiro foi, ao lado do
Brás e da Lapa, um dos primeiros subúrbios populares da cidade de São Paulo, antes
constituídos por chácaras e que, a partir de seus loteamentos, constituíram “pequenos
núcleos urbanos ligados à cidade propriamente dita atravessando grandes vazios.” No caso
do Brás, o grande vazio era constituído pela presença da várzea do Carmo.
Também algumas fábricas construíram vilas operárias para seus funcionários em
suas imediações,10 seguindo o modelo da habitação unifamiliar e, de maneira geral, dentro
dos padrões previstos pela legislação. Algumas dessas vilas limitavam-se a algumas casas,
enquanto outras funcionavam como verdadeiras cidadelas, contendo para uso coletivo de
8 Para além da questão da exclusividade, alguns trabalhos fazem referência a esses loteamentos como marcos de uma importante mudança no urbanismo paulistano em relação ao zoneamento ou, mais especificamente, ao uso do solo urbano. Entre outros cf. BRITO, 2000; SAMPAIO, 1994 e 1998; ROLNIK, 2003. 9 O tema higiene permeou grande parte das discussões acerca do urbanismo no final do século XIX. E especificamente com relação a sua aplicação, ou seu controle, nas habitações tomou corpo a partir da divulgação do Relatório da Comissão de Exame e Inspeção de Santa Ephigênia em 1893 onde a situação dos cortiços deste distrito foi levantada e estabeleceu-se formalmente a correlação entre as condições sanitárias das habitações com o alastramento das epidemias na cidade naquela época. Cf. entre outros autores BLAY, 1985; ROLNIK, 1998. 10 Alguns trabalhos estudaram mais a fundo o tema da vila operária construída pelos industriais para seus funcionários, estabelecendo, entre outras coisas, as implicações nas relações trabalhistas, sociais e do homem com sua habitação. Entre outros trabalhos, cf. BLAY, 1985; CORREIA, 1995. ROLNIK, 1981.
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seus moradores equipamentos urbanos, como escola, igreja, creche, enfermaria. Este foi o
caso da vila construída na Mooca para os funcionários da fábrica de calçados Clark em
1904 ou a vila Maria Zélia, famosa da literatura sobre habitação operária, construída no
Belenzinho por Jorge Street, inaugurada em 1916.
Bonduki (1998) chama a atenção para duas modalidades de construção de vilas
operárias: as promovidas pelas fábricas para seus operários e as promovidas por
investidores privados destinadas ao mercado de locação. Entre as iniciativas destes últimos
encontravam-se empresas, em cujo estatuto era prevista, entre seus objetivos, a abertura de
loteamentos e a construção de casas para aluguel11
Por outro lado, havia também a iniciativa de particulares, pessoas físicas que
investiam diferentes montantes de capital no mercado imobiliário. Dentre eles havia
industriais, profissionais liberais, donas de casa, imigrantes, letrados, analfabetos... Todos
eles tinham em comum o fato de serem proprietários e poderem utilizar essa inserção social
inclusive em documentos oficiais, como certidões. O fato de serem proprietários, de certa
forma, os credenciava a certa forma de inserção social.
3 CONSTRUÇÃO DE CASAS E ESTRUTURAÇÃO DO BRÁS
Foi bastante significativa para a formação do Brás a produção de habitações por
investidores privados, mais até do que a de vilas produzidas pelas fábricas para seus
operários. Estas ações ocorriam como investimento tanto em grandes áreas contíguas,
como na negociação e construção de lotes individuais. O conjunto delas consolidou o bairro
com a estrutura que ele mantém até hoje.
Reis Filho (1994) chama a atenção para o fato de que apesar da discrepância de
informações entre os loteamentos destinados às camadas de renda alta, os quais possuem
informações abundantes e sistematizadas, e os destinados às camadas de renda mais
baixa, são os mesmos loteadores que estão envolvidos em ambos os processos de
implantação dessas áreas. No caso do Brás, o grande investidor atua ao lado dos anônimos
e pequenos, aqueles que aplicam um montante menor no mercado imobiliário, mas
contribuem de forma significativa para a formação da área.
Ronik (2003) apresenta em seu trabalho o papel da legislação na determinação
de “fronteiras” dentro do processo de consolidação urbana da cidade de São Paulo e sua
relação com a produção imobiliária. Ela demonstra como essa legislação, a partir da
promulgação do Código de Posturas Municipal de 1886, cria espaços de segregação cada
vez mais claros, como o de moradia, de trabalho, dos imigrantes e assim por diante, da
mesma forma que essa legislação cria espaços de controle.
11 Um empreendimento bastante conhecido na literatura sobre habitação dessa natureza é a Vila Economizadora, construída no bairro da Luz pela Companhia Economizadora Paulista.
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Segundo a autora, o controle de partes da cidade significava o controle do que
haveria nelas ou do que poderia coexistir nesses espaços. Bairros como o Brás, que
contavam apenas com uma legislação genérica estipulando padrões mínimos de ocupação
das casas e de abertura das ruas, tinham uma margem bastante confortável para um
máximo de adensamento e livre aproveitamento do uso dos terrenos sem estar em
desacordo com a lei.
Desde o Império a iniciativa privada recebeu diversos incentivos para a
construção de vilas operárias. Esses incentivos consistiam principalmente na isenção de
impostos para importação de materiais. Além disso, de acordo com a Lei 498 de 14.12.1900,
a construção de casas operárias teve seus padrões construtivos reduzidos e
conseqüentemente o preço de sua construção também (BLAY, 1985; BONDUKI, 1998).
Desta forma, a construção de casas em padrão operário, que era estimulada nas
imediações das fábricas, poderia ser um bom negócio para o proprietário.
Porém, nem todas os projetos habitacionais submetidos à aprovação da
prefeitura sob a alcunha de “casas operarias” eram efetivamente destinadas a operários.
Segundo Lemos (1978: 132), esta era “uma escapada burocrática visando a menos gastos
nos processos de aprovação.” De acordo com o que estipulava a lei, a casa com um padrão
mínimo não diferia do padrão exigido para a construção de uma casa operária; uma casa
com “mais de um compartimento, cozinha e exgotto” é uma casa de, no mínimo, três
cômodos, inclusive a cozinha.
Essas casas com um padrão mínimo construtivo previsto por lei proliferaram pela
cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX, conforme novos loteamentos iam
sendo abertos e onde sua construção desse um bom retorno financeiro. Até meados do
século XIX, antes da abertura desses novos loteamentos, bem observa Rolnik (1998, p.
114), “não havia diferença marcante de estrutura fundiária entre as terras que compuseram
os arredores da cidade.” Este espaço foi se definindo na medida de sua ocupação e
segundo variados fatores, inclusive os interesses de quem tinha poder de decisão dentro da
cidade, político ou financeiro.
[...] Desde a crise da Abolição e o advento da República, se tornara uma prática corrente os donos de terrenos e chácaras na área urbana lotearem, arruarem ou venderem para esse fim suas propriedades. Assim foram se adensando bairros já existentes, se formando outros novos e aparecendo núcleos coloniais mais distantes [...]. Pelas várzeas, acompanhando as linhas de trens, se instalavam as indústrias e se formavam os bairros operários [...]. Pelas colinas adjacentes ao centro se expandiam os bairros de classe média, entremeados de bolsões mais antigos de casebres e gente humilde, enquanto, em torno do eixo Avenida São João, Avenida Angélica e Avenida Paulista, se localizavam os loteamentos mais abastados, formando bairros ponteados de grandes sobrados e mansões [...]. (SEVCENKO, 1992, p. 123).
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Havia por parte dos proprietários de imóveis o interesse de adensar ao máximo
as áreas onde a legislação permitisse, para se poder obter um maior aproveitamento do
terreno e, portanto, maior lucro em sua exploração. Segundo Rolnik (2003: 125),
[...] havia um pressuposto de que um negócio rentável de casas operárias requeria uma utilização mais intensa do lote e uma localização fora da ‘cidade’.12 Com isso consegue-se proteger o valor dos imóveis contidos na área central ou urbana [...] e, ao mesmo tempo, garantir uma alta remuneração do investimento. Essa alta remuneração advinha justamente da possibilidade de ofertar um maior número de unidades no mesmo terreno, além das isenções de impostos.
A isenção dos impostos para construção de vilas operárias com determinado
padrão construtivo fora do perímetro urbano da cidade de São Paulo, onde o Brás estava
localizado, era prevista na Lei n. 498, de 14.12.1900. E mesmo após alguns anos com sua
inclusão no perímetro urbano, estabelecido pela Lei n. 1788, de 28.5.1914, a construção de
casas com padrão operário neste bairro não se tornou ilegal, posto que segundo esta
mesma lei, pelo artigo 5º, era permitida a construção de vilas operárias nas imediações de
fábricas. O Brás era essencialmente um bairro fabril, graças, entre outros fatores, à
proximidade com a linha do trem.
A possibilidade deste adensamento conferiu ao bairro do Brás um caráter
bastante particular e que era encontrado também em outros bairros reconhecidamente
“operários.” A fileira de casas que compunha a paisagem, como uma sucessão de portas e
janelas com frisos nas platibandas e decoração em massa, era uma das características do
entorno.
Saindo-se da porta, que se abria diretamente para o mundo depois de um corredor comprido que começava num pé de caqui e desembocava na calçada, do lado direito ficava uma cancela. [...]. Na calçada do lado de cá ficavam as casas umas coladas nas outras, um portão ao lado do outro, um corredor junto de outro corredor. Olhando de fora, não dava para perceber que atrás das portas corriam vastos corredores que iam dar nos fundos onde havia sempre um pé de qualquer fruta. (DIAFÉRIA, 2002, p. 13-9).
A opção pela intensa subdivisão do terreno longitudinalmente, visando um
“máximo” aproveitamento e adensamento da região, gerava lotes13 cuja testada ocupava
uma pequena área na frente e era um tanto profundo. Este desenho acabava por determinar
12 Essa “cidade” significa estritamente o perímetro central da cidade, estabelecido pelo Ato n. 849, de 27.1.1916, capítulo I, art. 2º: “O primeiro perímetro ou central é o contido dentro das divisas seguintes: Começa no largo do Palacio e segue pelas ruas General Carneiro, 25 de Março, Anhangabahú, Florencio de Abreu, Mauá, Protestantes, General Couto de Magalhães, Ypiranga, Sete de Abril, ladeira e largo da Memoria, largo, ladeira e rua do Riachuelo, praça João Mendes, ruas do Theatro, 11 de Agosto, travessa da Sé, rua do Carmo e largo do Palacio, principio desta demarcação.” Ao longo deste trabalho, sempre que a palavra cidade for escrita entre aspas, terá este significado. 13 Estes são lotes típicos urbanos. Cf. nota 1.
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um tipo de implantação dessas casas que quando não permitia nenhum recuo lateral, havia
um pequeno afastamento que servia tanto para circulação quanto para ventilação dos
cômodos, sendo quase obrigatória sua disposição em seqüência.
Este tipo de loteamento foi uma das tônicas em bairros onde a legislação, sem o
caráter exclusivista, dava certa liberdade para o uso e a ocupação dos terrenos. Não houve
uma lei que estipulasse dimensões máximas e mínimas para a abertura de loteamentos
neste período. O desenho destes lotes, que visavam ao máximo adensamento urbano, foi
possível graças a dois aspectos complementares: a técnica e a lei.
A partir da promulgação do Código de Posturas Municipal de 1886, as leis que
dispunham sobre construções na cidade pretendiam controlar aspectos como altura e
alinhamento das fachadas, com a necessidade de alinhar construções e logradouros. Com
relação às dimensões da casa, legislavam sobre o tamanho de envasaduras, áreas mínimas
de ambientes, larguras mínimas de escadas e corredores e aspectos de caráter sanitarista,
como a necessidade de iluminação e ventilação diretas em todos os cômodos. O tamanho
dos lotes em si não era determinado pela legislação, ficando a critério de loteadores e donos
de terrenos.14
De maneira geral, nas áreas mais adensadas, a dimensão da testada do lote
variava conforme o tamanho da largura de um cômodo com suas paredes, que por lei
deveriam ter cada uma 30cm, acrescido da largura de um corredor lateral. A legislação
também não determinava a largura mínima de um cômodo, apenas sua área mínima e as
dimensões mínimas das envasaduras.
O uso do tijolo já vinha sendo largamente utilizado nas construções, em
oposição ao uso da taipa, a ponto dele vir como um pressuposto no Código Sanitário de
1894.15 Além disso, a utilização de tijolos, cimento e cal permitia um melhor aproveitamento
dos espaços construídos em lotes estreitos e possibilitavam a abertura de envasaduras em
todos os cômodos, o que era determinado por lei, sem comprometer a estrutura do edifício.
IMAGEM 3. Desenho baseado em um dos conjuntos de casas localizados no Brás, São Paulo. Nota-se a seqüência de portas e janelas que caracterizam a paisagem do bairro. As pequenas dimensôes das frentes das casas são possíveis graças ao uso de materiais como o tijolo.
14 A este respeito não foi encontrada nenhuma referência na legislação. 15 Segundo esta lei, era estipulada a necessidade do uso de material refratário em paredes com no mínimo 30cm de espessura. Esta espessura pressupunha o uso do tijolo, pois é impossível se considerar o uso da taipa com essas dimensões.
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4 CONCLUSÃO
Mesmo não tendo havido nenhum tipo de interesse explicitado na legislação
para que essa área servisse a algum uso exclusivo ou a qualquer fim, o Brás assumiu uma
identidade própria, a partir das diversidades dos usos que eram possíveis de serem
abarcados em seus espaços. A aparente displicência das leis ou do Estado em relação a
algumas áreas da cidade se revelou, em verdade, como uma estratégia para haver
flexibilidade quanto ao uso e à ocupação do solo.
A partir da retalhação das chácaras existentes nesses lados da cidade e durante
toda a primeira metade do século XX, houve esta legislação genérica que regia as questões
construtivas, o que deu bastante mobilidade para as decisões de uso e ocupação do solo,
frisando que essa mesma legislação regeu grande parte da construção dessa cidade em
expansão. A legislação, portanto, era mais um instrumento de legitimação para a
implantação nessa área de uma arquitetura e um urbanismo que servissem a diferentes fins,
determinados por outros fatores que não exclusivamente os legais.
Os investidores imobiliários por sua vez, independentemente do volume de
capital disponível para se investir no mercado da habitação, acabavam, guiados por um
mesmo propósito – o máximo aproveitamento dos terrenos, conferindo ao Brás uma
aparência bastante homogênea. A própria morfologia resultante destas ações era, no limite,
fruto daquilo o que ditava a legislação, ela própria preocupada com o controle do conjunto
urbano que vinha sendo construído.
A alcunha “operário” do bairro do Brás indicava, para além de seus ocupantes,
pois entre eles havia uma diversidade enorme de trabalhadores urbanos e não apenas os
das fábricas, o lugar onde o trabalho se localizava na cidade.
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INTERPRETAÇÃO DA PAISAGEM URBANA DE BELÉM ATRAVÉS DOS JARDINS URBANOS
Rubens O. de Andrade1
RESUMO
Pretende-se aqui debruçar-se sobre uma Belém novecentista e seus jardins analisando como esses espaços físicos influenciaram no cotidiano do cidadão em uma cidade equatorial com matizes culturais diversas. A nova paisagem expôs o homem amazônico e/ou estrangeiro aos sentidos e desenhos forjados a partir de propostas urbanísticas e, neste sentido, procura-se desbravar, no campo disciplinar das relações cidade/sociedade versus natureza, os seus caminhos de formação. Palavras-chave: jardins, Amazônia, Belém, paisagem.
ABSTRACT We intent to study the Belém in the 19th century and its gardens, analising how the spaces influenced the quotidian in a equatorial city with a cultural diversity. KeyWord: gardens, Amazônia, Belém, landscape.
1 INTRODUÇÃO
Para além do jardim: condicionantes históricos do desenho da paisagem de belém no
último quartel do século xix e a vida mental da cidade
Parte-se do pressuposto histórico que cidades-capitais da segunda metade do
século XIX, como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador, experimentaram novas
formatações urbanas que alteram significativamente o desenho e os usos de sua paisagem.
Durante algum tempo, a ideologia européia praticada para as reformas urbanísticas em
cidades como Paris, Londres, Berlim dirigiram mudanças e se desdobraram pelo Brasil,
1 Professor de História da Arte, Paisagista e Doutorando do Programa de Pós-Graduação do
Instituto de Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ, Pesquisador do GESTHU/IPPUR/UFRJ.
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motivando ações vigorosas que por sua vez, manifestaram-se naquela paisagem pela
utilização dos métodos, dos instrumentos ou das práticas reformas urbanas externas.
No caso da região amazônica, o ideário urbanístico que firmava um cenário
moderno para nossas cidades, encontrou na Belém novecentista, um locus importante para
recepção, circulação e difusão dos fundamentos teóricos e práticos formulados pelos novos
discursos urbanos. Todavia, considera-se que a capital paraense, guardava desde o último
quartel do século XIX, certas singularidades dentro desse processo, pois, além da cidade se
mostrar atenta aos ecos modernizantes que chegavam do sudeste e nordeste do país, a
mesma também estava sintonizada às mudanças que ocorriam na Europa, devido em parte,
ao intermitente comércio que mantinha com os principais centros do Velho Mundo e a
América do Norte.
A perspectiva inicialmente apresentada redefine algumas relações urbanas que
se materializaram na cidade e de certa forma, nos propõe questionamentos ao processo de
transformação da paisagem urbana de uma capital que ainda possuia nessa fase, contornos
de uma cidade extremamente colonial. Destaca-se portanto, dois pontos fundamentais que
atravessam a questão e querem revelar: 1) que mecanismos foram utilizados para
redesenhar a paisagem e; 2) qual o caráter que o novo tecido urbano ganhou. No cenário
proposto, surgem desvios, variáveis e problemas dos mais diferentes matizes, porém,
aquele que diz respeito a discussão aqui trazida, dirige-se sobretudo, aos instrumentos
sócio-espaciais que operavam diretamente na re-organização do tecido urbano (inserção
jardins urbanos, avenidas arborizadas, discursos higienistas, entre outros dispositivos) e,
conseqüentemente, os cursos de ação que a sociedade construía em seu cotidiano, tendo
em vista as relações firmadas entre ela e os novos instrumentos urbanos que se erguem e
operam na materialidade de uma paisagem que se re-desenhava.
O argumento posto, também considera os efeitos do ambiente amazônico (clima,
florestas, rios) na re-organização e expansão da cidade sobretudo, as interfaces existentes
entre a paisagem artificializada que está em pleno processo de produção - recriada a partir
de inovadoras tecnologias, sofisticação estética e novos processos de relações sociais - e
paisagem natural que ainda surge como fator determinante e ao mesmo tempo, um limitador
profundo dos processos de apropriação daquele ambiente.
O re-desenho daquela paisagem foi pautado por uma política de melhoramentos
urbanos que aproximou Belém às ideologias que consubstanciavam a formação das
cidades-capitais do final do século XIX. Portanto a paisagem que surgia era um processo
que trazia consigo normatizações e práticas estabelecidas por novos códigos de postura do
tecido urbano, conscientização da sociedade para os mais diversificados instrumentos que
estavam sendo utilizados para aparelhar a cidade num visível processo de metropolização
de seus espaços e costumes. Tais ações se traduziam pelas mesmas equações espaciais,
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padrões morfológicos e tipológicos colocados em prática nas demais cidades-capitais do
país de fin de siècle, uma espécie roteiro a ser seguido à risca, perfilando uma a uma as
idéias, os materiais construtivos, os arranjos urbanos, os hábitos em suma, tudo aquilo que
desse a conotação de uma modernidade urgente necessária e que precisava ser instalada,
mesmo a revelia de certos sujeitos daquele ambiente urbano, naquela paisagem.
As características urbanas da Belém colonial surgem como um aporte valioso no
entendimento das formas paisagísticas que a cidade revelará na fase novecentista,
sobretudo, por sublinhar, ainda mais, as interações e tensões históricas existentes entre o
ambiente natural e o ambiente artificialmente construído. No raciocínio proposto se destaca
a importância do jardim, de fato, de uma paisagem projetada que na sua essência tem a
natureza amazônica como elemento vigoroso na sua composição, pois a vegetação nativa,
ainda ocupa amplos espaços e domina aquele território urbano.
O jardim ou, a paisagem projetada por sua forma, função, e demais
características agregadas, vai apresentando-se como elemento mediador entre a ordem
natural e a ordem da artificialidade que se firmar na urbe. Ao longo desse parâmetro talvez
caiba aqui parafrasear a filósofa Anne Cauquelain, sugerindo que a paisagem amazônica
que se quer inventar participa da eternidade da natureza, um constante existir, antes do
homem e, sem dúvida, depois dele. Em suma, a paisagem (nesse caso a amazônica) é uma
substânci (CAUQUELAIN, 2007, p. 39) que atravessa e prevalece naquele ambiente que
artificialmente se quer construir.
O jardim no tecido urbano de Belém não se revela como um elemento
morfológico que carrega o mero status de um canteiro, tendo como função primordial,
despertar o prazer ou o descanso momentâneo do passante. Ao dimensionar o caráter e a
forma como ele se inscreve aquela paisagem, avalia-se preliminarmente, que existem feixes
de complexas relações que não apenas se manifestam a partir de jogos tipológicas,
morfológicos ou de usos sócio-culturais. Entre os jardins e as formas urbanas de Belém há
continuidades, há conexões firmadas entre a natureza mimetizada e a natureza natural que
explicitamente ecoa e se faz presente nos limites da cidade. Essa natureza a percorre e
delimita os seus limites urbanos, ou seja, a floresta ou as águas cercam a forma peninsular
da cidade. Do outro lado do rio ou da baía a floresta também está presente e define o
panorama do horizonte que o observador capta num lance de vista.
A concretude dos jardins projetados de Belém na fase novecentistas, talvez
possam ser visto a partir da idéia de "janelas". Janelas que se firmam como pequenas
aberturas que se debruçam sobre o jardim natural que domina os limites urbanos da cidade,
que define a borda daquilo que é projetado e daquilo que é natural. O pressuposto opera
sobre inúmeras formas, podendo aqui ser revelado, de forma reducionista, ao se imaginar
as tramas das espécies vegetais que compõem seus parques; praças; e jardins; das
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sombras que delas se projetam nesses espaços, na forma como as massas arbóreas se
fundem no ambiente aéreo da cidade e propõe, na visão perspectiva do observador, a
presença de uma "floresta" que permeia, atravessa e convive com seus espaços urbanos
projetados.
Portanto, as relações entre os jardins paisagísticamente concebidos e a natureza
que atravessa Belém, a meu ver, vai além de um discurso esteticista que propõe como linha
de força, a idéia de transposição de formas e padrões calcados em desenho de jardins ou
paisagens retirados de modelos externos. A idéia que aqui se propõe é que o vigor da
floresta e da ambiência amazônica ainda parece ser o fator preponderante e condicional no
arranjo urbano que se plasma naquele território, mesmo que diversos outros instrumentos
urbanos, como traçado de avenidas, mobiliários urbanos e até convenções culturais
transitem e queira definir a forma final dessa paisagem.Será que a paisagem tem uma forma
final?
Talvez repouse nesse contexto algumas das singularidades sobre a história
urbana de Belém, sobretudo, nas relações produzidas entre cidade e natureza que se
revelam como um fator condicional e causal na forma e no modus operanti da construção
dessa cidade. Não se pode ignorar porém, que os enfretamentos, as exigências e as
experiências existenciais entre o homem amazônico e a natureza que ora domina, ora é
dominada cadenciam as transformações desse ambiente. Logo, é nessa paisagem
inventada que se revela uma espécie de paradoxo naturalizante desses domínios, pois ao
que parece, cada um dos elementos que a formam - seja eles próprios de uma natureza
natural ou vindo da ordem de um mundo artificializado -, ocupa lugares distintos nesse
contexto, agindo, por sua vez como elementos estratégicos na conformação da paisagem,
seja pelo ponto de vista das relações sociais de diversos grupos étnicos que ali escrevem a
sua história, ou pelos limites que se impõe, ou seja, onde termina e começa o ambiente
natural, onde começa e termina o ambiente artificializado, e/ou onde se dão as
simbioses dessas duas ordens de paisagem.
Diversas são as peculiaridades ao se analisar historicamente o tecido urbano de
Belém à época do recorte temático desse artigo. Ao se considerar estritamente as relações
entre o espaço natural e aqueles que sofreram intervenção - leia-se, a cidade que se
desenha entre a margem do rio e a floresta -, surge uma terceira modalidade espacial, que
surge como um ponto de inflexão dessa paisagem e ao mesmo tempo uma conexão entre
esses dois pólos distintos. Logo, entende-se que jardins, canteiros ajardinados, aléias
amplamente arborizadas da cidade são formatações urbanas que representam tanto a
inflexão quanto a conexão entre o natural e o naturalizante. Talvez a simbiose derradeira
ente o mundo natural amazônico - a floresta/os rios - e a cidade. A leitura proposta lançada
para a cidade novecentista se depara com uma longa experiência de organização de
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espaços livres públicos ou privados na cidade nesse sentido, onde a ordem do natural
parece historicamente atravessar o senso de urbanização que se constitui morfologicamente
no seu tecido urbano. A raiz dessa questão parece repousar ainda na fase colonial, onde a
presença de passeios públicos, jardins botânicos e largos amplamente arborizados surgem
como uma constante no desenho daquela paisagem oitocentista.
Os largos, praças. Jardins botânicos, canteiros da fase colonial da cidade,
necessariamente não são subtraídos do plano urbano novecentista, ao contrário, eles
ganham novos feições e usos a partir do viés discursivo da modernidade que aterrissa sobre
a cidade. Esses espaços livres públicos se tornam dispositivos eficazes que se agregam aos
planos de melhoramentos urbanos propostos pelo século XIX, agindo visivelmente, como
um fator que se harmoniza à paisagem. Tendo ou não uma forma pré-concebida, articulam-
se e se movem na construção da imagem da cidade. Esses espaços revelam, entre outras
coisas, variados planos, recortes de paisagem, divisores de ambiente, que surgem como
marcos urbanos centrais na formulação e na prática da nova ordem urbana que constituiu a
Belém do XIX.
A ordem urbana que define a condição existente entre natureza natural e a
natureza artificial nesse século XIX, enunciam variações sobre a mesma relação. Todavia os
novos arranjos urbanos ligados aos jardins não se identificam com as mesmas formas e as
mesmas escalas antes utilizadas na cidade colonial e, nem poderiam, pois a reformas
urbanas com suas novas tecnologias e estéticas firmaram diferentes negociações com a
paisagem natural já existente, possibilitando a criação de outros vínculos, outras
modalidades de usos e formatação. Admite-se esse pressuposto, mas ainda se percebe que
parece não existia uma súbita alteração na antiga equação adotada para a inserção de
jardins no tecido urbano. Vê-se portando que a idéia de continuar com um vínculo pleno com
a natureza natural que envolve a cidade, ocupa seus espaços e até mesmo limita sua
expansão ainda é algo definidor do desenho daquela paisagem.
A organização urbana de Belém, visivelmente priorizar a inserção de jardins
projetados na cidade, porém há distinções que se deparam com outras formas e dimensões
da malha urbana, indicado que áreas mais afastadas do centro da cidade por exemplo, não
se inscrevem efetivamente ao raio de ação proposto pelos projetos de melhoramentos
urbanos. Há sempre uma borda, um limite que se impõe e rege as intervenções. As
evidencias que os efeitos da modernidade concebida nos documentos de postura e nas
pranchetas dos gestores urbanos naquele momento foram limitados a áreas específicas da
cidade é marcante. Até aí nenhuma novidade, pois é uma constante que o espelhamento de
discursos construídos no plano das idéias ou nos projetos registrados à tinta, no papel,
dificilmente possuem fôlego suficiente para extrapolar os limites das áreas centrais, quando
se considera a totalidade do território urbano de cidade-capitais que viviam o mesmo
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A idéia que existe um encadeamento de ocorrências onde se conseguiu, entre
outras coisas, detectar a construção de uma equação que define não só a forma, como os
tipos e os usos da paisagem urbana nas propostas de melhoramentos urbanos do século
XIX, ainda surge como um arcabouço seguro a ser revisitado, haja vista que praticamente
todos os padrões urbanos, tipológicos e morfológicos são perfilados um a um como um
roteiro pré-establecido a cada nova intervenção urbana que se faz nesse período, não
importa qual o porte urbano da cidade ou a região. O arquétipo importado e a prática urbana
em exercício estão prontos a ser refeitos pelo prefeito ou intendente da vez, bastando para
isso a aquisição de recursos econômicos que dê conta co grau de reformulação pretendido.
Os condicionantes que definem esse arquétipo se revelam nessa analise através
da requalificação das relações mercantis; da distinção dos hábitos cotidianos; e da
adaptação de instrumentais e aparelhos modernizantes, corporificando-os na imagem de
cidade. É a partir daí que se entende que os jardins urbanos de Belém ganham vigor no
novo desenho imposto a essa paisagem. Se por um lado eles surgem fracionados no tecido
urbano, por outro, eles constroem uma ponte, mesmo que tênue, entre a paisagem
artificialmente redesenhada e a paisagem que vigorosamente emoldura e ativa as relações
do homem amazônico com a natureza que conduz e media as relações de convivência com
a região.
2. RELAÇÕES SÓCIO-ESPACIAIS: condição e os estados mentais do homem urbano
Ora, qual seria então à primeira vista o resultado dessa nova realidade? Salve
engano, arrisca-se dizer que as práticas discursivas na paisagem produziram vetores de
profundas mudanças urbanas seja para o indivíduo, seja para espaço, seja no particular,
seja no geral. Com isso, criaram-se condições propícias, que em certos momentos,
converteu-se em categorias que re-desenharam a paisagem “individual” e/ou “coletiva”,
contribuindo assim para a composição de uma escala diferenciada de valores humanos, a
partir de agora, pluralizantes, cujas forças de atuação não só mediaram, mas, sobretudo
disciplinaram os fenômenos que tiveram como palco as praças, os parques, as avenidas em
suma, a cidade.
Toda a gama de formatos e formatações – materiais e imateriais – postados
nesse meio ambiente forjaram processos para o espaço urbano onde elementos como:
diversidade social versus a padronização, tipos sociais “ambíguos”, surgimento de outros
círculos de socialização na cidade, estado de excitação permanente, a proteção a partir de
uma sólida estrutura intelectual, a adaptação natural (bio e orgânica) e o indivíduo bio-
psicológico se impuseram como categorias estruturais à vida do homem metropolitano. De
forma mais generalizante, entende-se que quanto mais extenso o raio de atuação de cada
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um dos elementos acima citados, mais profundo e cristalizado se tornavam os níveis de
dominação, assimilação e controle a que o cidadão urbano se via exposto.
Logo, o efeito bruto desse processo, sinaliza um movimento permanentemente
de imersão do ser social e de seus estados mentais a uma conjuntura indutiva, cuja ordem
fenomenológica, flagrantemente acentuada por contrastes, rupturas, embates firmam uma
escala de valores humanos, que conforme os desdobramentos analíticos de Simmel "não é
mais constituída pelo “ser humano geral” em cada indivíduo, mas antes pela unicidade e
insubstitubilidade qualitativas do homem” (SIMMEL,1976). Portanto, a complexidade dos
valores incorporados a essa trajetória, as forças das circunstâncias e o labirinto de
processos do ambiente urbano não só desvendam a ordem subjacente dos fatos mais
também apresenta a função da metrópole, que ao ver de Simmel fornece a arena para o
combate e a reconciliação dos combatentes. (SIMMEL,1976).
Tais interfaces indicadas, dispostas sobre aquele espaço-tempo urbano,
redimensionaram toda uma cadeia de relações e inter-relações de processos, produtos e
resultados que ao final, combinados, propiciaram a criação de uma “nova” urbe. Urbe, aliás,
que criou e fortaleceu a intensificação de estímulos nervosos em seus indivíduos,
favorecendo em tese, a geração de um ritmo diferenciado e, uma nova ordenação de
referencias sócio-espaciais à cidade. Diante dos argumentos preliminares elencados, foi
possível centrar questões e entender os determinantes da ação que iluminam a formação da
paisagem novecentista de Belém. Neste sentido me limito a uma alternativa viável a
discussão dirigida a duas idéias fundamentais ao entendimento desse debate: a primeira se
pauta no contexto de quais seriam as escalas e o teor dos referenciais que atuaram nessa
sociedade e como os mesmos se refletiram na atitude mental de seus indivíduos? A
segunda, permite pensar numa direção não menos conflituosa.
A tentativa é: entender as conciliações que condicionavam relações sócio-
cultuais e identificavam o novo locus que a cidade começava a “re-inventar”, a partir do final
do século XIX, tendo em vista sempre, o diletantismo que permeava a produção de uma
senso de cosmopolitismo local. Através de ambas as questões tenta-se achar o fio condutor
que explique as traduções do modo de vida e de um sistema de tipos e formas espaciais,
estabelecidos morfologicamente no tecido urbano, que por sua vez, traziam em si um
arcabouço de referenciais externos que se hibridavam quando encontravam um sistema
sócio-espacial diferente da sua matiz.
A dinâmica sócio-espacial que se plasma e se “move” na paisagem urbana das
cidades-capitais no Brasil no final do século XIX, reserva, no caso específico de Belém,
“variações”, sobre o mesmo tema – as remodelações e novos hábitos urbanos – que
ocorreram em cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Recife entre outras. Nesse mesmo
contexto, não se distanciavam das análises, o estado de consciência de sua sociedade em
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relação à imagem da cidade revelava. Vale destacar, que o jogo de práticas econômicas, de
usos cotidianos e demais vetores urbanos potencializados no espaço urbano seja de Belém,
Recife ou Porto Alegre, constituíam, uma rede de fluxus e contra-fluxus de ideologias,
questionamentos, práticas e usos cotidianos que aparentemente possuíam pontos em
comum. As mesmas se mostravam fundamentais para o entendimento das correntes
fenomelógicas existentes no ambiente sócio-espacial da “nova” paisagem que se produzia
naquele espaço-tempo.
Todavia, diferenciações logicamente existiam. As mesmas, inclusive, poderiam
ser determinadas a partir de diversas vertentes de análise, que particularmente na Belém de
fim de século, surgiam pela forma de configuração do espaço, pelas condições ambientais e
ainda, pelas realidades de um “habitus amazônico” de vivenciar aquela paisagem, que por
sua vez, manifestava-se a de forma diferenciada e individualizada a cada individuo.
Ora, apesar da força desse pressuposto no entendimento dos domínios e das
práticas materializadas em solo metropolitano, não me parece simples ignorar o “peso sócio-
cultural” que o “habitus amazônico” tinha no dia a dia da cidade, considerando sobretudo, a
forma da natureza natural naquele ambiente urbano. Porém, em contrapartida, o habitante
de Belém, não estava privado e distante das maneirices de uma sociedade que, não apenas
queria parecer intelectualizada, em parte de seus extratos, mas efetivamente, movia-se
nessa direção. Logo, o status quo demonstrado nesse processo forjava um constructo
mental sensivelmente ancorado aos interesses de um homem muito mais urbano que rural
interessado em vivenciar, aceleradamente, os processos de remodelação de sua paisagem,
tendo nas praças, nos teatros, no comércio, no andar nas ruas, na vida noturna, o resultado
líquido de suas “ambições cosmopolitas”.
Pode-se então admitir que a ditadura dos novos sentidos e práticas da vida
urbana moderna parece ser um fator importante para entender os domínios que
caracterizavam o desenho daquela paisagem. Nesses termos, vale destacar, que havia um
sentido e um caráter em se desprezar hábitos que, no entender do homem metropolitano,
não mais faziam parte das ruas, das praças, das negociações urbanas que se efetivavam a
cada esquina da cidade. Portanto, os novos discursos e ações onde a economia do dinheiro
domina a metrópole (SIMMEL, 1976:14), acometia a cidade e revelava, conseqüentemente,
universos paralelos. Universos onde o ritmo das atividades urbanas, sobretudo daquelas
originadas das relações sócio-espaciais, tornavam-se múltiplas e complexas. Mais uma vez
o modos vivendi simulado nas avenidas, mercados, parques e praças, acabavam por
projetar a real escalada da metropolização da cidade, permitindo assim uma (re)visão de
mundo onde o homem, agora “homem público”, estava exposto às tensões e embates que a
vida moderna lhe impunha, fazendo-o re-avaliar sua independência e individualidade ante a
nova ordem social que dominava a metrópole.
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Belém, em particular, apresenta um conjunto fenômenos urbanos que me
parecem próximos a estas questões. Um deles pode ser referenciado pelas novas posturas
“urbanísticas”, fixadas para cidade, em especial uma cultura firmada de construção de
jardins e parques urbanos sofisticados em sua forma e nos usos que eles poderiam ter.
Estabelecida à argumentação, avalia-se que o exercício ora “gráfico”, ora discursivo posto
em prática na malha urbana, oferecia, ao cidadão metropolitano a chave de leitura de um
“novo estilo de vida”. Estilo esse, cuja ordem se assentava em uma escala de valores
diferenciados, expostos pela construção de uma paisagem de esferas hierarquizadas.
A apropriação operacional desse pensamento voltado a Belém, acaba por
definir, de acordo com as proposições de Simmel (Op. cit), a existência de condições
decisivas que entre outras coisas, promovem a diferenciação, o refinamento, o
enriquecimento das necessidades do público. Nesse processo, as categorias de análise
sintetizadas pelo autor, permitem que se amplie o quadro interpretativo da produção de
subjetividades no plano sócio-espacial da cidade, o que facilita entender as bases das
relações sociais que no ambiente cosmopolita, como também, a maneira como formas se
consubstanciavam na materialidade da paisagem.
O desvendamento desses conceitos desdobram-se na imagem da cidade, uma
vez que as tipologias das fachadas de prédios públicos e particulares, os estilos de
desenhos de praças ou de ruas arborizadas; como também, as mudanças mentais impostas
a natureza e estilo de vida do cidadão, indicavam, singularidades que podem ser avaliadas
na seguinte chave de leitura :
a) havia um processo latente de disciplinarização e ordenação das novas
ocupações sociais, construídas pela multiplicidade rítmica da vida
metropolitana;
b) criaram-se instrumentais ideológicos de reordenação das relações entre a
individualidade pessoal e coletiva que permeavam o espaço urbano; e
c) houve adoção de peculiaridades tendenciosas, extravagantes e,
especificamente metropolitanas do maneirismo, capricho e preciosismo que
conduziam e direcionavam o crescimento das diferenças daquele homem
público.
Há muitos outros exemplos para demonstrar as curiosas negociações praticadas
no espaço urbano de Belém e de outras capitais do país no mesmo recorte temporal, porém,
considerado a extensão de suas complexidades inscritas a esse contexto, admite-se por
hora certas reduções conceituais e, por conseguinte indaga-se: Qual então o resultado
disso?
Em vista disso, quaisquer que sejam as vantagens ou desvantagens de
decompor o sistema analítico das relações sócio-espaciais, submetidas às condições da
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vida do homem metropolitano é possível antever seus efeitos, leia-se, resultados. Os
mesmos com freqüência repousam num intrincado caráter mental de hábitos e
comportamentos surgidos, experimentados e reproduzidos na esfera urbana. Posto isso,
avalia-se: à medida que se diluem os componentes dos diferentes processos que se
manifestavam na imagem da cidade, os mesmos partilhavam, em tese, dados comuns
(tipologias arquitetônicas, códigos jurídicos/religiosos, atividades mercantis, ambigüidades
políticas, relações servis, etc.), que permitiam a identificação, a decodificação e a
assimilação de como se realizavam negociações, tanto na esfera social, a partir da
interlocução de pessoas com interesse diferenciados, como na integração de distintas
espacialidades que ocupavam e pontuavam a paisagem urbana.
Abordando outra singularidade que se aproxima as questões aqui propostas, é
importante destacar que a mesma se volta a ideologia de higienismo e embelezamento
corrente no século XIX, e sua estreita relação com os planos de reformulação das cidades-
capitais no Brasil. Nota-se que reproduzir na imagem da cidade as proposições, os
símbolos, os valores, em suma, os domínios de uma cultura exógena a nossa apresentava-
se como a direção que deveria ser seguida. Ora, tal fenômeno urbano provocou em tese, a
criação de uma paisagem que manifestava as mais variadas ações que traziam
impregnados em si, sentidos e significações de uma cultura, que necessariamente não
refletiam a nem a ordem, nem a vocação original do cotidiano daquela paisagem. Portando,
tais elementos antagônicos, forjados na cidade de Belém, ou em outras cidades-capitais do
país, construíam um cotidiano urbano, onde a perspectiva técnico-formal impunha entre
outras coisas, um desenho de cidade cuja morfologia dos seus traçados, a tipologia de sua
arquitetura e os usos de seus espaços públicos, estavam sensivelmente traduzidos a partir
de matiz estrangeira, quase sempre mediada pelas formatações das reformas urbanísticas
propostas para Paris e Londres.
Considerando esse contexto, percebe-se no espaço urbano de Belém a
pluralização de atividades, ações e instrumentais que por sua vez, sinalizam o alinhamento
da imagem da cidade aos discursos de modernização europeu. Esses discursos,
invariavelmente, foram traduzidos a partir de equações urbanísticas que ganhavam forma e
caráter nas remodelações da paisagem materializadas nas principais cidades capitais do
país. Os indícios do pretendido progresso, no caso de Belém, manifestavam-se através em
inúmeras obras na capital e os jardins eram um elemento sui generes nesse discurso. De
fato, as melhorias caracterizadas por sua forma pontual e seu caráter reducionista em sua
maioria, contraditoriamente adquiriam energia e eficácia, potencializando a criação de
símbolos, impressões e hábitos que recaiam não apenas sobre a paisagem, mas
especialmente na figura do homem público, que quer ser conhecido como um o tipo
metropolitano, dotado de consciência e intelectualidade suficiente para reagir e interagir com
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os fenômenos que se descortinam no universo da vida urbana que a cidade, com todos os
aparatos e instrumentais da modernidade lhes oferece.
Outra frente importante a ser analisada nesta direção refere-se ao aspecto
estético da cidade. Sob essa perspectiva não se deve perder de vista os parâmetros já
relacionados aos ideais sanitaristas, pois eles somam-se às características que envolvem o
discurso de embelezamento e ambos, conjuntamente, propagavam mudanças na imagem
da cidade, e estavam circunscritos à órbita da cultura da modernidade. Ao confrontar esses
condicionantes com a historiografia urbanística do século XIX, faz-se necessário refletir,
rapidamente, sobre alguns condicionantes relacionados à Paris, cidade, segundo inúmeras
reflexões já realizadas, transformaram-se num protótipo, numa cidade que conseguiu
cristalizar, os ideais propostos ao Homem pelas mudanças do século XIX.
A ideologia reformadora da paisagem parisiense, seguramente, gerou inúmeros
conceitos, teorias, poemas, músicas, imagens etc., que revelaram além do surgimento e
materialização da imagem desse novo ideal de cidade moderna novecentista, como se
tornou um símbolo de modernidade. Portanto de acordo com esse contexto, entende-se
que os modelos consubstanciados na ideologia da forma urbana parisiense tornaram-se
amplamente difundidos nas capitais da Europa e também em cidades do continente
americano como Buenos Aires, La Plata, Washington, apenas para citar alguns exemplos.
No caso particular do Brasil, as cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador,
Porto Alegre e Belém são exemplos contundentes de capitais que submeteram parte do seu
espaço urbano a uma estética (ideologia de embelezamento) comprovadamente inspirada
no protótipo criado pelos gestores da capital francesa. Ao reforçar a intensa ascendência
que os ideais de embelezamento urbano dessas reformas exerciam sobre duas das mais
significativas capitais do país, Segawa declara: “as grandes reformas urbanas na
administração do Barão de Haussmann em Paris (1853-1870) e o empreendimento similar
pelo prefeito Pereira Passos no Rio de Janeiro (1903-1906) inspiravam iniciativas de mesma
natureza para São Paulo” (SEGAWA, 2000:17).
3 O DESEJO FRAGMENTADO: instrumentais teóricos, conceituais das intervenções na
paisagem urbana e na criação de jardins urbanos.
O estabelecimento de espaços públicos – jardins, praças, parques – em Belém-
Pará foi uma prática reincidente na cidade se considerarmos a criação de locais específicos
para a contemplação e o desfrute da paisagem, como foi o caso da organização do jardim
botânico e o passeio público ainda no período Colonial. Porém foi o século XIX, em função
das novas mentalidades de seus atores sociais, que proporcionaram a consolidação de sua
trama urbana como a reformulação de sua grelha colonial, provocando, entre outras coisas,
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a definição de padrões diferenciados para urbe, a partir de novos instrumentais ideológicos
produzidos pela modernidade.
Tais fenômenos incorporaram uma nova ordem de valor à cidade, trazendo entre
outras coisas, a importação de novas tecnologias e a adoção de modelos de organização
sócio-espacial para o seu tecido urbano, traduzidos do matiz europeu. Nesse sentido, a
cidade materializou um padrão estrutural mediado pelos conceitos de higienismo,
sanitarismo e embelezamento que invariavelmente, foi propagado por outras cidades-
capitais no Brasil, no mesmo período.
Tendo como ponto de partida a trajetória da construção dessa paisagem, seus
processos de formação e os diversificados fenômenos que nela se deram, pretende-se
evidenciar nesse trabalho, alguns aspectos que se destacam na criação dos espaços
públicos a área central de Belém. Ao longo das questões aqui tratadas, os usos cotidianos
que se materializaram naquele espaço-tempo também serão quesitos relevantes a serem
tocados nessa discussão, para que se possam indicar elementos e levantar questões que
contribuam para o entendimento das formatações matérias e imateriais que se instituíram no
desenho de sua paisagem no referido período.
A intendência Municipal planejou diretrizes em que a visão de todo parecia estar
mediada por um aporte sistêmico e global das propostas e discursos instituídos, pois ao se
analisar o âmago das obras de melhorias públicas implementadas na cidade, concluiu-se
que apesar de se apresentarem múltiplas, na prática eram pontuais. Logo, as mesmas não
se materializaram em sua plenitude no desenho da paisagem de Belém como foram
concebidas. Ainda nessa direção de entendimento, ao se analisar as propostas e os textos
reproduzidos nos Relatórios Municipais apresentados a Câmara, a partir de 1900, é possível
avaliar a dimensão das obras propostas para a cidade e as preocupações de “curar” hábitos
cotidianos “atrasados” de sua sociedade. Os registros além de tratar minuciosamente tais
problemáticas já traziam em si ações profiláticas, na tentativa de sanar aos males urbanos
que assolava a sociedade e a sua paisagem urbana.
Nos relatórios municipais estavam descritos também os novos rumos que a
cidade deveria adquirir, seja na forma de planos ou mesmo na descrição de obras já
efetuadas na cidade. O empreendimento urbano proposto pelos atores políticos sintetizava-
se através do estabelecimento de parâmetros onde o alvo era beneficiar a malha urbana
com uma infraestrutura básica (água, esgoto, luz, comunicações e transportes) o que,
operacionalmente, abrangia o programa da intendência, bipolarizado pela ideologia urbana
do sanear e embelezar a urbe.
Outra referência emblemática ao novo rumo que a intendência municipal adotou,
pode ser exemplificado, aqui, a partir da idéia de reordenação, restauração e criação de
espaços públicos. Os determinantes da ação podem ser identificados, nos discursos da
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intendência, cujos objetivos exaltavam a importância da inserção do verde, de forma
organizada no espaço urbano da cidade. Fica evidente o ideal da administração pública em
querer dotar a área central da cidade de um número significativo de áreas públicas
ajardinadas e avenidas arborizadas, visando não somente o desfrute do espaço pela
população, como também a venda, para o exterior de uma cidade alinhada com a lógica da
modernidade produzida na Europa.
Os Relatórios Municipais, além de estarem repletos de referências sobre as
obras realizadas nessa esfera, devido à grande incidência com que o assunto é tratado no
texto, ainda deixam claras e contundentes evidências da vigorosa influência da adoção de
modelo estrangeiro na concepção dos espaços livres na cidade, seja pelo seu conceito, ou
pelos elementos que compõem a sua morfologia, ou, ainda, pela opção por um mobiliário
urbano importado, e por fim, pelo modo como a população dele se utilizou.
4 CONCLUSÃO
Os jardins - ações, efeitos e resultantes
Os conceitos intervencionistas adotados pela municipalidade, não tinham
necessariamente o objetivo de “datar” as alterações urbanas a sua época ou as limitar a
aspectos meramente técnicos. Seus objetivos iam além. Como então justificar essa
premissa? Talvez, observar atentamente as obras instituídas na cidade para compor o seu
patrimônio paisagístico possa ser um caminho seguro para antever o pensamento da
intendência, uma vez que a paisagem desenhada através de novos espaços projetados e a
restauração ou remodelação de outros, só vem confirmar os ideais concebidos por esta
administração que, além de ter como uma das principais aspirações melhorar a imagem de
Belém previa ainda, já no início do século XX, constituir, no desenho de sua paisagem, uma
silhueta compatível à de uma grande “metrópole”, sobretudo na sua área central, onde há
uma incidência de grandes praças e largos públicos.
Convém apontar que no entender de seus gestores, historicamente a vocação
natural da capital paraense era a de ser uma grande e “moderna” cidade tanto de seu tempo
como também para a posteridade. Entretanto, vale registrar que o processo vivenciado por
Belém se deparou com os negativos desdobramentos inerentes à queda do comércio da
borracha, fazendo com que a mesma sofresse um processo inverso àquele vivido durante
três décadas, gerando assim fase de estagnação e de certa forma, um retrocesso em
diversos níveis da estrutura urbana da cidade nas décadas seguintes, causando sérias
conseqüências socioeconômicas e culturais para cidade, e, por fim, alterando sobremaneira
a previsão dos gestores desse específico momento histórico.
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Voltando à formação das propostas da intendência se destaca que as mesmas
seguiam um rigoroso critério de avaliação dos diversos aspectos relacionados às
intervenções na paisagem. A premissa de que estudos técnicos deveriam sempre subsidiar
todas as intervenções dos profissionais responsáveis pelas obras, era um fato amplamente
difundido. Um exemplo disso por ser visto a partir das questões climáticas que mostravam-
se como um elemento a parte quando a questão fundamentava-se no aspecto sanitarista.
Inicialmente deve-se levar em conta que o clima equatorial úmido, além de atingir altas
temperaturas, demonstrava ser um problema ambiental sério para a cidade. Esse rigor
climático e os desdobramentos negativos para a população confirmavam ser patente sua
influência na tomada de medidas urgentes para que as reformas no espaço urbano logo se
efetivassem e, de certa forma, trouxessem uma solução, ou ao menos amenizassem essa
os problemas de saúde pública a ele condicionado. Os dois problemas centrais decorrentes
do clima relacionavam-se à incipiente presença de árvores nas ruas, parques e praças e,
também, à estrutura de suas ruas geralmente curtas e estreitas, dificultando, portanto, uma
ventilação ideal. Ambos os problemas geravam uma acentuada falta de salubridade à
população de Belém.
O entendimento de toda a problemática climática de Belém levou o corpo técnico
administrativo a se posicionar diante da situação, formulando assim uma série de medidas
metodologicamente planejadas e tecnicamente estruturadas, com vistas a contemplar a
execução de obras na cidade objetivando minorar o desconforto ambiental da população.
Entre as propostas concebidas, vê-se a criação de parques, praças e o estabelecimento de
códigos mais abrangentes para evitar o desmatamento predatório em diversas áreas do
município. Particularmente sobre essa questão se faz um adendo importante, pois foram
relevantes os esforços da intendência em conjunto com o governo do Estado à época,
buscando evitar o progressivo desmate das matas nas áreas vizinhas a Belém. Acreditava-
se que a continuidade dessa prática, que visava principalmente a produção de carvão,
estava afetando sensivelmente o clima da cidade, acentuando, ainda mais, os problemas já
existentes.
Através da adoção de um plano estratégico para arborização, buscava-se
materializar no espaço urbano de Belém, uma “política paisagística”, onde a inserção do
estrato arbóreo de forma organizada e profusa objetivava atuar no tecido urbano como um
elemento interador e articulador da paisagem, interligando praças, parques, bosques, largos,
pontos distintos e extremos da cidade, criando assim, a meu juízo, uma “unidade
paisagística”. Quanto ao termo, “unidade paisagística”, convém utilizar algumas linhas para
esclarecer melhor o porquê desse posicionamento. Essa idéia foi construído a partir do
entendimento que a abrangência do plano de arborização era amplo e de certo modo,
irrestrito, explicando melhor, o direcionamento dado à proposta, indicava a opção por
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determinadas espécies para compor o estrato arbóreo da cidade que, por sua vez, deveria
estar a contento, tanto ao aspecto relacionado à salubridade como também ao fator estético.
A Diretoria de parques, jardins e praças conforme registra o Relatório Municipal
de 1902, e o próprio intendente Antonio Lemos, entenderam que havia espécies que
respondiam perfeitamente ao parâmetro definido pelos técnicos da administração. Dentre as
possíveis espécies listadas, praticamente foi definido um número reduzido de árvores para
produção no horto e um posterior uso na composição da paisagem urbana de Belém.
De acordo com o raciocínio até aqui apresentado, foram diversos os problemas
que se revelaram como entraves para um pleno redesenho da paisagem de Belém. Até
agora já foram exemplificados alguns deles relacionados aos aspectos ambientais e também
aos funcionais. Entretanto, a perspectiva do embelezamento que se liga estritamente ao
contexto estético, ao belo, é outra discussão que merece ser vista de forma mais detalhada,
pois, se as preocupações ambientais e funcionais demonstravam ser problemas prioritários
e dignos de medidas emergenciais para se resolvê-los. A mesma ordem de grandeza
poderia ser direcionada, e foi, para solucionar os conflitos que impediam Belém de
apresentar-se como uma cidade mais bela (sob o prisma da estética urbana). Só ruas
arborizadas, sistema de esgoto, crematório de lixo ou a rede de telefonia não eram
elementos suficientes para justificar o título, ou padrão, almejado pelos gestores urbanos.
Deveria haver algo mais. Medidas isolacionistas também não alcançariam o
âmago da questão, pois ao ver da administração municipal as obras de embelezamento da
cidade deveriam estar articuladas e seguir paralelamente as demais atividades que estavam
sendo efetuadas na cidade, seja elas de infraestrutura ou não, demonstrando, assim, que as
propostas de melhoramentos não só eram amplas e irrestritas, mas também buscavam,
sobretudo, um objetivo claro: construir uma imagem de Belém utilizando de elementos
(arquitetura de suas edificações, de sua paisagem) que viessem justificar, em sua
totalidade, os conceitos de embelezamento urbano em voga na época, considerando,
sobretudo, o valor estético, que por sua vez, veio a se tornar o epicentro da questão e o
grande destaque no redesenho dessa paisagem. Nessa direção, começaram a se multiplicar
na área central da cidade, com base no Código de Posturas, uma série de edificações de
alto padrão com uma tipologia francamente inspirada na arquitetura de linhas européias.
Sob a égide dos novos postulados a administração pública realizou,
simultaneamente, um número aproximado de dez significativas obras em espaços livres
públicos da cidade abrangendo, especificamente, as praças. Essas intervenções incluíam
tanto a criação de novos espaços livres como também a adaptação de espaços já
existentes. Algumas intervenções se mostraram tão radicais que o fato de considerá-las
como mera adequação do espaço a um novo programa, uma nova função, uma nova
estética, chega a ser um exagero, senão um erro de interpretação, pois esses espaços
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antes das obras impetradas, em geral, apresentavam-se sem o menor requinte, não
havendo necessariamente um plano definido, que ordenasse de uma forma convincente
aquela paisagem.
Foram as novas formações ideológicas da administração municipal que
permitiram uma releitura para tais espaços, lhes conferido assim um projeto paisagístico
específico com características extremamente distintas. Esse fato elevou sobremaneira a
preocupação com os aspectos estéticos na composição da paisagem e conseqüentemente
atingiu grande prestígio junto aos técnicos da intendência. Dessa forma, antes de se pensar
em redesenhar a paisagem, deveria ser considerados uma série de pressupostos para tal
empreitada. A partir desse momento todos os projetos passavam por um apurado processo
de elaboração, haja vista, a forma como as praças e os parques da cidade se
apresentavam.
As preocupações estavam circunscritas aos seus traçados reguladores (desenho
formal) que lhe seria atribuído, formalizando alamedas, passeios ou canteiros ajardinados; a
composição dos estratos vegetais – forração, arbustivos e arbóreos – a implantação de um
específico mobiliário urbano ou de jardins como, por exemplo, pontes, pavilhões, gazebos,
pérgulas, bancos, lixeiras, postes de iluminação, fontes, chafarizes, lagos artificiais,
esculturas, balaustradas, cercas de ferro enfim, nas diversas especificidades imanentes a
uma proposta projetual de intervenção na paisagem, perpassando por aspectos, estéticos,
funcionais, etc. para que fossem tecnicamente contemplados, demonstrando assim outra
preocupação, de estar alinhada a vanguarda das intervenções paisagísticas ocorridas nesse
período em outra cidade capitais, principalmente às cidades européias.
REFERÊNCIAS
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