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Dossiê – Pesquisas no pontocom: desafios metodológicos, questões éticas e novas categorias para a investigação em ciências sociais 57 Cronos: R. Pós-Grad. Ci. Soc. UFRN, Natal, v. 12, n.2, p. 57-74, jul./dez. 2011, ISSN 1518-0689 O K-100 1 compartilhado: jovens, tecnologias e gestão da experiência migratória Sharing K-100: youth, technology and migratory experience management Paula Christofoletti Togni – Instituto Universitário de Lisboa RESUMO O uso da internet e das redes sociais virtuais como campo e/ou ferramenta de pesquisa é cada vez mais recorrente nas ciências sociais. No campo de estudos sobre as migrações internacionais, recentemente, alguns pesquisadores têm assinalado a importância destas ferramentas/campos que passam a ser encarados como parte dos fluxos contínuos entre as sociedades de origem e destino (Schrooten, 2010). O presente artigo, ainda que de forma exploratória, inicia uma discussão sobre a importância metodológica da internet e das redes sociais virtuais na realização de uma etnografia multisituada (Marcus, 1995) que percorreu os trajetos transnacionais de 26 jovens oriundos de uma cidade de pequeno porte do estado de Minas Gerais – Mantena – que vivem ou já viveram anteriormente em Portugal - Lisboa, em um bairro periférico nomeado como Cacém. Foi através da internet e das redes sociais virtuais que foi possível compreender o significado simbólico e material dessa imigração, a maneira como os projetos migratórios dos jovens são geridos, bem como, apreender a forma como os lugares e os “mundos possíveis” (Appadurai, 2004) são criados e compartilhados. Palavras-chave: Etnografia. Redes sociais virtuais. Migrações internacionais. Juventude. ABSTRACT e use of the Internet and virtual social networks as fieldwork and/or a research tool is becoming recurrent in Social Sciences. In international migration field studies recently some researchers have pointed out the importance of these tools/fields as part of a continuous flow between societies’ origin and destination (Schrooten, 2010). is article intend, although in a exploratory way, to discuss the methodological importance of the Internet and social networking in conducting a multi situated virtual ethnography (Marcus, 1995). is paper will drawn on the transnational path of 26 young people from a small town in the state of Minas Gerais - Mantena - who live or have lived previously in Lisbon, Portugal - in a suburb named Cacém. It was through the Internet and virtual social networks it was possible to understand the symbolic and material meaning of the immigration, how this youth migration project was managed, as well as learn how the places and “possible worlds” (Appadurai, 2004) are created and shared. Keywords: Ethnography, Social networks, International migration, Youth 1 Forma utilizada pelos jovens nas redes sociais para fazer referência ao bairro de residência em Portugal, o Cacém.

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  • dossi Pesquisas no pontocom: desafios metodolgicos, questes ticas e novas categorias para a investigao em cincias sociais

    57 Cronos: R. Ps-Grad. Ci. Soc. UFRN, Natal, v. 12, n.2, p. 57-74, jul./dez. 2011, ISSN 1518-0689

    O K-1001 compartilhado: jovens, tecnologias e gesto da experincia migratria

    SharingK-100: youth, technology and migratory experience management

    Paula Christofoletti togni instituto universitrio de Lisboa

    RESUMO

    o uso da internet e das redes sociais virtuais como campo e/ou ferramenta de pesquisa cada vez mais recorrente nas cincias sociais. no campo de estudos sobre as migraes internacionais, recentemente, alguns pesquisadores tm assinalado a importncia destas ferramentas/campos que passam a ser encarados como parte dos fluxos contnuos entre as sociedades de origem e destino (schrooten, 2010). o presente artigo, ainda que de forma exploratria, inicia uma discusso sobre a importncia metodolgica da internet e das redes sociais virtuais na realizao de uma etnografia multisituada (marcus, 1995) que percorreu os trajetos transnacionais de 26 jovens oriundos de uma cidade de pequeno porte do estado de minas gerais mantena que vivem ou j viveram anteriormente em Portugal - Lisboa, em um bairro perifrico nomeado como Cacm. Foi atravs da internet e das redes sociais virtuais que foi possvel compreender o significado simblico e material dessa imigrao, a maneira como os projetos migratrios dos jovens so geridos, bem como, apreender a forma como os lugares e os mundos possveis (appadurai, 2004) so criados e compartilhados.

    Palavras-chave: etnografia. Redes sociais virtuais. migraes internacionais. Juventude.

    ABSTRACT

    The use of the internet and virtual social networks as fieldwork and/or a research tool is becoming recurrent in social sciences. in international migration field studies recently some researchers have pointed out the importance of these tools/fields as part of a continuous flow betweensocieties origin and destination(schrooten, 2010). This article intend, although in a exploratory way, to discuss the methodological importance of the internet and social networking in conducting a multi situated virtual ethnography (marcus, 1995). This paper will drawn on the transnational path of 26 young people from a small town in the state of minas gerais - mantena - who live or have lived previously in Lisbon, Portugal - in a suburb named Cacm. it was through the internet and virtual social networks it was possible to understand the symbolic and material meaning of the immigration,how this youth migration project was managed, as well as learn how the places and possible worlds (appadurai, 2004) are created and shared.

    Keywords: ethnography, social networks, international migration, Youth

    1 Forma utilizada pelos jovens nas redes sociais para fazer referncia ao bairro de residncia em Portugal, o Cacm.

  • Dossi Pesquisas no pontocom: desafios metodolgicos, questes ticas e novas categorias para a investigao em cincias sociais

    O K-100 cOmpartilhadO: jOvens, tecnOlOgias e gestO da experincia migratria

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    em janeiro de 2010, conheci sheila, 23 anos, natural de mantena2 (minas gerais) que vive em

    Portugal h quatro anos, e o Cacm3, bairro perifrico da grande Lisboa. Por intermdio de sheila e

    sua famlia identifiquei um grupo de aproximadamente 26 jovens oriundos do interior de minas ge-

    rais que atualmente vivem em Portugal ou j viveram anteriormente um fluxo migratrio marcado

    por redes migratrias bastante consolidadas, sendo visvel a alterao nos espaos de origem com a

    verticalizao das moradias, as chamadas casas modernas, pelo nmero crescente de agncias de

    viagem na cidade, como tambm pelo fato de que a grande maioria das pessoas possui um parente,

    amigo ou conhecido que reside ou j residiu em Portugal ou nos eua.

    a possibilidade de trabalhar com jovens oriundos de um mesmo contexto uma cidade de

    pequeno porte e que vivem num mesmo espao na sociedade de destino proporcionou a realiza-

    o de uma etnografia multisituada que pode trazer contribuies analticas distintas da literatura

    produzida sobre a imigrao brasileira em Portugal, centrada em anlises exclusivas na sociedade de

    destino, atravs da observao das experincias e trajetrias dos imigrantes. estas abordagens tm

    desconsiderado os contextos de origem dos sujeitos, a heterogeneidade e interseo de marcadores

    de diferena classe, raa/cor da pele, origem regional; etc. apesar dos argumentos sobre a indis-

    pensabilidade de produzir etnografias multisituadas presentes em estudos realizados em diversos

    fluxos migratrios, de acordo com glucia assis (2007) e Jos mapril (2008).

    Por meio de uma etnografia multilsituada, realizada entre janeiro de 2010 e junho de 2012,

    percorri os trajetos transnacionais deste grupo de jovens entre a grande Lisboa o Cacm (Portugal)

    e mantena (minas gerais). a particularidade do grupo prende-se ao fato de terem experenciado uma

    migrao internacional autnoma entre os 18 e 20 anos, que no fazem parte de reagrupamentos

    familiares, mas que no so necessariamente um projeto exclusivamente individualizado, mas parte

    tambm de uma estratgia familiar de reproduo social. duas categorias micas que emergem na

    etnografia e so utilizadas contextualmente aproveitar a vida e melhorar de vida acabaram por

    ganhar destaque nas narrativas tanto dos jovens migrantes; como entre seus familiares e outros

    jovens que no tiveram a experincia da migrao internacional, demonstrando a prpria ambigui-

    dade e dinmica de seus projetos migratrios, que ao longo da experincia da migrao vo sendo

    reconstrudos atravs de novas expectativas e motivaes. no presente artigo pretendo analisar o

    papel da internet e, principalmente, das redes sociais virtuais como o orkut (e mais recentemente

    o facebook) na gesto das experincias de deslocamento dos jovens. dessa forma, refletirei sobre o

    lugar ocupado pela internet como campo e/ou ferramenta de pesquisa na etnografia multisituada,

    considerando-a um meio de comunicao contnuo e incorporado em outros espaos sociais,

    segundo daniel miller e don slater (2000, p. 5). esta perspectiva permite ultrapassar a oposio

    2 mantena est localizada no leste do estado de minas gerais, a 460 km de Belo Horizonte, numa zona de fronteira entre os estados de minas gerais e esprito santo. uma cidade de pequeno porte e tem aproximadamente 27.000 habitantes. dados do Censo de 2010 apontam para uma populao rural de aproximadamente 6.000 habitantes cujas principais atividades econmicas so a cafeicultura e a pecuria. Possui um idH considerado como mdio-alto (0,724), ainda que a renda per capita seja baixa (238,70) e se verifique tambm uma grande desigualdade de distribuio da renda. a cidade faz parte da mesorregio mineira do vale do Rio doce, na qual fazem parte a cidade de governador valadares, que desde a dcada de 1960, associada a um fluxo populacional direcionado para os estados unidos. Para anlises socioantropolgicas sobre esse fluxo, ver glucia assis (2004, 2007) e sueli siqueira (2009).

    3 o Cacm considerado uma regio perifrica da grande Lisboa. a reputao de periferia do bairro est associada distncia das reas mais centrais e igualmente por uma segregao espacial tnica. a maioria das pessoas que habitam o Cacm oriunda da frica portuguesa angola, guin Bissau e Cabo verde e, mais recentemente, do Brasil.

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    real/virtual presente nos primeiros estudos sobre as relaes mediadas digitalmente. Como explica

    Richard miskolci (2012), o espao cyber no uma esfera virtual distinta do real (circunscrito ao

    mundo concreto das relaes pessoais tradicionais), mas parte de dinmicas articuladas e interde-

    pendentes de comunicao e interao.

    num primeiro momento, revelarei como a internet e as redes sociais virtuais foram importan-

    tes nos contatos iniciais com o universo a ser pesquisado, na ampliao das redes com os jovens e

    na negociao para a realizao da etnografia no Brasil. sucessivamente, atravs da identificao e

    da anlise da forma como os jovens tm selecionado as informaes para o local de origem sobre

    suas experincias migratrias, procurarei demonstrar que as redes sociais virtuais desempenham

    um papel fundamental na negociao do status e sucesso migratrio, construindo simbolicamente

    lugares como Brasil, Portugal e europa.

    ETNOGRAFIAS, REDES SOCIAIS, TRANSNACIONALISMO E MIGRAES

    as cincias sociais tm tentado responder dinmica cultural do que chamamos de desterrito-

    rializao. nos estudos migratrios, a teoria transnacional (o transnacionalismo) pode ser citada como

    um esforo terico importante nesse sentido4. Considerada uma perspectiva inovadora para anlise

    das migraes internacionais, ainda que o transnacionalismo no seja compreendido teoricamente

    como um fenmeno novo, uma vez existam na histria das migraes exemplos de transnacionalis-

    mo5, torna-se importante reconhecer que este fenmeno recebeu um forte impulso com o advento das

    novas tecnologias na rea dos transportes e das telecomunicaes que vieram facilitar enormemente

    a comunicao atravs das fronteiras nacionais e o deslocamento entre grandes distncias. nina glick schiller citado por Caroline Brettell (2003), argumenta que o transnacionalismo

    na antropologia parte de um esforo para reconfigurar o pensamento antropolgico diante das

    transformaes em curso e da maneira como tempo e espao so experienciados e representados.

    subjacente a este modelo terico a teoria transnacional a introduo do conceito de entnografia

    multisituada proposta por george marcus (1995), que aponta para a necessidade de pensar formas

    inovadoras de etnografia multilocal para fazer justia s foras culturais, econmicas e polticas

    transnacionais que atravessam e constituem mundos regionais ou locais ganha forte impulso. Longe

    de ser um mero estudo comparativo entre localidades, o autor sustenta que a essncia deste conceito

    a de uma etnografia mvel, que segue as pessoas, suas conexes e relaes atravs do espao.

    alm da pesquisa em mais de um espao fsico, a pesquisa multisituada tambm incorpora o uso

    de novos tipos de materiais, tais como meios eletrnicos, reconhecendo sua importncia crescente

    nos mundos sociais contemporneos.

    4 o transnacionalismo se refere aos processos por meio do qual os migrantes operam estruturalmente em campos sociais que transgridem as fronteiras nacionais. ver Linda Basch, nina schiller e Cristina Blanc (1994) e valentina mazzucato (2004).

    5 maria izilda matos (2012), por exemplo, por meio do estudo das cartas e correspondncias entre Portugal e o Brasil (1890-1950) demonstra a forma como as cartas servem para compreender o processo de deslocamento dos imigrantes, se configurando como um testemunho precioso entre os dois espaos, ainda que pouco explorados nos estudos sobre os deslocamentos.

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    desta forma, a ideia de que ser migrante uma relao dialgica, uma vez que implica refle-

    tir sobre sujeitos que vivem dentro de campos sociais transnacionais, expostos a um conjunto de

    expectativas sociais, valores culturais e padres de interaco humana que so compartilhados em

    mais de um sistema social, econmico e poltico segundo Laura velasco, (1998), emerge como um

    pressusposto no somente terico, mas tambm metodolgico.

    no campo de estudos sobre migraes internacionais, as etnografias multissituadas tm sido

    realizadas desde o incio da dcada de 1990, como o notvel trabalho de sherri gramusck e Patrcia

    Pessar (1991) between two islands: dominican internacional migration. no que se refere imi-

    grao brasileira, as investigaes de glucia assis (2004; 2011) e os trabalhos de adriana Piscitelli

    (2002; 2003; 2008; 2009) que atravs da ideia central de trnsito tm produzido importantes anlises

    que intersectam gnero, sexualidade e migraes, baseada em etnografias nos locais de origem e de

    destino (itlia e espanha) de mulheres migrantes se configuram como modelos referenciais.

    Como ponto de partida na etnografia, estabeleci contatos com jovens oriundos de minas gerais

    que vivem na grande Lisboa atravs de redes consolidadas previamente na associao Casa do Brasil

    de Lisboa6; mas, sobretudo, atravs de contatos em redes sociais virtuais o orkut. Para sonia aguiar

    (2007) a expresso redes sociais na internet vem sendo utilizada para designar plataformas que

    oferecem ferramentas e servios de comunicao e interao centrados em um padro egocentrado

    de relacionamentos. os usurios constroem um perfil pblico (ou semipblico) a partir de dados

    estruturados em um formulrio e o associam aos perfis de amigos, amigos de amigos e conhecidos

    com os quais possuem algum tipo de proximidade e de identidade.

    Para a autora, algumas ferramentas potencializam redes interpessoais preexistentes e outras

    proporcionam a ampliao das redes que incluem estranhos, ou seja, perfis sem vnculos obriga-

    trios offline ou anteriores. a amizade com celebridades, mulheres bonitas e homens sarados,

    por exemplo, parece proporcionar um aumento no status dos indivduos.

    o funcionamento do orkut como rede social foi analisado por Rachel Recuero (2004, p. 7) que

    descreve a forma como esta rede se operacionaliza.

    [] o software uma espcie de conjunto de perfis de pessoas e suas comunidades. nele possvel cadastrar-se e colocar fotos e preferncias pessoais, listar amigos e formar comunidades. os indivduos so mostrados como perfis, possvel perceber

    suas conexes diretas (amigos) e indiretas (amigos dos amigos), bem como as

    organizaes sob a forma de comunidades. alm disso, existem ferramentas de

    interao variadas, tais como sistemas de fruns para comunidades, envio de mensagens para cada perfil, envio de mensagens para comunidades, amigos e

    amigos de amigos.

    6 Frequentei desde 2005, como associada, a Casa do Brasil de Lisboa (associao de apoio a imigrantes brasileiros). em 2007 fui convidada para conduzir o projeto de insero laboral de imigrantes brasileiros, denominado univa imigrante. o atendimento a imigrantes brasileiros e a convivncia na associao me possibilitou observar de perto a realidade desta imigrao em vrias dimenses, seja ela jurdica (relativamente a legalizao, a insero no mercado de trabalho, reagrupamento familiar), como conjuntamente casos de retorno voluntrio, violncia do-mstica e o crescimento das relaes afetivas-sexuais entre cidados brasileiros e portugueses. ademais, a associao possibilitou-me expandir os contatos com jovens migrantes.

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    Paula Christofoletti togni

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    as comunidades virtuais do orkut so um exemplo de redes ampliadas em funo de subje-

    tividades comum. Foi na comunidade virtual brasileiros em Portugal7 que realizei uma pesquisa

    exploratria com o intuito de identificar os principais cenrios de origem de migrantes oriundos do

    estado de minas gerais, fundamentalmente jovens, e acabei por identificar sheila8, dentre outros

    jovens participantes da comunidade. apesar de no ter problemas em ser adicionada sua lista de

    amigos, durante quase um ms fiz inmeras tentativas para um encontro offline com sheila, sem

    nenhum resultado.

    Participava da mesma comunidade, expliquei a natureza da conversa, mas foi somente quan-

    do percebi que tnhamos um amigo em comum, mC dinho, cantor de funk que coincidentemente

    trabalhou comigo numa pizzaria em Lisboa que obtive respostas de sheila. Pedi a dinho, que

    conhecia o meu trabalho de pesquisa que desse referncias sobre mim para sheila. importante

    ressaltar a posio que mC dinho ocupa dentro do contexto da pesquisa: o jovem um dos princi-

    pais cantores de funk que atua em Portugal e possui grande visibilidade nas festas brasileiras, que

    sheila e os outros jovens frequenta. importante salientar que atualmente, na regio metropolitana

    de Lisboa, existe um circuito cultural de discotecas e bares que produzem eventos destinados

    comunidade brasileira. neste cenrio, membros de bandas, danarinos (as) e mCs de funk so

    produzidos como novas celebridades dentro do grupo e so reconhecidos como tendo um status

    elevado. Conjuntamente, nestes espaos de sociabilidade so definidos estilos, corporalidades e es-

    tticas que so relevantes medida que articula interesses e expectativas de auto-imagem e imagem

    coletiva a determinados objetos, corpos e prticas, que nesse contexto especfico tem definindoos

    significados do que ser brasileiro (a) em Portugal, nomeadamente no Cacm como discutido por

    mim em Paula togni (2011, 2012).

    os cartazes das discotecas (imagem 1) e eventos realizados na grande Lisboa ilustram as est-

    ticas e estilos considerados brasileiros, publicizados constantemente nas redes sociais da internet.

    imagem 1 Cartazes das discotecas

    no incio da etnografia, mC dinho era uma das figuras pblicas da noite brasileira da gran-

    de Lisboa. Foi atravs da mediao dele que sheila decidiu me encontrar no Cacm. segundo as 7 a comunidade virtual possui aproximadamente 27.450 membros. Realizei uma pesquisa exploratria com o intuito de identificar os principais contextos de origem dos brasileiros residentes em Portugal e oriundos do estado de minas gerais (BRasiLeiRos em Portugal, 2012).

    8 os nomes utilizados neste artigo so fictcios.

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    palavras da jovem, resolvi te conhecer pela sua insistncia e veja se troca a sua foto de perfil porque

    voc parece bem mais velha l.

    Paulatinamente, percebi que a foto do meu perfil do orkut, como as fotos pessoais, os scraps

    recebidos e a forma como utilizava o hipertexto poderia ser decisiva no meu acesso ao campo, na me-

    dida em que corporificava a diferena de status entre eu e o grupo. a negociao da minha presena e

    atuao nas redes sociais virtuais perpassaria pela diferena etria (explicitada por sheila), pelo crculo

    de sociabilidade por mim frequentado e pela esttica e corporalidade apresentada no perfil. desta

    forma, o primeiro passo foi a alterao da foto do perfil. Parecia importante parecer menos velha ou

    mais nova para o grupo. entretanto, ao longo da etnografia a diferena de status entre eu e o grupo,

    para alm do estilo e esttica foi marcada pela insterseo de categorias de diferenciao social como

    gerao, classe, escolaridade e cor da pele, que naquele contexto simblico significa ser portuguesa.

    a distino social foi igualmente demarcada no que se refere s prprias plataformas de co-

    municao mediadas pelo computador. no incio da etnografia eu criara um perfil no facebook,

    consequncia do fato da maioria dos meus contatos pessoais e profissionais terem se deslocado

    para esta outra ferramenta com o argumento recorrente sobre a popularizao do orkut. Portanto,

    o prolongamento da minha presena no orkut se deu pela prpria etnografia. importante salientar

    que o facebook passa a ser utilizado pelos jovens somente no final de 2011. em um churrasco na

    casa de sheila, rica acessa seu perfil no facebook e fala: o orkut j era, agora o que est a dar o

    face. de qualquer forma, somente a partir de 2012 comecei a receber solicitaes de amizade dos

    jovens no facebook, apesar de que os mesmos mantiveram seus perfis no orkut.

    Por conseguinte, durante todo o perodo de realizao da etnografia negociei meu status e

    a minha presena nas redes sociais virtuais com o grupo por meio do perfil do orkut que inclua

    poucas fotos pessoais e era utilizado, sobretudo, para a troca de scraps, para o acompanhamento

    dos perfis dos jovens e conjuntamente para observar os acessos dos jovens ao meu perfil9.

    alguns dias aps encontrar fisicamente sheila no Cacm, fui convidada a ir em sua casa para

    uma feijoada. L me deparei com esse grupo de jovens entre 18 e 25 anos oriundos da mesma regio.

    o relato abaixo do dirio de campo, 28 de fevereiro de 2010, Cacm, mostra que a internet e as redes

    sociais virtuais ocupavam um lugar importante na sociabilidade do grupo.

    ela (sheila) me apresentou para todos como a escritora que iria fazer um livro sobre a

    histria dela. L s havia brasileiros, a msica era brasileira, a comida era brasileira

    de portugus havia o espao, o tempo e algumas bebidas alcolicas: moscatel,

    vinho e cerveja. sheila me diz: voc viu, no tem portugueses aqui, eles ficam l fora. Para mim, isso j estava claro. no tive problema em me enturmar, percebia alguma curiosidade em relao a mim, principalmente dos meninos diziam-me

    que eu parecia ser portuguesa pelos meus traos e o corte de cabelo... alguns jovens estavam na internet, no orkut, postando fotos da noite passada no go times o inferninho, uma discoteca brasileira em Barcarena, prxima ao Cacm.

    9 o orkut torna possvel acessar as ltimas visitas recebidas no perfil.

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    Paula Christofoletti togni

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    Haviam pessoas online, conversando e compartilhando fotos da noite anterior nos perfis do

    orkut. Constantemente, durante festas, encontros e almoos o computador permanecia ligado e ia

    sendo utilizado alternadamente pelos jovens, ainda que a maioria tivesse seu prprio computador.

    dias depois, recebi vrios convites do orkut de jovens que estavam na casa de sheila para ser in-

    cluda nas suas redes de amizade. durante os cinco meses seguintes realizei trabalho de campo no

    Cacm, acompanhando os trajetos e as trajetrias destes jovens brasileiros atravs de observaes

    e entrevistas nos seus espaos de moradia e de sociabilidade festas e almoos, bailes funks, cafs e

    discotecas brasileiras - como tambm segui os seus perfis do orkut, mantendo contato atravs dos

    scraps10 e mensagens de celular. a construo das relaes com outros jovens ao longo da etnografia

    tambm foi possibilitada atravs de trs interlocutoras privilegiadas: sheila, Camila e dora. a pes-

    quisa foi delineada metodologicamente ao contrrio da maioria das etnografias multilocalizadas que

    iniciaram suas investigaes nas sociedades de origem (assis, 2007; gRamuCK; PessaR, 1991).

    a etnografia teve como estratgia metodolgica a reconstruo das trajetrias dos migrantes pri-

    meiramente na sociedade de destino, acreditando que a consolidao de uma relao de confiana

    com os jovens poderia facilitar o acesso a suas famlias e seus crculos de amizades no Brasil, na

    tentativa de entender como viviam anteriormente ao deslocamento e, ao mesmo tempo, contrastar

    as percepes das famlias e amigos sobre a migrao com suas prprias experincias e narrativas.

    de forma no prenunciada, a internet sobretudo as redes sociais virtuais como o messenger e

    orkut (e mais recentemente o facebook) e tecnologias como a telefonia mvel ocuparam um lugar

    metodolgico fundamental em todas as etapas da etnografia. se inicialmente essas tecnologias faci-

    litavam os contatos com jovens migrantes, ampliando a rede da pesquisa, elas foram fundamentais

    para permitir um continuum entre os trabalhos de campo no Brasil e em Portugal, possibilitando

    dilogos com os jovens tanto na origem como no destino. J nos primeiros meses da realizao da

    etnografia, ainda em Portugal, percebi que as tecnologias de informao e comunicao desempe-

    nhariam um papel importante na pesquisa, como pode ser observado no excerto do meu dirio de

    campo, Lisboa, 12 de abril de 2010.

    de fato, a internet e o telemvel (celular) tem se configurado como ferramentas

    fundamentais na realizao do trabalho de campo. evidente que terei que

    incorporar as novas tecnologias de comunicao na minha tese. somente hoje,

    atravs das tiC, conversei com a Cleide, Canila, Junia, a Lili e a Helena. a Cleide

    conversamos em relao a elaborao de seu currculo, o qual me disponibilizei

    a fazer... interessante tambm a forma como elas se referem a mim amiga, fia,

    gatssima. o telefone (principalmente atravs das sms), o msn, o orkut tm sido

    a maneira mais fcil de agendar encontros, saber notcias, trocar informaes.

    Curiosamente, a noo de redes sociais, amplamente difundida teoricamente nos estudos migratrios, afigura-se como um eficaz smbolo de retrica para abordar o que no presente artigo

    nomeio como redes sociais virtuais. ao pronunciar ao longo do texto as redes sociais, estarei ar-ticulando dois conceitos semnticos: as redes sociais, enquanto abordagem terica alternativa de

    10 no perfil de cada indivduo no orkut h um espao destinado ao envio de mensagens pblicas, denominados pela plataforma como scraps.

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    64 Cronos: R. Ps-Grad. Ci. Soc. UFRN, Natal, v. 12, n.2, p. 57-74, jul./dez. 2011, ISSN 1518-0689

    anlise das migraes internacionais que surge em contraposio aos extremos da teoria neoclssica

    estrutural (ver Patricia Pessar, 1999 e monica Boyd, 1989) e as redes sociais virtuais, importantes

    tecnologias que possibilitam observar e interpretar situaes de comunicao e conexo e a pro-

    duo de sociabilidades.

    Para Charles tilly (1990), as unidades efetivas de migrao no so indivduos nem famlias,

    mas conjuntos de pessoas ligadas por relaes de parentesco, amizade, de conhecimento e de traba-

    lho. de acordo com o autor, para alm dos atributos e motivaes individuais, a migrao funciona

    como uma estrutura comunitria que translada. ao reconhecer que as redes sociais baseadas em

    laos de parentesco e amizade so componentes centrais nas anlises de sistemas migratrios, mo-

    nica Boyd (1989, p. 641) afirma:

    [...] conectam migrantes e no-migrantes no tempo e no espao. uma vez iniciados, os fluxos migratrios, frequentemente, tornam-se auto-sustentados,

    refletindo o estabelecimento de redes de informao, assistncia e obrigaes que

    se desenvolvem entre migrantes, na sociedade de destino, e amigos e parentes,

    nas reas de origem. essas redes ligam as populaes dos pases de origem e de destino e asseguram que os movimentos no sejam, necessariamente, limitados no tempo ou sem direo (grifo meu).

    a conexo entre migrantes e no-migrantes no tempo e no espao atravs de redes, sugerida

    na citao de monica Boyd (1989), se refere s redes sociais baseadas em laos de parentesco e ami-

    zade, mas pode incluir, pensando em suas funcionalidades, as redes sociais virtuais. Cabe descacar

    que aqui o virtual no considerado oposto do real. Como apontam shirley sales e marlucy Paraso

    (2010, p. 27), o virtual uma faceta do real, aquilo que no est presente na sua materialidade, mas

    que tem uma existncia concreta.

    Portanto, longe de criar relaes fixas, transplantadas para os contextos de destino, as re-

    des sociais (virtuais ou no) e suas relaes sofrem mudanas, so constantemente recriadas e

    envolvem negociaes entre os seus membros. Por outro lado, possvel observar que atravs

    das redes sociais (tambm no seu duplo sentindo semntico) se constri simbolicamente lugares

    como Brasil e europa.

    o incio da realizao do trabalho de campo no Brasil, em mantena, foi negociado ao longo

    da etnografia no Cacm, mas, especialmente atravs de chats no messenger e de scraps no orkut. ao

    perguntar para sheila se sua me, d. Creuza, tinha conhecimento sobre minha ida e permanncia

    na casa da famlia, a jovem respondeu: um vai ficar l s no meio dos bichos... j falei com ela ( a

    me) a casa mesmo humilde, no repara no11 .

    H poucas horas da minha chegada na casa da famlia Felix, o telefone tocou e era a sheila de

    Portugal12. d. Creuza comenta que sheila j havia ligado para saber se eu havia chegado. ela pede

    para conversar comigo no telefone... e diz no que voc foi mesmo e eu disse eu te falei que viria.

    Conversamos um pouco, ela me contou que tinha tomado todas no jogo do Brasil, e que a snia

    11 os scraps no sofreram correes, sendo inseridos da maneira literal em que os jovens escrevem.12 na zona rural, em Cachoeirinha de itanas, a nica rede de telefonia mvel a vivo, funcionando somente com uma antena. sendo assim,

    durante minhas permanncias estive sem comunicao telefonia mvel e internet.

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    Paula Christofoletti togni

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    (amiga com quem dividia a casa na poca) havia arranjado um trabalho em ericeira13 e se mudado

    para casa de seu irmo, e que Juliana havia chegado do Brasil e estava agora morando com ela. o

    continuum da etnografia pode ser observado na fala de sheila que para alm de obter informaes

    sobre a minha chegada em seu lugar de origem, atualiza as informaes e os principais aconteci-

    mentos no Cacm, durante a minha ausncia.

    atravs dos scraps alguns jovens, como Camila, comentam a minha estadia na casa de suas

    famlias oivou ligar amanha quinta feira (para a casa de sua famlia, onde eu estava residindo).

    Que bom que voe esta gostando minha velha nota 10 num .bjus amiga tou mto feliz de saber.

    em outro momento, sheila e Camila estavam em uma lan house no Cacm (a internet havia sido

    cortada na residncia) e me chamaram em uma ligao de vdeo. sheila relatou que um amigo seu

    de mantena havia chamado-a no messenger para perguntar quem era a loira bonita que estava na

    casa dela. ela respondeu que eu no era mulher desse tipo que d confiana para qualquer um e conta que todos na zona rural gostaram muito de mim.

    importante ressaltar que a maioria dos jovens no haviam regressado ao Brasil at a minha

    ida para a casa das suas famlias, estando em Portugal de forma ininterrupta entre 3 a 7 anos. minha

    ausncia no Cacm significava a presena nos seus lugares de origem. numa destas ausncias/

    presenas sheila me chamou no chat para relatar que havia levado uma carta de expulso14 quando

    frequentava uma discoteca brasileira.

    s: olha, ontem levei uma carta de expulso

    P: no acredito! Quando?

    s: sbado em ericeira. mas eles [os policiais] dizem que no h problema. mas v se tem problema!

    P: terei que ver com a advogada da casa do brasil.

    s: V e me falavergonha, neles foram atrs de mimno estava a fazer nada, vieram e me

    pediram os documentos

    P: no precisa ter vergonha, voc no est fazendo nada de errado, voc trabalha e vive a em

    Portugal.

    s: Acho que no vou poder esperar 3 meses para me inscrever [no sef- servio de estrangeiros

    e fronteiras]. se eles me pegam outra vez me mandam para o brasil. V l e me diz!

    P: Pode deixar!

    a transcrio de uma parte desta conversa virtual mostra novamente a relao contnua entre

    os campos (Brasil e Portugal), mas, sobretudo, revela que em vrios momentos fui acionada para a aju-

    dar na resoluo de problemas e encontrar solues, mesmo estando fisicamente em outros espaos.

    13 ericeira emerge na etnografia como um outro destino prioritrio de residncia para as pessoas oriundas de mantena, sobretudo da zona rural de Cachoeirinha de itanas. no entanto, as pessoas que vivem nesse espao so na sua maioria mais velhas (do ponto de vista dos jovens) e desempenham um papel fundamental na rede de solidariedade entre o grupo. em perodos de desemprego, por exemplo, muitos jovens procuram refgio nas casas dos adultos. as comemoraes do natal, durantes os anos da pesquisa (2010-2012) foram realizadas na casa de maurcio, localizada em um prdio no centro de ericeira. a familiaridade encontrada em ericeira expressa na narrativa de sheila: eu vivo indo l em ericeira... como se eu estivesse em cachoeirinha. no entanto, a escolha de residir no Cacm justificada exatamente pelo excesso de familiaridade. de acordo com os jovens, morar em ericeira significa ter menos liberdade e mais pessoas tomando conta da sua vida.

    14 Carta de expulso uma carta de abandono voluntria emitida pela Polcia de imigrao portuguesa, para imigrantes em situao irregular.

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    a partir desta conversa tive conhecimento da situao de sheila15, entrei em contato com a Casa do

    Brasil de Lisboa e decidimos (sheila e eu) entrar com o pedido de regularizao extraordinria16.

    num segundo momento, identifiquei que a internet e sobretudo as redes sociais orkut e no

    final da etnografia o facebook operavam na forma como os jovens selecionam informaes para

    compartilhar no local de origem que remetem sobre suas experincias migratrias e servem para

    negociar seus status e o sucesso migratrio. tal constatao s foi possvel pela minha permanncia

    em seus locais de origem. Familiares, amigos e conhecidos dos jovens migrantes faziam referncia ao

    orkut como principal mecanismo de obter notcias dos que esto fora. shirley, prima de Camila,

    relata: eu sempre entro no orkut dela, vejo as fotos. ela mudou o rosto, o jeito, est at mais bonita.

    o uso de sites de redes sociais pelos migrantes j tm sido analisado por pesquisadores que

    procuram estudar as redes transnacionais formadas pelos mesmos. mieke schrooten (2010) explorou

    o exemplo do orkut, considerando sua enorme popularidade no Brasil tanto no caso dos migrantes,

    quanto das pessoas que continuaram residindo nos locais de origem. segundo a autora, o orkut se

    configura como um importante recurso para imigrantes de diferentes classes sociais e possui um

    papel significativo nos acessos s informaes sobre os locais de destino, especialmente como um

    lugar onde o status so constantemente negociados.

    a discusso sobre se a internet se constitui como um lugar bastante controvrsia. segui-

    rei a abordagem de alguns autores como Christine Hine (2009) e Richard miskolci (2012) que a

    considera como um espao de sociabilidades moldadas, na medida em que possvel escolher e

    controlar com quem e quando estabelecemos contatos atravs de diversos critrios de seleo. de

    acordo com esta perspectiva terica, ao invs de pensarmos a internet Christinecomo um lugar, os

    autores sugerem pens-la em termos analticos como contextos culturais, devido a sua existncia

    mais autnoma em relao ao territrio (Hine, 2009 apud misKoLCi, 2012, p. 37). desta forma,

    as imagens e narrativas so selecionadas pelos jovens. Como afirma miskolci (2012, p. 40), o perfil

    um mecanismo de identificao e autopromoo, portanto, uma forma de comodificao de si,

    ou seja, so construdos sob a perspectiva do usurio, funcionando como auto-representao.

    os jovens tornam pblico o aumento do padro de consumo: roupas, sapatos, viagens e bens

    como carros e computadores e o acesso ao lazer e sociabilidades como shows de bandas brasileiras,

    e idas s discotecas, em contraposio, fixidez e falta de mobilidade na zona rural e a escassez de

    recursos econmicos que vivenciavam nos seus locais de origem.

    importante salientar que a maioria dos familiares adultos dos jovens no utiliza ferramentas

    informticas. a comunicao virtual feita entre os jovens em mantena e no Cacm (Portugal).

    no orkut que as narrativas sobre a migrao dos jovens so construdas por fotos, textos e scraps.

    no caso dos jovens migrantes, a maioria das redes de amizade do orkut so formadas por

    outros jovens de mantena e regio que permaneceram no local de origem e por jovens que vivem/

    15 desde a sua chegada em Portugal, em 2007, sheila esteve em situao irregular. sua autorizao de Residncia foi emitida em outubro de 2012, aps a entrada do pedido de regularizao feito por mim em abril de 2012. Para alm da morosidade do processo, ela precisou adiar sua regularizao, porque no ato da entrevista era necessrio pagar uma multa por ter residido ilegalmente em territrio portugus, na poca, aproximadamente 550 euros.

    16 atualmente Portugal um dos poucos pases europeus onde possvel ainda solicitar a autorizao de Residncia para trabalho sem retornar ao pas de origem. atravs do art 88 da lei de estrangeiros e fronteiras (Lei n 23/2007) de 4 de Julho, o imigrante, tendo um contrato de trabalho e seis meses de descontos na segurana social portuguesa, podem solicitar a regularizao (PoRtugaL. Lei 23/2007).

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    viveram em Portugal, fundamentalmente na regio habitada por eles a linha de sintra, onde o

    Cacm se localiza. dessa forma, a comunicao mediada pelo computador tem ajudado os migran-

    tes do mesmo local de origem nos seus novos locais de residncia (HuLLeR; FRanZ, 2004 apud

    sCHRooten, 2010) e transforma a localizao geogrfica de origem e destino como base para

    interesses comuns.

    GERINDO PERFIS E PROJETOS MIGRATRIOS

    Para alm da importncia das redes transnacionais formadas pelos migrantes e da construo

    e negociao de suas experincias migratrias, mediadas pela internet, a dimenso performativa da

    identidade pessoal atravs da gesto dos perfis nas redes sociais deve ser problematizada.

    de acordo com eva illouz (2006 apud misKoLCi, 2012, p. 40) a construo e gesto de um

    perfil um processo que converte o eu privado em performance pblica. no caso dos jovens de

    mantena, a sociabilidade dos jovens que ganha centralidade nas suas narrativas, seja nos ttulos

    dos lbuns de fotos compartilhados ou nas fotos per si. festinhas, churrasco na casa do marcelo,

    eu fui ao show do calypso, solzinho, praia e gelada em sesimbra so alguns exemplos de situaes

    compartilhadas, nomeadas pelos jovens que permaneceram em mantena como aproveitar a vida.

    o aproveitar a vida associa-se a uma agitada vida social e acesso a alguns bens de consumo.

    a conjugao entre os estilos de roupa e acessrios e determinadas corporalidades depilao, corte

    de cabelo cuidado, tatuagens, etc. ainda que possam estar relacionadas com a brasilidade no

    Cacm e em Portugal, parece a priori um estilo associado aos jovens de grupos populares no Brasil.

    alis, os consumos (miLLeR, 1987; 1997 e os estilos (ver dick Hebdige, 1979) tm sido imaginados

    e desejados de acordo com os modelos do Brasil: msicas, roupas, corte de cabelo, danas, idas a

    discotecas e shows, etc.

    um dado importante que nos locais de origem a vida social dos jovens bastante limitada. em

    mantena, a praa central um ponto de encontro dos jovens da cidade, principalmente nos fins de

    semana, onde formam pequenos grupos, conversam, bebem e paqueram. no existem discotecas e

    os eventos promovidos na cidade so escassos. Curiosamente, mantena possui 52 igrejas, a maioria

    evanglicas, que se converteram em espaos importantes de sociabilidade. na zona rural, Cachoeiri-

    nha de itanas, os jovens esto praticamente isolados. desde nosso primeiro encontro, sheila relatava

    que no queria morar na roa, onde no tinha nada para fazer. a casa de sua famlia est localizada

    a 3 km de estrada de terra do vilarejo de Cachoeirinha de itanas, onde os bares e a quadra de futebol

    so os nicos espaos de sociabilidade. o nmero de homens parece ser superior ao de mulheres.

    uma das principais reclamaes dos jovens a falta de mulher, o que pode ser explicado pelo maior

    nmero de meninas que deixam a zona rural, principalmente atravs do casamento com homens de

    outras localidades e de migraes internas para trabalho domstico em regies prximas. a maioria

    dos jovens em mantena e na zona rural j possui filhos e casada. d. Creuza observa que, depois da

    partida de sheila, todas as suas amigas que vivem em Cachoeirinha tiveram filhos, esto casadas e

    no trabalham sheila a nica que est aproveitando a vida. no morro do margoso (mantena),

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    conhecido tambm como bairro dos operrios, os jovens normalmente ficam nas ruas, ouvindo funk,

    ou nas casas, onde realizam algumas festas. o bairro estigmatizado pelo trfico de drogas, por ser

    uma zona de ocupao ilegal e pela violncia, sendo constante a presena da polcia.

    Portanto, a possibilidade de ir a shows de bandas brasileiras que se apresentam em Portugal

    j representa um ganho simblico. todas as idas aos shows e festas so compartilhadas no orkut

    atravs de fotos que geram comentrios dos jovens que ficaram no local de origem. muitos dos jo-

    vens usaram computadores pela primeira vez em Portugal e, atualmente, todos tm o seu prprio

    notebook, utilizado fundamentalmente para acederem s redes sociais, como messenger e orkut,

    e para ouvir msica brasileira.

    os conceitos micos melhorar de vida e aproveitar a vida no so antagnicos, mas sim

    categorias fluidas que so usadas contextualmente. ainda que o melhorar de vida esteja associado

    s narrativas dos adultos para justificar a migrao dos jovens, a expresso utilizada igualmente por

    irmos e amigos da mesma faixa etria. o baixo nvel salarial e a escassez de trabalho em mantena

    e na zona rural, relatados tanto pelos jovens migrantes, como pelos seus familiares e amigos, so

    considerados os principais fatores da emigrao dos jovens, para melhorar de vida.

    as expectativas familiares em relao ao deslocamento dos jovens e a importncia das remes-

    sas na renda familiar podem ser observadas na fala de alguns parentes.

    ... eu acho que ela foi porque ela quer ter um futuro melhor e ela est em busca dele. para ela

    ajudar mais a famlia... e mudar de vida (irmo de camila, 30 anos).

    o calixto [pai] no queria que ela fosse, mas olha quem ajuda a gente agora? (me de sheila).

    um hbito recorrente entre os jovens a constante atualizao das fotografias pes-soais nos perfis das redes sociais que so continuamente comentadas pelos outros jovens. a centralidade do corpo pode ser observada atravs da seleo de imagens para os perfis que geralmente procuram realar determinadas corporalidades e estilos por meio de posies e roupas bastante sensualizadas. iara Beleli (2012) ao reatualizar as ideias de Fausto-sterling (2001, apud Beleli, 2002), nota que apesar da internet ser apontada por alguns autores como um

    espao virtual descorporificado, a natureza fsica do corpo est presente na construo e gesto

    dos perfis, na mediao das relaes e na produo de subjetividades , ou seja, no continuum on/

    offline, o social corporificado.

    no caso dos rapazes, as fotos so normalmente sem camisa ou de sunga, ao passo que nas fotos de perfil das meninas podemos notar o uso de roupas justas que mostram as formas do corpo e o uso de maquiagem e salto alto. os cabelos alisados ou com extenses para mant-los

    longos bastante recorrente. a maioria das jovens tem cabelos crespos (que, no Brasil, um dos

    marcadores de ascendncia afro-brasileira), e fazem referncia ao custo dispendioso de cuidar

    do cabelo ruim no Brasil, ao passo que em Portugal, a existncia de um maior nmero de sales

    afro e com custos acessveis, geralmente de cabeleleiros africanos (Cabo verde, angola, etc)

    mencionada de forma habitual.

    o consumo, entendido como uma forma de ao simblica (ver alfred gell, 2010), serve como

    ferramenta de anlise importante para entender como se d a negociao do status dos jovens mi-

    grantes atravs das redes sociais virtuais. o acesso a determinados bens de consumo carros, motos,

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    computadores, celulares de ltima gerao e determinados estilos de roupas so quantificados

    tanto no destino quanto na origem como melhorar de vida. numa das imagens abaixo ( esquerda),

    montada17 para ser compartilhada no perfil de um dos jovens no orkut, possvel perceber que

    determinados bens dinheiro (euro), bebidas alcolicas e computadores so linguagens smb-

    licas que demonstram o sucesso e o aproveitar a vida dos jovens migrantes. a narrativa de Yan

    mostra a eficcia das redes sociais na construo do imaginrio de um possvel sucesso migratrio,

    normalmente associado melhoria das condies econmicas.

    eles [amigos e familiares] pensam que eu estou nadando em dinheiro uma vez eu falei com

    um amigo meu que achou que eu estava aqui na boa vida, v as fotos, tm notcias, a fica achando

    que a gente est com muito dinheiro.

    imagem 2 exemplos de fotos compartilhadas no orkut18

    H visveis alteraes nas relaes de poder marcadas no contexto de origem por uma moradia

    perifrica no morro e na zona rural -, um estatuto econmico baixo e um acesso reduzido ao con-

    sumo e vida social. ainda que na europa os jovens vivam em regies consideradas relativamente

    perifricas e sua sociabilidade seja muitas vezes restrita a esses espaos, eles experimentam certa

    mobilidade econmica ascendente, maior acesso aos bens de consumo e melhorias nas condies

    de moradia. Aqui eu consigo ter mais coisas do que no brasil, tipo computador, carro essas coisas. no

    brasil eu s tive moto. A grande diferena essa, afirma maicon. o acesso ao mundo do consumo est

    presente nas motivaes da migrao brasileira para outros fluxos. ao utilizar o termo cidadania do

    consumo, assis (2004) faz referncia forma de insero no mundo globalizado que as migraes

    permitem atravs do consumo. essa nova forma de cidadania por meio do consumo compartilhada

    com os outros jovens na origem atravs das redes sociais virtuais.

    a gesto dos perfis passa tambm pela constante alterao do estado civil no orkut e face-

    book (solteiro, numa relao, novamente solteiro, etc). outra regularidade encontrada se refere aos

    nicknames, continuamente modificados, normalmente em trs especiais situaes: para evocar a

    17 no texto, recorro noo de montagem para enfatizar a ideia de construo de cenrios e objetos especficos. no entanto, o termo utilizado de antemo por Beleli (2012), maquiar, faz aluso s imagens postadas nos perfis com ngulos e cenrios especficos. Para a autora, estes recursos so tentativas de mostrar em imagem suas auto-descries (p. 65).

    18 a legenda da foto compartilhada por nivaldo faz referncia ao carro, ao som potente e ao evento Brazillian day, realizado em Lisboa em 2011. com meu brinquedinho vams bomba no brasiliandays no utimo volume sabado galera em lisboa. o evento, realizado desde 1984, j se tornou um festival de referncia nas cidades de nova York, miami, toronto, tquio, Luanda e Londres. estes festivais fazem parte da estratgia da tv globo internacional para promover eventos gratuitos que renem a comunidade de brasileiros no exterior. em Portugal, a primeira edio (2011) teve como atrao principal o cantor sertanejo daniel.

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    saudade e a importncia dos vnculos familiares como por exemplo saudades famlia me

    faz falta ou ainda r. me t com saudades; quando comeam um namoro, que significa para

    os jovens uma relao que envolve compromisso e respeito, o que na maioria das vezes sinni-

    mo de fidelidade. a unio explicitada na alterao do nickname que passa assumir formas como

    maicon@luana, dora, nuno e bruno19, Vivi&fred.

    na definio dos perfis, em alguns momentos as frases iniciais so modificadas para fazer

    meno nova relao afetiva. soraia, namorada de elivlton conhecida por todos no Cacm por

    ser muito ciumenta. nos ltimos meses, o perfil de nego foi alterado para estou muito feliz com

    a mulher que amo. as alteraes so realizadas tambm em funo da perspectiva de retorno ao

    Brasil, ainda que no planejada. Camila, por exemplo, possui como nickname Araujo brevemente

    brasil, e sheila sheila brasil lainer. nos dois exemplos, brevemente pode significar de 1 a 2

    anos, ou no se consumar. Camila alterou o perfil logo que retornou do Brasil de frias, anunciando

    seu retorno que j perdura dois anos. sheila, nunca regressou ao Brasil desde 2004, e se organiza

    pagando uma passagem area em prestaes que se prolongar at maio de 2013.

    as linguagens de hipertexto utilizadas nas redes sociais pelos jovens misturam-se entre o portugus do Brasil, a adoo de grias locais como i, p, gajo e a utilizao de expresses em portugus de Portugal. em algumas situaes alguns jovens empregam frases em crioulo20, para alm de palavras cortadas ao meio ou escritas de forma incorreta. os trechos abaixo retirados do orkut ilustram as formas como o hipertexto tem sido utilizado pelos jovens: dai me paiencia prq se me der cooragem eu fujo (Camila) entao cola ai ze o maike basou mais nois ta i ya (Leo). o controle sobre o percurso dos migrantes pelas comunidades de origem e de destino (por meio dos jovens da mesma regio que residem na grande Lis-boa) foi observado em vrias circunstncias. atravs do recurso da fofoca, que surge na etnografia como uma categoria nativa e possui um carter negativo dentro do grupo, que so estabelecidas muitas das conexes entre o Cacm e mantena.

    no entanto, a noo de fofoca desenvolvida neste artigo segue a poposta sugerida por Clu-

    dia Fonseca (2004) que a compreende como uma prtica social que envolve relatos de fatos reais

    ou imaginrios sobre o comportamento de outrm. em estabelecidos e outsiders, norbert elias

    e Hohn scotson (2000), propem duas tipologias de fofocas: a depreciativa e a elogiosa. Para os

    autores, a fofoca depreciativa geralmente faz referncia s pessoas de fora do grupo ou local, en-

    quanto as fofocas elogiosas que se restringe s pessoas do prprio grupo, tendem idealizao. em

    mantena e no Cacm as fofocas no seguem esta tipologia. em primeiro lugar porque as fofocas so

    normalmente sobre fatos relacionados a determinadas pessoas e no grupos e emergem normal-

    mente de dentro do prprio crculo de parentes e amigos. Por outro lado, as fofocas esto sujeitas a

    19 os nomes de filhos(as) tambm podem ser incorporados no nickname. dora, por exemplo, teve um filho de seu namoro com um dos jovens brasileiros que no assumiu a paternidade da criana. o nickname dora, nuno e Bruno faz referncia ao seu filho e o namorado atual, nuno (portugus). a incorporao de nuno em seu nickname, a mudana do estado civil no orkut e as fotos postadas com a legenda famlia ser-vem como resposta ao abandono do jovem que faz parte do mesmo grupo de brasileiros no Cacm- Portugal, e gravidez de dora para os familiares e conhecidos na origem.

    20 Lngua falada em Cabo verde.

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    serem alternadas, ou seja, podem ser tanto elogiosas como depreciativas. a fofoca pode ser uma

    expresso de solidariedade entre o grupo. Quando algum dos jovens sai sem namorado/a ou quando

    h uma infidelidade no namoro, o desvio quase que imediatamente delatado. numa das noites

    que regressamos de uma discoteca, Livia imediatamente ligou o messenger para relatar Juliana que

    estava no Brasil de frias que seu namorado, maicon, estava na discoteca cercado de piriguetes.

    o fluxo de informaes funciona tambm no sentido inverso mantena-Cacm. gilcilene relata

    que arranjou um namorado portugus, um policial que, era muito bom para ela, no a deixava

    trabalhar, nem nada... gilcilene foi morar com ele durante 6 meses. entretanto, resolveu vir para

    o Brasil para ver seus filhos e arrumar os papis para casar. depois de alguns dias o rui viria...,

    afirmara. mas segundo a jovem, algum fez uma fofoca para o Rui (no Cacm), dizendo que ela tinha ido a um show e ficado com outro homem. ele acreditou e ligou para ela dizendo que no

    viria mais, terminando tudo. no foi o primeiro relato no qual a fofoca torna-se presente nesse

    espao transnacional. d. Lena (me de um dos jovens) j havia relatado que s vezes os fatos que

    acontecem na cidade so primeiramente conhecidos pelas pessoas que esto em Portugal: A vida

    das pessoas l so comentadas pelas pessoas daqui.

    as fofocas podem conjuntamente exprimir sentimentos de solidariedade ou compaixo.

    durante a etnografia, um dos principais jovens da pesquisa, maicon (25 anos) faleceu, vtima de

    afogamento na zona rural de mantena. sua morte foi noticiada pelo facebook, atravs do perfil de

    Juliana: luto pelo maicon. Que deus conforte toda a famlia e a mim tb. em menos de trinta minutos,

    os jovens do Cacm, inconformados com a fatalidade, j comentavam o acidente. manifestaes de

    solidariedade e detalhes do acidente foram compartilhados na pgina de sua namorada, Juliana,

    e no prprio perfil de maicon: meu irmo e o melhor amigo que eu ja tive... jefe saudades parcero

    (Yan) verdade vai ta sempre no meu coraao dificil de acredita (sheila)21.

    diana diz saber o que amiga est sentindo, pois perdeu o marido (de mantena) em maro de

    2012, vtima de uma exploso de gs no Cacm, regressando com seu filho de 4 anos para o Paran.

    alexandre estava em Portugal h 7 anos e no havia regressado ao Brasil. nossa amiga eu sinto

    muito o quer aconteceu fiquer tao triste queria falar com vc eu sei o quer vc dar sentino um dor muito

    rui deus saber o quer fazer tb amiga deppis vou entrado na net para nos ser falar tb beijo (daiane).

    o custo do translado do corpo, de aproximadamente cinco mil euros, foi possibilitado pela

    organizao das redes de amizade e familiares no Cacm e mantena, na ausncia de recursos finan-

    ceiros da embaixada e do Consulado brasileiro para este fim.

    CONSIDERAES FINAIS

    ainda que de forma exploratria, neste artigo revelei a importncia da internet como cam-

    po/ferramenta de pesquisa sobretudo as redes sociais virtuais na realizao de uma etnografia

    multisituada com jovens brasileiros migrantes (togni, 2012). Pensar as migraes internacionais

    contemporneas na antropologia tm sido possvel por meio de novas abordagens tericas e meto-

    21 extradas do perfil do Facebook de maicon, logo depois de sua morte em 25/06/2012.

  • Dossi Pesquisas no pontocom: desafios metodolgicos, questes ticas e novas categorias para a investigao em cincias sociais

    O K-100 cOmpartilhadO: jOvens, tecnOlOgias e gestO da experincia migratria

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    dolgicas que focalizam os fluxos (ver ulf Hannerz, 2003), as redes e os trnsitos (PisCiteLLi, 2003;

    2008; 2009), como por exemplo a teoria transnacional, a teoria das redes sociais (BoYd, 2003; veLas-

    Co, 1998) e as novas propostas de etnografias multisituadas (ver george marcus, 1995; akhil gupta

    e James Ferguson, 1997). no obstante, a possibilidade de realizar etnografias num continuum on/

    off line, na medida em que entendemos as redes sociais virtuais como parte integrante e definidora

    das sociabilidades dos sujeitos na contemporainedade , poder assumir um uma nova perspectiva

    para pesquisadores, cujas anlises, tm como objetivo apreender as interconexes transnacionais.

    num segundo momento, procurei demonstrar o modo como as redes sociais - orkut e face-

    book tm operado na forma como os jovens selecionam informaes para compartilhar no local de

    origem sobre suas experincias migratrias, que remetem negociao de seus status e do sucesso

    migratrio. o carter performativo da identidade pessoal pode ser examinado nos hipertextos escrita,

    fotos e vdeos que possuem como narrativas centrais a sociabilidade dos jovens idas a festas, shows

    brasileiros, churrascos, etc e, conjuntamente, os bens de consumo adquiridos ao longo do projeto mi-

    gratrio. nos contextos pesquisados, o incessante fluxo de informaes entre mantena e o Cacm seja

    atravs das fofocas ou do acompanhamento dos perfis nas redes sociais virtuais tm, na internet, um

    importante recurso na manuteno dos vnculos, na produo de imaginrios sobre a imigrao, bem

    como na circulao de informaes. a produo de imaginrios ou de mundos possveis (ver arjun

    appadurai, 2004) mediada tambm pelas redes sociais virtuais. Conceitos micos como melhorar

    de vida e aproveitar a vida utilizados nos locais de origem dos jovens torna inteligvel a maneira

    como as narrativas e imagens virtuais (selecionadas pelos jovens no destino) constroem realidades e

    formam ideias sobre as experincias migratrias para os outros jovens em mantena.

    Por fim, a escolha e uso de determinadas plataformas em detrimento de outras, revelam distin-

    es sociais importantes. o argumento sobre uma possvel popularizao do orkut, a valorizao

    do facebook e a posterior migrao dos jovens membros de classes populares no final da etnografia

    para o facebook tornou-se um exemplo que merece ser analisado com mais profundidade.

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