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1 Introdução 1 Ninho de víboras ou casulo agradável, a família raramente permite indiferença. Aqueles que a defendem evocam as refeições ou as festas, um certo ar de família, guardam as suas memórias. Os que a depreciam preferem o amor e uma cabana, “se não fosse” mais do que “em” família, condenam os segredos, odeiam os estores fechados, acusam os slogans associados aos momentos tristes… Fica por compreender porque, segundo uma consulta nacional realizada em 1994 1 , jovens entre os 15 e os 25 anos celebravam a família e a colocavam no topo dos seus valores e, de um modo geral, tentar explicar a persistência do fenómeno família: sejam quais forem os países, as épocas, os indivíduos…, a família existe. Neste sentido, convém apresentar este fenómeno permanente que é a família (1), antes de apresentar a instituição familiar (2) e em seguida o Direito da Família (3). 1. O fenómeno família 2 Apreender o fenómeno família é tão difícil como a sua noção. Aproximadamente, é possível definir a família como um grupo de pessoas que podem estar ligadas pelo sangue, a afinidade ou a vida em comum. A dificuldade prende-se com o facto de que já não há “uma” família mas sim famílias, variando consoante os tempos, os lugares, os indivíduos em causa, as questões consideradas. Esta diversidade é tão espantosa como é, simultaneamente, um fenómeno de grande permanência (A), o que as diversas funções exercidas pela família explicam facilmente (B). A. A permanência do fenómeno 1.A intemporalidade na diversidade 3 Em Roma, a gens patriarcal reunia todos os descendentes varões de um mesmo autor sob a potentas do pater familias no seio de uma família que desempenhava um importante papel económico e político até à data do seu colapso, a partir do século II antes de Cristo (sob influência de múltiplos factores). Será progressivamente substituída, por influência do Cristianismo 2 , pela domus (ou familia, isto é, o grupo 1 Consulta feita a jovens entre os 15 e os 25 anos. 2 Com Constantino, no século V antes de Jesus Cristo.

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1

Introdução

1 Ninho de víboras ou casulo agradável, a família raramente permite indiferença.

Aqueles que a defendem evocam as refeições ou as festas, um certo ar de família,

guardam as suas memórias. Os que a depreciam preferem o amor e uma cabana, “se não

fosse” mais do que “em” família, condenam os segredos, odeiam os estores fechados,

acusam os slogans associados aos momentos tristes… Fica por compreender porque,

segundo uma consulta nacional realizada em 19941, jovens entre os 15 e os 25 anos

celebravam a família e a colocavam no topo dos seus valores e, de um modo geral,

tentar explicar a persistência do fenómeno família: sejam quais forem os países, as

épocas, os indivíduos…, a família existe. Neste sentido, convém apresentar este

fenómeno permanente que é a família (1), antes de apresentar a instituição familiar (2) e

em seguida o Direito da Família (3).

1. O fenómeno família

2 Apreender o fenómeno família é tão difícil como a sua noção. Aproximadamente, é

possível definir a família como um grupo de pessoas que podem estar ligadas pelo

sangue, a afinidade ou a vida em comum. A dificuldade prende-se com o facto de que já

não há “uma” família mas sim famílias, variando consoante os tempos, os lugares, os

indivíduos em causa, as questões consideradas. Esta diversidade é tão espantosa como é,

simultaneamente, um fenómeno de grande permanência (A), o que as diversas funções

exercidas pela família explicam facilmente (B).

A. A permanência do fenómeno

1.A intemporalidade na diversidade

3 Em Roma, a gens patriarcal reunia todos os descendentes varões de um mesmo autor

sob a potentas do pater familias no seio de uma família que desempenhava um

importante papel económico e político até à data do seu colapso, a partir do século II

antes de Cristo (sob influência de múltiplos factores). Será progressivamente

substituída, por influência do Cristianismo2, pela domus (ou familia, isto é, o grupo

1 Consulta feita a jovens entre os 15 e os 25 anos. 2 Com Constantino, no século V antes de Jesus Cristo.

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daqueles que vivem debaixo do mesmo tecto), esta família fundada no casamento

(concebida como uma união sagrada) e submetida à autoridade do marido - pai de

família, autoridade que este último deve exercer no amor e mútuo respeito.

O Direito Antigo conhece uma evolução comparável: a família inspira-se, numa

primeira fase, no clã patriarcal1 germânico. Porém a aquisição da Igreja da jurisdição

sobre o casamento e a filiação no século IX favorece, numa segunda fase, a expansão do

modelo cristão (rejeição da família natural, isto é, aquela que resulta das relações extra-

conjugais, abrandamento da autoridade paternal). Coabitam agora várias figuras

familiares, como a linhagem (parentesco legítimo) e a residência partilhada.

O Édito de Tolerância de Novembro de 1787 será um acontecimento

determinante: ao conceder aos Protestantes o direito de casar perante a autoridade civil

contribuiu para a perda da influência da Igreja na família. A secularização do casamento

devido à Revolução Francesa (decreto de 1791) inspirar-se-á aí.

Os filósofos do século XVIII ao louvar uma família nuclear, onde reinam a

liberdade e a igualdade (liberdade de divórcio, liberdade de união, livre acolhimento de

filhos ilegítimos…), preparariam caminho para as reformas revolucionárias. Divórcio

por mútuo consentimento e incompatibilidade de feitios, direitos dos filhos ilegítimos,

controlo do poder paternal, cessação deste poder aos 21 anos, igualdade dos filhos: a

liberdade e a igualdade gozarão efectivamente grande prestígio na família francesa. Mas

por medo dos tempos: 1804 marcaria o retorno em força de concepções mais

tradicionais e mais conformes ao autoritarismo bonapartista. Seria necessário chegar a

meados do século XX para ver consagrados os princípios republicanos no seio da

família.

1 Em que a mulher é comprada ao pai e submetida ao poder do marido, que pode nomeadamente repudiá-

la.

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2.A universalidade na diversidade

4 A família está em todo o lado: tanto no Norte como no Sul, no Oriente como no

Ocidente, sob todos os climas e em todas as civilizações.

Mas esta universalidade do fenómeno família não deve disfarçar a extrema

diversidade das famílias assim recenseadas simultaneamente no planeta: qual é a relação

existente entre a família alargada do Mediterrâneo e a família nuclear do Norte, entre

aquela baseada no casamento monógamo e aquela emergente do concubinato ou da

união polígama, entre aquela em que o repúdio permite dissolver unilateralmente o

vínculo conjugal e aquela em que o divórcio é mantido dentro do limite, de conteúdo e

processo, entre aquela que acolhe o filho ilegítimo como legítimo e aquela que se fecha

aos primeiros, entre aquela em que se partilha uma autoridade controlada e aquela que

vive sob um poder exclusivo…?

5 Esta diversidade do fenómeno familiar, por outro lado permanente, verifica-se em

vários aspectos: organização patrimonial e pessoal, relações de casal ou de parentesco,

constituição e funcionamento ou dissolução. São múltiplos os factores para os enumerar

de forma exaustiva: clima1, considerações religiosas2 ou filosóficas ou culturais,

factores sociais3, políticos ou económicos, influência de factores demográficos4, de

representações sexuais…

1 Para Montesquieu, a poligamia era questão de clima, sangue quente ou sangue frio… 2 Ver por exemplo a grande diversidade da abordagem do divórcio, união livre, poligamia… consoante o

peso da religião católica, protestante, islâmica… 3 As diferentes classes sociais não praticam os mesmos tipos de divórcio, podem ser mais ou menos hostis

à união livre… 4 A coabitação juvenil é uma prática muito específica.

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4

B. As funções da família

6 A explicação desta permanência e desta diversidade do fenómeno familiar reside nas

diversas funções, colectivas e individuais que assumiu e – ou – assume ainda hoje.

1. As funções colectivas

7 As funções colectivas da família inspiram alguns diplomas jurídicos, como o

parágrafo 10º do Preâmbulo da Constituição de 1946, o artigo 16º da Carta Social

Europeia assinada em Turim a 18 de Outubro de 19611, ou ainda o artigo 1º da Lei de

25 de Julho de 1994: “ a família é um dos valores essenciais nos quais a sociedade é

fundada. É nela que assenta o futuro da Nação”.

8 A família assume várias funções de interesse geral. Pondo de parte a sua função

religiosa, isolam-se actualmente cinco funções principais:

1ª) Uma função sexual: a família enquadra as relações sexuais ao proibir, impor

ou autorizar esta ou aquela união. Actualmente esta função tradicional é fortemente

contestada, uma vez que a liberdade da vida privada traz consigo a liberdade dos

comportamentos sexuais. O argumento peca por excesso: porque deve esta liberdade ser

absoluta? O contributo das ciências humanas que recordam simultaneamente a

contingência e a importância de proibições sexuais deveria levar o jurista a uma dupla

prudência: consciência da relatividade dos tabus, consciência da necessidade de tabus.

Para dar apenas um exemplo, como contestar a proibição do incesto, quando se conhece

a sua função social constitutiva?

2ª) Uma função demográfica: a família é factor de natalidade porque uma

mulher solteira concebe menos crianças do que uma mulher que vive em “casal”, por

razões óbvias, materiais e afectivas. Esta função, que durante muito tempo inspirou uma

política familiar, destinada a remediar a crise de natalidade que afecta alguns países, é

actualmente discutida, por um lado devido à eficácia incerta de políticas familiares na

1 O diploma dispõe: “ Com vista a assegurar as condições de vida indispensáveis ao pleno

desenvolvimento da família, célula fundamental da sociedade, as Partes Contratantes comprometem-se a

promover a protecção económica, jurídica e social da vida de família, designadamente por meio de

prestações sociais e familiares, de disposições fiscais, de encorajamento à construção de habitações

adaptadas às necessidades das famílias, de ajuda aos lares de jovens ou de quaisquer outras medidas

apropriadas.”

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demografia (a decisão de ter um filho provem de escolhas pessoais sobre as quais o

Estado tem pouco poder), por outro lado; as críticas dos demógrafos preocupados com

aumento da natalidade devido à actual crise socioeconómica (desemprego, derrapagem

das despesas de saúde…). De um modo inverso, o peso das reformas num país

envelhecido dá a esta função uma importância acrescida. A esta primeira função

demográfica, é preciso aliás acrescentar que a família é factor de longevidade, uma vez

que as estruturas familiares oferecem uma preciosa protecção contra a adversidade, de

tal modo que o homem rodeado de uma família vive mais anos do que um homem só.

3ª) Uma função política: a família reúne o que seria na falta dela “uma malha de

indivíduos”1; primeiro elo da sociedade, factor inestimável de coesão social, permite a

aprendizagem da autoridade2 e da solidariedade3 e mais muitas vezes, a transmissão dos

valores republicanos (liberdade, igualdade, fraternidade).

4ª) Uma função económica: sem mencionar uma função de produção económica,

hoje reduzida4, a família continua a ser a primeira célula de consumo, assegura a

educação económica dos filhos e encoraja o trabalho e a poupança nos adultos

conscientes das suas responsabilidades para com os filhos.

5ª) Uma função social: a família assegura a tomada de responsabilidade

patrimonial e pessoal dos mais vulneráveis, seja qual for a causa da sua vulnerabilidade

(idade, doença, desemprego…).

6ª) Uma função espiritual: através do enraizamento do homem que situa no

tempo ao colocá-lo na linhagem dos seus antepassados (dá-lhe raízes no passado) e dos

seus descendentes (projecta-o no futuro), a família permite ao Homem ultrapassar a sua

condição de mortal.

9 Estas funções são facilmente realizadas por uma família unida, isto é solidária no

momento e estável ao longo dos tempos e que pode portanto reprimir individualidades.

1 Josserand. 2 Os psiquiatras insistem nas relações entre delinquência e imagem paterna: a autoridade do pai, que

encarnava a Lei, seria psicologicamente essencial na construção do indivíduo. 3 A partilha familiar prefigura a partilha social. 4 As empresas familiares são raras no mundo económico moderno.

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Este risco reconhecido no passado, é limitado actualmente, onde o perigo é sobretudo o

inverso. Com efeito as funções individuais da família sobrepuseram-se naturalmente, na

sociedade moderna, às funções colectivas, sendo estas últimas frequentemente

transferidas para o Estado (educação dos filhos, auxílio aos indigentes, assistência nas

doenças, subsídio para os desempregados…).

2. As funções individuais

10 A família tornou-se um direito para o indivíduo, mais precisamente, um Direito do

Homem, como o proclamam diversos diplomas: o artigo 16º, par. º3, da Declaração

Universal dos Direitos do Homem (“A família é o elemento natural e fundamental da

sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado.”), o artigo 23º do Pacto dos

Direitos Civis e Políticos (“O direito de se casar e de fundar uma família é reconhecido

ao homem e à mulher a partir da idade núbil.”), os artigos 8º e 12º da Convenção

Europeia dos Direitos do Homem (“qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua

vida… familiar…”; “a partir da idade núbil, o homem e a mulher tem o direito de casar-

se e de constituir família, segundo as Leis nacionais que regem o exercício deste

direito”), a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, ou ainda a

Carta dos Direitos Fundamentais da União adoptada a 12 de Dezembro de 20071.

11 De facto, a família satisfaz uma dupla função individual.

1º) Constitui um baluarte contra o Estado e mais genericamente contra todos os

poderes, um refúgio onde cada um tem a certeza de encontrar a intimidade, a

solidariedade, particularismo, um lugar de resistência, e eventualmente, que combate a

arregimentação … pelo menos, mais uma vez, se for estável e solidária.

2º) A família é também, para o indivíduo, o meio para alcançar a felicidade, a

realização pessoal. Esta função, muito moderna, da família não está isenta de perigo:

constitui uma força centrípeta, um factor de explosão da célula familiar, ou pelo menos

origina uma família conflituosa. Dá azo a uma grande contingência da família que varia

consoante as concepções que cada um tem da felicidade, concepções aliás volúveis ao

1 O artigo 6º do Tratado de Lisboa de 13 de Dezembro de 2007 reconhece-lhe o mesmo valor jurídico que

os tratados. A Carta consagra o direito ao respeito da vida familiar, o direito a casar e fundar uma família,

o direito à conciliação da vida profissional e familiar nos artigos 7º, 9º e 33º.

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longo de uma vida, de tal modo que a família torna-se instável no tempo. Levada ao

extremo, tende a instrumentalizar as pessoas1.

12 Consoante o lugar, o tempo, e também os indivíduos, a família terá preferencialmente

esta ou aquela função. E é na função atribuída pela sociedade que esta obtém a definição

de família e a determinação do seu regime jurídico: a solidariedade assenta de

preferência numa família numerosa e estável; o direito à felicidade conduz mais a uma

família nuclear e instável…

2.A Instituição familiar

13 É difícil definir a instituição familiar contemporânea. A família contemporânea é

“incerta”: porque a sociedade hesita sobre as funções que convém atribuir à família, o

sistema jurídico tem dificuldades em definir o que é uma família. A noção de família

remete para a ideia de um grupo de pessoas unidas por laços inter-individuais, cruzando

assim individual e colectivo. Aliás, será provavelmente preferível falar hoje de famílias

(A). Toda a evolução jurídica consistiu na insistência do aspecto individual em

detrimento do aspecto colectivo (B).

A. Uma noção plural

14 O Código Civil não define a família. Utilizava o termo em 1804 apenas para fixar a

composição do Conselho de família, esse órgão tutelar de protecção de maiores ou

menores. Também hoje se refere a ela quando remete ao “interesse da família”, esta

noção angular consagrada por diversas reformas. Mas é realmente difícil determinar os

indivíduos que uma família reúne e o conjunto que esta consagra. E a análise comprova

que hoje não há provavelmente “uma família” mas sim “famílias”.

1 O destino da criança ilustra bem este deslizamento: o direito a uma vida familiar normal origina o

direito à criança; de tal modo que o direito à felicidade dos pais é invocado para suportar todas as

vontades concebíveis (liberdade ilimitada da procriação assistida e de adopção, exercício do poder

paternal…).

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1. As relações inter-individuais

15 A determinação das relações. A família constitui-se tradicionalmente por meio de

duas ordens. Na ordem vertical, assenta num laço elementar, o laço da filiação. Na

ordem horizontal, ela associa os afins ou assimilados.

A filiação assenta principalmente no vínculo de sangue, esse vínculo que une um

indivíduo aos seus autores biológicos. Mas a isto agrega-se também a filiação artificial

procedente da adopção. O Direito compõe assim o parentesco ao adicionar os diferentes

laços elementares sucessivos de filiação existentes entre indivíduos. No meio disto, o

Direito faz a distinção entre os parentes em linha recta (quer isto dizer, aqueles que

descendem uns dos outros porque a linha é recta, direita)1 e os parentes em linha

colateral (isto é aqueles que descendem de um progenitor comum porque a linha que os

une foi quebrada)2. No seio do parentesco, o Direito classifica frequentemente os

parentes, em função da sua proximidade, que não depende da realidade afectiva, mas de

uma unidade de medida abstractamente determinada pelo Direito, o grau, isto é, a

distância que separa as diferentes gerações.

A este tipo de parentesco (de sangue ou de adopção) associa-se a afinidade. Caso

se fale geralmente de cônjuges e afins, é porque num sentido estrito, a afinidade apenas

diz respeito aos cônjuges, mas que num sentido lato, o Direito estabelece por vezes

também um vínculo entre cada cônjuge e os parentes pelo sangue do outro3.

Porém, seria limitativo ficar por ali. A família contemporânea expandiu-se para

lá destes laços de parentesco e afinidade. A estes dois tipos de laços plenamente

“jurídicos”, convém primeiro adicionar todos os laços de facto que o Direito “não

institui”, para falar com rigor, mas que mais ou menos reconhece. As pessoas em

1 A linha é descendente (filhos, netos…) ou ascendente (pais, avós…), materna (da parte da mãe) ou

paterna (da parte do pai). 2 Sejam colaterais privilegiados (estes são os irmãos e irmãs e seus descendentes), consanguíneos ou

uterinos ou germanos (isto é, vindo apenas do mesmo pai ou apenas da mesma mãe ou resultantes do

mesmo pai e mãe) ou colaterais simples (porque o seu autor/progenitor comum é mais afastado que o pai

e a mãe). 3 Deve-se ter atenção com a polissemia do termo “beau parent”: o termo pode designar o cônjuge do pai

ou da mãe (padrasto ou madrasta) ou o pai ou a mãe do cônjuge (sogro ou sogra).

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concubinato pertencem assim incontestavelmente ao domínio da família. E a filiação de

facto também não lhe é estranha. Finalmente, seria hoje artificial não acrescentar o

vínculo emergente de um pacto civil de solidariedade (doravante designado por “pacs

ou PACS”), pacto que cria um familiar horizontal como o demonstra a sua

incompatibilidade com o vínculo matrimonial ou com um parentesco estreito.

A família tem-se assim progressivamente expandido, ao ponto de se tornar

preferível falar hoje de “famílias”. E este plural explica o surgimento de novas

terminologias, propensas a concentrar numa mesma expressão laços que permanecem

diferentes na ordem jurídica. O termo “casal” surgiu assim para reunir casamento,

concubinato e pacto civil de solidariedade. A “parentalidade” é igualmente muito

considerada para designar todas as relações que o Direito reconhece mais ou menos na

ordem vertical, ao lado da filiação no sentido estrito. Aliás, a inovação terminológica

permite frequentemente apagar de modo artificial as diferenças essenciais, quando não

está destinada a apoiar novas reivindicações. O termo “parentalidade” é assim

estreitamente correlacionado com as reivindicações dos padrastos (que pretendem ver

juridicamente reconhecido o vínculo que uma recomposição familiar criou com os

filhos do novo cônjuge) ou dos homossexuais (que reclamam o direito à adopção ou de

recorrer à assistência médica à procriação). A família contemporânea é assim “plural” e

“incerta”.

16 Os efeitos dos laços. Os laços assim instituídos ou reconhecidos produzem efeitos

muito variáveis. E esta diversidade não provém unicamente do teor diferente dos laços

mas também da matéria considerada. A família é hoje muitas vezes dita “de geometria

variável” porque o círculo familiar considerado pelo Direito varia consoante a questão

em jogo, se a questão é de ordem sucessória (o parentesco para efeitos de sucessão vai

até ao 12º grau; porém, o cônjuge faz hoje parte dos herdeiros)1, ordem alimentar

(somente o parentesco em linha recta e afinidade imediata produzem efeitos), ordem

tutelar (todos os pais e afins podem ser convidados para o conselho de família cônjuge,

1 O Direito não trata todos os parentes de sangue da mesma maneira. Classifica-os segundo um duplo

critério: consoante se são parentes em linha recta ou colateral com o falecido; consoante o grau de

parentesco com o falecido.

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parceiro em concubinato ou parceiro de pacto civil de solidariedade são em principio

responsáveis pela tutela ou curadoria)1 …

Contudo, a evolução do Direito parece inspirar-se sempre no fenómeno

sociológico, descrito por Durkheim, do estreitamento contínuo da família. As sucessivas

reformas, no Direito das sucessões2, matrimonial3, tutelar4, paternal5… atestam a

passagem da família alargada à família conjugal (apenas casal) ou paternal (pais e

filhos)6.

2. O grupo

17 Para além destas relações inter-individuais, a família é grupo, instituição. A primeira

técnica que permite proteger o grupo, ultrapassando as considerações individuais

consiste em dotar a família de personalidade moral. Esta ideia que suscita a seu tempo a

controvérsia doutrinal7 e pode explicar certas soluções positivas8 ou fundar novidades9

sofre do descrédito associado à época que a viu nascer. No Direito contemporâneo o

triunfo das individualidades é essencialmente fundamentado no interesse da família,

noção vaga e que dá azo a múltiplas interpretações.

1 A partir da Lei de 5 de Março de 2007. 2 Redução do grau de sucessão, promoção do cônjuge sobrevivo… 3 Sistema das autorizações para casamentos. 4 Também há o fenómeno inverso: agora a tutela em forma de administração legal pode ser confiada a

qualquer familiar ou afim. 5 Organização da família unilinear (pai isolado e filho) e monoparental (o filho vive com apenas um dos

pais) … 6 Ainda que a família alargada retome a sua influência num mundo em que o ser humano se sente sem

ligação (deste modo se explica o papel dos ascendentes…) e onde as dificuldades económicas convidam a

uma solidariedade reencontrada, no desemprego, na doença…

7 Savatier, D. 1939, chr.49

8 É o caso do regime matrimonial (este era o objecto da tese do decano Carbonnier), o caso do estatuto

jurisprudencial das recordações de família… 9 Permitiria agir em justiça para o respeito do direito à honra (Mazeaud, por L. Leveneur, Leçons de droit

civil), fundaria a protecção de um património familiar (actualmente mal preservada através da instituição

do “bem de família”), permitiria a representação política das famílias (assegurada por algumas

associações familiares) …

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B. Uma evolução individualista

18 A tendência é a evolução da família direccionada mais para o individual e menos

para o colectivo.

1. O individual

19 Liberdade e igualdade. As relações inter-individuais são cada vez mais inspiradas

pela liberdade e igualdade.

A única conquista revolucionária foi, durante muito tempo, a secularização da

família1, tendo as ideias ultra conservadoras de Bonaparte sobre a instituição familiar2

tido por efeito consagrar uma família profundamente desigual3 e marcada pelo poder do

do marido e pai4. O restabelecimento do divórcio pela Lei Naquet em 1884, quando a

Restauração tinha abolido o divórcio em 1816, foi sem dúvida a maior alteração do

século XIX.

As verdadeiras reformas surgem na primeira metade do século XX. A guerra, a

crise económica, a pressão do movimento feminista… irão introduzir a liberdade e a

igualdade nas relações familiares: primeiro entre cônjuges5, depois entre filhos1 e por

fim nas relações entre pais e filhos2.

1 Até aqui, os casamentos eram celebrados pela Igreja, sendo que os registos civis permaneciam na sua

posse… 2 O divórcio apenas foi consagrado porque Bonaparte pretendia utilizá-lo para se separar de Josefina que

não lhe dava herdeiro. 3 Desigualdade das filiações, legitima e natural (sendo que a segunda era muito inferior à primeira no

estabelecimento e efeitos) e de que teria dito (“O Estado não necessita de bastardos”); silêncio intencional

sobre o concubinato (“ o casamento no 13º bairro” dizia na altura Balzac, quando a capital apenas tinha

12); desigualdade entre homens e mulheres, nas relações conjugais, tanto pessoal como patrimonial, uma

vez que a mulher estava submetida ao marido (afectada por incapacidade, mesmo, até à Lei de 18 de

Fevereiro de 1938, de tal modo que o artigo 213 do Código Civil mencionava então “o marido deve

protecção à mulher e a mulher obediência ao marido”; o marido era “dono e senhor da comunhão”…)

mas também nas relações paternais onde o poder paternal apenas conferia um papel limitado à mãe… 4 O poder paternal era absoluto e não controlado. 5 Este período é marcado por três importantes datas: 1907, 1938, 1942. Nomeadamente, e

respectivamente, o livre salário da mulher casada, a capacidade da mulher casada, as medidas de

representação ou de autorização.

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“A revolução tranquila do direito da família”3 chegaria mais tarde, na segunda

metade do século XX. As relações do casal, as relações parentais, os poderes sobre os

filhos… tudo será repensado a partir dos anos 60. Esta recodificação, emanada do

decano Carbonnier4, fez-se por etapas sucessivas mas numa ordem digna de registo:

Leis sobre a tutela (14 de Dezembro de 1964), os regimes matrimoniais (13 de Julho de

1965), a adopção (11 de Julho de 1966), o poder paternal (4 de Junho de 1970), a

filiação (3 de Janeiro de 1972), o divórcio (11 de Julho de 1975).

Depois, a partir de 1985 realizou-se um terceiro conjunto de reformas. Tratou-se,

inspirando-se, mesmo, em relatórios pedidos pelos poderes públicos5, ou para modificar

à margem esta ou aquela reforma anterior, ou para reestruturar de modo mais global esta

ou aquela instituição familiar. Isto a fim de consagrar plenamente a igualdade ou fazer

progredir também a liberdade, quando não se tratava de lutar contra a

instrumentalização do Direito da família e mais especificamente contra os casamentos

fraudulentos. Regimes matrimoniais e gestão dos bens da criança (Lei de 23 de

Dezembro de 1985), poder paternal (Leis de 22 de Julho de 1987, 4 de Março de 2002),

filiação (Leis de 8 de Janeiro de 1993, 29 de Julho de 1994, despacho de 4 de Julho de

2005), adopção (Leis de 8 de Janeiro de 1993, 5 de Julho de 1996, 4 de Março de 2002,

4 de Julho de 2005), pacto civil de solidariedade (Leis de 15 de Novembro de 1999, 23

de Junho de 2006), concubinato (Lei de 15 de Novembro de 1999), direitos de sucessão

(Leis de 3 de Dezembro de 2001, 23 de Junho de 2006), divórcio (Leis de 30 de Junho

de 2000, 26 de Maio de 2004), casamento (Lei de 24 de Agosto de 1993, 26 de

Novembro de 2003, 4 de Abril de 2006) …: nenhuma questão familiar escapou a este

frenesim legislativo.

1 Também aqui há algumas datas importantes: 1912, 1907, 1955 e 1956, 1923 e 1939 e 1958 e 1960, isto

é, respectivamente, a admissão da acção em investigação de paternidade natural, a abertura da

legitimação, o melhoramento da condição dos filhos incestuosos e adulterinos, os favores sucessivos em

relação à adopção. 2 A Lei de 1938 coloca o poder paternal sob controlo. 3 Seguindo a expressão do deão Cornu. 4 Com excepção da Lei de 11 de Julho de 1966 relativa à adopção. 5 V. nomeadamente I. Thréry, Couple, filiation et parenté aujourd’hui, relatório entregue em Maio de

1998 ao Ministro do Emprego e da Solidariedade Social e ao Ministro da Justiça; F. Dekeuwer-Défossez,

Rénover le droit de la famille, relatório entregue em Setembro de 1999 ao Ministro da Justiça.

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É lamentável que as reformas tenham também sido realizadas através de

empilhamento sucessivo e sem ter havido sempre a preocupação com a coerência do

conjunto. É também difícil, também, não insistir nos perigos que uma tal tendência

legislativa apresenta: nenhuma família pode ser constituída e prosperar mediante as

únicas considerações de liberdade e igualdade: são o dever, a união, a solidariedade, o

triunfo sobre os egoísmos individuais…que, individualmente, podem desenhar um

grupo familiar estável e forte.

2. O colectivo

20 Solidariedade. Ainda existe solidariedade como comprova o interesse da família, os

deveres entre cônjuges… Sem dúvida, foi fortemente abalada pelas sucessivas reformas.

O melhor exemplo é provavelmente a reforma do divórcio realizada pela Lei de 26 de

Maio de 2004: ao privar a culpa de qualquer efeito na determinação das consequências

do divórcio abalou os deveres de casamento e atenuou a realidade do vínculo

matrimonial; ao consagrar o divórcio por alteração definitiva do vínculo conjugal,

tornou o casamento um compromisso livremente dissolúvel. Será que um casamento

desprovido de importância temporal e vinculativa pode constituir um lar estável?

Apesar disso, a solidariedade subsiste e até progride em alguns aspectos. Deste modo, a

Lei de 23 de Junho de 2006, por um lado reforçou a importância patrimonial do

casamento ao melhorar os direitos de sucessão do cônjuge sobrevivo, e por outro lado

alargou a abrangência pessoal - até mesmo patrimonial – do pacto civil de solidariedade.

21 Instituição jurídica finalizada ou meio útil para satisfazer todos os interesses?

A família desenhada pelo Direito está ainda destinada a cumprir certas funções. Mas

acontece que os indivíduos utilizam as instituições familiares para tudo e mais alguma

coisa: o casamento pode assim ser pretendido unicamente para permitir a um estrangeiro

residir em território nacional; um pedido de adopção é por vezes apresentado ao juiz

para conferir ao parceiro em concubinato direitos na sucessão do outro; o divórcio pode

ter como único objectivo o de permitir a um cônjuge fugir à obrigação de pensão de

alimentos dos sogros; o reconhecimento de um filho é por vezes realizado para

contornar regras de adopção…

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Semelhantes defraudamentos de instituições são dificilmente aceitáveis, uma vez

que violam o princípio de igualdade1 e constituem um ataque aos valores familiares.

Contudo, são difíceis de sancionar porque: 1º) definir a função de instituições é uma

tarefa delicada; 2º) definir o móbil ilícito é incerto; 3º) prevenir semelhantes

comportamentos pela formação de uma verificação prévia não está isento de perigo para

a liberdade em constituir uma família2; 4º) a sanção habitual da fraude consiste em

declarar a montagem não oponível ao terceiro mas válido entre as partes, o que volta a

manter, a título de sanção, uma instituição familiar que não é mais do que uma forma

sem conteúdo e quase nada satisfatório. Será certamente preferível destruir

radicalmente, tanto quanto possível, o casamento, o reconhecimento…assim entendidos.

Questiona-se também se a sanção destes comportamentos não pertence mais ao Direito

penal, ao Direito administrativo, do Direito da Administração Interna… do que ao

Direito da família em si.

3. O direito familiar

22 É bem conhecida a especificidade do direito da família (A). A sua existência é por

vezes contestada (B).

A. A especificidade do direito da família

23 Esta especificidade diz respeito provavelmente menos às fontes, quer se trate de

fontes formais ou reais3, do que as características da norma de direito e o lugar do

judicial.

1 O estrangeiro beneficiará do estatuto associado à qualidade de cônjuge francês, ao contrário dos

estrangeiros não casados (há violação da igualdade no trato desigual de coisas iguais) e como os outros

estrangeiros “realmente” casados, que vivem efectivamente em casamento e não se contentem em invocar

o benefício dos direitos associados ao casamento mas assumem também os deveres (há violação de

igualdade no trato igual de coisas desiguais). 2 Comp. a decisão “Liberté d’association” proferida em 1971 pelo Tribunal constitucional. 3 Para retomar a distinção que Ripert operava em “Les forces créatrices du droit” entre fontes formais e

fontes reais.

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1. As fontes do direito da família

24 Direito internacional. As fontes internacionais do Direito são recentes. O

particularismo, que prevaleceu durante muito tempo1 é hoje questionado. Primeiro, o

particularismo é questionado devido à internacionalização da família que leva à

multiplicação de convenções internacionais num esforço para resolver os problemas

colocados pelas “famílias internacionais”. É questionado sobretudo devido ao

desenvolvimento progressivo dos Direitos do Homem no sistema jurídico. Se a

principal fonte é neste aspecto a Convenção Europeia2 de Salvaguarda dos Direitos do

Homem e das Liberdades Fundamentais (art.º 8º e 12º), outras normas internacionais

estão igualmente presentes: por exemplo o Pacto Internacional dos Direitos civis e

Políticos (art.º 23º, par.2); ou também ainda a Convenção das Nações Unidas sobre os

Direitos das Crianças e da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da

Criança assinada pela França a 4 de Junho de 19963 e ratificada pelo decreto de 10 de

Janeiro de 2008; e ainda por fim a Carta dos Direitos Fundamentais (art.º 7º, 9º, 33º).

25 Direito Nacional. No plano interno, o direito da família pertence à competência

legislativa (art.º 34º da Constituição de 1958)4, sem prejuízo de eventuais incidências da

questão processual.5 Este ramo do Direito constituiu até, em diversos aspectos, uma

1 Consequência natural da diversidade das famílias no espaço e de uma necessidade de uniformidade

jurídica é realmente menor nas famílias do que nos “casos”. 2 A União Europeia preocupa-se também com a família, mas na perspectiva patrimonial. 3 A Convenção Europeia dos Direitos do Homem foi, desde o início, dotado de um duplo efeito, vertical

(v. a condenação da França pelo Tribunal Europeu no caso Mazurek devido à violação da igualdade dos

filhos na legislação ao diminuir os direitos de sucessão do filho adulterino: TEDH, 1 de Fevereiro de

2000, JCP 2000, II, 10286), e horizontal (v. a rejeição, pelo Tribunal de Cassação, de um repúdio

estrangeiro considerado contrário à igualdade dos cônjuges: Civ. 1º, 1de Junho de 1994, Bol., nº 192).

Relativamente à Convenção de Nova Iorque, o Tribunal de Cassação, após ter-lhe recusado todo efeito

directo, ao contrário do Conselho de Estado francês (v. em último lugar 10 de Março 95, D 1995, 617; v.

as conclusões muito esclarecedoras de Abraham D 1998, 15), que decide fazer produzir aí efeitos: Civ. 1º,

18 de Maio, 14 de Junho 2005, JCP 2005, II, 10115. 4 O artigo 34.º da Constituição de 1958 ao reservar o estado e a capacidade das pessoas ao legislativo

exclui a competência do poder regulamentar autónomo. 5 A importância do processo surgiu claramente do direito do divórcio.

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matéria supra-legislativa (par.10º Preâmbulo da Constituição de 19461). A

jurisprudência tem desempenhado aqui um papel importante2, nomeadamente, em

matéria de concubinato. O particularismo mais inequívoco reside provavelmente na

vitalidade da prática em matéria familiar. Pode-se tratar de práticas individuais

pregnantes no direito do casamento (que se vive mais fora do direito do que no direito,

intervindo apenas no momento da sua dissolução ou aquando dos actos importantes tais

como, compra de imóvel, alteração do regime matrimonial…) ou do poder paternal (as

práticas da família constituirão, em tais circunstâncias, um simples critério de resolução

de conflitos). Pode-se tratar também de práticas colectivas: os costumes determinam

deste modo a extensão da incapacidade do menor, até mesmo os poderes dos pais; a

doutrina administrativa, nomeadamente, dos serviços do registo civil, ou ainda a prática

de serviços sociais em matéria de adopção, poder paternal…têm igualmente uma

importante influência.

26 Direito privado e direito público. O legislador de 1804 “privatizou” a família, ao

submetê-la às normas e jurisdições privadas. Actualmente o direito da família constitui

vários títulos do Livro 1º do Código Civil (das Pessoas): os títulos V (do casamento); VI

(Do divórcio - e separação judicial de pessoas e bens) VII (da filiação), VIII (da filiação

adoptiva), IX (do poder paternal), até X (da menoridade, da tutela e dos maiores que são

protegidos pela Lei) sem esquecer o título XII (do pacto civil da solidariedade e

concubinato3).

1 “A nação garante ao indivíduo e à família as condições necessárias ao seu desenvolvimento”.

Infelizmente o Tribunal constitucional concebe este diploma num sentido mais individualista que

familiar. 2 A jurisprudência abriu sobretudo para a filiação, com uma audácia variável. São nomeadamente célebres

as diversas interpretações a contrario que o Tribunal de Cassação consagra para fazer progredir a verdade

biológica no direito da filiação (art.º 334.º-9, art.º 322.º, v. infra, nº432). 3 A contar da data de entrada em vigor da Lei de 5 de Março de 2007, estes três títulos serão

respectivamente o título X “Da tutela e da emancipação”, título XI “Da maioridade e dos maiores de

idade protegidos pela Lei”, e o título XIII “Do pacto civil de solidariedade e da concubinato”, sendo que

um título XII (“ da gestão do património dos menores e maiores em tutela”) será igualmente criado.

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Por esse facto, o Direito público não renunciou à preocupação1 com uma

instituição que constitui simultaneamente um elemento essencial do tecido social e do

Direito do Homem. Deste modo se explica a existência de um direito não civil da

família (direito social, fiscal…) e a omnipresença da autoridade pública em matéria

familiar (funcionários do registo civil, Ministério Público, juiz de família). Assim se

explica, de igual modo, a existência de um Código de Acção Social e das Famílias.

Esta dupla ligação com o direito privado e o direito público explica as

interacções cruzadas. Por exemplo, os controlos que o Código da Acção Social e das

Famílias institui no poder paternal pesam indirectamente sobre as instituições civis. De

modo inverso, a ligação da questão familiar à liberdade da vida privada leva à limitação

do papel dos poderes públicos na matéria assim como as conquistas progressivas do

instrumento contratual2 “privatizam” a família.

Útil numa perspectiva formal da clarificação do sistema de direito e

melhoramento do conhecimento da norma de direito (nemo censetur…), o

reagrupamento de diversas normas familiares num Código da família não deixa de

apresentar alguns perigos, ideologicamente falando, tanto assim que poderia conduzir a

um desprendimento do direito da família do seu lugar de origem, o direito privado, mais

precisamente o direito civil das pessoas3.

27 As fontes reais. As fontes reais do direito da família são bastante específicas.

Antigamente fortemente determinada pelas crenças religiosas e as normas morais, o

direito da família tem vindo a desprender-se das suas fontes. O legislador da segunda

metade do século XX contestou o dogmatismo de uma família ideal, única e imperativa.

Rejeitando o julgamento moral, consciente da diversidade religiosa, preocupado com a

liberdade individual e marcado pelo pragmatismo, o legislador deu primazia à realidade 1 Como Savigny já pretendia. 2 Sugerida pela doutrina em matéria de casamento, a análise contratual prevaleceu em relação aos casais

não casados, em detrimento de uma apreensão institucional das questões familiares. Este movimento

ultrapassa a ordem horizontal (divórcio, separação de facto…) e ganha também a ordem vertical, sem

estar isento de perigo para o filho, que corre o risco de ser tratado como uma coisa do qual se dispõe

como bem se entende…

3 O exemplo das codificações praticadas em matéria familiar por alguns países estrangeiros, do Leste de

África, do Próximo Oriente comprova a significação muitas vezes política de semelhante codificação.

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vivida e deu-se por objecto não mais “impor” “ a família ideal” mas “enquadrar” “as”

famílias existentes, sejam estas legítimas ou bastardas, unidas ou desunidas, compostas

ou recompostas…1

Esta opção legislativa traduziu-se, a montante pelo recurso do legislador ao

método sociológico (usando recursos tais como as estatísticas, os inquéritos de opinião2)

e sobretudo, a jusante, pela consagração de um direito flexível.

2. A flexibilidade do direito da família

28 Enquanto, em princípio, a norma do direito se define por um lado como uma norma

geral (isto é, abstracta e impessoal), e por outro lado obrigatória (isto é, acompanhada

por sanções jurídicas), o direito da família desenhada pelas reformas dos anos setenta

apresenta uma dupla particularidade.

- Primeiro a sua flexibilidade provém do facto de, ainda que geral, o direito da família

esforça-se para dar lugar aos casos particulares. Preocupado em oferecer “a cada família

o seu direito”, o legislador utilizou diversas técnicas: 1º) o pluralismo legislativo que

consiste em oferecer vários modelos aos sujeitos do direito3 (vários divórcios, vários

regimes matrimoniais); 2º) os poderes acrescidos que o direito confere ao juiz, graças a

noções estruturantes4 e à atribuição de um poder moderador5; 3º) o acolhimento que o

1 Alguns têm aliás lamentado este “alinhamento” do direito sobre os costumes. Ao que Carbonnier tinha

respondido que “ será que se podia questionar infindavelmente o que, no direito ou nos costumes, era

responsável por este declínio familiar”: é “ um jogo muito antigo de raquetes”, afirmava, questionar-se

“quid mores sine legibus? Até “quid leges sine moribus?”. 2 Convém ainda evitar todo o contra-senso sobre a abrangência dos métodos sociológicos. Como

sublinhava Carbonnier, “o inquérito não foi legislado”, tendo-se limitado a tomar informações sobre os

factos sem ferir a liberdade do legislador. 3 Vários regimes matrimoniais, vários divórcios… Cada modelo é geral mas a pluralidade dos modelos

permite concretizar melhor a regra de direito na medida em que cada caso particular pode esperar

encontrar uma regra adaptada ao seu particularismo. 4 Essas noções gerais como o interesse da família, do filho… 5 O juiz recebe o poder para excluir uma regra aplicável em princípio mas que seria injusta num caso

particular, fazendo-se deste modo “legislador de casos particulares”.

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direito reserva às manifestações de vontades individuais, independentemente de estas

serem unilaterais ou acordadas1, ou ainda à prática individual.

- A seguir a sua flexibilidade provém do facto de, mesmo sendo restritivo, o direito da

família é caracterizado por uma flexibilidade particular. O modelo familiar tradicional,

imperativo e acompanhado de fortes sanções teria mesmo, diz-se, dado o lugar a uma

família sobre a qual as vontades individuais e o juiz teriam um grande poder e no seio

da qual as sanções seriam frequentemente limitadas e cada vez menos especiais2.

29 Persistência da ordem pública. Contudo, seria um contra-senso decidir-se pelo

desaparecimento da ordem pública. Se a existência de um “modelo legislativo familiar”

é incerta3, torna-se evidente que em compensação a ordem pública se mantenha: não

“abdicou” mas apenas “deslocou os pontos de referência4.

Há tendência deste modo, em primeiro lugar, a desenvolver-se uma ordem

pública de protecção em matéria familiar. Por exemplo, a Lei de 4 de Abril de 2006

esforçou-se para combater os casamentos “forçados”.

Além disso, e em segundo lugar, subsiste uma ordem pública de direcção:

apenas as famílias “comummente aceites” são acolhidas pelo direito5, que rejeita em

contrapartida as formas familiares analisadas como “sociologicamente dissidentes”.

1 Sobre este assunto, v. nomeadamente La contractualisation de la famille, Economica, 2000. 2 As sanções especiais do adultério foram extintas (revogação da sanção penal em 1975 e revogação da

sanção sucessória do filho adulterino em 2001). O recuo do direito familiar especial resulta igualmente da

supressão das sanções em caso de divórcio por culpa, que levou a abandonar os deveres do casamento ao

único da responsabilidade civil.

3 Para Carbonnier, mantinha-se um modelo que acabava por prevalecer. “ Com o passar do tempo irão

prevalecer (as famílias) que se esforçaram por ser, se não as mais virtuosas, pelo menos as mais

sóbrias…” 4 Cornu, op. Cit. Ex: actualmente o adultério no casamento não é mais penalmente sancionado, mas sim a

infracção entre cônjuges. 5 A extinção da distinção entre filhos legítimos e naturais resulta provavelmente menos de uma reflexão

teórica sobre a noção de filiação do que do dado irrefutável da banalização da união livre e dos

nascimentos fora do casamento na sociedade.

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A provar isso, a recente nulidade de um casamento homossexual1 pelo Tribunal de

Cassação ou a rejeição de modelos estrangeiros contrários aos princípios aos quais a

sociedade francesa contemporânea permanece firmemente agarrada (rejeição da

poligamia ou poliandria, recusa da desigualdade de sexo no casamento, condenação da

discriminação religiosa…2). Também a provar isto é o facto de que a tolerância

legislativa não é sistemática: retomando uma solução jurisprudencial, o Decreto-Lei de

4 de Julho de 2005 proíbe a adopção do filho incestuoso (art.º 310º-2).

Confirma-se, em terceiro lugar, que as reformas ocorridas mesmo no fim do

século XX ou à entrada do século XXI não provêem unicamente de considerações

pragmáticas mas correspondem muitíssimas vezes a uma preocupação directiva: a

adopção do pacto civil de solidariedade deve-se deste modo mais à vontade simbólica

em “legitimar” os casais homossexuais do que a um pedido dos sujeitos do Direito; a

“liberalização” do divórcio realizada pela Lei de 26 de Maio de 2004 não provém

unicamente da preocupação em aliviar a responsabilidade dos tribunais mas também da

ideologia de liberdade. Quanto à reforma da poder paternal realizada em 2002, o

princípio de co-parentalidade que consagrou tem certamente mais a ver com o princípio

ideal do que com a simples norma prática. O pluralismo legislativo é mesmo por vezes

categoricamente questionado: a provar isso, a padronização do poder paternal sem

consideração para com o casal dos pais pela Lei de 4 de Março de 2002; a provar isso, a

padronização pela Lei de 26 de Maio de 2004 dos efeitos do divórcio

independentemente da causa da sua sentença; a provar isso é ainda a supressão da

distinção entre filhos legítimos e filhos ilegítimos pelo Decreto-Lei de 4 de Julho de

2005; a prová-lo ainda as alterações introduzidas no pacto civil de solidariedade pela

1 Civ, 1º, 13 de Março de 2007, v. infra, nº79

2 Classicamente, as dificuldades são resolvidas pela aplicação dos princípios de Direito Comum do

direito internacional privado: a Lei competente para regular a questão considerada é excluída se for

inconciliável com os princípios fundamentais (é a excepção da ordem pública). Por vezes também o

direito faz prevalecer directamente a Lei da República, ao qualificar a Lei interna considerada disposição

imperativa. Este sistema permite excluir toda a disposição muito estranha ao direito contemporâneo da

família. É deste modo que o princípio de igualdade entre homens e mulheres fundamentou o afastamento

do repúdio. Poderá lamentar-se que, ao argumento da igualdade, que insiste no individual na família, não

tenha sido associado o argumento institucional: o casamento é dissolúvel sob controlo judicial, para

algumas causas e com certos efeitos…

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Lei de 23 de Junho de 2006, alterações que o aproximam do casamento ao ponto em que

se questiona hoje sobre a existência de um Direito Comum dos casais.

A flexibilidade do direito da família mantém-se portanto (pluralismo dos casais,

pluralismo dos divórcios, papel das vontades privadas…), mas enquadrada pelos

princípios considerados fundamentais que evoluem.

3. A Judiciarização incerta do direito da família

30 Judiciarização e desjudiciarização do direito da família. Sem qualquer relação

com a flexibilidade, o direito da família hesita entre duas tentações: conferir ao juiz um

papel importante para adaptar a regra ao caso particular, ou substituí-lo pelos modos

ditos “alternativos” de regulação de conflitos.

A especialização do Direito da família, a opção legislativa pela flexibilidade e a

multiplicação dos conflitos familiares…desenvolveram o ofício do juiz. Disto resultou

muito naturalmente a especialização do contencioso da família: após a criação, em

alguns Tribunais de Instância Superior, de conselhos de família, o juiz de assuntos

matrimoniais (baptizado JAM) foi instituído pela Lei de 11 de Julho de 1975; a Lei de 8

de Janeiro de 1993 expandiu a sua competência ao rebaptizá-lo juiz de assuntos

familiares (ainda denominado JAF1). O Código da organização judicial prevê

actualmente que “em cada Tribunal de Grande Instância, um ou mais magistrados

judiciais são delegados para funções de juiz de assuntos familiares. O juiz de assuntos

familiares conhece: 1º Do divórcio, da separação judicial de pessoas e bens e suas

consequências, sem prejuízo das competências atribuídas ao Tribunal de Grande

Instância; 2º Das acções associadas à fixação de obrigação alimentar, da contribuição

para os encargos de vida familiar e da obrigação de sustento, ao exercício do poder

paternal, à alteração do apelido do filho ilegítimo e aos nomes” (art.º. L.213-3 COJ).

Especifica também que “ o juiz dos assuntos familiares pode remeter para a formação

colegial do Tribunal de Grande Instância que decide como juiz de assuntos

familiares…” (art.º L.213-4, par.1º). Inevitável quando o contencioso familiar

representa uma parte importante do contencioso civil, esta consagração de um único juiz

1 A doutrina tinha ironizado sobre este juiz dito “matrimonial” uma vez que a sua principal competência

consistia em dissolver o casamento ou decidir a autoridade paternal sobre o filho.

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não está isento de perigo, porque pode conduzir ou a um tecnicismo, ou a uma equidade

sentimental muito distante do jurídico.

A dificuldade sentida pela justiça em resolver os conflitos passionais, a

preocupação que tem em respeitar a liberdade individual e a intimidade da vida privada

de cada um, a efectividade incerta da coacção jurídica, a inclinação do mundo actual

para as decisões negociadas pelos interessados, o peso económico do contencioso

familiar…: são múltiplos os factores explicam o crescimento actual da mediação

familiar. Primeiro, o juiz pode implementar uma mediação com o acordo das partes em

matéria familiar (art.º 1071º CPC). Mas pode também, desde as Leis de 4 de Março de

2002 e 26 de Maio de 2004, ordenar às partes que encontrem um mediador para resolver

um conflito de poder paternal (art.º 373º-2-10) ou intervir num processo de divórcio

(art.º 255º). O fenómeno não está, no entanto, isento de perigo certamente simbólico

(devido ao apagamento da Lei que assina e da “privatização” à qual conduz assim

indirectamente), mas também prático, a conciliação das pretensões das partes sem a

presença tutelar de um juiz encarregado de aplicar a Lei corre o risco de favorecer o

mais forte.

Será assim muito sensato pensar que cada cônjuge saberá, no meio da tormenta afectiva

que é muitas vezes a separação, velar pelos seus direitos, respeitar os do outro e

preservar o interesse da criança? Útil para pacificar a relação, a mediação só é aceitável

se as suas modalidades forem tais que o descompromisso da jurisdição não se

transforme pura e simplesmente em negação de justiça. O direito da família não é o

direito do mais forte.

B. O futuro do Direito da família

31 A extinção do direito da família? O direito da família é por vezes contestado na sua

própria existência. Alguns julgam incongruente associar noções de “direito” (uma regra

geral e abstracta, vinculativa, tendo como finalidade a justiça e a segurança) e de

“família” (grupo fundado no sangue e afinidade até mesmo a vida em comum, fonte de

solidariedade e meio para a felicidade). O direito da família seria inútil em matéria

patrimonial, onde o Direito Comum bastaria (compromisso contratual, culpa,

enriquecimento sem causa). Seria ilegítimo em matéria pessoal onde a liberdade

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individual deveria reinar (cada um deveria poder conduzir a sua vida pessoal como bem

entendesse, ter ou não filhos, viver ou não em casal, ser fiel ou infiel…). Seria por fim

ineficaz, estando o direito incapaz de reger corações, impor a afeição, a fidelidade…

32 A necessidade do direito da família. A análise desmente semelhantes conclusões.

Na eventualidade de se admitir que não se concebe uma família sem solidariedade é

impossível contestar a competência do jurídico. Apenas um direito especial pode

proporcionar os meios técnicos necessários: a teoria geral do património não é suficiente

para assegurar a solidariedade familiar, seja isto no seio do casal ou do parentesco1; e

passa-se também o mesmo em matéria pessoal, onde o princípio geral de liberdade

individual deve ser especialmente excluído para ver consagrada a solidariedade. Neste

primeiro título de competência, relacionado com a realização técnica da solidariedade

familiar, junta-se um outro, relacionado com a sensível determinação da parte respectiva

da solidariedade familiar e da independência de cada um. Porque semelhantes

objectivos (determinar o domínio e as técnicas de solidariedade) pertencem

incontestavelmente às finalidades do direito2, a contestação existencial do direito da

família parece falaciosa. Porém, é forçoso constatar que o desenvolvimento do

individualismo conduz a um certo descompromisso do direito que abandona diversas

questões (decisão de se casar, de se divorciar) a outras normas de conduta, tais como a

moral e a religião… As questões pessoais estão, nesta perspectiva, especialmente em

ponto de mira: por exemplo, o dever de fidelidade e de vida em comum que não teria

lugar num casamento civil e numa sociedade liberal. É no entanto permitido pensar que

1 O Direito Comum é mais propício à independência de cada um. No Direito Comum, a solidariedade

deve ser expressa. No entanto, não será normal que cada cônjuge responda solidariamente às dívidas

domésticas? No Direito Comum, a propriedade é um poder exclusivo sobre a coisa; no entanto, será que o

direito de controlo do cônjuge não proprietário sobre os actos relativos à casa de morada da família é

saudável? E o que dizer das regras que permitem recorrer ao juiz para neutralizar um conflito…? Será que

a obrigação alimentar não é um limite legítimo à liberdade patrimonial de cada um…? 2 O conteúdo do dever paternal de educação do filho, o alargamento do dever conjugal (será que confere

um poder ilimitado sobre o outro ou deve exercer-se no respeito do outro?), do dever de fidelidade,

assistência…será que podem ser abandonados à consciência de cada um? É difícil aceitar esta ideia,

muitas vezes generalizada, segundo a qual a matéria pessoal escaparia, por natureza, ao direito, quando a

dupla ideia de justiça e de segurança impõe colocar, aqui como lá, as regras do jogo social.

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a família é algo mais que uma vaga partilha de livros e peúgas e que é um vínculo entre

as pessoas antes de ser solidariedade patrimonial.

Quanto à efectividade do direito da família, provavelmente é mais limitada do

que noutro lugar. Mesmo assim, e também neste caso, é difícil negar a utilidade do

jurídico, na ordem prática (a perspectiva de uma sanção jurídica1 permite prevenir,

inclusivamente resolver, os conflitos muitas vezes muito passionais) mas também na

ordem simbólica, devido ao carácter “ civilmente constitutivo” dos laços familiares.

33 Plano. O direito da família será exposto em três partes distintas, sendo a primeira

consagrada ao casal (PRIMEIRA PARTE), a segunda à criança (SEGUNDA PARTE) e

a terceira aos efeitos produzidos pelo vínculo familiar “para lá de” (TERCEIRA

PARTE). As disposições pertencentes aos direitos especiais, tais como o direito dos

regimes matrimoniais, da tutela, das sucessões, etc., serão apresentadas

esquematicamente quando a compreensão da matéria assim o exigir. Caso contrário,

serão relegadas para as obras especializadas.

1 O Direito da família conserva uma incontestável efectividade em matéria pessoal (graças a diversos

meios de pressão, tais como o divórcio, suspensão do poder paternal…), mesmo se for menos do que em

matéria patrimonial, a liberdade individual opondo-se à execução de deveres pessoais sob a pressão

(imagine-se o cumprimento do dever conjugal com o auxílio da força pública?) Sem contar o obstáculo

prático: a execução dos deveres pessoais depende muito da pessoa para que a sua execução forçada seja

realmente satisfatória.

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PRIMEIRA PARTE

O CASAL

34 O casal na legislação. Ausente do Código Civil de 1804 que apenas conhece o

casamento, o termo “casal” surgiu na recente legislação: por exemplo, no Código da

Saúde Pública e particularmente em diplomas que regem a assistência médica à

procriação. É um termo cómodo que permite designar realidades muito diferentes, em

particular o casamento, o concubinato, e por último, o pacto civil de solidariedade. A

generalidade e a neutralidade do vocábulo não devem disfarçar as profundas diferenças

jurídicas que separam os “moldes” jurídicos assim designados. O “mito” do “casal” foi

até denunciada pela doutrina1 como permitindo à sociedade negar o fosso que separa

casamento e concubinato (em termos de estabilidade) ou ainda casamento e casal

parental não casado ou separado (na perspectiva da criança). O uso do termo conduz

assim naturalmente a pôr em perspectiva as diversas uniões reconhecidas pelo Direito.

35 Evolução histórica. O Código Civil de 1804 apenas regia o casamento (actual título

V do Livro 1º) e o divórcio (actual título VI do mesmo livro). Já o concubinato era

ignorado pelo Direito. O crescimento quantitativo de casais não casados e as

transformações religiosas e morais da sociedade durante o século XX levaram o Direito

a associar-lhe, de modo progressivo, diversos efeitos, nomeadamente em matéria social

e fiscal, depois a defini-lo no próprio Código Civil (Lei de 15 de Novembro de 1999).

A evolução da sociedade relativamente à homossexualidade levou o legislador a criar

com esta mesma Lei de 15 de Novembro de 1999, o pacto civil de solidariedade.

Reformado por uma Lei de 23 de Junho de 2006, este estatuto inspira-se muito no

estatuto do casamento, excepto aquando da ruptura que é deixada à liberdade dos

parceiros. Simultaneamente, a multiplicação de divórcios e a “liberalização” progressiva

do divórcio na legislação (Lei de 11 de Junho de 1975, Lei de 26 de Maio de 2004)

abalaram fortemente a instituição matrimonial enfraquecendo a segurança que lhe era

tradicionalmente associada. No entanto, continua a oferecer ao cônjuge (deveres do

casamento, regime matrimonial, vocação sucessória, efeitos patrimoniais do divórcio…)

1 F. Dekeuwer-Défossez, “Réflexions sur les mythes fondateurs du droit contemporain de la famille”,

RTD civ. 1995, 249 s.

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e à criança (presunção de paternidade) uma protecção bem superior àquela trazida pelo

pacto civil de solidariedade e, a fortiori, pelo concubinato. Constata-se aliás que a Lei,

ao mesmo que eliminava o seu monopólio e facilitava a sua ruptura, reforçava a

abrangência dos seus efeitos sucessórios (Lei de 3 de Dezembro de 2001).

Os números são elucidativos. O casamento está hoje mais frágil do que

antigamente: decretaram-se 50 000 divórcios em 1972, 100 000 em 1992, 120 000 em

1995, 127 000 em 2003, 155 000 em 2005…, isto é uma evolução vertiginosa, porque

se passou de 10% de divórcios em 1970, para 30% em 1985 e 45% em 2001! A

concorrência do concubinato é real: passou-se dos 314 000 casais não casados de 1968

para 1 707 000 casais em 1990. E se o casamento conserva a sua vitalidade (celebraram-

se 410 000 em 1972, 394 000 em 1974, 287 000 em 1996 mas após um pico de 305 000

casamentos em 2000, os números desceram: 295 000 em 2001, 278 000 em 2004, 266

000 em 2007), o pacto civil de solidariedade ganha claramente terreno e em termos

absolutos (aumento anual de 20% desde 2000): enquanto em 2000 se celebraram 5 pacs

por cada 100 casamentos, a proporção passou para 25 pacs por cada 100 casamentos em

2006. Celebraram-se assim mais de 77 000 pacs em 2006 face a pouco mais de 300 000

casamentos. E o número aumentou ainda 32% em 2007 em relação a 2006. Sobretudo,

elemento essencial de comparação, quando se celebraram 42% dos pacs entre

homossexuais no primeiro ano, 93% destes dizem respeito a casais heterossexuais em

2006. O crescimento do pacs acontece agora em detrimento do casamento. É ainda

muito cedo avaliar a estabilidade deste novo estatuto: romperam-se mais de 38 000 pacs

em 8 anos, isto é 14% do total dos pacs que se celebraram.

O individualismo ambiente explica sem dificuldade a evolução passada: muitos

casais preferem a liberdade à segurança que o casamento continua a proporcionar.

Quanto ao legislador, este hesita em encabeçar uma política incitativa a favor da união

matrimonial, seja por convicção, seja por receio de ser acusado de conservadorismo e

discriminação. O futuro dirá se o casamento se tornou num simples modo “alternativo”

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e “temporário” de “gestão” de questões patrimoniais associadas à vida de casal ou se

continua a unir “céu e terra” no seu centro1.

36 Plano. Após exposição do direito do casamento (Livro Primeiro) e do divórcio (Livro

Segundo) será preciso analisar a situação jurídica do casal não casado (Livro Terceiro).

1Sobre esta partilha do material e do espiritual, v. Carbonnier, “Terre et ciel dans le droit français du

divorce”, Mélanges Ripert, I, 329

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Livro Primeiro

O casal casado

37 Noção: Em parte alguma do Código Civil se encontra a definição do que é um

casamento, este “mais antigo costume da Humanidade”1. É verdade que há tantos

casamentos como épocas, lugares e mais geralmente casais casados. Contudo, pode-se

considerar que o casamento supõe no Direito francês dois elementos essenciais: a

promessa, que trocam um homem e uma mulher em se apoiarem mutuamente na vida

em comum e criar os filhos por nascer e o reconhecimento oficial deste vínculo pelo

grupo social.

38 Evolução: Esta instituição ancestral que é o casamento vive uma crise actual em dois

aspectos: o aumento de casais não casados e a multiplicação de divórcios2. Feito isto, o

casamento apenas sofre as consequências da evolução da família e do Direito na

sociedade dos séculos XX e XXI: desejo de mais liberdade e menos Estado, desejo do

qual resultam naturalmente uma certa privatização das formas de união e uma

liberalização do vínculo.

A instituição continua a ser essencial. Primeiro para os adultos, uma vez que

garante uma certa segurança, patrimonial mas também - sobretudo? - afectiva. Também

para os filhos porque oferece um ambiente mais estável do que o concubinato: as

estatísticas provam que apesar do aumento do número de divórcios, o casamento

permanece uma união mais duradoura do que o concubinato. Finalmente, para a

sociedade, uma vez que o casamento cria solidariedades horizontais e verticais

insubstituíveis e participa deste modo na constituição do tecido social elementar.

39 Dupla natureza, contrato e instituição. Qual é a natureza do casamento? Será uma

instituição, uma norma social que rege a união entre um homem e uma mulher? Ou será

um contrato, um acordo de duas vontades individuais?

1 Carbonnier, op. Cit. 2 A alteração dos efeitos do casamento, hoje menos limitativa do que antigamente, é interpretada de

diversas maneiras: declínio para uns, seria progresso para outros, sendo que o Direito se limitava então a

conciliar melhor o institucional e o individual, a união e a liberdade.

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Sendo esta uma questão clássica desperta interesse na doutrina moderna. Deve

ser dada uma resposta cautelosa: 1º) o casamento é uma instituição (o estatuto conjugal

é determinado pela sociedade, sendo que o casamento constitui o principal fundamento

da família, célula base da sociedade) que nasce do encontro de duas vontades (não se

concebe um casamento sem o mútuo consentimento dos cônjuges); 2º) o carácter

institucional do casamento está em declínio1, reconhecem-se às vontades individuais

uma importância crescente na determinação dos efeitos da união. A evolução do direito

matrimonial não faz senão acompanhar, de um modo mais geral, a sociedade onde o

individualismo ganha terreno. Em todo o caso, a importância da união matrimonial na

sociedade justifica que o Direito apresente condições para a formação do vínculo e lhe

associe alguns efeitos invioláveis.

40 Instituição civil. Celebração religiosa. Instituição civil, o casamento é também

instituição religiosa. Desde a secularização do casamento, pela Constituição de 4 de

Setembro de 1791 (art.º 7º do título II: “ A Lei considera o casamento equivalente a um

contrato civil”)2, a atitude do direito civil francês é clara: a celebração religiosa é uma

liberdade (pode existir, se for da vontade dos cônjuges, mas não é obrigatória); mas esta

celebração só pode ocorrer depois de prestar o consentimento perante o conservador do

registo civil (o ministro do culto que infringisse esta regra incorria em sanções penais:

art.º 433º-21 do Código Penal.). A proposta, muitas vezes formulada, em manter a união

religiosa mas suprimir a dupla celebração e fazer produzir efeitos civis à união religiosa

quando os cônjuges escolheram celebrá-la, deve ser excluída: a submissão do casamento

ao direito estatal, lógico caso se reconheça que o casamento é uma “instituição social”

justifica plenamente a intervenção de um conservador do registo civil. É pois na

separação das duas ordens, temporal e espiritual, que a laicidade do direito francês

encontra aqui a sua expressão mais simples e mais eficaz3.

1 Alguns exemplos deste fenómeno: despenalização do adultério; admissão do divórcio por mútuo

consentimento; atenuação dos efeitos do divórcio… 2 Carbonnier, “La sécularisation du droit civil”, Christianisme, sécularisation et droit moderne, Milan, p.

1006 s. 3 A origem histórica do sistema civil actual joga a favor da sua permanência. Sobre o episódio dos

casamentos Protestantes no deserto, v. Carbonnier, “L’amour sans la loi”, Bol. hist. du protestantisme

français, 1979.

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41 Casamento civil. União na liberdade. “A história do casamento é a de uma

liberalização contínua”1. Famosa, a fórmula merece ser especificada. A liberdade é

dupla no casamento. Em primeiro lugar, consiste na liberdade para escolher o

casamento, liberdade protegida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e

pela Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades

Fundamentais (art.º 12º: “a partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de

casar-se e de constituir família, segundo as Leis nacionais que regem o exercício deste

direito”) ou a Constituição de 4 de Outubro de 1958, via Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789 e o seu artigo 4.º que reconhece a

liberdade individual. Em segundo lugar, consiste na liberdade de cada um, durante a

união, liberdade que preserva o direito do casamento para além dos deveres que

estabelece entre os cônjuges. O progresso do individualismo ambiente leva a exaltar

esta liberdade individual, correndo-se o risco de esquecer que mesmo considerado numa

perspectiva individual e não social, o casamento é antes de mais uma união, um vínculo,

um compromisso mútuo, uma promessa recíproca. Se o casamento tem um significado e

uma utilidade, estes só fazem sentido no compromisso duradouro assumido por cada

um, a promessa do “até que a morte nos separe”, solenemente trocada.

42 Plano. Esta associação de instituição social e vontades individuais, de liberdade e

compromisso, está constantemente presente no casamento: na sua formação (título 1)

como nos seus efeitos (título 2). É o que cria a dificuldade do direito matrimonial, na

busca permanente do equilíbrio e coerência; é, sobretudo, o que oferece à união

matrimonial a sua originalidade e a sua força.

1 Carbonnier, op. cit.

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Título 1

A formação do casamento

43 Plano. O Direito submete a formação do vínculo matrimonial a diversas condições.

Estas condições serão expostas (Capítulo 1) antes de se considerarem as suas sanções

(Capítulo 2). Fundamentalmente resultante da codificação revolucionária, o Direito

referente à formação do vínculo matrimonial permaneceu pacífico até aos anos 90

quando decorreram sucessivas reformas, destinadas, principalmente, a combater os

casamentos “simulados” e os casamentos “forçados”: Lei Pasqua de 22 de Julho – 24 de

Agosto de 1993, Lei Chevènement de 16 de Março de 1998, Lei Sarkozy de 26 de

Novembro de 2003, de 24 de Julho de 2006, de 14 de Novembro de 2006.

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Capítulo 1

A determinação das condições.

44 Acordo de vontades e instituição social. “Não há casamento quando não há

consentimento.” A redacção categórica do artigo 146º do Código Civil que subordina a

existência do casamento à vontade pessoal em constituir família comprova a essência do

casamento, um acto de vontade. Para além disso, o Código Civil determina diversas

condições, morais, biológicas… dos quais resulta implicitamente uma certa “definição”

social do casamento, definição que aliás pouco ou quase nada mudou desde 1804. Duas

séries de condições rodeiam assim a formação do casamento. A primeira provém do

facto do casamento constituir uma liberdade individual e supor um acordo de duas

vontades (Secção 1); a segunda deve-se ao aspecto institucional do casamento, que

aparece como o acto fundador de uma família (Secção 2).

Secção 1

Um acordo de vontades individuais

45 Consensus non concubitus facit matrimonium. O adágio clássico corresponde

totalmente à concepção francesa do casamento, mais idealista1 do que o direito canónico

e que dá mais prioridade à união das vontades, o consentimento dos cônjuges, do que à

copula carnalis, a união de corpos. A vontade de cada um deve existir (1) e ser

informada, isto é, não viciada (2).

1.A existência do acordo de vontades

46 Plano. O consentimento exigido é em princípio o dos cônjuges, sendo o casamento a

união de dois indivíduos e não mais de duas famílias. Todavia, será necessário examinar

os poucos casos em que o consentimento dos interessados deve ser avalizado por este

outro (A). Será igualmente necessário considerar o casamento póstumo, esta instituição

excepcional do Direito Comum, que permite celebrar um casamento após a morte de um

dos nubentes, quando o consentimento deve em princípio ser expresso no próprio

momento do casamento (B). Será preciso principalmente esforçar-se por especificar o

1 Carbonnier, Terre et ciel dans le droit français du mariage, préc.

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que se entende por “consentimento ao casamento” e tentar descobrir o que a troca

formal dos “sims” realmente esconde (C).

A. A origem do consentimento.

47 Princípio. Durante muito tempo o casamento foi assunto de família: pelo filho que

podia gerar, surgia como um dos elos da árvore genealógica unindo o destino de duas

famílias. Numa época em que as individualidades pouco contavam, o consentimento

pessoal dos cônjuges passava para segundo plano perante a vontade das duas famílias,

às quais era dada o poder para evitar todo o mau casamento ou encargo adicional.

Somente de modo progressivo, e nomeadamente sob influência do direito canónico, o

consentimento pessoal dos cônjuges se tornou suficiente e as famílias foram afastadas

da união matrimonial.

48 Limites. Pelo menos é o princípio do Direito. Primeiro, é preciso com efeito contar

com a influência exercida de facto pelas famílias, nomeadamente pelos ascendentes,

sobre o casamento dos membros da tribo. Sobretudo é preciso especificar que o

consentimento pessoal dos interessados não é suficiente em caso de incapacidade de um

dos dois, quer seja menor ou maior: o Direito exige então, para além do consentimento

dos cônjuges, o de diversas pessoas. Na falta do consentimento, o casamento é anulável

(v. infra nº 97) e em relação às pessoas deste modo incumbidas em consentir o

casamento de terceiros, elas podem deduzir oposição à celebração da união (v. infra, nº

93).

1.O casamento de menores

49 A sociedade aceita por vezes, ainda que a título excepcional, o casamento de um

menor de idade (art.º 145º do Código Civil. v. infra nº78). Subordina-o evidentemente

ao consentimento pessoal, não se limitando, contudo, com este consentimento.

Para além disso, a sociedade exige o consentimento dos familiares mais

próximos; o do pai e da mãe se ambos forem vivos, sendo suficiente o consentimento de

apenas um em caso de desacordo (art.º 148º). Exige o consentimento do sobrevivo se

um dos pais for falecido ou não poder manifestar a sua vontade (art.º 149º); o

consentimento dos avós se ambos os pais forem falecidos ou incapazes de manifestar a

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sua vontade, sendo que o consentimento de apenas um é suficiente em caso de

desacordo (art.º 150º). Na eventualidade de o menor não tiver nenhum ascendente

paterno ou materno em condições de manifestar a sua vontade exige-se o consentimento

do conselho de família (art.º 159º).

Segundo as normas, pode-se dar o consentimento aquando do casamento (será então

prestado perante o conservador do registo civil que celebra a união: art.º 75º e 76º) ou

antes da união, mediante documento autêntico (escritura notarial ou auto lavrado pelo

funcionário de registo civil da área de residência ou da residência do ascendente dador

do consentimento: art.º 73º). Ensina-se classicamente que não se pode submeter ao

controlo dos tribunais1 a recusa em consentir. Mas será que semelhante poder

discricionário está em conformidade com o direito contemporâneo da família,

preocupada com a felicidade individual, que reconhece uma crescente margem de

autonomia ao menor dotado de discernimento e não hesita mais em controlar a

autoridade paternal, até em decisões durante muito tempo deixadas, também elas, aos

plenos poderes paternais (por exemplo, o consentimento à adopção da criança: art.º

348º-6; v. infra, nº471)?

O conservador do registo civil que celebrar o casamento de um menor sem o

consentimento de um ascendente ou do conselho de família incorre numa sanção penal

(art.º 156º, v. infra, nº92). Para além disso, a nulidade do casamento assim celebrado

poderia ser exigida por aqueles que deviam dar o seu consentimento ou pelo cônjuge

menor (art.º 182º, v, infra, nº97).

2. O casamento dos maiores de idade

50 A plena capacidade que a maioridade civil confere (art.º 488º do Código Civil; art.º

414º redacção da Lei de 5 de Março de 20072) permite em princípio às pessoas com

mais de dezoito anos decidirem o seu casamento. Mas este princípio cede na presença

de um maior de idade inabilitado, isto é, um adulto incapaz de velar pelos seus

interesses devido a uma alteração das suas faculdades pessoais (art.º 490º; novo art.º

1 Neste sentido v. Rouen, 26 de Julho de 1949, D 1951. 532 2 Os diplomas resultantes da reforma de 5 de Março de 2007, que apenas entrarão em vigor a 1 de Janeiro

de 2009, serão apresentados formalmente como o seguinte: novo artigo.

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425º). A abertura de um regime de protecção limita então a autonomia da pessoa. Esta

limitação varia consoante o regime de protecção escolhido: salvaguarda da justiça1,

tutela ou curadoria. Convém apresentar o Direito emergente da Lei de 3 de Janeiro de

1968 assim como aquele resultante da reforma da protecção jurídica dos maiores de

idade introduzida pela Lei de 5 de Março de 2007, sendo que este último apenas entra

em vigor a 1 de Janeiro de 2009.

O maior de idade sob salvaguarda da justiça permanece em princípio capaz

(art.º 491º-2; novo art.º. 435º e 506º) e conserva a total liberdade para casar, o que aliás

não está isento de perigo tendo em conta a alteração das faculdades pessoais da qual

necessariamente sofre. Mas é então a nulidade do casamento por falta de consentimento,

que será eventualmente aplicável (art.º 146º; v. infra, nº55). O maior de idade sob tutela,

por hipótese gravemente afectado, é em princípio incapaz e é representado por um tutor

que deve ser munido de uma autorização do conselho de família para os actos de

disposição (art.º 492; novo art.º 440º, 473º e 505º). Estes princípios são parcialmente

postos de lado no que respeita ao casamento do maior de idade sob tutela. No direito

resultante da Lei de 1968, são os pais do interessado que devem dar consentimento; à

falta deste duplo consentimento a decisão pertence ao conselho de família, este

organismo colegial constituído pelo juiz de tutelas no seio da família2, sendo que a Lei

especifica que o conselho de família deve ser especialmente convocado para o efeito e

que a decisão só pode ser tomada mediante audição dos nubentes; em ambos os casos, o

médico assistente deve dar um parecer (art.º 506º). A reforma de 5 de Março de 2007

confere ao juiz, ou ao conselho de família (apenas se este for constituído3), o poder para 1 N.T – Cornu define salvaguarda da justiça (trad. literal de sauvegarde de justice) como um regime de

protecção mais ligeiro do que tutela ou curadoria, em que se protege a pessoa com alteração das suas

faculdades pessoais, que conserva o pleno exercício dos seus direitos, contra actos civis. Não existe na lei

portuguesa.

2 Será que o poder de decisão é discricionário ou será que pode ser controlado pelo juiz? A comparação

com os menores incita a excluir todo o controlo da decisão; mas o Direito Comum aplicável ao conselho

de família pretende que, como toda a decisão deste organismo colegial, a que diz respeito ao casamento

do maior de idade protegido possa ser objecto de um recurso judicial. 3 A regra anterior, que pretendia que um conselho de família ad hoc fosse constituído quando a tutela não

funcionava (tutela sob forma de administração legal nomeadamente), foi revogada: em caso semelhante, é

agora o juiz que irá decidir o casamento.

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consentir o casamento do maior de idade sob tutela, após audição dos interessados

(novo art.º 460º, par.2); já não é necessário o parecer1 do médico assistente. No que diz

respeito aos pais, estes perderam todo o poder para consentir, sendo que a Lei permite

apenas recolher “eventualmente”, o parecer dos pais, dos afins ou de restantes

familiares.

O maior de idade sob curadoria, estando numa situação pessoal intermediária entre o

maior de idade sob salvaguarda da justiça e o maior de idade sob tutela, permanece

capaz para realizar os actos menos graves mas deve ser assistido pelo curador nos

restantes actos, sendo que uma eventual recusa do curador pode ser sujeita ao controlo

do juiz (art.º 508º seguintes; novo art.º 440º, 467º e 469º). Estes princípios aplicam-se à

união matrimonial: não é possível o casamento do maior de idade sob curadoria sem a

autorização do curador ou, na falta deste, do juiz de tutelas (art.º 514º; novo art.º 460,

par.1).

B. O momento do consentimento.

51 Casamento a título póstumo. Deve existir consentimento aquando do cumprimento

das formalidades antenupciais (registo de documentos, pedido de processo preliminar de

publicações). Este deve perdurar até à celebração da união pelo conservador do registo

civil. Daqui resulta que a morte de um dos nubentes proíbe em princípio a celebração da

união. Na sequência da ruptura da barragem de Malpasset a opinião pública emocionou-

se com o destino das jovens que tinham perdido os seus noivos na catástrofe e não

podiam portanto levar avante os seus projectos de casamento, do qual resultariam filhos

eventualmente por nascer que não podiam reivindicar a qualidade de filhos legítimos e

só podendo ser ilegítimos. Foi para remediar esta situação que a Lei de 31 de Dezembro

de 1959 introduziu na legislação francesa o casamento póstumo (art.º171º). A título

excepcional e mediante condições, é possível celebrar um casamento após a morte de

um dos cônjuges; contudo este casamento só produzirá efeitos limitados.

1 Solução discutível, uma vez que o médico parece ser o único apto a determinar a realidade do

consentimento ao casamento dado pelo maior de idade em questão.

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1. As condições

52 A celebração deste tipo de casamento está sujeita à autorização do Presidente da

República, só podendo ocorrer em duas situações. Por um lado está sujeita à presença de

“motivos graves” e por outro lado ao “cumprimento de formalidades oficiais que

marcam sem equívoco o seu consentimento” (o do falecido).

Esta instituição excepcional dá lugar a uma delicada partilha de poderes entre as

autoridades públicas1. O Tribunal de Cassação considera que a existência de motivos

graves depende da avaliação discricionária do Presidente da República e que a

existência de um consentimento expresso aquando do cumprimento de formalidades é

do foro do seu soberano poder de avaliação2. Para além disso, interpreta de modo muito

flexível a obrigação de motivação que pesa então sobre si3. O juiz só tem, da sua parte,

o poder para verificar por um lado, o cumprimento das formalidades prévias à

celebração, e por outro lado a manutenção do consentimento deste modo expresso até ao

momento da morte do interessado4.

2. Os efeitos

53 Este “casamento nominal”5 só produz efeitos limitados. Estes remontam ao dia

anterior à morte do cônjuge.

Antigamente, conferia ao filho a qualidade de filho legítimo. Mas este benefício,

aliás limitado devido à igualdade das filiações natural e legítima (v. infra, nº354

seguintes) e da existência da legitimação por autoridade da justiça (v. infra, nº 455

seguintes) extinguiu-se com o fim da distinção entre filhos legítimos e filhos naturais

desde a entrada em vigor do despacho de 4 de Julho de 2005 (vigente desde 1 de Julho

de 2006).

1 Civ 1º, 6 de Dezembro de 1989, Grands arrêts, nº32; Civ. 1º, 30 de Março de 1999, Bol., nº114 2 Solução discutível tratando-se de uma condição de fundo que todo o casamento supõe, de onde deveria

resultar o controlo das jurisdições judiciais mais do que o poder real do Presidente da República. 3 Civ 1º, 17 de Outubro de 2007, Dto. Fam. 2007, nº 197. 4 Civ. 1º, 28 de Fevereiro de 2006, Bol., nº123 5 Cornu, nº166

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A Lei prevê que não há qualquer efeito sucessório relativamente ao cônjuge

sobrevivo e não cria nenhum regime matrimonial (art.º171º, par.3). Porém, seria

excessivo reduzi-lo a um valor puramente simbólico: confere ao sobrevivo diversos

benefícios sociais1 e fiscais2. Para além disso, na ordem civil, ao atribuir ao sobrevivo a

qualidade de cônjuge a contar do dia anterior à morte, confere-lhe o direito a usar o

apelido do falecido.

C. A definição do consentimento

54 Noção de consentimento para casamento. A principal dificuldade consiste em

determinar o que se entende por “consentimento para casamento”. Será que basta

responder formalmente “sim” à pergunta colocada pelo conservador do registo civil

para ter “consentido em casar” ou a forma deve além disso corresponder a uma certa

vontade substancial? A questão recupera, na realidade, duas hipóteses muito distintas.

55 Alteração das faculdades mentais. Em primeiro lugar, que valor se deve reconhecer

ao “sim” vindo de um moribundo sem lucidez ou de um alienado sob influência de uma

anomalia psíquica? A questão de sanção de semelhante casamento, muito discutida no

início do século passado, encontrou, a partir da Lei de 19 de Fevereiro de 1933, a sua

resposta no artigo 184.º do Código Civil que, ao instaurar processo de nulidade não

apenas à vítima da anomalia mas também ao seu cônjuge, a todo o interessado, ou ao

Ministério Público fere implicitamente semelhante casamento de nulidade absoluta.

Naturalmente com a condição de que o moribundo tenha sido privado de toda a vontade

livre e reflectida3 ou que a alteração das faculdades mentais seja tal que tenha levado a

1 É o caso do pagamento da pensão de sobrevivência; o caso do direito de exigir o pagamento do capital

do falecido, sendo que o cônjuge sobrevivo prevalece sobre os filhos do falecido que teriam nascido de

uma primeira união dissolvida por divórcio (Civ, 1º, 22 de Maio de 2007, Bol., recurso nº 05-18582). 2 As doações e legados consentidos pelo falecido serão submetidos ao regime fiscal das transmissões

entre cônjuges: resposta ministerial. QE nº 88311, JO 16 de Maio de 2006, p.5187. 3 É válido o casamento in extremis ao qual o moribundo tenha consentido por meio de um estertor que

todas as testemunhas interpretaram como uma vontade de casar: Civ 1º, 31 de Janeiro de 2006, Dto Fam.

2006, 79, 2º caso.

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uma ausência efectiva de consentimento para casamento, algo que o requerente da

nulidade deve provar e o que os juízes de mérito avaliam de modo soberano1.

56 Ausência de vontade matrimonial real. Em segundo lugar, que valor se pode

atribuir ao casamento de um individuo lúcido, com plena posse das suas faculdades

intelectuais, mas cujo “sim” não corresponde a nenhuma intenção conjugal real ou cuja

vontade matrimonial é muito limitada porque o individuo procura os efeitos secundários

do casamento, como os benefícios fiscais…?

Esta questão, teoricamente sensível uma vez que remete para a definição do

casamento, não especificada em parte alguma pela Lei, é de um inegável interesse

prático, e que parece crescente. A instrumentalização do casamento se desenvolveria,

nomeadamente devido ao endurecimento da política de imigração, recorrendo os

estrangeiros a ele às vezes com o único objectivo de obter a nacionalidade francesa ou

um título de residência.

57 A sanção de um casamento sem consentimento. Segundo uma doutrina clássica a

troca formal de consentimentos era suficiente para contrair casamento, sendo que a

intervenção da autoridade pública limpa este acto solene dos seus vícios. Mas tal nunca

foi o direito positivo que dá prioridade à realidade da vontade e não se satisfaz de uma

forma vazia. O destino de semelhante casamento tem variado no tempo e difere

consoante se foi celebrado ou é projectado e segundo se foi invocado na ordem civil ou

na ordem administrativa. Serão expostas as sanções jurisprudenciais e as sucessivas

reformas legislativas desde 1993.

1. As sanções jurisprudenciais

58 Sanção pelo juiz civil ou juiz administrativo. A sanção de um casamento por

consentimento inexistente ou limitado difere consoante se foi decretada pelo juiz civil

ou pelo juiz administrativo.

59 A nulidade do casamento por falta de consentimento decretado pelo juiz civil.

Na famosa decisão judicial do caso Appietto de 20 de Novembro de 19632, o Tribunal

1 Civ. 1º, 2 de Dezembro de 1992, JCP 1993, IV, 401

2 JCP 1964.II.13498

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de Cassação considerou que “ o casamento é nulo por ausência de consentimento

quando os cônjuges só participam na cerimónia com vista a obter um resultado estranho

à união matrimonial” mas que era “ válido quando julgavam poder limitar os seus

efeitos legais”. Proferida num caso em que os cônjuges só se casaram para legitimar o

filho em comum, a sentença distinguia assim as uniões nas quais os cônjuges

procuravam um “ efeito estranho” ao casamento daquelas nas quais os cônjuges queriam

apenas excluir este ou aquele efeito do casamento: considerados nulos na primeira

hipótese (por nulidade absoluta, que pode ser requerida por todo o interessado, num

período de trinta anos, não sendo possível qualquer confirmação), as uniões

permaneciam válidas e produziam todos os efeitos na segunda. Esta solução foi

criticada por permitir ao simulador libertar-se com alguma facilidade de um casamento

que se tornou um obstáculo, obtendo assim a sua nulidade. No entanto, parece lógico

eliminar semelhante “forma sem conteúdo”, existindo a preocupação, legítima, em

sancionar o indivíduo desonesto recorrendo a outras respostas que não a conservação de

um casamento desprovido de todo o conteúdo1. Mais seriamente foi criticado por

assentar numa distinção difícil de implementar: o que se entende por “efeitos estranhos”

à união matrimonial? Pode-se objectar que a noção é certamente difícil de definir de

modo geral mas que pode ser o objecto de aplicações concretas “ razoáveis”. A

jurisprudência tem assim considerado que o casamento exclusivamente destinado para

fins sucessórios2 ou para obtenção de títulos de residência3 estava viciado por falta de

consentimento.

Esta jurisprudência ainda vigora: o casamento é válido se os cônjuges estavam

animados de uma intenção matrimonial, mesmo sendo limitada. Considera-se nulo se

pelo menos um dos interessados não tinha qualquer intenção matrimonial, procurando

apenas este ou aquele “efeito estranho” à união matrimonial. Contudo, a nulidade está

subordinada à prova, pelo requerente da nulidade, da ausência radical de intenção

matrimonial4.

1 O Direito penal poderia ser um aliado precioso nesta sanção. 2 Civ. 1º, 28 de Outubro de 2003, Bol., nº 215, p.169 3 Civ. 1º, 19 de Janeiro de 1999, Dto Fam. 1999, 13, 1ª sentença. 4 Civ, 1º, 22 de Novembro de 2005, Bol., nº 441, p.369. A prova pode resultar do inquérito da polícia ou

audição de um dos cônjuges: Civ. 1º, 22 de Abril de 1997. Defr. 1997. A ausência de vida em comum e

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60 A inoponibilidade do casamento fraudulento sentenciada pelo juiz

administrativo. A questão tem-se particularmente colocado perante as jurisdições

administrativas, a propósito dos casamentos exclusivamente celebrados para permitirem

a um estrangeiro entrar ou residir em França ou adquirir a nacionalidade francesa. Num

parecer de 9 de Outubro de 1992, o Conselho de Estado francês propôs uma solução

desde então várias vezes aplicada. Após ter considerado que “ um acto de direito

privado … é em princípio oponível… à administração enquanto não for declarado nulo

pelo magistrado judicial”, o Supremo Tribunal Administrativo fixou que “compete

portanto à administração, quando se revela uma fraude cometida com o objectivo de

obter a aplicação de disposições de direito público, pôr entraves ao projecto, até nos

casos em que esta fraude reveste a forma de um acto de direito privado” o que podia “

levar a administração… a não considerar … os actos de direito privado oponíveis a

terceiros. Ao aplicar estes princípios no casamento, estimou-se então que se “ o

casamento de um estrangeiro com um cidadão de nacionalidade francesa for oponível a

terceiros quando foi celebrado e tornado público nas condições previstas nos artigos

165º e seguintes do Código Civil e impõe-se portanto em princípio à administração

enquanto não for dissolvido ou declarado nulo pelo magistrado judicial”, entretanto “

compete ao notário, se for provado incontestavelmente aquando da análise de um

requerimento… que o casamento foi celebrado com o fim exclusivo de obtenção de um

título de residência … travar esta fraude e recusar ao interessado a autorização de

residência, mediante controlo do juiz incumbido de decidir em matéria de excesso de

poder”.

Este parecer limitava-se portanto a sugerir a aplicação de uma instituição da

teoria geral do direito, isto é a fraude, que o direito internacional privado

designadamente bem conhece. Quando um indivíduo se sujeitou artificialmente a uma

Lei para obter, graças à letra dos textos, uma aplicação de uma instituição contrária ao

espírito dos diplomas, a reacção do direito consiste em privar de eficácia o esquema

imaginado, declarando o acto fraudulento inoponível a terceiros.

de relações sexuais é muitas vezes invocada: v. por ex. Civ. 1º, 22 de Novembro de 2005, Bol., nº 442,

p.369.

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A administração aplica esta solução desde 1992. O casamento fraudulento,

simulado, é nulo caso se recorra às jurisdições judiciais, pode então para além disso ser

sancionado, de forma autónoma pela administração, pelo recurso à fraude. Esta solução

é aparentemente respeitadora da liberdade do casamento e da competência judicial. Com

efeito, por um lado a inoponibilidade do casamento não afecta de antemão a sua

nulidade (o que é indispensável, sendo as jurisdições judiciais as únicas com a

competência para anular um acto que pertence ao exercício de uma liberdade civil), e

por outro lado este poder de sanção é conferido à administração apenas mediante

controlo do juiz administrativo. Contudo, é lamentável. Em primeiro lugar dado que se

pode questionar sobre a legitimidade de uma sanção – inoponibilidade do casamento a

terceiros mas validade deste casamento entre cônjuges – que mantêm um casamento que

é apenas uma “ forma sem conteúdo ”1. Em segundo lugar porque confere por mais que

se diga, o poder para avaliar a realidade de um casamento, numa primeira fase à

administração e numa segunda fase ao juiz administrativo (por via do recurso ao

excesso de poder), ainda que, contudo, a liberdade do casamento seja uma liberdade

civil essencial, e que a avaliação da regularidade de um casamento deveria portanto

pertencer à competência exclusiva das jurisdições judiciais. Seria preferível que a

administração fosse obrigada, em caso de dúvida, a informar o Ministério Público, que

pode sempre instaurar acção de nulidade do casamento em caso de ausência de

consentimento (art.º 184.º).

2. As reformas legislativas

61 Dispositivo legislativo contra os casamentos fraudulentos. O legislador tem-se

esforçado igualmente por melhorar o combate aos casamentos fraudulentos, dado que o

fenómeno parece estar a aumentar (verificaram-se pouco mais de 180 casos em 2000 no

Ministério Público e mais de 1350 em 2005). Seguiram-se duas pistas: a da prevenção e

a da sanção.

1 Em relação a isto, pode-se verificar que a solução é muito diferente da que conduz à teoria geral da

simulação. Neste último caso, com efeito, se a simulação não prejudica terceiros, o que leva

eventualmente a considerar que o acto real é-lhes inoponível, não acontece o mesmo com os interessados,

uma vez que este acto prevalece no fundo das relações, em conformidade com as suas vontades.

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62 A prevenção das fraudes. O legislador esforçou-se por aperfeiçoar a prevenção. As

actuais disposições são o produto de sucessivas Leis, por vezes parcialmente censuradas

pelo Tribunal constitucional: Leis ditas Leis Pasqua de 22 de Julho de 19931, de 24 de

Agosto de 1993, de 13 de Dezembro de 1993; Lei dita Chevènement de 16 de Março de

1998; Leis ditas Sarkozy de 26 de Novembro de 20032, de 4 de Abril de 2006, de 14 de

Novembro de 2006.

Primeiro reforçou-se o controlo dos casamentos antes da celebração.

Para esse efeito concederam-se novos poderes ao conservador do registo civil e

ao Procurador da República (art.º 175º-2). “Quando há sérios indícios que deixam

presumir que o casamento em questão é passível de nulidade”, por ausência de

consentimento (ou por vício do consentimento, v. infra, nº66), o conservador do registo

civil tem o poder para notificar imediatamente o Procurador da República, devendo

informar os interessados. O Procurador da República dispõe então de quinze dias para

tomar uma decisão: deixar celebrar o casamento, deduzir oposição ao casamento ou

adiar a sua celebração. Deve dar a conhecer a sua decisão ao conservador do registo

civil e aos interessados indicando os seus motivos. O adiamento não poderá exceder um

mês, sendo renovável uma única vez (por decisão fundamentada); aquando da sua

expiração, o Procurador da República dever dar a conhecer ao conservador do registo

civil a sua decisão em deixar celebrar ao casamento ou deduzir oposição a ele, assim

como os fundamentos da decisão. De igual modo, o direito de deduzir oposição pode ser

exercido oficiosamente pelo Procurador da República (art.º 175º-1, v. infra, nº 93). A

decisão em adiar a celebração bem como a oposição3 está sujeita ao controlo do juiz

judicial1.

1 O direito de deduzir oposição à celebração de um casamento reconhecido por esta Lei ao Procurador da

República foi considerado contrário à liberdade do casamento, sendo componente da liberdade individual,

devido à prorrogação do prazo concedido ao Procurador para se decidir (3 meses) e da ausência de

recurso contra a sua decisão: Decisão judicial nº 1993-321 DC de 20 de Julho de 1993. 2 Várias disposições foram censuradas pelo Tribunal constitucional: Decisão judicial nº 2003-484 DC de

20 de Nov. de 2003. 3 Está sujeita ao Direito Comum de oposição: O Tribunal de Grande Instância pode decretar o

cancelamento num período de dez dias; a decisão de recurso deve ocorrer nos dez dias subsequentes (art.º

177 e 178).

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Para remediar os limites do dispositivo, tendo em conta que nem o conservador

do registo civil nem o Procurador da República têm meios para adivinhar uma fraude, o

legislador impôs aos funcionários do registo civil a obrigação, sancionada penalmente,

de proceder à audição dos nubentes antes do processo preliminar de publicações (art.º

63º, v. infra, nº84). Esta obrigação cede “em caso de impossibilidade” (é o caso de um

candidato a casamento retido no estrangeiro) ou se a audição “não parece necessária à

luz dos documentos fornecidos”. Para além disso, a Lei autorizou a delegação do poder

a proceder às audições pelo conservador do registo civil. Estas duas regras limitam

sensivelmente a eficácia do dispositivo.

A Lei previu igualmente que os cônjuges devem indicar ao conservador do

registo civil a identidade das suas testemunhas antes mesmo do processo preliminar de

publicações (art.º 63º; v. infra, nº87)2, apresentar uma cópia integral da sua certidão de

nascimento e não apenas um extracto (art.º 70º; v. infra, nº 84), e por fim justificar a sua

identidade por meio de um documento emitido pela autoridade pública.

Reforçou igualmente a eficácia de uma oposição deduzida pelo Ministério

Público, prevendo que esta oposição continuasse a produzir efeito enquanto não ocorria

uma decisão judicial (art.º novo 176º)3.

Foi utilizada uma segunda arma, consistindo em reduzir os efeitos benéficos do

casamento no estatuto dos estrangeiros. Prolongou-se4 o tempo de duração de vida em

comum exigido para adquirir a nacionalidade francesa através do casamento e

dificultaram-se5 as condições de obtenção de títulos de residência.

1 A decisão do Presidente do Tribunal de Grande Instância deve ocorrer num período de dez dias; o

eventual recurso deve também ser julgado pelo tribunal no período de dez dias (art.º 175.º-2, par. 5). 2 A medida será provavelmente ilusória: bastará ao simulador esconder a verdade a um terceiro de boa fé

ou obter o testemunho de cumplicidade de um terceiro. 3 Até 2006, cessava automaticamente de produzir efeitos decorrido um ano e podia somente ser renovada

pelo Ministério Público. 4 Passou de um ano em 1998 para dois anos em 2003 e quatro, até mesmo cinco anos em 2006, consoante

se o estrangeiro viveu regularmente ou não em França depois do seu casamento (novo art.º 21-2). 5 São necessários três anos de vida em comum e não mais dois para obter o título de residência; o cônjuge

estrangeiro que pretendia instalar-se em França deve obter um visto de longa permanência.

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Por fim, criaram-se disposições próprias ao casamento de cidadão francês

celebrado no estrangeiro (novo capítulo II bis intitulado Do Casamento de franceses

celebrado no estrangeiro). A Lei já tinha, em 1993, tentado combater as fraudes

impondo a presença do cidadão francês aquando da celebração do casamento no

estrangeiro (art.º 146º-1). Criaram-se outras disposições em 2006. O casamento apenas

pode ser celebrado no estrangeiro após emissão de um certificado de capacidade para

casamento, estabelecido pela autoridade diplomática ou consular depois do

cumprimento de diversas formalidades1. Dificultaram-se2 as condições da transcrição do

casamento celebrado no estrangeiro, transcrição necessária para que o casamento seja

oponível a terceiros em França.

O eventual “efeito macedónio” descrito por Carbonnier torna discutível a opção

legislativa: o desenvolvimento de um controlo preventivo à celebração provoca

cepticismo, sendo que a vantagem prevista contra algumas centenas de vigaristas

ultrapassa largamente o entrave à liberdade do casamento que resulta para a maioria.

63 A sanção das uniões fictícias. Paralelamente a este reforço de prevenção das uniões

fictícias, a Lei esforçou-se por aperfeiçoar as sanções.

A Lei de 24 de Agosto de 1993 tinha inserido no Código Civil um artigo 190º-1,

que apenas abria restritivamente a acção de nulidade contra uma semelhante união:

apenas o Ministério Público e o cônjuge de boa fé podiam instaurar acção de nulidade, e

só no ano do casamento. A sanção revelava-se assim muito aquém daquela que o

Direito Comum decretava. Com efeito, ao abrigo da jurisprudência Appieto, a nulidade

de um semelhante casamento ocorria pela falta de consentimento; tratava-se portanto de

uma nulidade absoluta, resultando daí que podia ser decretada num período de trinta

anos, a pedido de todo o interessado. A reforma de 1993 assim por consequência

1 E nomeadamente a realização de uma audição antenupcial: art.º 171-2 2 Deve ser precedida de audição dos cônjuges pela autoridade diplomática ou consular se o certificado de

capacidade matrimonial não foi previamente assente (art.º 171º-7). Caso contrário, existe salvo se novos

elementos deixam presumir um casamento simulado (art.º 171º-8).

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discutível restringir a acção de nulidade, no tempo1, e quanto às pessoas que podem

agir2. Esta opção legislativa era tão discutível como estava em falso com a sanção da

fraude: era difícil admitir o jogo da fraude na ordem administrativa e descartá-lo na

ordem civil. A partir de então, mesmo não tendo civilmente qualidade para instaurar

acção de nulidade, os terceiros podiam provavelmente recusar ter o casamento em conta

e considerar os cônjuges solteiros, em conformidade com o princípio geral segundo a

qual a fraude corrompe tudo. O casamento, válido entre as partes (daí a proibição de um

novo casamento em virtude da proibição da poligamia) era portanto não oponível a

terceiros (será que o juiz civil podia rejeitar um pedido de divórcio quando o casamento

era oponível?). Os cônjuges estavam assim vinculados para sempre no direito, quando

não o estavam nulamente de facto… Sem contar que era particularmente lamentável

sancionar o simulador mantendo-o nos laços de um casamento puramente nominal: será

que está em conformidade com a finalidade da instituição matrimonial utilizá-la como

sanção?

Esta sanção era tão contestável como estava em falso com a teoria geral dos

contratos. O casamento simulado é na realidade um acordo de vontades que priva de

causa. Ao associar a teoria contratual (o casamento resulta do acordo de duas vontades)

e a teoria institucional (o casamento tem uma dupla finalidade social, conjugal por um

lado – unir de modo durável duas pessoas, na ordem patrimonial e pessoal – e parental

por outro lado – receber os futuros filhos -), a sanção consiste numa nulidade por falta

de causa ou falsa causa uma vez que o consentimento dado pelo cônjuge (ou cônjuges)

não tem por causa a realização da finalidade institucional do casamento. A nulidade

absoluta resulta inelutavelmente desta análise.

Para diminuir o absurdo de uma semelhante disposição, a administração e os

tribunais tinham invocado o princípio segundo a qual o direito especial não vai contra o

Direito Comum mais aí se acrescenta, para autorizar a aplicação de uma nulidade

1 A acção apenas podia ser exercida durante um ano a contar da celebração do casamento, o que era

particularmente injustificado, sendo que o cônjuge de boa fé podia muito bem ser abusado durante um

ano e a fraude não era necessariamente descoberta antes da expiração deste prazo pelo Ministério Público. 2 A acção estava interdita ao simulador e ao seu cúmplice, o que resultaria na permanência discutível de

um casamento formal não correspondendo a nenhuma realidade.

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absoluta de Direito Comum1. O diploma foi bem revogado pela Lei de 26 de Novembro

de 2003. A sanção de uma semelhante união está portanto agora, em conformidade com

o Direito Comum, uma nulidade absoluta, que pode ser requerida por todo o

interessado, num período de trinta anos.

A esta primeira sanção, que assegura o restabelecimento da legalidade civil ao

erradicar um casamento que não corresponde em nada à instituição jurídica, juntam-se

duas outras eventuais sanções: com efeito, o simulador desencadeia a sua

responsabilidade civil2 e criminal3.

2.O carácter informado das vontades

64 O consentimento dado pelos cônjuges deve para além disso ser informado, isto é,

dado livremente (A) e de modo esclarecido (B). Na falta disto é passível de nulidade,

por nulidade relativa, tratando-se unicamente de proteger vítima da coacção ou do erro

(v. infra, nº 97).

A. Uma vontade livre

65 A liberdade do casamento supõe nomeadamente que o consentimento seja dado em

plena liberdade. Na ausência disto, se o casamento foi celebrado sob coacção, o Código

Civil sanciona-o através da nulidade. A regra data de 1804. Até hoje tinha sido pouco

aplicada: fundamentalmente, a nulidade tinha sido concedida em alguns “casos

complicados ou militares”4 ou ainda na altura das duas últimas guerras, quando a

instituição matrimonial tinha sido utilizada para fugir de um grave perigo

1 V. por exemplo Civ 1º, 22 de Novembro de 2005, Bol., nº 442, p.369

2 Pensa-se em primeiro lugar no dano sofrido pelo cônjuge de boa fé. Mas poderia também tratar-se de

um dano sofrido por um terceiro, nomeadamente se a aparência de casamento lhe levou a cometer um

acto que lhe é prejudicial. 3 Foi a Lei de 26 de Novembro de 2003 que criou uma nova infracção penal. Está hoje prevista no artigo

L. 623.º-1 do Código da entrada e permanência dos estrangeiros e do direito de asilo: aquele que consente

a um casamento com o único objectivo de adquirir ou permitir adquirir a nacionalidade francesa ou obter

ou permitir obter um título de residência, e aquele que organiza um semelhante casamento será punido a 5

anos de prisão e 15.000 euros de multa. São raras as condenações.

4 Cornu, nº 172.

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(nomeadamente as perseguições contra os Judeus)1. Foi reafirmada e reforçada pela Lei

de 4 de Abril de 2006, destinada a combater os casamentos ditos “forçados”. Para além

disso, a jurisprudência, substituída pelo legislador, acentuou a protecção da liberdade do

casamento, sancionando coacções muito difusas. Sanção de um casamento celebrado

por força da coacção e sanção das simples pressões exercidas sobre um indivíduo

impelindo-o para o casamento ou pelo contrário dissuadi-lo do acto constituem assim as

duas faces essenciais da liberdade do consentimento ao casamento.

1. A coacção strictu sensu

66 O artigo 180º do Código Civil sanciona por nulidade relativa o casamento celebrado

“sem o consentimento livre de ambos os cônjuges”. A origem das ameaças tem pouca

importância (quer se trate do próprio cônjuge ou de um terceiro) assim como o meio

utilizado (quer a ameaça tenha suscitado o receio de um dano pessoal ou patrimonial e

que vise directamente o interessado ou pessoas próximas). É preciso e basta que a

coacção exercida tenha suscitado junto ao cônjuge vítima um medo determinante para o

consentimento em casar. Este carácter determinante pertence ao poder soberano de

avaliação dos juízes de mérito. A avaliação tem em conta as características próprias do

interessado (idade, resistência…).

Para combater os “casamentos forçados” a Lei de 4 de Abril de 2006 inovou em três

aspectos. Em primeiro lugar, o temor reverencial sentido para com os ascendentes, que

antigamente era insuficiente para se obter a nulidade devido ao Direito Comum dos

contratos (art.º 1114º), é hoje explicitamente sancionado no casamento (art.º 180º, par.1,

in fine). Em segundo lugar, ampliou-se a nulidade: enquanto até aqui apenas podia ser

requerida pelo cônjuge cujo consentimento foi forçado, agora pode sê-lo também pelo

Ministério Público (art.º 180º; v.infra, nº97)2. Enquanto a coabitação contínua dos

cônjuges durante seis meses levava à prescrição da acção de nulidade, a prescrição

supõe agora, de qualquer das formas, o decurso de um prazo de cinco anos (art.º 181º; v.

infra, nº 97). Em último lugar, a preocupação em evitar a celebração destas uniões levou

1 A nulidade deste casamento por coacção iria interferir com a sanção de um casamento por fraude à Lei

(v.supra, nº58 s.). 2 Trata-se de diminuir o medo de represálias, que impede muitas vezes as jovens forçadas a casar requerer

a nulidade.

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o legislador a ampliar os poderes do conservador do registo civil e do Procurador da

República. Agora o primeiro deve saber, aquando da audição antenupcial, não apenas se

o casamento projectado é simulado (v. supra, nº62), mas também se é forçado (art.º 63º,

v. infra, nº 849. Pode para além disso, informar o Procurador da República se existem

sérios indícios que deixam presumir semelhante situação, sendo que o Procurador da

República tem então a escolha entre deixar celebrar o casamento, adiar a sua celebração

ou deduzir oposição ao casamento (art.º 175º-2 do Código Civil; v infra, nº 93). Quanto

ao Procurador da República, este pode agora opor-se à celebração em caso de

casamento forçado (art.º 175º-1 Código Civil; v. infra, nº 93).

2. As coacções lato sensu

67 Para além disso, a jurisprudência esforçou-se para evitar as coacções exercidas sobre

uma pessoa com o objectivo de contrair casamento ou dissuadi-la do acto. Devem-se

examinar três principais hipóteses.

a. O estatuto das promessas de casamento

68 A celebração de um casamento é por vezes precedida de noivado, isto é, da promessa

que duas pessoas trocam em se casarem num futuro próximo. Válidas no direito

canónico ainda que dotadas de uma eficácia variável, produziam diversos efeitos com o

Direito do Antigo Regime: impedimentos ao casamento entre cada noivo e a família do

outro; condenação ao pagamento de indemnização por perdas e danos em caso de

incumprimento, salvo prova de um motivo legítimo… O Código Civil francês

permaneceu silencioso sobre este assunto, ao contrário de outros países que

regulamentam esta promessa. O estatuto de noivado foi progressivamente elaborado

pela jurisprudência que se esforça em consagrar uma solução comedida, associando dois

princípios: os noivados não são um contrato juridicamente vinculativo; os noivados

constituem um facto jurídico, isto é, um evento ao qual o direito associa diversos efeitos

jurídicos.

69 O princípio implementado na jurisprudência no século passado1 vigora: “ toda a

promessa de casamento é nula na sua natureza por constituir violação à liberdade

1 Civ. 30 de Maio de 1838, Grands arrêts, nº 31

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ilimitada que deve reinar nos casamentos e subsistir até à celebração de um acto tão

solene”. As promessas de casamento são nulas na qualidade de promessas, na qualidade

de actos jurídicos: atacando a liberdade do casamento, são com efeito um objecto ilícito

contrário à ordem pública, o que as fere de nulidade absoluta (art.º 1108.º). As

promessas escapam portanto a toda a execução forçada e a sua ruptura não é fonte de

responsabilidade negocial.

70 Apesar disso, a existência de uma promessa de casamento é um facto que não

pertence exclusivamente ao não direito mas produz diversos efeitos jurídicos.

Antigamente a promessa de casamento constituía um “caso de abertura” de acção em

investigação de paternidade natural (antigo artigo 340.º-2) e, ao abrigo da Lei de 8 de

Janeiro de 1993, podia constituir as “presunções ou indícios graves” autorizando o

exercício de uma acção em investigação de maternidade ou paternidade (antigo artigo

340º e 341º); e pode ser hoje invocada para apoiar uma acção em investigação de

paternidade (v. infra, nº422) ou um pedido de peritagem genética (v. infra, nº 365).

Produz principalmente três efeitos no que diz respeito aos noivos1.

Em primeiro lugar, pode originar uma acção de responsabilidade por factos

ilícitos (art.º 1382.º) se ficar provado que foi apenas consentido de modo leviano ou

para enganar o outro ou, sobretudo, que a sua ruptura é faltosa. A culpa pode resultar

das circunstâncias da ruptura (o dia anterior, até mesmo o dia do casamento…) ou da

sua própria existência: com efeito os tribunais têm de um modo progressivo vindo a

controlar o motivo da ruptura de noivado e impõem ao que rompe sem motivo legítimo2

indemnizar o dano material e moral sofrido pela ruptura. De modo que o Direito

positivo não está assim tão longe do sistema proposto por Josserand, que via no noivado

um contrato com capacidade de rescisão unilateral salvo abuso sua ruptura3.

1 Sem contar com a sua abrangência em relação ao casamento póstumo, v. supra, nº 52 2 Descoberta de uma má conduta, uma mentira. A própria falta de amor é, em teoria, suficiente, mesmo

se, na prática, tudo depender dos factos. O nascimento de um filho comum instaura com efeito muitas

vezes até uma indemnização, prova que os tribunais decidem em igualdade e dão prioridade ao prejuízo

para avaliar a culpa. V. Cornu, op. cit., nº 152. 3 Mantém-se a prova. Primeiro o ónus da prova: se os noivados são uma promessa obrigatória, compete

ao autor da ruptura justificá-lo; se apenas se trata de um facto jurídico, compete ao que pede reparação

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Em segundo lugar, origina a eventual restituição do anel de noivado. À letra o

artigo 1088º do Código Civil torna inválidas todas as doações “a favor do casamento”

em caso de não ocorrência do dito casamento. Mas a jurisprudência exclui o diploma

em dois casos. Em primeiro lugar, em relação aos pequenos presentes que os ex-noivos

podem conservar. Em segundo lugar, em relação ao anel de noivado: caso se trate de

uma jóia de família, a sua entrega à noiva vale apenas como empréstimo (ou depósito),

de tal modo que deverá ser sempre restituído1. Caso contrário, tudo depende da causa da

ruptura (imputável à noiva, que falece ou comete uma falta ou rompe ela mesma, a

ruptura provocará restituição da jóia; imputável ao noivo, permitirá à noiva conservar

este anel).

Em terceiro lugar, cria uma acção de condenação a indemnização por perdas e

danos contra o terceiro responsável pela morte de um dos noivos (art.º 1382º

seguintes). Tradicionalmente excluída pela jurisprudência que se fundamentava na

ausência de todo o vínculo de Direito entre noivos2, a indemnização do prejuízo

material e moral é agora admitida pelo Direito positivo que tem em conta a perda da

hipótese de casar sofrida pelo sobrevivo3.

provar a culpa do autor da ruptura. Se os tribunais parecem por vezes usar o primeiro sistema de

aplicação, não é nada disso: se impõem frequentemente ao autor da ruptura a prova de um motivo

legítimo, é porque os factos falam por si, as circunstâncias permitem presumir a culpa e compete

logicamente ao que parece culpado justificar-se. Para além disso o meio de prova: acto jurídico, os

noivados devem ser assentes por escrito; facto jurídico, todo o meio de prova é admissível. É este último

sistema que em boa lógica aplica a jurisprudência, pelo menos contemporânea, uma vez que, numa

primeira fase, influenciado pelo direito da filiação, que exigia a prova por escrito dos noivados para

instaurar a acção em investigação de paternidade natural (antigo artigo 340, 2º), exigia uma prova escrita.

Mas este sistema foi hoje abandonado; Civ.1º, 3 de Janeiro de 1980, Bol., nº 5. 1 Esta restituição impõe-se igualmente após o divórcio: Civ. 1º, 23 de Março de 1983, D 1984.81

2 Civ., 22 de Fevereiro de 1944, Gaz. Pal. 1944.1.5. A jurisprudência inferia desta ausência de um vínculo

de direito a inexistência de um prejuízo, tanto moral (como se a afectação supusesse um vínculo de

parentesco) como patrimonial (uma vez que não existia nenhuma obrigação alimentar entre os noivos.). 3 V. também Crim., 5 de Janeiro de 1956, D 1956.216

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b. A nulidade das cláusulas de actos jurídicos contrários à liberdade do

casamento

71 Acontece que a existência ou ausência de um casamento é a condição de um acto

jurídico. Semelhante estipulação constitui evidentemente um ataque à liberdade do

interessado: a sua liberdade para casar está abalada porque perderá benefícios do acto

em questão se não respeitar a condição estabelecida. Contudo, a jurisprudência opera

uma distinção.

Considera que semelhantes condições são em princípio nulos nos actos a título

oneroso, isto é, aqueles que “ sujeitam cada uma das partes a dar ou fazer qualquer

coisa” (art.º 1106º). No entanto, este princípio pode ceder na presença de uma situação

excepcional em que a condição se torna legítima. Proposta em relação ao contrato de

trabalho das assistentes de bordo1 e verdadeiramente consagrada em relação aos que

ligam os docentes aos estabelecimentos privados religiosos2, esta associação de um

princípio e de uma excepção – nos “casos excepcionais onde a necessidade das funções

evidentemente a requerem” – é bastante protectora da liberdade do casamento (na

condição, é claro, de avaliar estritamente a excepção)3.

Já a solução inversa é admitida nos actos a título gratuito, isto é aqueles “em que uma

das partes procura no outro um benefício puramente gratuito” (art.º 1105.º C. civ.). Em

princípio válidas porque se limitam a condicionar a liberdade daquele que tira proveito

de um benefício sem ter de apresentar contrapartida, semelhantes cláusulas apenas são

nulas se for provado que resultam de motivo imoral do autor do acto (ódio racial ou

religioso, inveja póstuma…). Esta solução, muito respeitadora da vontade do autor do

acto, não dá importância à liberdade do casamento. Suscita pois a crítica da doutrina,

que propõe substituir uma nulidade incerta por ilicitude ou imoralidade da causa (o

porquê da condição) por uma nulidade sistemática para ilicitude do objecto (as

consequências da condição).

1 Paris, 30 de Abril de 1963, D 1963.428; Soc., 7 de Fevereiro de 1968, D 1968.429, RTD civ. 1968.557. 2 Assembleia Plenária, 19 de Maio de 1978, D 1978.541, RTD civ. 1978.665, 1979.370. 3 A doutrina lamentou por vezes a admissão, neste caso particular, de uma necessidade.

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c. A regulamentação da corretagem matrimonial

72 A corretagem matrimonial é o contrato pelo qual uma pessoa promete ao seu

contratante, mediante remuneração, fazer tudo para este possa permitir contrair

casamento. Tradicionalmente nulo por contrariedade à ordem pública (ataque à

liberdade do consentimento)1 e aos bons costumes (ataque à dignidade do casamento)

este contrato é válido no Direito positivo desde a metade do século XX2 mas sujeito a

um estatuto que se esforça para proteger o candidato a casamento. A jurisprudência

limita a sua força obrigatória aceitando reduzir a quantia inicialmente acordada em caso

de excesso. Quanto ao legislador, este conferiu-lhe uma regulamentação específica (Lei

nº89-421 de 23 de Junho de 1989), receando as más acções deste verdadeiro “mercado

da solidão”3. Portanto o contrato apenas pode ser celebrado pela duração limitada de um

ano, não pode ser o objecto de uma tácita recondução, compreende uma faculdade de

rescisão unilateral por motivo legítimo e compreende a “o manual dos consumidores”4

(capacidade de arrependimento, formalismo, informações, nomeadamente relativas às

“qualidades essenciais” que o solteiro à espera de casamento espera da pessoa

“procurada”).

B. Uma vontade esclarecida

73 O consentimento ao casamento deve para além disso ser esclarecido, isto é, ser dado

sem erro, com conhecimento de causa. O direito do casamento é menos exigente do que

a teoria geral dos contratos, que organiza a nulidade de um contrato celebrado por erro

cometido espontaneamente ou provocado pelo dolo do contratante, enquanto esta última

hipótese é em princípio aqui rejeitada.

1 Civ., 1 de Maio de 1855, DP 1855.1.147 2 Req., 27 de Dezembro de 1944, D 1945.237 3 G. Heidsieck, “Le marche de la solitude et le droit”, JCP 1990.I.3432 4 Ver o Decreto-Lei nº 90-422 de 16 de Maio de 1990.

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1. O erro espontâneo

74 O artigo 180.º do Código Civil previa, desde 1804, a nulidade do casamento em caso

de “erro sobre a pessoa”. Porém, a jurisprudência tinha, aquando do famoso caso

judicial Berthon,1 retido desta noção uma concepção muito limitada. Uma rapariga de

boas famílias tinha desposado, sem saber, um antigo forçado; imediatamente descoberta

a verdade, pediu a nulidade do casamento, que lhe foi recusada, com a justificação de

que apenas tinha existido erro “na” pessoa quando um dos cônjuges cometera um

equívoco sobre a identidade física (hipótese de substituição de pessoa aquando da

celebração do casamento: ao crer estar a casar-me com Paul, caso com Pierre) ou civil

(nome, idade, nacionalidade…) do nubente. Já o erro “nas” simples qualidades da

pessoa não podia levar à nulidade do casamento. A nulidade da união matrimonial, esta

pedra basilar de uma família, era considerada algo muito grave para que o Direito o

admitisse frequentemente, mas este era o risco caso se fixasse a título de erro “na

pessoa” todo o erro sobre as qualidades essenciais do cônjuge. Os perigos de uma

concepção subjectiva e larga devido à própria natureza do consentimento ao casamento,

este “duo de sentimentos e paixão”2 em que as desilusões correm o risco de serem mais

numerosas do que num contrato clássico, em que a frieza do consentimento permite

todas as avaliações e todos os cálculos, explicavam uma solução que era no entanto

muito rigorosa para o cônjuge abusado, tanto mais que na altura, a via do divórcio não

estava aberta.

Os juízes de fundo, sensíveis à crítica, esforçaram-se para atenuar o rigor desta

concepção jurisprudencial3, quer deformavam a noção de identidade civil para aí

integrar simples qualidades (passado profissional, criminal, pessoal…), quer decretavam

o divórcio (este uma vez restabelecido pela Lei de 1884) por violação do dever de

sinceridade entre cônjuges4.

1 Ch. Reunidos, 24 de Abril de 1862 Grands arrêts, nº 33 2 Segundo a expressão de Carbonnier. 3 Cornu, Centenaire, D 1959. Chr. 215 4 Solução discutível em teoria. O dever de sinceridade conjugal, sendo constituído no dever nascido do

casamento, apenas poderá nascer após a união. Contudo, os tribunais irão utilizá-lo para colocar à

responsabilidade dos nubentes uma obrigação de sinceridade pré-conjugal.

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Na altura da reforma do divórcio de 11 de Julho de 1975, o legislador abandonou

esta concepção restritiva do erro. O artigo 180º do Código Civil prevê agora que a

nulidade do casamento pode ser pedido em caso de erro “na pessoa” mas também em

caso de erro “nas qualidades essenciais da pessoa”. O erro sobre a identidade, física ou

civil, da pessoa pode portanto ainda hoje conduzir à nulidade do casamento, se

determinou pelo menos o consentimento ao casamento, algo que deve provar o cônjuge

que se diz vítima. Mas a nulidade pode também vir sancionar um erro sobre uma

qualidade da pessoa (basta só uma mesmo que o diploma utilize o plural). É preciso e

basta que esta qualidade seja essencial: aquele que afirma ser vítima deve provar que a

qualidade em causa era ao mesmo tempo essencial subjectivamente (para si) e essencial

objectivamente (para o comum dos mortais). Esta dupla avaliação, fiel à dupla natureza

do casamento, simultaneamente acordo de duas vontades individuais (daí uma

concepção subjectiva) e instituição (daí uma concepção objectiva), permite considerar

erros muito diversos: anomalia psíquica, aptidão para relações sexuais1, passado

criminal e, mais geralmente, honra…A uma certa distância deixa em suspenso algumas

questões delicadas. E em relação ao erro sobre o património: será que se pode pedir a

nulidade por não se ter feito o “bom casamento”2 que se julgava? E em relação ao erro

sobre a saúde, a religião do futuro cônjuge…: o princípio de igualdade e a proibição de

discriminações, que proíbem em princípio ter em conta semelhantes elementos nas

relações patrimoniais, será que podem ser invocados quando se trata de fundar uma

família?

2. O erro provocado

75 Já o artigo 180º não prevê a sanção do casamento quando o consentimento foi

surpreendido pelo dolo (comp. art.º 1116º). Os redactores do Código Civil têm deste

modo pretendido acolher o velho adágio de Loysel: “no casamento engana quem pode”.

A razão desta exclusão é que a sedução tem pouco poder em relação às confissões

1 A questão é discutida para a capacidade de procriação, por um lado porque a doutrina contesta por vezes

esta finalidade do casamento (e portanto o carácter essencial desta qualidade), por outro lado porque a

assistência médica à procriação diminui muitas vezes a esterilidade da união (ao que se deve acrescentar a

adopção). 2 Retomando a expressão de Carbonnier.

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espontâneas e que é normal se apresentar o mais atraente possível para obter o

consentimento do outro e não para chamar atenção para este ou aquele defeito. O

Direito abandona portanto a priori a sinceridade à consciência de cada um: o dolo não é

causa de nulidade do casamento, em que “ a arte de agradar” não é ilegítimo.

Ensina-se tradicionalmente que esta exclusão da nulidade para o dolo deve ser

duplamente restringida. No passado a jurisprudência tem com efeito consagrado várias

vezes um dever de sinceridade entre cônjuges, cuja violação era causa de divórcio (v.

infra, nº 115). Para além disso, parecia admitir a nulidade do casamento por erro sobre a

pessoa ou sobre as qualidades essenciais da pessoa com indulgência quando este erro é

provocado pelo dolo do cônjuge: a doutrina demonstrou como o dolo “ampliava o erro”

passível de sanção ao permitir decretar a nulidade mesmo quando as condições do artigo

180º do Código Civil não estavam reunidas, seja que, antes da reforma de 1975, não

tenha havido erro “na” pessoa, seja que, desde esta data, o carácter “essencial” das

qualidades em questão seja duvidosa. A jurisprudência mais recente não corrobora a

afirmação1.

Secção 2 – As condições institucionais

76 Liberdade de casamento mas controlo social sobre a instituição. A vontade de

casar, sem a qual não há casamento, não é suficiente. Para além disso, o Direito exige

que os candidatos a casamento estejam aptos a constituir família (1). A estas condições

de fundo, acrescentam-se condições de forma: o casamento é celebrado num quadro

estatal (2).

1 Civ. 1º 13 de Dezembro de 2005, Bol., nº 45, p.416: o marido tinha escondido a existência de uma

anterior relação com uma outra mulher; o Tribunal tinha rejeitado o apelo formado contra a sentença de

recurso, rejeitado o pedido em nulidade da mulher uma vez que não estava comprovado que o marido

tenha tido a intenção de continuar esta ligação após o casamento e porque o Tribunal da Relação tinha

soberanamente estimado que as convicções religiosas da mulher não permitiam provar que esta não teria

contraído casamento se tivesse tido conhecimento desta ligação passada do seu marido na medida em que

as aspirações deste último a uma união durável não estavam de modo algum destruídas por esta

circunstância.

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1.As condições de fundo

77 O direito impõe condições de idade, diferença de sexo, monogamia e exogamia. Já no

que toca à saúde dos nubentes é muito liberal.

A. A idade

78 A aptidão de uma pessoa para constituir uma família depende estritamente da sua

maturidade e da sua capacidade para ter relações sexuais, procriar (ainda que esta

finalidade do casamento seja discutida em doutrina) e da tomada de responsabilidade

pelos filhos. Assim se explica que o Código Civil formule um limite mínimo de idade

para casar, sancionada pela nulidade absoluta do casamento (art.º184.º; v.infra, nº96).

Em 1804 este limite era de 15 anos para as raparigas e 18 anos para os rapazes

(art.º144º)1. A elevada taxa de divórcios dos casamentos precoces, o prolongamento dos

estudos, a chegada tardia dos filhos, e sobretudo, mais recentemente o fenómeno dos

casamentos “forçados” levaram o legislador a abandonar esta solução liberal. A Lei de 4

de Abril de 2006 aumentou a idade legal e igualou o estatuto dos homens e das

mulheres: agora, é a partir dos 18 anos que um e outro podem contrair casamento

(art.º144º). Mas em favor da liberdade nupcial, a Lei de 4 de Abril de 2006 manteve a

possibilidade de isenção pelo Procurador da República: é preciso que “motivos graves”

justifiquem o casamento, motivos graves que o Procurador da República avalia

soberanamente (art.º145.º).

Já o legislador não previu qualquer limite máximo além da qual a liberdade do

casamento se extingue. O casamento pode até ser celebrado in extremis, isto é, em caso

de perigo iminente de morte de um dos nubentes (o que chega muitas vezes na idade

avançada); o direito prevê então a deslocação do conservador do registo civil (art.º75º,

par.2). Em qualquer das hipóteses o casamento só será válido se a idade avançada

manteve intactas as faculdades intelectuais dos cônjuges, sendo que na ausência destas

capacidades o casamento será considerado nulo por ausência de consentimento

(art.º146º do Código Civil).

1 A distinção operada em 1804, surpreendente na época actual, explicava-se então pelas diversas razões: a

maturidade mais precoce das raparigas do que dos rapazes; a necessidade de uma autonomia profissional

para os homens, que assumiam a responsabilidade do lar na sociedade da altura.

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B. A diferença de sexo

79 O Código Civil não exige explicitamente a diferença de sexo dos nubentes. Mas esta

condição deduz-se implicitamente do artigo 75.º do Código Civil que prescreve ao

conservador do registo civil receber de cada parte, uma após a outra, “ a declaração de

que querem unir-se como marido e mulher” (ver também artigo 144.º). Esta condição de

diferença de sexo levanta duas dificuldades.

Incontestada durante muito tempo, suscita, antes de mais, críticas numa

sociedade onde a homossexualidade não causa mais opróbrio e onde a censura da

discriminação está sistematicamente oposta a toda a distinção civil. A questão de saber

se a liberdade para casar pode ser reconhecida aos homossexuais só pode ser resolvida

por referência à finalidade do casamento. Se não é mais do que uma simples união

horizontal destinada à felicidade de dois adultos, é difícil interditar-lhes o casamento. A

resposta é diferente se o casamento constitui o acto de fundação de uma família, se

integra uma dimensão diacrónica e se projecta no futuro através da descendência. A

condição de diferença de sexo já não pode mais, é verdade, ser justificada como

assegurando a capacidade de procriação do casal desde que as relações sexuais e

procriação se dissociaram com as técnicas de assistência médica à procriação (v. infra,

nº342 e 495 seguintes). Apesar disso, uma das funções do casamento continua a ser

receber e criar os futuros filhos. A questão do casamento dos homossexuais é deste

modo, na realidade, indissociável da questão de parentesco homossexual: será que a

sociedade pode admitir que uma criança tenha duas pessoas do mesmo sexo como pais?

A resposta a esta questão depende a possibilidade de aceder ou não ao desejo dos

homossexuais. Uma solução intermédia consistiu em oferecer-lhes um sucedâneo do

casamento, ao introduzir o pacto civil de solidariedade no direito positivo com a Lei de

15 de Novembro de 1999 (v.infra, nº 292 e seguintes). Mas ele não satisfez os

interessados que reclamam pura e simplesmente a liberdade para casar. O Tribunal de

Cassação cingiu-se, por agora, aos diplomas: “ segundo a Lei francesa, o casamento é a

união de um homem e de uma mulher”1 daqui resulta que o casamento celebrado por

1 Civ. 1º, 13 de Março de 2007, Dto Fam. 2007, nº 76, confirmando a nulidade do “casamento de Bégles”,

celebrado por Noel Mamère sob a luzes dos holofotes.

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homossexuais é considerado nulo, por nulidade absoluta1. Esta solução não é contrária

nem ao artigo 12º da Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das

Liberdades Fundamentais nem ao artigo 9º da Carta dos Direitos Fundamentais2.

Todavia, questiona-se se a decisão proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos a 22 de

Janeiro de 2008 em matéria de adopção por um homossexual não anuncia uma evolução

do Direito Europeu3 precisamente quando o casamento homossexual é consagrado em

vários países europeus (em Espanha desde uma Lei de 2 de Julho de 2005, na Bélgica,

desde uma Lei de 30 de Janeiro de 2003, nos Países Baixos, a partir de uma Lei de 1 de

Abril de 2001).

A segunda dificuldade diz respeito aos transexuais: será que se podem casar; e

se sim, com uma pessoa de que sexo? A resposta parece muito simples. Já que o direito

francês admite a mudança de sexo na presença de uma síndrome medicamente

constatada, é lógico limitar-se ao novo sexo do interessado e reconhecer-lhe, nesta

medida, a liberdade para casar. Uma outra solução exporia aliás provavelmente a França

a ser condenada por violação da Convenção Europeia de Direitos do Homem e mais

precisamente do direito a uma vida familiar e do direito de casar4.

1 E o conservador do registo civil que o celebre não obstante a oposição do Procurador da República

incorre em sanções disciplinares. 2 Civ. 1º, 13 de Março de 2007, prec. 3 O Tribunal sancionou a França por ter recusado um acordo pedido por uma cidadã homossexual

baseando-se na falta de “referências de identificação” devidos à ausência de imagem ou referência

paternal e sobre a ambiguidade da atitude da companheira da requerente. O Tribunal Europeu, em

conselho, tinha julgado que existia uma referência implícita mas certa à homossexualidade da interessada,

e que o Direito Francês ao aceitar a adopção por um solteiro e não colocando então nenhuma condição

relativa à existência de um referente de um outro sexo, tinha cometido uma discriminação ilegítima.

Questiona-se se o Tribunal Europeu não acabará por dizer, mais directamente e sem passar pela

discriminação, que preservar a dupla origem sexual de cada um é uma finalidade legítima suficiente para

negar o direito à adopção? E nesse caso, como recusar o casamento aos homossexuais? 4 TEDH, 11 de Julho de 2002, Dto. Fam. 2002, 133 V. também TJCE, 7 de Janeiro de 2004, D 2004, 979.

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C. Saúde

80 O Direito francês é muito liberal: a saúde dos cônjuges não é uma condição de

validade do casamento em si. Não se considera que a saúde constitui um elemento

eventualmente determinante do consentimento do outro cônjuge.

Antigamente o direito impunha a cada futuro cônjuge a submissão a um exame

médico, praticado pelo médico à sua escolha, nos dois meses que antecediam a

celebração (art.º63º)1. Este exame destinava-se a esclarecer cada um dos nubentes sobre

o seu próprio estado de saúde: nessa altura, diversos exames (art.º L2121- 1 CSP) eram

propostos (despistagem da sida) ou impostos (rubéola, toxoplasmose). Mas os

resultados só eram comunicados ao interessado (art.º R 2121- 1 CSP). Era a este que

cabia comunicar – ou não - ao outro. Na falta disso, violava o dever de sinceridade,

violação que constituía eventualmente motivo de divórcio, até mesmo de uma nulidade

do casamento por erro sobre as qualidades essenciais2. No que diz respeito ao médico,

este devia somente entregar um atestado indicando que o exame tinha sido realizado

“com exclusão de toda qualquer outra indicação” (art.º 63º).

Este respeito do segredo da saúde de cada um podia revelar-se prejudicial para o

cônjuge permitindo-lhe esconder uma doença grave, eventualmente transmissível. A

proibição de práticas eugénicas e a liberdade matrimonial proibiam certamente que o

direito exigisse a entrega de um certificado médico atestando a boa saúde dos cônjuges.

Podia-se, em contrapartida, recomendar uma melhor informação do nubente, por

exemplo, permitindo apenas ao médico entregar o certificado uma vez assente o

conhecimento, do outro, dos resultados dos exames práticos.3 Ai! A Lei da

simplificação do direito de 20 de Dezembro de 2007 preferiu revogá-lo pura e

simplesmente, atestando uma vez mais o progresso da liberdade em detrimento da

segurança.

1 Esta obrigação cedia, em caso de dispensa do Procurador da República “em casos excepcionais” ou em

caso de “perigo iminente de morte de um dos cônjuges”, art.º 169º. 2 Qualidades essenciais da pessoa assentando simultaneamente na honestidade e no estado de saúde do

cônjuge. 3 Comp. art.º L. 1131-1 CSP, impondo a revelação de uma anomalia genética grave no círculo familiar.

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D. A monogamia

81 “Não se pode celebrar um segundo casamento sem a dissolução do primeiro” (art.º

147º): a proibição de bigamia, este “crime social”, retomando uma expressão dos

redactores do Código Civil, está firmemente assente no direito francês.

O Direito esforça-se por evitar a celebração de semelhantes uniões ao exigir a

entrega de uma cópia integral recente da certidão de nascimento (art.º 70º do Código

Civil; v infra, nº84)1 e ao autorizar amplamente a oposição ao casamento (pode ser

deduzida pelo cônjuge de um dos nubentes, os ascendentes, o Ministério Público, art.º

172º,173º,175º-1 do C.C). Supondo-se a celebração de uma união bígama, o Direito

sanciona-a por nulidade absoluta (art.º184º e 188º C.C), nulidade associada

eventualmente, a sanção penal do cônjuge bígamo e do conservador do registo civil

(art.º 433º-20 do C. penal).

No entanto “esta pedra angular da civilização europeia”2 conhece dois limites3.

O primeiro resulta do reconhecimento, em França de uma união polígama validamente

celebrada num país estrangeiro que admite a poligamia. Contudo, o direito internacional

privado francês distingue ordem pública plena e ordem pública atenuada. A ordem

pública é plena na medida em que se opõe categoricamente a que uma Lei estrangeira,

contrária às concepções fundamentais da sociedade francesa, seja directamente aplicada

em França: um casamento bígamo não pode portanto ser celebrado em França. Já a

ordem pública é dita atenuada quando se trata unicamente de fazer produzir efeito em

França, a uma situação jurídica regularmente constituída no estrangeiro: o casamento

bígamo celebrado no estrangeiro produz desde modo em França os efeitos de um

casamento normal. Esta solução, formulada pelo célebre caso Chemouni de 28 de

Janeiro de 19584, foi limitada pela jurisprudência que o exclui logo que um francês

1 Com menos de três meses se foi entregue em França, menos de seis meses se foi num consulado. 2 Carbonnier. 3 A liberdade para voltar a casar não é una: não há portanto duas uniões concomitantes mas sucessão

temporal de duas uniões. 4 Grands arrêts de la jurisprudence française de droit international privé, nº 31

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esteja implicado no caso1, e pelo legislador que exclui nas mesmas circunstâncias o

reagrupamento familiar.

O direito puramente interno conhece uma segunda forma, mais indirecta é

verdade, de poligamia ao aceitar ter em consideração, num mesmo instante um

concubinato e um casamento: indemnização da companheira em concubinato e da

mulher legítima em caso de morte acidental do marido-companheiro (v infra, n 289);

qualidade de beneficiário cumulativamente atribuída à mulher legítima e à companheira

em concubinato em direito social.

E. A exogamia

82 A proibição do incesto continua a ser provavelmente um forte tabu. O motivo não é

apenas eugénico: os defeitos hereditários de crianças provenientes de uniões

consanguíneas não permitem explicar uma proibição que vale às vezes para fora de todo

o vínculo sanguíneo: adopção, afinidade… É também moral. Uma união no seio da

família corre o risco de conduzir ao estrangulamento e à explosão desta; para além disso

perturba o lugar de cada um na árvore genealógica.

O conservador do registo civil deve então recusar a celebração de semelhante

união. Supondo-se uma celebração, esta é ferida de nulidade absoluta (art.º 184º, v infra

nº 96).

É necessário não exagerar a abrangência da proibição: pode por vezes ceder

mediante suprimento judicial concedido pelo presidente da república “ por motivos

graves”. A proibição de casamento é absoluta (é impossível qualquer dispensa) entre

parentes próximos: entre ascendente e descendente, seja qual for o grau que os une (art.º

161º); entre irmão e irmã (art.º 162º). Já entre parentes mais afastados, a proibição pode

ser excepcionalmente suspensa (art.º 164º): pode assim ser excepcionalmente autorizado

o casamento, em princípio proibido (art.º 161º e 163º) entre tio e sobrinha, ou entre

sobrinho e tia, ou entre afins em linha recta (portanto entre genro e sogra, entre genro e

nora) mas apenas neste último caso após a dissolução da primeira união por morte.

1 Civ. 1º, 24 de Setembro de 2002, JCP 2003, II, 10007

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A adopção plena cria estes impedimentos ao casamento no seio da nova família;

por derrogação ao princípio segundo o qual a adopção plena faz sair a criança adoptada

da sua família de origem, ela mantém-nos também na família de origem (art.º 356º

C.C). Na adopção restrita, o artigo 366º do Código Civil proíbe o casamento entre:

adoptado e adoptante (e seus descendentes); adoptado e filhos do adoptante; filhos

adoptivos de uma mesma pessoa; adoptado e cônjuge do adoptante (e reciprocamente

entre adoptante e cônjuge do adoptado). Mas a proibição pode ser levantada nas últimas

três hipóteses por dispensa do Presidente da República “ caso haja motivos graves” e

sob condição, para além disso, de se tratar de casamento entre “afins”, que a pessoa que

cria o vínculo de afinidade seja falecida (falecimento do adoptante para o casamento do

adoptado e do cônjuge do adoptante, falecimento do adoptado para casamento do

adoptante e do cônjuge do adoptado, comp. art.º 164º, 3º Código Civil).

Incontestada durante muito tempo, esta proibição da celebração do casamento

entre parentes próximos é hoje discutida em nome da liberdade individual. O Tribunal

Europeu de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais julgou

deste modo que o impedimento ao casamento existente entre sogro e a sua nora era um

ataque excessivo ao direito ao casamento1. A proibição de incesto merece no entanto ser

defendida, devido ao seu papel fundador, do indivíduo e da sociedade2.

1 TEDH, 13 de Setembro de 2005, Dto fam. 2005, 234 2 Sobre a proibição da filiação incestuosa, ver art.º 310º-2 Cód. Civil, infra, nº 360

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2. As condições de forma

83 Formalismo, protecção dos cônjuges, informação de terceiros, controlo estatal

das condições. O controlo da autoridade pública concretiza-se numa celebração oficial

da união por um conservador do registo civil, celebração que simboliza o

reconhecimento por parte da autoridade pública de uma união entre duas pessoas

privadas (B). Mas antes mesmo desta solenidade, exige-se um formalismo antenupcial,

destinado a permitir à autoridade pública celebrar apenas uma união regular no seu

conteúdo (A).

A. As formalidades prévias

84 Não são muito pesadas e só constituem impedimentos impedientes ao casamento,

quer isto dizer que a falta delas impede o conservador do registo civil de celebrar a

união mas não afecta a validade do casamento supondo este celebrado (V. infra, nº92).

O seu incumprimento conduz a uma sanção penal do conservador do registo civil (art.º

63º, par.7).

Em primeiro lugar, as formalidades prévias consistem na entrega de diversos

documentos destinados a permitir à autoridade pública controlar a observância das

condições de fundo do casamento: cópia integral do assento de nascimento (para provar

a idade, o sexo, a monogamia, a exogamia…: art.º 70º; em caso de impossibilidade em

obter este assento, pode-se apresentar um documento notarial emitido pelo Tribunal da

Relação).

Em segundo lugar, consistem numa eventual audição dos nubentes (art.º63). Esta

audição destina-se a verificar que o casamento não é simulado nem forçado. O

conservador do registo civil pode requerer reunir-se separadamente com cada um dos

nubentes se considerar necessário. A audição realizar-se-á salvo “em caso de

impossibilidade” ou “ se tornar evidente, tendo em conta os documentos do processo,

que é dispensável”. Para além disso, o procedimento pode ser delegado pelo

conservador do registo civil aos funcionários da câmara municipal.

As formalidades prévias consistem, em terceiro lugar, no processo preliminar de

publicações (a terminologia é retirada da tradição canónica de “banhos”), isto é à

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afixação na câmara municipal (do local de celebração do casamento projectado e da

residência de cada cônjuge), durante dez dias, do edital de casamento (art.º 63º, 64º,

166º): trata-se de informar a sociedade mas também de permitir aos eventuais

interessados deduzir oposição. O Procurador da República pode dispensar os

interessados desta formalidade, “por causas graves”, o que pode corresponder

nomeadamente a uma vontade de anonimato (art.º 169º)1.

Por vezes as formalidades são consideradas arcaicas e também são acusadas de

dissuadirem alguns casais do casamento. Pode-se, no entanto, pensar com a doutrina2

que o “casamento num minuto” seria despropositado, atendendo à importância do

compromisso, e anacrónica numa sociedade que oferece prazos de reflexão para adquirir

a crédito um vulgar bem de consumo.

B. A celebração da união

85 Data de celebração. A data da cerimónia está à escolha dos cônjuges, com uma

restrição: de modo que o processo preliminar de publicações assegure efectivamente a

informação de terceiros e lhes permita deduzir oposição, o casamento não pode ser

celebrado num período inferior dez dias após a publicação do edital de casamento (salvo

dispensa do Procurador da República: art.º169º) e não pode mais sê-lo um ano após esta

data (art.º 64º e 65º). O conservador do registo civil e as partes incorrem numa multa3

em caso de violação desta exigência (art.º 192º).

O direito conhecia outra restrição, resultante do que se denominava de “prazo

internupcial”: os diplomas imponham à mulher deixar passar um prazo de trezentos dias

após a dissolução de um casamento, por morte do marido ou divórcio, antes de voltar a

casar (art.º 228º, 261º). Este prazo não era imposto por razões de convenções sociais (o

tempo de luto ou do celibato); era destinado a evitar que um eventual filho possa estar

1 O casamento do Presidente da República, Nicolas Sarkozy, foi deste modo celebrado a 22 de Fevereiro

de 2008 sem prévio processo preliminar de publicações. 2 Carbonnier. 3O montante da multa a que incorre o conservador do registo civil é irrisório: 4,5 euros! Já as partes

correm o risco de ter uma multa “em proporção da sua fortuna”.

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ligado a dois sucessivos maridos1. Extinguiu-se com a Lei de 26 de Maio de 2004: este

ataque à liberdade para voltar a casar concebe-se mal numa época em que os meios de

prova, e nomeadamente o exame de ADN, permitem determinar facilmente quem é o

pai biológico da criança.

86 Local de celebração. O local é o registo civil do domicílio ou da residência de

qualquer um dos cônjuges (art.º 74º e 165º). A celebração deve ser pública, isto é de

portas abertas, sob pena de nulidade absoluta da união (art.º 165º e 191º). A título

excepcional, o casamento poderá ser celebrado no domicílio ou na residência de um

cônjuge (art.º 75º): por exemplo quando o Procurador da República o exigir do

conservador do registo civil, em caso de “impedimento grave”2; por exemplo, em caso

de “perigo iminente de morte de um dos nubentes”, podendo então o conservador do

registo civil ele mesmo ir contra a Lei na celebração no registo civil, com a

responsabilidade de informar o Procurador da República no mais breve período

possível.

87 Presença de testemunhas e dos cônjuges. O casamento deve ser celebrado na

presença de pelo menos duas testemunhas, de quatro ou mais (art.º75º). A Lei permite,

muito liberalmente, que sejam parentes ou não das partes e agora especifica que podem

ser franceses ou estrangeiros. Para combater os casamentos forçados, a Lei de 14 de

Novembro de 2006 restringiu a liberdade de escolha dos cônjuges. Enquanto podiam

tradicionalmente escolhê-los no último momento, os nubentes estão agora obrigados a

indicar a identidade das suas testemunhas antes da publicação do edital de casamento

(art.º 63º). A medida é ilusória: na realidade, porque os nubentes poderão ou induzir em

erro uma testemunha de boa fé ou apresentar uma testemunha complacente; no direito,

1 A data de concepção é com efeito fixada a partir da presunção legal da duração da gravidez: sendo que

se presume que a gravidez tem um prazo de duração que varia entre os 180 aos 300 dias (art.º 311º), a

concepção de uma criança pode ser fixada num período que vai de 300 dias antes do nascimento a 180

dias antes (v. infra, nº 367 s.). Desde logo, se o casamento podia ocorrer a qualquer momento, toda a

criança nascida a menos de 300 após a dissolução do primeiro casamento e mais de 180 após celebração

do segundo poderia ser juridicamente associada aos dois maridos. 2 Por exemplo, o casamento do Presidente da República, Nicolas Sarkozy, foi celebrado no Palácio do

Eliseu, a 2 de Fevereiro de 2008. Questiona-se sobre o “impedimento grave” que havia para não se

celebrar na conservatória.

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porque a Lei lhes permite designar novas testemunhas aquando da cerimónia (art.º 74.º-

1).

Devem igualmente estar presentes – evidentemente! – os próprios cônjuges (art.º

75.º, art.º 146º-1). Não há casamento por representação, salvo raríssimas excepções: a

procuração é por exemplo aceite para os marinheiros e militares, em casos especiais

(art.º 96º-1)1. A Lei específica aliás que a presença dos cônjuges é requerida ainda que

se trate de um casamento celebrado no estrangeiro, se ao menos está em causa cônjuge

de nacionalidade francesa.

88 Papel do conservador do registo civil. O casamento deve ser celebrado por um

conservador do registo civil: é o Presidente da Câmara territorialmente competente em

virtude do local de celebração que deve assegurar o cumprimento desta exigência (art.º

75º e 165º).

Após leitura dos artigos 212º, 213º, 214º (apenas na alínea 1 porque seria

despropositado invocar um desentendimento em tal momento), 215º, parágrafo 1º, assim

como o artigo 371º-1 (que define o poder paternal, v.infra, nº534), primeiro o

conservador do registo civil pergunta aos nubentes se elaboraram uma convenção

antenupcial e depois se querem tomar-se por marido e mulher (art.º75). Uma vez

expressos os consentimentos pelos interessados, constata que a união existe: “irá

decretar, em nome da Lei, que estão unidos pelo casamento”. Se um dos cônjuges for

menor, perguntará aos ascendentes presentes na celebração e autorizando estes a dar o

seu consentimento.

A doutrina questionou-se sobre o que constitui um casamento: será a troca dos

consentimentos dos cônjuges ou as frases rituais do conservador do registo civil? A

questão é bastante teórica, ainda que não esteja, eventualmente, desprovida de toda a

importância prática: qual seria, assim, o efeito da morte de um cônjuge que sucederia

entre o “sim” fatídico e a fórmula solene pronunciada pelo conservador do registo civil?

O que aconteceria, ainda, se um dos cônjuges retirasse o seu consentimento nesse

1 Em caso de guerra ou de operações militares levadas a cabo fora do território nacional francês, por

motivos graves, mediante uma dupla autorização (do Ministério da Justiça e do Ministro da Defesa), e na

condição de que o consentimento do interessado tenha sido constatado por algumas formas.

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mesmo intervalo de tempo? A essência do casamento, esta promessa solenemente

trocada, leva a considerar que é a troca dos consentimentos perante o conservador do

registo civil e não a fórmula ritual pronunciada por este último que faz o casamento1.

Uma vez trocados os consentimentos e pronunciada a fórmula ritual, o

conservador do registo civil lavra o assento de casamento, isto é, faz referência à

celebração do casamento no registo civil (art.º 75º e 76º). Em seguida será feita

referência margem dos assentos de nascimento de cada um dos cônjuges (art.º 76º).

89 Prova de casamento. A elaboração de um assento de casamento é uma formalidade

essencial porque esta certidão de casamento é o único acto que o Código Civil

reconhece em princípio como prova de um casamento (art.º 194º), sendo a posse de

estado de cônjuge incapaz de o substituir (art.º 195º). Este princípio é excluído em dois

casos: em primeiro lugar, quando os registos foram destruídos por caso de força maior

(art.º 46º), sendo que bastará então aos pretensos cônjuges demonstrar esse caso de

força maior para serem autorizados em seguida a apresentar todos os modos de prova do

casamento, e nomeadamente a posse de estado de cônjuge. Pode igualmente sê-lo para

benefício do filho nascido do casal em causa. Se este filho desconhece o local de

nascimento dos seus pais e o da celebração do casamento, e se ambos os pais forem

falecidos, seria muito rigoroso exigir que ele apresente esse assento de casamento. A

Lei permite então ao filho, quando os seus pais são falecidos2 (art.º 197º), provar o

casamento dos seus autores provando que “viviam publicamente como marido e

mulher” (é a posse de estado de cônjuge), na condição, no entanto que prove para além

disso beneficiar ele próprio da posse de estado de filho legítimo (sobre este assunto, v.

infra, nº370 seguintes, 400) e que esta posse de estado não seja refutada pelo seu

assento de nascimento (sobre o assento de nascimento do filho nascido em constância

1 A teoria geral dos documentos autênticos remete para “a recepção” dos consentimentos por uma

“testemunha privilegiada”, quer se trate do notário quer se trate do conservador do registo civil. 2 Questiona-se se a mesma solução deve prevalecer quando os pais são vivos mas impossibilitados de

manifestarem a sua vontade. Carbonnier, « Le mariage par les oeuvres ou la légitimité remontante dans

l’article 197 du Code civil », Mélanges Marty, pág.254 e seguintes, espec. 257, nota 4.

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do casamento, v. infra, nº 373 e seguintes). A doutrina sugeriu aumentar este diploma

com o objectivo de beneficiar os parceiros exemplares1.

Capítulo 2

A sanção das condições

90 Teoria geral da nulidade e direito matrimonial. Na teoria geral do contrato, a

sanção de uma condição de formação consiste na nulidade: o contrato é eliminado, para

o futuro mas também no passado. Assim, a nulidade da venda constitui obstáculo ao

pagamento do preço e à entrega da coisa vendida e, se o contrato já foi executado,

acarreta restituição da coisa e do preço.

Os perigos de uma semelhante solução em matéria de casamento explicam o

particularismo do direito especial: acto fundador de uma família, o casamento produz os

seus efeitos não apenas entre os cônjuges mas também em relação aos filhos (a criança

nascida e concebida na constância do casamento beneficia assim da presunção de

paternidade que existe a respeito do marido da mãe, v. art.º 312º infra, nº 381 e

seguintes) e terceiros (nomeadamente a existência de um regime matrimonial). Eliminar

retroactivamente a união matrimonial corre o risco portanto de atingir gravemente a

segurança jurídica. É por isso que o legislador restringiu os casos de nulidade às

violações mais graves da Lei. Caso contrário, cabe unicamente ao conservador do

registo civil recusar a celebração do casamento. O direito francês retoma deste modo

uma distinção tradicional do direito canónico, entre impedimento “impediente” (que

apenas funda a recusa da celebração) e impedimento “dirimente” (que origina para além

disso a nulidade da união).

1 Carbonnier, ibid. Inspirando-se na dissertação de Portalis sobre a validade dos casamentos no deserto,

esses casamentos entre Protestantes celebrados pelos pastores contrariamente à legislação real que exigia

a intervenção de um ministro do culto católico, o que recusavam os Protestantes que não podiam decidir

renunciar a sua fé, Carbonnier sugeria utilizar este texto para considerar retrospectivamente, à luz do filho

em comum e da vida passada, que os parceiros de concubinato agiam como cônjuges e que portanto

adquiriram este título. Já não é mais questão da função probatória da posse de estado mas sim a função

aquisitiva.

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Serão sucessivamente apresentadas a recusa de celebração pelo conservador do

registo civil (Secção 1) e nulidade do casamento celebrado (Secção 2).

Secção 1

A recusa de celebração pelo conservador do registo civil

91 Independentemente da gravidade, a irregularidade de um casamento projectado pode

sempre fundar a recusa de celebração pelo conservador do registo civil. Esta recusa

constitui às vezes até a única sanção possível. Convém então distinguir os

impedimentos impedientes e os impedimentos dirimentes (1) e depois expor o processo

de oposição ao casamento (2).

1. Impedimento impediente e impedimento dirimente

92 A recusa de celebração é por vezes a única sanção possível da condição que está em

falta. Os diplomas não oferecem a lista de condições que apenas são deste modo

sancionadas a título preventivo. Mas ela obtém-se facilmente em virtude do princípio

fundamental segundo a qual “en mariage, pas de nullité sans texte”: basta comparar a

lista de todas as condições de formação e aquelas condições explicitamente sancionadas

pela nulidade para saber em que casos a recusa de celebração da união é a única sanção

possível. Constituem assim impedimentos impedientes: a falta de publicação do edital

de casamento, a não entrega dos documentos necessários à referida publicação, a

omissão da audição antenupcial (art.º 63º), o incumprimento dos prazos entre a

publicação e a celebração (art.º 192º), a existência de uma oposição (art.º 68, v.infra,

nº93). Todas as outras regras (proibição da bigamia, do incesto, exigência de uma

diferença de sexo, de um consentimento informado, de uma autorização familiar,

condição de idade…) levam para além disso à nulidade da união. A comparação atesta

que o carácter dirimente ou impediente do impedimento depende da gravidade da

irregularidade em causa.

De qualquer das formas, seja o impedimento dirimente ou simplesmente

impediente, o conservador do registo civil que constatar que um casamento não satisfaz

as condições de formação estabelecidas pelos diplomas deve recusar celebrá-lo. Caso

contrário, incorre até por vezes numa sanção penal, cuja importância é muito variável: é

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o caso da ausência de publicação do edital de casamento e ausência de entrega de

diversos documentos requeridos pela Lei (comprovativo de identidade, cópia integral do

assento de nascimento) ou da omissão da audição dos cônjuges (art.º 63º, par.7; v.supra,

nº84) 1. É o caso de desrespeito do prazo em relação ao tempo da publicação do edital

de casamento e a celebração (art.º 192º; v. supra, nº85)2; é o caso da celebração de um

casamento de um menor sem o consentimento familiar (art.º156º; v.supra, nº49)3; é o

caso de celebração apesar de uma oposição (art.º68 C. civ; v.infra, nº 93)4; é o caso da

celebração de um casamento apesar do conhecimento da existência de uma união

precedente não dissolvida (V. supra, nº81; art.º 433º-20 do Código Penal)5.

2. Oposição ao casamento

93 A oposição ao casamento é um acto formalista pelo qual uma pessoa adverte o

conservador do registo civil da existência de um impedimento ao casamento e lhe

proíbe de proceder à sua celebração.

O poder para deduzir oposição varia consoante o impedimento ao casamento em

causa. O pai e mãe e, na falta destes, os ascendentes, podem deduzir oposição por

qualquer motivo (art.º 173º)6. Na ausência de ascendente podem deduzir oposição: o

irmão ou irmã, tio ou tia, prima ou primo em primeiro grau, eventualmente curador ou

tutor autorizados pelo conselho de família, mas somente por demência ou falta de

consentimento ao casamento de um menor ou maior de idade protegido (art.º 174º e

175º); o companheiro de um nubente, para o caso de poligamia (art.º 172º). Deve-se

acrescentar a isto o poder de oposição do Ministério Público, reconhecido pela

jurisprudência e confirmado pela Lei (art.º 175º-1), desde que a irregularidade do

casamento seja uma causa de nulidade que possa invocar7.

1 A multa é irrisória: de 3 a 30 euros. 2 A multa é ridícula: 4,5 euros. 3 A mesma multa ridícula de 4,5 euros. 4 A multa é substancial: 3 000 euros. 5 A sanção é pesada: um ano de cadeia, 45 000 euros de multa. 6 A doutrina sugere portanto aos ascendentes aterrorizados por um casamento “de paixão” utilizar a

oposição, invocando a demência do seu descendente, para forçá-lo à reflexão. 7 Os casos dos casamentos simulados e dos casamentos forçados são dois casos particulares: art. 172-2

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A evolução da família (estreitamento) e do seu direito (maior liberdade para

cada um) explica que o poder de oposição familiar seja discutido e que alguns

proponham atribuí-lo apenas ao Ministério Público. No entanto parece que a família

está melhor posicionada do que o Ministério Público para conhecer a existência de um

impedimento ao casamento. Pragmaticamente, pode-se então preferir manter um poder

preventivo que, além disso é preciso reconhecê-lo, é raramente utilizado.

A oposição assume a forma de uma notificação por parte do oficial de justiça;

deve ser nominativa e fundamentada, sob pena de nulidade e de sanção do funcionário

ministerial que a assinou (art.º 176º).

Impede a celebração do casamento: o conservador do registo civil não é juiz da

sua legitimidade; caso passe adiante, expõe-se a uma sanção penal (art.º 68º; v. supra,

nº92). Já o casamento não será então necessariamente nulo; tudo dependerá da realidade

e da gravidade do dano invocado; caso se trate de um impedimento impediente, o

casamento permanecerá válido; caso se trate de um impedimento dirimente poderá ser

anulado.

A oposição poderá ser objecto de um suprimento judicial (art.º 177º e 178º)1 e

será em princípio2 caduca passado um ano, salvo renovação3 (art.º 176º, par.2). O seu

autor incorre numa condenação ao pagamento de indemnização por perdas e danos se

cometer um abuso, excepção feita a ascendentes, aos quais um poder discricionário é

explicitamente reconhecido pelo Código Civil (art.º179º).

1 Compete ao Tribunal de Grande Instância decidir nos dez dias subsequentes; impõe-se o mesmo prazo

ao Tribunal de Recurso. 2 A oposição deduzida pelo Ministério Público escapa a esta caducidade automática. 3 Semelhante renovação é impossível quando uma precedente oposição foi deduzida por um ascendente e

que foi objecto de uma decisão judicial de suprimento.

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Secção 2

A anulação pelo juiz judicial

94 O Código Civil apenas prevê a nulidade do casamento (1). Mas a doutrina interroga-

se acerca da sua eventual existência (2).

1.A nulidade do casamento

95 Teoria geral dos contratos e direito matrimonial especial. O direito matrimonial

organiza as regras da teoria geral dos actos jurídicos.

O Direito Comum das nulidades distingue a nulidade relativa e a nulidade

absoluta. Não o faz para determinar os efeitos da nulidade, que são invariáveis: a

nulidade de um acto jurídico consiste na sua eliminação retroactiva, isto é o seu

apagamento no futuro mas também no passado, o que, eventualmente, conduz às

restituições cruzadas entre as partes. Pouco importa, quanto a isso, que a nulidade seja

relativa ou absoluta. Já no que se refere à sentença da nulidade, a distinção nulidade

relativa – nulidade absoluta adquire toda a sua importância. A nulidade absoluta está

reservada às regras que asseguram a salvaguarda do interesse geral enquanto a nulidade

relativa intervém para sancionar a violação de uma regra que protege um interesse

particular1. Esta diferença explica que a sentença dos segundos seja facilitada (pelo que

consta a sociedade tem interesse que o interesse geral seja preservado) enquanto os

primeiros são mais difíceis de obter (têm menor importância). Em três aspectos, a

sentença de uma nulidade absoluta é mais aberta do que a de uma nulidade relativa.

Primeiro, relativamente às pessoas que podem agir: todo o interessado e o Ministério

Público podem requerer a nulidade absoluta; apenas a pessoa protegida pela regra

desconhecida pode requerer a nulidade relativa. Em seguida, relativamente aos prazos

de acção: sujeita à prescrição de trinta anos quando a nulidade é absoluta, a acção

1 É pelo menos essa a concepção moderna. Na tese clássica, o critério de distinção não consiste no

interesse protegido pela regra violada mas na natureza do vício que feriu o acto. Quando falta um

elemento de formação (por exemplo ausência de consentimento ao casamento, ausência de celebração

pública de casamento…), o acto é morto, ferido de nulidade absoluta. Quando um elemento constitutivo

existe mas está viciado, o acto existe, mas é doente e pode ser curado. Esta concepção antropomórfica já

não é mais usada na doutrina contemporânea, mesmo se continua às vezes a inspirar os tribunais.

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prescreve após cinco anos quando a nulidade é relativa1. Por fim, relativamente à

possibilidade de uma confirmação: esta renúncia ao direito de acção, possível em caso

de nulidade relativa (podemos renunciar a uma regra que garante a nossa própria

protecção), está proibida em caso de nulidade absoluta (porque não se pode renunciar a

uma regra que protege o interesse geral).

Acto jurídico específico, o casamento é sancionado por uma nulidade cuja

sentença (A) e efeitos (B) obedecem a três regras especiais.

A. A sentença de nulidade

1.A nulidade absoluta

96 As modalidades das regras de nulidade absoluta. Os casos. A nulidade absoluta

sanciona (art.º 184º): a falta de idade nupcial, a falta de consentimento matrimonial

(demência ou fraude), a ausência de um cônjuge aquando da celebração, a poligamia, a

endogamia, a identidade de sexo dos cônjuges2. A Lei aplica-a também à

clandestinidade do casamento (isto é a ausência de publicidade da celebração) e à

incompetência do conservador do registo civil, mas apenas se estas irregularidades

tiverem sido voluntárias (art.º 191º).

- As pessoas que podem agir. A nulidade absoluta deve, enquanto os cônjuges forem

vivos, ser3 requerida pelo Ministério Público, que deve além disso condenar os cônjuges

a separação (art.º 184º e 190º). Pode igualmente ser requerida por um dos cônjuges (art.º

184º e 191º). O parceiro do cônjuge bígamo tem também o direito de agir, até mesmo

enquanto o cônjuge for vivo (art.º 188º). A acção de nulidade pode por fim ser movida

por todos aqueles que tenham um interesse (art.º 184º e 191º), mas apenas enquanto os

cônjuges forem vivos e exista um interesse efectivo e actual, tratando-se de um colateral

ou de um filho nascido de um outro casamento (art.º187º). Os parentes e ascendentes

dos cônjuges podem ainda agir quando a nulidade decorrer da falta de celebração

pública ou incompetência do conservador do registo civil (art.º 191º).

1 Sem contar a imprescritibilidade da excepção de nulidade. 2 Civ. 1º, 13 de Março, Grands arrêts, nº32. 3 Salvo em caso de clandestinidade ou incompetência do conservador do registo civil.

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- Prescrição. A acção está sujeita à prescrição de trinta anos, contando a partir

da data de celebração do casamento.

- Obstáculos ao exercício da acção. Excepcionalmente, algumas disposições

limitam esta ou aquela acção. O Ministério Público já não pode mais agir após a morte

de um cônjuge (art.º 190º). Da mesma maneira, a nulidade por falta de idade legal está

limitada no tempo: a acção de nulidade já não pode mais ser exercida se decorreu um

prazo de 6 meses a partir do dia em os cônjuges atingiram a idade mínima para casar ou

se a mulher ficou grávida durante esse mesmo prazo de 6 meses (art.º 185º). Para além

disso, este vício não pode ser invocado pelos membros da família que tenham dado o

seu consentimento para o casamento do menor em causa (art.º 186º). Finalmente, a

clandestinidade do casamento não pode ser invocado se os cônjuges têm a posse de

estado de casado (art.º 196º)1.

2.A nulidade relativa

97 Sanciona em primeiro lugar o vício do consentimento. A Lei de 4 de Abril de 2006

expandiu o direito de instaurar acção de nulidade. Agora o casamento consentido por

erro ou pela coacção pode ser impugnado não apenas pelo cônjuge vítima mas também

pelo Ministério Público. Para além disso, o prazo de prescrição é a partir de agora

sempre de cinco anos2, sendo que o ponto de partida varia somente consoante as

circunstâncias: contando a partir da data do casamento ou da descoberta do erro ou de

cessação da coacção (art.º181º).

A nulidade relativa sanciona de igual modo o casamento contraído por um

menor sem autorização familiar. A Lei de 4 de Abril de 2006 expandiu aqui também a

acção de nulidade. O artigo 182º do Código Civil reconhece a qualidade para agir aos

pais a quem era conferido o poder para consentir, assim como ao cônjuge que

necessitava deste consentimento (art.º 182º). A acção prescreve após um prazo que varia

consoante o requerente da nulidade: 1º) o cônjuge não poderá mais agir quando tiverem

decorrido cinco anos desde que atingiu a idade para consentir pessoalmente ao seu

1 Civ., 1 de Outubro de 1930, DP 1931.1.169 2 O prazo de cinco anos era antigamente excluído em caso de vida em comum continuada durante seis

meses após a descoberta do erro ou da cessação da violência.

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casamento1; 2º nenhum dos titulares da acção poderá agir quando tiverem decorrido

cinco anos desde que aqueles que deviam consentir ao casamento terão tido

conhecimento deste último ou quando os pais que deviam consentir terão dado a sua

aprovação, expressa ou tácita, para o casamento (art.º 183º).

B. Os efeitos da nulidade

98 O princípio mantém-se: a nulidade opera para o futuro mas também no passado, isto

é, os interessados não são mais casados e são mesmo considerados como nunca o terem

sido. Mas este princípio conhece duas restrições de desigual importância, consoante se

trate de filhos ou dos ex-cônjuges.

1. No que diz respeito aos filhos

99 Aplica-se extinção do casamento no futuro: impõe então regular as questões de poder

paternal e de obrigação alimentar como num divórcio (art.º 202º).

Já os filhos não sofrem as consequências da retroactividade em princípio

associada à nulidade (art.º 202º): conservam, por exemplo, a sua qualidade de filho

concebido ou nascido na constância do casamento ou ainda, eventualmente, o benefício

de nacionalidade francesa. Pouca importa que os seus pais tenham ou não conhecido o

vício que afectou o casamento: o benefício passado do casamento é preservado pelo

filho sem condições desde a reforma de filiação realizada pela Lei de 3 de Janeiro de

1972, em conformidade com um dos princípios directores do direito de filiação, isto é, a

inocência fundamental da criança, que não tem de sofrer com os erros daqueles que o

deram à luz.

2. No que diz respeito aos ex-cônjuges

100 Aplica-se integralmente a extinção do casamento no futuro. Cada um retoma o seu

nome, os seus bens, a sua liberdade…

Em princípio a extinção do casamento no passado tem aplicação. Será necessário

então apagar retroactivamente o casamento e tratar as relações mantidas pelos antigos

1 Quando terá completado os dezoito anos.

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cônjuges como se tivessem sido parceiros (v. infra: a regulação das suas relações

patrimoniais não é abrangida então pela execução de um regime matrimonial). Mas esta

retroactividade de princípio é excepcionalmente descartada quando o casamento é dito

“putativo”.

O casamento putativo é o casamento contraído de “boa fé”. É preciso que pelo

menos um dos cônjuges tenha acreditado que era válido no dia da sua celebração, pouco

importando que tenha cometido um erro de facto ou de direito (art.º 201º). Não lhe cabe

provar esta boa fé, em conformidade com o Direito Comum do artigo 2268º: “presume-

se sempre a boa fé, cabendo àquele que alega má fé prová-la”. A avaliação deste estado

psicológico é do foro do poder soberano dos juízes de mérito.

O benefício associado ao carácter putativo de um casamento é considerável: os

efeitos passados do casamento serão conservados e será unicamente dissolvido no

futuro como um divórcio: liquidação do regime matrimonial contando da data de

sentença da nulidade, aplicação das regras relativas às doações consentidas durante a

união, eventual direito à pensão de sobrevivência1, eventual direito a uma prestação

compensatória2…

Este benefício pode ser unilateral: sendo o casamento putativo um favor

associado à boa fé, é lógico que este privilégio seja pessoal e reservado ao cônjuge de

boa fé. Por conseguinte, se apenas um dos cônjuges acreditava na validade da união no

momento do casamento, será o único a beneficiar da instituição (art.º 201º, par.2):

poderá então reclamar todos os direitos associados ao casamento (doação consentida

pelo outro, direitos sucessórios, prestação compensatória…); já o seu cônjuge não

poderá valer-se do casamento que existiu para requerer uma prestação compensatória,

usar o seu apelido, etc…

1 Soc., 9 de Novembro de 1995, Bol., nº296: a pensão de sobrevivência deve ser partilhada,

proporcionalmente à duração dos casamentos, entre a primeira e a segunda esposa, que pode valer-se da

boa fé para fazer excluir a retroactividade da nulidade do seu casamento por bigamia. 2 Civ. 1º, 23 de Outubro de 1990, Bol., nº 321: “as disposições dos artigos 270 e seguintes…são também

aplicáveis, sob o ponto de vista da razão…” à nulidade do casamento.

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O limite prende-se com a indivisibilidade do regime matrimonial, que é

impossível de aplicar “unilateralmente”: o cônjuge de boa fé terá então somente a

escolha entre valer-se do regime matrimonial (que será então além disso invocável

contra si pelo seu cônjuge de má fé) ou escolher excluir as regras, caso em que terá

liquidação de uma sociedade de facto (V. infra, nº 282).

2.Casamento inexistente

101 Discussão. Para a doutrina clássica, era necessário por vezes considerar que o

casamento não era somente nulo mas que era mesmo inexistente. Esta sanção, que

Código Civil nunca menciona, era pretensamente destinada a ferir eficazmente um acto

informe, atingido por um vício de extrema gravidade. Tratava-se sobretudo muito

pragmaticamente de sancionar um casamento que a aplicação literal dos diplomas não

anulava. Devido ao princípio segundo o qual “en mariage, pas de nullité sans texte”,

alguns casamentos, no entanto gravemente viciados, escapavam à nulidade porque o

Código Civil não a previa explicitamente: é o caso da diferença de sexo, da ausência de

consentimento (a nulidade absoluta só é prevista a partir da Lei de 19 de Fevereiro de

1933) ou ainda da falta de celebração do casamento por um conservador do registo civil.

Para contornar a dificuldade, os autores consideravam então que o casamento não era

apenas nulo mas que era mesmo inexistente. Da gravidade do vício resultava o regime

da sanção: a intervenção judicial não era necessária, “sendo” inexistente por si própria;

a sanção escapava até à prescrição dos trinta anos; a instituição do casamento putativo

devia ser excluída.

A jurisprudência consagrou esta teoria num caso muito particular1. Quanto à

doutrina moderna, é geralmente reservada no que respeita a uma sanção apresentada na

maioria das vezes como muito utilitária e cuja especificidade suscita para além disso

algumas dúvidas. No entanto, mesmo reduzida a quase nada, esta instituição poderia

eventualmente apresentar o interesse que oferece geralmente, o de escapar a um dos

1 Req., 14 de Março de 1833, caso Cousin de Lavallière, S 1934.1.161. Um administrador da Guiné

francesa uniu-se a duas esposas negras, para fora de toda a formalidade…Nascidos os filhos, colocou-se a

questão da sua eventual legitimidade. Descartada pelo Tribunal de Recurso de Nîmes, a 17 de Julho de

1829 (S 1929.2.129), a instituição do casamento putativo foi excluído também pela Chambre des

Requêtes. Comp. Civ. 1º, 18 de Outubro de 1955, Bol., nº345.

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elementos do regime da nulidade. É provavelmente a razão pela qual a doutrina

contemporânea lhe deixa por vezes um lugar1. Nota-se que a questão tem uma vertente

prática limitada, visto que a única hipótese parece ser a celebração por um conservador

do registo civil, sendo a falta de consentimento actualmente explicitamente sancionada

por Lei através da nulidade absoluta (art.º 184º Código Civil. civ; supra, nº 55 e 96) e

tendo a jurisprudência aplicado a mesma sanção no casamento contraído por

homossexuais (v. supra, nº79 e 96).

1 Cornu, nº 194; Carbonnier, nº 203

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Título 2

Os efeitos do casamento

102 Plano. Os principais efeitos do casamento são determinados pelos artigos 212º e

seguintes do Código Civil. Falta acrescentar a isto outras disposições, de importância

variável, respeitante ao regime matrimonial, à vocação sucessória, à eventual

emancipação, ao uso do apelido do cônjuge…

O casamento produz estes efeitos muitíssimas vezes sem se preocupar com a

vontade dos cônjuges. Nesta perspectiva constitui um acto híbrido, de natureza

contratual (estes efeitos são exclusivamente associados ao casamento, que não existe

sem o acordo de duas vontades) mas também institucional (o casamento é um acto que

determina a aplicação automática de um estatuto que a vontade é em boa parte incapaz

de determinar). Mesmo assim, é necessário reconhecer que a influência da vontade se

estende ao direito positivo. Pelo menos em alguns aspectos, é verdade que relativamente

a outros pontos, a ordem pública parece pelo contrário ganhar terreno: é impressionante

constatar deste modo que várias regras que determinam os respectivos poderes dos

cônjuges nos regimes matrimoniais escapam às vontades individuais, sendo a ideia de

que a repartição dos poderes na igualdade é fundamental na medida em que consagra a

igualdade do homem e da mulher, mesmo casada.

A natureza estatutária dos efeitos do casamento deveria, numa lógica correcta,

fazer-se acompanhar por fortes sanções: se resultam directamente da instituição, e

escapam às vontades individuais, não deveriam os efeitos do casamento ser dotados de

uma abrangência considerável? No entanto, o direito positivo pouco corresponde a este

esquema.

Será preciso numa primeira fase determinar os efeitos do casamento (Capítulo 1)

antes de se procurar num segundo tempo especificar a sua abrangência (Capítulo 2).

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Capítulo 1

A determinação dos efeitos

103 Evolução. “O marido deve protecção à mulher, a mulher deve obediência ao

marido”: o artigo 213º do Código Civil de 1804 ilustra com clareza o modelo vigente na

altura, isto é, uma família patriarcal caracterizada pela desigualdade dos cônjuges e a

unidade da célula familiar graças aos plenos poderes do chefe de família. A mulher,

incapaz, não podia gerir os seus bens nem auferir salário; o marido escolhia a residência

da família, autorizava a mulher a exercer uma actividade profissional, decidia a vida dos

filhos em virtude do poder paternal… Esta concepção, em conformidade com a

sociedade francesa do início do século XIX, revelar-se-ia gradualmente ultrapassada.

Sucessivas reformas procurarão por um lado instaurar a igualdade entre os cônjuges, por

outro lado a preservar a independência e a liberdade de cada um.

No que diz respeito à igualdade, há diversas datas a fixar: a Lei de 18 de

Fevereiro de 1938 aboliu o poder marital; a Lei de 4 de Junho de 1970 suprimiu o

“chefe de família” e consagrou uma autoridade dita “paternal”; as Leis de 13 de Julho

de 1965 e 23 de Dezembro de 1985 operariam uma plena igualdade dos cônjuges em

matéria de regime matrimonial e de gestão de bens do filho menor; é necessário ainda

citar a Lei de 11 de Julho de 19751 ou as de 3 de Janeiro de 19722, 22 de Julho de 1987

e 8 de Janeiro de 19933. Destas sucessivas reformas, resultariam a plena capacidade de

cada um dos cônjuges (art.º 216º Código Civil) e a neutralidade da regra de direito, que

no conteúdo e na forma, já não distingue mais o marido e a mulher. Permanecem alguns

pontos nevrálgicos, como o do apelido (V. art.º 311-21, v.infra, nº595), pois as

alterações legislativas operadas diversas vezes4 não conseguiram instaurar uma

1 Despenaliza o adultério da mulher casada. 2 Enfraquece a presunção de paternidade legítima e abre, até mesmo, a outros que não o marido o direito

de a contestar, configurando assim um ataque à figura tradicional do pater famílias. 3 A igualdade foi então reivindicada pelos pais, legítimos ou naturais, rejeitando o privilégio matriarcal

muitas vezes de facto comprovado no que toca à residência do filho menor. 4 A lei de 4 de Março de 2002, a lei de 18 de Junho de 2003, decreto-lei de 4 de Julho de 2005.

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igualdade real1 na matéria. É aliás pouco provável que o direito francês deixe passar

este tópico na máquina do direito europeu dos direitos do homem.

No que diz respeito à liberdade, a evolução não foi menos considerável. A

mulher tem sido por vezes a principal beneficiária: é o caso da instituição do livre

salário da mulher casada pela Lei de 13 de Julho de 1907; é ainda o caso do

reconhecimento progressivo de uma autonomia pessoal em matéria espiritual,

intelectual, política graças a uma audaciosa jurisprudência. Mas o ganho da autonomia

tem beneficiado também muitas vezes um ou o outro cônjuge: é o caso da

“liberalização” do divórcio realizada pelas reformas de 11 de Julho de 1975 e de 26 de

Maio de 2004; o caso das disposições destinadas a proteger a independência de cada um

em matéria de regimes matrimoniais (Lei de 13 de Julho de 1965), do poder paternal

(Lei de 4 de Junho de 1970, Lei de 23 de Dezembro de 1985), é ainda o caso do

crescimento dos acordos de vontade em matéria familiar (nomeadamente em matéria de

poder paternal com a Lei de 4 de Março de 2002).

104 Liberdade, igualdade mas sobretudo união. Contudo reduzir o casamento à

salvaguarda da liberdade de cada um seria ignorar que, antes de mais, o casamento é

união, laço, solidariedade. É absurdo casar-se se é para viver cada um na sua casa e cada

um por si. O casamento, antes de ser independência, é união. É verdade que a união é

menos firme hoje que antigamente, e que a independência vai de vento em popa, em

conformidade com o individualismo que prevalece na sociedade em geral e na família

em particular. A concorrência da união livre também não será provavelmente estranha a

esta liberalização progressiva do casamento. E questiona-se sobre o efeito que

produzirá, a longo prazo, a do pacto civil de solidariedade (v. infra, nº292)2. Pretender

1 Certamente, os pais podem agora escolher o apelido de família que a sua descendência terá, e esse

apelido pode ser o do pai ou o da mãe, ou os dois apelidos emparelhados na ordem que entenderem (art.

311-21). Contudo, a Lei mantém o apelido do pai na ausência de uma declaração conjunta. 2 O pacto civil de solidariedade aproximou-se do casamento, na legislação (afirmação dos deveres de vida

em comum e de assistência pela Lei de 23 de Junho de 2006). É verosímil que, apesar do silêncio da Lei,

a jurisprudência considera que o pacto civil de solidariedade admite o dever de respeito que se impõe aos

cônjuges. As diferenças essenciais devem-se assim em relação à liberdade para romper e ao dever de

fidelidade (ainda que certas decisões judiciais a tenham aceite em caso de pacto). É muito difícil predizer

a evolução, sendo que a concorrência poderá levar ao endurecimento das diferenças, ou à sua supressão,

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remediar a crise que sofre o casamento através do enfraquecimento dos efeitos da união

é um projecto estranho: será que “salvar” o casamento é diminui-lo a não ser mais do

que a associação temporária de dois solteiros que conservam uma inteira autonomia?

Será isto verdadeiramente o que desejam os candidatos a casamento?

105 Direito e não direito. Quer se trate da liberdade, da igualdade e da união, os efeitos

do casamento são a priori abstractamente determinados pela Lei. No entanto, seria ter

uma visão muito teórica do casamento cingir-se à exposição dos efeitos de direito. Aqui,

mais do noutro lugar, o direito vive-se mais do se decide. Na realidade existem tantos

casamentos, no que se refere aos efeitos da união, quanto há casais casados. “A cada

família, o seu direito”: a fórmula é particularmente feliz no casamento, onde cada casal

determina diariamente a união que instaura, a independência que concede, a repartição

dos papeis à qual procede…

106 Plano. Porque a essência do casamento é unir duas pessoas, sendo a celebração de

um casamento o fruto do afecto que se têm os cônjuges, os efeitos pessoais do

casamento serão considerados em primeiro lugar (Secção 1). Os efeitos patrimoniais,

que apenas constam para suportar este vínculo pessoal atado entre dois seres,

aparecendo pois apenas como o prolongamento natural da união das pessoas, serão

considerados numa segunda fase (Secção 2). Depois virão os efeitos paternais do

casamento (Secção 3).

Secção 1

Os efeitos pessoais

107 A união das pessoas, que se traduz na ordem social pela faculdade, conferida a cada

um, de usar o apelido do cônjuge (sobre este assunto, v. infra, nº 618), resulta dos

deveres que o casamento impõe mutuamente a ambos os cônjuges (1). Isto não quer

dizer que cada um renuncia à sua liberdade individual ao contrair casamento: sem

que pode ser feita quer por alinhamento do casamento sobre o pacto (para com o dever de fidelidade e o

enquadramento do divórcio) quer por alinhamento do pacto sobre o casamento (afirmação da fidelidade

no pacto e limitação da liberdade para romper).

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prejuízo dos deveres do casamento, o direito protege de facto a independência

individual (2).

Toda a dificuldade consiste eventualmente em determinar o limite a partir do

qual se passa da liberdade de cada um à solidariedade dos cônjuges, e vice-versa. Este

limite varia, de facto, consoante os casais. No direito, a sua determinação é uma questão

que não costuma ser considerado directamente: é mais frequente surgir esta questão na

altura do divórcio, quando os juízes são informados da questão de uma eventual “culpa”

entre cônjuges.

1. Os deveres mútuos

108 Plano. Et duo erunt in une carne: o direito positivo retoma a regra canónica. A

união das pessoas manifesta-se através da existência de deveres conjugais1.

Estes deveres são impostos, com plena a igualdade, a cada um.

A fórmula legal, segundo a qual “os cônjuges devem-se mutuamente respeito,

fidelidade, socorro, assistência” (art.º 212.º) e “obrigam-se mutuamente a uma

comunhão de vida” (art.º 215º par. 1ª) comprova que o casamento não é um vulgar

contrato sinalagmático, no qual as prestações de um constituíam a causa de prestações

do outro, mas como uma verdadeira união de pessoas, ligadas uma à outra por deveres

pessoais “mútuos”.

Para além disso são imperativos, em conformidade com o artigo 226.º do Código

Civil, que manifesta deste modo que os deveres pessoais constituem de facto a essência

da união matrimonial.

A par dos deveres mencionados pela Lei existem outros, consagrados pela

jurisprudência.

1 Porque fundamentalmente (mesmo se isto não aparece explicitamente na legislação civil) a união

instituída entre as pessoas baseia-se no amor que se têm aqueles que decidem assim unir os seus destinos,

o vínculo matrimonial criou para além disso diversas incapacidades, incompatibilidades ou presunções de

influência, no Direito Penal, no direito profissional, no direito processual…

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A. Os deveres mencionados

109 Evolução. O Código Civil de 1804 impunha ao marido o dever de proteger a mulher

e a esta o dever de obedecer ao marido: se estes dois deveres foram felizmente extintos

no direito positivo, já o dever de comunhão de vida que daí resultava indirectamente1 e

que a Lei de 4 de Junho de 1970 consagrou explicitamente permanece (art.º 215º).

Aparece muitas vezes como sendo mesmo a essência do casamento, o dever através do

qual o casal se realiza. Para além disso os cônjuges assumem, como em 1804, um dever

de fidelidade, assim como um dever de assistência nas provações da vida. Estes deveres

são por vezes contestados por constituírem ataques ilegítimos à liberdade individual, e

mais particularmente à liberdade sexual. Pode-se contrapor que são essenciais à união

matrimonial, muito especialmente no que diz respeito à união dos corpos e ao

exclusivismo das relações carnais2. Em contrapartida, pode-se ser muito céptico em

relação à pertinência da afirmação, pela Lei de 4 de Abril de 2006, de um dever de

“respeito” mútuo.

1. O dever de comunhão de vida

110 “Beber, comer, dormir juntos, isso parece-me casamento”: para Loysel a comunhão

de vida constituía a essência do casamento. Aliás continua a ser o dever essencial,

porque permite que os outros deveres sejam cumpridos diariamente, mesmo que os

diplomas, mais espiritualistas, apenas o considerem após os outros deveres mútuos.

Esta comunhão de vida compreende dois aspectos: um aspecto carnal (a

comunhão de cama, isto é as relações sexuais3) e um aspecto material (o “viver juntos”

sob o mesmo tecto).

É preciso ainda especificar que o dever de comunhão de tecto é mais flexível do

que parece à primeira vista. O artigo 108º do Código Civil autoriza de facto os cônjuges

a terem residências separadas (nomeadamente por razões profissionais). A comunhão de

1 Deste duplo dever, estavam deduzidos o dever do marido de receber a sua mulher na sua casa e o dever

da mulher de viver com o seu marido. 2 Devido à função de procriação que o casamento desempenha ainda hoje, e também porque a infidelidade

conjugal rima muitas vezes com instabilidade matrimonial e divórcio. 3 Já a Lei não impõe o sentimento amoroso: Civ. 2ª, 2 de Fevereiro de 1972, D. 1972, 295.

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vida, que continua a ser obrigatória, traduzir-se-á então pela escolha, realizada em

comum acordo a partir da reforma de 19751, da casa de morada da família (para a

resolução de eventuais litígios, v.infra, nº154).

Para além disso, desde a Lei de 26 de Maio de 2004, o juiz pode isentar um dos

cônjuges quando “as violências exercidas por um dos cônjuges colocam em perigo o seu

cônjuge, um ou vários filhos” (art.º 220º-1, par.3). Em caso idêntico, o juiz de família

pode com efeito decidir sobre a residência separada dos cônjuges: deve então

especificar qual o cônjuge que continuará a viver na morada conjugal, sendo que a Lei

determina que o gozo da morada conjugal deve em princípio ser atribuído ao cônjuge

que não é o autor das violências. O juiz decide igualmente, se necessário, sobre a

contribuição aos encargos da vida familiar e sobre o exercício do poder paternal. Um

importante limite prende-se, todavia, com o facto de que estas medidas são caducas se

um pedido de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens não for apresentado num

período de quatro meses a partir da data de sentença; o diploma não está assim

destinado a proteger uma separação de facto; trata-se unicamente de permitir, sem

demora, preservar a integridade das vítimas de violência doméstica, fazer com que o

cônjuge violento tome consciência da gravidade do seu comportamento, e permitir ao

outro reflectir calmamente sobre uma eventual dissolução do casamento2.

A recente reforma do divórcio limitou a importância deste dever. No direito

resultante da Lei de 11 de Julho de 1975, cada cônjuge podia obter o divórcio ao valer-

se de uma cessação da comunhão de vida (logo, violação de um dever de casamento):

mas eram necessários seis anos de ruptura de vida em comum, e o divórcio, decretado

“contra” o requerente, estava “a encargo de ”, isto é, produzia vários efeitos “negativos”

em sentido contrário (permanência unilateral do dever de cooperação a seu encargo,

exclusão de toda a prestação compensatória, atribuição de uma morada familiar ao

requerido). A Lei de 26 de Maio de 2004 transformou o divórcio por ruptura de vida em

comum em divórcio por alteração definitiva do vínculo conjugal: agora bastam dois

1 No Direito anterior, pertencia ao poder do marido. 2 Num processo de divórcio, a residência separada é organizada em principio aquando da audiência de

conciliação (art. 255.º, v. infra, nº 206), salvo a possibilidade para o juiz de decidir desde o pedido inicial

em caso de urgência (art. 257.º C.C.; v. infra, nº 206).

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anos de separação, e o divórcio não já produz mais efeitos negativos contra o requerente

(v. infra, nº192).

2. O dever de fidelidade

111 Antes de mais, trata-se de um dever de fidelidade física, isto é o dever de cada

cônjuge reservar a exclusividade dos seus favores sexuais ao seu cônjuge. Uma decisão

apreciada considerando que o dever de fidelidade proibia também as intrigas amorosas e

relações muito estreitas com um terceiro, o que a doutrina designa por vezes sob o

termo de “adultério branco”.

O dever de fidelidade foi abalado pela Lei de 11 de Julho de 1975: extinguiu a

sanção penal do adultério e suprimiu o automatismo da sentença de um divórcio

requerido por infidelidade (o adultério já não é uma causa “peremptória” de divórcio).

A jurisprudência acentuou a sua característica: afirma que a existência de um

processo de divórcio não suprime o dever de fidelidade, o que é bem lógico porque o

casamento mantém-se até à dissolução por decisão judicial, os deveres de casamento

impõem-se ao cônjuge até a esta data; mas também parece admitir que esta

circunstância pode tirar ao adultério a gravidade que é necessária para que constitua

uma falta justificativa de divórcio1.

3. O dever de assistência

112 Os cônjuges devem prestar-se auxílio nas provações, pequenas ou grandes, da vida

quotidiana. Devem apoiar-se nas dificuldades que encontram, doenças, desgostos…

Este dever traduz-se, no direito dos maiores protegidos, pelo facto de que a

tutela e curadoria são em princípio confiadas ao cônjuge (art.º 496º e 509º-1, redacção

da Lei de 3 de Janeiro de 1968, artigo novo 449º redacção da Lei de 5 de Março de

2007).

A assistência poderá revestir a forma de uma colaboração de um cônjuge na

profissão do outro. Mas se esta colaboração exceder a medida do dever de assistência,

1 Civ. 2ª, 29 de Abril de 1994, Bol., nº 123.

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aquele que ultrapassa assim o seu dever matrimonial terá direito a uma compensação. Se

os cônjuges não tomaram a precaução de celebrar um verdadeiro contrato de trabalho

entre si1, aquele que beneficiou gratuitamente da colaboração do seu cônjuge deverá,

aquando da dissolução do regime matrimonial, uma indemnização ao que ficou assim

empobrecido. A jurisprudência aplica esta solução em caso de divórcio2 como em caso

de morte, ao utilizar para este efeito a acção de in rem verso. 3

A abrangência do dever de assistência foi abalada pelo direito do divórcio. A

reforma de 11 de Julho de 1975 tinha instituído o divórcio por alteração das faculdades

mentais do cônjuge, que permitirá ao cônjuge do parceiro alienado fugir a uma

obrigação de assistência que devia ao doente (art.º 238º). A reforma de 26 de Maio de

2004 acentuou o movimento, ao substituir o divórcio por ruptura de vida em comum

pelo divórcio por alteração definitiva do vínculo conjugal (art.º 237º e seguintes; v.

infra, nº192): a cláusula de dureza (artigo antigo 240º), que permitia ao juiz, ao abrigo

da Lei de 11 de Julho de 1975, rejeitar o pedido de divórcio se o divórcio envolvia o

risco de ter consequências excessivas para o doente mental, foi extinta, assim como se

extinguiram os “encargos” deste divórcio (artigo antigo 239º).

1 Antigamente o Direito considerava que não podia existir nenhum contrato de trabalho entre cônjuges

por dois motivos: a causa do trabalho fornecido não consistia numa qualquer remuneração mas na

obrigação legal que é o dever de assistência; a independência e igualdade dos cônjuges não pareciam

compatíveis com a subordinação que caracteriza o contrato de trabalho. Esta solução já não é mais do

Direito positivo. 2 Esta circunstância é igualmente considerada para regular o futuro uma vez que a lei prevê que é um dos

elementos à vista das quais o juiz decide sobre a atribuição de uma prestação compensatória (art. 271.º).

Antes da reforma de 26 de Maio de 2004,a lei especificava para além disso explicitamente que uma

indemnização pode ser concedida ao cônjuge culpado (art. 280.º-1). Esta disposição não teve mais razão

de ser, dado que a culpa exclusiva não diminui mais em princípio os cônjuges do seu direito à prestação

compensatória. 3 Esta acção, criada no século passado pela jurisprudência tem finalidades de equidade, (apenas) supõe

que uma transferência patrimonial de valor entre dois patrimónios seja realizada (um enriquece o outro

empobrece) e que falte uma causa. O empobrecido pode então exigir uma indemnização, que é igual à

menor das duas somas, que representam o empobrecimento e o enriquecimento. V. Terré, Simbler.

Lequette, Les obligations. Précis Dalloz, nº 1062 s.

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4. O dever de respeito

113 A Lei de 4 de Abril de 2006, lei destinada a combater a violência nos casais, tem por

outro lado tornado o respeito mútuo num dever conjugal legal (art.º 212º). Constitui

mesmo um dos primeiros deveres do casamento.

A solução, seja anedótica ou absurda, é de qualquer das formas simbolicamente

lamentável.

É anedótica caso se trate de respeito mútuo das personalidades de cada um: a

jurisprudência tinha desde há muito tempo eximido semelhante dever, com o objectivo

de evitar que a união matrimonial viesse a se sobrepor de modo excessivo à liberdade

individual. Daqui resulta que, bem antes da Lei de 4 de Abril de 2006, cada um devia

deixar o outro livre para as suas leituras, escolhas de vestuário, conduta da vida

pessoal…, sem prejuízo, naturalmente a que respeite por outro lado os deveres de

casamento impostos pela Lei.

É absurda caso se trate apenas de impor a cada cônjuge respeitar a integridade

física e moral do outro: a proibição da violência, física ou moral, impõe-se a todos e não

está de modo algum subordinada à existência de um casamento!

É, de qualquer das formas, simbolicamente lamentável, porque a primazia assim

reconhecida ao respeito rebaixa os outros deveres, e nomeadamente a fidelidade, a uma

segunda categoria, e deste modo os enfraquece, mesmo que no entanto a sua

especificidade institucional seja bem real.

B. Os deveres não mencionados

114 A estes deveres conjugais nomeados pela Lei, é necessário acrescentar deveres que a

própria jurisprudência estabeleceu em conformidade com a finalidade da instituição do

casamento. Dois destes consistem nomeadamente em unir dois destinos.

1. O dever de sinceridade

115 Ambos os cônjuges devem ser sinceros um com o outro. Este dever foi

essencialmente realizado no período pré-conjugal: na altura em que o Tribunal de

Cassação tinha uma concepção bastante limitada do erro sobre a pessoa (art.º 180º; v.

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supra, nº 74), os juízes de mérito tinham instituído entre cônjuges um dever de

sinceridade cuja violação, mesmo anterior à celebração do casamento, era causa

justificativa de divórcio. É teoricamente discutível associar ao casamento, que não ainda

foi formado, semelhante dever de sinceridade antenupcial1. Mas a solução explica-se

considerando-se a união das pessoas que o casamento origina.

2. O dever de reserva

116 Cada um dos cônjuges deve zelar para que o seu comportamento não tenha

repercussões na honra do outro e não afecte a dignidade deste. Este dever, consagrado

pela jurisprudência, embora não encontre nenhum suporte textual no direito do

casamento, encontrava antigamente no direito do divórcio um fundamente implícito: o

artigo 243º do Código Civil previa com efeito, ao abrigo da Lei de 11 de Julho de 1975,

que o divórcio podia ser requerido por um cônjuge “quando o outro tinha sido

condenado a uma das penas previstas pelo artigo 131º-1 do Código penal”2. A extinção

desta “falta peremptória” no direito do divórcio não significa em nada o abandono desta

jurisprudência: a solidariedade pessoal que o casamento produz entre os cônjuges

justifica que cada um tenha obrigação de evitar todo o comportamento degradante,

capaz de recair sobre a honra e a reputação do outro. De um modo mais geral, mesmo

que nenhuma infracção criminal tenha sido cometida por um dos cônjuges, o seu

comportamento poderá ser julgado incompatível com o casamento se for por natureza

manchar a honra do cônjuge.

2.A liberdade individual

117 A liberdade individual. A independência vem restringir a união assim imposta pelo

direito nas relações conjugais. Segundo a expressão figurada de Carbonnier, união e

independência estão associados no casamento: “mesma cama, sonhos separados”. Cada

qual conserva, no casamento, a sua liberdade individual, nas suas diversas componentes.

A sua existência não autoriza por isso um cônjuge a violar os seus deveres de

casamento: por exemplo, a liberdade corporal nunca poderá justificar o adultério… E é 1 Como se pode considerar que há falta ao dever de sinceridade quando este último está associado ao

casamento e que, por hipótese, o casamento não foi ainda celebrado? 2 A jurisprudência tinha considerado que esta condenação constituía uma causa peremptória de divórcio

(v. infra, nº 180).

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a jurisprudência que tem a responsabilidade de definir os respectivos limites da união

das pessoas e liberdade individual.

118 A liberdade corporal. A liberdade corporal é obrigatória entre cônjuges. Daqui

resulta que cada um é livre de zelar como entender pela sua integridade corporal (art.º

16º-1). Mas a união matrimonial impõe também preservar o outro, no desejo de ter

filhos ou contra a transmissão de eventuais doenças…A linha divisória entre a liberdade

de um e a do outro é extremamente delicada para se estabelecer1.

119 A liberdade espiritual. Reconhece-se a liberdade espiritual aos cônjuges: não

existe nenhum direito de censura de um sobre o outro; cada um pode escolher

livremente as suas leituras, os seus compromissos políticos, a sua prática religiosa…A

questão religiosa suscita raros conflitos mas muitas vezes agudos e que a justiça decide

com dificuldade. A liberdade que cada um tem de praticar a religião da sua escolha2

encontra o seu limite nos deveres do casamento: a pertença a um movimento sectário

que proíbe a união sexual ou impõe relações com múltiplos parceiros ou ordena a

contemplação mística permanente… não dispensa o cônjuge dos seus deveres de

comunhão de vida, de fidelidade, de auxílio…, e o divórcio poderá então ser decretado

por culpa daquele que faz prevalecer a consciência sobre os deveres que a Lei civil

associa à união matrimonial3.

120 A liberdade afectiva. Cabe a cada um estabelecer as relações sociais, amigáveis ou

afectivas que entender, sem prejuízo, naturalmente, dos deveres de fidelidade, de

comunhão de vida, de assistência…

121 A liberdade profissional. A liberdade profissional, exclusivamente reconhecida ao

marido em 1804, foi progressivamente concedida à mulher. Hoje está consagrada, sob

uma forma neutra perfeitamente igualitária, pelo artigo 223º do Código Civil: “cada

cônjuge pode exercer livremente uma profissão…”. Uma vez mais, contudo, cabe a

1 A conciliação será feita essencialmente ao fazer-se prevalecer a liberdade corporal do cônjuge (que pode

assim não se cuidar, abortar, utilizar a contracepção) mas ao decretar um divórcio por sua culpa se o outro

cônjuge pagar sofrer por esta liberdade. 2 Civ. 2ª, 25 de Janeiro de 1978, Gaz. Pal. 1978, 2, 505. 3 Civ. 2ª, 9 de Outubro de 1996, Bol., nº 224, p. 138: é culpado a recusa em participar em festas familiares

(aniversário dos filhos, festas de Natal…).

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cada um fazer coexistir pacificamente actividade profissional e união matrimonial. E,

uma vez mais, estabelecer a linha divisória nem sempre é fácil1.

Secção 2

Os efeitos patrimoniais

122 Plano. A união pessoal que o direito institui entre as pessoas casadas estende-se

naturalmente aos bens. Esta união patrimonial foi aliás reforçada, na legislação, pela Lei

de 3 de Dezembro de 2001, que alterou profundamente o estatuto sucessório do cônjuge

sobrevivo.

Apesar disso, o direito zela também pela independência de cada um. A própria

Lei preserva-a por vezes: deste modo afirma, já no artigo 216º que “cada cônjuge tem a

plena capacidade de direito”. Noutros casos, deixa aos cônjuges a liberdade para

determinar eles próprios, por estipulações voluntárias, a parte da união e independência

de cada um.

O direito esforça-se assim por associar harmoniosamente união e independência

em três corpos de regras: o “regime primário imperativo”, fixado por Lei, que se aplica

automaticamente e imperativamente a todos os cônjuges que vivem em território francês

(1), o regime matrimonial, escolhido pelos cônjuges e que organiza o seu estatuto

patrimonial em vida (2), a Lei sucessória, por fim, que regulamenta o destino dos seus

bens na altura da morte (3).

Com excepção do regime primário, imperativo (art.º 226º), e que não deixa

portanto lugar para as vontades individuais, é essencial compreender que o estatuto

patrimonial do casamento depende não somente da Lei mas também da vontade dos

cônjuges. À diferença do estatuto pessoal, imperativamente fixado por Lei, o estatuto

patrimonial das pessoas casadas procede, por uma parte importante, da vontade dos

1 Também existe a dificuldade entre liberdade profissional, dever de comunhão de vida e escolha em

comum da casa de morada da família. Uma decisão judicial considerou faltosa a recusa de uma mulher

juntar-se ao seu marido no estrangeiro, dado que ele era obrigado a residir aí por razões profissionais:

Civ. 1ª, 11 de Janeiro de 2005, Bol., nº 8 Comp. Civ. 2ª, 12 de Setembro de 2002, Bol., nº 180,

considerando faltosa a recusa da mulher em seguir o marido até o estrangeiro atendendo a “circunstâncias

particulares”.

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cônjuges, que poderão deste modo, segundo as suas aspirações, escolher unir

estreitamente os seus patrimónios ou pelo contrário preservar a independência

patrimonial de cada um.

1. O regime primário imperativo

123 Definição. A partir do momento em que estão casados, os cônjuges estão de pleno

direito sujeitos a certas regras imperativas que não podem excluir: é o que se denomina

de “o regime primário imperativo” (art.º 212º à 226º).

Este regime primário instaura uma união patrimonial mínima entre os cônjuges

(A) mas preserva também, uma vez mais sem derrogação possível, algumas zonas de

independência (B). Sem esquecer o que se costuma chamar de “as medidas de crises”,

que permitem paliar todos os tipos de acontecimentos excepcionais que tornam as regras

normais insuficientes (C). Como indica a terminologia escolhida de regime “primário”,

trata-se principalmente de disposições destinadas a responder as questões patrimoniais

correntes, resolver as dificuldades diárias.

A. A união patrimonial

124 União patrimonial. Impõe-se uma união patrimonial mínima aos cônjuges: ambos

são obrigados a contribuir para com os encargos da vida familiar e assumem perante o

outro um dever de cooperação (1); respondem solidariamente, em relação a terceiros,

pelas dívidas domésticas (2); tomam em conjunto as decisões importantes respeitantes à

casa de morada da família (3).

1. Contribuição para com os encargos da vida familiar e dever de cooperação

125 Dever de cooperação e contribuição com os encargos da vida familiar na

constância do casamento. Cada cônjuge assume, em relação ao outro, um dever de

cooperação (art.º 212º) que não é mais do que um tipo de obrigação alimentar. Como

toda a obrigação alimentar, o dever de cooperação supõe provar a “necessidade” do

requerente e confere direito a “alimentos”, isto é somente aquilo que é necessário à vida.

Beneficia de vias de execução simplificadas próprias das obrigações alimentares. De um

modo geral este dever executa-se indirectamente, através da contribuição para os

encargos da vida familiar que a Lei faz pesar sobre cada cônjuge (art.º 214º).

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A contribuição para os encargos da vida familiar afasta-se nitidamente do dever de

cooperação na sua finalidade: não se trata de permitir ao cônjuge sobreviver à

adversidade mas de igualar o nível de vida dos cônjuges, evitar que as desigualdades de

fortuna sejam vividas no quotidiano. Daqui resultam três diferenças: a contribuição é

devida sem condição de “necessidade”: abrange todas as despesas correntes criadas pela

vida a dois (encargos ligados à habitação, à alimentação, ao aquecimento…: comp.

infra, as dívidas domésticas, nº127); é devida em princípio “ em proporção da respectiva

capacidade financeira” de cada, isto é, depende dos rendimentos de cada um, trata-se

dos rendimentos do trabalho ou de rendimentos de capital (art.º 214º).

As modalidades da contribuição podem todavia ser determinadas pelas

estipulações da convenção antenupcial. Os cônjuges podem deste modo especificar as

formas (pode-se executar em géneros – é o “trabalho doméstico” ou em dinheiro) e seu

montante (pagamento mensal).

O dever de cooperação só aparece isoladamente quando a vida em comum

cessa1: se o cônjuge requerente provar que se encontra necessitado, tem então direito ao

pagamento de uma pensão alimentar destinada a cobrir as suas necessidades básicas.

126 Sobrevivência do dever de cooperação na dissolução do casamento. O dever de

cooperação é até suficientemente intenso entre os cônjuges para sobreviver,

eventualmente, à dissolução da união.

A Lei reforçou a solidariedade ligada ao casamento em caso de morte de um

cônjuge. Hoje como ontem, a sucessão do falecido assume, em relação ao sobrevivo,

uma obrigação alimentar (art.º 767º, antigo art.º 207º-1)2. Para além disso a Lei de 3 de

1 E ainda, a cessação da comunhão de vida não significa necessariamente extinção da contribuição para os

encargos da vida familiar e início do dever de cooperação: Civ. 1ª, 14 de Março de 1973, D 1974. 453. A

contribuição permanece com efeito, na jurisprudência, a encargo daquele a quem se atribui a ruptura da

comunhão de vida, quer tenha sido o primeiro a partir quer tenha oferecido ao outro uma vida

insustentável (violência…). 2 Considerou-se que escapava ao artigo 207, par. 2 C.C: Civ. 1º, 17 de Janeiro de 1995, JCP

1995.II.22407. A analogia com o dever parental de sustento não é bem-vindo e parece curioso tendo em

conta a jurisprudência relativa à contribuição para os encargos da vida familiar citada na nota precedente.

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Dezembro de 2001 reconheceu ao sobrevivo o direito de usufruir gratuitamente1,

durante um ano contando da data de morte, da habitação2 que estava efectivamente

ocupada a título de habitação principal na altura da morte (art.º 763º)3.

A evolução é menos linear em matéria de divórcio. No direito resultante da Lei

de 11 de Julho de 1975 era automática a permanência do dever de cooperação no

divórcio por ruptura da vida em comum4. Noutros casos de divórcio, um cônjuge podia

ser obrigado a pagar ao outro uma prestação compensatória (antigo art.º 270º) ou uma

indemnização (antigo art.º280-1) que não estava desprovida de toda a relação com

alimentos. Primeiro uma Lei de 30 de Junho de 2000 abalou a solidariedade patrimonial

que a prestação compensatória assegurava entre ex-cônjuges: ao limitar a duração de

eventuais pagamentos periódicos (antigo artigo 275º-1 e 276º) e ao assegurar a

protecção dos herdeiros do cônjuge devedor, eventualmente em detrimento do ex-

cônjuge credor (art.º 275º-1, 276º-3). A Lei de 26 de Maio de 2004 alterou

profundamente a questão (v.infra, nº230 e seguintes). Agora o dever de cooperação já

não sobrevive nunca ao divórcio (art.º 270º)5. No que diz respeito à prestação

compensatória, a sua atribuição está agora independente da responsabilidade dos

cônjuges na sentença do divórcio (salvo excepções, pouco importam as respectivas

culpas; a solidariedade é deste modo mais forte, sendo objectiva; art.º 270º). Contudo a

abrangência foi limitada em diversos aspectos (revisão por alteração “importante” da

situação do devedor, art.º 275º; proibição de rever em alta uma renda vitalícia, art.º

276º-3; protecção dos herdeiros, art.º 280º e seguintes).

O prazo para reclamar a pensão é de um ano a contar da morte ou do momento em que os herdeiros

cessaram de sustentar o cônjuge sobrevivo. 1 Se a habitação estava assegurada por um arrendamento ou se era indivisa (e que uma indemnização de

ocupação fosse devida aos outros co-proprietários), as rendas ou a indemnização de ocupação devidas

pelo sobrevivo serão reembolsadas pela sucessão durante um ano. 2 Assim como o mobiliário. 3 Estes direitos “são considerados efeitos directos do casamento e não direitos sucessórios”. São “de

ordem pública”. 4 O cônjuge que obtém a dissolução do casamento permanecia inteiramente e unilateralmente obrigado

em relação à parte demandada (antigo artigo 270.º). 5 O divórcio por ruptura de vida em comum tem aliás desaparecido.

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2.A solidariedade das dívidas domésticas em relação a terceiros

127 Dívidas domésticas. A união dos patrimónios manifesta-se também pela existência

de um passivo que vincula ambos os cônjuges para com terceiros. O Direito Comum

patrimonial exige que cada um obrigue os seus próprios bens pelas suas dívidas (art.º

2284 redacção do Despacho de 23 de Março de 2006, antigo artigo 2092º). O direito do

casamento infringe esta regra ao organizar a “solidariedade das dívidas domésticas”1:

ambos os cônjuges respondem solidariamente por todas as dívidas “domésticas” (art.º

220º).

Pouco importam as circunstâncias do nascimento da dívida (quer tenha tido

origem num contrato celebrado por apenas um dos cônjuges ou por ambos…). Basta ser

“doméstica”, na sua essência, isto é, que seja destinada a assegurar o sustento da casa (o

que cobre as despesas correntes ligadas à vida em comum, tais como habitação,

aquecimento, alimentação, vestuário, saúde, lazer…) ou a educação dos filhos2. Cada

um dos cônjuges poderá então ser responsabilizado pela totalidade da dívida pelo

credor3.

O diploma excluí duas hipóteses: Em primeiro lugar, estão excluídas as

“despesas manifestamente excessivas”; a Lei especifica que esta qualificação depende

do trem de vida da família”, da “utilidade ou inutilidade da operação”, “boa ou má fé do

terceiro contratante”4. Estão igualmente excluídos as “compras a prestações” (compras a

crédito) assim como os empréstimos salvo os que “têm por objecto quantias modestas

necessárias para as necessidades da vida corrente”. Mas a Lei restaura a solidariedade

1 A derrogação é mesmo dupla, dado que, não apenas a dívida contraída por um cônjuge envolve o outro

mas até o envolvimento é solidário, quando, em princípio, a solidariedade deve ser consentida

voluntariamente explicitamente por dois devedores: art. 1197.º 2 Excluem-se as operações de investimento. 3 Já tratando-se da contribuição à dívida, tudo dependerá da convenção antenupcial ou da capacidade

financeira de cada um. 4 Presumindo-se a boa fé, compete ao cônjuge demandado judicialmente para o pagamento pelo credor e

tira partido da má fé deste último de prová-lo.

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para as compras a crédito e empréstimos celebrados com o consentimento de ambos os

cônjuges.1

3. As decisões conjuntas sobre a casa de morada da família

128 Morada da família e co-decisão. Antigamente a determinação inicial da casa

morada da família cabia ao marido. A partir da Lei de 11 de Julho de 1975 passou a ser

exigido o acordo de ambos os cônjuges (art.º 215º, par.2).

O destino posterior desta casa de morada depende igualmente, pelo menos em

parte, deste acordo conjunto. Para proteger o quadro de vida da família, a Lei subordina

com efeito os actos de disposição relativos à casa de morada da família e aos móveis

que recheiam este último2 ao consentimento de ambos os cônjuges3. Caso contrário, o

cônjuge que não consentiu pode requerer a nulidade, no período de um ano a contar da

data em que tomou conhecimento do acto (e o mais tardar no ano da dissolução do

regime matrimonial, art.º 215º, par.3). Para preservar a independência de cada um, e

também para proteger a segurança jurídica de terceiros, a jurisprudência interpreta este

diploma de modo estrito4.

1 Sem esta disposição, o duplo consentimento conduziria apenas a co-devedores conjuntos: os credores

apenas poderiam portanto demandar judicialmente uma parte da dívida. 2 Pouco importa a natureza do direito que assegura a habitação (direito pessoal de gozo associado ao

arrendamento, direito real de gozo associado ao direito de propriedade, ou ao usufruto…). Pouco importa

também o acto de disposição considerado, independentemente de ser consentido a título gratuito ou a

título oneroso, unilateral ou bilateral… 3 Caso o bem que assegura a casa de morada da família for o bem pessoal de um cônjuge, o artigo 215.º

acciona o exclusivismo e o absolutismo do direito de propriedade (art. 544.º). 4 Apenas funciona para os actos de disposição voluntários, é inaplicável em caso de penhora, não é válido

contra os actos de disposição devido a morte…

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B. A independência dos patrimónios

129 Autonomia substancial ou presumida. A independência patrimonial de cada um é

preservada graças a disposições imperativas que conferem a cada um o poder para agir

individualmente. O regime primário imperativo contém, neste aspecto dois tipos de

regras.

1. Os poderes atribuídos

130 As primeiras disposições reconhecem, substancialmente, um poder autónomo de

acção a cada um. Deste modo a liberdade para exercer livremente uma profissão

estende-se no poder que cada cônjuge tem de auferir individualmente os seus

rendimentos e salários e de dispor livremente destes (art.º 223º)1. Assim, igualmente,

cada cônjuge tem um poder exclusivo de gestão (activos e passivos) sobre os seus bens

pessoais (art.º 225º). Deste modo, ainda, cada cônjuge pode abrir uma conta bancária

sem o consentimento do outro (art.º 221º).

2. Os poderes presumidos

131 Outras disposições outorgam a cada um uma autonomia patrimonial ao estabelecer

uma presunção aplicável nas relações com terceiros.

A Lei presume assim que cada um tem poder para gerir os bens móveis que

detém individualmente (art.º 222º) ou para dispor do dinheiro e títulos depositados na

sua conta bancária (art.º 221º).

Em ambos os casos, trata-se de permitir a terceiros lidar com os cônjuges sem

pedir-lhes justificação e simplificar deste modo a vida quotidiana de cada um. Daqui

resulta uma autonomia patrimonial concreta bastante considerável.

Já estas disposições não prejudicam, em nada, a regularidade de tais actos no que

diz respeito ao regime matrimonial: as presunções de poder são unicamente destinadas a

assegurar a segurança jurídica de terceiros ao garantir-lhes que o acto, ainda que

irregular, permanecerá válido no que lhes diz respeito. Já o cônjuge que agiu sem direito

1 Após ter-se, todavia, libertado dos encargos do casamento e ao respeitar, eventualmente, a vocação

comunitária de rendimentos e salários.

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poderá ver o acto irregular criticado pelo seu cônjuge. Por exemplo, se um cônjuge

dispor de um bem móvel que detém individualmente mas que pertence ao outro

cônjuge, o acto não será colocado em causa mas o cônjuge culpado poderá ser

sancionado a pedido do seu cônjuge.

C. As medidas de crise

132 Medidas judiciais a pedido de um cônjuge. Acontece que o funcionamento

normal do regime se depara com uma dificuldade ligada à situação pessoal de um

cônjuge ou a seu comportamento. Para remediar a crise, a Lei confere então poder ao

juiz para modificar as regras determinando em princípio os poderes patrimoniais de

cada um.

- Quando um cônjuge não está em condições de manifestar a sua vontade, o juiz poderá

autorizar o outro, seja a redigir individualmente1 um acto que implicava em princípio o

acordo ou o consentimento do primeiro (art.º 217º)2, seja a representar o seu cônjuge

(art.º 219º)3.

- Quando o incumprimento por um cônjuge dos seus deveres coloca em perigo o

interesse da família, o juiz de família pode tomar todas as medidas urgentes necessárias

(art.º 220º-1, par.1º). Pode, por exemplo, proibir a disposição de bens pessoais ou bens

comuns, proibir a transferência de bens móveis (par.2). As medidas adoptadas são

provisórias: não podem ter duração superior a três anos (art.º 220º-1, par.4). O juiz pode

também, desde a Lei de 26 de Maio de 2004, decidir sobre a residência separada dos

cônjuges, mas somente se “as violências exercidas por um dos cônjuges colocam em

perigo o seu cônjuge, um ou vários filhos” (par.3, v. supra, 110).

1 O acto será válido, oponível ao cônjuge sem o consentimento do qual foi celebrado. Mas não irá dar

origem a qualquer obrigação a seu encargo. 2 A mesma solução prevalece quando a recusa de um cônjuge não é justificado pelo interesse da família. 3 Em conformidade com a noção de representação, o acto será celebrado pelo cônjuge autorizado pela

justiça mas em nome do outro: portanto apenas comprometerá este último.

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2. O regime matrimonial.

133 Definição. Além das disposições imperativas do regime primário, os cônjuges estão

sujeitos ao que a Lei designa de “regime matrimonial”, isto é a um conjunto coerente e

completo de regras que determinam o estatuto patrimonial de cada um. São várias as

questões resolvidas: dizem respeito à composição e gestão de patrimónios, visam as

questões de activo assim como passivo, e dizem respeito também a relações mútuas de

cônjuges do mesmo modo que às suas relações com terceiros. O direito permite ao

cônjuge unir mais ou menos estreitamente os patrimónios: a Lei organiza, a título

supletivo, um regime matrimonial (o da comunhão de adquiridos) (A); reconhece ao

cônjuge a liberdade para escolher, através da convenção antenupcial (B), um regime que

garante uma maior associação patrimonial ou, pelo contrário, uma maior independência

patrimonial. Esta escolha deve ser realizada antes do casamento, por escritura (art.º

1394º e seguintes), havendo, contudo, a possibilidade de uma alteração na constância do

casamento.

A. O regime legal

134 O regime legal. Se os cônjuges não expressaram vontade particular numa

convenção antenupcial, estarão sujeitos ao regime dito “legal”: é supletivo da vontade.

Desde a Lei de 13 de Julho de 1965, este regime é o da comunhão de adquiridos.

- Este regime une estreitamente ambos os cônjuges. Em primeiro lugar, cria uma massa

comum, activa (todo o bem adquirido após o casamento é em principio comum, de tal

modo que cada um participa nos ganhos do outro: art.º 1401º) e passiva (toda a dívida

nascida após o casamento é em principio comum, de tal modo que cada um contribui

para a liquidação das dívidas nascidas por iniciativa do outro: art.º 1409º). Em segundo

lugar, associa ambos os cônjuges na gestão desta massa comum: a celebração de actos

graves supõe o acordo dos cônjuges, o que se denomina de co-gestão (v. not. art.º 1422º,

1424º…).

- Contudo, este regime conserva também a independência de cada um. Em primeiro

lugar, o Direito deixa fora da comunhão os bens adquiridos antes do casamento por cada

um (art.º1403º; estes bens, qualificados de “próprios” pertencem à gestão exclusiva do

cônjuge proprietário: art.º 1428º) assim como as dívidas nascidas antes do casamento

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por iniciativa própria de cada um dos cônjuges, embora em menor medida (só envolvem

os seus bens próprios e rendimentos: art.º 1410º e 1411º). Segundo, o direito dá lugar à

autonomia de cada um na gestão de comunhão, ao abandonar nomeadamente os actos

correntes de gestão ao que se denomina de gestão concorrente, isto é cada um poderá

realizá-los sem ter necessidade do acordo do outro (art.º 1421º).

B. Os regimes convencionais

135 Mais comunhão ou mais independência. A associação patrimonial deste modo

determinada pela Lei é supletiva de vontade: o regime legal só se aplica na ausência de

uma outra escolha pelos cônjuges (art.º 1387º e 1400º). Os cônjuges podem, então, ou

limitar a associação patrimonial, adoptando um regime mais separatista (art.º 1536º e

seguintes), ou aumentá-la adoptando um regime mais comunitário (art.º 1497º e

seguintes).

- O carácter comunitário mais pronunciado pode ser associado à composição das

massas: com efeito, os cônjuges podem ampliar a massa comum, activa mas também

passiva, escolhendo uma comunhão de adquiridos e de móveis (art.º 1498.º e seguintes),

e até uma comunhão universal (art.º 1426.º), eventualmente com atribuição integral ao

sobrevivo (todos os bens comuns irão para o sobrevivo aquando da dissolução do

casamento por morte, de tal modo que os eventuais filhos comuns deverão aguardar a

morte do sobrevivo para suceder). Podem também acentuar a união em matéria de

gestão: uma cláusula pode assim estender a co-gestão (art.º 1503.º e seguintes)1 …

- Os cônjuges podem, pelo contrário, optar por um regime mais independente. Com a

condição de não excluírem nem o dever de cooperação (ou a contribuição para os

encargos da vida familiar) nem a solidariedade das dívidas domésticas (v. supra, nº125 e

seguintes), podem optar por um regime separatista. A “ maior separação” pode dizer

respeito apenas aos poderes de gestão: é o caso da participação nos adquiridos, regime

caracterizado, por um lado pela partilha dos lucros de cada um em fim de regime, por

outro lado pela independência dos dois patrimónios durante o regime, de onde resulta

uma independência de gestão quase total de cada um (art.º 1569.º). Mais

1 Outras instituições podem aliás assegurar a maior associação de cônjuges: como a técnica da

representação, que permite a um dos cônjuges agir em nome de e por conta do outro.

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frequentemente, a separação tem aplicação não apenas na ordem dos poderes de gestão

mas também na composição dos bens: é o caso do regime de separação judicial de bens

(art.º 1536.º e seguintes), em que os bens e as dívidas permanecem pessoais de cada

cônjuge.

3. O estatuto sucessório do cônjuge sobrevivo

136 Evolução histórica. A vocação sucessória do cônjuge sobrevivo está estreitamente

dependente da concepção que se tem do direito da família. Enquanto numa família

fundada no parentesco de sangue, o cônjuge sobrevivo apenas pode ter direitos

limitados, numa família que assenta também nos laços de afecto, o cônjuge adquire um

lugar de destaque. O direito francês passou progressivamente da primeira para a

segunda atitude. A Lei de 3 de Dezembro de 2001 modificou a vocação legal do

cônjuge sobrevivo, protege o seu quadro de vida, estabelecendo até para seu beneficio

uma reserva legítima. A reforma realizada pela Lei de 23 de Junho de 2006 tem,

fundamentalmente, mantido estas disposições. A estas três medidas acrescentam-se,

eventualmente, a obrigação de alimentos que a sucessão do cônjuge falecido assume em

relação ao cônjuge sobrevivo necessitado (art.º 767º Código Civil, v, supra, nº126).

A. A vocação sucessória legal

137 Vocação sucessória legal. Se o cônjuge falecido não organizou voluntariamente a

transmissão de direitos da sua sucessão (art.º 758º-5, par.2), o cônjuge sobrevivo que

não está nem divorciado, nem está em instância de separação judicial de pessoas e bens

com o falecido tem vocação para herdar. Contudo, a sua parte sucessória varia

consoante os parentes que o falecido deixa1.

Se o falecido deixa um filho (ou descendente) comum, o cônjuge sobrevivo

poderá escolher entre o usufruto da totalidade da sucessão ou a propriedade de um

quarto da sucessão; na presença de um filho de uma outra união, a vocação é fixada em

um quarto da propriedade (art.º 757º)2.

1 O cônjuge passa deste modo para a frente dos irmãos e irmãs do falecido (sem prejuízo do direito de

retorno legal do artigo 757-3). 2 Trata-se de evitar fricções inúteis entre filhos de uma anterior união e o cônjuge sobrevivo.

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Se um falecido apenas deixa o pai e mãe, o sobrevivo tem direito a metade da

sucessão (art.º 757º-1, par. 1º). Tem direito aos três quartos dos bens se o pai ou mãe for

falecido (art.º 757º-1, par. 2).

Por fim, na ausência de descendentes e de pai e mãe, o cônjuge sobrevivo tem

direito à totalidade da sucessão (art.º 757º-2), sem prejuízo de um eventual direito de

retorno legal de irmãos e irmãs do falecido sobre a metade dos bens que o falecido

recebia dos seus ascendentes (art.º 757º-3).

Quando o cônjuge recebe a totalidade ou os três quartos dos bens de falecido, os

ascendentes do falecido que estivessem necessitados beneficiam de uma pensão de

alimentos em troca da sucessão (art.º 758º).

B. A protecção do modo de vida do sobrevivo

138 Protecção do modo de vida do sobrevivo. Para além disso, a nova Lei pretendeu

preservar o modo de vida do cônjuge sobrevivo e evitar que o falecimento de um

obrigue o outro a abandonar o seu domicílio.

- Primeiro, o sobrevivo tem direito ao gozo gratuito da casa que era a sua principal

habitação na altura da morte (assim como o recheio desta)1, isto durante um ano a contar

da abertura da sucessão (art.º 763º). Este direito de gozo é “conhecido” por efeito

directo do casamento e não direito sucessório (não se atribui portanto sobre os direitos

sucessórios do cônjuge sobrevivo). É de ordem pública.

- Para além disso, o sobrevivo tem um direito de habitação sobre esta mesma habitação

e um direito de uso sobre o recheio desta (art.º 764º). Tem um ano a contar a contar da

abertura da sucessão para fazer o pedido. À diferença do precedente, estes direitos

atribuem-se sobre a sua parte sucessória, mas de modo muito vantajoso: o sobrevivo

receberá um complemento se estes direitos não esgotarem a sua vocação sucessória mas

não deverá nenhuma recompensa à sucessão se excederem a sua parte sucessória (art.º

765º). Estes direitos de habitação e uso não são de ordem pública: o falecido pode

impedir o cônjuge de gozar este direito através de escritura notarial.

1 Se a habitação for assegurada por um arrendamento, a sucessão deve reembolsar as rendas ao cônjuge

sobrevivo. Se a habitação era indivisa entre o falecido e terceiros, a sucessão será obrigada a reembolsar a

eventual indemnização de ocupação devida pelo sobrevivo a terceiros.

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C. As disposições voluntárias do falecido

139 Disposições voluntárias do falecido. Porém, os direitos sucessórios do cônjuge

sobrevivo podem ser alterados por vontade do falecido. A questão é saber em que

medida.

O direito das sucessões distingue o que se designa por um lado de “ quota

disponível” e por outro lado a “reserva legítima” (art.º 912.º). A Lei consagra para

benefício dos parentes mais próximos do falecido (designados “herdeiros legítimos”) o

que se designa de “reserva legítima”, isto é, reserva-lhes obrigatoriamente uma parte

dos bens e direitos do falecido, sem que este os possa impedir por sua vontade. A

liberdade em dispor destes actos a título gratuito tem portanto apenas plena aplicação

relativamente ao que a Lei designa de “quota disponível”. O casamento é essencial para

determinar a liberdade da vontade do falecido.

- O falecido tem sido capaz de ir para além dos direitos atribuídos pela própria Lei, seja

através de doações consentidas em vida seja instituindo o cônjuge legatário através de

testamento. E as liberalidades deste modo consentidas ao cônjuge sobrevivo beneficiam

de um regime de protecção: podem ser concedidas no limite do que a doutrina designa

de “quota disponível especial”, isto é, que o falecido pode dispor para benefício do seu

cônjuge (única e exclusivamente para este) uma parte dos seus bens mais importantes

do que aquele que poderia dispor caso entendesse privilegiar uma outra pessoa (art.º

1094º-1)1.

- Pelo contrário o falecido tem sido capaz de, ou através de doações consentidas em vida

ou através de disposições testamentárias, favorecer terceiros. Até à reforma de 3 de

Dezembro de 2001, o cônjuge sobrevivo podia ser totalmente deserdado pelo falecido.

O único limite a esta liberdade do falecido consistia na obrigação alimentar assumida

pela sucessão em relação ao sobrevivo (antigo artigo 207º-1, artigo novo 767º; v. supra,

nº 126). A solução, lógica em 1804 quando a conservação dos bens na família era um

objectivo do direito sucessório, está ultrapassada numa sociedade onde a família nuclear 1 Em princípio, a quota disponível é de metade quando o falecido tem um filho, de um terço quando tem

dois, de um quarto quando tem três ou mais (art. 913.º). Mas, se a disposição for feita em favor do

cônjuge, o falecido pode dispor quer seja desta quota disponível, quer seja de um quarto dos bens em

propriedade e de três quartos em usufruto, quer seja de todos os seus bens em usufruto.

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tem gradualmente substituído a família de linhagem. Este destino jurídico pouco

invejável do cônjuge sobrevivo era tão despropositado como era largamente

desconhecido do grande público. A Lei de 3 de Dezembro de 2001 instituiu então o

cônjuge sobrevivo herdeiro legítimário: na ausência de descendente e ascendente,

reservava-lhe um quarto da sucessão (antigo artigo 914º-1). A Lei esforçava-se deste

modo em conciliar protecção do cônjuge sobrevivo com liberdade de disposição do

falecido. Alguns acreditavam que semelhante solução não leva os casais ao divórcio.

Outros lamentavam a extinção desta reserva legítima na presença de descendente ou

ascendente. A Lei de 23 de Junho de 2006 extinguiu a reserva legítima dos ascendentes

(art.º 916.º), alargando deste modo por tabela a reserva legítima do cônjuge sobrevivo: é

sempre igual a um quarto dos bens do falecido; contudo só está mais subordinada à

ausência de descendente (art.º 914.º-1).

Secção 3

Os efeitos paternais

140 Desprendimento progressivo do casamento e do estatuto da criança.

Antigamente o casamento era determinante para o estatuto da criança, quer se tratasse

da sua filiação, do seu apelido, dos poderes reconhecidos aos pais sobre a pessoa e bens

da criança. O vínculo existente entre a relação conjugal e a relação paternal tem vindo a

enfraquecer, sendo a ideia que o estatuto dos filhos não está dependente das escolhas

conjugais feitas pelos pais nas suas relações mútuas e que só importa o vínculo tecido

por cada um a seu respeito. Apesar disso, o casamento conserva alguns efeitos paternais,

de filiação, de nome, de poderes.

141 Efeito de filiação. O casamento produz, na ordem do parentesco, um primeiro efeito

essencial, relativo à filiação.

A Lei de 3 de Janeiro de 1972 tinha retomado duas regras tradicionais, por um

lado, a presunção de paternidade legítima (“ a criança concebida na constância do

casamento tem por pai o marido”: antigo artigo 312.º), a prova de filiação legítima pelo

registo de nascimento da criança (“ a filiação legítima demonstra-se pelo registo de

nascimento inscrito no registo civil”: antigo artigo 319.º). A dupla promessa feita no dia

do casamento, aquela assumida mutuamente pelos cônjuges, de viverem juntos e serem

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fiéis (art.º 212.º e 215º do Código Civil; v supra, nº110 e 111), e aquela assumida em

relação a criar os futuros filhos (art.º 213.º Código Civil; v.supra, nº88, infra, nº143),

explica que o filho nascido de um casal beneficia assim automaticamente do duplo

vínculo, materno e paterno, dado que pelo menos o registo de nascimento indicava

como mãe a mulher casada. Já o filho ilegítimo devia ser solenemente reconhecido,

sendo o seu registo de nascimento, em princípio, insuficiente para provar o vínculo

paterno mas também materno (v. infra, nº374).

O Despacho de 4 de Julho de 2005 restringiu a vantagem considerada. Agora,

com efeito, o registo de nascimento prova sempre a maternidade daquela que é

designada no registo como sendo a mãe (art.º 311º-25 do C. civ; v infra, nº 376): pouco

importa que a criança tenha sido concebida ou tenha nascido em instância de casamento.

Todavia, o casamento conserva uma vantagem específica relativamente à paternidade: a

reforma manteve para benefício do “filho concebido ou nascido na constância de

casamento” a presunção de paternidade do marido da mãe (artigo novo 312º Código

Civil; v.infra, nº381). O registo de nascimento da criança concebida ou nascida na

constância de casamento prova então a paternidade do marido da mãe dado que as suas

indicações são suficientes. Pelo contrário, quando a criança é concebida e nasce fora do

casamento, a paternidade só é estabelecida por reconhecimento, posse de estado ou

acção de investigação de paternidade.

142 Efeito do nome. Porque a presunção de paternidade confere ao registo de

nascimento da criança concebida e nascida na constância de casamento este duplo efeito

de filiação, materna e paterna, o casamento não deixa de ter efeitos em relação ao nome.

O Código Civil de 1804 atribuía ao filho legítimo o apelido do pai. A Lei de 4 de

Março de 2002 tem-se esforçado para instaurar uma certa igualdade entre o pai e a mãe.

Agora o artigo 311º-21 do Código Civil prevê que “quando a filiação de uma criança é

estabelecida em relação aos seus pais o mais tardar o dia do registo do seu

nascimento…” (o que é o caso da criança nascida de um casamento, graças à presunção

de paternidade do marido da mãe, v.supra, nº 141), os pais “escolhem o nome de família

que lhes é correspondente: ou o apelido do pai, ou o apelido da mãe, ou ambos os

apelidos ligados na ordem escolhida por eles no limite de um apelido de família para

cada um”. Os cônjuges podem então decidir em conjunto o apelido que o filho em

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107

comum receberá e poderá transmitir à sua descendência. Na falta de declaração conjunta

feita ao conservador do registo civil, a criança “recebe o apelido dos pais em relação ao

qual se estabelece a filiação em primeiro lugar e o apelido do pai se a filiação for

estabelecida simultaneamente um em relação ao outro”. Com o objectivo de garantir a

unidade familiar do nome, a Lei especifica finalmente que “o nome previamente

transmitido ou escolhido” em conformidade com a aplicação do diploma “vale para os

outros filhos comuns”. Para uma apresentação mais alargada do nome de família v.

infra, nº595 e seguintes

143 Co-direcção familiar. Desde a reforma do poder paternal realizada pela Lei de 4 de

Junho de 1970, os “cônjuges asseguram em conjunto a direcção moral e material da

família. Fornecem o que é necessário para a educação dos filhos, preparando o seu

futuro ” (art.º 213º). A Lei de 4 de Março de 2002 não revogou a regra: em princípio os

cônjuges exercem em comum o poder paternal (art.º 372º, v.infra, nº542 e seguintes;

552 e seguintes) e em princípio administram conjuntamente os bens do filho menor

(art.º 389, 389-1, v.infra, nº543, 552). O casamento produz assim um efeito familiar

incontestável.

Apesar disso, não se pode negar que as sucessivas Leis (Leis de 22 de Julho de

1987, de 8 de Janeiro de 1993 e de 4 de Março de 2002) afrouxaram o vínculo que o

casamento mantinha antigamente com a função paterna ao alargar o exercício em

comum da autoridade paternal aos filhos nascidos e concebidos fora do casamento

assim como aos filhos de pais divorciados: o casamento ainda conduz, em princípio, a

uma autoridade conjunta, mas outras situações também o fazem.

- Esta co-direcção familiar impõe aos cônjuges a tomada conjunta das decisões. A Lei

especifica-a a propósito da fixação da casa de morada da família (art.º 215º do Código

Civil; v. também artigo 1751º do Código Civil; v. supra, nº110 e 128), questões

relativas à pessoa da criança (questões de educação e de guarda: art.º 371º-3, 372º do

Código Civil; v.infra, nº 535, 536, 542) ou à gestão dos seus bens (art.º 389º-5 do

Código Civil v.infra, nº 538, 543). Os eventuais desacordos entre cônjuges poderão ser

submetidos ao juiz, que terá a tarefa de determinar onde está o interesse da criança (art.º

373º-2-6 e seguintes art.º 389º-5 do Código Civil; v.infra, nº563 e seguintes).

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108

- Contudo o direito zela pela preservação da independência de cada um. Na

prática seria dificilmente suportável exigir, para todas as questões, mesmo corriqueiras,

o acordo de ambos os cônjuges e a sua intervenção associada. O legislador tem portanto

consagrado para benefício dos pais (e os cônjuges que exercem conjuntamente o poder e

administram os bens do filho beneficiado) duas presunções de poderes. Primeiro a Lei

confere a cada um o poder para realizar os “actos usuais” de poder paternal (isto é, os

actos correntes) presumindo-se o acordo dos cônjuges (art.º 372.º-2), o que protege

terceiros de boa fé, impelindo-os portanto a aceitar negociar com cada um

separadamente. De igual modo, o artigo 389.º-4 do Código Civil considera que a cada

um é reconhecido, mesmo assim em relação a terceiros, o poder para realizar

pessoalmente os actos que um tutor pode realizar individualmente, nomeadamente os

actos de gestão corrente. Para uma exposição completa da questão, v. infra, nº 531 e

seguintes.

Capítulo 2

A abrangência dos efeitos

144 Plano. Duas questões distintas se colocam. Quais são as sanções abertas em caso de

violação por um cônjuge dos deveres do casamento (Secção 1)? Em que medida os

cônjuges se podem entender e decidir excluir ou modelar este ou aquele aspecto do

casamento (Secção 2)?

Uma vez mais, a discussão relativa à natureza jurídica do casamento é

importante. Caso se trate apenas de um contrato, o casamento deve poder ser adaptado

pelos cônjuges em virtude do princípio de liberdade contratual; deve ser sancionado

pelas vias contratuais do Direito Comum (resolução por incumprimento, excepção de

incumprimento, execução forçada, responsabilidade contratual). Caso seja uma

instituição, escapa ao princípio de liberdade contratual e beneficia de sanções

particulares. O direito positivo revela, mesmo assim, a dupla natureza do casamento.

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109

Secção 1

As sanções do casamento

145 Teoria geral dos contratos e direito matrimonial especial. O cônjuge vítima de

uma violação dos deveres do casamento por parte do seu cônjuge pode recorrer ao juiz

através de diversas acções judiciais. Algumas não têm nada em comum com o que se

conhece do direito dos contratos: excepção de incumprimento (A), execução forçada

(B), sanção de incumprimento por responsabilidade do cônjuge culpado (C), dissolução

do casamento (D). Mas pode-se também pedir ao juiz para resolver um litígio e, não

requerendo a dissolução do vínculo matrimonial, impor ao outro uma decisão. Quanto a

isso, o poder judicial não tem equivalente no direito dos contratos; e comprova que o

casamento não é apenas um contrato, mas também o fundamento de uma família, uma

instituição, que a autoridade pública deve, eventualmente, ajudar a viver (E).

A. A excepção do incumprimento

146 A excepção do incumprimento é um meio de defesa do Direito Comum dos

contratos que permite a um contratante opor-se a um pedido de execução do contrato

deduzido pelo seu co-contratante quando este último não honrou as suas obrigações. Em

poucas palavras, é a aplicação da “ troca por troca”.

A transposição desta instituição no direito do casamento tem há muito tempo

sido categoricamente excluída pela doutrina, que julgava contrária à natureza

institucional do casamento uma semelhante negociata dos direitos e deveres. Foi

recebida com reservas pela doutrina moderna que insiste no facto de que a própria Lei

menciona deveres “mútuos” e não deveres “recíprocos”. (v. supra nº108).

No entanto o direito positivo admite-o por vezes. A partir do século XIX, a

jurisprudência aceitou dispensar um dos cônjuges do dever de comunhão de vida

quando as condições de vida oferecidas pelo outro eram inaceitáveis1. E a solução foi

1Chambre de Requêtes do Tribunal de Cassação, 2 de Janeiro de 1877, DP 1877. 1.162, Grands arrêts, nº

37. Deste modo legitimado, a recusa de co-habitação não suprimia o direito de exigir do autor das

pancadas, violência e humilhações, o pagamento da contribuição aos encargos da vida familiar; já a

vítima podia recusar pagar a sua parte contributiva. Esta solução mantém-se.

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110

retomada pela Lei de 4 de Abril de 2006, que permite ao juiz autorizar uma residência

separada em caso de violência conjugal (art.º220-1, par.3, v. supra, nº110).

No que diz respeito à reforma do divórcio realizada pela Lei de 11 de Julho de

1975, esta acolheu indirectamente a instituição no divórcio por culpa: os erros de um

cônjuge podem com efeito causar a gravidade necessária às faltas cometidas pelo outro

para os qualificar de causas justificativas de divórcio (e portanto impedir a decisão de

divórcio) ou pelo menos assentar uma partilha de culpas (art.º245.º C. civ). A solução

mantém-se com a Lei de 26 de Maio de 2004 (art.º 245.º; v. infra, nº184).

B. A execução forçada

147 A execução forçada é uma instituição da teoria geral das obrigações que permite a

um credor obter, com auxílio da força pública, a execução da obrigação pelo devedor. A

jurisprudência contemporânea afirma a existência de um verdadeiro “direito” à

execução em espécie, com o único limite das obrigações terem um forte carácter pessoal

(art.º 1142.º).

A realização destes princípios no direito do casamento impõe distinguir as

questões patrimoniais e as questões extra-patrimoniais.

A execução forçada dos deveres patrimoniais impõe-se. Dever de cooperação e

contribuição com os encargos da vida familiar constituem objecto de processos

especiais de coacção (art.º 214º, par.2; art.º 1282º e seguintes CPC; v. também os

processos em pagamento directo e cobrança pública instituídas pelas Leis de 2 de

Janeiro de 1973, 11 de Julho de 1975, v. infra, nº635). Passa-se o mesmo com poderes

de gestão sobre os bens pessoais, comuns ou pessoais, sobre salários…: um cônjuge

poderá ser condenado ao pagamento de multa para não se imiscuir mais na gestão de

bens pessoais do outro; proibir a dilapidação dos rendimentos e ganhos necessários à

vida da família…

Neste aspecto, o artigo 220º-1 do Código Civil é da maior importância (v. supra.

nº 132). Com efeito em virtude deste diploma, se “um dos cônjuges falta gravemente

aos seus deveres e coloca em perigo os interesses da família1, o juiz de família pode

1 Condição cumulativa abandonada ao poder soberano de avaliação dos juízes de mérito.

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111

adoptar todas as medidas urgentes que estes interesses requerem. Poderá nomeadamente

ser proibido, sob pena de nulidade1, todo o acto de disposição, toda a transferência de

móvel…A única restrição a este poder judicial reside na limitação temporal da medida

adoptada, que não deve durar mais de três anos.

A execução forçada dos deveres pessoais suscita muitas reservas. Contrasta com

uma objecção prática, dado que a execução forçada dos deveres de comunhão de vida,

de fidelidade… está mal pensada. Como é indicado pela doutrina, “ a execução forçada

pode fazer perder muito do seu charme na dívida”2. Ao que se acrescenta uma objecção

teórica: será concebível compreender assim a pessoa? Se algumas decisões de justiça o

admitiram antigamente (é o caso de uma reintegração forçada da casa de morada da

família), a doutrina contemporânea é geralmente reticente. A liberdade da vida privada

explica que a sanção do incumprimento parece então constituir a melhor sanção.

Convém ainda notar que o direito sai por vezes desta reserva. Deste modo, desde a Lei

de 4 de Abril de 2006, quando as violências exercidas por um dos cônjuges colocam em

perigo o cônjuge ou um filho, o juiz pode autorizar os cônjuges a residirem

separadamente especificando qual dos cônjuges permanece na casa de morada da

família (art.º 220-1, par.3), o que constitui em certa medida numa execução forçada do

dever de respeito mútuo.

Realçando tanto da ordem pessoal como patrimonial, o exercício de uma

actividade profissional parece igualmente poder dar lugar à intervenção judicial3.

1 Nas condições do artigo 220.º-3 do Código Civil: acção aberta ao único cônjuge requerente, durante dois

anos a contar do dia em que teve conhecimento do acto (e não superior a dois anos após a sua eventual

publicação). A má fé do terceiro deve para além disso ser provada, salvo se a alienação do bem estava

sujeito à publicidade. 2 Carbonnier, op. cit. 3 A Lei não a prevê explicitamente. E a doutrina considera por vezes que a autonomia profissional deveria

escapar a todo o controlo judicial. Imagina-se certamente mal um juiz a impor o exercício desta ou aquela

profissão (arg. art.º 1142.º). Mas será que não podia proibir um dos cônjuges, sob coacção, de exercer tal

actividade contrária ao casamento?

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C. A responsabilidade de um cônjuge

148 Responsabilidade civil ou criminal. A violação dos deveres do casamento por um

cônjuge pode conduzir à responsabilidade civil, e mesmo, a título excepcional, criminal,

do culpado.

149 A responsabilidade civil. A violação dos deveres do casamento é uma falta. Caso

origine um dano, sendo este material ou moral, o culpado deve uma reparação. A

transposição deste princípio no casamento, fácil na teoria, é delicada na prática, tanto

assim é que se torna difícil avaliar o dano sofrido que é muitas vezes extra-patrimonial:

a que soma estimar o dano causado pelo adultério, ou pelo abandono, etc?

Muitas vezes, é na altura do pedido de divórcio que o pedido de indemnização

por perdas e danos será deduzido (sobre a questão, v.infra, nº228). Todavia a reparação

poderia ser pedida fora de todo o processo de divórcio ou separação judicial de pessoas

e bens.

É difícil determinar a natureza desta responsabilidade. Muitas vezes, a doutrina

se baseia no artigo 1382º do Código Civil, retendo implicitamente uma responsabilidade

delituosa. Outros explicam-na como uma responsabilidade contratual, uma vez que

procede de um compromisso assumido perante o conservador do registo civil. A

discussão, teórica na medida em que remete para a questão da natureza contratual ou

institucional do casamento, apresenta diversos interesses práticos: será que a reparação é

integral ou limitada ao único dano previsível (art.º1150.º)? Será que o prazo de

prescrição é o que prevalece em matéria contratual ou o que se aplica à responsabilidade

delituosa (art.º 2262.º ou 2270.º-1)?

150 A responsabilidade criminal. É somente a título excepcional que o casamento

encontra um apoio contemporâneo no direito penal, comprovando a privatização da

união. O adultério já não é mais penalmente sancionado desde a Lei de 11 de Julho de

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19751. Mas mantém-se o abandono da família (art.º 227.º-3 e 4 Código Penal, v. infra,

nº 635)2.

D. Dissolução do vínculo

151 O divórcio. O incumprimento de um contrato, quando é grave e quando o contrato é

recíproco, confere ao contratante vítima do incumprimento a possibilidade de pedir a

resolução do contrato ao juiz, até mesmo de proceder unilateralmente (art.º 1184º). Em

princípio, o contrato extingue-se retroactivamente. Todavia, a resolução dá lugar a uma

rescisão que só tem aplicação no futuro quando a execução forçada já não pode mais ser

questionada.

Será que o divórcio por culpa pode ser equiparado à rescisão por incumprimento?

Nessas condições, sim, mas só em parte. Do mesmo modo que a rescisão supõe uma

falta grave, o divórcio por culpa supõe que um dos cônjuges tenha cometido “factos que

constituem uma violação grave ou reiterada dos deveres e obrigações do casamento”

(art.º 242º do Código Civil; v.infra, nº 181). Porém, a natureza institucional do

casamento explica o carácter exclusivamente judicial do divórcio, o que o distingue da

rescisão contratual do Direito Comum, que pode hoje ser o facto unilateral do credor.

E a diferença é mais óbvia ainda na ordem dos efeitos da dissolução da união. A

rescisão por incumprimento faz-se acompanhar muitas vezes pela responsabilidade do

devedor que faltou ao seu compromisso. Passa-se de uma maneira diferente hoje em

matéria de divórcio: as sanções patrimoniais que a Lei de 11 de Julho de 1975 associava

à falta conjugal (perda de doações e benefícios matrimoniais…; v.infra, nº216) foram

extintas com a Lei de 26 de Maio de 2004, sendo que o legislador esperou deste modo

“pacificar” o divórcio3. Daqui resultarão, eventualmente, soluções estranhas: o cônjuge

1 O marido estava sujeito a sanção caso recebesse a concubina no lar, a mulher estava sempre sujeita, uma

vez que se considerava que ela introduzia um “bastardo” na família. 2 V. também a organização fraudulenta da insolubilidade (art.º 314.º-7 s. C. Penal). Pode-se também citar

as disposições que instituem o casamento do autor de uma infracção penal com a vítima em circunstância

agravante (art. 132.º-80 do C. Penal); mas é difícil ver nesse caso a sanção penal do dever de respeito

mútuo mesmo que tenham aplicação quando os factos são cometidos pelo antigo cônjuge. 3 Será que se obtém o efeito apaziguador esperado quando o cônjuge vítima pode agir em

responsabilidade civil para obter reparação de um dano “de uma particular gravidade” (art. 266.º), invocar

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exclusivamente culpado pode deste modo obter do outro uma prestação compensatória,

conserva as doações e benefícios matrimoniais consentidos…

Mesmo assim limitada, a sanção do divórcio por culpa conserva a sua

importância, nomeadamente simbólica: primeiro para os cônjuges, porque a decisão

reconhece oficialmente as culpas de um e a inocência do outro. Em seguida, para o

filho, este eventual testemunho de comportamentos inaceitáveis, ao qual é assim

relembrada a importância da Lei matrimonial. Finalmente para a sociedade, que afirma

incontestavelmente através da força os deveres instituídos.

152 Desprendimento do vínculo matrimonial. A especificidade do casamento traduz-

se igualmente pela admissão, junto ao divórcio que dissolve o vínculo matrimonial, da

separação judicial de pessoas e bens, que se contenta com o afrouxar do laço: a teoria

geral do contrato não conhece instituição comparável, que permite a permanência do

contrato, mas flexibilizado.

E. O regulamento judicial de um desacordo

153 Por fim, última sanção da Lei matrimonial, o juiz recebeu o poder para regular os

desacordos conjugais.

Um duplo fundamento explica este poder. Primeiro a natureza institucional do

casamento, que exige naturalmente a intervenção da autoridade pública para permitir a

este acto fundador de uma família funcionar em caso de crise. A natureza igualitária do

casamento contemporâneo, em seguida, que implica encontrar um meio prático para sair

de um conflito. Dado que é partilhado entre o marido e a mulher, o poder de direcção da

família origina necessariamente desacordos; em vez de remeter os cônjuges para a sua

própria razão ou dar arbitrariamente voz prioritária a um ou ao outro, o legislador optou

pelo que muitos denominaram ironicamente por “ casamento a três”: o desacordo será

submetido ao juiz que tomará uma decisão.

Este poder judicial foi objecto de fervorosas críticas: a influência do Estado

sobre as famílias (lugar de não direito por excelência), apenas avivaria o fogo e poderia

o carácter não equitativo da atribuição de uma prestação compensatória ao cônjuge culpado (art. 270.º,

par. 3), sem contar que corre o risco de se tentar vingar por intermédio dos filhos?

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menos ainda apaziguar o conflito do qual o juiz apenas poderia ter um conhecimento

muito limitado. É provavelmente ilusório esperar uma reconciliação judicial dos

cônjuges: o recurso ao órgão jurisdicional comprova a gravidade do desentendimento.

Contudo, por mais imperfeito que seja este poder judicial de decisão, permanece

preferível à solução que consistiria em mandar de volta os cônjuges de costas voltadas

ou a conferir a um a supremacia sobre o outro. O seu campo de aplicação não está aliás

ilimitado.

154 Este poder judicial existe antes de mais nos casos em que a Lei exige o acordo dos

cônjuges.

A Lei prevê-o explicitamente em matéria de poder paternal sobre a pessoa da

criança, dever paternal de sustento (art.º 373º-2-6 Código Civil)1 e gestão de bens da

criança (art.º 389º-5, par.2 Código Civil)2. V. infra nº 542, 543, 567).

O poder judicial de decisão existe também nas relações conjugais, pelo menos

em matéria patrimonial: gestão de bens comuns, destino da casa de morada da família

(art.º 215º e 217º do Código Civil.). As questões pessoais ajustam-se menos facilmente.

A meio caminho entre pessoa e património, coloca-se a questão da determinação da casa

de morada da família. Subordinada ao acordo conjunto dos cônjuges desde a Lei de 11

de Julho de 1975 (v.supra, nº110), a escolha da casa de morada de família pode suscitar

um profundo desacordo. E a Lei não tendo aqui explicitamente previsto o recurso ao

Tribunal, salvo para fixar uma residência separada em casos de violência (art.º 255º e

257º; v.infra, nº 206) ou de recusa de um pedido de divórcio (art.º 258º; v. infra, nº163),

a doutrina hesita em reconhecer-lhe semelhante poder. É verdade que é mais fácil julgar

o interesse da família em matéria de gestão de bens do que em matéria de escolha do

local de habitação. Mas esta dificuldade não é insuperável: supõe somente um juiz

prudente que utiliza devidamente os seus poderes de instrução.

1 É uma necessidade absoluta enquanto o interesse da criança se adapta mal a uma guerra perpétua; para

além disso, o retorno da Lei à prática anterior permite o respeito do particularismo familiar: art. 373.º-2-

11, v. infra, nº 567. 2 O que é bastante fácil determinar o interesse patrimonial da criança e que esta não conduz para além

disso a priori a qualquer intrusão na vida privada da família em questão.

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116

Secção 2

Os pactos entre cônjuges

155 Os cônjuges celebram por vezes pactos relativos aos efeitos do casamento, seja

antes da celebração ou durante a união: pretendem deste modo isentar-se do dever de

fidelidade ou de comunhão de vida, ou fixar em tal lugar a casa de morada da família ou

determinar a forma e o montante da contribuição com os encargos da vida familiar, ou

optar por esta ou aquela educação religiosa dos futuros filhos, e até mesmo organizar a

sua separação de facto…

Enquanto o acordo persistir e for respeitado por ambas as partes, a questão não

está sujeita ao direito: poderia sê-lo eventualmente na medida em que o Ministério

Público poderia pretender instaurar acção de nulidade (quando o pacto é nulo); mas na

prática, é pouco provável que tenha conhecimento desse pacto. Já a questão surge

quando um dos cônjuges recusa cumprir.

156 Concebem-se duas atitudes: aplicar pura e simplesmente o princípio da força

obrigatória das convenções e, reduzindo casamento ao nível de um simples contrato,

considerar que os cônjuges estão vinculados pela sua palavra e que só uma revogação

pode afectar o pacto (art.º 1134.º); considerar que os efeitos da união matrimonial

escapam às vontades individuais e que semelhantes pactos são nulos pelo seu objecto

(art.º 6.º e 1128.º) devido à natureza institucional do casamento (v. supra, nº39).

157 A atitude do direito varia consoante o objecto do pacto em questão: bastante

favorável aos acordos de vontade em matéria patrimonial, o direito é-lhes mais hostil

em matéria pessoal. Tudo depende, classicamente, da natureza do efeito do casamento

em questão. Caso se trate de um efeito de ordem pública, não pode ser deste modo

excluído por convenção1. Caso provenha de uma regra supletiva de vontade já pode ser

descartado. O critério vale tanto para os pactos conjugais como para os actos paternais.

1 Impõe-se portanto a nulidade absoluta, sendo que a natureza institucional do casamento prevalece sobre

a protecção dos cônjuges.

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1. Os pactos conjugais

158 Nulidade dos pactos pessoais. Os deveres pessoais do casamento (fidelidade,

assistência, comunhão de vida, respeito da personalidade do outro…) escapam

certamente à vontade dos cônjuges (art.º 1388.º e 226.º). Estes efeitos do casamento são

demasiado essenciais para serem colocados ao alcance dos indivíduos. Derivam da

própria instituição matrimonial.

Desprovidos de validade, os pactos não terão então nenhuma força obrigatória,

nem para as partes nem para o juiz. Todavia, a sua existência poderá ser um elemento de

avaliação para o juiz: por exemplo, na avaliação de uma culpa, causa de divórcio; por

exemplo no planeamento da vida separada, durante ou após a instância de divórcio;

etc…

159 Separação amigável. O estatuto dos pactos de separação amigável é um excelente

exemplo desta solução. A nulidade, admitida pela jurisprudência no início do século

XX1, é por vezes contestada pela doutrina contemporânea, que assenta sobre a

“contratualização” do casamento. Esta opinião não faz caso do carácter híbrido do

casamento, acto de vontade e de liberdade individual, mas também instituição, pedra

basilar de uma família, célula de base da sociedade.

A única “organização”2 jurídica possível da separação de facto (e que apenas

pode ser limitada) resulta do poder que o artigo 258º do Código Civil confere ao juiz do

divórcio, quando este rejeita um pedido de divórcio, para decidir sobre a residência

separada dos cônjuges, a contribuição com os encargos da vida familiar e as

modalidades de exercício do poder paternal (v. infra, nº163)3. O pacto de separação

1 Civ. 2 de Janeiro de 1907, DP 1907, 1, 137. V. mais recentemente Civ., 27 de Fevereiro de 1950, D 50,

316, 4 de Janeiro de 1958, Bol., nº9, 3 de Janeiro de 1964, Bull, nº 4, 31 de Outubro de 1962, Bol., nº

683; comp. Aix, 15 de Setembro de 1982, D. 1984, 267; Paris, 13 de Fevereiro de 1986, Gaz. Pal. 86, 1,

216. 2 Deve-se acrescentar a isto o poder que o juiz tem para decidir relativamente à residência separada no

âmbito de um processo de divórcio (art. 254.º e 255, v. infra, nº 206) ou para proteger um dos cônjuges e

os filhos das violências do outro (art. 220.º-1, par.3, v.supra, nº 110). 3 O Tribunal de Cassação interpreta estritamente os poderes do juiz: Civ. 1º, 31 de Março de 1992, JCP

1992, N, 383, Civ. 1º, 19 de Junho de 2007, recurso nº06-16656

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amigável poderá então eventualmente constituir um elemento de avaliação, até mesmo

de inspiração, para o juiz.

160 Já a matéria patrimonial presta-se muito bem aos acordos de vontade entre cônjuges

(v. supra, nº 135 e seguintes e nº 139).

É mesmo o princípio fundamental em matéria de regime matrimonial: o artigo

1387º afirma claramente que os cônjuges são livres para escolher o regime matrimonial

que melhor lhes convém. No entanto, devem respeitar o formalismo da convenção

antenupcial (art.º 1394.º e seguintes). Sobretudo, o artigo 1388.º limita duplamente a sua

liberdade: os acordos de vontade não podem desresponsabilizar os cônjuges dos seus

deveres conjugais nem retirar-lhes os poderes reconhecidos por Lei. A convenção

antenupcial não saberia deste modo dispensar um cônjuge da sua obrigação de

contribuir com os encargos da vida familiar nem confiscar a um dos cônjuges a

autonomia mínima que lhes confere o regime primário, que é de ordem pública (gestão

dos bens próprios, das contas bancárias, gestão dos salários; v. supra, nº 123 e

seguintes).

Encontra-se a mesma liberdade enquadrada em matéria de sucessão, uma vez

que cada um pode muito livremente alterar os efeitos que a Lei associa ao casamento

após morte de um cônjuge, sem prejuízo do direito aos alimentos (art.º 767º, v. supra, nº

126), do direito de usufruto da habitação durante um ano (art.º 763º e 764; v. supra, nº

138) e da reserva legítima, quer se trate da do cônjuge sobrevivo (art.º 914º-1, v.supra,

nº139) ou dos outros herdeiros (art.º 1094º e seguintes; v. supra, nº 139).

2. Os pactos paternais

161 Frequentemente dá-se o caso dos pais estarem de acordo, antes mesmo do

casamento ou durante este, sobre o exercício dos direitos e deveres paternais: dever de

sustento, educação dos filhos nascidos ou nascituros… A análise clássica da função

paternal proibia sancioná-los: indisponível, esta função não podia ser o objecto de uma

convenção. No entanto, os méritos dos pactos paternais são inegáveis: dado que

resultam da vontade dos pais, a priori melhor colocados que qualquer outro para decidir

o interesse da criança, a decisão tomada é geralmente bem aceites pelos seus autores e

tem portanto fortes hipóteses de ser respeitada. Deve-se acrescentar a isto que

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semelhantes pactos podem ajudar o juiz a resolver conflitos complexos, nomeadamente

religiosos, aí onde o princípio de laicidade do Estado lhe proíbe resolver um desacordo

por referência ao interesse religioso da criança. Compreende-se portanto que a

legislação contemporânea se mostre mais receptiva.

Mantém-se o princípio teórico: o artigo 1388º do Código Civil proíbe que seja

derrogado “ às regras da autoridade paternal, de administração legal…”. Mas o papel

dos acordos entre cônjuges, e mais largamente entre pais desenvolveu-se

consideravelmente, nomeadamente com a Lei de 4 de Março de 2002. Hoje, como

ontem, o juiz que decide sobre a autoridade paternal, a educação de uma criança, ou

decide confiá-lo a um terceiro, pode “ ter em conta os pactos que o pai e a mãe

celebraram entre si sobre este assunto” (art.º 376º-1 do Código Civil; v.infra, nº585), ou

referir-se à prática previamente seguida pelos pais (art.º 373.º-2-11, v. infra, nº567).

Quanto aos acordos celebrados no âmbito do divórcio, estes têm um impacto no destino

de filhos comuns (art.º 230.º e seguintes v. infra, nº174). Mas é a título mais geral que o

artigo 373º-2-7 oferece agora aos pais a possibilidade de pedir ao juiz a homologação de

um acordo paternal sobre as modalidades de exercício do poder paternal ou o dever de

sustento (v.infra, nº 566)1. Este papel dos pactos não está, é verdade, reservada aos pais

casados mas beneficia-os também.

Sobre todas estas questões. V. infra nº529

1 O favorecimento dos acordos entre pais traduz-se também pela admissão da conciliação e da mediação:

art. 373.º-2-10, v.infra, nº 529 e 567.

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120

Livro Segundo

Os casais descasados

162 Diversidade das crises conjugais. O “descasar” é uma expressão doutrinal figurada

que recupera todos os acontecimentos que afectaram o casamento na sua essência,

independentemente da natureza e o grau da violação considerada. De facto, o casamento

pode conhecer diversas vicissitudes, passando do simples problema à ruptura definitiva.

163 Separação de facto. A separação de facto pouco altera, na sua essência, o estatuto

matrimonial. A extinção da comunhão de vida não extingue os direitos do cônjuge

abandonado e limita-se, eventualmente, a pesar na avaliação que o juiz faz sobre a

conduta dos cônjuges no âmbito de um divórcio por culpa (v.supra, nº158 e seguintes, e

infra nº184). O regime matrimonial, graças aos poderes legais que confere e à

intervenção judicial que autoriza (v. not. art.º 217, art.º220-1 e seguintes C. civ.,

v.supra, nº132), constitui em certa medida num remédio à desunião. Dado que os pactos

de separação amigável não têm força obrigatória (v.supra, nº159), a única possibilidade

para os cônjuges em “estabilizar” a separação consiste no recurso ao Tribunal para que

este decida uma residência separada (art.º 258º), estando comprovado que os poderes

conferidos ao juiz por Lei permanecem limitados: primeiro porque, salvo hipótese de

violência doméstica (art.º 220º-1, par.3, v. supra, nº 110)1, uma tal decisão apenas pode

ocorrer no âmbito de recusa de um pedido de divórcio (ou separação judicial de pessoas

e bens). Para além disso dado que o juiz pode apenas decidir sobre a residência

separada, a contribuição com os encargos da vida familiar e as modalidades do exercício

do poder paternal2.

164 Plano. Já diversos acontecimentos abalam realmente os direitos e deveres do

casamento. A morte, bem como a ausência declarada, originam assim a dissolução do

casamento, não sem limite (vocação sucessória do cônjuge sobrevivo, v. supra, nº 136 e

seguintes uso do nome do cônjuge precedido pelo sobrevivo). Sobretudo, o vínculo de

1 E as medidas estão nesta hipótese limitadas no tempo uma vez que são caducas se, num prazo de quatro

meses, um processo de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens não foi interposto. 2 Civ. 1º 31 de Março de 1992, JCP 1992, N, 383; Civ. 1º, 19 de Junho de 2007, recurso nº 06-16656.

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casamento pode ser dissolvido por divórcio (Título 1) ou diminuído pela separação

judicial de pessoas e bens (Título 2).

Título 1

O divórcio

165 Evolução: “ A questão do divórcio é uma questão que divide um país”: são famosas

estas palavras de Carbonnier, “autor intelectual” da reforma do divórcio realizada pela

Lei de 11 de Julho de 1975. A questão, relativamente pacífica em França neste princípio

de século XXI suscitou antigamente acesos debates e suscita ainda hoje em alguns

países.

Aceite e correntemente praticado em Roma, o divórcio resistiu à vontade da

Igreja em fazer respeitar a doutrina da indissolubilidade do casamento. Solenemente

confirmada pelo Concílio de Trento em 1553, esta indissolubilidade será acolhida pelo

Direito do Antigo Regime. A reforma Protestante, que deu menos prioridade a esta

indissolubilidade porque não considerava o casamento um sacramento, iria semear a

confusão. E, no Direito corrente da filosofia das luzes, o Direito intermediário, ao

mesmo tempo que aboliu a separação judicial de pessoas e bens considerada o “divórcio

dos católicos”, admitiu amplamente o divórcio, que pode ser decretado por causas

determinadas mas também por mútuo consentimento ou mesmo incompatibilidade de

feitios (Lei de 20 Setembro de 1972).

Acolhido, ainda que muito estritamente, pelo Código Civil de 18041, o divórcio

foi abolido durante a Restauração (Lei de 8 de Maio de 1816), com a reintrodução do

catolicismo como religião do Estado. Seria restabelecido pela Lei de 27 de Julho de

1884, embora limitado. O divórcio apenas podia ser decretado por culpa (adultério,

condenação a uma pena corporal e com perda dos direitos civis, abuso, sevícias ou

injúrias graves): o divórcio por mútuo consentimento estava assim excluído. E

permaneceria até à Lei de 11 de Julho de 1975, pelo menos oficialmente: para contornar

a Lei, os cônjuges que acordavam a separação trocavam falsas cartas de injúrias.

1 Abolição do divórcio por incompatibilidade de feitios, limitação do divórcio por mútuo consentimento.

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166 Reforma de 11 de Julho de 1975:

Uma reforma era muito aguardada. A Lei foi votada a partir de dois diplomas, um

regulamentando as questões de fundo, o outro dando prioridade ao direito processual

resultante da pena de Carbonnier1.

A inspiração fundamental foi moderada: para retomar uma fórmula de Josserand

que inspirara Carbonnier, o divórcio constituía um “mal necessário”. Esta posição,

intermediária entre uma recusa categórica e uma administração incondicional, explicava

a recepção do divórcio pelo direito, uma certa recusa de julgamento de valor moral, mas

também as condições de direito processual (conciliação) e de fundo (condição de tempo,

cláusula de dureza; definição de culpa, causa divórcio) que limitavam a dissolução do

casamento, bem como os efeitos do divórcio, mais ou menos rigorosos consoante o caso

(eventual atribuição de uma prestação compensatória ao cônjuge culpado, salvo culpas

exclusivas, etc…).

Mais tecnicamente, a reforma obedecia a alguns princípios directores.

- O pluralismo legislativo: a Lei admitia uma pluralidade de “casos”2 de divórcio (art.º

229º do Código Civil) com o intuito de dar a “a cada família, o seu direito” (v.supra, nº

28). Divórcio - sanção, divórcio – fracasso ou divórcio - consentimento: para se

divorciar cada um podia tomar um caminho apropriado à sua situação conjugal, uns

aspirando ao reconhecimento público das culpas do outro, outros pretendendo partir

apesar da oposição do seu cônjuge, outros, por fim estando de acordo, mas em medidas

variáveis, para deixar ir.

- A desdramatização do divórcio: a Lei esforçava-se por tornar o divórcio o menos

doloroso possível. Para que isto acontecesse tinha seguido três caminhos: concentrar os

efeitos do divórcio no tempo e limitar a fase posterior ao divórcio; separar a causa e os

efeitos do divórcio, apostando-se que haveria menos luta em volta da sentença de

1 Carbonnier, La question du divorce, Memórias a consultar, D 1975. Chr. 115. 2 O “tipo” de divórcio designa um conjunto de regras, de conteúdo e processo, relativas tanto às condições

da sentença de divórcio como os seus efeitos, conjunto completo e animado de uma coerência interna (a

causa de divórcio explica os efeitos).

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divórcio se os efeitos do divórcio não dependessem da causa justificativa de divórcio;

favorecer os acordos entre cônjuges.

A prestação compensatória constituía uma peça essencial do novo dispositivo:

em princípio desassociada da causa de divórcio e subordinada à única constatação de

um desequilíbrio dos níveis de vida após o divórcio, devia revestir a forma de um

capital fixo, em princípio não susceptível de variar no tempo.

167 Lei de 30 de Junho de 2000 - A evolução económica (desemprego) e sociológica

(vontade de acentuar a ruptura matrimonial após o divórcio, recusa em impor aos

herdeiros a responsabilidade da prestação em benefício do ex-cônjuge) revelaria

rapidamente os limites desta nova instituição. A Lei de 30 de Junho de 2000 trouxe

então diversas alterações, sem tocar de resto no divórcio.

168 Lei de 26 de Maio de 2004 – Uma reforma de conjunto estava no entanto em

estudo há já muitos anos, por duas razões. Uma, ideológica, estava ligada à liberdade

individual que incitava a facilitar o divórcio e a limitar a duração dos processos. A

outra, pragmática, estava ligada à necessidade de reduzir as despesas públicas, o número

sempre crescente1 de divórcios conduzindo a um congestionamento dos tribunais2 ao

que Poderes públicos pretendiam solucionar.

As estatísticas3 demonstravam que, em três de quatro casos, era a mulher que

pedia o divórcio fundamentando muitas vezes este pedido na culpa4. Esta realidade não

era insignificante: as mulheres auferem em média um salário 25% inferior ao dos

homens e a diferença, em termos de reforma, eleva-se para mais de 40%, daqui resulta

que 90% das prestações compensatórias lhes são atribuídas. Os números indicavam para

1 Dos 60 000 divórcios decretados em 1976 passou-se para 115 000 em 2001: pouco mais de 38% dos

casamentos eram portanto dissolvidos pelo divórcio. 2 O contencioso do divórcio representava perto de metade do contencioso do Tribunal de Grande

Instância. 3 V. relativo a isto o relatório nº 117 do Senador J. Rozier, apresentado no Senado, anexo do PV da sessão

de 16 de Dezembro de 2003; relatório nº 120 do senador P. Gélard, apresentado no Senado, anexo do PV

da sessão de 17 de Dezembro de 2003. 4 Por várias razões: significação afectiva particular do casamento para a mulher, encargos domésticos

particulares resultantes do casamento para a mulher, independência profissional…

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além disso que, se mais de 47% dos divórcios eram decretados por pedido conjunto,

mais de 38% o eram ainda por culpa (dos quais um quarto era apenas decretado por

culpa partilhada1), sendo poucos os divórcios por pedido aceite (cerca de 13%) e

raríssimos os divórcios por ruptura de vida em comum (pouco mais de 1% apenas).

Uma vez mais, estes números eram importantes, sendo que a duração dos processos

variava consideravelmente consoante o caso do divórcio escolhido: eram precisos em

média treze meses para se divorciar mas a sentença de divórcio apenas levava pouco

mais de nove meses se fosse por pedido conjunto, quando eram precisos mais de

dezassete meses para um divórcio por culpa.

Os relatórios apresentados por Irène Théry e Françoise Dekeuwer-Défossez

tinham sugerido diversas pistas2. No final de 20013, o deputado Claude Colcombet tinha

apresentado um projecto de Lei mas esta foi reprovada com a alteração da legislatura.

Em Dezembro de 2002, encarregou-se uma nova comissão para reflectir sobre a reforma

do divórcio. Em Julho de 2003, no final de um processo opaco4, apresentou-se uma

proposta de Lei ao Parlamento. Tendo-se declarado urgência o diploma foi adoptado a

12 de Maio e promulgado a 26 de Maio de 2004. É lamentável que o processo tendo

sido despachado à pressa5, quando “a questão do divórcio”6 tem em jogo questões

importantes: individuais (as condições e efeitos da dissolução de um casamento são

essenciais para um casal) e sociais (devido aos vínculos estreitos que o divórcio mantém

com o casamento).

1 O que invalida a ideia apreendida segundo a qual um divórcio resultava sempre de dois culpados. 2 I. Théry, Couple, Filiation et parenté aujourd’hui, relatório entregue em Maio de 1998 ao Ministério do

Emprego e da Solidariedade e Ministério da Justiça; F. Dekeuwer-Défossez. Rénover le droit de la

famille, relatório entregue em Setembro de 1999 ao Ministério da Justiça. 3 Proposta nº 3189, relatório nº 252 do Senador Gélard ao Senado. Modificava profundamente os casos

actuais de divórcio ao instituir apenas dois casos: um divórcio por mútuo consentimento, um divórcio por

ruptura irremediável do vínculo conjugal. 4 Não se estabeleceu nem se submeteu à aprovação da comissão qualquer relatório. As conclusões foram

apresentadas à imprensa sem terem sido previamente validadas por todos… 5 O texto foi adoptado em dois dias, pelo Senado (dias 7 e 8 de Janeiro de 2004) depois pela Assembleia

Nacional (dias 13 e 14 de Abril). Tendo-se reunido uma comissão paritária mista, a lei foi definitivamente

adoptada a 6 de Maio pelo Senado e a 12 de Maio pela Assembleia Nacional. 6 Retomando a famosa expressão de Carbonnier, La question du divorce, prec.

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169 Apresentação geral. Tecnicamente bem executada, a reforma é mais discutível no

conteúdo. O diploma situa-se aparentemente no prolongamento da Lei de 11 de Julho de

1975. Pluralismo de casos, decisão judicial, favorecimento aos acordos, concentração

dos efeitos, dissociação da causa e dos efeitos…: mantêm-se todos os grandes princípios

directores do “divórcio versão 1975”, sendo que a reforma se limita aparentemente a

estimular as escolhas fundamentais realizadas trinta anos antes1. Mas sob esta aparente

continuidade esconde-se uma forma de ruptura. O significado e a importância do

casamento apresentam-se profundamente alterados. O casamento perdeu a força

obrigatória que lhe pertencia, no tempo ao abrir-se a uma dissolubilidade mais flexível,

mas também no momento, por um lado ao perder nas sanções associadas ao divórcio

por culpa o seu tradicional braço armado e por outro lado ao gerar uma solidariedade

patrimonial redefinida simultaneamente mais intensa no momento e mais frágil no

tempo. Semelhante constatação surpreende caso se acredite na intenção do legislador2.

Será que irá corresponder, além disso, à expectativa dos sujeitos do direito? Será que ao

reforçar a solidariedade patrimonial e ao objectivá-la, não se corre o risco de criar

injustiças e, eventualmente de dissuadir ao casamento? E será que se alcançará a

pacificação prevista?

A importância, prática e teórica, das alterações introduzidas3, explica que a Lei

tinha especificado as condições da sua aplicação no tempo (art.º 25º). A entrada em

1 A mediação é na realidade apenas a manifestação processual da importância dos acordos privados

reconhecida desde 1975; o silêncio do pedido de divórcio por pedido aceite em relação aos factos na

origem do fracasso do lar é apenas o seguimento lógico da jurisprudência que tinha excluído todo o

controlo do juiz relativamente aos factos; o princípio da indiferença da culpa sobre a prestação

compensatória que só conhecia excepção em caso de culpas exclusivas só conhece agora em caso de

culpa particularmente grave… 2 O Ministério da Justiça afirmou pretender “assegurar as referências essenciais que constituem a base da

sociedade francesa, ao nível dos valores do compromisso, solidariedade, responsabilidade”: nota

justificativa, projecto de lei relativo ao divórcio, sessão de 9 de Julho de 2003; ver também audição do

Ministério da Justiça pelo Senado a 16 de Dezembro de 2003. 3 No seio das doações entre cônjuges, distingue as doações do bem presente, revogáveis nas únicas

condições dos artigos 953.º até 958.º, e as doações dos bens futuros, sempre revogáveis (novo art. 1096.º).

Para além disso acrescentou à receptação do bem comum uma receptação de dívida comum, o artigo

1477.º prevendo agora que aquele que dissimula com conhecimento de causa uma dívida comum “deve

assumi-lo definitivamente”.

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vigor tinha sido adiada para 1 de Janeiro de 2005 (art.º 25º, I). A sobrevivência da Lei

antiga tem além disso sido retida, eventualmente, no que diz respeito aos processos

iniciados antes desta data1. As disposições “sensíveis” relativas à prestação

compensatória (revisão, suspensão, substituição…) têm já sido largamente tornadas

aplicáveis.

170 Plano: A sentença do divórcio (Capítulo 1) será considerada antes dos seus efeitos

(Capítulo 2).

Capítulo I

A sentença do divórcio

171 Divórcio. Condição de fundo e decisão judicial. Na França, um divórcio só pode

ser decretado através de decisão judicial (art.º228º). Esta decisão judicial só pode

ocorrer mediante certas condições, de processo e conteúdo. É da associação destes dois

tipos de condições, intimamente ligados, que nascem os “casos” de divórcio. A

existência destes “casos” traduz-se, na ordem processual, por uma autonomia que

significa que cada caso obedece a um processo determinado e que um processo iniciado

sobre o fundamento de tal caso deve em princípio prosseguir sobre este único

fundamento (art.º1077º CPC). Mas esta autonomia não deve ocultar a existência dos

princípios fundamentais invariáveis. As condições específicas de cada caso de divórcio

serão deste modo apresentadas (1) antes dos princípios relativos ao processo (2).

1 Os processos em decurso são submetidos à nova lei salvo em certas condições: homologação da

convenção temporária antes da entrada em vigor da nova lei; entrega da citação antes da entrada em vigor

da nova lei, estando todavia previstas duas excepções para permitir o divórcio, nomeadamente o divórcio

por alteração definitiva do vínculo conjugal. A separação judicial de pessoas e bens obedece aos mesmos

princípios. O apelo e o recurso são julgados consoante as regras em vigor aquando da sentença da decisão

de primeira instância (IV). Paralelamente, as regras aplicáveis à separação judicial de pessoas e bens

aquando do seu decreto regem a sua conversão para divórcio (V).

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1. As condições específicas de cada caso.

172 Generalidades. A Lei de 11 de Julho de 1975 distinguia três casos de divórcio (art.º

229º): o divórcio por mútuo consentimento, o divórcio por ruptura de vida em comum, o

divórcio por culpa. Mas sob o “mútuo consentimento”, escondiam-se na realidade dois

casos bem distintos: o divórcio dito de “por pedido conjunto” e o divórcio dito “por

duplo consentimento”. O primeiro resultava de um acordo integral dos cônjuges, acerca

dos princípios e os efeitos do divórcio, enquanto o segundo resultava de um acordo

muito mais limitado tratando-se apenas do princípio do divórcio. A doutrina tinha então

assumido o hábito de distinguir agora quatro casos de divórcio. A lei de 26 de Maio de

2004 distingue agora quatro casos de divórcio: o divórcio mediante pedido conjunto

facilitado e rebaptizado “divórcio por mútuo consentimento” (A); o divórcio por culpa,

relativamente pouco alterado nas suas condições (B); o divórcio por duplo

consentimento, consideravelmente alterado e rebaptizado “divórcio mediante aceitação

do princípio de ruptura do casamento” ou “divórcio consentido” (C); o divórcio por

ruptura de vida em comum, profundamente transformado e rebaptizado “divórcio por

alteração definitiva do vínculo conjugal” (D).

Na ordem legal de enumeração será preferível uma ordem baseada no número de

processos iniciados sobre este ou aquele caso. Em 2007, mais de metade dos divórcios

decretados foram por mútuo consentimento, sendo de seguida mais frequente o divórcio

por culpa bem à frente do divórcio consentido e do divórcio por alteração definitiva do

vínculo conjugal.

A. O divórcio por mútuo consentimento.

173 Generalidades. O divórcio “por mútuo consentimento” é o sucessor do antigo

divórcio dito “por pedido conjunto”. Caracteriza-se pela plenitude do acordo dos

cônjuges, acordo que diz respeito, em bloco, ao princípio e o planeamento do divórcio, a

causa e os efeitos.

Este tipo de divórcio atrai cada vez mais casais (40% casais em 1995, 47% em

vésperas da reforma de 2004 e mais de metade em 2006) e conta com a ajuda do

legislador que avalia neste divórcio “fair play” para aristocratas a ausência, pelo menos

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aparente, de discórdia: “ à falta de nos entendermos a viver como pessoas casadas pelo

menos entendemo-nos a viver como divorciados”…

Deste modo se explica a ponte instituída pelo artigo 247º do Código Civil que

permite sempre, enquanto o divórcio não for decretado, e tendo sido mesmo iniciado

mediante um outro fundamento (culpa, alteração definitiva do vínculo conjugal ou

divórcio consentido), passar para o divórcio a pedido conjunto (com excepção do

princípio de autonomia de caso: art.º 1077º CPC).

Regido pelos artigos 230º até ao 232º do Código Civil, este divórcio favorecia o

acordo dos cônjuges (1) mesmo se o submetesse a um controlo judicial (2).

1.O acordo dos cônjuges

174 Plenitude do acordo. O acordo dos cônjuges, completo no conteúdo, exprime-se

por regras processuais.

No conteúdo, o “mútuo consentimento” tem um duplo objectivo: assenta sobre o

mesmo princípio da dissolução do vínculo e sobre as consequências desta dissolução,

em relação aos filhos bem como nas relações recíprocas, pessoais e patrimoniais, dos

cônjuges (art.º 230º Código Civil e 1091º do CPC). Pode aliás também repousar no

planeamento da vida durante o processo do divórcio: a Lei autoriza o juiz que prescreve

as medidas necessárias para garantir a co-existência dos cônjuges e dos filhos durante

este período a “ter em consideração” os “eventuais acordos entre cônjuges” (art.º 254º,

v.infra, nº206) “os arranjos que os cônjuges já acordaram entre si (art.º 1117º do CPC)1.

Segundo as normas, o “mútuo consentimento” manifesta-se de duas formas: o

divórcio é primeiro “pedido conjuntamente” art.º 230º; o que explicava a terminologia

fixada em 1975, de divórcio “por pedido conjunto”): um único pedido é entregue na

Secretaria do Tribunal (art. 1089 CPC) pelos cônjuges, assistidos por ou pelos

advogados escolhidos (os cônjuges podem preferir que cada um seja assistido por um

advogado ou designar por comum acordo um único defensor: novo art.º250º). Para ser

1 A Lei de 11 de Julho de 1975 era mais exigente, ao impor aos cônjuges colocarem-se de acordo

relativamente à organização da vida durante o processo: antigo artigo 253º Código Civil. A exigência foi

suprimida para abrir mais a via deste divórcio.

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admissível, o pedido deve compreender, em anexo, um acordo elaborado pelos cônjuges

(art.º 230º do Código Civil e 1091º do CPC), acordo que regula as consequências do

divórcio1” e está sujeito à aprovação do juiz (art.º230º). Os cônjuges podem igualmente

anexar um acordo temporário através da qual os próprios cônjuges determinam as

medidas provisórias aplicáveis durante o processo2.

175 Condições temporais. A gravidade de semelhante consentimento para divórcio

levou o legislador de 1975 a limitar semelhante divórcio em condições temporais

estritas. Em primeiro lugar, o divórcio a pedido conjunto era proibido nos primeiros seis

meses de um casamento (antigo art.º 230º, par.3). Em segundo lugar, o pedido inicial

devia ser reiterado pelos cônjuges após um prazo de reflexão de três meses (antigo art.º

231º, par.2).

A Lei de 26 de Maio de 2004, considerando a primeira regra ineficaz e muito

restrita, revogou-a pura e simplesmente. Já a segunda foi apenas suavizada. Agora o

princípio é que o pedido inicial não tem de ser reiterado: se o acordo emanar de uma

vontade de qualidade e preservar de modo suficiente os interesses dos cônjuges e dos

filhos, o juiz homologa-o imediatamente (art.º 232.º e 250.º-1). Já caso contrário os

cônjuges têm um prazo máximo de seis meses para apresentarem um novo acordo

(art.º250-2); à falta disso, o pedido inicial é inválido (art.º250º-3). A vontade de acelerar

o processo prevaleceu deste modo sobre a preocupação em proteger os cônjuges, ao

defender, por um lado a realidade e o consentimento informado, por outro lado, a

conformidade das disposições do acordo aos interesses dos cônjuges e dos filhos.

2. O controlo judicial.

176 Um controlo judicial alargado. Subordinado ao acordo dos cônjuges e de natureza

gratuita (art.º1088.º CPC), o divórcio por mútuo consentimento não permanece menos

sujeito a um controlo judicial alargado (art.º 232.º, 250.º e seguintes Código Civil, art.º

1099.º e seguintes do CPC).

1 O processo civil é muito explícito: a convenção deve conter “regulamento completo dos efeitos do

divórcio” (art. 1091.º CPC). 2 O que antigamente era uma obrigação (art. 253.º, par. 1º) tornou-se numa simples faculdade.

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130

177 A análise do pedido. Uma vez notificado pelo registo do pedido na Secretaria do

Tribunal, o juiz convoca os cônjuges (art.º1092.º do CPC). No dia por ele determinado,

analisa o pedido, primeiro com cada um dos cônjuges separadamente, depois reunindo-

os e por fim convocando o ou os advogados (art.º 250.º).

Esta audição permite-lhe aferir a legalidade do pedido. Primeiro, verifica a

admissibilidade do pedido (menções obrigatórias, anexos…). Depois, comprova o

carácter livre e esclarecido dos dois consentimentos (art.º 232.º do Código Civil, art.º

1099.º do CPC). Por fim, analisa o conteúdo do acordo estabelecido pelos cônjuges para

verificar a sua compatibilidade com os interesses dos filhos e dos cônjuges. Estes dois

últimos pontos (por um lado a existência e o carácter informado do consentimento e por

outro lado a legitimidade das disposições convencionais assumidas pelo cônjuge)

constituem duas faces indissociáveis da decisão judicial de homologação.

178 Homologação da convenção e sentença do divórcio. Homologação da convenção

e sentença do divórcio são indissociáveis.

- O juiz homologa o acordo se os consentimentos forem de qualidade e se o acordo

estiver em conformidade com os interesses de cada um (art.º 250.º-1); decreta então o

divórcio.

- Pode recusar a homologação da convenção que lhe foi apresentada se a qualidade dos

consentimentos for incerta ou se o acordo “não acautelar os interesses dos filhos ou de

um dos cônjuges” (art.º 232º). Pode então, com o acordo das partes, expurgar as

cláusulas não conformes (art.º 1099.º do CPC): nesse caso, homologa o acordo e decreta

o divórcio. Caso contrário, adia a decisão de divórcio através de um despacho proferido

imediatamente.

Compete então às partes apresentar um novo acordo, num prazo de seis meses

(art.º 250.º-2, par.2). O juiz deve, no despacho que profere, referir as condições e

garantias aos quais subordina a homologação. Para além disso adopta, até mesmo, as

medidas provisórias para vigorarem durante o processo (art.º 1100.º do CPC), sendo que

a Lei prevê que pode homologar as medidas provisórias, que as partes acordariam, se

estiverem “ em conformidade com o interesse do ou dos filhos” (art.º 250.º-2).

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131

Na ausência de registo de uma nova convenção no prazo legal, o pedido de

divórcio é inválido (art.º 1101.º do CPC). Com apresentação de um novo acordo, o juiz

convoca as partes para uma nova audiência, durante a qual analisa a cláusula em

questão. Pode homologar ou recusar a homologação, caso em que o pedido de divórcio

é inválido (art.º1101.º do CPC).

B. O divórcio por culpa

179 Plano. O divórcio por culpa continua a ser a segunda via mais utilizada para

dissolver o casamento: decretaram-se 42% divórcios por culpa entre 1995 e 1999, e

38% ainda em vésperas da reforma introduzida em 2004. O objectivo procurado pode

ser simbólico: trata-se por vezes de ver oficialmente reconhecido pelo Estado a

culpabilidade de um – e – do outro no fracasso do casal. O divórcio por culpa é então

procurado pelo seu valor psicoterapêutico, consistindo em “cortar o mal pela raiz”,

“punir” o cônjuge culpado, “consolar” o inocente, e eventualmente também lembrar ao

filho a Lei conjugal. É outras vezes mais “terra a terra”: pode tratar-se de beneficiar

eventuais efeitos da culpa, que até mesmo priva o culpado de certos direitos e confere

alguns benefícios ao inocente.

Foi fortemente criticado antes da reforma de 2004. Primeiro foi acusado de

avivar conflito entre cônjuges (mas será que o conflito resulta da situação conjugal ou

do divórcio?), depois por ser infundado no seu princípio, uma vez que os danos eram

sempre partilhados (o que é pelo menos excessivo). Finalmente por conferir ao juiz uma

missão impossível, sendo a investigação e a avaliação das respectivas culpas muito

sensíveis e levando o juiz a imiscuir-se na vida privada dos cônjuges (a crítica é

sobretudo relativa às queixas de ordem sexual; mas não é então o próprio conteúdo dos

deveres de casamento que se está a por em causa?). Foi contudo mantido, pelo menos

no seu princípio, por coerência com a lógica dos deveres de casamento.

Mas a culpa foi largamente neutralizada na determinação dos efeitos do

divórcio, tendo a Lei de 26 de Maio de 2004 incitado cada vez mais a parcialidade do

legislador de 1975 (v infra, nº216,226,227,228,230,s). Parece ainda hoje oferecer

apenas, fundamentalmente, o ganho simbólico da culpabilidade imputada ao cônjuge

culpado. O futuro dirá se os deveres de casamento, agora desprovidos das sanções

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patrimoniais antigamente associadas ao divórcio por culpa, não serão enfraquecidos. O

futuro dirá também se esta “objectivação” do divórcio não corre o risco de gerar junto

ao cônjuge inocente um profundo sentimento de injustiça, e de dissuadir assim

progressivamente os casais a “voltar a casar”.

São os artigos 242.º ao 245.º do Código Civil que determinam os contornos do pedido

inicial (1) e o destino deste (2).

1.O pedido inicial.

180 O abandono da culpa, causa peremptória de divórcio. O Código Civil previa, no

direito resultante da Lei de 11 de Julho de 1975, uma causa dita “peremptória” de

divórcio. O artigo 243º (redacção da Lei de 16 de Dezembro de 1992)1 autorizava um

cônjuge a invocar para suporte do seu pedido o facto de que “o outro fora condenado a

uma das penas previstas pelo artigo 131º-1 do Código Penal”, isto é a uma pena

criminal. Em caso semelhante, o juiz estava privado de todo o poder de avaliação: devia

decretar o divórcio pedido pelo cônjuge do infractor, sem ter de procurar o que quer que

seja do outro. Não era necessário verificar se a dita condenação criminal constituía uma

“violação grave ou reiterada dos deveres e obrigações do casamento” e tornava

“intolerável a subsistência da vida em comum” (no sentido do artigo 242º)2. É porque a

doutrina, retomando a terminologia utilizada antes da reforma de 1975, referia então a

culpa causa “peremptória” de divórcio.

A Lei de 26 de Maio de 2004 extinguiu esta culpa “especial”. Na prática isto não

significa que o divórcio não poderá mais ser pedido em caso semelhante: poderá sê-lo,

mas nas condições estipuladas pelo artigo 242º do Código Civil. Porém, esta revogação

tem um significado simbólico: reforça a evolução que pretende que o casamento se

torne fundamentalmente numa questão de interesse privado e comprova que o Estado

tem renunciado realizar aí um ”reforço” da Lei republicana.

1 Até então, o texto falava de condenação a uma pena aflitiva e infamante. A reforma entrou em vigor a 1

de Março de 1994 com a reforma do Código Penal. 2 Civ. 2ª, 11 de Janeiro de 1989, Gaz. Pal. 1989.2.763

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181 A culpa, causa facultativa de divórcio. Agora o Código Civil apenas prevê a

culpa, causa “facultativa” de divórcio. O artigo 242.º autoriza um cônjuge a pedir o

divórcio quando “actos que constituem uma violação grave ou reiterada dos deveres e

obrigações do casamento” são “imputáveis ao outro” e “tornam intolerável a

subsistência da vida em comum”1.

Pouco importa então o dever de casamento afectado: quer se trate de uma das

obrigações nomeadas por Lei – respeito, fidelidade, assistência, comunhão de vida,

contribuição com os encargos da vida familiar, educação e sustento dos filhos… (art.º

212.º e seguintes do Código Civil) – ou de um dever admitido pela jurisprudência –

dever de sinceridade… (v. supra, nº114 e seguintes) –, a sua violação poderá

considerada causa justificativa de divórcio.

Três condições são cumulativamente exigidas: 1º) é preciso que esta violação

seja “imputável” a um dos cônjuges, isto é, que a tenha cometido livre e

conscientemente; 2º) é preciso que esta violação seja “grave” ou “reiterada” (estas duas

exigências são alternativas: as cenas de desavença conjugal repetidas contarão tanto

como o único golpe mas de uma grande violência…); 3º é preciso que esta violação

torne “intolerável a subsistência da vida em comum”, o que evoca sobretudo a

impossibilidade subjectiva, para o cônjuge vítima, de suportar a vida em comum com o

culpado.

Esta definição geral deixa ao juiz um poder soberano de avaliação, o que explica

que esta falta seja denominada uma causa “facultativa” (para o juiz) de divórcio. Depois

de ter num tempo exigido que os juízes de mérito mencionassem explicitamente as

condições estabelecidas pelo diploma, o Tribunal de Cassação parece ter abandonado

toda a exigência formal desta ordem2.

1 Apenas a formulação do texto foi alterada pela Lei de 26 de Maio de 2004, sendo que a condição de

violação da fé matrimonial surge agora antes da imputabilidade da culpa. 2 V. também Civ. 1º, 6 de Julho de 2005, Bol., nº 303.

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2. O destino do pedido

182 Generalidades. O pedido de divórcio por culpa pode conhecer quatro destinos

diferentes. A Lei de 26 de Maio de 2004 manteve aqui o direito anterior. O pedido pode

pura e simplesmente ser admitido (decreta-se o divórcio em prejuízo do cônjuge citado)

ou rejeitado (mantém-se o casamento entre os cônjuges) ou apenas originar um divórcio

por culpas partilhadas dos cônjuges ou até mesmo um divórcio por culpa exclusiva do

requerente. Tudo depende da opção processual adoptada pelo cônjuge citado e da

avaliação levada a cabo pelo juiz sobre dois eventuais acontecimentos, a saber a

reconciliação dos cônjuges ou as culpas do requerente.

183 A reconciliação dos cônjuges. “A reconciliação dos cônjuges ocorrida depois dos

factos alegados impede invocar esses mesmos factos como causa justificativa de

divórcio” (art.º 244º, par. 1º do Código Civil): o Código Civil instaura aqui uma

improcedência da queixa, que permitirá ao juiz, antes da análise do caso em questão,

rejeitar o pedido de divórcio classificando-o de inadmissível (al.2, in limine).

Mas esta inadmissibilidade está duplamente limitada. Primeiro está limitada pela

definição da reconciliação: a retoma da vida em comum (condição objectiva) deve

fazer-se acompanhar por uma vontade de perdão (condição subjectiva); “a permanência

ou a retoma temporária da vida em comum” são insuficientes “se resultam apenas da

necessidade ou de um esforço de conciliação ou das necessidades de educação dos

filhos” (par.3). Para além disso está limitada pelos efeitos da reconciliação: só apaga as

culpas passadas e conhecidas, e ainda unicamente sob condição de “aquisição” do

culpado, na medida em que se pode deduzir um novo pedido de divórcio por culpa

“devido a factos emergentes ou descobertos depois da reconciliação”, “sendo que os

factos antigos podem portanto ser invocados para apoiar este novo pedido”(par.2).

184 As culpas do cônjuge requerente. “As culpas do cônjuge que tomou a iniciativa de

divórcio não impedem analisar o seu pedido” (art.º 245º, par. 1º, in limine), logo não

constituem uma improcedência da queixa.

Por esse facto, não estão privadas de efeitos. Com efeito apresentam-se três

possibilidades. O cônjuge citado no divórcio por culpa pode escolher valorizar as culpas

como defesa no conteúdo ou como suporte de um pedido reconvencional. E supondo-se

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até por exemplo que o cônjuge citado se abstenha de invocar as culpas, o juiz poderá

contudo tê-las em consideração.

- A defesa no conteúdo. O cônjuge citado no divórcio por culpa pode escolher defender-

se no conteúdo e contestar a existência, a seu cargo, de uma culpa causa justificativa de

divórcio na acepção do artigo 242º do Código Civil. Mas o cônjuge pode

especificamente invocar o que se designa de “dispensa de reciprocidade”: as culpas do

requerente “podem…dar o carácter de gravidade aos factos de que acusa o seu cônjuge

que teria constituído uma causa justificativa de divórcio” (art.º 245º, par.1º, in fine).

Assim saindo de costas voltadas, os dois cônjuges irão ver mutuamente opostas as suas

culpas como justificação para as suas respectivas atitudes. O resultado disto seria a

rejeição do pedido inicial do divórcio.

- O pedido reconvencional. O cônjuge citado pode preferir invocar as culpas do

requerente para apoiar um pedido reconvencional no divórcio por culpa (art.º245º, par.

2), supondo-se, obviamente, que estes correspondem aos critérios do artigo 242º do

Código Civil. O juiz terá então de escolher entre três possibilidades: rejeitar os pedidos

reconvencional e inicial (mantém-se o casamento); rejeitar um e admitir o outro

(decreta-se o divórcio por culpa exclusiva de um cônjuge, aquele cujo pedido foi

rejeitado enquanto se admitiu a do cônjuge); admitir os dois pedidos mas de modo

parcial (decreta-se o divórcio por culpas partilhadas dos cônjuges: art.º 245º, par.3)

- O poder ofícioso do juiz. Mesmo que o cônjuge citado no divórcio por culpa se

abstenha de invocar as culpas do requerente, o juiz recebeu da Lei o poder, motu

proprio e por derrogação ao princípio dispositivo, para destacar no debate as culpas do

requerente, quer seja para rejeitar o pedido inicial, quer seja para decretar um divórcio

por culpas partilhadas (art.º 245º, par. 3). Compete-lhe portanto apenas convidar as

partes a apresentarem as suas opiniões com observância do princípio do contraditório.

185 Pacificação do divórcio por culpa e conteúdo da decisão. Com o objectivo de

evitar envenenar o conflito, e para pacificar o processo, a Lei permite ao juiz limitar-se

a constatar na decisão que há factos que constituem uma causa justificativa de divórcio,

sem referir as culpas e os motivos de queixa das partes (art.º 245º-1; antigo artigo 248º-

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1). Basta que o pedido seja feito por ambos os cônjuges, “ de modo expresso e

concordante” nas suas conclusões (art.º 1128º do CPC).

C. O divórcio consentido

186 Do duplo “consentimento” à aceitação do “princípio” da ruptura. A Lei de 26

de Maio de 2004 admitiu um terceiro caso de divórcio, o divórcio decretado em caso de

aceitação do princípio de ruptura do casamento” (art.º 229º), divórcio mais sobriamente

designado por “divórcio consentido”1.

Sucede ao divórcio que a doutrina tinha baptizado de divórcio “por duplo

consentimento” ao abrigo da Lei de 11 de Julho de 1975 uma vez que resultava do

reconhecimento, por cada cônjuge, do fracasso do casamento, e até muitas vezes da

confissão das respectivas “culpas” conjugais. Este divórcio resultava de um pedido de

divórcio deduzido por um cônjuge e aceite pelo outro. Na realidade constituía um

divórcio por mútuo consentimento: era necessário o acordo dos cônjuges. Contudo,

distinguia-se, por várias razões, do divórcio por pedido conjunto. Primeiro, o acordo dos

cônjuges era menos extenso porque se baseava apenas no princípio do divórcio e não

sobre os efeitos. Em seguida, formalmente, não se exprimia por um pedido conjunto

mas resultava do pedido de um, aceite pelo outro. Por fim, a existência de uma vontade

para se divorciar não bastava, porque a Lei exigia dos cônjuges que se referisse “um

conjunto de factos, vindos de um e do outro, que tornem intolerável a subsistência da

vida em comum”, o que invocava perigosamente a culpa causa justificativa de divórcio

(v. supra, nº 181).

Antigamente este tipo de divórcio era pouco praticado, por várias razões2, e isto

apesar de seu atractivo, tendo em conta que os cônjuges deviam apenas estar de acordo

em relação ao princípio do divórcio mas não tinham de o ser em relação aos efeitos

1 Segundo o título da secção II do Capítulo I do Título VI. 2 Devido à jurisprudência, que tinha reconhecido aos cônjuges a faculdade de retrair, o que confere um

carácter incerto à confissão; devido a uma proximidade incerta com o divórcio por culpa (os factos

confessados lembram a culpa, sendo que o divórcio era decretado por culpas partilhadas, mas não deveria

ocorrer qualquer discussão sobre a existência de uma “culpa”).

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deste, sendo que a Lei responsabilizava a autoridade judicial a decretar o divórcio mas

também em planear as consequências.

A Lei de 26 de Maio de 2004 manteve a inspiração geral, tudo num esforço para

o simplificar, tranquilizar e objectivar, isto com a finalidade de o tornar mais apelativo.

1.A aceitação dos cônjuges

187 Objecto da aceitação. Agora o artigo 233º do Código Civil limita o objecto de

aceitação: este baseia-se unicamente no “princípio da ruptura de casamento”. E para que

não haja qualquer ambiguidade, a Lei especifica que esta aceitação vale “sem

consideração das culpas da origem (da ruptura) ” (adde art.º 1123º do CPC: “sem

consideração dos factos da origem” da ruptura). Inspirando-se numa proposta feita pela

Comissão Irène Théry1, a Lei de 26 de Maio de 2004 acentuou assim o papel das

vontades privadas: agora este caso de divórcio apenas resulta de uma dupla vontade (a

aceitação dos cônjuges) baseando-se num objecto determinado (o princípio da ruptura

do casamento) é desassociado de toda a causa factual (independentemente dos factos na

origem do seu fracasso).

188 Momento da aceitação. Na Lei de 11 de Julho de 1975, o divórcio por duplo

consentimento era “pedido” por um (art.º 233º), tendo o outro a possibilidade de

“reconhecer” (art.º 234º: o divórcio era então decretado) ou não (quer os rejeite

formalmente, quer se contente em não responder ao pedido; art.º 235º: o divórcio não

era então decretado) os factos aos quais o requerente imputava a desunião.

Acentuando, aqui também, o papel das vontades individuais, a Lei de 26 de

Maio expandiu as possibilidades. Com efeito agora o artigo 233º prevê que o divórcio

1 Provavelmente a ideia de pedir aos cônjuges para determinarem quais os factos na origem da desunião é

inútil (a Lei apostava que este esforço psicológico de introspecção sobre as causas profundas da desunião

permitia evitar rancores, sendo que a expressão das mágoas tinham, até mesmo, uma virtude pedagógica;

a isto deve-se acrescentar que era em vão procurar as causas da desunião, sendo que separar os cônjuges

era a única coisa importante), perigoso (isto corre o risco de avivar o conflito), ilusório (os cônjuges não

têm o recuo necessário para ser feito), deslocado (isto obriga-os a expor a vida privada em público) até

mesmo hipócrita (a jurisprudência tinha proibido ao juiz controlar a realidade dos factos alegados, de

modo que os cônjuges podiam muito bem avançar com qualquer tipo de elemento).

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consentido possa ser “pedido por um ou outro cônjuge ou por ambos”. O artigo 247º-1

especifica que esta aceitação pode ocorrer “a todo o momento do processo”, o que

corresponde a três hipóteses estipuladas pelo artigo 1123º do Código do Processo Civil:

a aceitação pode ser expressa aquando da audiência de não conciliação (o processo

judicial apenas poderá ser envolvido no fundamento do artigo 233º: art.º 257º); pode

ocorrer, após despacho de não conciliação, revestida da forma de um pedido conjunto

introdutivo de instância. Por fim, pode apenas existir durante o processo, após registo de

uma citação de divórcio por culpa de um cônjuge ou alteração definitiva do vínculo

conjugal, devendo então cada cônjuge anexar às suas conclusões uma aceitação

expressa e concordante.

189 Irrevogabilidade da aceitação. Antigamente colocou-se a questão da abrangência

do duplo consentimento na jurisprudência. O Tribunal de Cassação tinha considerado

que o consentimento podia ser livremente anulado enquanto o despacho do juiz de

família que o constatava não se tornasse definitivo1, sem que seja necessário invocar

para esse efeito qualquer vício do consentimento2. Já quando o regulamento não tinha

sido objecto de recurso num prazo de quinze dias previsto por Lei, a causa justificativa

de divórcio ficava definitivamente assente3 e nenhum dos cônjuges podia então

contestar a sinceridade do seu consentimento ou negar a sua aceitação4.

A Lei inverteu esta jurisprudência. O artigo 233º, parágrafo 2, especifica com

efeito que “esta aceitação não está susceptível a retractação, mesmo pela via do

recurso”. A solução permitirá talvez levantar a hesitação que os cônjuges têm muitas

vezes ao enveredar pela via do duplo consentimento, cada um acreditando que o outro

não retomará em seguida o seu consentimento. Mas não está isenta de perigo: será que a

expressão dos consentimentos através do controlo judicial é suficiente para garantir a

qualidade dos respectivos consentimentos?5 Afirmar deste modo a irrevocabilidade das

vontades individuais surpreende tanto como o direito oferece por outro lado uma 1 Civ. 2º, 16 de Julho de 1987, D, 1987, 582 2 Civ. 2º, 4 de Outubro de 1995, Bol., nº 229 3 Com a reserva muito residual da oposição de terceiros, fundada na fraude de um cônjuge. 4 Civ. 2º, 26 de Janeiro de 1984, D, 1984, 390. 5 Esta alteração não está isenta de lembrar a extinção da segunda comparência obrigatória no divórcio por

mútuo consentimento (v. supra, nº 175).

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faculdade de retracção para comprar uma máquina de lavar a crédito, ou roupa por

correspondência e dá vários dias de reflexão para contrair um empréstimo imobiliário.

Compreende-se portanto que a Lei rejeite, neste caso, que os cônjuges sejam assistidos

por um advogado comum e exija que cada cônjuge tenha o seu defensor (art.º253º).

2.A decisão do juiz de família

190 Acta da aceitação e decisão de divórcio. Antigamente o processo do divórcio por

duplo consentimento apresentava a especificidade de se desenrolar em duas fases. Uma

primeira fase permitia ao juiz de família verificar a existência e o esclarecimento dos

consentimentos. Se tal fosse o caso, constatava os consentimentos por despacho e

remetia os cônjuges a preparem-se com vista à sentença do divórcio e do regulamento

dos ses efeitos (art.º 234; art.º 1135, par. 1º CPC)1. Inicia-se então uma segunda fase,

que se desenrolava, inicialmente perante o Tribunal de Grande Instância decidindo

colegialmente, depois perante o juiz de família a partir da Lei de 8 de Janeiro de 1993

(v. infra, nº 199), segunda fase que permitia ao juiz decretar o divórcio. O legislador

pretendia deste modo preservar a paz na troca dos consentimentos, o que um debate

concomitante sobre os efeitos do divórcio corria o risco de não permitir, sendo o

contencioso entre cônjuges muitas vezes intolerável neste ponto2.

A Lei de 26 de Maio de 2006 revogou esta dissociação: agora o juiz de família é

responsável, simultaneamente, por verificar a aceitação e decretar o divórcio. É em

princípio então num único e mesmo despacho que constata a aceitação dos cônjuges,

decreta o divórcio e estabelece os efeitos. Todavia, é preciso ter em conta que a

aceitação pode agora ocorrer aquando da audiência de conciliação. Nesse caso, o juiz

constata a aceitação numa acta anexada ao despacho de não conciliação, convidando os

cônjuges a renovar a instância para que ele decrete o divórcio e determine os seus

efeitos. Mas a Lei tem o cuidado de especificar que “se mantenha assente a causa

justificativa de divórcio”, para evitar todo o posterior debate sobre a aceitação (art.º

1123º do CPC).

1 Podia ser formado um apelo num prazo de quinze dias. 2 Foi uma preocupação comparável de pacificação que levou a Lei de 26 de Maio de 2004 a prever que o

pedido inicial não especificasse o fundamento jurídico: art. 1106.º CPC, v. infra, nº 201.

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191 Poder do juiz. Actualmente como antes da Lei de 26 de Maio de 2004, a

competência do juiz de família está relacionada. “ Se for estabelecida a convicção que

cada um dos cônjuges deu livremente o seu acordo”, o juiz decreta o divórcio e

estabelece os efeitos (art.º 234º). Caso contrário, rejeita o pedido de divórcio.

- Verificação do acordo. Primeiro a Lei encarrega o juiz de verificar “que cada um dos

cônjuges deu livremente o seu acordo”. O juiz não tem de procurar as razões profundas

do divórcio. Compete-lhe somente controlar a liberdade do consentimento. A Lei não

exige explicitamente que o consentimento seja esclarecido (comp. art.º 232, v. supra,

nº117). Mas pode-se afirmar que um consentimento dado por influência de um erro não

é falar propriamente falar de “livremente” dado. É na realidade preferível que o juiz se

assegure de que cada um dos cônjuges conhece as consequências da sua aceitação antes

de decretar o divórcio, sendo que a solução contrária é demasiado injusta.

- Sentença de divórcio e determinação dos seus efeitos. Se o juiz estiver convencido que

cada cônjuge deu livremente o seu acordo, compete-lhe decretar o divórcio (“sem outro

motivo para além da aceitação dos cônjuges” especifica o artigo 1124º do Código do

Processo Civil) e daí determinar as suas consequências (art.º 234º do Código Civil).

Antigamente a Lei previa que o divórcio por duplo consentimento produzisse os

efeitos de um divórcio com culpas partilhadas (art.º 234º in fine): era a consequência

lógica da existência provável de uma responsabilidade partilhada no fracasso do

casamento (dado que o duplo consentimento existia por hipótese). O juiz não tinha

portanto de decidir em relação às culpas uma vez que o duplo consentimento levava

automaticamente às culpas partilhadas. Como consequência, esta partilha legal de

culpas tinha alguns efeitos que estavam directamente determinados por Lei (destino das

doações e benefícios matrimoniais, de direitos legais e convencionais…) e outras

questões que deviam ser reguladas pelo juiz (eventual atribuição de uma prestação

compensatória e indemnização por perdas e danos, contrato de arrendamento da casa de

morada da família, autorização para continuar a usar o apelido do cônjuge…).

Actualmente a Lei já não refere mais isso, algo que é a consequência lógica da

unificação dos efeitos do divórcio e da neutralização radical da sua causa (v. infra, nº

216 e seguintes). Competirá então ao juiz determinar as consequências do divórcio no

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quadro estabelecido pela Lei (v. infra, nº 216). A permanência de certos benefícios

matrimoniais e a revogação de outros (art.º 265, v infra, nº 226), a conservação de

direitos legais ou convencionais (art.º 265º-1, v.infra, nº 227) são automáticos; o juiz

pode autorizar um cônjuge a continuar a usar o apelido do outro (art.º 264, v. infra, nº

221), atribuir indemnização por perdas e danos para um dano diferente do resultante da

dissolução do casamento (art.º 1382º e 266º, v.infra, nº 228 e 229), decidir a liquidação

de interesses patrimoniais dos cônjuges (art.º 267º, v. infra, nº 225), fixar uma prestação

compensatória (art.º 270º e seguintes, v.infra, nº 230 e seguintes), conceder o

arrendamento da casa de morada da família (art.º 285º-1, v.infra, nº239), e decidir

também as consequências do divórcio para os filhos (art.º 286º). Sobre todos estes

pontos, v.infra, nº 214.

D. O divórcio por alteração definitiva do vínculo conjugal

192 Do divórcio por ruptura da vida em comum ao divórcio por alteração

definitiva do vínculo conjugal. A Lei de 11 de Julho de 1975 tinha criado um divórcio

designado por “divórcio por ruptura da vida em comum”, que permitia a um cônjuge

romper o seu casamento mesmo que o seu cônjuge pretendesse continuar casado e não

tivesse cometido qualquer falta conjugal. Este caso abrangia duas hipóteses: o dos

cônjuges separados de facto há seis anos (antigo art.º 237º) e a do cônjuge que não vivia

mais em comunhão devido a uma alteração das faculdades mentais do outro cônjuge,

grave e tendo durado seis anos (antigo art.º 238º). Mas, preocupada em manter a

seriedade do compromisso matrimonial, a Lei tinha enquadrado este caso de forma

estrita. Primeiro, na sua sentença: mesmo que as condições legais estivessem reunidas, o

pedido de divórcio podia ser rejeitado se a sentença do divórcio conduzisse a

consequências materiais ou morais de uma excepcional gravidade para os filhos ou o

para o requerido (tendo em consideração, nomeadamente a idade e a duração do

casamento: antigo artigo 240º); o juiz podia até, oficiosamente, rejeitar o pedido por

este motivo sem que este tenha sido pedido pelo cônjuge requerido (antigo art.º 240º,

par.2, antigo art.º 238º, par.2). Em seguida, nos seus efeitos: a Lei tinha feito deste caso

um divórcio “ a encargo de”, que produzia consequências rigorosas contra o requerente

(antigo art.º 239º); por exemplo, perdia os benefícios matrimoniais, ficava destituído de

direitos legais ou convencionais dos quais beneficiava através do casamento,

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permanecia obrigado ao dever de auxílio, podia ser condenado ao pagamento de

indemnização por perdas e danos…

Após ter sido vigorosamente acusado, na altura da sua criação, de introduzir no

direito francês o repúdio muçulmano1 e reduzir mais coisa menos coisa o compromisso

matrimonial tinha-se tornado, antes da reforma de 26 de Maio de 2004, no alvo de

críticas contrárias. O divórcio por ruptura de vida em comum foi acusado de prender o

cônjuge no casamento durante um intervalo de tempo crítico e fazer pesar sobre o

requerente obrigações muito rigorosas, em suma, limitando de modo excessivo a

liberdade para se divorciar.

A Lei de 26 de Maio de 2004 alterou profundamente este tipo de divórcio, ao

mesmo tempo que lhe rebaptizava divórcio “por alteração definitiva do vínculo

conjugal”. Quase extinguiu a especificidade dos seus efeitos: o divórcio por alteração

definitiva do vínculo conjugal não é mais um divórcio “ a encargo de”. Flexibilizou

consideravelmente as condições da sua sentença, ao diminuir, e até mesmo extinguir, o

prazo de separação exigido e ao eliminar a cláusula de dureza. A liberdade para se

divorciar aumentou de tal modo que alguns evocaram o “direito” ao divórcio.

Correlativamente, o significado do casamento encontra-se profundamente alterado, uma

vez que o compromisso durável deixa lugar a um vínculo condicional.

193 Dois casos. O divórcio pode ser pedido por um cônjuge “quando o vínculo conjugal

está definitivamente alterado” (art.º 237º Código Civil). Acontece assim em dois casos,

claramente diferentes.

1.A alteração definitiva do vínculo conjugal associada a uma separação de facto

por dois anos

194 O pedido por alteração definitiva do vínculo conjugal resultante de uma

separação de facto por dois anos. O primeiro caso é estipulado pelo artigo 238º,

1 As diferenças eram portanto consideráveis: a via do divórcio era indiferentemente aberto a um ou outro

cônjuge e já não mais reservado ao marido, era decretado pelo juiz e não relegado à exclusiva vontade do

cônjuge, tendo o juiz aliás o poder excepcional para rejeitar o pedido se o divórcio corresse o risco de ter

consequências de uma dureza excessiva; o requerente assumia as consequências, nomeadamente

patrimoniais, da dissolução e estas eram rigorosamente definidas pela Lei.

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parágrafo 1º: “a alteração definitiva do vínculo conjugal resulta da cessação da

comunhão de vida entre os cônjuges, quando vivem separados há dois aquando da

citação em divórcio”. A liberdade para se divorciar assim disponível é real porque o

requerente apenas tem de apresentar duas provas.

Primeiro deve provar a cessação da vida em comum, que segundo a Lei existe

“quando (os cônjuges) vivem separados”. As noções de separação e de cessação da vida

em comum, que o diploma considera equivalentes, remetem a priori para duas

hipóteses, pelo menos caso se esteja a referir à noção matrimonial de “vida em comum”

(art.º 215º do Código Civil, v.supra, nº 110): os cônjuges não coabitam mais sob o

mesmo tecto ou, pelo menos, não partilham mais a mesma cama.

Em seguida o requerente deve provar que esta separação já dura há dois anos, o

que é muito pouco, sobretudo considerando-se o momento de avaliação desta condição:

a Lei exige apenas que tenham passado dois anos “aquando da citação de divórcio”;

deduz-se daí que não são necessários dois anos de separação no momento do pedido

inicial (sobre a distinção entre pedido inicial e citação de divórcio, v. infra, nº 201). Esta

condição é menos ainda rigorosa quando a Lei proíbe ao juiz afastar a iniciativa emitida

devido a falta de caducidade do prazo requerido, salvo se o requerido não comparecer

(art.º 1126º do CPC).

A jurisprudência, que tinha recusado ter em consideração as circunstâncias que

acompanham a separação dos cônjuges, parece ser mantida pelo silêncio dos diplomas.

195 A atitude processual do requerido. O cônjuge deste modo citado em divórcio por

alteração definitiva do vínculo conjugal pode então escolher entre duas atitudes

processuais.

- A defesa e a rejeição do divórcio. Em conformidade com o Direito Comum, o

requerido pode defender-se ao contestar a existência de condições às quais a Lei

subordina a sentença de divórcio: argumentará que não há separação dos cônjuges ou

que este não dura há dois anos. Já a redacção de diplomas leva a considerar que o juiz

não tem poder de avaliação ou de moderação: se a comunhão de vida cessou durante

dois anos, deve decretar o divórcio; não tem de verificar se o vínculo conjugal está

definitivamente alterado; já não pode mais tirar partido de eventuais circunstâncias

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particulares do caso, e nomeadamente da excepcional dureza da situação, para rejeitar o

pedido. Neste aspecto este divórcio difere profundamente do antigo divórcio por ruptura

da vida em comum, que o juiz podia recusar decretar em caso de excepcional dureza.

- O pedido reconvencional no divórcio por culpa. O cônjuge citado pode assim deduzir

um pedido reconvencional no divórcio por culpa (art.º 247º-2), à responsabilidade,

obviamente, de provar que estão reunidas as condições de semelhante divórcio (art.º

242º, v.supra, nº 179 e seguintes).

Se as condições dos dois pedidos estiverem cumulativamente reunidas (há

separação dos dois e culpa), decreta-se o divórcio por culpa. Se só um pedido é

fundamentado, decreta-se o divórcio com base nesse fundamento (alteração definitiva

do vínculo conjugal em caso de separação de facto de dois anos, culpa em caso de

violação grave ou reiterada dos deveres e obrigações do casamento).

Na presença de semelhante pedido reconvencional, a Lei reconhece ao

requerente em divórcio a faculdade para alterar o fundamento do seu pedido ao invocar

as culpas do requerido (art.º 247º-2). Se um ou (e) outro forem admitidos, o divórcio

será decretado por culpa. Se o pedido convencional for rejeitado apresentam-se dois

casos: ou o pedido inicial, assim alterado no seu fundamento, é admitido, e o divórcio é

decretado por culpa (do requerido), ou o pedido inicial, assim alterado no seu

fundamento é rejeitado, e o divórcio não é decretado.

2. A alteração definitiva do vínculo conjugal estabelecida pela existência de dois

pedidos de divórcio

196 Pedido deduzido a título principal por culpa e pedido deduzido a título

reconvencional por alteração definitiva do vínculo conjugal. O divórcio pode

também ser decretado por alteração definitiva do vínculo conjugal quando se

apresentam dois pedidos, um por culpa e o outro por alteração definitiva do vínculo

conjugal, com a condição do juiz rejeitar o pedido de divórcio por culpa e que o pedido

de divórcio por alteração definitiva do vínculo conjugal tenha sido deduzido a título

reconvencional (art.º 238.º, par. 2, e 246.º, par. 2).

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Ao especificar que o divórcio é então decretado “não obstante” as disposições do

parágrafo 1º do artigo 238.º, o Lei faz desta hipótese um caso distinto de alteração do

vínculo conjugal. Daqui resulta que a sentença de divórcio não está então nem sujeita à

prova de uma separação dos cônjuges, nem, a fortiori, à de um prazo de dois anos. A

especificidade deste caso de divórcio é assim muito clara.

Neste caso não há ausência de lógica. As condições exigidas pela Lei (rejeição

de um pedido de divórcio por culpa deduzido a título principal e formação e pedido de

divórcio deduzido a título reconvencional por alteração definitiva do vínculo conjugal)

estabelecem na realidade duas coisas: por um lado que cada um dos cônjuges pretende

divorciar-se; por outro lado que nem o requerido, nem o requerente cometeram falta (o

primeiro porque o pedido de divórcio por culpa apresentada contra si foi rejeitada, o

segundo uma vez que o requerido não deduziu o pedido reconvencional de divórcio por

culpa contra si). É portanto lógico divorciá-los, e não estar à espera que se passe este

prazo de “luto do casal” que constitui o prazo de separação de dois anos.

2.Os princípios processuais

197 Plano. Os princípios comuns são relativos ao carácter judicial do divórcio. Serão

consideradas a necessidade de uma decisão judicial (A), o ofício do juiz (B) e depois as

regras relativas à administração da prova (C).

A. A intervenção necessária do juiz

1.A necessidade de uma decisão judicial

198 Essência judicial do divórcio. Não existe “o descasar consensual” no direito civil

francês.

Alguns preconizam a não intervenção do judicial do divórcio: bastaria o acordo

dos cônjuges, pelo menos na ausência de filhos e bens. Esta foi uma das propostas da

Comissão dirigida por Irène Théry. Contudo, esta solução é perigosa, porque os

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cônjuges não estão em pé de igualdade na crise conjugal, de modo que a liberdade das

suas vontades corre o risco de ser ilusória. Aqui como noutro lugar, o controlo do juiz,

longe de instituir uma tutela deslocada do Estado sobre a família, constitui uma medida

de protecção estatal instituída para benefício do mais vulnerável (e da criança). Sem

contar, pragmaticamente, que a supressão do controlo judicial prévio apenas acabará

muitas vezes por afastar o direito de recurso ao órgão jurisdicional, uma vez que há

sérios riscos de ocorrência de conflitos aquando da execução do acordo selado fora da

presença judicial.

Foi então preciso aprovar a Lei de 26 de Maio de 2004 para ser rejeitado todo o

divórcio consensual, e insistido no carácter judicial do divórcio ao alterar os diplomas: o

antigo artigo 247.º, que afirmava a competência do Tribunal de Grande Instância para

decretar o divórcio e determinava a extensão dos seus poderes, foi revigorado; passou a

ser o artigo 228º, isto é o primeiro diploma do título VI que o primeiro livro do Código

Civil consagra ao divórcio.

2.O recurso ao órgão jurisdicional

199. Competência de atribuição e territorial. As regras processuais do Direito Comum

foram duplamente adaptadas.

A Lei de 11 de Julho de 1975 tinha mantido, em princípio, a competência do

Tribunal de Grande Instância para decretar os divórcios e regular os seus efeitos (art.º

247.º, par. 1º). Todavia, tinha delegado para este tribunal um juiz de assuntos

matrimoniais – dito JAM – que era “ especialmente responsável por zelar pela

salvaguarda dos interesses dos filhos menores” e ao qual tinha dado a missão de

decretar o divórcio por mútuo consentimento (sentença de divórcio e homologação da

convenção no divórcio por pedido conjunto, v. supra, nº 176 e seguintes acta do duplo

consentimento no divórcio por duplo consentimento, v. supra, nº 190 e seguintes).

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A Lei de 8 de Janeiro de 1993, para remediar o congestionamento judicial,

manteve este magistrado especializado, rebaptizou-o “juiz de família”, e expandiu a sua

competência: para além da salvaguarda dos interesses dos filhos menores1, está agora

encarregado de decretar todos os divórcios independentemente do tipo, com a excepção

de utilizar a faculdade que lhe é reconhecida de submeter o caso à análise da formação

colegial, análise que passa a ser de direito se uma das partes assim o requerer (art.º

228.º). A Lei de 26 de Maio de 2004 manteve estas regras2.

A competência territorial foi determinada pelo artigo 1070.º do Código do

Processo Civil: o tribunal do local de morada da família tem competência; se os

cônjuges residem separadamente, tem competência o tribunal do local onde reside o

cônjuge com o qual vivem os filhos menores3; caso contrário é o tribunal do local onde

reside o cônjuge que não tomou a iniciativa de processo. Em caso de pedido conjunto, é

competente, conforme a escolha das partes, o juiz do local de residência de um ou do

outro cônjuge. Finalmente, quando o litígio é relativo à pensão alimentar, à contribuição

do sustento das crianças, à contribuição com os encargos da vida familiar ou à prestação

compensatória, o tribunal competente pode ser o do local onde reside o cônjuge credor

ou o parente que assume a título principal a responsabilidade dos filhos.

200 Qualidade e capacidade para agir. O carácter pessoal e a gravidade do divórcio

explicam as regras relativas à qualidade para produzir efeito e a capacidade dos

cônjuges.

- A qualidade para agir é apenas reconhecida aos cônjuges. A via de acção oblíqua está

evidentemente fechada aos credores, tratando-se de um direito pessoal. Quanto aos

herdeiros, já não lhes cabe mais agir, sendo que a única reserva consiste num eventual

trâmite processual ulterior, interposto por um dos cônjuges, após a sua morte: a morte

1 Desde a Lei de 22 de Julho de 1987 o juiz tornou-se o único com competências para decidir sobre o

exercício do poder paternal, a execução do dever de sustento ou tomar a decisão de confiar uma criança a

um terceiro: art. 228.º 2 Apenas substituiu a referência a uma pensão alimentar pela “contribuição ao sustento e educação dos

filhos” e alterou a ordem das questões. 3 Mais precisamente do cônjuge com o qual os filhos residem habitualmente em caso de exercício em

comum da autoridade ou do cônjuge que exerce individualmente este poder.

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de um cônjuge que dissolve um casamento extingue em princípio a acção em divórcio;

mas há lugar para um trâmite processual ulterior interposto pelos herdeiros na hipótese

em que, o divórcio tendo já sido decretado naquele momento, seria formada uma via de

recurso contra um aspecto patrimonial da sentença (prestação compensatória…).

- A capacidade para agir depende de algumas regras específicas1. Primeira regra geral,

são categoricamente proibidos os divórcios por mútuo consentimento ou por aceitação

do princípio de ruptura do casamento aos maiores de idade protegidos (art.º 249º-4).

Para os outros casos de divórcio, tudo depende do regime de protecção sob a qual o

maior de idade é colocado. Caso esteja sob tutela, é o tutor que pode pedir o divórcio

(após autorização do conselho de família se este foi instituído, caso contrário pelo juiz

de tutelas; após parecer do médico; e “na medida do possível” após audição do

interessado, acrescentou a Lei de 26 de Maio de 2004: art.º 249.º, par. 1º) e é contra este

que se exerce a acção (art.º 249.º-1 in limine). Caso esteja sob curadoria, deve ser

auxiliado pelo seu curador, tanto no pedido como na defesa (art.º 249.º, par.2 e 249.º-1

in fine). Para além disso, nestas duas hipóteses, se o tutor ou curador for o cônjuge do

maior de idade protegido, este tem de proceder à nomeação de um tutor ou curador

especial (art.º 249.º-2). Quanto ao maior de idade sob salvaguarda da justiça, este deve

ser colocado sob curadoria ou tutela antes que o pedido de divórcio seja examinado,

sendo que o juiz pode, no entanto, tomar as medidas provisórias, e até mesmo as

eventuais medidas urgentes (art.º 249.º-3).

201 Pacificação do processo, pedido inicial, citação posterior de divórcio. Para

pacificar a audiência de conciliação, e favorecer a reconciliação, ou pelo menos os

acordos entre os cônjuges, a Lei de 26 de Maio de 2004 previu que o pedido inicial se

limite agora a pedir o divórcio, sem conter nem o fundamento jurídico do pedido, nem

os factos na origem da ruptura (art.º 252.º e seguintes Código Civil, art.º 1106º do CPC).

A escolha de um caso de divórcio deverá ser feita pelo requerente da citação em

divórcio só depois do fracasso do processo de conciliação (art.º 257.º-1 do Código Civil;

art.º 1113.º do CPC).

1Para além disso a Lei especifica que um maior inabilitado apenas pode consentir a decisão do divórcio,

ou desistir do apelo com a autorização do juiz de tutelas (art. 1120.º CPC).

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B. A função do juiz

1. As missões do juiz

202 Funções principais e complementares. O juiz do divórcio, com competências a

título principal para decidir a dissolução do casamento, é também responsável pela

realização de funções complementares.

a. A função principal: o destino do vínculo matrimonial

203 A conciliação. A Lei de 11 de Julho de 1975 tinha encarregado o juiz para uma

missão de conciliação (antigo art.º 251.º e seguintes) destinado, quando não conseguia

“fazer (os cônjuges) desistir do divórcio”, a levá-los a acordarem aí a regulação das suas

consequências (antigo art.º 252.º-2). A Lei de 26 de Maio de 2004 manteve esta

conciliação, mas alterou as suas funções: já não se trata mais de salvar o casamento mas

apenas conciliar os cônjuges “tanto no princípio do divórcio como nas suas

consequências” (novo artigo 252.º, par.2, artigo 252.º-3, par. 1ª).

A tentativa de conciliação apenas estava obrigatória em caso de divórcio por

culpa ou por ruptura da vida em comum. Com a Lei de 26 de Maio de 2004, tornou-se

obrigatória para todos os casos (art.º 252º).

Competia ao juiz fixar a data da audiência (art.º 1107.º do CPC) e ao secretário

convocar os cônjuges (art.º 1108.º do CPC). Excepcionalmente, se um dos cônjuges não

poder comparecer no local indicado o juiz pode deslocar-se até para fora da sua

circunscrição ou dar a missão a outro magistrado para que este proceda à audição

(art.º1110.º do CPC).

A tentativa de conciliação desenrola-se segundo um esquema processual legal

bastante flexível: depois de se ter reunido com cada uma das partes, o juiz convoca-os à

sua presença, sendo os advogados chamados de seguida para assistir e participar na

reunião (art.º 252.º-1). Se o cônjuge que não formou o pedido não se apresentar à

audiência, ou se encontrar impossibilitado de manifestar a sua vontade, o juiz reúne-se

com o requerente e convida-o à reflexão.

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Se o juiz considerar desejável, pode suspender, ou apenas a tentativa de

conciliação (e reservar aos cônjuges um prazo de reflexão que não pode exceder oito

dias), ou até o processo de divórcio (e decidir que se tentará uma nova conciliação num

prazo que não poderá exceder seis meses: art.º 252.º-2). Pode então ordenar as medidas

provisórias necessárias à vida durante o processo (art.º 1111.º do CPC v. infra, nº 206).

Finalmente, para facilitar a conciliação e neutralizar os cálculos fraudulentos, a

Lei proíbe usar, a favor ou contra o cônjuge ou a um terceiro, o que foi dito ou escrito

aquando desta conciliação (art.º 252.º-4). A tentativa de conciliação poderia resultar em

detrimento do que, tendo participando honestamente, corria o risco de fazer

confidências perigosas para salvar o seu casamento.

A Lei favorece os acordos entre cônjuges com o objectivo de apaziguar o

divórcio. Quando constata que o requerente mantém o seu pedido, o juiz deve esforçar-

se para que cheguem a um acordo sobre as consequências do divórcio (art.º 252º-3, par.

1º). Pode até utilizar a mediação ao título de medidas provisórias (art.º 255º do Código

Civil, v. infra, nº 206).

Quando o juiz constata que o requerente mantém o seu pedido e que não

pretende proceder a uma nova tentativa de conciliação, emite um despacho de não

conciliação através do qual autoriza os cônjuges a dar início ao processo de divórcio

(art.º 1111.º do CPC). Pode então ordenar medidas provisórias (art.º 1111.º do CPC,

art.º 254.º, v. infra, nº 206).

Pode-se interpor um recurso num prazo de quinze dias do despacho (art.º 1112.º

do CPC), mas apenas em relação à competência e às medidas provisórias. Nos três

meses subsequentes ao despacho, apenas o cônjuge que apresentou a pedido inicial pode

citar no divórcio (art.º 1113.º do CPC). O despacho é caduco em caso de reconciliação

dos cônjuges ou na ausência de introdução do processo nos trinta meses decorridos da

sua sentença (art.º 1113.º do CPC).

204 A dissolução do vínculo. Para além desta função de conciliação, o juiz do divórcio

deve decidir sobre a dissolução do vínculo. Este encontra-se, na matéria, investido de

um poder variável, mas muitas vezes considerável. Todavia verifica-se que, em diversos

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aspectos, este poder perdeu terreno (nomeadamente em caso de divórcio por alteração

definitiva do vínculo conjugal).

No mútuo consentimento, em que a vontade dos cônjuges constitui o

fundamento do divórcio, o juiz está encarregado de duas missões: controlar a existência

e o carácter informado da vontade dos cônjuges e verificar que os interesses dos filhos e

dos cônjuges são contemplados pela convenção que organiza a fase posterior ao

divórcio (art.º 232º do Código Civil; v. supra, nº 176 e seguintes).

No divórcio consentido, o juiz deve verificar a liberdade dos consentimentos dos

cônjuges e decidir sobre as consequências do divórcio (art.º 234 do Código Civil,

v.supra, nº190 e seguintes).

No divórcio por culpa, compete-lhe verificar a existência de uma culpa, causa

justificativa de divórcio (e eventualmente saber se ocorreu reconciliação ou se o

requerido não cometeu uma falta, causa justificativa de divórcio; art.º 242º e seguintes,

v. supra, nº 179 e seguintes) e organizar os efeitos do divórcio.

Finalmente, em caso de divórcio por alteração definitiva do vínculo conjugal, o

juiz deve verificar a existência de uma cessação da vida em comum de dois anos ou

decidir em relação aos pedidos de divórcio por culpa e alteração, apresentadas a título

principal e reconvencional (art.º 238.º e seguintes do Código Civil; v.supra, nº 192 e

seguintes).

b. As funções complementares

205 Generalidades. No prolongamento natural desta função principal (dissolver ou não

o casamento), o juiz está encarregado de três funções complementares.

206 As medidas durante o processo. Organizar a vida durante o processo de divórcio é

uma necessidade, por vezes absoluta, nomeadamente em casos de violência doméstica:

é preciso assegurar a existência dos cônjuges e dos filhos até ao momento em que a

sentença de divórcio transita em julgado (art.º 254.º).

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- A lista das medidas. A Lei de 26 de Maio de 2004 alongou e especificou a lista

de medidas que o juiz pode tomar a este título. Pode deste modo “nomeadamente”1:

organizar a residência separada2, atribuir a um ou partilhar o gozo da habitação e

mobiliário3, ordenar a devolução de roupa e objectos pessoais, fixar a pensão alimentar

entre cônjuges, conceder uma provisão sobre os direitos na liquidação futura do regime

matrimonial (nomeadamente sobre a parte futura da comunhão4), designar qual dos

cônjuges deve assegurar a liquidação provisória das dívidas5, atribuir a posse ou a

gestão dos bens comuns ou indivisos entre cônjuges (art.º 255.º). As medidas

provisórias relativas aos filhos devem ser tomadas nas condições previstas pelos artigos

371.º e seguintes do Código Civil (art.º 256º; v. infra, nº 554 e seguintes).

Entre as medidas acrescentadas a esta lista pela Lei de 26 de Maio de 2004,

destacam-se duas.

As primeiras dizem respeito à mediação. Em conformidade com o objectivo

geral de desdramatização do processo de divórcio e de pacificação das relações entre

cônjuges, e inspirando-se numa medida introduzida nas relações paternais pela Lei de 4

de Março de 2002 (art.º 373.º-2-10 Código Civil; v.infra, nº 567), o novo artigo 255.º

autoriza o juiz a “propor” uma medida de mediação aos cônjuges (designará o mediador

após ter recolhido os consentimentos). Este artigo permite-lhe até “exigir aos cônjuges

encontrar um mediador familiar”, encarregado, nesse caso, de os informar do objecto e

do andamento da mediação.

As segundas medidas dizem respeito à regulação dos interesses pecuniários dos

cônjuges e à liquidação do regime matrimonial. Antes da Lei de 26 de Maio de 2004, o

Código Civil previa que “ao decretar o divórcio, o juiz de família ordenasse a liquidação 1 A lista é portanto enunciativa e não limitativa. 2 A Lei de 11 de Julho de 1975 previa que o juiz podia “autorizar os cônjuges a residirem

separadamente”. A Lei de 26 de Maio de 2004, fazendo recuar o dever de vida em comum, já não lhe dá

mais que o poder para “decidir sobre as modalidades da residência separada dos cônjuges”. 3 A Lei de 26 de Maio de 2004 impõe especificar o carácter gratuito ou oneroso desta ocupação para

evitar eventuais futuros conflitos. Para além disso permite constatar eventualmente o acordo dos cônjuges

sobre o montante da indemnização de ocupação. 4 Mas apenas se “ a situação a tornar necessária” especifica o texto desde a Lei de 26 de Maio de 2004. 5 A especificação surge da Lei de 26 de Maio de 2004.

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e a partilha dos interesses patrimoniais dos cônjuges e decidisse, caso haja lugar, em

relação aos pedidos de permanência na indivisão ou de atribuição preferencial” (art.º

264.º-1). Deste modo, a liquidação do regime matrimonial apenas ocorre após a

sentença do divórcio, sendo que a determinação judicial dos efeitos patrimoniais do

divórcio (nomeadamente quanto à atribuição e ao montante da eventual prestação

compensatória) não era sempre realizada em conhecimento de causa1. Para além disso, o

contencioso da fase posterior ao divórcio era assim favorecido. O legislador de 2004

pretendeu então que a liquidação dos interesses patrimoniais dos cônjuges fosse

realizada no âmbito do divórcio. Para o efeito, o juiz pode, a título de medidas

provisórias, designar “todo o profissional qualificado” com vista a fazer um inventário

estimativo ou propostas quanto ao regulamento dos interesses pecuniários dos cônjuges,

e designar um notário com vista a elaborar um projecto de liquidação do regime

matrimonial e formação das partes a dividir.

- As modalidades de adopção das medidas. A relação que as medidas provisórias

mantêm com o desacordo conjugal explica que o juiz do divórcio seja o mesmo da fase

anterior ao divórcio, embora consoante modalidades variáveis em função do caso de

divórcio considerado.

A questão não se coloca no divórcio por mútuo consentimento se o juiz

homologar a convenção que os cônjuges lhe apresentaram logo na primeira entrevista

organizada com os cônjuges (art.º 1099.º do CPC): sendo o divórcio então

imediatamente decretado, as medidas provisórias são inúteis. A situação é diferente se o

juiz rejeitar esta homologação e adiar a sua decisão (art.º 1100.º do CPC): nesse caso,

pode homologar as medidas provisórias que os cônjuges acordem adoptar até à data em

que a sentença do divórcio irá transitar em julgado, contudo na condição de “estarem

em conformidade com os interesses do ou dos filhos” (art.º 1100º, par.4 do CPC, art.º

250º-2 Código Civil). A Lei de 26 de Maio de 2004 suprimiu a necessidade do acordo

1 Solução muito surpreendente porque a prestação compensatória dependia do património dos cônjuges

“após a liquidação do regime matrimonial”: antigo artigo 272.º

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dos cônjuges, que a Lei de 11 de Julho de 1975 impunha na matéria (antigo art.º 253º)1:

na ausência de semelhante acordo é o próprio juiz que decidirá as medidas provisórias.

Nos outros divórcios, o princípio é que as medidas provisórias ocorram após a

tentativa de conciliação (art.º 254.º), sendo que a Lei especifica que o juiz toma a sua

decisão “ tendo em consideração os eventuais acordos entre cônjuges” (art.º 254.º do

Código Civil, art.º 1117º do CPC).

Em caso de “ocorrência de um facto novo ”, o juiz pode “extinguir, alterar ou

completar” estas medidas provisórias, e isto “até ao afastamento da jurisdição” (art.º

1118º do CPC). Para além disso é possível interpor um recurso, durante quinze dias,

contra o despacho pelo qual o juiz adopta as medidas provisórias (art.º 1102º, 1119º do

CPC).

- As medidas urgentes. Mantendo uma solução anterior, a Lei de 26 de Maio de

2004 conferiu igualmente ao juiz de família o poder para adoptar “as medidas de

urgência” “logo na altura do pedido inicial” (art.º 257.º). São consideradas

nomeadamente uma autorização de residência separada e eventuais medidas

conservatórias em relação aos bens (tais como a selagem da porta sobre os bens

comuns). Para além disso a Lei remete para o artigo 220.º-1 do Código Civil, o que

confere ao juiz poderes importantes, e nomeadamente o de especificar qual dos

cônjuges continuará a residir na casa de morada da família (v. supra, nº 110).

207 A preparação do processo. O juiz de família é igualmente responsável pela

preparação do processo (art.º 1114º do CPC): observância dos prazos, troca de

documentos, eventuais medidas de instrução…

208 O contencioso da fase posterior ao divórcio. O juiz de família é igualmente

responsável pelo contencioso da fase posterior ao divórcio, independentemente de estar

associado às relações entre ex-cônjuges (prestações financeiras, litígios relativos ao

1 Permanece fortemente aconselhado, como signo do acordo de vontades efectivamente existente entre os

cônjuges.

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arrendamento da casa de morada da família, ao nome…) ou aos filhos (exercício do

poder paternal sobre a pessoa, dever de sustento)1.

2.A decisão do juiz

a. O processo

209 Respeito da intimidade da vida privada. O divórcio pertence à esfera da vida

privada dos cônjuges. A Lei esforça-se portanto por proteger a intimidade da vida

privada destes, e até das suas famílias, contra a publicidade que poderia resultar de uma

instância judicial. Deste modo se explicam: 1º) o carácter secreto dos debates sobre a

causa, as consequências do divórcio e as medidas provisórias (art.º 248.º); 2º) a

liberdade que os cônjuges têm, num divórcio por culpa, em pedir ao juiz para não

mencionar os fundamentos da decisão, as respectivas culpas e queixas, contentando-se

em verificar que há factos que constituem causa de divórcio (art.º 245º-1 do Código

Civil, v.supra, nº 185).

b. A autoridade

210 Autoridade em relação aos cônjuges. Uma decisão que rejeite o pedido de

divórcio não proíbe aos cônjuges de deduzir um novo, fundamentado num outro caso de

divórcio ou até no mesmo caso mas resultando de factos novos e diferentes dos

invocados para apoiar o pedido anterior. Uma decisão que admite o pedido dissolve o

casamento, sendo que, no entanto, os cônjuges dispõem de vias de Direito Comum

contra a decisão2.

211 Autoridade em relação a terceiros. Os limites da coisa julgada deveriam justificar

a relatividade da decisão, independentemente de admitir ou rejeitar o pedido de

divórcio. Mas tal como qualquer decisão judicial proferida no âmbito de uma acção de

estado, a sentença que decreta a dissolução do casamento escapa a esta regra e é

oponível erga omnes, se pelo menos as formalidades exigidas por Lei foram cumpridas

1 As interferências são possíveis com o juiz de menores (em caso de assistência educativa) ou com o juiz

de tutelas (encarregado de controlar a gestão paternal dos bens do menor). 2 O apelo é encerrado contra a decisão que decreta o divórcio por mútuo consentimento (art. 1102.º CPC).

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no registo civil (dupla cota à parte, o registo de casamento e registo de nascimento; art.º

262.º).

C. A apresentação da prova

1. O ónus da prova

212 Papel dos cônjuges, do juiz e de terceiros. Em conformidade com o Direito

Comum da prova (art.º1315.º), compete ao cônjuge que invoca um facto para apoiar o

seu pedido estabelecê-lo: violação imputável, grave ou reiterada dos deveres e

obrigações do casamento que tornam intolerável a subsistência da vida em comum;

separação superior a dois anos… Contudo, uma vez mais em conformidade com o

Direito Comum, estando cada um obrigado a dar a sua colaboração à justiça (art.º 10º),

o juiz poderá exigir de um ou de outro a apresentação de um elemento de prova na sua

posse. Para além disso, com o objectivo de regular do modo mais justo possível os

interesses pecuniários dos cônjuges, o direito esforça-se por esclarecer realmente o juiz

sobre as respectivas fortunas e capacidade financeira dos cônjuges. Para o efeito impõe-

lhes de se comunicarem e comunicarem ao juiz, aos peritos e outras pessoas designadas

pelo juiz no âmbito das medidas provisórias (v. supra, nº206), todos os dados e

documentos úteis para fixar as prestações e pensões e liquidar o regime matrimonial. O

Direito autoriza o juiz a proceder a todas as investigações úteis e proíbe a terceiros –

devedores ou detentores de valores por conta do cônjuge – de lhe opor o segredo

profissional (art.º 259º-3).

2. Os meios de prova

213 Direito Comum e direito especial. A questão dos meios de prova susceptíveis de

serem utilizados num processo de divórcio é delicada.

O direito do divórcio aplica o Direito Comum da prova (liberdade da prova dos

factos jurídicos: art.º 1341º) ao autorizar os cônjuges a provar “por qualquer meio de

prova” os “factos invocados na qualidade de causas de divórcio ou como defesa contra

um pedido” (art.º 259.º). É mesmo explicitamente afirmada a admissibilidade da

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confissão, quando se podia ter receado que semelhante meio de prova permitia ocultar

um divórcio por acordo e seja assim um meio cómodo para escapar às coacções do

divórcio por mútuo consentimento (acordo dos cônjuges sobre os efeitos do divórcio:

art.º 230º, v. supra, nº 173 e seguintes) ou do divórcio consentido (exigência de um

duplo defensor: art.º 253º do Código Civil, v.supra, nº 186 e seguintes)1.

Determinam-se três limites a esta liberdade da prova. Para proteger os

descendentes, que correm o risco de serem implicados em testemunhos arrancados a um

ou ao outro em detrimento da paz familiar, o direito exclui o seu testemunho (art.º 259º

do Código Civil, art.º 205º do CPC). Para além disso, ao generalizar uma solução até

aqui reservada às cartas trocadas entre um cônjuge e um terceiro, a Lei proíbe agora um

cônjuge de apresentar na justiça um “elemento de prova que poderá ter sido obtido

através de violência ou fraude” (art.º 259º-1 do Código Civil). Por fim, a Lei descarta “

as verificações efectuadas por oficial de justiça a pedido de um cônjuge” “caso tenha

havido violação de domicílio ou ataque ilícito à intimidade da vida privada” (art.º 259º-

2)2. No fim de contas, a aplica-se aqui apenas o Direito Comum, sendo que o princípio

de lealdade que torna inadmissíveis as provas obtidas através de processos ilícitos ou

desleais.

Num ponto específico, é preciso mesmo ter em conta um meio de prova no

mínimo original: desde a Lei de 30 de Junho de 2000, os cônjuges devem proceder a

uma declaração de honra em matéria de fixação ou revisão de uma prestação

compensatória; a Lei impõe-lhes então com efeito “uma declaração de honra que

certifica a verdade quanto aos seus recursos, rendimentos, património e condições de

vida” (art.º 272º do Código Civil; art.º 1075º-1 CPC). De eficácia incerta, esta

declaração apresenta várias dificuldades: compete ao juiz convidar as partes a fornecê-

1Porém, o risco é limitado pelo facto do divórcio por mútuo consentimento poder ser decretado

imediatamente, desde a avaliação do pedido inicial pelo juiz e os cônjuges. 2 Comp. Civ. 2º, 3 de Junho de 2004, Dto. Fam, 2004, nº 172, excluindo dos debates o relatório de

vigilância apresentado por um detective privado, por ausência de proporcionalidade entre o ataque

efectuado à vida privada da esposa e a necessidade para o ex-marido provar os factos invocados como

suporte do seu pedido de supressão da prestação compensatória, dado que a esposa “tinha sido espiada,

vigiada e seguida durante vários meses”, o que constituía uma “intromissão arbitrária da vida privada” de

um cônjuge.

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la1; porém, não é obrigado a exigir que uma parte a apresente2 ou mencionar na sentença

que esta foi apresentada3, sendo que esta apresentação não é uma condição de

admissibilidade do pedido de prestação4. Sobretudo, o direito permite ao juiz pedir

outros documentos justificativos (art.º 1075º-2 CPC).

Capítulo 2

Os efeitos do divórcio

214 Abrangência do divórcio. O divórcio descasa os cônjuges. A decisão judicial

produz efeitos pessoais ao alterar um elemento determinante do registo civil, (por

exemplo, há liberdade para contrair uma nova união…) e patrimoniais (por exemplo,

extingue-se a solidariedade conjugal relativamente às dívidas domésticas…)

consideráveis.

Aliás estes efeitos não se produzem apenas entre os cônjuges. Existem também

em relação a terceiros e aos filhos do casal. Antigamente o destino destes últimos era

regulado por disposições específicas do direito do divórcio (art.º 286º e seguintes,

redacção da Lei de 11 de Julho de 1975). A Lei de 4 de Março de 2002 revogou estas

disposições específicas: as questões relativas aos filhos (exercício do poder paternal,

residência, contribuição para o seu sustento) são agora regulados pelas disposições do

capítulo I do título IX do livro Iº do Código Civil, isto é pelos artigos 371º e seguintes

relativos ao poder paternal (v.infra, nº 529 e seguintes) e de modo mais específico pelos

diplomas que regulamentam a hipótese da “separação” dos pais (art.º 373º-2, v.infra,

nº554 e seguintes).

215 Efeito temporal. A determinação do momento da dissolução do casamento é

essencial.

- Em relação a terceiros. Em relação a terceiros a sentença de divórcio apenas

produzirá os seus efeitos mais tarde. Indispensável, uma vez que se trata de uma

1 Civ. 2º, 28 de Maço de 2002, Dto fam. 2002, 7. 2 Civ. 1º, 2 de Março de 2004, Dto fam. 2004, 12 3 Civ. 1º, 8 de Julho de 2002, Dto fam. 2003, 119 4 Civ. 1º, 11 de Janeiro de 2005, Dto fam. 2005, 55

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sentença que altera o estado das pessoas, a oponibilidade erga omnes só é admissível

com a condição de preservar a segurança jurídica: a sentença deverá portanto ser

publicada à margem dos actos do registo civil (art.º 262.º)1, só será oponível a terceiros

a partir desta cota à margem.

- Nas relações entre cônjuges. Nas relações entre cônjuges, esta data varia

consoante se o divórcio for decretado por mútuo consentimento ou por uma outra causa,

e consoante a questão for patrimonial ou pessoal (art.º 260.º e seguintes Código Civil;

v.infra, nº 219 e seguintes, 222 e seguintes).

216 Princípios fundamentais. O espírito de apaziguamento que tinha inspirado a Lei de

11 de Julho de 1975 explicava os princípios directores que presidiam à determinação

material dos efeitos do divórcio. Primeiro a Lei esforça-se por separar a causa

justificativa de divórcio dos efeitos deste, acreditando-se que a sentença da dissolução

suscitaria menos contencioso se as consequências desta dissolução não dependessem

das culpas. Para além disso esta Lei quis concentrar a regulação dos efeitos aquando do

processo inicial para evitar o contencioso da fase posterior ao divórcio, que reabre as

feridas sempre dolorosas2. Por fim, favoreceu os acordos entre cônjuges, mais propícios

à paz durante o processo e menos sujeitos a contestação posterior do que as decisões

impostas pelo juiz. Porém, estes três princípios conhecem diversas restrições: alguns

efeitos do divórcio dependiam ainda, em alguns casos, da imputabilidade do divórcio,

tendo o legislador deste modo pretendido preservar a força do compromisso

matrimonial. A prestação compensatória, em princípio inalienável, podia ser

excepcionalmente revista, se uma ausência de revisão originava consequências

excessivas para um dos cônjuges. Por fim, o favorecimento dos acordos encontrava o

seu limite na determinação legal imperativa de certos efeitos.

Tendo em conta a incerteza económica, o aumento da esperança média de vida e

a multiplicação dos divórcios, a Lei de 30 de Junho de 2000 pretendeu reforçar a

1 Deve-se acrescentar a isto uma eventual publicidade no registo do comércio e das sociedades se um dos

cônjuges for comerciante: art. 12-2º Decreto nº 84-406 de 30 de Maio de 1984. 2 A prática do divórcio demonstrou como, num período de crise económica, esta vontade podia ser

ilusória.

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concentração no tempo dos efeitos do divórcio, ao tornar mais excepcional a atribuição

de uma renda vitalícia, flexibilizando muito a revisão desta.

A mesma preocupação em separar a causa dos efeitos e em concentrar os efeitos

do divórcio animou o legislador de 2004, que para além disso se mostrou menos

preocupado com as eventuais interacções entre o direito do divórcio e o direito do

casamento. A Lei de 26 de Maio de 2004 acentuou a neutralização da causa justificativa

de divórcio ao associar quase os mesmos efeitos a todos os divórcios,

independentemente da causa da sentença. A política de concentração dos efeitos do

divórcio foi mantida, com a reserva importante de que a Lei pretendeu de igual modo

preservar o interesse dos eventuais herdeiros do devedor da prestação compensatória.

No que toca aos acordos entre cônjuges, estes foram ainda mais favorecidos.

217 Plano. Materialmente, os efeitos do divórcio variam agora consoante se trate do

divórcio por mútuo consentimento (2) ou de outros casos de divórcio (1), sendo que o

direito reserva naturalmente ao primeiro um tratamento completamente particular

devido à especificidade desse caso que se baseia na existência de um acordo entre

cônjuges sobre o princípio e sobre os efeitos do divórcio.

1. Relativamente aos casos de divórcio que não por mútuo consentimento.

218 Generalidades. O divórcio produz os seus efeitos na ordem conjugal ao descasar os

cônjuges. A dissolução do casamento é quase na totalidade em matéria pessoal: os

cônjuges voltam a ser solteiros. Já em matéria patrimonial, as relações entre cônjuges

podem perdurar: extinguem-se os efeitos patrimoniais do casamento, mas o divórcio

produz efeitos particulares.

A. A desunião pessoal

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219 Abrangência temporal relativamente aos cônjuges. Na ordem pessoal, o

casamento é dissolvido na data em que a sentença de divórcio transita em julgado (art.º

260º), tendo as vias de recurso sido rejeitadas ou os prazos para os exercer expirados. É

nesse dia que os cônjuges são tratados novamente como solteiros na ordem pessoal.

Antigamente este princípio era excluído, no direito de casar novamente, devido à

existência do prazo dito “internupcial” previsto pelo artigo 228º do Código Civil: a

mulher divorciada só recuperava a liberdade para contrair novo casamento após a

expiração de um prazo de trezentos dias (art.º 261º) cuja finalidade não era impor um

prazo de conveniência entre os cônjuges mas evitar a confusão das partes, isto é o risco

de uma dupla atribuição de paternidade à criança. Este prazo extinguiu-se com a Lei de

26 de Maio de 2004 (v. supra, nº 85).

220 Extinção dos efeitos pessoais do casamento. O princípio é que o divórcio dissolve

a união das pessoas. Portanto os deveres pessoais que a Lei institui entre os cônjuges

(v.supra, nº 107 e seguintes) extinguem-se: já não se devem mais respeito, nem

fidelidade, nem assistência, nem comunhão de vida. Cada um reencontra a faculdade

para voltar a casar. Muito logicamente, a Lei impõe uma nova celebração da união se os

ex-cônjuges pretendem casar novamente (art.º 263º). Por fim, esta dissolução do vínculo

pessoal acarreta para os cônjuges a perda do eventual uso do apelido do seu cônjuge

(art.º 264º): concretamente, a mulher (uma vez que é ela que geralmente usa o apelido

do seu cônjuge) retoma o seu nome de solteira.

221 Uso do apelido do ex-cônjuge. Contudo, este princípio não é absoluto. A Lei de

1975 tinha previsto, em três casos, a possibilidade da mulher conservar o uso do apelido

do seu marido. A Lei de 26 de Maio de 2004 previu que “um dos cônjuges pode,

contudo, conservar o uso do apelido do outro” mas só manteve dois casos (art.º 264.º)1.

Primeiro, tal é o caso em que o ex-cônjuge dá o seu acordo. Também é o caso

em que o juiz assim o decida, com a condição de que o cônjuge em causa: “justifique

1 Também era o caso, antes da Lei de 26 de Maio de 2004, no divórcio por ruptura de vida em comum,

quando a mulher era a parte demandada (antigo artigo 264.º, par.2).

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um interesse particular para si ou para os filhos”, o que avalia soberanamente o juiz ao

situar-se no momento em que o pedido foi deduzido. Acontece deste modo

nomeadamente quando um dos cônjuges se faz conhecer na sua actividade profissional,

artística… através do apelido do seu ex-cônjuge.

Nessas duas hipóteses, o cônjuge, sem ser casado, poderá usar um apelido

diferente do que a Lei lhe atribuiu aquando do seu nascimento. Será que esta faculdade

é discricionária e permanente? Parece natural considerar que o abuso do uso do apelido

do ex-cônjuge justifica a privação da autorização, seja esta conjugal1 ou judicial. Da

mesma maneira, parece natural a caducidade da autorização em caso de novo

casamento, pelo menos quando esta autorização emanava do cônjuge2. Já não é certo

que o novo casamento faça extinguir a autorização judicial se for provado que o cônjuge

ou os filhos têm um interesse particular no uso do apelido do ex-cônjuge. De modo

inverso, parece lógico considerar que a decisão judicial apenas vale na medida em que o

interesse que a fundamentou existe e que a extinção deste interesse (da mulher ou dos

filhos) justifique o cancelamento da autorização conferida.

B. A desunião patrimonial

222 Data da dissolução do casamento. Na ordem patrimonial, a data de dissolução do

casamento nas relações entre cônjuges é diferente da que o direito fixa em matéria

pessoal.

A Lei de 11 de Julho de 1975 tinha fixado a data de citação (antigo artigo 262.º-

1, par. 1º). Mas esta data não podia ser mantida pela Lei de 26 de Maio de 2004, visto

que a citação de divórcio já não ocorre logo no início do processo, mas unicamente após 1 Paris, 9 de Março de 1979, D 1979. 471. 2 TGI Paris, 10 de Fevereiro de 1981, D 1981. 443, JCP 1981. II. 19624.

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o despacho de não conciliação. A Lei de 26 de Maio de 2004 alterou então as datas a ter

em conta. Noutros divórcios que não por mútuo consentimento (portanto em caso de

divórcio por culpa, alteração definitiva do vínculo conjugal, ou por pedido aceite), é a

data do despacho de não conciliação que conta (art.º 262º-1). É portanto logo nesse dia

que o regime matrimonial é dissolvido, mesmo que para o efeito a comunhão seja

substituída por uma indivisão pós comunitária caso os cônjuges estivessem casados num

regime de comunhão. É portanto nesse dia que será determinada a massa dos bens

comuns que os cônjuges deverão partilhar após terem pago os credores comuns.

Mas esta data pode ser excluída pelo juiz. Com efeito, pode acontecer que a vida em

comum tenha sido extinta antes do despacho de não conciliação, ou até mesmo muito

antes do recurso ao órgão jurisdicional por um cônjuge.

Fazer com que o divórcio produza efeitos apenas a contar do despacho de não

conciliação relativamente aos bens permitiria pois ao cônjuge que abandonou a casa de

morada da família beneficiar do eventual aumento de comunhão devido ao trabalho do

cônjuge abandonado. Por ser chocante, esta solução foi excluída pela Lei, que autoriza o

juiz a recuar à data de dissolução do casamento (e portanto a do regime matrimonial) “

até à data em que deixaram de coabitar e colaborar”. Contudo, o artigo 262º-1 enquadra

este poder.

Antes da reforma de 26 de Maio de 2004, era preciso que um dos cônjuges

fizesse o pedido e não podia ser “aquele sobre o qual recaem a título principal as culpas

da separação” (art.º 262º-1, par. 2 redacção da Lei 23 de Dezembro de 1985)1. Em

conformidade com o princípio de neutralização da imputabilidade do divórcio na fase

dos efeitos deste último, a Lei de 26 de Maio de 2004 extinguiu esta limitação: cada um

dos cônjuges pode hoje deduzir semelhante pedido (art.º 262º-1, par.2).

A Lei de 26 de Maio de 2004 limita para além disso a possibilidade de

transferência da data de dissolução do regime matrimonial ao exigir que o pedido seja

deduzido aquando do processo de divórcio: é a consequência lógica da preocupação em

concentrar os efeitos do divórcio no dia da sentença e da vontade em permitir ao juiz

1 A prescrição do direito de pedir semelhante adiantamento de prazo era inicialmente válida contra o

cônjuge cuja culpa estava na origem da cessação de coabitação ou de colaboração.

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tomar uma decisão esclarecida, e nomeadamente decidir sobre a prestação

compensatória com total conhecimento de causa quanto à dissolução do regime.

Por fim, a Lei especifica agora que o gozo da habitação conjugal por um único

cônjuge conserva um carácter gratuito até ao despacho de não conciliação, salvo decisão

contrária do juiz.

223 Nulidade dos actos fraudulentos realizados após o pedido inicial. Para além

disso, a Lei protege cada cônjuge ao autorizá-lo a declarar nulo toda a obrigação

contraída pelo outro a encargo da comunhão e toda a alienação de bens comuns feita

pelo outro, mesmo que o acto tenha sido realizado no limite dos poderes objectivos que

o regime matrimonial confere ao seu autor, desde que tenha sido realizado

posteriormente ao pedido inicial de divórcio e fraudulentamente aos direitos do cônjuge

(art.º 262º-2). A jurisprudência estipulou que o acto permanecia regular em relação ao

terceiro de boa fé, que estava somente privado do direito de o opor ao cônjuge inocente.

224 Abrangência da dissolução do casamento. Na ordem patrimonial, a contar dessa

data, o casamento cessa de produzir efeitos. Diversas questões patrimoniais devem ser

reguladas no momento do divórcio.

O divórcio, ao dissolver o casamento, extingue a união patrimonial no futuro. Os

cônjuges voltam a ser então solteiros: estão dispensados dos deveres patrimoniais dos

cônjuges (dever de cooperação e contribuição com os encargos da vida familiar: art.º

212º e 214º); o seu regime patrimonial é dissolvido; as suas vocações sucessórias legais

recíprocas extinguem-se.

Mas este princípio conhece diversos limites: é impossível extinguir

efectivamente os anos passados, tendo em conta as repercussões que estes terão para o

futuro. Nesta perspectiva, o divórcio não leva apenas a um não casamento – o regresso

ao estado de solteiro – mas a um estatuto particular – o estatuto de ex-cônjuge -. Este

particularismo pode residir na concessão de contrato de arrendamento da casa de

morada da família. Sobretudo, um cônjuge poderá ser condenando a pagar ao outro uma

pensão ou um capital: a extinção do dever de cooperação entre cônjuges conhece com

efeito um limite (art.º 270.º), que repousa no eventual pagamento de uma prestação

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compensatória. Além disso, eventualmente, será necessário decidir sobre o passado

matrimonial.

1.A liquidação do regime matrimonial

225 Favorável aos acordos entre cônjuges, a Lei de 26 de Maio de 2004 estendeu a todos

os regimes matrimoniais uma regra que a Lei de 11 de Julho de 1975 apenas tinha

previsto para benefício dos cônjuges casados sob o regime da comunhão de adquiridos

(antigo art.º 1450º): o artigo 265º-2 prevê agora que “os cônjuges podem, durante o

processo de divórcio, celebrar todas as convenções para a liquidação e a partilha do seu

regime matrimonial”, sendo que a Lei impõe apenas a forma de escritura notarial

quando a liquidação recai em bens sujeitos a publicidade.

Mas a questão não pode ser sempre resolvida amigavelmente. Ora, é importante

que a dissolução do regime matrimonial se torne efectiva o mais depressa possível, a

fim de evitar o contencioso da fase posterior ao divórcio. Para o efeito, a Lei de 26 de

Maio de 2004 trouxe consigo várias alterações.

Primeiro o juiz pode, a título de medidas provisórias, designar no despacho de

não conciliação um profissional qualificado para fazer um inventário estimativo e

elaborar propostas de liquidação dos interesses pecuniários dos cônjuges, bem como um

notário com vista a elaborar um projecto de liquidação do regime matrimonial e de

formação dos quinhões para partilha (art.º 255.º do Código Civil; v.supra, nº 206).

Quando decretar um divórcio o juiz deve logo ordenar a liquidação e a partilha

dos interesses patrimoniais dos cônjuges (antigo art.º 264º-1; art.º 267º): a Lei privilegia

a hipótese de uma liquidação convencional entre os cônjuges; mas na sua ausência,

compete ao juiz decidir. Confere ao juiz a competência para decidir sobre os pedidos de

permanência na indivisão ou atribuição preferencial. Desde a Lei de 26 de Maio de

2004, o juiz tem autorização para conceder a um cônjuge (ou aos dois) um adiantamento

sobre a sua parte da comunhão ou de bens indivisos e especifica que ele decide sobre

“os desacordos persistentes entre os cônjuges”, a pedido de um ou do outro, se pelo

menos “o projecto de liquidação…lavrado pelo notário (designado aquando da

audiência de conciliação) conter informações suficientes”.

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Finalmente para garantir a realização efectiva da partilha, a Lei impõe agora ao

notário, se as operações de liquidação e partilha não estiverem completos passados um

ano depois da sentença de divórcio ter transitado em julgado, “ apresentar ao tribunal

uma acta de dificuldades retomando as respectivas declarações das partes” (art.º 267.º-

1). O tribunal pode então conceder um prazo suplementar de seis meses no máximo.

Aquando da expiração deste prazo, se as operações ainda não estiverem concluídas, o

notário informa o tribunal, estabelecendo, eventualmente, uma nova acta. O tribunal

decide então sobre as contestações que subsistem entre as partes e remete-os para o

notário com vista ao estabelecimento do estado de liquidação.

2. O destino das doações e benefícios matrimoniais

226 Doações e benefícios matrimoniais. Antigamente o destino das doações e

benefícios matrimoniais dependia da imputabilidade da dissolução do casamento1. A

Lei de 26 de Maio de 2004 distingue agora consoante a natureza da disposição ou do

benefício matrimonial (art.º 265º)2.

- Mantêm-se os benefícios matrimoniais que começam a produzir efeitos na constância

do casamento e as doações de bens actuais, independentemente da sua forma, sem que

o divórcio tenha sobre este a mínima incidência.

- Já os benefícios matrimoniais que apenas produzem efeito a partir da dissolução do

regime matrimonial ou no falecimento de um cônjuge, assim como as disposições por

morte, são revogados de pleno direito. Pouco importa que tenham sido acordados por

convenção antenupcial ou durante a união. Esta revogação pode ser excluída por

“vontade contrária” do autor do acto. Para evitar discussões suscitadas pelo direito

anterior, o diploma estabelece, desde a Lei de 26 de Maio de 2004, que esta vontade “é

1 O cônjuge contra o qual se decretava o divórcio (o culpado no divórcio por culpa, requerente no

divórcio por ruptura de vida em comum) perdia-os de pleno direito enquanto o seu cônjuge os conservava

(antigo artigo 267 e 269). Em caso de divórcio decretado por culpas partilhadas, isto é, em caso de

divórcio por culpas recíprocas (antigo artigo 267-1) ou por pedido aceite (art. 268-1), cada um dos

cônjuges era livre para os revogar ou não. 2 As causas de revogação das doações admitidas pelo Direito Comum poderão igualmente aplicar-se (mas

cada um sabe que são estritamente definidas e não permitirão então, muitas vezes, renunciar a disposição,

art.º 953.º).

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constatada pelo juiz no momento da decisão do divórcio” e, sobretudo, que “torna

irrevogável o beneficio ou a disposição mantida”.

- A recuperação dos contributos feitos pelos cônjuges na comunhão pode todavia ser

estipulada na convenção antenupcial: foi a Lei de 23 de Junho de 2006 adicionou este

limite.

3. O destino dos direitos legais ou convencionais

227 Imputabilidade do divórcio. O destino dos direitos que a Lei (direitos à pensão de

sobrevivência de reforma) e convenções celebradas por um cônjuge com um terceiro

(contratos de seguros de vida) atribuem ao cônjuge dependia uma vez mais, ainda que

em condições um pouco diferentes, da imputabilidade da dissolução do vínculo

matrimonial (art.º 265.º, par.2 e 3)1. A Lei de 26 de Maio de 2004 veio novamente

neutralizar a imputabilidade do divórcio: o divórcio não tem incidência sobre os direitos

legais e convencionais (art.º 265.º-1); estes mantêm-se portanto sem condição nem

limite.

4. A atribuição de indemnização por perdas e danos

228 Direito especial do divórcio e danos causados pela dissolução do casamento. A

reparação dos danos que a dissolução do casamento origina2 estava limitada no direito

resultante da Lei de 11 de Julho de 1975: o diploma apenas previa a atribuição de perdas

e danos ao cônjuge em benefício do qual um divórcio por culpa tenha sido decretado

(art.º 266º); e o Tribunal de Cassação tinha-o julgado inaplicável no divórcio por

1 O cônjuge contra o qual o divórcio era decretado, isto é aquele com culpas exclusivas pelo qual o

divórcio tinha sido decretado ou aquele que tinha pedido e obtido o divórcio por ruptura da vida em

comum perdia estes direitos. Já se as culpas fossem partilhadas (divórcio por pedido aceite ou divórcio

por culpa decretada com culpas à responsabilidade de cada um) conservavam-se estes direitos. 2 A prestação compensatória atenua provavelmente as consequências patrimoniais do divórcio ao igualar

as condições de vida depois do divórcio (art. 270.º Código Civil; v.infra, nº 230 s.). Mas não suprime todo

o dano material (constata-se mesmo uma perda de 30% do poder de compra dos cônjuges depois do

divórcio). Para além disso não tem efeitos no dano moral. Sem contar que está subordinada à existência

de recursos do devedor, o que não é o caso das indemnizações por perdas e danos.

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ruptura da vida em comum1. Invertendo esta jurisprudência discutível, a Lei de 26 de

Maio de 2004 previu que a reparação pudesse ser pedida não apenas quando o divórcio

tivesse sido decretado por culpa exclusiva do outro cônjuge mas igualmente quando a

vítima fosse a parte requerida de um divórcio decretado por alteração definitiva do

vínculo conjugal e que a própria não tivesse deduzido nenhum pedido de divórcio (art.º

266.º).

Pretendendo bloquear um eventual contencioso extemporâneo, em conformidade

com a política de concentração dos efeitos do divórcio, a Lei de 11 de Julho de 1975

tinha previsto que o pedido devesse ser deduzido aquando do processo de divórcio. A

Lei de 26 de Maio de 2004 retomou a mesma regra (art.º 266, par.2).

Esta Lei trouxe também um limite suplementar: o diploma estipula que apenas

“as consequências de uma particular gravidade” sofridas devido à dissolução do

casamento podem ser ressarcidas. Esta condição, soberanamente avaliada pelos juízes

de mérito, está destinada a proibir que um recurso muito sistemático ao direito da

responsabilidade civil agudize os conflitos entre cônjuges e aniquile deste modo o

esforço de pacificação associado à neutralização da imputabilidade da ruptura. Mas

daqui resulta uma derrogação ao Direito Comum da responsabilidade, derrogação que se

traduz num recuo da responsabilidade, o que é contrária à tendência do direito

contemporâneo, e conduz até a uma impunidade discutível na ordem individual (pouco

justo para a vítima, privada de indemnização, e excessivamente indulgente para o seu

cônjuge, que no entanto violou os deveres de casamento) e perigoso para a instituição

matrimonial.

Já a Lei tem o cuidado de autorizar explicitamente o juiz a optar por uma

reparação em espécie (art.º 266º, par.3). Questiona-se sobre que medidas “em espécie”

seriam assim possíveis. Será que a concessão de arrendamento da casa de morada da

família poderia remediar o dano causado pela necessária partida da casa que pertence ao

1 Civ. 2º, 23 de Janeiro de 1980, D 1980. 281, JCP 1980. II. 19369, Gaz. Pal. 1980.1.355; 30 de

Dezembro de 1983, Gaz. Pal. 1984.2. Panor. 185. Contudo, a Lei considerava este divórcio como sendo

“decretado contra” o requerente (da mesma maneira que um divórcio por culpas exclusivas era

considerado “decretado contra” o cônjuge culpado, art. 265.º), o que autorizava uma interpretação

analógica do texto.

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outro? Será que se pode autorizar o uso do apelido do ex-cônjuge com o objectivo de

suprimir o dano moral sofrido pelo cônjuge vítima por ter de usar um apelido diferente

dos filhos?

229 Direito Comum. A Lei de 11 de Julho de 1975 tinha assim apenas considerado a

reparação do dano causado pela dissolução do casamento. A jurisprudência tinha

portanto considerado que o recurso ao Direito Comum da responsabilidade civil

permaneceria possível (art.º 1382º e seguintes) caso se tratasse de reparar um dano

distinto do resultante da dissolução do casamento. Esta jurisprudência não foi afectada

pela reforma de 26 de Maio de 2004: um outro eventual dano poderá então ser reparado

com o fundamento do Direito Comum (é o caso do dano resultante de uma culpa

conjugal como o adultério); a solução é lamentável, tendo em conta a política de

concentração do divórcio, na medida em que a acção de Direito Comum pode ser

iniciada sem consideração de tempo, e mesmo após o divórcio.

5.A prestação compensatória

230 Generalidades. A prestação compensatória é uma instituição original criada pela

Lei de 1975 que pretendia romper com a antiga pensão alimentar, fonte de um

inesgotável contencioso. Tira o nome da sua natureza jurídica: não é execução do dever

de cooperação mas está “destinada a compensar, tanto quanto possível, a disparidade

que a ruptura do casamento origina nas respectivas condições de vida” (art.º 270º). É

portanto caracterizada pelo facto de ter um carácter indemnizador (compensa a extinção

da contribuição com os encargos da vida familiar, que igualava os níveis de vida

v.supra, nº 125) e não alimentar. Desta natureza jurídica resulta naturalmente que é em

princípio separada da causa justificativa de divórcio (o dano é idêntico

independentemente da responsabilidade da ruptura) e fixa (sendo que o dano, não deve

em princípio evoluir, deveria ser definitivamente avaliado e decidido no dia da sentença

de divórcio). Mas o legislador não quis ir até ao fim desta política de apaziguamento: a

prestação não está totalmente separada da causa justificativa de divórcio e depende em

certa medida da causa de dissolução do laço. Para além do seu aspecto indemnizador

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tem também certos aspectos alimentares; em princípio fixa, pode ser excepcionalmente

revista.

Deu-se uma primeira reforma com a Lei de 30 de Junho de 2000. Tratou-se de

limitar no tempo a prestação compensatória e de proteger os herdeiros do devedor

contra um encargo, que poderia até revelar-se pesada. Destes diplomas resultou uma

espécie de fragmentação da prestação compensatória em duas instituições: a prestação

compensatória sob a forma de capital que conserva a sua função compensatória e a

prestação compensatória sob a forma de renda vitalícia, que se aproxima mais da

obrigação alimentar.

A Lei de 26 de Maio de 2004 trouxe novas alterações. Permaneceram os

princípios fundamentais: a função da prestação compensatória, as suas modalidades, o

seu carácter fixo... As principais alterações afectam o destino da prestação após

falecimento do devedor: o efeito dissolvente do divórcio é acentuado, a abrangência

familiar do vínculo conjugal reduzido e a ambição temporal do casamento limitada.

Várias disposições determinaram a aplicação da nova Lei no tempo. As

disposições transitórias da Lei de 30 de Junho de 2000 foram primeiro revogadas. A

aplicação das novas disposições às rendas atribuídas anteriormente foi em seguida

especificada (art.º 25º, VI e VII e VIII e IX e X), quer se trate das questões de extinção,

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alteração ou suspensão das rendas vitalícias1 e temporárias2, ou do estatuto sucessório

da prestação3.

a. Atribuição

231 A atribuição de uma prestação compensatória depende de diversas condições.

- Actualmente não é dependente do caso de divórcio decretado. A Lei de 11 de

Julho de 1975 tinha previsto a permanência integral do dever de cooperação a encargos

do requerente no divórcio por ruptura de vida em comum: “o cônjuge que tomou a

iniciativa do divórcio permanece inteiramente obrigado ao dever de cooperação” (art.º

270º e 281º)4. A jurisprudência tinha deduzido a impossibilidade de atribuir uma

1 As rendas podem ser revistas, suspensas, extintas nas condições habituais (em caso de alteração

importante das necessidades e recursos das partes – art. 276-3: par.2) ou num caso particular (a pedido do

devedor ou dos herdeiros quando o statu quo confere ao credor uma vantagem excessiva relativamente às

condições modernas de atribuição da renda vitalícia, fixadas pelo artigo 276-1); podem ser transformadas

em capital, a pedido do devedor (ou do credor se este provar que a substituição é possível pelo facto da

alteração da situação do devedor); o juiz deve justificar a recusa (par.3). 2 As rendas podem ser revistas, suspensas ou extintas em caso de alteração importante das necessidades e

recursos das partes (sem que seja possível qualquer acrescento de duração ou de montante). Podem ser

objecto de um pedido de transformação em capital, mesmo parcial, a pedido do devedor ou dos herdeiros

(ou do credor se uma alteração da situação do devedor assim o permitir). A Lei prevê mesmo a sua

aplicação nos processos em curso desde que não exista uma decisão a transitar em força de coisa julgada. 3 As regras relativas aos herdeiros (280 à 280-2) são aplicáveis salvo se uma sucessão aberta se a partilha

definitiva for realizada. Quanto à dedução das pensões de sobrevivência organizada pela Lei de 3 de

Junho de 2000 (276-2), ela pode ser decidida em justiça apesar da morte do devedor acidental antes da

entrada em vigor da referida Lei. 4 Manifestação principal da natureza “divórcio a encargo” deste divórcio, o dever de cooperação

executava-se geralmente na forma de uma pensão alimentar, determinada consoante os recursos e

necessidades de cada um dos cônjuges e variando segundo os mesmos critérios (antigo artigo 282.º),

transmissível passivamente (antigo artigo 284.º) e cessando de ser devida, seja de pleno direito (em caso

de novo casamento do credor) seja por decisão judicial (em caso de concubinato notória, antigo artigo

283.º). Podia também executar-se, no todo ou parte, pela atribuição de um capital “ se a consistência dos

bens do cônjuge devedor a isso se prestava”. Esta solução estava sujeita à avaliação soberana dos juízes

de mérito. Apresentava a vantagem evidente de cortar definitivamente as relações entre ex-cônjuges e de

evitar deste modo uma ocasião de discórdia. Sujeita às regras aplicáveis à prestação compensatória

quando esta revestia a forma de um capital, omitia-se esta modalidade de execução do dever de

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prestação compensatória neste tipo de divórcio1. A substituição do divórcio por ruptura

de vida em comum pela alteração definitiva do vínculo conjugal e a banalização deste

último foi traduzida pela revogação destas duas regras. Agora, é em todos os casos que

“ o divórcio põe fim ao dever de cooperação entre cônjuges” (art.º 270º, par. 1º); e é

igualmente em todos os casos que um dos cônjuges pode ser obrigado a pagar ao outro

uma prestação compensatória (art.º 270º, par.2).

- A atribuição de uma prestação compensatória supõe – é a condição de fundo

essencial – que a ruptura do casamento origine uma disparidade nas respectivas

condições de vida dos cônjuges (art.º 270º). Esta condição é soberanamente avaliada

pelos juízes de mérito. A função da prestação, justamente dita, “compensatória”, é assim

de reequilibrar, “tanto quanto possível” especifica o diploma, situações patrimoniais que

poderiam revelar-se muito desiguais após um casamento que terá determinado as

escolhas pessoais e profissionais de cada um e pesa assim sobre o futuro.

Concretamente, trata-se sobretudo de evitar que a responsabilidade doméstica num

casamento que repousa muitas vezes sobre a mulher, conferindo-lhe uma situação

profissional mais precária ou menos confortável, não a prejudique após a dissolução do

casamento. Ainda hoje, muitas vezes, depois de um divórcio, homem e mulher não

ficam em situação de igualdade a nível profissional.

- Já a atribuição de uma prestação compensatória não está em princípio

dependente dos eventuais erros na dissolução do casamento.

Com esperanças de que haveria menos discussão em torno da culpa se o

reconhecimento judicial desta culpa tivesse apenas poucos efeitos sobre a organização

da fase posterior ao divórcio, a Lei de 11 de Julho de 1975 tinha separado a atribuição

de uma prestação compensatória da imputação de culpas entre cônjuges. Mas, para ter

em conta as aspirações dos Franceses, que rejeitavam a ideia de que um cônjuge

exclusivamente culpado pudesse deste modo beneficiar do auxílio financeiro do seu ex-

cônjuge inocente, a Lei tinha instituído um limite: “ o cônjuge com culpas exclusivas

cooperação um ponto essencial, o seu carácter passível de revisão: “caso este capital se torne (tornasse)

insuficiente para cobrir as necessidades do cônjuge credor, este pode (podia) pedir um complemento na

forma de pensão alimentar” (antigo artigo 285.º, par.2). 1 Civ. 2º, 26 de Abril de 1990, D 1991.126, Defr, 1990. 946, RTD civ. 1991. 305.

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pela sentença do divórcio não tem direito a qualquer prestação compensatória” (antigo

artigo 280º-1, par. 1º). Mas este princípio estava limitado pela faculdade de lhe atribuir

“ uma indemnização a título excepcional, se, tendo em conta a duração da vida em

comum e a colaboração trazida na profissão do outro cônjuge parecesse manifestamente

contrária à equidade recusar-lhe qualquer prestação pecuniária a seguir ao divórcio”

(art.º 280º-1, par.2)1.

A Lei de 26 de Maio de 2004 acentuou a neutralização dos erros na atribuição da

prestação compensatória ao restringir o limite antigamente previsto. O artigo 270º,

parágrafo 3, prevê agora: “todavia, o juiz pode recusar conceder semelhante prestação

se a equidade o ditar, quer seja em consideração dos critérios previstos no artigo 271º,

quer seja quando o divórcio é decretado por culpa exclusiva do cônjuge que pede o

benefício desta prestação, atendendo às circunstâncias particulares da ruptura”. A

primeira hipótese permite ao juiz considerar os critérios que determinam em princípio o

montante da prestação para excluir a sua atribuição: duração do casamento, idade e

saúde dos cônjuges, qualificação e situação profissionais, consequências das escolhas

que cada um fez durante a vida em comum para educar os filhos (e o tempo que ainda

falta dedicar-lhes) ou para favorecer a carreira do cônjuge, respectivo património,

direitos existentes e previsíveis, respectiva situação em matéria de pensão de reforma. A

segunda inscreve-se na lógica do direito anterior: a prestação compensatória é rejeitada

a título de sanção do cônjuge exclusivamente culpado. Mas a perda de direitos já não

está mais automaticamente associada à atribuição exclusiva das culpas: uma segunda

condição é exigida por Lei, que encarrega o juiz de decidir “ em consideração para com

as circunstâncias particulares da ruptura”.

- Para além disso só pode ser atribuída aquando da decisão judicial que decreta

o divórcio. Baseando-se no carácter fixo da prestação compensatória (v infra nº233 e

seguintes), a jurisprudência tem com efeito ajuizado que após a decisão de divórcio não

se podia mover uma nova acção para obter uma prestação compensatória. Os perigos de

1 Nova manifestação do poder moderador do juiz, esta indemnização excepcional era da competência dos

poderes soberanos dos juízes de mérito, tanto no princípio da sua atribuição como nas modalidades e

montante. O Tribunal de Cassação recusou subordiná-la ao regime da acção de in rem verso: Civ. 2º, 20

de Março de 1989, D 1989.582.

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semelhante solução explicam a razão porque o Tribunal tenha permitido aos juízes

incentivar as observações das partes sobre a questão em caso de silêncio no pedido

inicial sobre a atribuição de semelhante prestação. A solução é actualmente protectora:

quando uma parte apenas pede o pagamento de uma prestação alimentar ou de uma

contribuição com os encargos da vida familiar, o juiz não pode decretar o divórcio “sem

ter convidado as partes a exprimirem-se sobre o pagamento de uma prestação

compensatória” (art.º 1076º-1 CPC).

Estas condições de atribuição comprovam: 1º) uma concepção objectiva da

solidariedade patrimonial associada ao casamento, uma vez que apenas importa em

principio a disparidade dos patrimónios dos cônjuges após o divórcio; 2º) um declínio

da ideia de responsabilidade individual no divórcio já que pouco importa a

imputabilidade da dissolução do casamento.

b. Montante

232 Compete ao juiz encarregado de decretar o divórcio fixar o montante desta

prestação, em conformidade com as prescrições legais que a modelam segundo as

“necessidades” do credor e os “recursos” do devedor, “tendo em conta a situação do

momento do divórcio e a evolução desta num futuro previsível” (art.º 271º). Uma

semelhante avaliação judicial das necessidades e recursos futuros dos cônjuges é difícil,

sobretudo em período de crise económica. Contudo, esta função de previsão é essencial

devido ao carácter fixo da prestação (v. infra, nº233 e seguintes).

O Código Civil confere, a título de exemplo, uma série de elementos a ter em

conta: critérios pessoais e familiares (a duração do casamento, a idade e o estado de

saúde dos cônjuges, o tempo dedicado ou a dedicação à educação dos filhos),

profissionais (qualificações, situação profissional, escolhas profissionais realizadas para

favorecer a carreira do cônjuge) bem como patrimoniais (o património estimado ou

previsível, tanto em capital como em rendimentos, após liquidação do regime

matrimonial, os direitos existentes e previsíveis, a respectiva situação em matéria de

pensão de reforma).

O Código estabelece igualmente, desde a Lei de Maio de 2004, que não devem

ser consideradas na determinação das necessidades e respectivos recursos as somas

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pagas a título de reparação dos acidentes de trabalho e as somas pagas a título de direito

a compensação de uma deficiência (art.º 272º, par.2).

Estes diversos elementos de facto deverão ser provados pelos cônjuges, em

conformidade com as regras de prova consideradas mais acima (not. art.º 259º-3, supra,

nº212 e seguintes). A Lei de 30 de Junho de 2000 tinha previsto que os cônjuges deviam

remeter ao juiz uma declaração de honra que comprove a exactidão dos seus recursos,

rendimentos, património e condições de vida. Após ter sancionado a falta de declaração

pela nulidade do processo1, o Tribunal de Cassação flexibilizou a exigência2. A Lei de

26 de Maio de 2004 manteve a regra (art.º 272).

c. Forma e valor acordado

233 Forma e valor acordado. Política de concentração em 1975. Reformas de 30 de

Junho de 2000 e de 26 de Maio de 2004. Em 1975 a vontade legislativa em precaver-

se contra o futuro contencioso traduziu-se através de dois princípios.

- O primeiro princípio fundamental foi o carácter fixo da prestação

compensatória (antigo artigo 273º): a sua revisão era impossível, e isto “mesmo em

caso de alteração imprevista nos recursos e necessidades das partes”, sendo o objectivo

evitar o reaparecimento do contencioso da fase posterior ao divórcio. Porém, o

legislador não tinha ousado ir até ao fim desta política: “se a ausência de revisão tivesse

para um dos cônjuges consequências de uma excepcional gravidade”, o juiz podia

alterar a prestação inicialmente atribuída. O Tribunal de Cassação tinha-se esforçado

por obrigar os juízes de mérito a usarem somente o seu poder moderador

parcimoniosamente. Mas o poder soberano do qual beneficiavam inevitavelmente para

avaliar a excepcional gravidade e para fixar a prestação revista limitava

consideravelmente esta política de rigor.

- O segundo princípio foi que o juiz devia privilegiar a prestação compensatória

sob a forma de capital. Este capital devia ser atribuído desde que “ a consistência dos

1 Civ. 2º, 28 de Março de 2002, Bol., nº 58 2 Civ. 1º, 8 de Julho de 2003, Dto. Fam. 2003, 425. Um circular delineou eventuais sanções: Lécuyer,

Dto. Fam. 2003, nº 11.

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bens do cônjuge devedor da prestação compensatória o permitissem”. Somente “na falta

de capital ou se este fosse insuficiente”, elementos de facto que dependem

inevitavelmente do poder soberano de avaliação dos juízes de mérito, que a prestação

compensatória podia revestir “a forma de uma renda” (antigo artigo 276º). Esta

modalidade, que apresentava o duplo inconveniente de manter relações patrimoniais

regulares entre os ex-cônjuges e de sujeitá-los mais às variações económicas, era fonte

de um contencioso irredutível; mas era muitas vezes difícil não recorrer a esta forma de

compensação.

Nestes dois pontos, a reforma de 1975 foi somente um sucesso parcial. A forma

privilegiada pelo legislador não foi sempre escolhida pelos magistrados, por razões

económicas (a consistência de um património não permitia sempre esta solução) e

fiscais (receando que a atribuição de bens a título de prestação compensatória fosse

realizada fraudulentamente o fisco tinha escolhido tributar o pagamento do capital como

uma transferência de bens entre cônjuges). No que toca ao carácter fixo da prestação,

este foi largamente diminuído pela crise económica.

A Lei de 30 de Junho de 2000 alterou em profundidade a instituição. Se

reafirmou explicitamente o carácter fixo (art.º 273º), este carácter foi dotado de uma

abrangência variável consoante a forma da prestação. O legislador rompeu deste modo a

unidade da prestação compensatória e procedeu a uma verdadeira fragmentação da

instituição. A Lei de 26 de Maio de 2004 manteve grosso modo as soluções.

A prestação compensatória é em princípio atribuída sob a forma de “capital”:

trata-se portanto de um tipo de “ subsídio para reciclagem profissional” destinado a dar

a cada cônjuge o tempo para voltar a encontrar a sua autonomia patrimonial. Na prática,

trata-se nomeadamente de dar à mulher o tempo para encontrar um emprego. Mas se um

dos cônjuges não pode satisfazer as suas necessidades, então a prestação compensatória

é atribuída sob a forma de renda vitalícia: assume neste caso um carácter alimentar mais

acentuado.

Antes de expor as regras legais, é preciso recordar que a preferência legislativa

pelos acordos entre cônjuges (art.º 268º) incide particularmente na prestação

compensatória.

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234 Prestação compensatória sob a forma de capital. A forma de “capital” é

privilegiada pela Lei, que a contempla primeiro (art.º 274º) e além disso apenas autoriza

o pagamento de uma renda vitalícia a título “excepcional” (art.º 276º).

Este capital pode revestir a forma de diversas modalidades, previstas por Lei.

Compete ao juiz escolher, sem prejuízo do respeito da hierarquia legal.

- O juiz pode optar livremente por um único pagamento em dinheiro ou a

atribuição de direitos reais sobre os bens (art.º 274º).

Primeiro, o juiz pode escolher o pagamento de uma soma em dinheiro: a Lei

confere-lhe o poder para subordinar a sentença de divórcio à constituição de garantias

(art.º 274º, 1º). Pode igualmente optar pela transferência da propriedade de bens, móveis

ou imóveis, e até a atribuição de um direito temporário ou vitalício de uso, habitação ou

usufruto (art.º 274º, 2º). Nesses casos, a sentença equivale a transmissão forçada em

benefício do credor. Todavia, a transferência da propriedade de bens que o devedor da

prestação tenha recebido por doação ou sucessão supõe, desde a Lei de 26 de Maio de

2004, o acordo do devedor.

Desde a Lei de 23 de Junho de 2000, estas modalidades obedecem sem limite ao

princípio fixo: nenhum pedido de revisão pode ser deduzido posteriormente1.

- Se o devedor não poder liquidar o capital sob a forma de uma ou outra duas

modalidades, o pagamento pode revestir a forma de entregas periódicas (art.º 275º). É

isto que se designa em doutrina de um “capital convertido em rendas”. Os direitos do

devedor foram consideravelmente melhorados pela Lei de 30 de Junho de 2000, e a Lei

de 26 de Maio de 2004 retomou as soluções anteriores.

Primeiro os pagamentos não podem, em princípio, ser prolongados para mais de

oito anos2.

1 Salvo eventualmente no quadro sucessório, v. infra, nº 237. 2 A Lei de 30 de Junho de 2000 inspirou-se na prática jurídica anterior: muitas vezes as prestações eram

atribuídas não sob a forma de um capital mas sob a de uma renda entregue numa duração de 5 a 10 anos.

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São indexados em conformidade com as regras aplicáveis às pensões

alimentares.

A Lei permite exclusivamente ao devedor pedir a revisão em caso de alteração

“importante” na sua situação1. Nesse caso, o juiz pode, “a título excepcional”, e

somente “por decisão especial e fundamentada”, prolongar a duração dos pagamentos

para além do limite dos oito anos2.

Por fim, “a todo momento”, o devedor pode amortizar o saldo do capital

indexado, enquanto o credor da prestação só pode submeter ao juiz semelhante pedido

“após a liquidação do regime matrimonial”.

- A Lei autoriza o juiz a acumular as entregas periódicas com as modalidades

previstas pelo artigo 274º, a saber entrega única em dinheiro ou atribuição de bens em

propriedade, usufruto, uso ou habitação (art.º 275º-1).

235 Prestação compensatória sob forma de renda vitalícia. Ao abrigo da Lei de 11 de

Julho de 1975, a prestação compensatória podia ser paga sob a forma de prestação,

eventualmente vitalícia3, se o devedor não pudesse dispor de capital suficiente para

saldar esta prestação. Na prática, esta forma era muitas vezes escolhida, nomeadamente

no seio de famílias menos abastadas. Ora daqui resultava uma continuação das relações

entre ex-cônjuges pouco compatível com a preocupação em evitar o contencioso da fase

posterior ao divórcio e com o ideal contemporâneo de liberdade. É por isso que a Lei de

30 de Junho de 2000, retomada neste ponto pela Lei de 26 de Maio de 2004, alterou

profundamente as regras do jogo.

Agora, a forma “renda vitalícia” apenas pode ser escolhida “a título

excepcional” (art.º 276º) e mediante duas condições: uma, de fundo, consistindo no

1 O que é mais estrito do que a condição anterior “de visível alteração” resultante da Lei de 30 de Junho

de 2000. 2 Curiosamente a Lei de 30 de Junho foi apresentada como suavizando a revisão das prestações, enquanto

endurecia duplamente o carácter fixo: ao proibir a alteração do montante global do capital e ao fechar a

revisão ao credor. 3 Antes da Lei de 30 de Junho de 2000, a renda podia ser atribuída para uma duração legal ou inferior à

vida do cônjuge credor (antigo artigo 276.º-1, par. 1).

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facto de que a idade ou a saúde do credor não lhe permitem satisfazer as suas

necessidades; a outra, de forma, prende-se com o facto da decisão judicial dever ser

especialmente fundamentada. O juiz considera os elementos de avaliação previstos pelo

artigo 271º (v. supra, nº 232).

Independentemente de ser fixado uniformemente ou de ser variável, o montante

está sujeito à vontade da provável evolução dos recursos e necessidades (art.º 276º-1).

Uma vez mais é possível fixar um montante determinado previamente (único ou

variável no tempo) ou apenas determinável (é o caso da percentagem do salário ou de

rendimentos auferidos…). A prestação é indexada (é uma obrigação: art.º 276º-1),

sendo que o índice deve ser escolhido como em matéria de pensão alimentar.

Para flexibilizar o sistema, a Lei de 26 de Maio de 2004 autorizou a acumulação

de uma renda vitalícia e de um capital sob uma das formas previstas no artigo 274º do

Código Civil (pagamento de uma soma em dinheiro, transferência da propriedade de um

bem, atribuição de um usufruto ou de um direito de uso ou habitação; v. supra, nº 234):

o artigo 276º exige apenas que “as circunstâncias assim o ditem”.

O carácter fixo da renda vitalícia foi acentuado pela Lei de 30 de Junho de 2000

e a Lei de 26 de Maio de 2004 confirmou a evolução. A prestação pode ser “revista,

suspensa ou extinta” em caso de “alteração importante nos recursos ou nas necessidades

de uma ou de outra parte” (art.º 276º-3, par. 1º). A formulação do princípio é bastante

flexível. Mas as regras que se seguem desenham um dispositivo muito mais favorável

ao devedor do que ao credor.

Se a revisão for relativa ao montante, o artigo 276º-3, parágrafo 2 prevê que esta

pode apenas ocorrer em baixa e que pode ir até a uma extinção pura e simples da

prestação inicialmente atribuída (art.º 276º-3). A solução parece bem rigorosa, dada a

situação que pressupõem as condições de atribuição de semelhante prestação (o credor

está, até por definição, numa situação pessoal bastante precária).

A alteração pode igualmente consistir numa suspensão de entregas.

Pode finalmente consistir na substituição da renda por um capital, substituição

que pode ser parcial ou total (art.º 276º-4). Nesse sentido o devedor pode dirigir-se ao

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juiz “ a todo momento”; quanto ao credor, este deve provar que “uma alteração da

situação do devedor permite esta substituição, nomeadamente aquando da liquidação do

regime matrimonial”. O juiz apenas pode rejeitar o pedido proferindo uma decisão

especialmente justificada. Dado que a substituição pode ser feita por conversão ou por

capitalização, o legislador remeteu esta escolha para um decreto em Conselho de Estado

francês1.

d. Garantias de execução

236 Garantias. As garantias podem ser constituídas: independentemente da hipoteca

legal ou judicial, o juiz pode exigir do devedor a constituição de um penhor, a

apresentação de uma caução, ou a subscrição de um contrato que garanta o pagamento

da prestação ou do capital (art.º 277º).

e. Estatuto sucessório da prestação

237 Estatuto sucessório. A prestação compensatória extingue-se com a morte do

credor: a natureza da prestação, destinada a compensar um desequilíbrio entre os

respectivos estilos de vida dos ex-cônjuges prevalece nesse caso. Já não se extingue por

motivo de morte do devedor. Contudo, este evento afecta profundamente a forma, por

conseguinte muitas vezes a duração, e até o montante. As reformas realizadas pelas Leis

de 30 de Junho de 2000 e 26 de Maio de 2004 têm sido apresentadas como sendo o

fruto de uma transacção entre os interesses divergentes do credor e dos herdeiros do

devedor quando estas são bem mais favoráveis aos segundos do que ao primeiro.

- A primeira eventual redução dos direitos do credor prende-se com a hipótese

de uma insuficiência de activo sucessório. Com efeito, o princípio é que o pagamento

apenas é suportado pelos herdeiros no limite do activo sucessório (art.º 280º).

1 O decreto de 29 de Outubro de 2004 especificou a regra. Artigo 1º, par.1: “O capital concedido ao

beneficiário da renda vitalícia é igual a um montante equivalente ao valor actual provável do conjunto dos

atrasos de pagamento da renda, à data, consoante o caso, da decisão do juiz que efectua esta substituição

ou da morte do devedor”. Artigo 2º: “O valor referido no primeiro parágrafo resulta de uma taxa de

capitalização de 4% e das probabilidades de morte do beneficiário da renda vitalícia, consoante a idade e

sexo, estabelecidos pelas tabelas de mortalidade do Instituto Nacional de Estatística e Estudos

Económicos (INSEE) 98- 2000”. V. Thouret, JCP 2004, Act. 597.

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Obviamente, em caso de insuficiência, os legatários estarão igualmente obrigados,

proporcionalmente à sua quota hereditária1. Mas isto será insuficiente para que os

direitos do credor sejam cumpridos. Para além disso, esta solução é derrogatória do

Direito Comum, uma vez que os herdeiros são em princípio obrigados a responder

solidariamente pelas dívidas do falecido, salvo declaração de aceitação a concorrência

do activo líquido (art.º 787º e seguintes redacção da Lei de 23 de Junho de 2006), e esta

derrogação surpreende dado que equivale a tratar a prestação compensatória como uma

dívida “menos obrigatória” do que as outras dívidas do falecido, quando a prestação

compensatória é pelo contrário uma dívida que deveria beneficiar de um tratamento

privilegiado na medida que “apresenta um carácter alimentar” para retomar uma forma

jurisprudencial.

- A segunda eventual redução prende-se com facto de, em princípio, o

pagamento da prestação, “independentemente da sua modalidade”, deve ser efectuado

aquando da abertura da sucessão (art.º 280º).

Se o capital era pagável sob a forma de entregas periódicas, o saldo tornava-se

imediatamente exigível. Paralelamente, se a prestação for paga sob a forma de renda

vitalícia, a Lei prevê que um capital imediatamente exigível a substitua então segundo

as modalidades previstas por decreto (Sobre este assunto, ver Decreto nº 2004-1157 de

Outubro de 2004).

Este princípio de um pagamento imediato pode todavia ser excluído, se os

herdeiros decidirem “em conjunto” manter as formas e as modalidades da prestação, por

escritura notarial (sob pena de nulidade)2; mas obrigam-se então “pessoalmente” a pagar

a prestação (art.º 280º-1). Nesse caso, os herdeiros podem posteriormente pedir a

alteração da prestação acordada nas mesmas condições que o autor podia: revisão das

entregas periódicas em caso de alteração importante na sua situação (art.º 275º, par. 2, v.

supra, nº234); revisão, suspensão ou extinção da renda vitalícia (art.º 276º-3, v. supra,

nº235) ou substituição desta prestação por um capital (art.º 276-4, v.supra, nº235). A Lei

1 Sem prejuízo da possibilidade para o testador indicar que legado deve ser executado por preferência a

outros, art. 927. 2 É oponível a terceiros a contar da data de notificação ao cônjuge credor, quando este não teve

intervenção no acto.

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permite-lhes além disso, quando a prestação compensatória estiver sob a forma de

entregas periódicas (art.º 275º), liquidar “ a todo momento” o saldo do capital indexado.

- Por fim, a Lei previu que as pensões de sobrevivência eventualmente pagas

devido ao falecimento do cônjuge fossem deduzidos de pleno direito do montante de

prestação compensatória quando esta revestisse a forma de uma renda vitalícia no dia da

morte (art.º 280º-2). Estabelece até, para o caso em que os herdeiros tinham decidido

manter a prestação sob a forma de prestação nas condições previstas pelo artigo 280º-1

(v. acima), que esta dedução se mantenha mesmo que o credor perca o seu direito ou

sofra uma variação do seu direito à pensão de sobrevivência: a solução, que corre o

risco de ser excessivamente rigorosa para o credor, é bem restringida pela admissão de

uma “decisão contrária do tribunal”.

f. Natureza da prestação

238 Qualificação das transferências e abandonos. O artigo 281.º do Código Civil

estabelece que as transferências e abandonos são considerados eventos que fazem parte

do regime matrimonial e que não são assimilados às doações. A questão é de teor fiscal:

trata-se de evitar o pagamento dos direitos correspondentes às disposições a título

gratuito. Infelizmente, a jurisprudência fiscal tinha excluído desta regra as entregas que

um cônjuge efectuava em capital e que recaem sobre os bens próprios1. A Lei de 26 de

Maio de 2004 inverteu esta jurisprudência ao determinar que a regra vale

“independentemente da (s) modalidade (s) de pagamento (da prestação).”

6.A concessão do direito de arrendamento da casa de morada da família

239 A casa de morada da família. Em conformidade com o aparecimento progressivo

na legislação contemporânea de um verdadeiro direito à habitação, particularmente

familiar (v supra, nº128), o direito do divórcio conhece algumas regras específicas a

este respeito. A dissolução do regime matrimonial origina em princípio a recuperação,

por cada cônjuge, dos seus bens pessoais. Mas, por excepção, o artigo 285º-1 do Código

Civil permite ao juiz conceder um contrato de arrendamento a um dos cônjuges sobre a

antiga casa de morada da família pertencente ao outro.

1 Art. 757-A CGI, Com., 6 de Dezembro de 1984, D 1986, 68.

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A Lei de 11 de Julho de 1975 tinha previsto esta modalidade em dois casos.

Primeiro era o caso em benefício do cônjuge requerido no divórcio por ruptura da vida

em comum1. A Lei de 26 de Maio de 2004 extinguiu a hipótese. Também era o caso em

do cônjuge que exercia unilateralmente ou em comum o poder paternal sobre um ou

mais filhos comuns desde que esses filhos comuns residissem regularmente na

habitação em causa. Competia ao juiz fixar a duração do contrato, e eventualmente

renová-lo; não podia, em todo o caso, ir para além da maioridade do mais novo dos

filhos. A Lei de 26 de Maio de 2004 manteve este sistema subordinando todavia a

concessão judicial do contrato a uma condição suplementar: para que o cônjuge que

exerce sozinho ou em comum o poder paternal sobre um ou mais filhos do casal

beneficie de semelhante contrato de arrendamento judicial, não bastava que os filhos

residissem regularmente nessa habitação; era preciso também que “ o seu interesse o

dite”. A concessão judicial do contrato de arrendamento da casa de morada da família

torna-se deste modo uma medida exclusivamente destinada aos filhos. O Tribunal de

Cassação considerou que semelhante concessão de contrato de arrendamento da casa de

morada da família devia ser pedida em simultâneo com o divórcio2.

A Lei de 26 de Maio de 2004 manteve de igual modo a eventualidade de uma

rescisão judicial do contrato de arrendamento judicial se “novas circunstâncias assim o

justificassem”.

2. No divórcio por mútuo consentimento

240 Data da dissolução do casamento. A sentença que decreta o divórcio dissolve o

casamento, entre os cônjuges, na ordem pessoal na data em que transita em julgado,

1 O juiz devia fixar a duração do arrendamento, num limite máximo de 9 anos, salvo possibilidade para

lhe prolongar o período inicialmente fixo. Este arrendamento extinguia-se em caso de novo casamento ou

concubinato. 2 Civ. 2º, 28 de Março de 2002, Bol., nº 59.

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independentemente do caso de divórcio (art.º 260º, v. supra, nº219), e à data do

despacho de não conciliação em matéria patrimonial (art.º 262º-1, v. supra, nº222). O

divórcio por mútuo consentimento tem de particular o facto de a Lei conferir aos

próprios cônjuges a liberdade para fixar a data na convenção que regula os efeitos do

divórcio em que o divórcio produzirá efeitos nas recíprocas relações patrimoniais. Caso

contrário, prevalecerá a data de homologação da convenção que regula o conjunto das

consequências do divórcio (art.º 262º-1, par.1º). Já tratando-se de terceiros, a regra é

igual nos outros casos de divórcio: a sentença de divórcio só é oponível após

cumprimento das formalidades de publicidade prescritas pelas regras do registo civil

(art.º 262º, v. supra, nº215).

241 Acordo dos cônjuges e controlo judicial. Tendo em conta a sua própria definição,

o divórcio por mútuo consentimento deixa largamente ao critério dos cônjuges a

determinação dos efeitos do divórcio: cabe-lhes decidir as diversas consequências que

pretendem associar à dissolução do casamento na convenção que estabeleceram (v.

supra, nº 173 e seguintes). Contudo, a sua vontade está enquadrada (1.): a Lei associa

consequências imperativas à dissolução do vínculo matrimonial e para além disso, é

exercido um controlo judicial sobre o próprio teor da convenção que está sujeito à

homologação do juiz de família. Uma vez assim validamente determinadas, as

consequências do divórcio terão uma abrangência vinculativa, importante e original. (2).

1.O enquadramento da vontade dos cônjuges

242 Plano. Os cônjuges não estão totalmente livres para organizarem as suas relações:

são os próprios diplomas que determinam alguns efeitos do divórcio (a). Para além

disso, a convenção está sujeita à homologação do juiz de família que verifica o

conteúdo (b).

a. O enquadramento legal

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243 Efeitos associados por Lei ao divórcio. Diplomas supletivos ou imperativos.

Diversos diplomas associam por si só alguns efeitos ao divórcio. Alguns entre estes,

apenas supletivos da vontade, apenas têm como objectivo suprir o silêncio dos

cônjuges. Já outros, evidentemente imperativos pois pertencem à essência do divórcio,

não poderão ser excluídos por vontade dos cônjuges.

Alguns diplomas são imperativos: por exemplo, a abolição da união pessoal

(extinção dos deveres de respeito, fidelidade, assistência, comunhão de vida…) e suas

consequências (liberdade para contrair novo casamento, necessidade de celebrar

novamente uma união se os ex-cônjuges pretenderem ser novamente marido e mulher:

art.º 263º) não depende da livre vontade dos cônjuges. Da mesma maneira a extinção do

regime matrimonial e a abolição dos deveres patrimoniais dos cônjuges (contribuição

com os encargos da vida familiar…) são incontornáveis.

Porém, diversos efeitos da dissolução do casamento são deixados ao livre

critério dos cônjuges.

Por vezes a Lei menciona-o explicitamente: é o caso do eventual uso do apelido

de um pelo outro (art.º 264º; v. supra, nº 221); é o caso da eventual permanência dos

benefícios matrimoniais que apenas produzem efeito na dissolução do regime e das

disposições por morte (art.º 265º; v. supra, nº 226); é o caso das condições de liquidação

e da partilha dos seus interesses patrimoniais (art.º 267º, art.º 265º-2, v. supra, nº 225); é

o caso sobretudo da existência e das modalidades de uma prestação compensatória (v.

supra, nº 230 e seguintes). Após ter indicado, a título geral, que são os cônjuges que

fixam o montante e as modalidades da prestação compensatória no divórcio por mútuo

consentimento, o artigo 278º do Código Civil determina até que podem fixar um termo

para o pagamento (os limites estipulados pelos artigos 274º e seguintes não se lhe

aplicam) ou prever uma prestação atribuída por uma duração limitada (quando em

princípio a prestação é vitalícia).

Noutras hipóteses, a Lei regula os efeitos do divórcio sem considerar

especificamente o caso particular do divórcio por mútuo consentimento. A procura do

carácter supletivo ou imperativo da disposição em questão permite então determinar se

os próprios cônjuges podem regular esta questão na convenção. Provavelmente é

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preciso assim considerar que a convenção pode conferir a um dos cônjuges um contrato

de arrendamento sobre a antiga casa de morada da família fora das condições previstas

no artigo 285º-1, v.supra, nº239) ou atribuir a um dos cônjuges uma soma destinada a

ressarcir o dano causado pelo outro mesmo que se tenha comprovado que as

consequências do divórcio não foram de uma particular gravidade (art.º 266º, v.supra, nº

228). Questiona-se já qual o destino da jurisprudência que admitiu, ao abrigo da Lei de

11 de Julho de 1975, a permanência convencional do dever de cooperação sob a forma

de uma pensão alimentar susceptível de ser revista1: será que um dos principais

objectivos da Lei2 não é, no entanto, reconhecer às vontades privadas o poder para

excluir o carácter fixo da prestação compensatória, isto é, evitar o contencioso da fase

posterior ao divórcio?

b. A homologação judicial

244 Controlo pelo juiz de família do teor da convenção. Para além disso, a vontade

dos cônjuges é controlada pelo juiz de família.

Antigamente o juiz exercia este controlo em duas alturas, aquando da entrevista

inicial que tinha com os cônjuges no início do processo, quando examinava com estes o

projecto de convenção de divórcio – podia então sugerir eventuais alterações (antigo

artigo 230º e 231º; v. supra, nº 176 e seguintes), depois novamente aquando da sentença

do divórcio, quando homologava, pela mesma decisão, a convenção que regulava as

suas consequências (antigo artigo 232º). Uma vez que a dupla comparência em tribunal

dos cônjuges foi extinta pela Lei de 26 de Maio de 2004, o juiz exerce agora este

controlo aquando da entrevista que se segue ao registo do pedido conjunto.

A Lei encarrega-o, a título geral, de zelar pela qualidade do consentimento dos

cônjuges e autoriza-o também a recusar a homologação se constatar que a convenção

preserva insuficientemente os interesses dos filhos ou do cônjuge (art.º 232º, v. supra, nº

177). Esta solução geral é reafirmada a propósito da prestação compensatória: a Lei

especifica que o “juiz recusa homologar a convenção se esta fixar de modo não

equitativo os direitos e obrigações dos cônjuges” (art.º 278º, par. 2). Semelhante

1 Civ. 2º, 22 de Maio de 1979, D 1980.507, Gaz. Pal. 1979.2.608, RTD civ. 1980.570. 2 Quer se trate da Lei de 11 de Julho de 1975 ou da Lei de 26 de Maio de 2004.

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condição implica uma avaliação no seu conjunto da convenção e é da competência do

poder soberano do juiz de família.

2.A força vinculativa da convenção homologada

245 Generalidades. Qual é a abrangência de semelhante decisão judicial, que decreta o

divórcio e homologa a convenção? Praticamente, em que condições pode ser

questionada? Será que é concebível uma acção de nulidade ou apenas são possíveis as

vias de recurso contra as sentenças judiciais?

A primeira dificuldade prende-se com a indivisibilidade de duas questões que

são por um lado o estado das pessoas (a própria dissolução do vínculo matrimonial) e

por outro lado o estatuto patrimonial (as consequências da dissolução do vínculo na

ordem patrimonial). Parece difícil questionar a convenção sem questionar também o

princípio do divórcio. Ora, tal questionamento é particularmente perigoso,

nomeadamente porque os cônjuges podem ter voltado a casar.

A segunda dificuldade prende-se com a existência de uma homologação judicial.

A convenção que regula os efeitos de um divórcio a pedido conjunto tem um carácter

original. Em primeiro lugar, assemelha-se a um contrato uma vez que resulta do acordo

de vontade dos cônjuges; por conseguinte pareceria lógico reconhecer-lhe força

obrigatória, salvo revogação por mútuo consentimento dos cônjuges (art.º 1134º, par. 2).

Mas para além disso está sujeita à homologação judicial e resulta portanto de uma

decisão judicial, o que, a priori, apenas deveria submetê-la ao exercício das vias de

recursos clássicos. Desta natureza híbrida resulta um regime jurídico original que

mistura as regras relativas aos actos privados com as que se referem às decisões da

justiça. A Lei determinou que a “convenção homologada tem a mesma força executória

que uma decisão de justiça” (art.º 279º, par. 1º). Daqui resultou o afastamento do regime

das convenções privadas. Como o menciona o Tribunal de Cassação, “após a sua

homologação pela sentença que decreta o divórcio por pedido conjunto, a convenção

definitiva reveste a mesma força executória que uma decisão de justiça. Apenas pode

ser impugnada pelas vias de recurso disponibilizadas pela Lei…”1

1 Civ. 2º, 25 de Novembro de 1999, Bol., nº 177.

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a. A exclusão do regime jurídico das convenções privadas

246 Exclusão do Direito Comum dos contratos. Tendo sido objecto de uma

homologação judicial, no final de um processo destinado a permitir ao juiz de família

verificar a realidade e o consentimento informado dos cônjuges, a convenção escapa à

anulação por vício do consentimento1 ou lesão2 e à acção pauliana do artigo 1167º do

Código Civil3.

Para além disso, a necessidade de um controlo judicial e a recusa em consagrar

no direito francês um divórcio puramente consensual explicam que a Lei recusa aos ex-

cônjuges o poder para decidir por si mesmos uma eventual alteração: a convenção

escapa à faculdade que têm em princípio os contratantes em desfazer o seu contrato por

mutuus dissensus, isto é por um simples acordo de vontades contrárias (art.º 1134º, par.

2). A Lei impõe uma nova homologação (art.º 279º, par. 2).

b. A admissão de limites à intangibilidade da convenção

247 Vias abertas a terceiros e aos cônjuges. Se a associação do convencional com o

judicial confere à convenção de divórcio homologada pelo juiz uma eficácia reforçada,

seria inexacto dizer que esta origina uma intangibilidade absoluta.

Primeiro a Lei permite aos credores de um ou outro cônjuge deduzir oposição de

terceiros contra a decisão de homologação. A convenção ser-lhes-á então declarada

inoponível. Contudo, a Lei limita a acção num breve prazo de um ano a contar do

cumprimento das formalidades de publicidade no registo civil (art.º 1104º do CPC).

Depois a Lei disponibiliza aos cônjuges diversas vias. Além da eventualidade de

um acordo de alteração sujeito a uma nova homologação judicial (art.º 279, par. 2; v.

supra, nº 176 e seguintes), a Lei contempla o exercício de vias de recurso contra a

decisão judicial de homologação. Se os cônjuges vencerem o processo, a convenção

extingue-se então com a decisão judicial que a abrange e lhe confere a sua força

obrigatória. Mas esta possibilidade permanece limitada. O recurso é impossível se a

1 Civ. 2º, 13 de Novembro de 1991, JCP 1992.IV.19. 2 Civ. 2º, 6 de Maio de 1987, Gaz. Pal. 1988.I.3. 3 Civ. 2º, 25 de Novembro de 1999, préc.

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decisão homologar a convenção e decretar o divórcio (art.º 1102º do CPC). Quanto ao

recurso perante o Tribunal de Cassação, apenas é possível durante um breve prazo de

quinze dias à contar da sentença (art.º 1103º do CPC). Sem prejuízo da fraude cometida

por um cônjuge em detrimento do outro e que abre a este último um recurso de revisão

(art.º 593º e seguintes do CPC), os ex-cônjuges têm então pouco poder em relação à

decisão judicial de homologação.

248 Limites próprios da prestação compensatória. A questão mais frequente diz

respeito às disposições relativas à prestação compensatória. A Lei tem portanto tentado

regularizá-la. Podia ter excluído qualquer a possibilidade (com excepção das previstas

mais acima, v. supra, nº 247) de alterar a prestação prevista baseando-se no carácter

contratual da prestação compensatória e na intangibilidade da convenção homologada

pelo juiz. Preferiu contemplar duas possibilidades de alteração.

Em conformidade com a essência do divórcio a pedido conjunto, que reconhece

um papel importante à vontade dos cônjuges, o artigo 279.º, parágrafo 3 do Código

Civil prevê em primeiro lugar que os cônjuges possam incluir, na sua convenção inicial,

uma cláusula que reconhece a cada cônjuge, “ em caso de alteração importante nos

recursos ou necessidades de uma ou de outra parte”, o direito de “pedir ao juiz para

rever a prestação compensatória” (art.º 279º, par. 3). Semelhante alteração da prestação

convencionalmente fixada supõe deste modo: 1º) uma estipulação convencional que

admite a possibilidade de uma revisão; 2º) uma alteração importante dos recursos ou das

necessidades de uma das partes1, o que depende evidentemente da avaliação soberana

dos juízes de mérito; 3º) uma decisão judicial.

Para além disso o Tribunal de Cassação tinha considerado que a prestação

compensatória convencionalmente fixada permanecia sujeita ao Direito Comum da

prestação compensatória, e em particular na altura ao artigo 273º do Código Civil2,

diploma que permitia a cada um pedir ao juiz uma alteração da prestação acordada com

1 A reforma de 30 de Junho de 2000 abriu duplamente a faculdade de revisão. A alteração já não é mais

imprevista; basta que seja importante. Actualmente pode tratar-se de uma alteração das necessidades e

recursos da outra parte e não necessariamente de uma alteração das necessidades e recursos do

requerente. 2 Civ. 2º, 6 de Fevereiro de 1985, D 1986, D.452, JCP 1986.II.20580

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a condição de provar que se deu “ uma alteração imprevista nos recursos ou nas

necessidades das partes” e que “ a ausência de revisão” teria “para um dos cônjuges

consequências de uma excepcional gravidade” (antigo artigo 273º, v. supra, nº 233). A

Lei de 26 de Maio de 2004 consagrou esta jurisprudência, ao prever que as disposições

estipuladas nos artigos 275º (segundo e terceiro parágrafos: alteração de uma prestação

sob a forma de entregas periódicas, v. supra, nº 234), 276º-3 (revisão, suspensão ou

extinção de uma prestação, v. supra, nº 235) e 276º-4 (substituição de uma renda por um

capital, v. supra, nº235) eram “igualmente” aplicáveis.

Por fim a alteração pode resultar da morte do devedor: com efeito a Lei de 26 de

Maio de 2004 prevê que os artigos 280º até ao 280º-2 sejam então em princípio

aplicáveis (pagamento imediato da prestação compensatória, no limite do activo, salvo

compromisso dos herdeiros em manter as formas iniciais…, v. supra, nº 237). Apesar

disso permite aos cônjuges acordarem “medidas especiais” na matéria dentro da

convenção homologada pelo juiz (art.º 279º, par. 4).

Título 2

A separação judicial de pessoas e bens

249 Generalidades. A separação judicial de pessoas e bens foi mantida, em 1975, tendo

o legislador se mostrado preocupado em oferecer aos católicos um remédio para o

conflito conjugal que fosse compatível com as suas convicções (e nomeadamente com a

doutrina de indissolubilidade do casamento). Esta característica explica que, mesmo não

lhes sendo reservada, a separação judicial de pessoas e bens é geralmente apresentada

como “o divórcio de católicos”. E é verdade que se serve muito da regulamentação

deste último, pelo menos na sentença. Já os seus efeitos distinguem-no claramente uma

vez que apenas origina um afrouxamento do vínculo conjugal enquanto o divórcio

origina a dissolução desse mesmo vínculo.

Secção 1

A sentença

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250 Inspiração no divórcio. Fundamentalmente, o regime jurídico da separação judicial

de pessoas e bens inspira-se no regime do divórcio.

251 Condições. A separação judicial de pessoas e bens é decretada nos mesmos casos e

nas mesmas condições que um divórcio (art.º 296º): mútuo consentimento, pedido

aceite, culpa, alteração definitiva do vínculo conjugal (v. supra, nº 171 e seguintes).

Será que esta inspiração supõe que as regras relativas às condições de fundo do divórcio

sejam adaptadas para terem em conta o particularismo da separação judicial de pessoas

e bens? Será que a culpa, causa de separação, é deste modo menos grave que a culpa,

causa de divórcio? Esta solução seria descabida, já que a culpa é causa justificativa de

divórcio na medida em que proíbe a continuação da vida em comum, o que corresponde

de igual modo inteiramente ao espírito da separação judicial de pessoas e bens (v. supra,

nº 181). Da mesma maneira, convém reter uma noção unitária do consentimento ao

divórcio (este incide unicamente sobre um objecto diferente, a separação judicial de

pessoas e bens e não o divórcio) ou da alteração do vínculo conjugal.

252 Processo. Para além de se ter inspirado no regime de separação judicial de pessoas e

bens nos casos e condições do divórcio, a Lei alinha as duas instituições no que toca ao

processo (art.º 298º do Código Civil; v. supra, nº 197 e seguintes).

Pode-se colocar uma questão delicada quando a um pedido de divórcio deduzido

por um cônjuge, o outro responde com um pedido reconvencional em separação judicial

de pessoas e bens, ou inversamente (art.º 296º e 297º). Será que o juiz pode julgar

simultaneamente os dois pedidos procedentes? Antigamente a Lei previa que, se o juiz

julgasse os dois pedidos, o divórcio era decretado com atribuição conjunta de culpas

(art.º 297º, par. 2). Esta solução legislativa podia parecer original quando se explicava

em relação às circunstâncias de facto que suponha1. A Lei de 26 de Maio de 2004

1 Porque divórcio e separação são inconciliáveis, na medida em que não produzem o mesmo efeito,

poderia considerar-se natural apenas decretar uma separação, sendo que o pedido de separação estava

incluso a fortiori num pedido de divórcio (enquanto o recíproco não é verdadeiro). Mas o carácter

excepcional da separação judicial de pessoas e bens (um casamento que já não é mais um casamento

verdadeiro mas que ainda é um casamento) e a simplicidade do divórcio explicavam a escolha legislativa.

E era lógico que o divórcio fosse decretado “por culpas partilhadas”, tendo em conta as hipóteses práticas

encontradas. Com efeito, apenas se podia tratar de dois pedidos fundamentados na culpa: era impossível

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consagrou dois diplomas à questão. O artigo 297º permitiu primeiro responder a um

pedido de divórcio por um pedido reconvencional de separação judicial de pessoas e

bens, e inversamente, salvo num caso: não se pode deduzir um pedido reconvencional

em separação em resposta a um pedido de divórcio baseado na alteração definitiva do

vínculo conjugal (art.º 297º). Em seguida o artigo 297º-1 determina a resolução do caso.

Em princípio a Lei impede ao juiz examinar simultaneamente os dois pedidos: primeiro

deve examinar o pedido de divórcio e decretar este se as condições do divórcio

estiverem reunidas; caso contrário, decreta a separação judicial de pessoas e bens (art.º

297º-1). A título excepcional, o juiz pode examinar simultaneamente os dois pedidos:

tal é o caso em que ambos são baseados na culpa, na eventualidade de os admitir a Lei

reafirma então que decretará um divórcio com atribuição conjunta de culpas.

Secção 2

Os efeitos

253 Plano. A separação judicial de pessoas e bens origina apenas um afrouxamento do

vínculo matrimonial. Mas, do efeito principal e directo que produz imediatamente (1),

sucede geralmente um outro efeito (2).

1.A curto prazo

que o divórcio e a separação fossem ambos requeridos conjuntamente (dado que os cônjuges devem nesse

caso associar-se). Da mesma maneira, era impossível que os dois pedidos fossem fundamentados na

ruptura da vida comum, uma vez que a Lei apenas permitia invocar esse caso na qualidade de pedido

principal (antigo artigo. 241, par.1º; O único pedido reconvencional então possível devia ser

fundamentada na culpa e os dois pedidos apenas podiam ser admitidos simultaneamente: art. 241.º, par.2).

Quanto ao duplo consentimento, este já não podia mais fundamentar os dois pedidos, dado que um pedido

de divórcio por duplo consentimento apenas podia ser admitido se a parte demandada reconhecesse os

factos (o que excluía que apresentasse um pedido reconvencional). Era portanto lógico, caso o juiz

admitisse os dois pedidos, de divórcio e separação judicial de pessoas e bens por culpa, que se partilhe as

culpas dado que esta supõe que os cônjuges partilham inteiramente a responsabilidade do fracasso do

casamento.

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254 Afrouxamento de um casamento não dissolvido e inspiração no divórcio. A

especificidade da separação judicial de pessoas e bens é afrouxar o vínculo do

casamento sem o dissolver. A união matrimonial não se extingue (os cônjuges

permanecem casados), mas os seus efeitos são afrouxados (extingue-se a comunhão de

vida, e com esta a eventual comunhão de bens). Neste aspecto, distingue-se claramente

do divórcio.

Mas o Código Civil alinha por outro lado os efeitos da separação judicial de

pessoas e bens pelo regime jurídico do divórcio (art.º 304º), de modo que produzirá para

o resto os mesmos efeitos que a dissolução do casamento: concessão judicial de contrato

de arrendamento sobre a casa de morada da família (art.º 285º-1; v. supra, nº239),

eventual atribuição de indemnização por perdas e danos (art.º 266º e 1382º, v. supra, nº

228 e seguintes) …

255 Permanência do casamento na ordem pessoal mas extinção do dever de

comunhão de vida. Mais precisamente, a separação judicial de pessoas e bens origina

na ordem pessoal a extinção do dever de comunhão de vida (art.º 299º in fine); é o que

explica a sua terminologia. Já os outros deveres pessoais (e nomeadamente o dever de

fidelidade) não são afectados pois os cônjuges permanecem casados (art.º 299º in

limine). A permanência da união das pessoas explica que a mulher (ou o marido) possa

em princípio continuar a usar o apelido do seu marido (ou mulher, art.º 300º). Contudo,

este uso poderá ser-lhe retirado por privação judicial do uso do nome, limitando-se a Lei

remeter ao juiz para os “respectivos interesses dos cônjuges”.

256 Permanência do casamento na ordem patrimonial mas separação judicial de

bens. Para além disso, a separação judicial de pessoas e bens é simultaneamente uma

separação de patrimónios: o eventual regime de comunhão é dissolvido para dar lugar a

uma separação judicial de bens (art.º 302º; acerca deste regime, v. supra, nº 135). A Lei

remete para as disposições relativas ao divórcio para determinar a data em que esta

separação produz efeito (art.º 302º, art.º 262º até ao 262-2). Daqui resulta que, nas

relações entre cônjuges, a separação existe a contar do despacho de não conciliação,

salvo em caso de separação por mútuo consentimento, caso em que é a data de

homologação da convenção que prevalece, salvo cláusula contrária na convenção dos

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cônjuges. Em relação a terceiros, apenas vale após cumprimento das formalidades de

publicidade, sem prejuízo da sanção de uma eventual fraude.

Até lá, os cônjuges permanecem casados no plano matrimonial com todas as

consequências daí emergentes.

É deste modo que conservam em princípio a respectiva vocação sucessória. Mas

este princípio cede quando, a separação judicial de pessoas e bens tendo sido decretada

por pedido conjunto, os cônjuges renunciam aos seus direitos através de uma cláusula

da convenção que adaptava os efeitos da sua separação. No sistema resultante da Lei de

11 de Julho de 1975 acontecia o mesmo quando a separação judicial de pessoas e bens

era decretada “contra” um cônjuge, isto é, quando era decretada por culpas exclusivas

de um cônjuge ou por ruptura de vida em comum (art.º 301º), caso em que o cônjuge

deste modo culpado perdia os seus direitos. Esta hipótese foi extinta com a Lei de 26 de

Maio de 2004.

Sobretudo, o dever de cooperação existente entre cônjuges mantém-se (art.º 303º; v.

supra, nº 125). Daqui resulta então eventualmente uma pensão alimentar, obedecendo às

regras de Direito Comum das obrigações alimentares: é “atribuída sem consideração de

culpas” (art.º 303º, par. 3), sem prejuízo da aplicação do artigo 207º, parágrafo 2 (v.

infra, nº 626)1; é fixada por decisão da justiça2 em função das necessidades e respectiva

capacidade financeira dos cônjuges e varia consoante a função desses mesmos

elementos (comp. art.º 273, v supra, nº232). A Lei determina “no entanto” que pode ser

atribuída sob a forma de capital “segundo as regras dos artigos 274º até ao 275º-1, 277º

e 281º” (sobre este assunto v, supra, nº 234, 236, 238), sendo que pode ser concedido

um complemento se este capital se tornar insuficiente para cobrir as necessidades do

credor (art.º 303º, par. 4).

257 Destino dos filhos. No que se refere aos filhos, a extinção da comunhão de vida

entre os pais impõe fixar as modalidades de exercício do poder paternal e a residência

do filho menor, e determinar a contribuição para o seu sustento e educação. É através da

1 O texto permite destituir um credor de alimentos dos seus direitos fundamentando-se numa falta grave

do qual se tornará culpado em relação ao devedor. 2 Quer se trate daquele que decreta a separação ou de uma decisão posterior.

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aplicação das regras relativas à separação dos pais que o destino dos filhos será regulado

(art.º 373º-2 e seguintes v. infra, nº 554 e seguintes).

2.A longo prazo

258 Futuro da separação judicial de pessoas e bens. Os cônjuges em regime de

separação judicial de pessoas e bens podem permanecer assim, casados mas separados,

até que a morte dissolva o vínculo matrimonial. Muitas vezes, a separação judicial de

pessoas e bens é apenas um estado temporário: será seguida por divórcio (A) ou a

restauração de um casamento pleno (B).

A. A dissolução do casamento por sentença de divórcio

259 A sentença do divórcio consoante as vias do Direito Comum. Primeiro, o

divórcio pode ser pedido a título autónomo, sem que seja invocada a existência prévia

de uma separação judicial de pessoas e bens. É então nos casos e condições, de

conteúdo e processo, aplicáveis em princípio (v. supra, nº 171 e seguintes) que o

casamento pode ser dissolvido.

260 A conversão em divórcio de uma separação judicial de pessoas e bens. Ao lado

desta via de Direito Comum, a Lei organiza a conversão eventual da separação

decretada em divórcio. Esta conversão é possível em duas situações diferentes.

- “Em todos os casos”, a separação judicial de pessoas e bens pode ser

convertida em divórcio por mútuo consentimento dos cônjuges (art.º 307º, par. 1ª). O

divórcio será então regido pelas regras relativas ao divórcio por mútuo consentimento:

controlo judicial sobre a realidade e o carácter informado do consentimento dos

cônjuges e sobre o conteúdo da convenção destinada a reger os efeitos do divórcio,

convenção cujas estipulações não devem ser contrárias aos interesses dos cônjuges e dos

filhos menores (v. supra, nº 173 e seguintes).

- Para além disso a conversão pode ser pedida por apenas um cônjuge.

Semelhante conversão está descartada quando a separação judicial de pessoas e bens foi

decretada por mútuo consentimento: apenas pode ser transformada em divórcio a pedido

conjunto de conversão (art.º 307º, par. 2). Nos outros casos, a conversão é de direito

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para o requerente, ao fim de um prazo que era de três anos de separação judicial de

pessoas e bens no sistema resultante da Lei de 11 de Julho de 1975 e que a Lei de 26 de

Maio de 2004 reduziu para dois anos (art.º 306º). A causa da separação torna-se então a

causa justificativa de divórcio: uma separação aceite origina então um divórcio aceite,

uma separação por alteração definitiva do vínculo conjugal transforma-se num divórcio

por alteração definitiva do vínculo conjugal, uma separação por culpa torna-se num

divórcio por culpa, sendo que a “atribuição das culpas” se manteve “inalterada” (art.º

308º). Por conseguinte, o juiz deve determinar os efeitos do divórcio obtido no âmbito

legal pré-estabelecido (v. supra, nº 214 e seguintes).

B. A restauração do casamento por abolição da separação judicial de pessoas e

bens

261 Retoma voluntária da vida em comum e cessação da separação judicial de

pessoas e bens. A restauração do casamento resulta na ordem pessoal da “retoma

voluntária da vida em comum” (art.º 305º), o que supõe a união de um elemento

objectivo (a retoma da comunhão de vida) e um elemento subjectivo (a intenção de

retomar a vida em comum e perdoar).

262 Publicidade da cessação da separação judicial de pessoas e bens e oponibilidade

a terceiros. Desta reconciliação pessoal resultará o retorno a um casamento normal e

dotado de todos os seus efeitos, mas com a condição de que um certo formalismo tenha

sido respeitado, formalismo que o legislador quis aligeirar com o objectivo de favorecer

o casamento. Basta que a retoma da vida em comum tenha sido constatada por escritura

notarial ou declarada ao conservador do registo civil e o averbamento desta formalidade

no assento de casamento e assentos de nascimento dos interessados tornará o fim da

separação judicial de pessoas e bens oponível a terceiros1.

263 Efeitos da retoma da vida em comum. A retoma da vida em comum origina a

cessação da separação judicial de pessoas e bens: o retorno a um casamento normal

origina pois o reaparecimento de todo o estatuto, pessoal e patrimonial, de pessoas

1 Civ. 3º, 4 de Julho de 2001, JCP N 2002, 1308: a permanência na casa concedida por parte da esposa

judicialmente separada que retomou a vida em comum antes da morte do marido é inoponível ao senhorio

na falta do cumprimento formalidades de publicidade.

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casadas que a separação tinha alterado (v. supra, nº 103 e seguintes): dever de

comunhão de vida, direitos sucessórios…

Este princípio conhece todavia uma excepção na ordem patrimonial: os cônjuges

permanecerão judicialmente separados de bens, mesmo que o casamento tivesse sido

celebrado sem convenção antenupcial. Cabe a estes, na eventualidade de pretenderem

restaurar um regime de comunhão, proceder a uma alteração do regime matrimonial, em

conformidade com o Direito Comum (art.º 1397.º).

Livro Terceiro

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O casal fora do casamento

264 Relações sexuais fora do casamento. Liberdade individual. Afirma-se muitas

vezes que as relações carnais fora do casamento, antigamente consideradas contrárias

aos bons costumes e portanto ao direito, pertencem agora ao não direito, à religião, a

moral mas de modo algum ao direito. Parece na realidade mais exacto dizer que

constituem uma liberdade pessoal essencial associada à liberdade individual: em virtude

do princípio fundamental de liberdade, tanto espiritual como corporal, cabe a cada um

decidir as relações que terá ou não e vivê-las da maneira que entender.

A abrangência jurídica desta liberdade tem evoluído: concebida ontem no

sentido de proibir apenas a sanção, pelo Estado, de indivíduos que mantêm relações fora

do casamento (uma liberdade - abstenção), cria agora uma protecção positiva do Estado,

que impõe a cada um respeitar a escolha do outro (uma liberdade – protecção). As

relações carnais e a vida de casal beneficiam com efeito do baluarte actual da vida

privada, que protege cada um da indiscrição e das pressões do outro (art.º 9º Código

Civil e art.º8 do TEDH), bem como a proibição de discriminações, proibição que é

sancionada civilmente mas também penalmente (v. nomeadamente art.º 225º-1 e

seguintes do Código Penal).

Todavia esta liberdade não deixa de ter limites. Se as relações carnais fora do

casamento já não atraem, elas próprias, as iras do direito, já circunstâncias de facto

particulares poderão torná-las ilícitas e suscitar uma sanção jurídica. A violação do

dever de fidelidade, que emana do casamento, de um dos parceiros poderá deste modo

conduzir ao divórcio; a coacção exercida por um sobre o outro justificará uma sanção

penal; o aparecimento de uma criança legitimará o exercício de uma acção de

investigação de paternidade ou maternidade… Mas mais uma vez, a liberdade parece

progredir: o grande número de relações mantidas, que caracterizava antigamente a

“notória má conduta”, causa de exclusão ou destituição da tutela (art.º 444º), extinguiu-

se com a reforma de 5 de Março de 2007 (novo artigo 395º). A doutrina considera até

por vezes que a estipulação de uma contrapartida já não justificaria mais hoje uma

nulidade do contrato por imoralidade da causa (art.º 1131º). A evolução da

jurisprudência do Tribunal de Cassação não autoriza no entanto semelhante análise: sem

dúvida julgou, em 1999, que “ não era contrário aos bons costumes a causa da

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liberalidade em que o autor pretende manter a relação adúltera com o beneficiário1”.

Contudo, limita-se actualmente a considerar que “ não é nula, como sendo uma causa

contrária aos bons costumes, a liberdade consentida aquando de uma relação adúltera2”.

Fundamentalmente, então, as relações fora do casamento pertencem à liberdade

individual e produzem poucos efeitos no direito. É preciso moderar a afirmação: exacta

quando se trata de relações sexuais, tornam-se inexactas quando a vida em comum aí se

junta.

265 Concubinato. Apreensão jurídica limitada. A apreensão contemporânea do

concubinato pelo direito é o fruto de uma evolução histórica bem conhecida, passando

da reprovação à exaltação, depois pela indiferença, para chegar já em meados do século

XX a uma espécie de “casamento de segunda categoria”.

Sob a influência da religião católica, os parceiros estavam com efeito forçados à

separação pelo Direito do Antigo Regime, que considerava as relações carnais fora do

casamento contrárias aos bons costumes. De modo inverso, a Revolução Francesa

praticamente encorajava o concubinato, a favor da liberdade e por hostilidade ao

casamento, instituição simbólica de uma ordem social ultrapassada. Nem revolução,

nem reacção, o Código Civil de 1804 optou por uma via intermédia, a do silêncio: mais

coisa menos coisa3, ignorou os parceiros, aliás tal como o Código Penal, e limitou-se,

estimulado por Bonaparte, a uma atitude de estrita indiferença4. Deste modo ao longo

de todo o século XXI o concubinato não foi sancionado ou favorecido, sendo que a Lei

se recusou a associar-lhe qualquer efeito, por múltiplas razões, políticas5, religiosas6,

históricas, jurídicas7, dogmáticas1 e até sociológicas, que se prendem nomeadamente

1 Civ. 1º, 3 de Fevereiro de 1999, Grands arrêts, nº 28. 2 Assembleia plenária, 29 de Outubro de 2004, Grands arrêts, nº 29; Civ. 1º, 25 de Janeiro de 2005, Bol.,

nº 35. 3 Ver também o efeito probatório associado à posse de estado do cônjuge (art. 197.º C.C.; v. supra, nº 89). 4 A fórmula, famosa, do Primeiro Cônsul (“os parceiros não querem a Lei e a Lei não se interessa por

eles”) lembra a de Carbonnier: “ nenhum direito onde se recusa o direito”. Nota-se todavia que a vontade

de “não direito” das partes não basta sempre para justificar a abstenção do sistema jurídico. 5 O casamento republicano é uma vitória do Estado sobre a Igreja. 6 A celebração civil do casamento é apenas uma tradução matrimonial do princípio de laicidade. 7 Sendo o casamento bastante aberto, a concubinato é raramente forçada.

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200

com a dificuldade que se tem em elaborar um estatuto jurídico único para apreender

uma realidade factual extremamente variada, nomeadamente devido à diversidade dos

motivos dos parceiros2…

A pressão sociológica obrigou o sistema jurídico a abandonar esta indiferença

durante o século XX, tendo o crescimento do fenómeno tornado politicamente difícil

uma atitude de estrita indiferença, os autores constataram desde a primeira metade do

século XX, “ o advento do concubinato”, o “crepúsculo do casamento legal”, o

concubinato se elevou progressivamente na vida jurídica. O sistema francês enveredou

deste modo por uma política de reconhecimento moderado deste facto jurídico, fazendo

com que produzisse este ou aquele efeito pontual mas recusando associar-lhe um

verdadeiro estatuto especial.

O futuro dirá se este tratamento pontual irá perdurar ou se irá dar

progressivamente o lugar a um verdadeiro estatuto. A evolução dos factos levaria

provavelmente a fazer do concubinato um estatuto jurídico completo e coerente. Este

fenómeno, marginal no início do século XX, tem com efeito ganho uma considerável

importância sociológica: das 29,4 milhões de pessoas que viviam em casal em 1994, 4,2

milhões estavam em concubinato; se em 1960 representavam apenas 3% dos casais, em

1998 já constituíam 15% dos casais. Este fenómeno dá-se sobretudo entre os jovens,

mas é possível verificá-lo em todas camadas sociais da população, obedecendo a

motivos diversos. Contrariamente ao que se passava antigamente, a chegada de um filho

já não leva mais obrigatoriamente os adultos ao casamento (em 2001, deram-se 43%

dos nascimentos fora do casamento e 50,5% em 2007). Cingindo-se aos factos, a

evolução “natural” consistiria portanto provavelmente em associar a este modo de vida

mais efeitos amplos. Porém, a própria evolução do sistema jurídico dá-se

preferencialmente em sentido contrário. Não se pode apreender juridicamente o

1 “Nenhum direito onde se recusa o direito”. 2 Raramente jurídicos (enquanto os obstáculos são poucos, atendendo ao liberalismo das condições do

casamento e da sentença do divórcio) ou culturais (enquanto a ignorância das condições formais de

celebração do casamento é pouco frequente), os motivos são por vezes ideológicos (rejeição do modelo

de casamento “burguês”, oposição a toda a intrusão do Estado na esfera privada, vontade de conservar a

liberdade…) mas muitas vezes pragmáticos (casamento para tentativa, receio do custo de uma

separação…) ou psicológicos (fracasso de uma anterior união…).

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concubinato ignorando a existência, desde a Lei de 5 de Novembro de 1999, de um

novo estatuto jurídico de casal, ao lado do casamento, o do pacto civil de solidariedade.

Os casais podem agora escolher entre um estatuto pessoal e patrimonial muito amplo (o

do casamento) ou um estatuto menos vinculativo e menos desenvolvido (o do pacs),

parece necessário preservar a liberdade individual de viver em casal “ fora do direito”

ao deixar ao concubinato o seu carácter “juridicamente incompleto”. Deste modo se

explica provavelmente que a Lei de 15 de Novembro de 1999 se tenha contentado em

definir esta situação num artigo 515º-8 novo, sem desenvolver os efeitos (v. infra, nº

268 e seguintes).

266 Pacto civil de solidariedade. Um novo estatuto especial. Desde a Lei de 15 de

Novembro de 1999, o direito oferece ao casal fora do casamento um novo estatuto civil

especial, o pacto civil de solidariedade. As circunstâncias da sua adopção explicam uma

existência já atribulada.

Enquanto a homossexualidade perdia progressivamente o seu carácter

vergonhoso na sociedade e o drama da Sida tinha flagelado profundamente a

comunidade homossexual, criando dores afectivas mas também dificuldades jurídicas, o

Tribunal de Cassação tinha recusado alargar aos casais homossexuais os benefícios que

a Lei reconhecia aos parceiros. A 11 de Julho de 1989, a Secção Social tinha

efectivamente decidido que os diplomas que conferiam direitos aos parceiros deviam ser

reservados aos parceiros heterossexuais, uma vez que a vida marital apenas podia dizer

respeito “a um casal constituído por um homem e por uma mulher1”. Apoiando-se nas

legislações estrangeiras que adoptavam a solução inversa, as associações de

homossexuais esforçaram-se por fazer votar um novo estatuto jurídico para os casais

considerados2. Após discussões acaloradas de uma parte e de outra, a Lei de 15 de

Novembro de 1999 criou portanto, no Livro Primeiro do Código Civil (consagrado às

Pessoas), um título doze novo instituindo o “pacto civil de solidariedade”, título

1 JCP 1990. II.21553, RTD civ. 1990, pág.53. 2 Proposta de Jean Hauser, propostas de “parceria civil” apresentada ao Senado em Junho de 1990, de

união civil” registada na Assembleia Nacional em Novembro de 1992, de “ contrato de união social”

entregue ao Parlamento em Setembro de 1995, de “contrato de união civil e social”, apresentada em

Junho de 1997…

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transformado em título treze a contar de 1 de Janeiro de 2009 pela Lei de 5 de Março de

2007.

Foram numerosos os defeitos legislativos, nomeadamente devido às condições

de adopção de um estatuto concebido e votado num ambiente pouco sereno, sendo que

as discussões ideológicas deixaram de lado toda a análise técnica. A “reescrita” da Lei

pelo Tribunal constitucional1, a 9 de Novembro de 1999, não foi suficiente para dar ao

diploma uma coerência satisfatória. Uma reforma da legislação iria revelar-se então

necessária. Porém, foi preciso esperar pela Lei de 23 de Junho de 2006 sobre a reforma

das sucessões e doações para que fosse melhorado, em diversos aspectos,

principalmente patrimoniais, este novo estatuto. E ocorreu ainda uma nova alteração,

aquando da Lei de 5 de Março de 2007 sobre a reforma da protecção jurídica dos

maiores de idade. Pensa-se que irão surgir novas alterações para resolver as numerosas

dificuldades que o direito positivo ainda coloca (v. infra, nº 292 e seguintes).

Mesmo que apareça antes de mais como a resposta do legislador aos desejos das

associações de homossexuais, o pacto civil de solidariedade não está reservado aos

homossexuais e oferece a todos uma terceira via, entre casamento e concubinato. Após

arranques incertos2, parece hoje encontrar grande sucesso, e não apenas junto aos casais

homossexuais. É ainda muito cedo para avaliar as vantagens e riscos de um estatuto

também pouco desenvolvido no momento e do qual é até tão fácil desvincular-se.

267 Plano. O casal fora do casamento pode então, hoje, escolher entre duas formas

jurídicas: o concubinato (Título 1) ou o pacto civil de solidariedade (Título 2).

Título 1

1 N. Molfessis, JCP N 2000, 270. 2 Depois de registados 23 718 pactos em 2000, apenas se verificaram 19 802 em 2001, o que era pouco

comparado aos 303 500 casamentos celebrados na mesma época. Mas os 77 000 pactos celebrados em

2006 comprovam um atractivo recente e fulgurante.

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203

O concubinato

268 Uma definição legal. Grosso modo, pode-se definir o concubinato como a união

carnal entre duas pessoas que vivem “em casal” sem terem celebrado casamento. Até à

Lei de 15 de Novembro de 1999, o concubinato não era definido pela Lei mas pela

jurisprudência. E esta consagrava uma noção de “conteúdo variável”1, isto é, a definição

que se fixava variava consoante a regra que se tratava de aplicar. A Lei de 15 de

Novembro de 1999 fixou uma definição única no artigo 515º-8 do Código Civil.

A condição central é a da “vida em comum”. A utilização da mesma expressão

para designar a vida em constância de casamento, a vida em constância de pacto civil de

solidariedade, e a vida em constância de concubinato, leva a priori a transpor para aqui

a definição de vida em comum fixada pelo direito do casamento2: parece necessária uma

comunhão de cama e de tecto. Mas parece possível, tal como no casamento, partilhar

uma “vida em comum” apesar das “residências separadas” por razões profissionais (v.

supra, nº 110). No entanto a dita vida em comum deve apresentar algumas

características. Deve, diz o texto, ser “estável” e “contínua”. A Lei retomou deste modo

duas condições tradicionais na jurisprudência, a saber uma duração e uma permanência

suficientes no tempo.

Já a Lei de 15 de Novembro de 1999 descartou a condição de diferença de sexo

que a jurisprudência tinha fixado. O Tribunal de Cassação tinha com efeito estabelecido

como princípio que os diplomas que conferissem direitos aos parceiros deviam ser

reservados aos parceiros heterossexuais, uma vez que a vida marital apenas podia

referir-se a “ um casal constituído por um homem e uma mulher”3. Esta interpretação

1 A. Benabent, Droit de la famille, Litec. 2 O Tribunal constitucional declarou aplicável ao pacto civil de solidariedade a 9 de Novembro de 1999,

v. infra, nº 320. 3 Soc., 11 de Julho de 1989, Grands arrêts, nº 27. Nas duas sentenças proferidas no mesmo dia, o

Tribunal de Cassação tinha recusado conceder ao parceiro de um Comissário de bordo da Air France os

bilhetes de entrada grátis atribuídos aos cônjuges ou parceiros e tinha negado o benefício de seguro de

doença maternidade à mulher parceira de uma concubinato de uma beneficiária da segurança social. A

mesma recusa tinha sido oposta para o benefício da permanência do arrendamento pelo motivo que “a

concubinato só podia resultar de uma relação estável e continua com a aparência do casamento, logo entre

um homem e uma mulher”, Civ. 3ª, 17 de Dezembro de 1997, Bol., nº 225, p.151.

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tinha sido criticada por ignorar o direito de respeito à vida privada dos interessados e

por constituir uma discriminação infundada, nomeadamente aos olhos do direito

europeu (TEDH, art.º 8º). Apesar disso, a solução explicava-se sem dificuldade, uma

vez que o direito de concubinato se construiu por referência ao casamento, que apenas

conhece a união oficial de duas pessoas de sexo diferente (v. supra, nº79). Após ter sido

parcialmente excluída pela Lei de 27 de Janeiro de 1993, que tinha concedido ao

parceiro de concubinato homossexual o benefício do seguro de doença - maternidade,

benefício que o Tribunal de Cassação lhe tinha recusado (Código da Segurança Social,

art.º L 161-14, par. 2, redacção da Lei de 27 de Janeiro de 1993, art.º 78º), esta solução

foi pura e simplesmente abandonada pela Lei de 15 de Novembro de 1999. O artigo

515º-8 estipula até explicitamente que o concubinato é a união existente “entre duas

pessoas de sexo diferente ou do mesmo sexo”1. Esta definição leva além disso a reservar

a qualificação aos únicos casais de duas pessoas, mesmo se, hoje como ontem2, a

exclusividade já não parece figurar na definição3.

No entanto questiona-se sobre a existência das condições de idade, exogamia,

até mesmo consentimento, que o direito impõe em matéria de casamento.

269 Sem regime legal associado. Plano. Por mais curioso que pareça o método

legislativo que consiste em definir uma situação (e portanto a constituir daí uma

situação jurídica) sem lhe associar um efeito específico (uma instituição nomeada e

definida pela Lei mas sem conteúdo?), a Lei de 15 de Novembro de 1999 ficou-se por

esta apreensão minimalista do concubinato. Hoje, como antes, o concubinato não está

1 Corroborando portanto as sentenças de alguns juízes da matéria. V. por exemplo, admitindo a

indemnização do dano sofrido por um dos parceiros devido à morte acidental do outro: TI Belfort, 25 de

Julho de 1995, JCP 1996. I. 3902, nº 3. 2 “A jurisprudência, ao admitir que a morte de um homem que dividia a vida entre a esposa e a amante

levaria ao pagamento de indemnização pelo dano sofrido pela esposa e pela “concubina”, parecia excluir

semelhante condição.” 3 Ao especificar que a concubinato é a união de “duas pessoas…”, o texto impede considerar que existe

uma concubinato “a três” (ou mais). Mas isto não significa que cada membro do casal considerado seja

“obrigado” a apenas manter relações sexuais com o outro. Todavia, nota-se que as condições de

“estabilidade” e de “continuidade” da vida em comum constituem provavelmente um limite a uma

eventual pluralidade de parceiros.

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enquadrado por nenhuma regra civil especial. Isto não significa que não produza

qualquer efeito. Três princípios determinam as consequências que lhe são associadas.

Negativamente, primeiro, escapa ao estatuto matrimonial. De modo mais geral, não é

regido por nenhum estatuto de conjunto, não está dotado de um verdadeiro “regime

jurídico” na medida em que não existe “um conjunto de regras coerente e completo”

comparável ao que existe em matéria de casamento (Capítulo 1). Positivamente, no

entanto, produz alguns efeitos jurídicos. Estes efeitos resultam quer da consagração

legal ou jurisprudencial de algumas regras próprias desta situação de facto, uma espécie

de direito especial do concubinato (Capítulo 2), quer da utilização judiciosa – forçada

até - do Direito Comum (Capítulo 3).

Capítulo 1

A exclusão do estatuto conjugal

270 Rejeição do estatuto conjugal. O casamento é dotado de um verdadeiro estatuto,

que abrange todas as questões pessoais ou patrimoniais susceptíveis de serem colocadas

relativamente aos cônjuges ou que interessam também terceiros, independentemente de

surgirem no início do casamento, durante a vida conjugal ou aquando da dissolução da

união. A coerência e a completude caracterizam este estatuto, nomeadamente em

matéria patrimonial (v. supra, nº 133).

E a jurisprudência recusou estender este estatuto aos parceiros: fazendo

prevalecer a ausência de celebração de um casamento sobre a existência de uma vida em

comum comparável à do casamento, o Tribunal de Cassação recusou proceder por

analogia. A solução, por vezes rigorosa de facto, parece fundada no direito: não é

descabido tratar os parceiros como solteiros, uma vez que são eles que escolhem com

mais frequência este modo de vida por rejeição do compromisso conjugal. E, admitindo

até que tenham jurado reciprocamente respeito, fidelidade, socorro, assistência e

educação dos filhos comuns, a promessa não se equivaleria ao casamento, devido à

recusa em oficializar o compromisso e a vontade em mantê-la na esfera privada. Em

suma, o direito limita-se a responder, não sem alguma lógica, ao eventual pedido de

juridicidade: “ nenhum direito onde se recusa o direito”.

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Não sendo juridicamente consideradas pessoas casadas, os parceiros são em

princípio tratados pelo direito como solteiros, independentes um do outro. Não lhes é

imposto nenhum dos deveres conjugais: nem o dever de fidelidade, nem o dever de

assistência, nem o dever de comunhão de vida…; não há qualquer vínculo jurídico a

restringir a liberdade para se separar. E esta independência pessoal acompanha a

independência patrimonial: não há qualquer regime matrimonial a regular a vida

patrimonial dos parceiros, que portanto não têm o dever de contribuir com os encargos

da união (art.º 214º do Código Civil; v. supra, nº 125)1, nem de responder

solidariamente às dívidas domésticas (art.º 220º do Código Civil; v. supra, nº 127)2,

permanecendo cada um proprietário dos seus bens e gerindo-os livremente, sem que se

crie riqueza comum ou passivo comum… Tão-pouco beneficiam de direitos

sucessórios3.

Assim subtraída do estatuto matrimonial, o concubinato escapa naturalmente,

para além disso, por um lado, às condições de formação do casamento e por outro lado

às condições da sua dissolução (não existe nenhum “caso de des-concubinato”

comparável aos casos de divórcio”, esta associação de condições, tanto de fundo como

de processo, e efeitos; cf. Supra, nº 171)

Capítulo 2

A existência de algumas regras especiais

271 Legislações especiais fragmentárias. Se são assim subtraídos do estatuto

matrimonial, os parceiros não são apesar disso ignorados pela Lei. Ao longo do século

XX surgiram progressivamente diplomas especiais que conferem a esta situação de

facto este ou aquele efeito particular. Este movimento não poupou o direito civil, sendo

particularmente surpreendente na legislação social e fiscal que atribui inevitavelmente

1 Civ. 1º, 11 de Janeiro de 1984, Bol., nº 12, Civ. 1º, 28 de Novembro de 2006, Bol., nº 517. Cada um

deve portanto suportar as despesas da vida quotidiana a que se expôs. 2 Civ. 1º, 27 de Abril de 2004, Bol., nº 113. 3 Ao contrário do cônjuge sobrevivo, o parceiro sobrevivo já não pode tirar partido da atribuição

preferencial (Civ. 1º, 9 de Dezembro de 2003, Bol., nº 253) salvo, desde a Lei de 23 de Junho de 2006, se

foi instituído legatário universal ou a título universal (artigo novo 833.º).

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uma grande importância à experiência vivida. Este movimento comprova uma certa

parcialidade ideológica, que decide considerar uma solidariedade patrimonial e afectiva

de facto, sem se preocupar com a existência ou ausência de um qualquer compromisso

oficial e durável.

Embora se multiplicando, estas regras especiais permanecem muito limitadas a

esta ou aquela questão pontual para que seja possível falar hoje de “estatuto” do

concubinato. Para além disso, é surpreendente constatar que elas nunca dizem respeito

directamente às relações entre parceiros mais somente às relações com terceiros. É que

o direito hesita em introduzir a coacção jurídica onde este foi voluntariamente

descartado pelos interessados, portanto nas relações entre parceiros do concubinato, mas

que recusa ao mesmo tempo a terceiros o direito de invocar esta política de não-

compromisso observada pelos parceiros em nome do direito à vida privada destes

últimos. Daí um sistema jurídico no limite da incoerência.

Este direito especial dá prioridade à solidariedade patrimonial que cria a vida em

comum (Secção 1) e à solidariedade pessoal que origina a afeição que constitui

geralmente a existência de um casal (Secção 2).

Secção 1

A solidariedade patrimonial

272 Solidariedade patrimonial e direitos especiais. A solidariedade patrimonial que

vincula os parceiros em concubinato pode ser oposta por estes a terceiros ou, pelo

contrário, invocada por terceiros.

Os terceiros são obrigados por alguns diplomas especiais a dar efeito à

solidariedade patrimonial vivida. O concubinato é assim juridicamente reconhecido pelo

direito social, sendo que o benefício da segurança social (subsídio de doença,

maternidade, reforma) foi progressivamente aberto aos parceiros. Foram-lhes

igualmente reconhecidos os diversos direitos resultantes da legislação sobre os contratos

de arrendamento: direito à permanência na habitação criada pela Lei de 1948 para

benefício das “pessoas a cargo que viviam efectivamente” com o arrendatário (art.º 5º);

direito à renovação do contrato reconhecido pelas Leis de 1982 (art.º 16º) e 1989 (art.º

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208

13º e 15º). O direito da segurança social previa de igual modo que se considerassem os

recursos do parceiro em concubinato para calcular a pensão de solidariedade às pessoas

de idade ou a pensão a favor de adultos deficientes (art.º L. 815-4 e seguintes, 821.º-3

Código da Segurança Social).

Antigamente o direito do divórcio resultante da Lei de 11 de Julho de 1975

autorizava um dos ex-cônjuges a opor ao outro a solidariedade patrimonial que o unia

ao seu parceiro. A Lei previa assim que um concubinato fizesse perder a pensão

alimentar paga pelo ex-cônjuge (antigo artigo 283º do Código Civil)1 e terminasse o

eventual contrato judicial de locação concedido sobre um bem pertencente ao outro

(antigo art.º 285º- 1 Código Civil). Estas disposições especiais extinguiram-se com a

reforma de 26 de Maio de 2004, deixando no entanto ao juiz o poder para considerar

uma “alteração importante nos recursos ou as necessidades de uma ou de outra parte”

(art.º 276º-3), v. supra. nº 234 e seguintes) ou rescindir o contrato se “novas

circunstâncias” assim o justifiquem (art.º 285º-1, v. supra, nº 239). Por fim, mais

recentemente, o direito fiscal tem procurado extinguir os benefícios que até aqui

reservava aos parceiros ao alinhar o seu estatuto fiscal com o dos cônjuges.

Secção 2

A solidariedade pessoal

273 Solidariedade pessoal e direitos especiais. A afeição, comprovada pelo

concubinato, assim tida em conta pelo direito social e civil devido à comunhão

patrimonial que induz, faz para além disso presumir de modo natural uma solidariedade

pessoal entre os interessados.

Esta afeição explica que o direito trata cada parceiro de um concubinato como

uma pessoa influenciada, donde resultam diversas incompatibilidades, nomeadamente

profissionais, e diversas imunidades, em particular penais (impunidade da ausência de

1 Para as eventuais consequências da concubinato mantida por um dos ex-cônjuges relativamente à

prestação compensatória, que depende das necessidades e capacidade financeira de cada um, v. art. 271 s.

C. civ. V supra, nº 232.

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209

denúncia ou do encobrimento do criminoso…: V também art.º 434º-1, 434º-6, 434º-11

do Código Penal)1.

Explica também que o direito penal agrava a sanção penal de algumas infracções

quando o autor é o parceiro do concubinato da vítima (art.º 132º-80, 221º-4, 222º-3,

222º-8, 222º-10, 222º-13, 222º-24, 222º-28).

Mas esta união afectiva de pessoas pode de um modo inverso surgir para

justificar uma confiança particular em relação aos interessados. Assim se explica que o

concubinato tenha sido considerado no direito paternal. Numa primeira fase, os

cônjuges obtiveram do legislador a faculdade para pedir ao juiz, mediante pedido

conjunto, o exercício em comum do poder paternal sobre o filho do casal (art.º 374º,

par. 2, redacção da Lei de 22 de Julho de 1987). Este direito2 tinha sido reforçado pela

Lei de 8 de Janeiro de 1993. Esta Lei tinha com efeito previsto que o exercício conjunto

existiria automaticamente, sem nenhuma formalidade, com a condição de que: 1º) a

criança fosse reconhecida por ambos os pais no seu primeiro ano de vida; 2º) os pais

estivessem vinculados por uma comunhão de vida aquando do reconhecimento da

criança (art.º 372º, par.2 do Código Civil). A Lei de 4 de Março de 2002 reforçou esta

tendência ao instaurar um novo princípio: “o pai e a mãe exercem em comum o poder

paternal” (art.º 372º, v.infra, nº552). Deste modo enaltecido na legislação, o mito do

casal parental3 levou naturalmente o legislador de 1994 a abrir aos parceiros a via da

assistência médica à procriação, com a condição de terem de provar a existência de uma

vida em comum de no mínimo dois anos aquando do pedido (art.º L. 2141º-2 do C.

1 Sem qualquer tipo de relação, antigamente o direito de filiação alterava o ponto de partida do prazo

prefixo de dois anos aplicável à acção de investigação de paternidade, ponto de partida em princípio

fixado logo no nascimento, quando a acção de investigação era exercida contra o antigo parceiro da mãe

após ruptura da concubinato: era então nos dois anos da ruptura que a mãe podia agir em justiça (art. 340-

4 do Código Civil; v infra, nº 425). Esta disposição extinguiu-se com a reforma realizada pelo decreto-lei

de 4 de Julho de 2005. 2 Com efeito o Tribunal de Cassação rejeita todo o poder de controlo ao juiz de família: Civ. 1º, 26 de

Junho de 1990, JCP 1991.II.21688, Defrénois 1990.1295. 3 Sobre este assunto ver Dekeuwer-Défossez, “Réflexions sur les mythes fondateurs du droit

contemporain de la famille”, RTD civ. 1995.249 s.

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210

saúde pública, v. infra, nº 509)1. Pode-se ficar surpreendido com a distorção

estabelecida com o direito de adopção, uma vez que esta permanece fechada aos

parceiros (art.º 346; v. infra, nº 466). Assim se explica também que a reforma do direito

dos maiores de idade protegidos tenha conferido ao parceiro de um concubinato o

direito de pedir na justiça a instauração de uma tutela, curadoria ou salvaguarda da

justiça, e que tenha incluído o parceiro de um concubinato nas pessoas susceptíveis de

exercer as diversas responsabilidades tutelares (novo artigo 430º, 449º). Na mesma

perspectiva, o Código de Saúde Pública confere ao parceiro de um concubinato o direito

de pedir o fim da hospitalização do outro parceiro por anomalias psíquicas sem o seu

consentimento (art.º L. 3211-12 e 3212-9 CSP). Salienta-se também que o concubino

faz parte do círculo estreito de pessoas com autorização para efectuar uma doação de

órgãos, em vida, em benefício do receptor (art.º L. 1231-1 CSP).

Capítulo 3

O auxílio do Direito Comum

274 Paliativo do Direito Comum. Deste modo limitado a esta ou aquela regra pontual,

o regime jurídico do concubinato permanece muito embrionário: não abrange todas as

relações mantidas pelos parceiros com terceiros e não regula o conjunto das relações

mantidas entre os próprios cônjuges. Esta parcialidade, provavelmente lógica na teoria,

provou-se por vezes humanamente rigorosa. Surgiu então a ideia de utilizar os recursos

do Direito Comum para introduzir mais equidade no concubinato. O que é comprovada

aos limites – carácter fictício? – da política de não direito oficialmente levada a cabo.

Secção 1

A organização voluntária do concubinato pelos parceiros

275 Recurso ao contrato por parte dos parceiros. Os próprios parceiros utilizam por

vezes a liberdade contratual oferecida pelo artigo 1134º do Código Civil para

organizarem as suas relações.

1 Daí a ideia de alterar o direito da adopção e abrir esta instituição, inicialmente reservada aos casais

casados, aos casais em concubinato. A reforma da adopção não seguiu esta via.

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211

Esta utilização do molde contratual, relativamente corrente nos Estados Unidos

e nos países nórdicos, é mais rara na França onde parece dificilmente conciliável, por

um lado com a liberdade que procuram, por hipótese, os parceiros, e por outro lado com

a defesa da instituição do casamento (e até agora também a do pacto civil de

solidariedade).

Os contratos que podem ser celebrados entre parceiros são diversos: pontuais ou

mais alargados, regendo as relações pessoais ou as questões patrimoniais.

276 Matéria pessoal. A sua validade é improvável quando o seu objecto é de ordem

pessoal.

A convenção pela qual os cônjuges se sujeitariam aos deveres de fidelidade,

assistência… ou se comprometeriam de modo permanente seria provavelmente anulada,

por ataque à instituição do casamento e aos bons costumes1, mas também pela violação

da liberdade individual (sendo que esta última se opõe a que semelhantes compromissos

sejam estipulados fora do casamento ou do pacto civil).

Convém no entanto referir a excepção dos eventuais pactos paternais, que a Lei

autoriza – e até favorece – (art.º 373º-2-7 e 373º-2-10 e 373º-2-11 e 376º-1 Código

Civil; v.infra, nº 529). Mas esta liberdade não está reservada aos únicos parceiros:

beneficia de modo mais geral todos os pais (v. infra, nº 529). Para além disso, a eficácia

dos acordos de vontade não está, mais uma vez, sem limites (v. not. art.º 373º-2-13, v.

infra, nº 568).

277 Matéria patrimonial. Esta utilização do modelo contratual perante o silêncio da Lei

manifesta-se de modo mais frequente em matéria patrimonial, sendo que os parceiros se

esforçam por criar entre si uma solidariedade financeira. O contrato irá dar-se

frequentemente por objecto limitar a independência patrimonial resultante, no Direito

Comum, da qualidade de solteiro. Irá tratar-se fundamentalmente de criar, por

1 A protecção desta instituição que é o casamento baseia a sua exclusividade na matéria; quanto aos bons

costumes, estes opõem-se na medida em que as relações carnais sejam prometidas por contrato (se não se

prefere falar da indisponibilidade do corpo humano).

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212

“contemplação” do casamento1, um diminutivo do regime matrimonial, primário, legal

ou convencional, ou um diminutivo de vocação sucessória matrimonial (ver estas

questões na ordem matrimonial, supra, nº 122 e seguintes), ou de se inspirar no divórcio

relativamente a esta ou aquela regra para organizar uma eventual ruptura.

Os parceiros poderão assim estipular uma cláusula de solidariedade para

benefício de um terceiro, repartir entre si as responsabilidades da vida em comum2,

adquirir um bem em regime de indivisão ou em tontina3, constituir entre si uma

sociedade, celebrar um seguro de vida, instituir um legatário testamentário, gratificar-se

por doação…, isto com o objectivo de atenuar a ausência de regime matrimonial e de

vocação sucessória entre parceiros.

O objecto do acto poderá também consistir em organizar a ruptura para

restringir a liberdade que, em princípio, a caracteriza (v. infra, nº 281): o autor da

ruptura poderá ser obrigado a pagar uma indemnização ao outro4 devido ao acordo

inicial. Poderá também transformar unilateralmente em obrigação plenamente

vinculativa a obrigação natural (que os tribunais identificaram nesta matéria) de

satisfazer as necessidades do outro após dissolução da união… Em ambos os casos, o

acto visa proceder a uma certa aproximação com a dissolução de um casamento por

divórcio.

1 Sobre esta expressão, v. Mayaux, “ Les concubinages, Les contrats des concubins”, in Les concubins,

préc. 2 Sobre a rejeição desta partilha por falta de prova de compromisso, v Civ. 1º, 28 de Janeiro de 2005, Bol.,

nº 278, p. 232. 3 A cláusula de crescimento, normalmente dita “tontina”, é aquela que os compradores de um bem

indiviso acordam que a aquisição será considerada feita pelo único beneficiário sobrevivo de entre si, isto

desde o dia da aquisição, sendo que o aquele morrer primeiro será retroactivamente considerado nunca ter

sido proprietário. 4 Basta que semelhante indemnização não tenha, devido ao seu montante, “um carácter particularmente

vinculativo” e não seja assim um “meio para dissuadir um parceiro de toda a vontade passageira de

ruptura contrária ao princípio da liberdade individual”: Civ. 1º, 20 de Junho de 2006, Bol., nº 312.

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213

Poderá por fim tratar-se de organizar o dever de sustento em relação a filhos

comuns (v. infra, nº 561 e seguintes)1.

278 Limites inerentes a uma fonte voluntária. De qualquer das formas, a natureza

contratual destas atenuações encerra-as em estreitos limites.

Os primeiros limites prendem-se com a sua validade, dado que estes actos

jurídicos estão sujeitos ao Direito Comum: devem emanar de um consentimento

informado (art.º 1109º), ter uma causa lícita (art.º 1131º e 1133º)2, etc…

Os segundos limites prendem-se com a sua eficácia: incumbe a quem se vale de

semelhante acto produzir a prova da sua existência3.

Os terceiros limites prendem-se com os seus efeitos, reservados às partes

contratantes e inexistentes para com ou contra terceiros (art.º 1165º).

Mais fundamental ainda é o facto da própria existência de semelhante

organização não ser frequente: resultando de uma vontade jurídica, e supondo até de

modo muito frequente as vontades acordadas de ambos os parceiros, esta organização

do concubinato encontra-se mais vezes nos casais com mais posses, sendo que os menos

abastados não tomam a precaução de organizar as suas relações por desconhecimento do

direito, receio dos custos do recurso a um profissional do direito…

1 Civ. 1º, 20 de Junho de 2006, Bol., nº 312, anula por exemplo uma convenção que prevê que o cônjuge

desempregado ou tendo renunciado a emprego poderia pedir ao outro uma indemnização igual à metade

do seu salário na condição de que os filhos fossem criados na sua casa, nomeadamente, pelo motivo de

que esta estipulação era “contrária às disposições de ordem pública que regem a obrigação alimentar”,

dado que a contribuição não era fixada “ em proporção dos recursos de cada um mas a um montante

fixo… susceptível de colocar o interessado na impossibilidade de executar as suas obrigações em relação

aos outros credores de alimentos”. 2 Actualmente é pouco frequente que as liberalidades ou contratos a título oneroso celebrados

individualmente sejam anulados por imoralidade da causa. Já pode-se pensar que as “convenções da

concubinato” que se praticam no estrangeiro e que se propõe por vezes admitir em França (Charlin, JCP

N 1991.I.459), convenções que se dão por objecto estender à concubinato todo o estatuto patrimonial do

casamento não encontrariam indulgência junto aos tribunais, dado que tentam obter os efeitos

patrimoniais do casamento ao evacuar, por um lado os efeitos pessoais e por outro lado o controlo estatal. 3 V também Civ. 1º, 28 de Junho de 2005, préc.

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214

Secção 2

A organização jurisprudencial do concubinato

279 Recurso ao Direito Comum. Equidade jurisprudencial. Estes limites da

“contratualização” do concubinato explicam que os sujeitos do direito se virem para o

Direito Comum não contratual em busca do seu auxílio.

Os juízes têm por vezes, no passado, aceitado “forçar” estas regras de Direito

Comum para fins de igualdade. Parecem talvez menos propensos a uma semelhante

deformação do Direito Comum. E, com efeito, a Lei de 15 de Novembro de 1999 que,

por um lado consagrou a ausência de efeito civil especial do concubinato, por outro lado

ofereceu aos casais um estatuto diferente do casamento sob a forma do pacto civil de

solidariedade. Desta forma pode-se compreender que os magistrados hesitem agora

forçar a Lei a vir em auxílio, a posteriori, dos parceiros que voluntariamente

escolheram, logo no início, viver sem direito.

Esta utilização do Direito Comum, que se encontra principalmente em matéria

patrimonial e sobretudo aquando da dissolução do concubinato, diz respeito quer às

relações entre os parceiros (1), quer às suas relações com terceiros (2).

1. As relações entre parceiros

280 Independência de cada um e dissolução sem direito. A independência conservada

por cada parceiro do concubinato durante a união encontra o seu prolongamento lógico

no final desta: independentemente da sua causa (ruptura ou morte), a dissolução da

união deveria resultar apenas da extinção da comunhão carnal existente de facto. Não

deveria, em teoria, dar lugar controlo algum, seja de que natureza, da autoridade

pública. Não deveria sobretudo fazer-se acompanhar de qualquer consequência ou

compensação financeira. Porém, o Direito não é lógica aritmética: diversas

considerações de justiça proíbem consagrar uma política absoluta de recusa dos efeitos

do direito. Os tribunais têm conhecido assim casos em que uma concubina1

“irrepreensível” (no sentido dos deveres do casamento: fidelidade, socorro,

1 A injustiça é, de facto, sofrida de modo mais frequente pela mulher do que pelo homem, uma vez que a

actividade profissional feminina permanece menos estável e menos lucrativa do que a dos homens.

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215

assistência…), após ter consagrado a sua vida a criar os filhos comuns e a dedicar-se ao

seu companheiro era irremediavelmente abandonada por este. Os tribunais têm assim

vindo em auxílio da vítima através de diferentes vias.

281 Liberdade para romper a união e limites. Porque não prometeu nada

juridicamente ao outro, um parceiro de um concubinato pode em princípio livremente

romper a união. Não tem de invocar qualquer “caso” de ruptura (no sentido de “caso” de

divórcio, v. supra, nº 171) e não deve assumir qualquer responsabilidade financeira

particular1. Mas esta liberdade para “sair do concubinato”, que resulta logicamente do

facto de que os próprios parceiros se isentaram voluntariamente de todo o compromisso

durável (v. supra, nº 270), conhece, como toda a liberdade, limites.

Se a liberdade caracteriza o concubinato (precisamente designada “união livre”),

aquando do seu estabelecimento, da ruptura e durante a vida em comum, o Tribunal de

Cassação considerou com efeito que podia ser imputada a quem fizesse um mau uso

desta liberdade uma culpa pelo qual devia responder se tivesse causado dano (art.º

1382º). A responsabilidade civil por factos ilícitos permite aos tribunais proceder a uma

avaliação global da situação de facto: qualidade das relações pessoais, atitude recíproca

de ambos os parceiros, tanto aquando do estabelecimento das relações como durante a

vida em comum ou aquando da ruptura, consequências da ruptura… Resulta daqui uma

certa aproximação entre ruptura da união livre e dissolução de um casamento, sendo que

o limite resulta do controlo exercido sobre a união livre permanece facultativo no seu

princípio (é preciso que se recorra à justiça) e de igualdade na sua realização (uma vez

que está isento de todo o critério legal imperativo) enquanto o controlo do juiz de

divórcio, obrigatório se os parceiros pretendem reconquistar a sua liberdade (pessoal e

patrimonial), está enquadrado muito estritamente pela Lei (v. supra, nº 165 e seguintes).

A imprecisão da noção de culpa e a dificuldade que se tem em avaliar um dano

muitas vezes exclusivamente moral levam a sugerir que um diploma especial venha a

especificar o princípio e os seus limites.

1 Civ. 1º, 17 de Junho de 1953, D 1953. 596.

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282 Independência patrimonial e limites. Além do mais, se a ausência de casamento

origina naturalmente a ausência de regime matrimonial e de vocação sucessória (v.

supra, nº122 e seguintes), a solidariedade patrimonial efectivamente vivida durante a

união limita por vezes o que uma independência patrimonial jurídica absoluta poderia

ter de chocante aquando da dissolução da união, quer esta resulte do facto da separação

dos parceiros da união ou da morte de um deles.

Uma vez mais, o Direito Comum permite por vezes atribuir a um dos parceiros

da união um benefício patrimonial ao ter em conta a solidariedade patrimonial vivida.

Primeiro tal é o caso quando existe entre os parceiros uma sociedade de facto. É

necessário ainda que três elementos estejam reunidos1: a existência de contribuições (os

contribuições recíprocas podem fazer-se em dinheiro, em espécie, mas também em

indústria2), a affectio societatis (resultante da intenção de colaborar em pé de igualdade

na realização de um projecto comum3), a intenção de participar nos lucros e nas perdas.

Semelhante qualificação leva, no momento da dissolução da sociedade, a partilhar o

activo social proporcionalmente às respectivas contribuições (quota-parte que é aliás

muitas vezes difícil de determinar), após liquidação do passivo social. Os tribunais

recorrem também à noção de enriquecimento sem causa: se um dos parceiros tiver,

através do seu trabalho não renumerado, permitido ao outro enriquecer (ou não

empobrecer), nomeadamente ao colaborar na sua actividade profissional, até mesmo,

mas muito raramente, ao trazer gratuitamente o seu auxílio ao lar, do qual resultou em

seu detrimento um empobrecimento (por lucros cessantes ou perda patrimonial

comprovada), o empobrecido pode exigir do enriquecido uma indemnização

compensadora.

1 Com. 23 de Junho de 2004, Bol., nº 134, nº 135: estes elementos devem ser assentes cumulativamente e

separadamente. 2 Semelhante contributo pode consistir no trabalho fornecido por cada um no âmbito de uma actividade

comum (exploração de fundo de comércio ou de uma empresa agrícola ou de um fundo liberal…) ou até

no trabalho de um parceiro sobre um bem que pertence a outro (Civ. 1º, 19 de Abril de 2005, Bol., nº

187). 3 A intenção de se associar não se pode deduzir da participação financeira na realização de um projecto

imobiliário, sendo que a prova da intenção de participar nos resultados de um empreendimento comum

deve ser relatada: Com., 23 de Junho de 2004, Bol., nº 135.

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Sem ir ao ponto de assimilar casamento e concubinato, estas duas instituições de

Direito Comum permitem aos tribunais conferir eventualmente um “diminutivo” da

parte de comunhão em fim de união a um parceiro. Com, uma vez mais, o limite que

resulta do carácter aleatório da atribuição deste diminutivo, da incerteza do seu

montante e, em todos os casos, da necessidade de uma decisão judicial nesse sentido.

283 Afecto e ausência de independência. Por fim, baseando-se no afecto que une os

parceiros e a vida que partilham, o direito aceita em diversos aspectos não os considerar

solteiros independentes. Das suas relações, resulta assim por vezes uma impossibilidade

moral de pré-constituir uma prova escrita (art.º 1348º) ou interpor uma acção judicial

para interromper a prescrição. A sua vida em comum pode igualmente tornar equívoca a

posse de um bem que um parceiro pretenderia opor ao outro como prova do seu direito

de propriedade (art.º 2279º).

2. As relações com terceiros

284 Plano. O Direito Comum tem em conta a solidariedade patrimonial (A) e afectiva

(B) dos parceiros.

A. A solidariedade patrimonial dos parceiros

285 Teoria do património. A teoria clássica do património torna estanque ambos os

patrimónios dos parceiros. Dado que não são casados, não existe qualquer comunhão de

bens entre si pronta a receber o activo e o passivo comuns. As duas massas distintas que

ambos os patrimónios constituem permanecem portanto em princípio sem qualquer

relação entre si para além daquelas que podem resultar de um contrato gerador de uma

obrigação pessoal ou que transfere a propriedade de um bem… E estas duas massas irão

em princípio continuar a prosperar distintamente, a enriquecer ou empobrecer

separadamente. Cada um por si e cada um para si. Nem pensar em teoria, então,

invocar a eventual solidariedade patrimonial contra terceiros e tão pouco para os

terceiros pretender agir contra o parceiro do concubinato do seu devedor.

286 Solidariedade patrimonial. A solidariedade patrimonial existente de facto durante

o concubinato limita esta independência teórica dos dois patrimónios autónomos e

confere eventualmente direitos a terceiros contra os parceiros e reciprocamente.

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287 Solidariedade invocada contra os parceiros. Pode virar-se contra os parceiros da

união ao tornar-se numa obrigação. A teoria da aparência permitiu por vezes a terceiros

invocar a solidariedade passiva contra os parceiros que tinham agido, de facto, como

pessoas casadas. Mas esta severidade do direito permanece excepcional, tendo em

consideração à regra que prevalece em princípio no direito civil (art.º 1202º)1.

288 Solidariedade invocada pelos parceiros. De modo mais frequente, a

responsabilidade patrimonial resultante de concubinato constituirá um título que poderá

ser oposto por um parceiro a terceiros.

1.A indemnização do dano resultante da morte acidental do parceiro do

concubinato

289 Esta solução foi validada, já lá vão uns cinquenta anos, a propósito da

indemnização do dano resultante para um parceiro pela morte acidental do outro.

Primeiro a indemnização foi recusada com a justificação de que o requerente não

invocava qualquer “interesse legítimo juridicamente protegido”2 e não podia tirar

partido de nenhum dano patrimonial certo devido à ausência, no direito, de qualquer

“vínculo de direito” entre a vítima falecida e pessoa que pede reparação ao autor do

acidente3. Porém, foi de seguida concedida, com a condição inicial de que o

concubinato não tivesse nenhum carácter delituoso e fosse estável4, depois com a única

condição que a união fosse estável e exclusiva5. A doutrina questiona-se até se a

condição de exclusividade ainda se justifica, considerando a evolução da jurisprudência

e da Lei na matéria. A tal se poderá objectar que a noção de dano reparável, que remete

1 Comp. Civ. 1º, 17 de Setembro de 2003, Bol., nº 181, admitindo que a concubinato é um elemento a ter

em conta na prova do carácter simulado de uma venda entre parceiros, venda destinada a esconder o bem

da penhora geral dos credores do intitulado vendedor, daí resulta apenas que o acto simulado é inoponível

a terceiros (art. 1321). 2 Civ., 27 de Julho de 1937, Grands arrêts, nº 181. 3 Era impossível afirmar que a morte de um causava para o outro um certo dano uma vez que nunca se

podia ter a certeza que a concubinato seria mantida na ausência de morte devido à liberdade reconhecida a

cada um para romper a união e a ausência, em semelhante caso, de um dever de cooperação entre

cônjuges; comp. supra, a propósito do noivado. 4 Crim., 24 de Fevereiro de 1959, JCP 1959. II.11905; Ch. Mista, 27 de Janeiro, Grands arrêts, nº 182. 5 Crim., 8 de Janeiro de 1985, JCP 1986.II.20588.

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para a existência de um “interesse legítimo juridicamente protegido”, opõe-se

provavelmente a uma política de indemnização tão pouco exigente.

2. Emergência de uma massa patrimonial comum de facto

290 Além desta indemnização do dano sofrido por um devido à morte do outro, a

emergência, de facto, de um património comum entre parceiros é evidente sob diversos

aspectos.

Por exemplo no estatuto do sobreendividamento das famílias, a Lei não

distingue os casais casados e casais em concubinato: limita-se a registar o peso da

capacidade financeira e encargos de cada um para decidir se há ou não lugar para abrir

tal processo.

Deve ser substituído na mesma perspectiva a jurisprudência, relativa à Lei de 1985

sobre os acidentes de viação, que proíbe a uma seguradora que indemnizou uma vítima

exercer de seguida um recurso contra um co-autor se for parceiro de um concubinato da

vítima indemnizada e não segurado: a ideia é que este recurso permitiria ao segurador

retomar com uma mão o que previamente se deu com a outra devido à solidariedade

patrimonial existente entre os parceiros1.

Deve-se acrescentar evidentemente a isto que o concubinato poderá ser tido em

conta em matéria de obrigação alimentar (ou prestação compensatória da fase posterior

ao divórcio). Para determinar a existência e o montante de uma dívida alimentar ou de

uma prestação compensatória, o direito tem em consideração a capacidade financeira e

todos os encargos, de direito (aquelas a que se está juridicamente obrigado ou às que se

tem direito) como de facto (aquelas a que alguém se sujeita voluntariamente ou que são

de facto pagas). O concubinato, quer se trate do devedor ou do credor, será assim

considerado.

1 F. Terré, Y. Lequette, Ph. Simuler, Les obligations, Précis Dalloz, nº 984.

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220

B. A solidariedade afectiva dos parceiros

291 Solidariedade afectiva. A solidariedade é ainda afectiva. E esta afectividade

partilhada produzirá no direito diversos efeitos.

Em primeiro lugar, irá autorizar um parceiro de um concubinato a pedir

reparação do dano de afeição que sofreu devido à morte ou ao sofrimento do outro, nas

condições atrás estabelecidas. (v.supra, nº 289).

Em segundo lugar, dará a palavra ao parceiro sobrevivo com o objectivo de

determinar a sepultura do falecido, eventualmente, dar prioridade à família resultante do

casamento. O direito limita-se com efeito a tentar fazer prevalecer as últimas vontades

do falecido: se foram explícitas, nenhum amigo, cônjuge, pais ou afins terá uma palavra

a dizer. Já se o de cujus não tiver explicitamente planeado o seu funeral, o direito

recomenda pedir à pessoa mais próxima para testemunhar a vontade do falecido. E os

tribunais dão aqui prioridade aos laços de afecto reais e não aos laços jurídicos do

parentesco ou afinidade.

Numa ordem de ideias próximas a união das pessoas, evidenciada pelo

concubinato, explica que a sua existência possa, até, acabar com o direito que tinha sido

reconhecido a um dos parceiros em usar o antigo apelido de casado após divórcio (art.º

264º; v. supra, nº 221).

Título 2

O pacto civil de solidariedade

292 Evolução. A Lei de 15 de Novembro de 1999 criou um novo estatuto, intermédio

entre concubinato e casamento, o pacto civil de solidariedade. Este estatuto suscitou

várias polémicas. Estava-se “a favor” ou “contra”, como bem disse Irène Théry,

ignorando-se geralmente tudo acerca do seu conteúdo. Os debates que envolveram a

aprovação da Lei desenrolaram-se num tal clima de paixões (uns brandindo a Bíblia

enquanto outros reivindicavam o orgulho gay), que o direito “ficou em águas de

bacalhau”. O resultado disto foi um diploma minado de não-ditos e imperfeições

técnicas que o Tribunal constitucional melhorou em diversos pontos (v. supra, nº 266).

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221

Teve de ser alterado, pela Lei de 23 de Junho de 2006, especificado pelo decreto de 23

de Dezembro de 2006. O novo dispositivo, aplicável aos contratos celebrados a partir de

1 de Janeiro de 2007, foi novamente modificado pela Lei de 5 de Março de 2007 (sendo

que estas novas disposições são apenas aplicáveis a partir de 1 de Janeiro de 2009).

293 Natureza jurídica. Porque organizar juridicamente os casais homossexuais

equivalia implicitamente a “legitimá-los”, e a sociedade francesa permanecia ainda

dividida sobre esta questão, o legislador esforçou-se por neutralizar esta carga simbólica

tentando impedir toda a comparação com o casamento, por um lado ao abrir este

estatuto a todos os casais, e não apenas aos casais homossexuais, e por outro lado ao

apresentar o pacto civil de solidariedade como um simples contrato destinado a

organizar, na ordem patrimonial, a vida em comum.

Mas esta “natureza” contratual oficial é refutada por diversos elementos:

primeiro, o lugar dos textos (inseridos no Livro Primeiro, que trata “Das Pessoas”, e não

no Livro 2, que trata “Dos bens e das diferentes alterações da propriedade”, o que

comprova que a questão é pessoal e não somente patrimonial); em seguida, a

incompatibilidade existente entre pacto civil e casamento e por fim, as analogias

existentes com o casamento (proibição de ter vários parceiros, do pacto civil de

solidariedade entre afins, referência à vida em comum, dever de auxílio mútuo,

consagração de uma solidariedade em relação a terceiros…). E as duas reformas

realizadas em 2006 e 2007 acentuaram ainda a semelhança com o casamento, por

exemplo ao impor aos parceiros do pacto civil de solidariedade um dever de

“assistência”, ou ao afirmar que cada um “conserva a administração, o usufruto e a livre

disposição dos seus bens pessoais”. Ou ainda ao estender ao parceiro do pacto

sobrevivo algumas disposições sucessórias abertas ao cônjuge sobrevivo, ou ao

submeter a celebração de tal pacto por um maior incapaz às regras que se assemelham

às fixadas em matéria de casamento.

A análise técnica leva a ver no pacto civil de solidariedade preferencialmente,

não um novo “contrato especial” mas antes um novo “estatuto legal”, que se junta ao

casamento, para organizar a vida de um casal. Para lá do símbolo, o busílis da questão é

o aspecto técnico. Se fosse um contrato “como qualquer outro”, o pacto civil de

solidariedade deveria ter sido submetido à teoria geral dos contratos (art.º 1101º e

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222

seguintes): pertenceria então ao domínio da liberdade contratual (salvo disposição legal

contrária), teria apenas um efeito relativo, poderia ser resolvido por incumprimento ou

reforçado pela estipulação de uma cláusula penal… Uma semelhante “contratualização”

do casal pode estar em conformidade com as evoluções contemporâneas da família e da

sociedade e com as aspirações de alguns. Mas não está isenta de perigo, uma vez que o

casal é um dos pilares da família que participa estreitamente na constituição do vínculo

social. Deste modo se explica que, não obstante os discursos oficiais sobre uma natureza

contratual por assim dizer “banal”, a jurisprudência tenha considerado que os artigos

515º-1 e seguintes do Código Civil criavam um novo vínculo “familiar” ao autorizar o

parceiro de um pacto civil de solidariedade a invocar o artigo L.30-1 do Código

eleitoral, que confere esta autorização aos “funcionários e agentes das administrações

públicas transferidos ou admitidos para fazer valer os seus direitos à reforma após

encerramento dos prazos de inscrição” assim como aos “parceiros da sua família

domiciliadas com eles na data da transferência ou da passagem à reforma”1. Torna aliás

discutível o silêncio da Lei em relação à competência do juiz de família.

294 Plano. A comparação entre o casamento e o pacto civil de solidariedade sai da

análise das condições de formação (Capítulo 1), efeitos (Capítulo 2) e dissolução do

estatuto (Capítulo 3).

Capítulo 1

A formação do pacto

295 Um casamento aberto aos homossexuais e sem conservador do registo civil. As

condições de formação do pacto civil de solidariedade são mais coisa menos coisa as

mesmas das existentes no casamento, tanto no que diz respeito às pessoas como no que

se refere à exigência de um consentimento. No entanto, surgem duas principais

diferenças: esta união não está reservada aos casais heterossexuais e não dá lugar a

nenhuma “celebração” por um conservador do registo civil comparável à existente em

matéria de casamento.

1 Civ. 2º, 25 de Março de 2004, Bol., nº 144. Adde Civ. 2º, 5 de Março de 2008, recurso nº 08-60229, que

recusa tratar o pacs como o casamento.

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223

Secção 1

As condições relativas às pessoas

296 Um pacto aberto aos homossexuais. A principal diferença entre casamento e pacto

civil de solidariedade refere-se à condição de diferença de sexo. Enquanto o direito de

casamento reserva esta união a um casal heterossexual (v. supra, nº 79), o artigo 515º-1

do Código Civil prevê que o pacto pode ser realizado por duas pessoas “de sexo

diferente ou do mesmo sexo”. O pacto é portanto aberto aos homossexuais sem lhes

estar reservado: pode igualmente ser celebrado por um casal heterossexual.

Esta indiferenciação sexual suscita críticas. Primeiro a doutrina lamenta a sua

importância simbólica: ao “assexuar” o casal, esta indiferenciação rejeita a diferença

dos “géneros”1. Mas também as consequências práticas são de lamentar. O direito

recusa consagrar um parentesco “homossexual”. A Lei tem portanto optado por não

associar qualquer “efeito de filiação” ao pacto civil de solidariedade. E este “ vazio

jurídico” em relação a uma eventual descendência é particularmente lamentável no que

toca aos casais heterossexuais: o direito institucionaliza um casal ao mesmo tempo que

consagra a sua irresponsabilidade paternal.

297 As condições de capacidade comparáveis às do casamento. As condições de

formação resultantes da Lei de 15 de Novembro de 1999 diferiam sensivelmente das do

casamento quanto à condição de capacidade. A reforma do casamento realizada pela Lei

de 4 de Abril de 2006 e a da protecção dos maiores de idade realizada pela Lei de 5 de

Março de 2007 aproximaram as regras.

A Lei de 1999 reservou o pacto civil de solidariedade às pessoas singulares

“maiores” (art.º 515º-1), estabelecendo deste modo uma diferença com o casamento,

que estava então aberto às raparigas de 15 anos (art.º 144º, v. supra, nº 78) e pela qual os

interessados podiam obter uma dispensa de idade por “motivos graves” (art.º 145º).

Tendo a Lei de 4 de Abril de 2006 aumentado para 18 anos a idade do casamento,

permanece agora apenas a diferença que se prende com a faculdade, para o Procurador

da República, em conceder as dispensas de idade em matéria de casamento (art.º 145º,

1 I.Théry, Revue Esprit.

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224

v.supra, nº 78). Não é absurdo autorizar o casamento aos menores por motivo grave, o

qual reside essencialmente na chegada de um filho, devido ao efeito de filiação

justamente associado ao casamento. A ausência de todo “efeito de filiação” do pacto

civil de solidariedade e a fragilidade das uniões contraídas por pessoas muito jovens

explicam que não se tenha previsto nenhuma dispensa de idade em matéria de pacto

civil de solidariedade.

A Lei de 15 de Novembro de 1999 contentou-se em proibir a celebração de um

pacto civil de solidariedade por um maior sob tutela (art.º 506º-11). A partir de 1 de

Janeiro de 2009, serão aplicadas novas regras devido à reforma da protecção dos

maiores de idade realizada pela Lei de 5 de Março de 2007. O maior de idade sob tutela

poderá celebrar um pacto civil de solidariedade (art.º 462º); mas deverá obter a

autorização de um juiz (ou do conselho de família caso tenha sido constituído), que irá

ocorrer após audição dos futuros parceiros e registo “eventualmente” do parecer dos

pais, afins ou familiares. Para além disso deverá ser assistido pelo tutor aquando da

assinatura da convenção (par.2); já a Lei exclui toda a assistência ou representação no

caso da declaração conjunta feita na Secretaria do Tribunal. Em relação ao maior de

idade sob curadoria este deverá ser assistido pelo curador para assinar a convenção pela

qual celebra tal pacto, mas não para proceder à declaração conjunta feita na Secretaria

do Tribunal.

Não se prevê nenhuma sanção. Tratando-se da condição de idade, pode-se

hesitar entre uma nulidade absoluta (inspirando-se na lógica matrimonial e considerando

que a condição de idade é uma condição de fundo da instituição, que lhe permite

cumprir a sua função, a saber organizar uma vida de casal2) e uma nulidade relativa (por

empréstimo da lógica contratual e ao considerar que a incapacidade visa somente

1 Não se tinha sido previsto nada relativamente ao maior de idade sob curadoria e do maior de idade sob

salvaguarda da justiça. O silêncio podia portanto ser interpretado como a consagração de uma plena

capacidade destes maiores ou como remetendo para o Direito Comum (o maior de idade sob salvaguarda

estava protegido contra um pacto civil para as acções em anulação e redução; o maior de idade sob

curadoria podia celebrar um pacto civil de solidariedade com a autorização do curador ou, na falta disto,

do juiz). 2 As disposições específicas que limitam o prazo para agir no casamento (art. 185.º) não têm aqui

equivalentes.

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225

proteger o consentimento do sujeito). Tratando-se dos maiores de idade incapazes, o

silêncio da Lei remete a priori para as sanções de Direito Comum: antes da entrada em

vigor da Lei de 5 de Março de 2007, o pacto realizado pelo maior de idade sob tutela é

nulo de direito (art.º 502º), o do maior de idade sob curadoria apenas era anulável (art.º

510º-1). A partir de 1 de Janeiro de 2009, o pacto celebrado sem observância das

formalidades exigidas só será anulado se daí resultar um dano para o maior de idade

(novo artigo 465º).

Questiona-se sobre a abrangência de semelhante condição em matéria de pacs.

298 Inspiração no casamento quanto à proibição de endogamia e poligamia. O pacto

civil assemelha-se muito ao casamento em relação às proibições que impõe,

nomeadamente a poligamia ou a endogamia (v. supra, nº 81 e 82).

Primeiro a Lei especifica que um pacto é celebrado entre “duas pessoas”,

excluindo deste modo o reconhecimento pelo direito de uniões múltiplas (art.º 515º-1).

Esta solução não está explicitada pelo direito do casamento, como é natural; mas resulta

implicitamente de diplomas que visam “o homem” e “a mulher”.

Em seguida a Lei proíbe explicitamente a celebração de tal pacto entre membros

da mesma família (art.º 515º-2). A proibição é sancionada de modo mais estrito do que

em matéria de casamento. O círculo de pessoas é o mesmo: primeiro o pacto está

proibido entre ascendente e descendente em linha recta, de seguida entre afins em linha

recta e por fim entre colaterais até ao terceiro grau incluído. Deste ponto de vista, a Lei

é a mesma. A diferença resulta, de que não há, a propósito do pacto civil, nenhumas das

possibilidades de dispensa que existem em matéria de casamento.

De seguida a Lei proíbe a acumulação dos vínculos do casal. Um pacto não pode

ser celebrado entre duas pessoas em que pelo menos uma já esteja casada ou vinculada

por um pacto civil de solidariedade (art.º 515º-2).

Esta tripla proibição inspira-se no casamento no que diz respeito aos seus tabus

sociais que são a endogamia, a poligamia, e as múltiplas uniões. Exige naturalmente

uma nulidade absoluta, como o Tribunal constitucional especificou acertadamente.

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Comprova sobretudo que o pacto civil de solidariedade não é um contrato relativo aos

bens, mas que institui socialmente um casal.

Secção 2

A condição do consentimento

299 O consentimento dos dois parceiros. Plano. Para além disso o pacto civil de

solidariedade não pode existir sem o consentimento acordado dos dois parceiros. Esta

condição de consentimento, essencial, está enquadrada em condições específicas, que

diferem do casamento, tanto na forma como no conteúdo.

1. As condições de forma

300 Pluralidade e ambiguidade das condições de forma. A Lei de 1999 tinha

instituído três formalidades: a celebração de um pacto dava lugar ao estabelecimento de

uma convenção em dois originais, depois a uma declaração conjunta feita pelos

parceiros na Secretaria do Tribunal de instância, depois uma inscrição do pacto num

registo pelo secretário do tribunal. A Lei esperava, por semelhante processo, assegurar

de uma vez o conhecimento de terceiros e o reconhecimento oficial do Estado, evitando

cuidadosamente reproduzir as formalidades nupciais. Deste modo se explicava que não

tivesse sido instituída nenhuma formalidade associando, de perto ou de longe, o pacto

civil de solidariedade ao estado civil. As formalidades foram alteradas pela Lei de 23 de

Junho de 2006, que se esforçou por especificar a respectiva abrangência das formas e

acrescentou uma publicidade na conservatória do registo civil.

301 A declaração conjunta na Secretaria do Tribunal. Primeiro a Lei exige das partes

que celebram um pacto civil de solidariedade uma “ declaração conjunta na Secretaria

do Tribunal de instância na área da sua residência comum” (art.º 515º-3 par. 1).

Esta formalidade é exigida sem nenhuma informação detalhada sobre a natureza

desta forma e a sua sanção. Enquanto a lógica contratual do consensualismo não deveria

associar nenhuma sanção relativamente ao desrespeito desta condição, a lógica

institucional justifica que esta forma seja considerada como uma verdadeira solenidade,

sancionada por nulidade. Para além disso, a sua dupla função, de foro privado

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227

(assegurar um consentimento livre e reflectido através da presença do secretário e o

formalismo desta mini cerimónia) mas também geral (constatação pública de união até

agora privada, oficialização de um casal reconhecido pela sociedade), justifica a priori

que seja sancionada por nulidade absoluta.

Ainda nesta lógica institucional, a noção de “declaração conjunta” remete a

priori para a comparência pessoal das partes, sendo que o recurso à representação

parece proibido. Esta exigência parecia lógica não apenas aquando da realização inicial

do pacto, mas também aquando de uma eventual alteração e até mesmo de uma ruptura

por um comum acordo. Se a letra dos diplomas resultantes da Lei de 15 de Novembro

de 1999 parecia levar a esta solução (art.º 515º-3, par. 7 art.º 515-7, par. 1), a

administração tinha admitido de modo mais flexível que uma alteração decidida por um

comum acordo fosse somente entregue ou dirigida ao secretário. A Lei de 23 de Junho

de 2006 consagrou explicitamente esta solução, tanto para a alteração (art.º 515º-3, par.

4) como para a sua ruptura (art.º 515º-7, par.4). A solução é lamentável, uma vez que

autoriza as fraudes.

302 A convenção previamente celebrada. Para além disso a Lei especifica que as

partes que declaram conjuntamente na Secretaria do Tribunal celebrar um pacto civil de

solidariedade “apresentam ao secretário a convenção celebrada entre si” (art.º 515º-3).

Ao exigir explicitamente a “apresentação” de uma convenção, o texto impõe

implicitamente o estabelecimento de um acto escrito. A mesma exigência vale para uma

convenção modificativa, cujo texto especifica que a convenção deve ser “entregue ou

dirigida à secretaria… com o objectivo de ser registada” (art.º 515º-3, par.4). Esta

apresentação é exigida sob “pena de inadmissibilidade” da declaração conjunta. VáriasVáriasVáriasVárias dificuldades resultam desta solução.dificuldades resultam desta solução.dificuldades resultam desta solução.dificuldades resultam desta solução. A primeira dificuldade diz respeito ao pacto civil de solidariedade que mesmo

não tendo sido celebrado por escrito teria sido registado pelo secretário. O que

aconteceria caso se verificasse que não se celebrou nenhum pacto por escrito?

Será que apenas se pode ver nesta condição de elaboração do documento escrito

uma simples regra de prova? Nesse sentido, verifica-se que a versão inicial do artigo

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515º-3 especificava que as partes apresentavam “ a convenção celebrada entre si em

dois originais”, retomando deste modo uma formalidade imposta pela Lei nos

documentos particulares incluindo os contratos sinalagmáticos (art.º 1325º). Verifica-se

também que a Lei de 23 de Junho de 2006, invertendo uma interpretação fixada por

circular1, alargou as possibilidades abertas pelo diploma ao especificar que as partes

“apresentam ao secretário a convenção aceite entre si por documento autêntico ou

documento particular”. A alteração é bem-vinda já que parecia despropositado proibir a

escritura, quando ela oferece garantias de redacção e conservação superiores ao do

documento particular e para além disso fornece às partes os esclarecimentos e conselhos

do notário, o que é particularmente apreciável em relação aos efeitos pessoais e

patrimoniais produzidos pelo acto. Compreende-se assim que extinga a menção do dois

originais na Lei, quando esta condição emana em principio do Direito Comum, e para

além disso seja mais do domínio dos diplomas regulamentares do que da Lei. De

qualquer das formas, uma tal precisão pode reforçar a ideia segundo a qual a pré-

constituição de um documento escrito seria apenas uma simples regra de prova. Uma

semelhante análise leva a excluir a nulidade em caso de inobservância desta forma

escrita, e a aplicar as regras probatórias clássicas: o acordo de vontades pode ser

estabelecido por outros modos de prova nas condições do Direito Comum; por exemplo

em caso de impossibilidade material ou moral, ou de começo de prova por escrito…

Uma semelhante análise não está evidentemente isenta de perigo prático: é abrir a porta

a intermináveis discussões quando os efeitos patrimoniais do pacs impõem garantir a

segurança jurídica na matéria. Para além disso é teoricamente discutível.

Com efeito parece lógico analisar a escrita como uma condição de validade.

Numa análise contratual, o pacto civil de solidariedade viria a ter lugar no meio dos

actos solenes, ao lado da doação, da hipoteca, da convenção antenupcial…: iria tratar-se

quer de proteger os interessados, ao assegurar o carácter livre e reflectido do

consentimento de cada um, quer de proteger terceiros e a família (nomeadamente contra

as eventuais transferências de patrimónios associados à indivisão, v. infra, nº323 e

seguintes). A ausência de elaboração de um documento escrito conduziria então à

nulidade (relativa ou absoluta) do pacto civil de solidariedade. Uma análise institucional 1 O circular tinha descartado a possibilidade de substituir o documento particular entregue em dois

originais por um documento autêntico único.

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leva de modo muito natural à mesma solução: parece lógico impor a forma escrita sob

pena de nulidade ao acordo de vontades que desencadeia a aplicação deste novo estatuto

de casal; quer para fins de protecção dos consentimentos privados quer para

salvaguardar os interesses da família de cada parceiro e os de terceiros.

A segunda dificuldade diz respeito à hipótese de um pacto civil de solidariedade

que teria sido validamente celebrado por escrito mas do qual os parceiros tinham

perdido rasto. A hipótese está a priori reservada aos pactos celebrados através de

documento particular. Não é apenas teórico, uma vez que é completamente possível

imaginar que os dois exemplares tenham sido conservados num mesmo local, e tenham

assim desaparecido ao mesmo tempo. Nesse caso, o que fazer? O Direito Comum da

prova deveria levar a considerar que os parceiros podem, com a condição de provarem a

destruição por caso de força maior dos dois actos escritos, provar por todos os meios o

conteúdo do pacto que tinham especialmente celebrado.

A terceira diz respeito à hipótese de uma revogação de consentimento ocorrida

entre a assinatura do documento escrito e a declaração conjunta. Sobre este assunto,

v.infra, nº 306.

303 Inscrição do pacto num registo assente na Secretaria do Tribunal. Menção à

parte do estado civil. A Lei de 15 de Novembro de 1999 tinha previsto que o secretário

que recebe uma declaração conjunta de pacto civil de solidariedade devia, uma vez

apresentados diversos documentos (convenção, comprovativos do estado civil…)

inscrever a declaração num registo mantido no tribunal (art.º 515º, par.3). Especificava

que o dito registo conferia data certa ao pacto e o tornava oponível a terceiros. Para

além disso, com o objectivo de assegurar a informação de terceiros, que não conhecem

necessariamente a residência dos interessados mas apenas o local de nascimento, a Lei

tinha encarregado o secretário de proceder à menção da declaração num registo mantido

na Secretaria do Tribunal de Instância do local de nascimento de cada parceiro.

Porém, o sistema era ineficaz. Primeiro porque a Lei não associava qualquer

sanção a esta última formalidade. De seguida porque, na sequência das recomendações

da CNIL (Comissão Nacional da Informática e das Liberdades), e para evitar toda a

discriminação em relação aos casais homossexuais, os despachos de aplicação tinham

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organizado diversas garantias relativas à organização do registo, à proibição das

interconexões, à existência de um direito de acesso e de rectificação (previsto pela Lei

Informática e Liberdades). Foi sobretudo cuidadosamente limitado o acesso a esse

registo (decreto nº 99-1090 de 21 de Dezembro de 1999). O diploma distinguia duas

categorias de terceiros. O acesso a todas as informações (excepto as relativas à causa de

dissolução do pacto) estava reservado às pessoas limitativamente enumeradas pelos

diplomas: os signatários, o tutor de um parceiro, a autoridade judicial, os notários e

agentes responsáveis por executar um título executório, os administradores judiciais e

mandatários liquidadores, a administração fiscal, os organismos devedores de diversas

prestações (familiares; seguro de doença, maternidade, morte; pensão de viuvez). Já os

outros terceiros interessados (credores que beneficiam da solidariedade entre parceiros,

administradores do condomínio) não tinham acesso às informações que permitem

identificar o parceiro do seu devedor1.

A reforma de 23 de Junho de 2006 esforçou-se por simplificar o sistema e torná-

lo mais eficaz e mais seguro. As alterações trazidas comprovam para além disso o

vínculo que o pacto civil de solidariedade mantém com o estatuto familiar por

intermédio do registo civil. O parágrafo 3 do artigo 515º-3 subordina agora de modo

claro a eficácia do pacto ao cumprimento de duas formalidades. Para além disso, e em

todos os casos, adia a tomada de eficácia do pacto.

A inscrição do pacto num registo de um tribunal de instância do local de

residência comum dos parceiros é a primeira formalidade. É realizada pelo secretário

que recebeu a declaração conjunta, após apresentação da convenção celebrada por

escritura notarial ou documento particular. O despacho de 23 de Dezembro de 2006

especifica que a recusa de registo deve ser fundamentada e que pode ser contestada

perante o tribunal de instância. Inspirando-se numa resposta ministerial anterior2, a Lei

de 2006 especifica o seu efeito: “o pacto civil de solidariedade apenas produz efeito 1 Era solução era particularmente contestável em relação a terceiros que beneficiam da solidariedade legal

das dividas domésticas, uma vez que lhes recusava o conhecimento da identidade do parceiro, devedor

solidário, privando assim esta solidariedade de toda a abrangência prática. 2 Resposta ministerial nº 47664, JOAN Q 23 de Outubro de 2000, Dto fam. 2001, 13: “a data de redacção

da convenção não tem importância jurídica”, sendo que apenas se considera a data assente no duplicado

original pelo Secretário do Tribunal após declaração escrita e assinada da convenção.

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231

entre as partes a contar do seu registo, que lhe confere data certa” (art.º 515º, par.2). A

mesma exigência é requerida para as convenções modificativas, com o mesmo efeito

(novo artigo 515º-3, par.4, art.º 515º-3-1).

Devem ser igualmente cumpridas as formalidades de publicidade a pedido do

secretário. Consistem agora numa cota lavrada à margem do assento de nascimento de

cada parceiro, que refere a existência de um pacto civil de solidariedade e a identidade

do parceiro. A Lei explicita além disso a sanção desta formalidade: o pacto “só é

oponível a terceiros a partir do dia em que são cumpridas as formalidades de

publicidade” (art.º 515º-3-1, par. 2). A mesma exigência vale para as convenções

modificativas.

2. As condições de fundo

304 Condições de fundo. Tal como em matéria de casamento, o pacto civil de

solidariedade supõe o encontro de dois consentimentos informados. O silêncio da Lei

leva a considerar que, à diferença do casamento, que pode ser excepcionalmente

celebrado apesar da morte de um dos nubentes (v.supra, nº51), não existe pacto

póstumo1.

305 Definição do consentimento. O que há por detrás do consentimento ao pacto civil

de solidariedade? Esta questão teórica tem uma real importância prática: a celebração de

um pacto confere diversos benefícios, em matéria social, fiscal…; existe o risco de

“pacto de conveniência”, reforçado pela liberdade de ruptura (v. infra, nº330 seguintes),

que torna a manobra aparentemente isenta de perigo2. Pode-se provavelmente transpor

os princípios estabelecidos a propósito de casamento. O pacto civil de solidariedade é

uma instituição cuja função consiste em organizar a vida em comum de um casal (tal é,

literalmente, o objecto conferido ao contrato pelo artigo 515º-1), sendo que esta foi

1 Resposta ministerial nº 47405, Dto. fam. 2001, 35, nota B. Beignier. 2 Os complacentes correm o risco de lamentar esta manobra aparentemente anódina, principalmente por

duas razões. Por um lado, a liberdade da ruptura não é absoluta: não se descarta a eventualidade de uma

declaração de responsabilidade civil. Por outro lado, se é livre no fundo, a ruptura do pacto deve no

entanto ser objecto de uma publicidade; caso contrário, os seus efeitos permanecem no tempo, de onde

resultam a solidariedade das dívidas domésticas e, eventualmente, uma indivisão.

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232

definida pelo Tribunal constitucional, remetendo para a noção consagrada em matéria

de casamento1. Se for exclusivamente celebrado com um objectivo diferente desta

função principal, e para um benefício puramente acessório, não provém de um

consentimento real2 e deve portanto, por transposição da jurisprudência Appietto, ser

anulado (v. supra, nº 59). Será talvez ainda transposta a sanção de inoponibilidade a

terceiros (e nomeadamente à administração) do acto realizado fraudulentamente (v.

supra, nº 60). Já o secretário não pode recusar o registo do pacto: compete-lhe

eventualmente informar o Procurador da República permitindo a este requerer a

nulidade do acto por ausência de causa ou ilicitude da causa. A mesma observação vale

para o conservador do registo civil responsável por lavrar a cota da existência de um

pacto civil de solidariedade à margem dos assentos de nascimento dos parceiros.

306 Encontro dos consentimentos. A questão do momento do encontro das vontades é

importante.

A primeira dificuldade é a de determinar em que momento este encontro se

produz. A dificuldade, por um lado, prende-se com o facto de que a Lei prevê quatro

formas (uma convenção por escritura notarial ou documento particular, uma declaração

conjunta na Secretaria do Tribunal, uma inscrição num registo mantida na Secretaria do

Tribunal, uma cota à margem dos assentos de nascimento dos parceiros) e por outro

lado no facto de que nada proíbe explicitamente as promessas verbais. Antes da Lei de

23 de Junho de 2006, o artigo 515º-3 previa apenas que a inscrição do pacto, pelo

secretário, num registo mantido para o efeito no tribunal de instância conferia data certa

ao pacto e tornava-o oponível a terceiros. Desde a Lei de 23 de Junho de 2006, o artigo

515º-3-, parágrafo 2 especifica que “ o pacto apenas produz efeito entre as partes a

partir do seu registo, que lhe confere data exacta. Apenas é oponível a terceiros a partir

do dia em que são cumpridas as formalidades de publicidade.” Mas esta precisão não

responde à questão de saber quando o pacto é validamente celebrado. Ora esta questão é

de real importância, nomeadamente em dois aspectos: primeiro recorda-se que um

parceiro já vinculado por um pacto civil de solidariedade não pode realizar um segundo

1 O que foi contestado mas parece lógico não deixando de ser verdade que as condições de monogamia e

de exogamia comprovam que o pacto é um estatuto destinado a um casal “sexual”. 2 Pode-se argumentar em termos de ausência de consentimento ou de causa falsa.

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233

sem a dissolução do primeiro, o que dá à questão de saber quando um pacto é

validamente formado uma importância determinante. Também há a questão de saber o

que aconteceria se uma pessoa, após ter assinado uma convenção de pacto civil de

solidariedade, recusasse proceder à declaração conjunta perante o secretário.

As análises acima propostas levam a considerar que o pacto é celebrado no

momento da declaração conjunta. Por conseguinte, e a partir desse instante, os parceiros

estão vinculados por um pacto e já não podem mais celebrar pacto civil de solidariedade

ou casamento. Em caso algum a celebração da convenção por documento autêntico ou

escritura notarial pode ser suficiente. Será que está por esse facto desprovida de efeito?

Não exactamente. Constituirá, eventualmente, um indício da existência de uma

promessa de pacto civil de solidariedade. E parece lógico aplicar a esta promessa os

princípios identificados mais acima em relação a uma promessa de casamento: sendo

nulo visto que afecta a liberdade para celebrar um pacto, liberdade que deve prevalecer

até à declaração conjunta, está inclusivamente susceptível de envolver a

responsabilidade por facto ilícito do autor da ruptura, quer tenha cometido uma falta no

modo de rompimento, quer tenha consentido uma promessa levianamente ou de má fé

(v. supra, nº68 e seguintes). A doutrina sugeriu ainda uma convenção que organiza um

concubinato. Mas a nova qualificação é discutível uma vez que ignora a vontade das

partes, que não pretendiam organizar o concubinato mas proceder à primeira

formalidade necessária para a celebração de um pacto civil de solidariedade.

307 Existência de um consentimento informado. Por fim o consentimento deve ser

informado. Mas como interpretar os vícios do consentimento? Será que a lógica

matrimonial deve ser transposta ou o Direito Comum contratual é suficiente? A

nulidade por erro não coloca particular dificuldade. O erro poderá eventualmente incidir

sobre a substância dos direitos e obrigações de cada um. Muito provavelmente, é um

erro sobre a pessoa que será invocado: o Direito Comum contratual (art.º 1110º) e, por

analogia, o direito matrimonial (art.º 180º, v. supra, nº 74), convidam a apenas admitir

semelhante erro se este incidir nas qualidades que um “bom pai de família” espera de

um parceiro num pacto civil de solidariedade e se este tiver sido concretamente

determinante para o parceiro vítima do erro1. A nulidade por coacção é mais delicada:

1 A análise estatutária do pacto proíbe ir para além disso e admitir a nulidade para todo o erro.

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234

será que é preciso admitir a nulidade por temor reverencial à imagem do direito

matrimonial contemporâneo (art.º 180º, v. supra, nº 66) ou excluí-la por aplicação da

teoria geral dos contratos (art.º 1114º)? A primeira solução parece preferível

considerando-se a natureza familiar do estatuto legal. A dificuldade inversa existe em

relação à nulidade por dolo, rejeitada pelo direito matrimonial especial (v. supra, nº 75)

e admitida pelo Direito Comum contratual (art.º 1116º). A análise estatutária proposta

mais acima leva a priori a rejeitar a nulidade do pacto por dolo, pela mesma razão da

que explica a solução no casamento: num casal é habitual o uso da sedução e pode

conduzir a mentiras e dissimulações. Verifica-se que diversas regras vêm limitar o

carácter moralmente chocante desta “ autorização para seduzir” até mesmo para “

enganar”: a nulidade poderá ser pedida se as manobras de sedução originaram ou

permitiram um erro sobre as qualidades essenciais do outro (qualidades nas quais se

pode possivelmente incluir uma lealdade mínima). Para além disso, a liberdade que a

Lei confere a cada um dos parceiros para romper unilateralmente o pacto permitirá ao

que foi enganado desobrigar-se dele.

Capítulo 2

Os efeitos do pacto

308 Mini casamento pessoal e patrimonial. A Lei de 15 de Novembro de 1999 tinha

associado ao pacto civil de solidariedade efeitos limitados: apenas criou explicitamente

um dever de auxílio mútuo e material entre os parceiros e instituiu uma união

patrimonial relativamente flexível. A reforma de 23 de Junho de 2006 reforçou os

deveres entre parceiros (secção 1) e alterou consideravelmente a união patrimonial

(secção 2).

309 Efeitos acessórios do pacto civil de solidariedade. Para além destes efeitos civis

principais, o pacto civil de solidariedade produz efeitos por assim dizer “acessórios”.

Alguns desenvolveram-se em matéria civil. O pacto confere deste modo ao

parceiro do arrendatário o direito à continuação do contrato de arrendamento em caso de

abandono ou morte. Reciprocamente, o senhorio pode dar ordem de despejo ao

arrendatário para beneficiar o seu parceiro do imóvel (art.º 15º da Lei de 6 de Julho de

1989). É também um dos elementos de avaliação dos laços pessoais existentes em

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235

França que a autoridade pública considera para decidir a eventual obtenção de uma

autorização de residência. Produzirá de igual modo diversos efeitos em matéria de

protecção dos maiores de idade quando a Lei de 5 de Março de 2007 entrar em vigor: o

parceiro poderá assim pedir a abertura de uma medida de protecção dos maiores de

idade (novo artigo 430º), ser designado como tutor ou curador (novo artigo 449º),

aceder à conta anual de gestão (art.º 510º).

Para além disso o pacto produz diversos efeitos em matéria penal1, fiscal2,

social3, e no direito do trabalho4 e da função pública5.

Secção 1

O vínculo interpessoal

310 Reforço do vínculo interpessoal. Aproximação progressiva do casamento. O

único dever explicitamente instituído entre os parceiros pela Lei de 15 de Novembro de

1999 era um dever de “auxílio mútuo e material”. A doutrina questionara-se se este

vazio pessoal era praticável. Tinha particularmente alegado que o contencioso que a

ruptura provocava levaria provavelmente o juiz a avaliar os comportamentos de cada

um, especialmente em termos de fidelidade, apoio, respeito mútuo… Uma decisão que

não passa despercebida tinha deste modo admitido a existência de um dever de vida em

1 É uma circunstância agravante de diversas infracções (art. 221º. -4, 222º. -3, 8.º, 10.º, 12.º e 13.º, 24.º,

28.º, 48.º): art.º 132.º-80 do Código Penal. 2 O casal será objecto de uma imposição comum (art. 6.º, 885-A CGI) e beneficiará de taxa de mutação a

título gratuito e abatimentos vantajosos (art. 777.º bis e 779.º CGI). 3 Sobre os efeitos do pacto em relação à protecção social contra a doença, a maternidade, a morte, a

velhice, v, nomeadamente art. L. 161-14, L. 361-4, L. 381-1 Código da Segurança Social. É igualmente

considerado para a atribuição e o cálculo de diversas prestações e subsídios: ver por ex. art. L.523-2

Código da Segurança Social, art. L. 232-7, 10, L. 244-1, L. 245-6, L.821-1, R. 262-1 e 2, R. 262-7…

CASF. 4 V nomeadamente art. L. 225-20, L.3141-14 e 15, L. 3142-1 Código do Trabalho Adde art. R. 6152-35

CSP, art. R. 243-12 CASF. 5 art.º 60.º e 62.º L. nº 84-16 de 11 de Janeiro de 1984, art. 54 L. nº 84-53 de 26 de Janeiro de 1984, art.

38 L. nº 86-33 de 9 de Janeiro de 1984.

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236

comum e fidelidade entre parceiros1. A Lei de 23 de Junho de 2006, inspirando-se

nestas reflexões, criou um dever de vida em comum e assistência recíproca.

Subsistem no entanto algumas diferenças em relação ao casamento. A primeira

prende-se com o dever de fidelidade (art.º 212º, v. supra, nº 111). Mas a jurisprudência

não a irá impor, quer se baseie num dever contratual de lealdade2, quer considere de

modo mais convincente, que o dever de vida em comum se faz acompanhar

naturalmente por um dever de fidelidade. Deve-se acrescentar que a proibição de um

pacto com mais de dois parceiros, ou a proibição de toda a acumulação de pactos, ou de

toda a acumulação de casamento e pacto (v. supra, nº 298), advogam, por si próprias, a

favor da afirmação de um dever de exclusividade entre parceiros. A segunda diferença

prende-se com o dever de respeito mútuo, instaurado pela Lei de 4 de Abril de 2006

(art.º 12º, v. supra, nº 113). Mas, uma vez mais, é pouco provável que semelhante dever

seja imposto aos parceiros. Deve-se lamentar mais uma vez que, para escapar à crítica

de criar um casamento destinado aos homossexuais, o legislador baralhe deste modo as

cartas.

A. O dever de vida em comum

311 O dever de vida em comum. A Lei de 15 de Novembro de 1999 não tinha

explicitamente imposto nenhum dever de vida em comum aos parceiros. Porém, tinha

definido o pacto como sendo “um contrato celebrado por duas pessoas… para

organizarem a sua vida em comum”. O Tribunal constitucional tinha julgado que

semelhante objecto estava fixado por Lei a título imperativo. A partir deste diploma,

uma decisão tinha associado ao pacto um tal dever de vida em comum3. O novo artigo

515º-4 especifica agora que “os parceiros vinculados por um pacto civil de

solidariedade comprometem-se a uma vida em comum”.

Deve entender-se a vida em comum tal como em matéria de casamento (v. supra,

nº 110): impõe uma dupla comunhão, de tecto e cama. Convém provavelmente admitir

também a eventualidade de residências separadas por razões profissionais. Deve-se 1 TGI Lille, decreto-lei de 5 de Junho de 2002, D 2003, 515, nota X Labbée, RTD civ. 2003, 270, obs. J.

Hauser. 2 Neste sentido ver decreto, citado na nota precedente. 3 Idem

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lamentar também o facto do direito não ter especificamente alargado o artigo 220º-1,

parágrafo 3, exactamente como resultante da Lei de 26 de Maio de 2004, que permite à

vítima de violência pedir ao juiz para decidir sobre a residência separada e especificar

qual dos dois membros do casal pode continuar a gozar do domicílio comum (v. supra,

nº 110).

A execução forçada parece impossível dado que a Lei não previu qualquer

sanção especial, tratando-se de uma obrigação de execução eminentemente pessoal (art.º

1142º do Código Civil; comp. supra, nº 147), de tal modo que a única sanção consiste

provavelmente na atribuição de indemnização por perdas e danos, uma vez que a

dificuldade reside novamente na avaliação do dano (v. supra, nº 149).

B. O dever de auxílio material

312 O dever de auxílio material. A Lei de 15 de Novembro de 1999 tinha previsto que

“os parceiros…se devem um auxílio mútuo e material. As modalidades deste auxílio são

fixadas pelo pacto” (art.º 515º-4). A Lei de 23 de Junho de 2006 alterou a redacção: “os

parceiros comprometem-se a um auxílio material…recíproco (s). Na eventualidade dos

parceiros não disporem de outro modo, o auxílio material será proporcional à respectiva

capacidade financeira”.

O princípio é portanto inalterado: os parceiros estão obrigados a um dever de

auxílio material mútuo. A nova redacção insiste unicamente no carácter obrigatório

deste auxílio material (comprometem-se). Já não especificou o objecto deste dever:

como definir “auxílio material”? Ao impor explicitamente um dever de assistência entre

parceiros do pacs em 2006, a Lei proibiu analisar o dever de “auxílio material” como

sendo a transposição do dever de “assistência” conjugal ao pacto civil de solidariedade

(v. supra, nº 112). Aproximar-se-ia de bom grado o dever de auxílio material do dever

de cooperação e do dever de contribuição com os encargos da vida familiar existentes

entre cônjuges (v. supra, nº 125), ao realçar particularmente que o seu montante

depende do mesmo critério (v. infra, parágrafo seguinte), mas a diferença de

terminologia legal deveria preferencialmente levar a distingui-los. Será portanto

necessário esperar que a questão seja submetida ao Tribunal de Cassação para saber se o

que significa exactamente este dever de “auxílio material”.

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A Lei de 23 de Junho de 2006 alterou a determinação das modalidades deste

auxílio (montante e espécie). Em 1999, tinha remetido inteiramente esta determinação

para as estipulações da convenção celebrada entre parceiros, sem prever um critério

legal subsidiário. A Lei de 23 de Junho de 2006, mantendo a possibilidade de

estipulação contratual, transpôs o critério legal supletivo prevalecente no direito do

casamento para determinar a contribuição de cada um com os encargos da vida familiar

(v. supra, nº 125): o auxílio material é determinado “em proporção da respectiva

capacidade financeira” de cada um dos parceiros.

A abrangência deste dever não foi propriamente especificada pela Lei. Assim se

questiona se este dever é de ordem pública, à semelhança do dever de cooperação.

Questiona-se sobretudo quais são as sanções dai resultantes. Uma vez mais, a Lei não

criou nenhuma sanção especial. É de lamentar que as vias de execução simplificadas

existentes em matéria alimentar não tenham sido para aqui transpostas (v. infra, nº 635).

Resta eventualmente analisar este dever como uma das obrigações alimentares

consagradas pelo direito da família, de onde resultaria a aplicação das sanções

específicas na matéria. As sanções do Direito Comum das obrigações, que não foram

excluídas, deveriam poder contar. A Lei de 2006 especificou que este dever era

“recíproco” (e já não mais “mútuo” como referia o diploma inicial), questiona-se se a

excepção de incumprimento pode ser aplicada1. De qualquer das formas, a sanção mais

corrente será provavelmente a atribuição de indemnização por perdas e danos, e a

execução forçada em espécie caso se admita que o dever de auxílio material equivale ao

dever de cooperação.

C. O dever de assistência

313 O dever de assistência. Por fim, a Lei de 23 de Junho de 2006 criou um dever de

“assistência recíproca”. Uma vez mais, é inevitável a comparação com o casamento (v.

supra, nº 112). Uma vez mais, é lógico recorrer à mesma noção. Os parceiros devem

1 Relembra-se que a doutrina sublinha que a Lei impõe aos cônjuges deveres “mútuos” e não “recíprocos”

porque o casamento não é um contrato sinalagmático qualquer, de onde resulta assim a exclusão da

excepção de incumprimento. Tenta-se aqui considerar que o legislador tem pelo contrário pretendido

insistir no carácter sinalagmático do pacto civil de solidariedade, de onde resulta, nomeadamente, a

excepção do incumprimento. V. supra, nº 108 e 146.

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portanto apoiar-se em todas as provações da existência, doença, dor, desemprego…

Uma vez mais, dado que a Lei não previu qualquer sanção especial, é lógico fazer

aplicação do Direito Comum e apenas atribuir indemnização por perdas e danos em

caso de incumprimento (art.º 1142.º). A jurisprudência autorizará provavelmente aqui o

recurso à acção de in rem verso, como faz entre cônjuges (quando os cônjuges estão

casados em regime de separação judicial de bens, v. supra, nº 135) ou parceiros (v.

supra, nº 282): se o auxílio fornecido por um não tiver contrapartida1, para além deste

dever de assistência, leva ao seu empobrecimento ou ao enriquecimento do outro

parceiro, irá impor o pagamento de uma indemnização compensadora (igual ao menor

dos dois montantes que representa o empobrecimento de um e o enriquecimento de

outro) aquando da dissolução do pacto.

Secção 2

A união patrimonial

314 Redução da união patrimonial criada pelo pacto civil de solidariedade.

Aproximação do regime do pacs a uma separação judicial de bens associada a uma

eventual indivisão. A Lei de 15 de Novembro de 1999 tinha criado uma solidariedade

em relação a terceiros que a Lei de 23 de Junho de 2006 veio limitar. Para além disso,

instituíra uma indivisão entre parceiros, à qual conferira uma abrangência

simultaneamente ampla e incerta, e que a Lei de 23 de Junho de 2006 ao mesmo tempo

que restringia o seu domínio reforçava a abrangência. A união patrimonial assim

instituída entre os parceiros remete para a existente entre os cônjuges em regime de

separação judicial de bens que fazem a escolha, a partir do casamento, de adquirir os

seus bens em regime de indivisão. O princípio é que cada um conserva a sua

independência, salvo em alguns domínios, limitados. O pacto civil de solidariedade é

um “contrato de liberdade patrimonial”2.

1 Tudo dependerá da eventual indivisão consentida entre eles. 2 Seguindo a expressão empregue por Bernard Beignier.

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1.A independência de princípio

315 Do não dito da Lei de 15 de Novembro de 1999 ao dito da Lei de 23 de Junho de

2006.A Lei de 15 de Novembro de 1999 apenas previu, em matéria patrimonial, a

solidariedade e a indivisão. A Lei de 23 de Junho desenvolveu o regime do pacs, ao

aproximá-lo ainda mais do casamento, e em insistir na independência conservada por

cada um. O regime do pacs assemelha-se deste modo ao regime de separação judicial de

bens.

316 Bens pessoais de cada um. A primeira regra é a do artigo 515º-5, parágrafo 1, in

limine: “salvo disposições contrárias da convenção referida no segundo parágrafo do

artigo 515º-3 (a saber a que os parceiros devem celebrar antes da declaração conjunta e

apresentar ao secretário), cada um dos parceiros conserva a administração, o usufruto e

a livre disposição dos seus bens pessoais”. Esta regra lembra a regra do regime primário

contida no artigo 225º (“cada um dos cônjuges administra, obriga e aliena

individualmente os seus bens pessoais”, v. supra, nº 130) e transcreve pura e

simplesmente a do artigo 1536º, parágrafo 1 (“cada um conserva a administração, o

usufruto e a livre disposição dos seus bens pessoais”), diploma próprio da separação

judicial de bens.

A única particularidade prende-se com a reserva, sem mais precisão, de

“disposições contrárias”. Ao fazer isto, o diploma coloca numerosas questões. Será que

os parceiros poderiam conceder-se um mandato recíproco, se for o caso, será que este

mandato escaparia à livre revogabilidade de todo o mandato? Será que os parceiros

poderiam organizar a co-gestão para o domicílio comum (por exemplo transpor o artigo

215º, parágrafo 3), alargar os poderes judiciais previstos pelos artigos 217º, 219º, 220º-

1? Semelhante solução permitiria aos parceiros fabricar um “casamento à escolha”, e

eventualmente beneficiar das disposições favoráveis do casamento sem assumir as co-

relativas responsabilidades (v. infra, o estatuto das dívidas). Esperemos que nem a

prática, nem a jurisprudência as aceitem.

317 Dívidas pessoais de cada um. Para além disso o artigo 515º-5, parágrafo 1, in fine,

especifica que “cada um responde individualmente pelas dívidas pessoais contraídas

antes ou durante o pacto, com excepção do caso do último parágrafo do artigo 515º- 4.”

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O regime do pacs difere assim radicalmente do regime legal da comunhão de

adquiridos: não são apenas as dívidas a que os parceiros estavam obrigados no dia da

celebração do pacto civil de solidariedade que permanecem pessoais (comp. art.º 1410º,

v. supra, nº 134) mas também as que nascem após esta celebração, enquanto o passivo

da comunhão integrar as dívidas contraídas “durante a comunhão” (art.º 1409º, v. supra,

nº 134). Novamente, o regime do pacs inspira-se assim no regime da separação judicial

de bens, e de modo mais preciso, quase transcrevendo o artigo 1536º, parágrafo 2

(“cada um continua a responder individualmente pelas dívidas nascidas da sua pessoa,

antes ou na constância do casamento, com excepção do caso previsto no artigo 220º”).

As dívidas que nascem durante o pacto civil de solidariedade permanecem portanto

dívidas pessoais do seu devedor: o credor apenas poderá então penhorar os bens

pessoais do seu devedor. Em conformidade com o Direito Comum da indivisão, não

poderá penhorar a parte do seu devedor nos bens indivisos, podendo apenas provocar a

partilha (novo artigo 815º-17).

Convém no entanto reservar duas hipóteses particulares. A primeira é prevista

pelo direito especial do pacto civil de solidariedade: as dívidas mencionadas no artigo

515º-4 vinculam solidariamente ambos os parceiros e poderão portanto ser executadas

sobre qualquer bem, pessoal ou indiviso (v. infra, nº 321). A segunda hipótese resulta do

Direito Comum da indivisão. Como não importa o tipo de indivisão, a indivisão do pacs

eventualmente instituída entre as partes leva a reservar o caso dos credores indivisos,

isto é, daqueles cuja dívida nasce da conservação ou da gestão de bens indivisos: estes

podem não apenas penhorar os bens pessoais do parceiro que contraiu a dívida mas

igualmente penhorar o bem indiviso que gerou a dívida e pagar-se sobre o seu preço ou

pagar através de uma retenção antes da partilha (novo art.º 815º-17).

318 Presunção de poder sobre os bens móveis possuídos individualmente. A Lei de

23 de Junho de 2006 transpôs igualmente ao pacto civil de solidariedade a presunção de

poder que o regime primário instaura em relação aos bens móveis. Retomando o artigo

222º (v.supra, nº 131), o artigo 515º-5, parágrafo 2, prevê com efeito que se considera

que o parceiro que detém individualmente um bem móvel tem, em relação a terceiros de

boa fé, o poder para fazer individualmente todo o acto de administração, usufruto ou

disposição”. Portanto, a regra é idêntica na medida em que diz respeito ao domínio da

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regra quanto às pessoas (unicamente para benefício de terceiros de boa fé) e quanto aos

actos (administração, usufruto, disposição), quanto à situação do bem (deve ser visados

individualmente). Porém, é mais ampla no que diz respeito aos bens mencionados:

todos os bens móveis são considerados, sem restrição, e especialmente sem que sejam

excluídos, como é o caso no casamento, os bens móveis que a casa de morada da família

e os bens móveis corpóreos cuja natureza fazem presumir a propriedade do outro

cônjuge em conformidade com o artigo 1404º (portanto os bens de carácter pessoal e os

instrumentos de trabalho necessários ao exercício da profissão do outro). A primeira

exclusão explica-se na medida em que a protecção da casa de morada da família

assegurada pelo direito do casamento não tem equivalente no pacto civil de

solidariedade. É mais surpreendente em relação aos bens que se presumem pertencer ao

outro parceiro que não aquele que o detém individualmente. Comprova que a Lei

escolheu neste caso fazer prevalecer a segurança jurídica de terceiros sobre a protecção

dos parceiros, não sem limite por outro lado: pode-se pensar que a presunção de boa fé

de terceiros será provavelmente mais fácil de elidir em relação a tais bens.

2.A união patrimonial especial

319 Uma união limitada relativamente a terceiros e entre parceiros. A união

instituída pela própria Lei permanece muito limitada (A). Porém, os parceiros podem

desenvolver os seus interesses comuns ao fazer a escolha explícita de uma indivisão

geral (B).

A. A união instituída pela Lei

320 Primeiro, relativamente a terceiros, a Lei prevê a solidariedade dos parceiros para as

dívidas contraídas para as necessidades da vida corrente (1). Em seguida, entre parceiros

consagra eventualmente uma indivisão por intermédio de uma regra de prova (2).

1.A solidariedade em relação a terceiros

321 Solidariedade das dívidas contraídas para as necessidades da vida corrente. A

solidariedade entre os parceiros de um pacs foi instituída pela Lei de 15 de Novembro

de 1999: dizia respeito a todas as dívidas “contraídas por um dos dois para as

necessidades da vida corrente e para as despesas relativas à habitação comum” (art.º

515º-4, par.2). A diferença era tripla com o direito do casamento (v. supra, nº 127).

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Primeiro, a solidariedade não incluía explicitamente as dívidas contraídas “para a

educação dos filhos1”. Esta solução, compreensível, quando o pacto tinha sido aberto

aos homossexuais aos quais o legislador de 1999 não pretendia conceder o benefício da

parentalidade, parecia lamentável em relação aos casais heterossexuais2. Em seguida, a

solidariedade não englobava as dívidas contraídas para “o sustento do lar” mas para “as

necessidades da vida corrente e as despesas relativas à habitação comum”. Enquanto a

solidariedade matrimonial dependia de dois critérios cumulativos de natureza qualitativa

(a dívida devia ser naturalmente uma despesa de “sustento” “do lar”), a solidariedade do

pacs estava sujeita a um duplo critério qualitativo e alternativo (as necessidades da vida

corrente ou as despesas relativas à habitação comum). Por fim, o limite previsto no

artigo 220º, parágrafo 2 das “despesas manifestamente excessivas” não constava no

pacto civil de solidariedade. O resultado era que, com excepção das dívidas contraídas

para a educação dos filhos, a solidariedade estava mais estendida no pacto do que no

casamento, o que era apesar de tudo bastante paradoxal.

A Lei de 23 de Junho de 2006 extinguiu esta anomalia3. Agora, o artigo 515º-4,

parágrafo 2 especifica que “os parceiros respondem solidariamente perante terceiros

pelas dívidas contraídas por um deles para as necessidades da vida corrente. No entanto,

esta solidariedade não se aplica às despesas manifestamente excessivas”. Agora o

direito do pacto civil de solidariedade inspira-se assim largamente no direito

matrimonial para determinar a obrigação relativamente à dívida de cada um (a

obrigação assumida por cada parceiro em relação a terceiros). É de lamentar que o

legislador tenha mantido o critério das necessidades da vida corrente em vez de retomar

o que o direito do casamento consagra, a saber as despesas de sustento do lar

1 Ora era discutível ver aí as dívidas contraídas para as necessidades da vida corrente, esta última noção

remetendo a priori para as dívidas destinadas permitir a tomada de responsabilidade das necessidades

pessoais dos parceiros. 2 Consequência lógica do vazio de estatuto em relação aos filhos, esta solução comprova, uma vez mais,

como o raciocínio indiferenciado em relação aos casais homossexuais ou heterossexuais tem sido

pernicioso. 3 O Tribunal constitucional tinha sugerido a restrição da responsabilidade civil em caso de dívidas

contraídas abusivamente por um dos parceiros. Esta restrição não era suficiente, dado que apenas

funcionava entre parceiros. A solução legal, que consiste em restringir o domínio da solidariedade, é deste

ponto de vista muito mais protectora.

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(provavelmente para evitar uma aproximação muito visível com o direito do casamento)

uma vez que a noção de “lar” é uma noção factual que remete para a vida de casal, e se

aplica portanto sem dificuldade ao pacto civil de solidariedade. É de lamentar também

que a educação dos filhos comuns, quando os há, não seja explicitamente abrangida pela

solidariedade (sobre esta questão no casamento v. supra, nº 127). Já se aprova a

exclusão das despesas relativas à habitação comum1 bem como a das “despesas

manifestamente excessivas”. Verifica-se que o novo artigo 515º-4 não retoma os

critérios de excesso que coloca o direito matrimonial (art.º 220º, par.2, v. supra, nº 127),

a saber o estilo de vida do lar, a utilidade e a inutilidade da operação, a boa ou a má fé

do terceiro contratante. No entanto, são de facto estes mesmos elementos que permitirão

qualificar a despesa de manifestamente excessiva. A vantagem do silêncio legislativo é

autorizar a eventual consideração de outros elementos. Nota-se ainda, e uma vez mais

para o lamentar, que a exclusão das compras a prestações e empréstimos (salvo os

empréstimos que envolvem os montantes modestos necessários às necessidades da vida

corrente) pelo direito do casamento não é retomada no pacto civil de solidariedade2.

A Lei não diz nada em relação à contribuição para a dívida (isto é do peso

definitivo da dívida sobre cada parceiro). A contribuição pode ser determinada

repartindo em partes iguais (portanto a dividir por dois) ou por cálculo proporcional (na

proporção da respectiva capacidade financeira). A segunda solução parece

simultaneamente mais justa e mais lógica: caso se admita que a solidariedade constitui a

face passiva, em relação a terceiros, do auxílio material que se devem os parceiros, é

lógico utilizar o critério de capacidade financeira de cada um para determinar o peso

final da dívida. Os parceiros poderiam provavelmente acordar a repartição do peso da

dívida na convenção celebrada.

1 A solidariedade podia revelar-se muito pesada, nomeadamente quando se tratava da dívida de reembolso

de um empréstimo imobiliário. 2 As compras a prestação, quando visam fazer face às necessidades da vida corrente, serão cobertas pela

solidariedade em caso de pacto civil de solidariedade. A adição de semelhantes compras pode no entanto

conduzir ao sobreendividamento. Quanto aos empréstimos, o risco é que a solidariedade seja menos

abrangente no pacto do que no casamento: bastará que o empréstimo seja destinado a assumir as

necessidades da vida corrente para pertencer à solidariedade, quando o direito do casamento exige para

além disso que a quantia emprestada seja “modesta”.

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2.A presunção de indivisão entre parceiros

322 Presunção de indivisão. Para além disso, a Lei de 23 de Junho de 2006 transpôs ao

pacto civil de solidariedade as presunções existentes no regime legal de comunhão de

adquiridos e no regime convencional da separação judicial de bens: da mesma maneira

que os bens que os cônjuges não provaram como sua propriedade exclusiva são

considerados bens comuns (art.º 1402º) ou bens indivisos (art.º 1538º), considera-se que

os bens sobre os quais nenhum dos parceiros pode justificar uma propriedade exclusiva

lhes pertencem em regime de co-propriedade (art.º 515º-5, par.2), sendo especificado

que a prova da propriedade exclusiva de um e de outro pode ser produzida por todos os

meios, quer seja entre parceiros ou em relação a terceiros. Daqui resultará,

eventualmente, uma indivisão entre parceiros, indivisão sobre a qual se questiona se

obedece às regras do Direito Comum de indivisão (art.º 815º seguintes) ou se está

sujeito às regras especialmente previstas pela Lei para a indivisão voluntariamente

instituída entre parceiros (v. infra, nº 327 e seguintes).

B. União entre parceiros

323 Separação judicial de bens e eventual indivisão. Do pacto decorre eventualmente

uma união patrimonial específica entre os parceiros. Surge uma quase comunhão, se os

parceiros assim o pretenderem, sob a forma de uma indivisão, de extensão variável, e

cuja abrangência foi consideravelmente alterada pela Lei de 23 de Junho de 2006.

A indivisão resultante da Lei de 15 de Novembro de 1999. No direito resultante

da Lei de 15 de Novembro de 1999 a indivisão entre parceiros estava determinada pelo

artigo 515º-5 do Código Civil

Este diploma levava a distinguir consoante a natureza do bem e as condições da

sua aquisição. O mobiliário adquirido a título oneroso após a celebração do pacto civil

de solidariedade (ou aquele cuja data de aquisição não podia ser provada) era presumido

indiviso pela Lei1: o diploma especificava apenas que os parceiros podiam indicar que

submetiam os ditos móveis à indivisão. Porém, preocupado com a segurança jurídica, o

1 Uma resposta ministerial tinha indicado que a presunção de indivisão funcionava mesmo se o bem tinha

sido adquirido por um sem que o outro tenha tido conhecimento: Resposta ministerial nº 23816, Dto. fam

2001, 27 nota Lécuyer.

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Tribunal constitucional tinha acrescentado à Lei e especificado que esta presunção

apenas podia ser afastada através de uma estipulação do pacto inicial. Já os outros bens

(imóveis e móveis sem ser objecto de mobiliário) adquiridos a título oneroso após a

celebração do pacto eram considerados indivisos na ausência de estipulação particular

do acto de aquisição ou de subscrição. Os bens adquiridos antes da celebração do pacto

permaneciam portanto pessoais a cada um e o mesmo acontecia com os bens adquiridos

a título gratuito, independentemente da data de aquisição.

A doutrina tinha denunciado uma “visita aos infernos1” e anunciado um

contencioso importante. Primeiro porque a qualificação “mobiliário” não é sempre foi

fácil. Em seguida, porque era difícil determinar o destino dos rendimentos, e

especialmente os do rendimento do trabalho ou dos bens pessoais de cada um. Do

mesmo modo porque se colocava a questão de saber o que se convinha entender por

“celebração do pacto”; também porque um semelhante sistema impunha aquando da

dissolução do pacto uma pesquisa arriscada dos actos de aquisição. E ainda porque esta

presunção de indivisão levava à questão de saber qual era o impacto da origem do

dinheiro que permitiram a aquisição do bem: se o dinheiro pertencia a um dos parceiros,

a aquisição em indivisão resultava de uma liberalidade (caso em que se aplicava a um

regime eventualmente restritivo, relativamente às regras de forma ou aos limites

sucessórios) ou de um empréstimo (caso em que surgia uma acção de in rem verso entre

parceiros). Ou seria preciso considerar que uma semelhante transferência de valor

encontrava a sua fonte na Lei, escapando deste modo a todos os limites que enquadram

as liberalidades? Por fim, porque nada obrigava a qualquer recurso a um profissional do

direito, a maioria dos parceiros celebrava um pacto sem saber que resultaria entre eles

uma indivisão: viam-se então co-proprietários sem o ter pretendido, e até mesmo, sem o

saberem!

A indivisão resultante da Lei de 23 de Junho de 2006. A Lei de 23 de Junho de

2006 alterou a fonte da indivisão, a sua situação, instaurou uma presunção de indivisão,

especificou as condições da sua gestão bem como as consequências de uma eventual

participação desigual nos custos de aquisição. A indivisão em questão é hoje uma

indivisão de bens adquiridos.

1 B. Beignier, “ Pacte civil de solidarité et indivision: visite aux enfers”, Defr. 2000, 620.

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1.A escolha da indivisão

324 Escolha dos parceiros. Os parceiros podem escolher livremente constituir entre si

uma massa indivisa e manter uma separação estanque entre os seus patrimónios,

conservando assim uma inteira independência patrimonial.

Esta escolha pode ser realizada desde o início ou posteriormente: o artigo 515º-

5-1 permite optar pela indivisão na convenção inicial ou numa convenção modificativa.

Portanto, a rejeição inicial da indivisão não é definitiva: os parceiros poderão

posteriormente adoptar uma convenção modificativa e proceder às formalidades

necessárias para lhe conferir eficácia (art.º 515º-3, par. 4). Já o diploma não retoma a

liberdade, que a Lei de 15 de Novembro de 1999 tinha aberto para os bens diferentes do

mobiliário, em optar ou não pela indivisão aquando da aquisição do bem. Isto não

significa que os parceiros não possam decidir, mesmo que tenham excluído a indivisão

na sua convenção inicial de pacs, adquirir um bem em indivisão: o Direito Comum

aplica-se, que permite a todos adquirir em indivisão qualquer bem, em qualquer

momento. Mas a indivisão criada deste modo será uma indivisão “vulgar”: dará portanto

lugar, se for caso disso, a um recurso de um contra o outro em caso de contribuição

desigual no pagamento do preço de aquisição (v. in fine).

Uma vez realizada esta escolha, há a questão de saber se é ou não definitiva.

Nesse sentido, constata-se primeiro que a letra do diploma não reconhece aos parceiros

a possibilidade, após ter optado pelo regime de indivisão, de celebrar uma convenção

modificativa optando pela separação pura e simplesmente. Sublinha-se sobretudo que o

artigo 515º-5-3, parágrafo 3, parece impedir toda a alteração deste tipo: “ considera-se

que a convenção de indivisão é celebrada pela duração do pacto civil de solidariedade”

(v. infra, nº 327). Semelhante solução garantiria provavelmente a estabilidade do regime

do pacs. Contudo, seria surpreendente enquanto a livre mutabilidade do regime

matrimonial estiver a progredir e as formalidades que enquadram as convenções

modificativas parecerem bastar para informar terceiros da passagem à separação (de

modo que a alteração não deveria afectar as suas previsões legítimas). Para além disso

correria o risco de levar os parceiros a dissolver o pacto, para celebrar imediatamente

uma nova convenção excluindo a indivisão, o que colocaria provavelmente a questão de

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uma eventual fraude à Lei1. Todas estas razões levam a dar mostras de liberalismo e a

deixar a possibilidade aos parceiros de voltar atrás na sua escolha inicial.

2.A base da indivisão

325 Determinação dos bens indivisos. O artigo 515º-5-1 alterou os bens respeitantes à

indivisão.

Agora a natureza mobiliária ou imobiliária do bem é indiferente. Serão

considerados “indivisos” todos os bens que os parceiros “adquirem, em conjunto ou

separadamente a partir da data do registo” da convenção que opta pela indivisão. O

diploma instaura deste modo um princípio de indivisão em relação a todos os bens

adquiridos após o registo da convenção em que se opta pela indivisão.

Todavia este princípio foi excluído em seis casos pelo artigo 515º-5-2, sendo que

o diploma especifica que os bens em questão permanecem a propriedade exclusiva de

cada um. Os casos são os seguintes: Primeiro, “ quantias auferidas por cada um”, sendo

que a Lei especifica que pouco importa o título de cobrança, desde que as quantias não

tenham sido empregues na aquisição de um bem; segundo, bens criados e seus

acessórios (englobando de igual modo tanto a propriedade intelectual, como os bens

resultantes de uma criação material); terceiro, bens de carácter pessoal (remetendo

evidentemente para os bens que a Lei considera pessoais no regime de comunhão: art.º

1404º)2; quarto, bens (ou partes de bens) adquiridos por meio de quantias pertencentes a

um parceiro antes do registo da convenção de indivisão, com a condição de que o acto

de aquisição mencione a utilização de quantias anteriores. Na ausência de semelhante

referência, o bem é considerado indiviso pela metade e o parceiro responde apenas por

uma dívida em relação ao outro; quinto, bens ou partes de bens adquiridos através de

quantias recebidas por doação ou sucessão, sendo que a mesma declaração formal de

uso no acto (com a mesma sanção) da que se considerou previamente é então exigida;

1 Comp. caso Taleb, Civ. 1, 17 de Novembro de 1981, D 1982, 573.

2 E em relação aos direitos exclusivamente associados à pessoa? O artigo 1404.º, parágrafo 2, ao

qualificá-los de próprios por natureza ao lado dos bens de carácter pessoal, parece não os considerar como

constituindo bens de carácter pessoal mas submete-os ao mesmo regime. Será necessário então fazê-los

cair na indivisão? Ou será que se deve por analogia ao direito matrimonial considerar que permanecem

propriedade exclusiva de cada um?

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sexto, as partes dos bens adquiridos a título de licitação de todo ou parte de um bem do

qual um dos parceiros era proprietário numa indivisão sucessória ou na sequência de

uma doação (comp. art.º 1408.º). Ainda que o diploma não o especifique explicitamente,

convém também de modo racional excluir os bens adquiridos por cada um dos parceiros

por “sucessão, doação ou legado” (comp. art.º 1405.º): seria absurdo, com efeito,

declarar propriedade exclusiva os bens adquiridos com a utilização de quantias

provenientes de doação ou sucessão e considerar que são indivisos os bens provenientes

de doação ou sucessão (exceptuando, naturalmente, se os dois parceiros forem co-

donatários ou co-herdeiros).

3.A presunção de indivisão

326 A presunção de indivisão considerada mais acima (v supra, nº 322) vale não só

quando os parceiros não fizeram a escolha de uma indivisão convencional mas

igualmente quando estes fizeram esta escolha. Considera-se que os bens sobre os quais

nenhum dos parceiros poderia justificar uma propriedade exclusiva lhes pertencem em

regime de co-propriedade (art.º 515.º-5, par. 2).

4.A gestão da indivisão

327 Gestão de bens indivisos. A Lei de 15 de Novembro de 1999 não faz referência à

gestão da indivisão, tornando deste modo aplicáveis as disposições do Direito Comum

dos artigos 815.º e seguintes do Código Civil. A Lei de 23 de 2006 consagrou à questão

um texto, o artigo 515.º-5-3, que é muito vago.

Primeiro, o texto prevê que “cada parceiro é administrador da indivisão e pode

exercer os poderes reconhecidos pelos artigos 1873.º-6 até ao 1873.º-8”. Os poderes dos

parceiros sobre os bens indivisos inspiram-se deste modo fortemente nos poderes dos

cônjuges sobre os bens comuns em regime legal. Todavia, reserva a hipótese de

“disposições contrárias na convenção”, disposições contrárias que parecem poder

remeter quer ao poder geral de administração, quer aos poderes mais especificamente

reconhecidos nos artigos citados, quer sejam ambos simultaneamente. Será que isto quer

dizer que a convenção poderia dar apenas poder de administração a um dos dois?

Para além disso o diploma permite aos parceiros, “para a administração dos bens

indivisos”, celebrar uma convenção “relativa ao exercício dos seus direitos indivisos”

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isto “nas condições estipuladas nos artigos 1873.º-1 até ao 1873.º-15. Todavia, a

oponibilidade desta convenção está subordinada à sua publicação, publicação que deve

ocorrer “ no momento de cada acto de aquisição de um bem sujeito a publicidade de

bens imóveis”. Questiona-se sobre as consequências de uma semelhante disposição em

relação aos bens móveis isentos de toda a publicidade.

Por fim, o artigo 515.º-5-3 preocupa-se com a duração da indivisão. O diploma

refere: “Por derrogação ao artigo 1873.º-3 considera-se que a convenção de indivisão é

celebrada pela duração do pacto civil de solidariedade”. A única excepção é no sentido

de uma continuação da indivisão: “aquando da dissolução do pacto, os parceiros podem

decidir que este continue a produzir os seus efeitos”. As partes poderão deste modo

permanecer na indivisão ainda que já não estão mais vinculadas por um pacto civil de

solidariedade. O diploma especifica que esta decisão “está sujeita às disposições dos

artigos 1873.º-1 até ao 1873.º-15”.

5.A abrangência da indivisão

328 A reforma de 23 de Junho de 2006 esforçou-se por especificar a abrangência da

indivisão em dois aspectos.

A redacção do artigo 515.º-5 ao abrigo da Lei de 15 de Novembro de 1999 tinha

levado a questionar se as partes podiam estipular, na convenção do pacto civil de

solidariedade ou na data de aquisição, uma indivisão que não seja a meias. A questão

está hoje claramente regulamentada pelo artigo 515.º-5-1, que proíbe semelhante

hipótese ao especificar categoricamente que “estes bens são então considerados

indivisos por metade”. Os parceiros não têm portanto outra escolha que não a separação

ou a indivisão por metade: não é possível estipular partes desiguais.

Para além disso, colocou-se a questão, após a Lei de 15 de Novembro de 1999,

em saber qual incidência que podia ter a origem das quantias utilizadas para aquisição.

O que aconteceria quando as ditas quantias provinham exclusivamente de um dos

parceiros? Será que se devia então, inspirando-se no regime de comunhão legal,

considerar que o benefício assim conseguido pelo parceiro não contribuidor da natureza

indivisa do bem era um “benefício do pacs” que encontra a sua fonte na Lei e que

escapa às regras das liberalidades (comp. art.º 1527.º)? Ou seria preciso, como no

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regime da separação judicial de bens, considerar que o cônjuge que se tornou

proprietário indiviso sem ter participado em metade do financiamento da aquisição tinha

beneficiado de uma liberalidade indirecta1, ou estava obrigado a reembolsar o

empréstimo que lhe foi então feito? O Tribunal constitucional considerou que a reforma

não alterou em nada relativamente às regras sucessórias, convidando deste modo a

raciocinar por referência à separação judicial de bens. A Lei de 23 de Junho de 2006

reiterou a questão. O artigo 515.º-5-1, in fine, especifica hoje que os bens são indivisos

“sem recurso de um dos parceiros contra o outro a título de uma contribuição desigual”.

A regra deve ser especificada em três aspectos. Primeiro verifica-se que apenas

considera a hipótese de uma contribuição desigual: o que acontece em caso de ausência

total de contribuição? Em seguida verifica-se que afasta categoricamente qualquer

“recurso” mas limita de seguida a exclusão: “a título de uma contribuição desigual”. É

preciso então a priori daí deduzir que bloqueia somente uma acção de reembolso que

um parceiro pretenderia exercer contra o outro tirando partido do facto de que a

aquisição realizada se terá dado principalmente com o seu dinheiro e que o outro

beneficiará assim de um enriquecimento ilícito. Já permanecem abertos, nas condições

do Direito Comum, as acções que estariam fundadas numa outra causa: é o caso da

acção de reembolso do empréstimo consentido por um ao outro, é o caso da acção em

revogação de doação indirecta por ingratidão… Por fim, nota-se que a exclusão apenas

diz respeito aos recursos entre parceiros: terceiros poderão portanto agir, uma vez mais,

nas condições do Direito Comum. Não assim consideradas pelo diploma a acção de

redução de uma liberalidade pelo dano causado à legítima de um herdeiro e a acção

pauliana baseada na fraude aos direitos de um credor.

329 Conclusão. Uma separação judicial de bens com uma eventual quase comunhão

activa sob forma de indivisão. O regime do pacs retira assim da separação judicial de

bens a independência patrimonial que a caracteriza: os patrimónios permanecem

separados, com excepção da solidariedade das dívidas contraídas para a vida corrente e

de uma eventual indivisão resultante da impossibilidade de provar a propriedade

exclusiva de um dos parceiros sobre este ou aquele bem. Porém, se os parceiros o

1 Podendo, eventualmente, constituir uma liberalidade remuneratória, se a sua contribuição para os

encargos da vida familiar excedia a sua obrigação. É o caso do cônjuge que participa na actividade

profissional do outro sem remuneração.

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pretenderem, podem unir mais o seu destino patrimonial: primeiro podem, como no

regime da separação judicial de bens, adquirir este ou aquele bem em indivisão. Podem

sobretudo optar, no início ou posteriormente, e uma vez por todas, por uma indivisão do

pacs que constitui de certo modo uma comunhão de bens adquiridos sem comunhão de

dívidas. Passivamente, com efeito, as dívidas permanecem próprias de cada um, mesmo

aquelas contraídas durante o pacto. Já activamente a indivisão incluirá em princípio

todos os bens adquiridos. É até mais abrangente do que a comunhão legal. Os

instrumentos de trabalho necessários à profissão de um dos parceiros não permanecem,

por exemplo, propriedade exclusiva de cada um (comp. art.º 1404.º, par.2); dá-se o

mesmo com os bens adquiridos a título de acessórios de um bem próprio (comp. art.º

1406.º, par.2) ou daqueles adquiridos por sub-rogação. E o Direito Comum, se permite

por vezes qualificar de propriedade exclusiva os bens considerados (por exemplo, em

virtude do princípio segundo o qual “o acessório segue o principal”), não é sempre

suficiente: não há nada de semelhante por exemplo no caso dos bens profissionais.

Semelhante organização poderá não parecer convincente. Será que é lógico não

consagrar nenhuma disposição própria para garantir a independência profissional dos

parceiros? Será que não merece ser protegida tanto como a dos cônjuges? Será que é

lógico, também, não se fazer qualquer referência à habitação do casal? Será que é

convincente deixar cada um dos parceiros livre para dispor da habitação comum

quando, ao mesmo tempo, a Lei impõe ao senhorio a continuação do contrato de

arrendamento para benefício do parceiro sobrevivo? Será que é lógico o pacto civil de

solidariedade ser oponível a terceiros (senhorio, Estado, segurança social) mas que a

protecção de terceiros esteja limitada, uma vez que apenas é assegurada pela

solidariedade das dívidas da vida corrente e pela presunção de poder relativo aos bens

móveis detidos individualmente? Será que não é iníquo, sobretudo, ver rompido o

equilíbrio, essencial, existente entre activo e passivo? O resultado é que, por um lado, a

actividade profissional exercida por um permitirá eventualmente enriquecer

substancialmente o outro por via da indivisão dos bens adquiridos durante o pacto mas

que, por outro lado, o passivo criado permanecerá próprio do profissional em questão.

Mede-se aqui a dificuldade em elaborar um estatuto de casal que não seja o

casamento mas que seja justo, tanto entre os membros do casal quanto em relação a

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terceiros, tanto em termos de união como em termos de independência, tanto em matéria

pessoal como em matéria patrimonial…

Capítulo 3

A dissolução do pacto

330 Um concubinato na dissolução. A dissolução do pacto acentua a diferença entre

pacto civil de solidariedade e casamento. Se uma comparação se impõe então, é mais

com o concubinato, com a diferença de que diversas formalidades devem ser cumpridas

para que o pacto civil de solidariedade seja extinto. O estudo das causas de dissolução

será acompanhado pela dos efeitos da dissolução.

Secção 1

As causas

331 Uma dissolução formalmente enquadrada. As causas de dissolução admitidas

pela Lei conferem ao pacto civil de solidariedade uma grande fragilidade e distinguem-

no claramente do casamento.

A Lei prevê quatro causas de dissolução: a morte, o casamento (quer se trate do

casamento de um dos dois ou do casamento comum), a vontade acordada ou unilateral

dos parceiros. Todavia, seria errado comparar estes casos de dissolução com os “casos

de divórcio” previstos pelo artigo 242.º do Código Civil (v. supra, nº171). O divórcio

supõe com efeito condições de fundo (um acordo conjunto que emana de uma vontade

livre e esclarecida, a aceitação por parte de cada um da ruptura do casamento, uma

culpa, uma separação de facto de dois anos…) que são bastante diferentes dos eventos

aqui enumerados. Sobretudo, e desta vez sobre a forma, a dissolução do pacs não supõe

qualquer decisão judicial: está somente sujeita a diversas formalidades, cuja sanção não

foi prevista pelos textos resultantes da Lei de 15 de Novembro de 1999 e que foi

especificada pela Lei de 23 de Junho de 2006.

A natureza estatutária do pacto leva a considerar que a enumeração do artigo

515.º-7 é limitativa e que o pacto civil de solidariedade não pode adoptar outro fim.

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Assim, convém a priori excluir a possibilidade de uma resolução judicial por

incumprimento. Da mesma maneira, parece não poder produzir efeito uma cláusula que

prevê a cessação do pacto civil de solidariedade em caso de extinção da vida em

comum.

332 Dissolução por morte ou casamento. O artigo 515.º-7 resultante da Lei de 15 de

Novembro de 1999 previa que o pacto cessava pela morte de pelo menos um dos

parceiros (par.4) ou seu casamento (par.3). A Lei de 23 de Junho de 2006 acrescentou a

hipótese de casamento dos parceiros entre si.

Todavia diversas formalidades devem ser cumpridas. No sistema resultante da

Lei de 15 de Novembro de 1999, estava prevista uma dupla formalidade. Em caso de

morte, uma certidão de óbito devia ser entregue pelo outro ou qualquer interessado na

Secretaria do Tribunal de instância que recebeu o acto inicial. O secretário devia então

fazer menção da dissolução num averbamento ao acto inicial e mandar averbar o registo

mantido na Secretaria do Tribunal. Em caso de casamento, o parceiro que se casa devia

notificar o casamento ao outro, entregar cópia da notificação e a certidão do assento do

nascimento fazendo menção do casamento na Secretaria do Tribunal que recebeu o acto

inicial. O secretário devia, uma vez mais, proceder à dupla formalidade do averbamento

ao acto inicial e do registo. Semelhante sistema apresentava evidentemente o

inconveniente de fazer com que a dissolução do pacto dependesse das formalidades

cumpridas por pessoas singulares. A Lei de 23 de Junho de 2006 melhorou o sistema,

que reforçou, ao retomar as regras impostas aquando da celebração do pacto. Compete

agora ao conservador do registo civil que celebrou o casamento ou lavrou o assento de

óbito informar o secretário do tribunal que recebeu o pacto inicial do evento

considerado, este é então obrigado a registar a dissolução e mandar proceder às

formalidades de publicidade.

Nestes dois casos, a Lei especifica, e isto desde a Lei de 15 de Novembro de

1999, que a dissolução do pacto começa a produzir logo na ocorrência do evento

extintivo.

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333 Dissolução voluntária. O pacto pode também ser voluntariamente dissolvido pelos

parceiros.

Os parceiros podem escolher dissolver o pacto através de declaração conjunta.

A Lei de 15 de Novembro de 1999 impunha-lhes então entregar uma declaração

conjunta à Secretaria do Tribunal da circunscrição na qual pelo menos um dos parceiros

reside. Para facilitar a ruptura acordada, a Lei de 23 de Junho de 2006 permite-lhes

entregar ou “endereçar” a declaração conjunta à Secretaria do Tribunal do local de

registo.

Porém, a ruptura pode também ocorrer por decisão unilateral de uma das partes:

a decisão é livre, pode ocorrer a todo o momento, e não tem de ser fundamentada. A Lei

de 15 de Novembro de 1999 impunha unicamente ao autor da ruptura comunicar ao

outro a decisão e depois de enviar a cópia da notificação à Secretaria do Tribunal que

recebeu o acto. A Lei de 23 de Junho de 2006 permite-lhe agora enviar mas também

“entregar” a dita cópia para a Secretaria do Tribunal.

Em ambos os casos, a Lei encarrega o secretário de registar a dissolução e

proceder às formalidades de publicidade1.

A Lei de 15 de Novembro de 1999 tinha então especificado a data em que o

pacto cessava: tinha considerado a data de averbamento do acto inicial em caso de

declaração conjunta. Já em caso de dissolução por decisão unilateral o pacto apenas

cessava num período de três meses após a notificação entregue ao outro parceiro, e

ainda sem prejuízo a que uma cópia da notificação tenha sido dada a conhecer ao

secretário do tribunal que recebeu o acto inicial. A consagração de semelhante lapso de

tempo não está evidentemente isenta de perigo. A Lei de 23 de Junho de 2006

simplificou o sistema ao mesmo tempo que melhorava a segurança jurídica dos

parceiros e de terceiros: agora, entre parceiros, o pacto cessa na data do registo da

dissolução feito na Secretaria do Tribunal. Já a dissolução apenas se torna oponível a

terceiros no momento do cumprimento das formalidades de publicidade.

1 A lei não lhe impõe mais conservar a declaração conjunta (antigo artigo 515.º-7, paragrafo 1), nem

mencionar a dissolução sobre o acto (antigo artigo 515.º-7, paragrafo 5).

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Secção 2

Os efeitos

334 Dissolução - liquidação. Quando o divórcio não leva apenas a fazer tábua rasa do

casamento dissolvido mas conduz aos efeitos que lhe são próprios (o eventual uso do

apelido do cônjuge, o pagamento de uma prestação compensatória, o contrato de

arrendamento da casa de morada da família…), a dissolução do pacto esforça-se para

ser radical. Trata-se de eliminar no futuro os efeitos do pacto, “liquidar os direitos e

obrigações dos parceiros” como refere o diploma.

1.A fonte da liquidação

335 A Lei remete às próprias partes o cuidado de proceder à liquidação dos seus direitos

e obrigações; caso contrário, prevê-se o recurso ao Tribunal. A solução, consagrada em

1999, foi retomada em 2006.

Os “próprios” parceiros procedem à liquidação…refere o artigo 515.º-7,

parágrafo 9º. Cabe-lhes então provar a conta da indivisão, decidir a partilha… Não se

realiza assim qualquer controlo prévio da qualidade dos consentimentos e da

aceitabilidade do conteúdo do acordo (comp. art.º 232, v, supra, nº 176 seguintes). No

entanto, nada garante que cada um conheça os seus direitos, e o risco de pressões de um

sobre o outro é real num momento frequentemente difícil. Para além disso, o risco é que

os parceiros não procedam à liquidação da sua situação patrimonial, e que a morte de

um leva deste modo a imbricações de indivisões bastante complexas. Em qualquer das

hipóteses, o risco de litígio a posteriori é real. Há o receio de que a ausência de controlo

judicial e de intervenção de um profissional qualificado (comp. Art.º 255, v. supra, nº

206) levem a decisões iníquas que serão posteriormente contestadas. A Lei apenas prevê

o recurso ao Tribunal a título subsidiário: “na ausência de acordo, o juiz decide as

consequências patrimoniais da ruptura” dispõe o artigo 515-7, parágrafo 9. Questiona-se

então acerca de quais serão exactamente os seus poderes.

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2.Responsabilidade e créditos entre parceiros

336 Responsabilidade civil. O artigo 515-7 confere ao juiz o poder para “decidir sobre

as consequências patrimoniais da ruptura”, “sem prejuízo da reparação do dano

eventualmente sofrido” (art.º 515-7, antigo par. 8 que passa a 9).

Provavelmente o legislador tem receado que o silêncio da Lei seja interpretado

como a consagração para benefício de cada um uma irresponsabilidade ilimitada. A

especificação tem deste modo a vantagem de relembrar que um eventual prejuízo

poderá ser reparado. Contudo, a Lei não especificou nem os prejuízos reparáveis nem o

fundamento de semelhante reparação. Será que se trata de reparar o prejuízo causado

pela dissolução? Mas então através de que condição? Será necessário, inspirando-se no

artigo 266º (v. supra, nº 228 e seguintes), subordinar a obrigação de reparar à

imputabilidade da ruptura? Mas então não será ilógico admitir, como pretende o

diploma, a reparação de todo o prejuízo quando o direito do divórcio limita a reparação

“às únicas consequências de uma particular gravidade… sofrida (s) devido à

dissolução”? Será que a própria lógica interna do pacto civil de solidariedade, em que a

liberdade para romper está tradicionalmente apresentada como uma característica

essencial, não conduz preferencialmente a instaurar um princípio de liberdade e só

admite a responsabilidade em caso de culpa na ruptura, brutal, violenta…? Será até que

o dano reparável poderia além disso encontrar a sua fonte na execução do pacto, por

exemplo devido à violação do dever de assistência, ou de vida em comum? Será que não

poderia provir da celebração do pacto, por exemplo, se foi realizada irreflectidamente e

imediatamente seguida de uma ruptura, ou realizada de má fé? Se deve haver analogia,

parece deste modo que esta seja mais com o concubinato, livre na sua ruptura, do que

com o casamento, que não é uma promessa efémera. Mas surgem outras questões: será,

por exemplo, que a responsabilidade é de natureza contratual ou por factos ilícitos (com

as habituais consequências da qualificação, nomeadamente em termos de prescrição)?

Será que as partes podem acordar, desde o início, as condições e efeitos desta

responsabilidade?

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337 Créditos entre parceiros. A Lei de 23 de Junho de 2006 acrescentou uma regra. O

artigo 517, parágrafo 10, especifica agora: “os créditos dos quais os credores são

titulares, um em relação ao outro, são avaliados segundo as regras previstas no artigo

1469º”.

- Regras de avaliação das compensações entre cônjuges. O pacto inspira-se

assim novamente no casamento para o seu regime: os créditos entre parceiros são

avaliados como as recompensas entre cônjuges. Três regras resultam desta situação. O

princípio é que é a menor das duas somas representando a despesa feita e o benefício

subsistente que é devida. O primeiro limite é a hipótese de uma despesa necessária: por

conseguinte, a dívida não pode ser inferior à despesa incorrida. O segundo limite é a de

um crédito que permitiu adquirir, conservar e melhorar um bem que se encontra, no

momento da liquidação, no património do devedor1. O crédito escapa portanto ao

princípio de nominalismo monetário e constitui uma dívida de valor: é o benefício

subsistente que é devido. A Lei especifica duas coisas: em caso de alienação do bem

considerado, o benefício é avaliado no momento da alienação; em caso de alienação

seguida de uma sub-rogação real, o benefício é avaliado sobre o novo bem sub-rogado

ao bem alienado.

-Limites. O diploma prevê dois limites.

Em primeiro lugar, admite a hipótese de uma “convenção em contrário”. Os

parceiros poderiam assim decidir uma outra técnica de avaliação. Dado que a Lei não

especificou nada, parece lógico admitir que uma semelhante disposição seja inserida no

pacto inicial ou uma convenção modificativa publicada. E em relação a uma convenção

celebrada entre parceiros? A dificuldade seria certamente o efeito da convenção em

relação a terceiros.

Em segundo lugar, prevê que “estes créditos podem ser compensados com os

benefícios que o seu titular tem tido a possibilidade de retirar da vida em comum,

nomeadamente ao não contribuir ao nível da sua capacidade financeira relativamente às

1 Isto será muitas vezes o património do parceiro devedor. Mas pode-se imaginar que um parceiro

consente um empréstimo ao outro para adquirir um bem indiviso. A regra conduzirá então a avaliar o

crédito a partir do valor da parte indivisa do devedor.

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dívidas contraídas para as necessidades da vida corrente”. Deste ponto de vista, o pacto

civil de solidariedade difere profundamente do concubinato: não é permitido mover a

acção de in rem verso quando o cônjuge se queixa unicamente de ter assumido mais do

que seria necessário para as despesas da vida em comum, sendo o princípio que “na

ausência de disposições legais que regulam a contribuição dos cônjuges nos encargos da

vida em comum, cada um deve, na ausência de vontade expressa a esse respeito,

suportar as despesas” deste modo expostas” (v. supra, nº 270)1. Já, uma vez mais,

inspira-se na separação judicial de bens: quando um cônjuge contribui para os encargos

da vida familiar para além da sua obrigação legal e diminuindo assim o seu património

(por lucros cessantes ou perdas sofridas) ao mesmo tempo que aumenta

correlativamente o do outro cônjuge, daqui resulta uma dívida a cargo do que aumentou

o seu património, dívida que pode ser saldada sob a forma de uma liberalidade

remuneratória ou justificar o pagamento de uma indemnização compensatória aquando

da dissolução do casamento. O “nomeadamente” convida evidentemente a questionar-se

em que outro caso uma semelhante compensação poderia ser realizada. Parece lógico

considerar a hipótese da colaboração não remunerada de um parceiro na profissão do

outro. Em caso semelhante, na separação judicial de bens como no concubinato2, aquele

empobrece e enriquece ao mesmo tempo o outro (porque a colaboração é não

remunerada), é titular de um crédito em relação ao outro3. Já, parece lógico excluir toda

a tomada em consideração do benefício resultante da indivisão dos bens adquiridos

durante o pacto para o parceiro que não contribuiu igualmente na aquisição, sendo que o

artigo 515.º-5-1 in fine proíbe portanto qualquer “recurso de um dos parceiros contra o

outro a título de uma contribuição desigual” (v. supra, nº 328).

1 Civ. 1º, 19 de Março de 1991, Bol., nº 92, 17 de Outubro de 2000, Bol., nº 244, 28 de Novembro de

2006, Bol., nº 517. 2 Aquele que, pelo seu feito pessoal, enriqueceu o outro ao mesmo tempo que empobrecia, pode agir no

terreno da acção de in rem verso se o facto invocado “se distingue de uma participação às despesas

comuns dos cônjuges”, por exemplo se consiste numa colaboração profissional: Civ. 1º, 15 de Outubro de

1996, Bol., nº 357. 3 Com a condição de que, no casamento, a dita colaboração ultrapasse a obrigação legal para contribuir

aos encargos da vida familiar.

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3.Outras questões resolvidas pelo juiz

338 Direito Comum. A Lei apenas considera deste modo explicitamente a

responsabilidade eventual de um em relação ao outro ou a questão da avaliação dos

créditos entre cônjuges ou algumas questões relativas à indivisão. Quer isto dizer que

estas são as únicas questões que poderiam ser submetidas ao juiz? A resposta é não. O

juiz poderá mesmo, eventualmente, ser notificado num pedido de restituição de bens

(art.º 544º), ou também num pedido de revogação de liberalidade por incumprimento

das condições, ingratidão (art.º 953 seguintes) … De um modo mais geral, não importa

o pedido que lhe poderá ser submetido, baseado no Direito Comum, direito da coisa ou

direito das obrigações (enriquecimento sem causa, execução de contrato, gestão de

negócios…).

4.Partilha da indivisão e vocação sucessória

339 Para além disso, a Lei de 23 de Junho de 2006 consagrou algumas regras ao destino

de bens indivisos em caso de dissolução do pacto.

-Atribuição preferencial de Direito Comum. A Lei de 15 de Novembro de 1999

tinha alargado ao pacto civil de solidariedade as disposições do artigo 832º do Código

Civil (artigo 515º-6). Por conseguinte, aquando da dissolução do pacto,

independentemente da causa, um dos parceiros podia beneficiar da atribuição

preferencial de certos bens, prevista pela Lei mediante certas condições. No entanto,

estavam excluídas as disposições relativas a todo ou parte de uma exploração agrícola,

assim como a uma quota-parte indivisa ou às partes sociais desta exploração. Desde a

Lei de 23 de Junho de 2006, são os novos artigos 831º, 831º-2, 832º-3 e 832º-4 que

estão aplicáveis ao pacto civil de solidariedade em virtude do artigo 515º-6. A partir

desse momento, a atribuição preferencial poderá dizer respeito, em linhas muito gerais,

a uma empresa ou uma parte de empresa (agrícola, comercial, industrial, artesanal ou

liberal), sendo que a propriedade ou a permanência do contrato do arrendamento do

local servem para habitação ou para o exercício da profissão, bens móveis necessários à

exploração de um contrato de arrendamento rural.

-Atribuição preferencial de direito. Para além disso, o diploma torna hoje

aplicáveis ao parceiro sobrevivo as disposições do primeiro parágrafo do artigo 831º-3,

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se o falecido estipulou-a expressamente por testamento. A atribuição preferencial da

propriedade do local e do mobiliário que o recheia é portanto de direito para beneficio

do sobrevivo se tal fosse o desejo do falecido.

-Direito de usufruto da habitação e dos móveis durante um ano após a morte.

Por fim, o parágrafo 3 do diploma prevê que o sobrevivo pode tirar partido dos dois

primeiros parágrafos do artigo 763º. Deste modo, a Lei alarga ao concubino sobrevivo o

benefício do direito criado para vantagem do cônjuge sobrevivo pela Lei de 3 de

Dezembro de 2001, nomeadamente, o direito ao usufruto gratuito da casa ocupada a

título de habitação principal bem como o mobiliário que a recheia, direito de usufruto

que existe durante um ano a contar da abertura da sucessão (v. supra, nº 138)1. Supondo

que a habitação esteja assegurada por meio de contrato de arrendamento, é no momento

da sucessão que incumbe o pagamento das rendas durante um mesmo ano2. Todavia, o

diploma tem limitado a extensão ao pacs do estatuto sucessório do cônjuge sobrevivo:

os parágrafos 3 e 4 do artigo 763º não são assim aplicáveis ao parceiro vinculado por

um pacto civil de solidariedade ao falecido. Esta limitação da referência é importante:

primeiro, resulta daí que os que os direitos em questão serão considerados como direitos

sucessórios3; de seguida, resulta daí que estes direitos não são de ordem pública, de tal

modo que o falecido terá tido a possibilidade de os excluir.

340 Conclusão. Uma semelhante exposição comprova que: 1º) o pacto civil de

solidariedade é quase um casamento na sua formação, uma vez que se inspira

fundamentalmente nas suas regras, com a excepção – e esta é altamente simbólica – da

celebração pelo conservador do registo civil; 2º) se assemelha muito a um casamento

celebrado com separação judicial de bens durante a sua existência, mesmo

permanecendo acentuadas diferenças (não se lhe associa nenhum efeito em relação aos

filhos dos parceiros; as dívidas permanecem pessoais; os benefícios “do pacs”

distinguem-se dos benefícios matrimoniais; a vocação sucessória do cônjuge sobrevivo

não tem equivalente); 3º) se aproxima mais do concubinato do que do casamento

aquando da sua dissolução. O novo estatuto que oferece aos casais leva assim a uma

1 Sobre as consequências fiscais, ver art.º 789.º bis CGI 2 Sobre as consequências fiscais, ver art.º775.º em quarto lugar CGI 3 A especificação é muito importante, em termos de redução das liberalidades.

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união privada de todo o efeito geracional, menos estreita que o casamento na ordem

patrimonial, e largamente amputada de efeito vinculativo no tempo.

O futuro dirá qual é a liberdade exacta de que cada um dispõe (nomeadamente

em termos de fidelidade e dissolução) e que consequências um semelhante estatuto terá

sobre a instituição do casamento (reforço da sua abrangência, simbólica e prática, ou

enfraquecimento da sua abrangência, nomeadamente nos efeitos pessoais e aquando da

dissolução) e relativamente ao concubinato (acentuação do não direito ou via da

institucionalização).

O futuro dirá também que consequência este estatuto terá na “contratualização”

dos casais.

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