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108 4. Conceitos básicos para a análise Este capítulo é destinado à exposição dos conceitos na base dos quais desenvolveremos a análise do nosso corpus. 4.1. O contexto sociocognitivo Antes de definir e desenvolver a noção de contexto sociocognitivo, convém salientar que ela nos será útil por nos permitir fazer ver, durante a prática de análise, como a cultura se faz presente nas representações coletivas de mundo. Vimos que Halliday não chega a desenvolver uma teoria do contexto e, tendo assumido uma abordagem antimentalista da linguagem, não lhe foi possível explicar a interface entre contexto de situação e uso da língua. O conceito de contexto sociocognitivo se assenta no pressuposto de que há uma interface cognitiva entre texto e contexto. Ele está, evidentemente, implicado na abordagem sociocognitiva de contexto de Dijk (2012), que trouxemos à cena no capítulo anterior. Para efeito de análise dos corpora, ele tem um valor operacional importante que trataremos de demonstrar doravante. Começaremos, pois, notando, com Koch (2006, p. 21), a diversidade de concepções de contexto que se acha na literatura linguística. Observa a autora que os conceitos de contexto variam bastante não só no tempo, como também entre um autor e outro; ademais casos há em que um mesmo autor define o termo de modo diferente em vários momentos de seu trabalho, sem ter disso consciência. Particularmente notável é o fato de Koch referir as contribuições de Malinowski (1923) e Firth (1957), cujos estudos, nesse tocante, influenciaram o pensamento de Halliday. A autora reconhece ter sido Malinowski quem cunhou os conceitos de “contexto de situação” e “contexto de cultura”, não sem notar, contudo, que ele não propôs “um modelo de como o contexto é determinado e do papel que desempenha na interpretação dos enunciados” (p. 22). De Firth nos diz que enfatizou o conceito de “contexto de situação”, de tal sorte que coube a ele postular que as palavras e frases não tinham sentido se não fossem consideradas em seus contextos de uso.

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4.

Conceitos básicos para a análise

Este capítulo é destinado à exposição dos conceitos na base dos quais

desenvolveremos a análise do nosso corpus.

4.1. O contexto sociocognitivo

Antes de definir e desenvolver a noção de contexto sociocognitivo, convém

salientar que ela nos será útil por nos permitir fazer ver, durante a prática de

análise, como a cultura se faz presente nas representações coletivas de mundo.

Vimos que Halliday não chega a desenvolver uma teoria do contexto e, tendo

assumido uma abordagem antimentalista da linguagem, não lhe foi possível

explicar a interface entre contexto de situação e uso da língua.

O conceito de contexto sociocognitivo se assenta no pressuposto de que há

uma interface cognitiva entre texto e contexto. Ele está, evidentemente, implicado

na abordagem sociocognitiva de contexto de Dijk (2012), que trouxemos à cena

no capítulo anterior. Para efeito de análise dos corpora, ele tem um valor

operacional importante que trataremos de demonstrar doravante.

Começaremos, pois, notando, com Koch (2006, p. 21), a diversidade de

concepções de contexto que se acha na literatura linguística. Observa a autora que

os conceitos de contexto variam bastante não só no tempo, como também entre

um autor e outro; ademais casos há em que um mesmo autor define o termo de

modo diferente em vários momentos de seu trabalho, sem ter disso consciência.

Particularmente notável é o fato de Koch referir as contribuições de Malinowski

(1923) e Firth (1957), cujos estudos, nesse tocante, influenciaram o pensamento

de Halliday. A autora reconhece ter sido Malinowski quem cunhou os conceitos

de “contexto de situação” e “contexto de cultura”, não sem notar, contudo, que ele

não propôs “um modelo de como o contexto é determinado e do papel que

desempenha na interpretação dos enunciados” (p. 22). De Firth nos diz que

enfatizou o conceito de “contexto de situação”, de tal sorte que coube a ele

postular que as palavras e frases não tinham sentido se não fossem consideradas

em seus contextos de uso.

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A autora lembra ainda que autores como Halliday e Labov, orientando-se

por uma perspectiva sociolinguística, retomaram a noção de contexto. Escusa

dizer que Halliday (1978), ao esposar a noção de ‘contexto de situação’, segue de

perto Malinowski e Firth. Finalmente, Koch lembra Hymes (1964), que também

adota o termo ‘contexto de situação’ em seus trabalhos, sem, contudo, deixar de

mencionar a perspectiva cognitivista de contexto de Goodwin & Duranti (1992),

para quem o contexto é um frame.64

O problema, nessa matéria, parece repousar na dificuldade de delimitação do

próprio conceito, a saber, onde ele inicia e onde ele acaba. Após fazer alusão às

contribuições dos referidos autores, Koch (p. 23) apresenta os cinco fenômenos

que devem ser recobertos pelo conceito de contexto. Assim, segundo a autora, o

contexto deve recobrir:

1. cenário;

2. entorno sociocultural;

3. a própria linguagem como contexto – o modo como a fala mesma

simultaneamente invoca contexto e fornece contexto para outra fala; isto é, a

própria fala constitui um recurso dos mais importantes para a organização do

contexto;

4. conhecimentos prévios;

5. contexto analisado como um modo de práxis interativamente constituído: evento

focal e contexto estão numa relação de figura-fundo.

Convém observar que o item 3, no qual se diz que a própria linguagem

produz contexto, leva-nos à posição de Halliday, para quem, como vimos, o texto

produz contexto. Considerando-se o que nos ensinam Butt e Fahey, a posição de

Halliday, nesse tocante, expressa-se nos seguintes termos: “This unity [context] of

purpose gives a text both texture and structure. (…) a text always occurs in two contexts,

one within the other” (Butt e Fahey, 1997, p. 11)65

.

Os dois tipos de contexto propostos por Halliday - o contexto de cultura e o

contexto de situação -, o primeiro dos quais recobre ou inclui o segundo, podem

ser entrevistos nos itens 1 e 2. Recordando aqui essa distinção, o contexto de

cultura encerra “the differences in forms of adress, in cerimonies, in politeness

64

O frame é um modelo cognitivo, isto é, “um conjunto de conhecimentos armazenados na

memória sob certo “rótulo”, sem que haja qualquer ordenação entre eles” (Koch, 2003, p. 72). 65

Esta unidade de sentido [contexto] confere ao texto textura e estrutura (...) um texto sempre

ocorre em dois contextos, um dentro do outro.

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and significant activities between one culture and another” (ibid.id.)66

. O contexto

de situação, a seu turno, interno ao primeiro, inclui o ‘cenário’, no qual

encontram-se os participantes da situação de interação, seus comportamentos,

objetos e as palavras produzidas, formando um complexo de relações de tipo

variado. Convém ainda atentar para o que se segue, no tocante à relação entre

texto e contexto:

(...) a relação entre a língua e os seus contextos de uso, ou dito de outra forma, a

relação entre um texto e o seu contexto, é de tal forma motivada que, a partir de um

contexto, será possível prever os significados que serão activados e as

características linguísticas potenciais mais previsíveis para as codificar em texto

(Gouveia, 2009, p. 25)

Dispensando-se pormenores, não está claro para nós como a distinção

estabelecida por Halliday entre contexto de situação e contexto de cultura pode-

nos ajudar a descrever e explicar os usos dos verbos “ser” e “estar” na perspectiva

de PL2E: por um lado, não está claro como o contexto de situação possa dar conta

das crenças, pressupostos e conhecimentos partilhados entre os interlocutores;

pensá-lo como ‘cenário’ não nos é suficiente para compreender as implicações

contextuais envolvidas nas escolhas entre ser e estar, quando articulados a

adjetivos, por exemplo; por outro lado, o contexto de cultura, tal como esboçado

na LSF, parece ser mais profícuo a uma análise de orientação interculturalista e

que se ocupe de aspectos mais gerais relativos ao discurso, donde se segue a

preocupação com convenções, atualização da polidez, etc. De qualquer modo, o

problema aqui é que nem Halliday nem seus seguidores chegaram a desenvolver

uma teoria do contexto. Não está claro, insistimos, como também o contexto de

cultura chega a determinar as escolhas linguísticas que fazemos. O componente

cognitivo não parece ter sido devidamente contemplado e desenvolvido nos

estudos da LSF.

É, portanto, em Koch (2006, pp. 23-24), que nos apoiaremos ao operar com a

noção de contexto. A autora propõe o conceito de ‘contexto sociocognitivo’, que

se situa no interior de uma abordagem sociocognitiva da linguagem, da qual Dijk

é um representante. O contexto sociocognitivo, conforme assinalará a autora, é

global; por conseguinte, inclui todos os outros tipos de contexto.

66

(...) as diferenças em termos de formas de discurso, cerimônias, polidez e atividades

significativas entre uma cultura e outra.

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Para que duas ou mais pessoas possam compreender-se mutuamente, é preciso que

seus contextos cognitivos sejam, pelo menos, parcialmente semelhantes. Em outras

palavras, seus conhecimentos – enciclopédico, sociointeracional, procedural etc. –

devem ser, ao menos em parte, compartilhados (visto que é impossível duas

pessoas compartilharem exatamente os mesmos conhecimentos).

Assim é que o contexto sociocognitivo compreende todos os conhecimentos,

crenças, valores, etc. representados na memória dos interactantes. Tais

conhecimentos (crenças, valores, opiniões) são mobilizados na interação verbal.

Disso se segue que a escolha entre ser e estar dependerá da mobilização desses

conhecimentos ou crenças pressupostos como compartilhados entre os

participantes da interação. Também daí se segue que o falante dirá aquilo que é

necessário ou relevante para que o seu interlocutor reconstrua a interpretação

desejada. Veja-se um exemplo disso, considerando-se as duas frases que seguem:

(11) A praia está boa

(12) A praia é boa.

Numa situação em que os interlocutores estão desfrutando da praia, à

produção de (11) pode subjazer a intenção de comunicar que a praia naquele

momento mesmo está agradável, ou seja, ‘boa’. Na perspectiva do falante, ‘boa’ é

uma qualidade circunstancial da praia, já que decorrente de uma avaliação que ele

faz com base em sua experiência subjetiva circunstancial. No entanto, se esse

falante também fosse um desfrutador assíduo da mesma praia há anos e se, nas

muitas vezes em que esteve nela, a praia lhe agradou, ele poderia produzir um

enunciando como (12), para comunicar que a qualidade de ‘boa’ insere a “praia”

na classe ou grupo das praias que ele considera “boas”. O uso de “ser” opera,

portanto, uma categorização da entidade ‘praia’, com base numa avaliação feita

sobre as condições da praia. Sendo um desfrutador assíduo da praia em questão, é

razoável supor que o interlocutor compartilhe com, pelos menos, alguns membros

de sua cultura a opinião de que a praia costuma ser boa para banho. O exemplo

(13), abaixo, ilustra a situação em que o interlocutor poderia discordar da

avaliação feita pelo seu parceiro de comunicação sobre a praia, quando da

produção de (11). A discordância, no caso, não se dá em termos da qualidade

atribuída a ela, mas em termos do modo como essa qualidade foi atribuída. Em

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outras palavras, a discordância se dá na escolha da forma mais adequada entre as

opções “ser” ou “estar”.

(13) Está boa não, ela é boa.

A oposição discursiva subjacente ao uso de “ser” e “estar” fica aqui patente.

Se o amigo, sem nunca ter ido àquela praia, dissesse (11), e o outro, que é um

freqüentador assíduo, o advertisse, dizendo (13), poderíamos concluir que, para

este, a escolha de ‘ser’ é mais adequada: a praia tem como característica

reconhecidamente constante o fato de ser boa.. O não-frequentador da praia

avaliou-a de sua perspectiva atual, circunstancial, já que não dispunha do

conhecimento prévio de que (quase) sempre a praia é agradável àqueles que

desfrutam dela. Poder-se-ia se tratar de uma praia famosa, que agradando às

pessoas que a frequentam, atrai muitos turistas e nativos da região. Nesse caso, o

falante que retifica dispõe de um conhecimento sociocultural que falta ao amigo.

É este conhecimento sociocultural que lhe garante, inclusive, credibilidade na sua

avaliação que, em todo caso, é subjetiva (a qualidade “boa” não está na praia em

si, mas é algo atribuído à praia, é um valor projetado e intersubjetivamente

negociado).

Importa ver que a escolha das expressões linguísticas que nos parecem

adequadas ao que pretendemos comunicar estará sempre sujeita à refutação, à

rejeição, à retificação; e as “disputas pelo sentido adequado” dependerão dos

modos como percebemos/ interpretamos nossas experiências culturais ou de

mundo. Compartilhar, ainda que parcialmente, um modelo de mundo (um

contexto sociocognitivo) é indispensável para que os significados possam ser

negociados; é indispensável para que a própria interação seja levada a bom termo.

O amigo não-frequentador poderia até negar que a praia é boa; provavelmente,

porém, não seria bem-sucedido em sua empresa argumentativa, visto que lhe

faltaria a experiência de assiduidade na presença como desfrutador da praia –

experiência esta que lhe asseguraria tomar parte do conhecimento de base comum

compartilhado pelos demais membros de uma cultura.

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4.2. Operadores de categorização, de circunstancialização e de

identificação

As tentativas de explicar o uso de “ser” e “estar” com base na oposição

semântica ‘qualidades inerentes’ e ‘qualidades temporárias’ não dão conta da

problemática que, neste trabalho, procuramos identificar e resolver. Além da

vagueza que se depreende dessas designações, que nos envolve em dificuldades

tais como a de determinar em que medida adjetivos que servem à apreciação de

atributos estéticos, como “feio”, “bonito”, “horrível”, etc., exprimem qualidade

“inerente”, quando usado com “ser”, ou ainda a de manter a razoabilidade da ideia

duração de tempo em que a entidade designada pelo substantivo deve comportar a

qualidade (duração esta sugerida pela semântica do adjetivo ‘temporário’), em

casos em que a própria semântica do adjetivo exclui uma interpretação que torne

válida a ideia de ‘qualidade temporária’ (cf. O jogo está encerrado), aquela

oposição não é satisfatória sempre que a escolha entre “ser” e “estar” implica

efeitos de sentido. Ademais, ela é evocada, quase exclusivamente, para explicar a

ocorrência de “ser” e “estar” articulados a adjetivo, tendo seu poder descritivo-

explicativo claramente enfraquecido quando é o que nos ocupa é a ocorrência

desses verbos com SN e SP. De passagem, no exemplo que fornecemos entre

parênteses, a saber, “O jogo está encerrado”, não há incompatibilidade entre a

ideia ‘estado resultante de mudança’, pressuposta no uso de “encerrado” (trata-se

de uma mudança definitiva) e a ideia de circunstancialização marcada pelo uso de

“estar”. O verbo “estar”, nesse caso, exprime a ideia de ‘estado atual’ ou a

circunstância em que se encontra o jogo no momento da enunciação. Se, por um

lado, naturalmente, “encerrado” desautoriza uma explicação que apele para a

noção de ‘temporário’; por outro lado, se presta a uma explicação que evidencie a

circunstancialização no próprio estado-de-coisas designado – circunstancialização

esta marcada pelo uso de “estar”.

Abandonando aquela oposição na tentativa de explicar os usos de “ser” e

“estar”, propomos que estes verbos sejam vistos como operadores (noção que

guarda seu valor instrumental) que tornam possível a realização de atividades

discursivas de base socicognitiva. Ao verbo “ser”, atribuiremos as funções de

operador de categorização e de operador de identificação; ao verbo “estar”, a

função de operador de circunstancialização.

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Ao propor os termos operador de categorização e operador de

circunstacialização, para definir a função discursiva que está na base da distinção,

para efeito de uso, entre “ser” e “estar”, queremos com eles sugerir que as

atividades de categorizar e circunstancializar uma qualidade designada pelo

adjetivo se realiza no âmbito discursivo. A essas atividades subjaz a intenção ou o

propósito do falante. É o falante que, ao escolher “ser”, opera uma categorização

do sujeito com base na qualidade predicada dele. É também o falante que, ao

escolher “estar”, opera uma circunstancialização da qualidade predicada do

sujeito. A liberdade do falante na escolha entre a operação de categorização com

“ser” e a de circunstancialização com “estar” será limitada pela natureza

semântica do adjetivo predicador. Neves (2000) distingue entre “adjetivos

classificadores ou classificatórios” e “adjetivos qualificadores”67

. Essa distinção

nos importa porque ela nos permite sistematizar o uso dos referidos verbos

relativamente à tipologia do adjetivo.

Assim é que se pode dizer que os adjetivos classificadores, porque “colocam

o substantivo que acompanham em uma subclasse, trazendo em si uma indicação

objetiva sobre essa subclasse” (Neves, 2000, p. 185) combinam-se com “ser” e

quase nunca com “estar”. É justamente porque o verbo “ser” é um operador de

categorização que tais adjetivos de tipo “classificatório” podem-se combinar com

ele, e raramente com “estar”. Por outro lado, os adjetivos qualificadores, porque

“têm algumas qualidades ligadas ao próprio caráter vago que se pode atribuir à

qualificação” (Neves, ib.id.), admitem tanto “ser” quanto “estar”.

Antes de ilustrarmos o que dissemos até aqui e explicitarmos de que modo

operam os verbos “ser” e “estar” entendidos, no âmbito discursivo, como

“operadores”, convém definir aqueles três termos que enunciamos no limiar desta

seção. O verbo “ser” é um operador de categorização porque constitui um recurso

pelo qual o sujeito é inserido numa categoria ou classe definida pela qualidade

atribuída a ele na predicação. O verbo “estar” é um operador de

circunstancialização porque constitui um recurso graças ao qual, na atribuição da

qualidade ao sujeito, essa qualidade é entendida como circunstancial. No primeiro

caso, a qualidade predicada define não só a entidade ou objeto designado pelo

sujeito, mas toda uma classe da qual essa entidade ou objeto faz parte. No

67

Destinaremos uma seção para o tratamento desses tipos de adjetivos, com base na lição de

Neves (2000), no capítulo em que analisaremos o uso de “ser” e “estar” com sintagmas adjetivais.

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segundo caso, a qualidade não define, tão só caracteriza, ou é interpretada como

adquirida pelo sujeito circunstancialmente. É com base nessa distinção que

podemos explicar por que certos adjetivos cujas qualidades designadas podem ser

tomadas numa perspectiva “objetiva” combinam-se com “ser” e não (ou quase

nunca) com “estar”. Considerem-se as seguintes ocorrências:

(14) O evento é privado.

(15) O muro é alto.

(16) O muro está alto.

(17) O menino é inteligente.

O exemplo (14) ilustra a situação em que o adjetivo “privado” pode ser

tomado numa perspectiva mais “objetiva”. Em outras palavras, não se trata de

uma qualidade atribuída ao sujeito em função de uma avaliação subjetiva do

falante. O uso de “estar”, nesse caso, é inaceitável, porquanto o adjetivo é do tipo

classificatório e, como tal, combina-se com “ser”. Em termos mais precisos,

“privado” é um predicador que seleciona “ser” e não “estar”. Os casos (15) e (16)

são diferentes. Nesses casos, temos um predicador “alto”, que designa uma

qualidade que pode ser representado na predicação como uma qualidade

‘definitiva’ ou ‘não-definitiva’ do sujeito (tomando-se o plano estritamente

sintático-semântico da predicação). Como não é um adjetivo “classificatório”,

mas “qualificador”, a atribuição dele ao sujeito se presta a uma avaliação mais ou

menos subjetiva do falante. O adjetivo “alto” – que é o predicador – admite tanto

“ser” quanto “estar”. A escolha entre um verbo e outro dependerá da situação

comunicativa. Por exemplo, um engenheiro após inspecionar uma obra pode se

deparar com um muro e concluir que “ele está alto” (resultado de mudança);

alguém pode, por outro lado, passeando pela calçada avistar uma casa e dizer “O

muro daquela casa é alto”. No primeiro caso, o engenheiro dispunha do

conhecimento prévio de que o muro estava sendo construído, ou seja, ele estava

ciente do processo de construção do muro, estava ciente de que se trata de um

muro específico (por exemplo, o da casa que ele planejou). No segundo caso, o

transeunte simplesmente vê um muro e o classifica como um muro pertencente à

classe dos “muros altos”. Em outras palavras, nesse momento, ele insere o “muro”

na categoria dos muros que considera alto. É claro que nada impediria que ele

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escolhesse “estar” e produzisse “Esse muro está alto!”, mas, nesse caso, teria

ativado (e marcado linguisticamente) o conhecimento de mundo geral segundo o

qual esse muro, como seja um ‘dado’ artificial da realidade, foi construído pela

força do trabalho humano, a saber, ele é produto de uma atividade humana

(portanto, resultado de mudança).

O que determina o uso de um ou outro verbo é a intenção do falante de

atribuir a qualidade designada pelo adjetivo “alto” por meio de categorização ou

de circunstancialização. Escolhendo “ser”, o falante opera uma categorização do

sujeito com base na qualidade predicada dele; escolhendo “estar”, opera uma

circunstancialização dessa qualidade predicada do sujeito.

Considerando-se, por outro lado, o caso (17), e tendo em conta que aí figura

o adjetivo “inteligente”, que denota uma qualidade normalmente interpretada

como inerente a todo ser humano normal, o uso do “ser” (que introduziria uma

‘qualidade definitiva’) parece ser, via de regra, o mais aceitável entre os falantes

nativos de português. Embora a inteligência seja uma propriedade que

desenvolvemos ao longo de nossas experiências de mundo, o ser humano nasce

pré-disposto a ela. A própria natureza semântica do adjetivo pode repelir o uso de

“estar”, que indicaria ser possível ter a inteligência num determinado momento, e

não dispor dela noutro, como se ela fosse algo episódico. Sucede diferente com o

adjetivo “esperto” que, a despeito de situar-se no mesmo campo semântico de

inteligência, não é sinônimo de inteligente, designando, portanto, uma qualidade

de alguém que é hábil, astuto, podendo sê-lo numa dada circunstância, donde se

segue a possibilidade de usar “estar” (cf. O menino está esperto).

Devemos ponderar, contudo, sobre a possibilidade da ocorrência de um

enunciado como (17a), produzido numa situação em que uma mãe fala, com

satisfação, sobre seu filho a uma amiga:

(17a) Ele está muito inteligente.

A explicação para a ocorrência de “estar” com “inteligente”, a despeito do

que dissemos sobre a semântica desse adjetivo anteriormente, parece repousar

sobre a hipótese segundo a qual se o adjetivo, ainda que seja, normalmente,

considerado como denotativo de uma qualidade inerente ou passível de

categorização do sujeito, permitir uma leitura ‘processual’, de tal modo que o

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emprego de “estar” marca uma etapa no desenvolvimento desse processo, o uso

desse verbo encontrará aceitação entre os falantes nativos de português.

Gostaríamos de insistir na importância de atentar para a semântica do

predicador (o adjetivo), a fim de explicar a flutuação entre os verbos “ser” e

“estar” em casos em que, via de regra, apenas um dos verbos seria mais

largamente aceito. Uma das generalizações mais notáveis sobre o uso de tais

verbos com adjetivos diz respeito à ocorrência sistemática de “ser” com adjetivos

ligados à identidade ou a atributos morais. Veja-se, por exemplo, o caso do

adjetivo “honesto”. Uma frase como (18), em que figura “ser”, é o tipo mais usual

entre os falantes nativos de português:

(18) Pedro é honesto.

O predicador “honesto” seleciona “ser” e tenderia a rejeitar “estar”. Pelo uso

de “ser”, o falante insere o sujeito na classe das pessoas que ele considera

“honestas”. Devemos reconhecer, contudo, a possibilidade de ouvirmos uma frase

como (18a):

(18a) Pedro está tão honesto (ultimamente)

É notável, contudo, a ironia que ela pode comportar, além, é claro, do

pressuposto que constitui a condição mesma de sua enunciação, qual seja, o de

que Pedro não era sempre honesto, ou não é, normalmente, reconhecido como tal.

O uso de “estar”, nesse caso, é adequado para marcar justamente esse pressuposto,

já que deixa entrever uma mudança de estado, de modo de ser/ comportar-se de

Pedro.

Veja-se, agora, o exemplo seguinte:

(19) O evento é privado.

Nesse caso, ocorre um adjetivo de sentido descritivo (cf. Azeredo, 2002) ou

classificatório (Neves, 2000). Adjetivos de sentido descritivo ou de função

classificatória selecionam “ser” e não “estar” (cf. O território agora é asiático;

Estas escolas são públicas). Outros exemplos são os que seguem:

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(20) A escola é particular.

(21) Esta decisão é política.

(23) O acordo estabelecido foi internacional.

(24) Esse regime é comunista.

O que há em comum nas qualidades designadas por esses adjetivos do tipo

descritivo ou classificatório é que elas são encaradas como propriedades objetivas

das coisas ou objetos às quais são atribuídas. Certo nos parece que elas definem,

na atribuição, o conteúdo dos seus respectivos sujeitos, de tal sorte que não

permitem uma interpretação que perspective sua circunstancialização (ou seja, que

as encare como qualidades atribuídas circunstancialmente, segundo o ponto de

vista do enunciador).

Do exposto até aqui, esperamos tenha ficado clara a relação entre a função

discursiva de categorização, mediante o uso de “ser”, e o conteúdo ‘definitivo’

deduzido da relação entre a qualidade designada pelo adjetivo e o sujeito a que se

refere; por outro lado, clara esperamos que esteja a relação entre a função

discursiva de circunstancialização, mediante o uso de “estar”, e o conteúdo de

‘não-definitivo’ (circunstancial) inferido da relação entre aquela qualidade e o

sujeito.

A lição segundo a qual “ser” serve à atribuição de qualidades inerentes; e

“estar”, à atribuição de qualidades não-inerentes será de todo rechaçada por nós.

À medida que ponderamos sobre ela, nos vimos envolvidos em algumas questões

muito mais de ordem filosófico-antropológica do que propriamente linguística.

Por exemplo, se dissermos “Pedro é bonito”, podemos entender “bonito” como

uma qualidade inerente a Pedro, ainda que reconheçamos que padrões de beleza

são determinados culturalmente? É claro que essa pode ser uma questão de menor

importância para os nossos propósitos (e podemos evitá-la), mas isso depende de

que assumamos que, ao usar o verbo “ser” com um adjetivo como “bonito”, que

caracteriza o sujeito com base numa apreciação positiva no domínio estético, o

falante quer tão-só dizer que, na sua perspectiva, Pedro é uma pessoa que ele

incluiria na classe das pessoas que ele, falante, considera “bonitas”. Estamos

cientes de que essa discussão nos levaria longe demais, especialmente se

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considerarmos outro exemplo como “Pedro é magro”.68

Nesse caso, num primeiro

momento, somos levados a admitir a magreza como uma propriedade física

acessível à experiência sensória comum a qualquer pessoa (mais facilmente

objetivada); por outro lado, o fato de haver pessoas que sofrem de bulimia é

indicativo do fato de que a realidade experienciada parece ser mais produto de

nossos cérebros moldados culturalmente, não sem o concurso de uma complexa

relação entre percepção-cognição e linguagem, do que um ‘dado’, algo pronto que

se nos impõe à consciência para que seja avaliado e classificado. Não precisamos

de demasiados floreios filosóficos para constatar, por experiência, que as pessoas

divergem na opinião sobre o que é ser magro e o que é ser gordo, por exemplo.

Ao preferir adotar a noções de ‘qualidades (tomadas como) definitivas’ e

‘qualidades (tomadas como) não-definitivas’, evitamos as complicações

decorrentes da vagueza do conceito de ‘inerência’ (e seu contraditório), como as

sugeridas acima. Destarte, por exemplo, em face de ocorrências como “O ser

humano é bípede” e “O ser humano é ingrato”, evitamos especular sobre qual dos

dois adjetivos designam uma qualidade mais inerente (haveria graus de

inerência?). Claro nos parece que “bípede” é mais inerente (já que a qualidade

está pressuposta na própria definição do sujeito “ser humano”) do que “ingrato”.

Ademais, a primeira é mais objetivável do que a segunda, a qual resulta de uma

avaliação subjetiva do enunciador sobre a natureza humana. Para nós, “bípede” e

“ingrato” são qualidades definitivas do sujeito “ser humano”.69

As qualidades

(tomadas como) definitivas serão introduzidas por “ser”; as (tomadas como) “não-

definitivas”, por “estar”.

É forçoso reconhecer – e estamos atentos a isto neste trabalho – que,

malgrado o fato de ser válido descrever e explicar os usos de “ser” e “estar” com

base na oposição entre ‘qualidade tomada como inerente’ e ‘qualidade tomada

como não-inerente’, a ocorrência de certos advérbios podem suspendê-la. Por

exemplo, um advérbio como “hoje”, referindo-se ao dia mesmo em que uma

68

A história da filosofia nos legou um caso bastante emblemático dessa problemática, encarnada

na figura de Nietzsche, mestre da suspeita e demolidor dos “ídolos” da racionalidade que remonta

aos antigos gregos, desde o aparecimento de Sócrates. Particularmente interessante foi o fato de

ele ter notado bem que as línguas seccionam a realidade de modo arbitrário, que elas não permitem

acesso a uma verdade absoluta ou transcendente e que as qualidades que dizemos reconhecer nas

coisas e nos seres não estão neles, mas são atribuídas a eles pelos homens. 69

O adjetivo “bípedes” só admite o uso de “ser”; ao contrário, “ingrato” parece admitir “estar”

quando o sujeito não é genérico (p. ex. Meu primo está muito ingrato).

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enunciação acontece – portanto, com valor dêitico -, parece ser incompatível com

o uso de “ser”, numa frase como (12a):

(12a) (?) A praia é boa hoje.

No entanto, se for usado no sentido de ‘atualmente’ ou ‘hoje em dia’, “hoje”

admite a co-ocorrência com “ser” ou “estar”:

(12b) Hoje a praia é boa (em outros tempos, não era).

(25) Hoje, a faculdade está/ é melhor.

Note-se ainda o uso de “sempre”, nos enunciados abaixo:

(26) O café neste bar é sempre quente.

(27) O café neste bar está sempre quente.

O advérbio suspende a oposição entre “ser” e “estar”, relativamente à

atualização dos conteúdos de inerência e não-inerência. Por outro lado, o mesmo

advérbio pode afetar a semântica de “estar”, de tal sorte que o adjetivo que se lhe

segue torna-se uma qualidade constante da entidade representada pelo sujeito.

(28) Eu estou cansado hoje.

- Não, você está sempre cansado.

A esta altura, convém insistir que dizer serem os verbos por nós

considerados destituídos de significado lexical não redunda serem

semanticamente esvaziados. Devemos ter em conta que tais verbos, se, por um

lado, não instauram um estado-de-coisas, tal como sucede com verbos como

“comer” e “beber”, cujo significado prevê uma estrutura relacional; por outro

lado, constroem, na combinação com o predicador, o significado da oração. O

verbo “estar”, por exemplo, veicula conteúdos pressupostos. Ademais, esses

verbos entram a fazer parte de esquemas semântico-sintáticos exclusivos: o verbo

“ser”, por exemplo, é usado em enunciados cujo predicado encerra uma definição

do sujeito, de tal sorte que os dois SNs são co-referenciais (cf. O osso é o tecido

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conjuntivo constituído por células; Paulo é o nosso professor de português). O

verbo “estar” não figura em tal esquema. Quando empregado com adjetivos que

podem ocorrer também com “ser”, indica que a qualidade designada por esses

adjetivos é vista como circunstancial ou não-categorial (cf. O céu está azul; Este

menino está esperto). Também o verbo “estar” implica pressupostos que não são

depreendidos do uso de “ser”, como em “o carro está lento” em contraste com “o

carro é lento”. No primeiro caso, pressupõe-se ‘mudança de estado’; no segundo,

essa pressuposição está excluída. Por outro lado, com “ser”, a propriedade ‘lento’

define a natureza do carro ou, se preferirmos, é atribuída a ‘carro’ como uma

propriedade inerente. Do ponto de vista discursivo, o enunciador que produz “o

carro é lento” insere o “carro” a que se refere na classe dos carros que considera

“lentos”, em virtude do uso do verbo “ser”. Cuidamos importante frisar que, ao

falar em categorização mediante o uso de “ser” com adjetivos, buscamos situá-la

no nível discursivo, por entendermos que as categorizações não são estáveis, são

dependentes da intenção dos usuários da língua, que as fazem no discurso, com

vistas a atender seus propósitos comunicativos. É preciso, portanto, reconhecer

que escolher entre “estar lento” e “ser lento” é orientar o discurso no sentido de

conclusões diferentes, relativamente à qualidade do carro, tendo elas efeitos que

podem desagradar ao dono e motorista. Por exemplo, se dizemos que “o carro é

lento” podemos querer sugerir que o dono compre outro carro (mais do que

simplesmente o conserte), ou podemos sugerir que valorizamos o poder

aquisitivo, ou mesmo as pessoas que têm poder aquisitivo para comprar um carro

melhor. Decerto, quem diz a alguém que seu carro é lento pode desagradar,

justamente porque sugere que essa pessoa não pôde comprar um carro melhor e

que o enunciador valoriza mais quem tem poder aquisitivo, etc. Numa palavra, o

que queremos enfatizar é que, numa abordagem que considera a língua em uso, o

tratamento dos usos de “ser” e “estar” deve ir além da oposição entre ‘qualidade

(tomada como) definitiva’ e ‘qualidade (tomada como) não-definitiva’, em que se

fundam, para compreender os efeitos argumentativos de suas escolhas no âmbito

do discurso.

Quando o predicador o permite, as escolhas entre “ser” e “estar” nem

sempre são “conscientes” (e isso dá margem a toda sorte de tensões, conflitos,

divergências). Ao usar a língua, não escapamos aos conflitos; usá-la é, de certo

modo, instituir uma arena, em que vozes conflitam entre si e significados são

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constantemente produzidos e negociados, tendo em vista um contrato

comunicativo, tacitamente, estabelecido.

Vale dizer também que, numa abordagem funcionalista, além dos efeitos

argumentativos, envolvidos na escolha entre “ser” e “estar”, a atribuição de

qualidades por intermédio do uso desses verbos deve ser pensada como decorrente

da perspectiva pela qual o enunciador organiza sua experiência de mundo. Ao

escolher entre “ser” e “estar”, no caso ilustrado, o enunciador escolhe entre duas

formas de codificar sua experiência de mundo: numa, ‘lento’ é uma propriedade

que se relaciona a “carro” de modo circunstancial (ele, enunciador, a percebe

como indicativa de um estado do carro num dado momento); noutra, essa mesma

propriedade é considerada definitiva do ‘carro’, uma propriedade que o define ou

o tipifica. Na visão do enunciador, trata-se de um carro do tipo ‘lento’.

Essas considerações nos levam a pensar os usos de “ser” e “estar” de um

ponto de vista textual-discursivo: da mesma forma que os adjetivos selecionados

revelam atitudes de valoração / avaliação ou pontos de vistas dos enunciadores, a

escolha entre “ser” e “estar” junto a determinados adjetivos (que admitem a co-

ocorrência com uma ou outra forma verbal) expressa o modo como o enunciador

atribui a qualidade às entidades predicadas. Do ponto de vista argumentativo, um

enunciado como “o carro é lento” serve melhor à desqualificação do veículo, caso

fosse a intenção do enunciador advertir o motorista de que o veículo não satisfaz

as necessidades de ambos numa dada ocasião, por exemplo.

Finalmente, visto como um operador de identificação, o verbo “ser”, em

contraste com “estar”, é a forma responsável por estabelecer uma relação de

identidade ou co-referência entre dois sintagmas nominais precedidos de um

artigo definido ou pronome demonstrativo (cf. O homem de que lhe falei é o meu

pai). O verbo “ser” é a única forma usada nas orações formadas por dois SNs

precedidos de determinantes cuja referência é definida. Entendido como um

operador de identificação, o verbo “ser” estabelece uma relação de identidade

referencial entre dois SNs, de modo que o falante é capaz de inferir que a entidade

designada pelo segundo SN é a mesma descrita no primeiro SN (sujeito).

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4.3. Transpositor e predicador

Destituídos de significado lexical e não exibindo comportamento valencial70

,

os verbos “ser” e “estar”, nas ocorrências consideradas por nós, cumprem, no

nível sintático, a função de transpositores, a saber, transpõem a função de

predicador ao constituinte que se lhes segue imediatamente na estrutura sintática.

Cremos ser necessário, porém, definir o fenômeno de transposição, bem como

indicar os recursos linguísticos que a realizam.

Em Iniciação à Sintaxe do Português (2000), Azeredo dá-nos a saber a

seguinte definição de transposição: “a transposição é (...) um processo sintagmático de

formação de sintagmas ou constituintes de distribuição distinta das entidades a partir das

quais se formam” (Azeredo, 2000, p. 44). Acrescenta ainda:

A transposição é um meio de revelar relações associativas sistemáticas que o

locutor/ receptor é capaz de estabelecer entre as unidades da língua, como entre a

pergunta direta “Quem são vocês?” e a indireta “Quero saber quem são vocês?, ou

entre as formas do gerúndio, do particípio e do infinitivo entendidas como

realizações aspectuais de um mesmo lexema (p. 45).

O autor nos chamará a atenção para a inconveniência de pensar a

transposição como um processo de derivação (“dar origem a”), já que, do ponto

de vista descritivo, o estabelecimento de tal relação derivacional é impossível.

Assim é que a transposição “constitui um meio de relacionar estruturas

sincrônicas entre si e atuantes na língua” (ib.id.).

Em Fundamentos de gramática do português (2002, p. 211), o linguista

esclarece-nos ainda a respeito da transposição:

A transposição é um processo gramatical, e os transpositores são unidades

pertencentes a uma lista finita, por meio das quais se obtém, todavia, um número

infinito de construções a serviço da expressão dos conteúdos que o ser humano é

capaz de comunicar e de compreender.

Mais adiante, tendo observado a produtividade dos processos de formação

de palavra, da qual é ilustrativo o sufixo “-dor”, para a formação de substantivos a

partir de bases verbais, acrescenta, comparativamente:

70

Queremos com isso dizer que eles não estão habilitados a determinar um número de lugares

vazios a serem preenchidos por argumentos. Portanto, não são eles predicadores.

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A transposição tem essa mesma capacidade. O número de orações da língua a que

podemos juntar quando ou embora para criar sintagmas adverbiais é infinito, assim

como é infinito o número de orações aptas a receber um que (...). A transposição

constitui, portanto, um mecanismo que permite expandir infinitamente os

enunciados, mediante a utilização de um número limitado de meios – os

transpositores – e de um número de relações semânticas fundamentais (ib.id.,

ênfase no original) (ib.id.).

A lista dos meios sintáticos pelos quais a transposição se expressa é a

seguinte: conjunções integrantes “que” e “se”; pronomes/advérbios interrogativos;

pronomes indefinidos; determinantes; afixo “-r” de infinitivo. Tanto as conjunções

referidas quanto os pronomes introduzem orações subordinadas: a transposição

consiste, nesses casos, no processo pelo qual a oração, transposta ao nível de um

SN, passa a cumprir a função sintática própria de um substantivo. Analogamente,

com as orações introduzidas pelo pronome relativo “que” (e suas variantes), a

transposição se dá, na medida em que a oração, transposta para o nível do

sintagma, passa a cumprir a função de um adjetivo. Um determinante pode, pelo

processo de transposição, habilitar qualquer item lexical a cumprir a função

própria de um substantivo. Veja-se, por exemplo, o artigo que, uma vez anteposto

a uma unidade linguística de valor adverbial, como “não”, torna-a não só um

objeto de referência, como também passível de ter uma distribuição própria de um

substantivo (cf. O não é um advérbio.). A desinência “-r” de infinitivo permite que

essa forma do verbo possa funcionar como um substantivo ou adjetivo, caso em

que preenche a posição de sujeito, complemento ou predicativo (cf. Viver é lutar/

Ela quer sair). É interessante notar que Azeredo oferece o exemplo “Comecem a

pular” (v. p. 61) como um caso de transposição por “-r”. Parece-nos que ele

considera “pular” um complemento de “começar”, contrariando a lição tradicional

que vê aí uma locução verbal cujo verbo principal é o infinitivo. Nesse caso, faz

sentido dizer que “pular” sofreu transposição, para que pudesse preencher a

posição típica de um substantivo, haja vista à impossibilidade de dizermos

“*Comecem a pulem” (mas podermos dizer “Comecem o jogo.). Para que um

verbo possa preencher o ambiente que, de outro modo, poderia ser ocupado por

um constituinte como “o jogo” (Comecem o jogo), é necessário anexar-lhe “-r”,

transpondo-o à função própria de um substantivo; ou, dito doutro modo, tornando-

o, por transposição, um SN (na função de complemento).

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Não podemos deixar de mencionar as preposições como transpositores, por

excelência, visto que elas servem para tornar possível que um substantivo exerça a

função sintática de um adjetivo (cf. A casa de praia / o livro de filosofia).

Azeredo considerará ainda como transpositores os verbos “ser”, “ter” e

“haver”, em casos em que se prendem a SN e SAdj e infinitivo, respectivamente.

Segundo o autor, “o único papel deles é servir de instrumento para que um

constituinte não verbal possa funcionar como núcleo do predicado, isto é, como

predicador” (p. 70). Os verbos “ter” e “haver”, enquanto transpositores, se

articulam a particípios, tornando-os núcleo do predicado. Eles se flexionam para

expressar as categorias de tempo, modo, número e pessoa (exceto nas formas de

pretérito perfeito, sendo agramaticais construções como “*houve / tive

comprado”). A justificativa dada pelo autor, para que “estar” não esteja entre os

verbos transpositores aqui referidos, é que esse verbo é um verbo intransitivo, de

tal modo que ele não o distingue sintaticamente de verbos como “ficar”, “andar” e

“continuar” seguidos de SP ou de gerúndio. Atentemos para o que se segue:

(...) cremos que mesmo estar é um verbo intransitivo, uma vez que não há motivos

sintáticos para considerá-lo diferente de ficar, andar, continuar nas construções em

que esses verbos são seguidos de SPep ou de gerúndio. Estar tem distribuição mais

restrita que ser. Não há ocorrência sintática de estar que lhe seja exclusiva,

propriedade que, justamente, caracteriza os verbos transpositores (Azeredo, 2002,

p. 71).

Como adotamos uma perspectiva teórica que toma a semântica como nível

base de análise, não encontramos razões para destituir o verbo “estar” da função

de transpositor. Note-se que o autor baseia-se em critérios sintáticos (“não há

motivos sintáticos”, “tem distribuição mais restrita que ser”) para incluí-lo entre

os verbos intransitivos. Para nós, o critério distribucional não é determinante para

a inclusão do verbo “estar” em outra classe. Ademais, em Lima (2001, p. 252),

encontramos outro tipo de complemento verbal, que o autor chama “complemento

circunstancial”, a saber, “um complemento de natureza adverbial – tão

indispensável à natureza do verbo quanto, em outros casos, os demais

complementos verbais”. Entre os exemplos referidos, topa-se a construção “estar à

janela”, na qual “à janela” é, para o autor, um complemento circunstancial de

“estar”. Azeredo nos diz que em Lima (1937) o verbo “estar” era considerado um

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verbo intransitivo, quando seguido de predicativo; não é essa, contudo, a lição do

gramático, na edição de 2001 de sua obra.

Claro está que, para considerar o verbo “estar” intransitivo, Azeredo não faz

apelo ao aspecto semântico, visto que, se assim procedesse, contradiria o que nos

ensina uma longa tradição gramatical a respeito dos verbos intransitivos, ou seja,

verbos que, tendo sentido completo, dispensam complemento. Supomos que

Azeredo não defenderia a ideia de que, numa oração como “estou em casa”, o

verbo “estar” tem sentido completo. Claro nos parece que o seu sentido depende

do constituinte que se lhe segue. Assim, o constituinte “em casa” é, considerada a

perspectiva de Lima (2001), acima referida, um complemento circunstancial. O

verbo “estar”, nesse caso, é um verbo transitivo circunstancial. Segue-se do

exposto que o verbo “estar” intransitivo, para Azeredo, transitivo circunstancial,

para Lima, não é o mesmo verbo “estar”, tradicionalmente chamado “de ligação”,

em casos como “O café está quente”.

De nossa parte, o verbo “estar” não é nem intransitivo (porque não é

semanticamente pleno), nem transitivo circunstancial (porque não o consideramos

capaz de exibir comportamento valencial). Estamos interessados na investigação

dos fatores semânticos e pragmáticos (entenda-se “contextuais”) que determinam

a escolha entre “ser” e “estar”. Nesse sentido, à semelhança de “ser”, o verbo

“estar” não é responsável pela predicação, delegando essa função ao constituinte

que se lhe segue à direita.

A noção de “predicar”, a seu turno, encerra as ideias de ‘atribuição de

propriedades’ e ‘estabelecimento de relações entre termos’. A predicação,

portanto, é o resultado da aplicação de determinadas propriedades a certo número

de termos (Neves, 2000).

O predicador é o elemento fundamental responsável pela predicação. O

predicador cumpre as seguintes funções:

a) determina a classe gramatical do argumento;

b) faz seleção de restrição quanto aos traços semânticos desse argumento;

c) é responsável por determinar a ocorrência de “ser” ou “estar”.

Comparem-se os casos a seguir:

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(29) O ministro disse a verdade.

(30) O ministro está doente.

Em (29), o verbo “dizer”, encerrando uma estrutura relacional do tipo “X

DIZER Y”, estabelece uma relação entre o sintagma nominal “o ministro”

(sujeito) e o sintagma nominal “a verdade” (objeto). Esse verbo não só prevê, em

sua semântica, os espaços correspondentes a X e Y (preenchidos pelas formas

“ministro” e “verdade”), como também faz restrição quanto ao traço semântico

que deve comportar o primeiro termo (argumento) X, ou seja, esse termo deve

incluir a propriedade semântica [+ hum], por força da ocorrência de “dizer”.

Em (30), a seu turno, embora possamos dizer, corretamente, que haja uma

relação entre “o ministro” e “doente” mediante a ocorrência de “estar” (que, por

isso, tradicionalmente, é entendido como “verbo de ligação”), não é lícito

entendê-lo como o responsável pela ocorrência do termo que se lhe segue,

tampouco do termo que se lhe antepõe. Destituído de significado lexical, tal verbo

se insere em estruturas sintático-semânticas bem variadas, donde se segue ser ele

desabilitado para determinar a natureza semântica do seu argumento (sujeito).

Vejam-se, nesse tocante, os exemplos abaixo:

(31) *A pasta está doente

(31a) A pasta está suja

(32) O relógio está com defeito.

(32a) * O ministro está com defeito.

Os exemplos acima patenteiam o fato de que as ocorrências de “a pasta”, “o

relógio” e “o ministro” são determinadas pelos elementos que se dispõem à direita

do verbo “estar”. O verbo “estar” admite o uso de substantivos [+ /- anim], desde

que satisfeitas as exigências semânticas dos elementos que lhe vêm pospostos.

4.4. O predicador como núcleo

Em Iniciação à Sintaxe do Português (2000, pp. 68-69, grifo nosso),

Azeredo esclarece-nos sobre a distinção entre predicadores e transpositores: “(...)

os predicadores são núcleos do predicado; os transpositores introduzem outros

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constituintes (SAdj, SPrep, SN, SAdv, Particípio), que assim podem funcionar como

predicadores (...)”.

Ao transpor à função de predicador os constituintes colocados à direita, os

verbos ser e estar também lhes conferem a posição de núcleo do predicado. Assim

é que os sintagmas nominal, adjetival e preposicional, destacados em (19), (20) e

(21), respectivamente, são predicadores:

(19) Ana Luiza é linguista.

(20) O mar está calmo.

(21) O vinho é da Itália.

O núcleo não só comporta significado lexical, como também, na função de

predicador, determina a estrutura sintático-semântica da oração.

Cumpre dizer que o predicador pode ou selecionar um dos verbos, por

exclusão do outro; ou pode admitir o uso de um ou outro, caso em que só o

contexto sociocognitivo poderá explicar a escolha de um deles.

4.5. O artigo no sintagma nominal na função de predicador

Antes de nos ocuparmos com a análise das amostras de nosso corpus que

incluem construções em que se acha “ser” ou “estar” articulado a um sintagma

nominal na função de predicador, mister se faz lançar olhares sobre a forma do

sintagma nominal que desempenha essa função, com vistas a melhor compreender

a distinção proposta por Halliday (1994) entre os modos ‘atributivo’ e

‘identificador’71

dos processos relacionais de “ser”. Cremos que a compreensão

dessa distinção não pode escusar o reconhecimento de uma especificidade do

português, no tocante à forma do sintagma nominal, qual seja, a possibilidade de,

nessa língua, ocorrer um substantivo sem o acompanhamento de um artigo

indefinido (cf. Ele é professor/ He is a teacher).

Em linhas gerais, o artigo indefinido difere do artigo definido por sua

natureza não-fórica (Neves, 2000, p. 513). Ele introduz um sintagma nominal que

não faz referência a uma pessoa ou coisa, mas faz referência à classe particular a

que essa pessoa ou coisa pertence. Com bastante frequência, o artigo indefinido

71

Tradução que nos parece mais adequada para a forma “identifying”, proposta pelo autor.

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tem um uso não-referencial, visto que seu escopo abriga qualquer membro de uma

classe. Isso, evidentemente, não significa que ele não tenha um uso referencial. Os

exemplos que se seguem, criados por nós, ilustram os dois usos do artigo

indefinido:

(37) Não consigo acreditar em uma pessoa que não goste de cachorro.

(38) Não consigo acreditar em uma pessoa que não gosta de cachorro.

Em (37), a ocorrência dos verbos “acreditar” e “gostar” no modo subjuntivo

sugere que, embora seja um fato possível a existência de pessoas que não gostam

de cachorro, não se trata de uma pessoa específica. O uso do artigo “uma” não

singulariza. Em (38), por outro lado, a própria existência da pessoa que não gosta

de cachorro é pressuposta como fato, e o artigo “uma” singulariza.

Cotejado ao uso do artigo definido, que figura em sintagmas nominais cujo

domínio referencial inclui um referente conhecido dos interlocutores, o artigo

indefinido se acha em sintagmas indeterminados, que podem ser de dois tipos:

“indeterminado específico” e “indeterminado não-específico” (Neves, 2000, p.

516). No sintagma nominal indeterminado específico, o falante consegue

identificar um referente, mas seu interlocutor não. No sintagma nominal

indeterminado não-específico, nem um nem outro consegue identificar o referente.

Seguem-se os exemplos abaixo72

:

(39) Hoje, encontrei um amigo de infância.

(40) Preciso urgentemente comprar um vestido.

Em (39), “um amigo de infância” encerra uma informação conhecida do

falante, mas não do ouvinte. Em (40), nem o falante nem o ouvinte identificam o

referente de “um vestido”.

Consoante ensina Neves (p. 519), na função de predicativo (lê-se

“predicador”), o artigo indefinido pode encetar um sintagma nominal que

expressará um atributo do sujeito, caso em que seu uso é não-referencial. É o

substantivo núcleo, precedido do artigo indefinido, que expressará o atributo. A

72

Exemplos citados aqui foram cunhados por nós.

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função do substantivo assemelha-se à de um adjetivo, caso em que é um elemento

classificador ou qualificador. Cite-se o seguinte exemplo:

(41) Ele é um médico.

Neste exemplo, importa ver que “um cavalheiro” indica a classe a que a

pessoa referida pelo sujeito “ele” pertence. Como procuraremos demonstrar, a

função classificadora é desempenhada pelo verbo “ser”, em contraste com “estar”.

Note-se, de passagem, que o constituinte “um médico” encerra um atributo que

constitui um traço da identidade da pessoa referida por “ele”. Também veremos

que tanto sintagmas nominais quanto sintagmas adjetivais que designam atributos

referentes à identidade selecionam, preferencialmente, “ser” (quase nunca

“estar”)73

.

Ao exemplo (41), pode corresponder um exemplo como o de (42), caso em

que o substantivo não aparece precedido de artigo. Segundo Neves (ib.id.), nesse

caso, o substantivo expressa uma característica do sujeito.

(42) Ele é #médico.

No seu uso referencial, o artigo indefinido se aplica a um indivíduo que

pertence a uma classe particular. O exemplo (43), a seguir, ilustra essa ocorrência:

(43) Neymar é um jogador brasileiro de futebol.

Observa Neves que, nesses casos, “estabelece-se uma predicação equitativa”

(p. 520), de tal forma que se poderia substituir o verbo “ser” por um sinal de

igualdade (=).

Sem pretender esgotar o assunto, convém dizer algumas palavras sobre o

emprego do artigo definido. Ele figura em sintagmas nominais que encerram uma

informação conhecida dos interlocutores. Para a sua ocorrência, são determinantes

a intenção do falante e o modo como ele pretende codificar sua experiência de

mundo. Evidentemente, não se pode deixar de considerar aí a importância das

73

Isso parece ser verdade para a maioria esmagadora das ocorrências de atributos desse tipo.

Casos como “ele está professor” não chegam a constituir um uso corrente no português brasileiro.

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circunstâncias linguísticas ou não envolvidas na enunciação; delas depende

também o uso desse tipo de artigo.

O artigo definido pode fazer uma “referência direta”, caso em que o falante

se refere a alguma coisa ou pessoa presente na situação de comunicação; e pode

fazer uma “referência indireta”, caso em que a ocorrência do artigo é

extremamente dependente do conhecimento de mundo partilhado entre os

interlocutores. Nesse último caso, eles sabem a que entidade se faz referência,

mesmo não estando ela presente na situação comunicativa.

É consabido que, quando usado em referência endofórica ou textual, o artigo

definido introduz sintagmas nominais que apontam para elementos presentes na

superfície textual. Quando a expressão referencial remete a um elemento que a

precede, diz-se da referência que é anafórica; quando o elemento a que a

expressão referencial remete situa-se adiante, diz-se que a referência é catafórica.

De maneira geral, o artigo definido, usado no singular, particulariza um

indivíduo dentre os demais indivíduos de uma classe. O uso referencial genérico

desse tipo de artigo é, contudo, possível. Nesse caso, não se aponta um indivíduo

em particular, mas toda uma classe. Veja-se o exemplo seguinte:

(44) A escola deve ser um espaço destinado ao exercício da autonomia

intelectual.

Com base no que foi exposto, consideraremos a lição de Halliday sobre os

dois modos de processos relacionais, quais sejam o “atributivo” e o

“identificador”.

4.6. Processos intensivos

Os processos intensivos são um dos três tipos de processos relacionais

apontados por Halliday (1994). Um processo relacional inclui uma relação entre

uma coisa ou pessoa e um atributo. Orações relacionais servem para classificar ou

identificar. São tipicamente realizadas pelos verbos “ser” e “estar” (ou

equivalentes que figuram na classe dos tradicionalmente chamados ‘de ligação’).

Nos processos intensivos, ocorre mais comumente o verbo “ser”, o qual relaciona

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dois sintagmas nominais ou um sintagma nominal (sujeito) e um adjetivo.

Importa sublinhar que a relação se diz intensiva, porquanto nela o segundo

participante expressa algum atributo ou característica que serve à qualificação ou

identificação do primeiro participante, o qual funciona como uma espécie de

portador da qualidade ou da identidade. Halliday (p. 119) refere como exemplos

de orações em que se verificam processos relacionais intensivos, respectivamente,

“Tom é o líder” e “Sara é inteligente”. Para os nossos propósitos, vamo-nos cingir

aos processos intensivos em que se nota a relação entre dois sintagmas nominais.

É digno de nota, entretanto, o que nos diz o autor do significado de “Sara é

inteligente”. Segundo ele, essa oração significa que Sara é “um membro da classe

dos inteligentes” (p. 120). Sua interpretação corrobora nossa proposição segundo

a qual o verbo “ser”, sendo um operador de categorização, serve à inserção da

entidade designada pelo sujeito numa classe ou conjunto cujos membros são

caracterizados com base no atributo designado pelo adjetivo. Assim, dizer “Sara é

inteligente” significa dizer que ela pertence à classe das pessoas que o falante

considera inteligentes.

Neste trabalho, serão contemplados os processos intensivos em que figura

“ser”, articulando dois sintagmas nominais. Esses processos assumem dois modos

de realização: o atributivo e o identificador. É a apresentação desses dois modos

que vai nos ocupar doravante.

4.6.1 Processos intensivos: atributivo e identificador

Já, de início, Halliday, ao se ocupar com a apresentação dos modos

atributivo e identificador dos processos intensivos, dá-nos a saber uma importante

diferença entre eles: no modo identificador, há reversibilidade entre os termos da

relação; ao passo que, no modo atributivo, essa reversibilidade não é possível.

Abaixo, seguem-se os exemplos oferecidos pelo autor (pp. 119-20):

(45) Tom é o líder/ O líder é Tom.

(46) Sara é inteligente/ * Inteligente é Sara

Em (46), o asterisco marca o fato de essa construção não ser, segundo o

autor, “sistematicamente relacionada a Sara é inteligente” (ib.id.). Essa não é a

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única diferença existente entre os dois modos de processos intensivos referidos,

conforme veremos.

Considerando-se, em primeiro lugar, o modo atributivo, deve-se notar que,

nele, há uma entidade a que se relaciona uma qualidade ou classe (p. 120).

Halliday chama a essa qualidade ou classe de “Atributo” e à entidade que o

comporta de “Portador”. Assim é que, em “Paulo é um professor”, “um professor”

designa a classe à qual “Paulo” pertence ou da qual ele é um membro74

.

Tendo em conta o fato de que o verbo “ser” é representativo das orações no

modo atributivo, convém destacar duas das quatro características desse modo

apontadas por Halliday, que nos interessarão: a) o grupo nominal que cumpre o

papel de Atributo é encetado por artigo indefinido; b) não é possível

reversibilidade entre os termos envolvidos na relação atributiva. Acrescente-se

que, em português, é possível que o sintagma nominal na posição de Atributo seja

desprovido de artigo.

No tangente ao modo identificador das orações intensivas, há uma relação

entre duas entidades, de tal modo que uma serve à identificação da outra. Segundo

Halliday (1994, p. 122), nesse caso, “uma entidade está sendo usada para

identificar outra”. Essa relação assume a fórmula: “x é identificado por y”. O

autor chama ao elemento “x” Identificado; e ao elemento “y”, Identificador. Aqui,

não há uma relação entre um membro e uma classe. A relação entre membro e

classe não serve para identificação. Dentre as quatro características do modo

identificador apontadas por Halliday (p. 123), destacaremos também duas, que

atendem aos nossos propósitos: a) o grupo nominal que cumpre a função

semântica de Identificador é tipicamente definido, ou seja, encetado por um artigo

definido; b) as orações desse modo admitem a reversibilidade de seus termos.

Sumariando o que foi exposto nesta subseção em nossos termos, deve-se ter

em conta que, no modo atributivo, o que Halliday chama de Portador, é o

argumento (sujeito) X1; e o que ele chama Atributo é desempenhado pelo

sintagma nominal que cumpre a função de predicador, o qual é responsável não só

por determinar a ocorrência dos verbos que constituem objeto deste estudo, como

também por determinar a natureza do argumento X1 (sujeito). Mantemos,

portanto, que, dada a ocorrência de um SN à direita que, assumindo o papel de um

74

Nesse caso, o atributo é expresso por um sintagma nominal cujo núcleo é o substantivo

“professor”. O atributo também pode ser expresso, evidentemente, por sintagma adjetival.

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participante representado como um indivíduo/entidade ou classe de

indivíduos/entidades, eventos, atos ou coisas numa relação com outro SN à

esquerda, participante suscetível de receber a mesma propriedade atribuível a

indivíduos ou classes, eventos, atos e coisas, o uso do verbo “ser” é atestado

sistematicamente. A descrição desse complexo estrutural de que toma parte o

verbo “ser” pode-se representar, esquematicamente, como se segue:

X1 ____ o meu grande opositor nesse projeto.

SN1 sujeito é SN2 predicador

Indivíduo = Paulo propriedade

Além de descrever o ambiente sintático-semântico em que ocorre o verbo

“ser” (e também o “estar”), se nos impõe a tarefa de determinar as funções

cumuladas pelo “ser” nesse ambiente, com base na hipótese funcionalista da

multifuncionalidade das expressões linguísticas. Tendo-nos debruçado sobre as

amostras de nosso corpus que nos dão testemunho do uso de “ser” com SN

predicador, foi possível determinar três funções cumuladas por esse verbo, quais

sejam, a de transpositor (num nível estritamente sintático), a de operador de

categorização e a de operador de identificação (funções estas desempenhadas no

nível semântico-discursivo). Estas últimas se situam no nível discursivo, porque a

elas subjaz a ideia de que nossas experiências são construídas no/pelo discurso por

meio da produção interacional de significados que são, em última análise, sociais.

Elas estão envolvidas nos processos de construção da realidade, para o qual

concorrem o aparelho cognitivo-perceptual, a linguagem e a rede de estereótipos

fornecidos pela cultura, enquanto sistema de produção de significados.

O verbo “ser” será um operador de identificação sempre que servir de

recurso para o estabelecimento de uma relação de identidade entre os sintagmas

nominais envolvidos, na qual um deles assume o papel de Identificador. No

entanto, o que propomos é que o Identificador não pode “identificar” por si

mesmo; para fazê-lo, ele necessita de um recurso que torne possível a realização

da identificação da entidade representada pelo SN que assume o papel de

Identificado.

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Conforme já mencionamos alhures75

, o verbo “ser” funciona como um

operador de categorização na medida em que permite a inserção da entidade

designada pelo sujeito numa categoria definida com base numa qualidade

predicada dele. Essa função se nos afigura prototípica do verbo “ser” e, não se

limitando às ocorrências de predicadores adjetivos, se nos demonstra extensiva

aos casos em que esse verbo se articula a um SN indefinido que representa a

classe numa relação ‘x é membro de y’.

É nos processos relacionais de “ser” que se pode apreender aquelas duas

últimas funções, visto que, neles, nossas experiências de mundo são identificadas

ou classificadas com base em atributos associados a elas. Vale insistir em que não

somente coisas assumem a posição de participantes nesses processos, mas

também, atos e eventos.

Cabe acrescentar que toda expressão nominal é uma forma de categorização,

isto é, uma forma de inserção do referente em uma determinada categoria

cognitivamente construída (Neves, 2006, p. 100). A categorização da expressão

nominal é, portanto, de ordem cognitiva. Muito embora não constitua a

referenciação o objeto teórico deste estudo, é mister observar que, ao

mencionarmos o termo ‘referente’, o entenderemos não como uma entidade do

mundo, mas como uma entidade do discurso – portanto, como objeto-de-discurso

(Mondada & Dubois, 1994[2003]). Objetos-de-discurso são produzidos pelo

discurso, nele desenvolvidos, transformados, delimitados, etc., para o que

concorrem operações cognitivas. Assim, a identificação de referentes não se reduz

à mera identificação de objetos da realidade; na verdade, na atividade de

referenciação, entendida como atividade discursiva, a questão proeminente não é

saber se os referentes têm ou não existência no mundo real; importa, ao contrário,

o modo como eles são construídos, negociados e delimitados no mundo

discursivo.

4.7. Duas classes semânticas de adjetivos: qualificadores e

classificadores

75

Ver item 4.2.

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De início, cuidamos ser importante notar que, ao se ocupar das funções

sintáticas dos adjetivos, Neves (2000, p. 180) reconhece que os adjetivos podem

funcionar como predicativos, caso em que “o adjetivo é núcleo no sintagma

verbal, e, é, portanto, núcleo do predicado” (grifo no original). À mesma página,

acrescenta a autora que, com verbo de ligação, apenas o adjetivo será o núcleo do

predicado e ele cumprirá a função de predicativo do sujeito. Neves não faz senão

nos lembrar a perspectiva da gramática tradicional, nessa matéria. Lembremos

que, neste trabalho, o que se chama, tradicionalmente, de predicativo do sujeito, é

por nós considerado um predicador, cujo papel, diferentemente do que parece

sugerir o termo tradicional, não se limita a tão-só “atribuir uma qualidade ao

sujeito”; o predicador é o elemento responsável pela predicação, portanto, a

função responsável pela estruturação sintático-semântica da oração. Ao contrário

da visão tradicional, os verbos “ser” e “estar” não são considerados aqui meros

elementos de ligação, mas unidades linguísticas que tomam parte da construção

do significado da oração. Eles desempenham a função de transpositores.

4.7.1. Adjetivos Qualificadores

Consoante ensina Neves (p. 184), “esses adjetivos indicam, para o

substantivo que acompanham, uma propriedade que não necessariamente compõe

o feixe das propriedades que o definem”. Observa ainda a autora que esses

adjetivos qualificam o substantivo de modo, que essa qualificação pode ser mais

ou menos subjetiva. Ademais, a atribuição da qualidade constitui uma forma de

predicação. Ainda segundo Neves, a classe dos qualificadores incluem76

:

a) adjetivos compostos de prefixos negativos:

É desagradável pensar nele.

Sou indiferente, a minha opinião não conta.

b) adjetivos compostos de sufixos de nomes deverbais, tais como –do/-to e

–nte:

76

Os exemplos selecionados para citação são os referidos pela própria autora.

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Coitadas, como estão acabadas. É triste envelhecer.

O paletó aberto mostrava-lhe o peito de negrura reluzente.

c) adjetivos formados por sufixos que indicam a ideia de abundância de

qualidade, tais como –oso e –udo.

Lisa criou uma receita nova e deliciosa.

Barriguda, arraia-miúda só ajuda.

Os adjetivos qualificadores se caracterizam por serem graduáveis e

intensificáveis. Nos exemplos a seguir, oferecidos por Neves, os adjetivos

aparecem modificados por quantificador ou intensificador:

Outras seriam mais bonitas, mais modernas, mais pimponas, mais

arrebatadas na cama, nenhuma contudo mais solicitada, pro nenhuma se lhe

comparar no trato.

Mostrou-se ele extraordinariamente vivo e alegre.

A autora observa ainda que “os adjetivos formados com prefixos

intensificadores são adjetivos qualificadores” (p. 187. grifo no original). Seguem-

se dois exemplos dentre os que refere a linguista:

As aulas pareciam super-simplificadas.

As crianças são hiper-reativas aos entorpecentes e hormônios.

Outrossim, se deve incluir na classe dos qualificadores os adjetivos

formados de sufixos superlativos ou diminutivos (com valor de intensificação):

O leite C é fraquíssimo, uma água.

Me lembro dela limpinha, jogando vôlei, de branco.

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Embora possível com adjetivos classificadores77

, nota Neves que o sufixo

diminutivo não comporta o mesmo valor intensificador, “podendo, até, atenuar a

qualificação” (p. 188). O exemplo referido pela autora é o seguinte:

Assoma por entre as finas grades a cabecinha triangularzinha.

São qualificadores também os adjetivos que servem à modalização. Nessa

subclasse, se acham os que exprimem modalidade epistêmica (certeza ou

asseveração, eventualidade), como se pode ver nos exemplos a seguir:

É evidente que não tendes nenhuma pretensão à santidade.

É possível que eu esteja sendo submetida a uma prova.

Também são qualificadores os adjetivos que expressam modalidade

deôntica (necessidade, obrigatoriedade):

É necessário que o plano seja organizado tendo em vista o efetivo

desenvolvimento nacional.

Outra subclasse de adjetivos qualificadores é formada por adjetivos de

avaliação (“adjetivos avaliativos”). Eles operam uma “avaliação psicológica”

(Neves, p. 189). Para Neves, eles “exprimem propriedades que definem o

substantivo na sua relação com o falante”. Nós os entendemos como “índices de

avaliação ou valoração” (Koch, 2003, p. 53). Por meio deles, o falante expressa

uma atitude subjetiva em face de fatos, estados ou qualidades atribuídas a um

referente. Assim é que quem diz “Seu trabalho é excelente” faz uma valoração

positiva do referido trabalho.

São avaliativos também muitos adjetivos deverbais terminados em “-nte”,

tais como “decepcionante”, “surpreendente” e “impressionante”. A classe dos

avaliativos abriga ainda:

77

Trataremos dessa classe na seção seguinte 4.7.2.

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d) adjetivos que expressam propriedades que descrevem o substantivo. As

qualidades são intensionais, isto é, definitórias. Neves (p. 190) distingue entre os

que definem em termos de qualidade e os que definem em termos de quantidade.

Entre os primeiros, estão os adjetivos eufóricos, ou seja, que apontam para o

positivo, para o que é considerado bom, e os disfóricos, que apontam para o

nagativo ou mau. Há também os considerados neutros. Vejam-se alguns exemplos

oferecidos pela autora:

A noiva reparou naquele rapaz bonito.

Estava tudo limpo.

A verdade é que nossa vida poderia ter sido muito diferente.

Entre os que definem em termos de quantidade, estão os neutros. Eles

podem ser usados com substantivos concretos, caso em que “indicam dimensão ou

medida” (ib.id.), ou com substantivos abstratos, caso em que indicam

intensificação.

Tinha o cabelo comprido encobrindo-lhe o rosto.

O negrão é grande, mas não é dois.

Ia dar início a profundas modificações em suas pessoa.78

De passagem, convém notar a função de categorização desempenhada pelo

verbo “ser” no segundo enunciado. Com o uso do verbo “ser”, o falante insere o

referente “negrão” na classe dos ‘homens grandes’.

A intensificação pode implicar uma avaliação pessoal, de sorte que

também adjetivos de avaliação psicológica estão habilitados para a intensificação.

Era um sucesso tremendo, e eu não via a cor do dinheiro há meses.

Adjetivos avaliativos, quando usados com substantivos abstratos, ainda

podem expressar atenuação.

É verdade que o Banco Central interveio, mas a relativa estabilidade se

deu mesmo devido ao fato de que não há prenúncios de uma crise maior.

78

A não concordância se verifica na amostra referida pela autora.

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Podem ainda indicar uma definição do modo, ou qualidade, do estado-de-

coisas.

A Alta Modiana paulista foi surpreendida com uma queda brusca de

produção.

Veja-se que o adjetivo “brusca” modifica o núcleo do estado-de-coisas

naminalizado “queda de produção”.

Também são avaliativos os adjetivos que servem para avaliar termos

linguísticos. Eles se dizem “epilinguísticos” porque predicam o substantivo que

acompanham. Eles expressam:

e) autenticação: caso em que o substantivo modificado é considerado

como legítimo em termos de uso.

O Brasil conhece a cada minuto (e não exagero) um autêntico massacre

silencioso, incapaz, porém, de gerar indignação.

O clássico exemplo do que se poderia chamar de Referencial Excêntrico

Peculiar, ou REP, é o de Garrincha quando lhe fizeram uma pergunta

sobre Roma.

f) relativização: nesse caso, a aplicabilidade do uso do substantivo é

relativizada. O adjetivo indica que o uso do substantivo é relativamente

apropriado para designar um determinado conteúdo.

Contentou-se Pantaleão com o que a sorte lhe reservou e manifestou em

voz baixa o relativo contentamento.

É interessante notar que, nesse exemplo, o enunciador, pelo uso do

adjetivo “relativo”, sinaliza que o substantivo escolhido – “contentamento” – não

é o mais semanticamente preciso para descrever o estado de espírito ou emoção

observada.

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4.7.2. Adjetivos classificadores

Em princípio, deve-se notar que os adjetivos classificadores selecionam

preferencialmente o verbo “ser”. Em outras palavras, o uso do verbo “ser” é

compatível com esse tipo de adjetivos. Segundo Neves (p. 186), “esses adjetivos

colocam o substantivo que acompanham em uma subclasse, trazendo em si uma

indicação objetiva sobre essa subclasse” (grifo no original). Acrescenta a autora

que eles constituem “uma verdadeira denominação para a subclasse e, portanto,

são denominativos, e não predicativos” (grifo no original).79

Os adjetivos classificadores podem equivaler-se, em geral, a sintagmas

preposicionais formados da preposição “de” e substantivo. Eles possuem a mesma

distribuição sintática das locuções e, frequentemente, podem coordenar-se com

elas. Neves nos dá a saber o seguinte exemplo: “Entende-se, assim, o

aparecimento dos sistemas digestivo, respiratório, de transporte, excretor” (p.

192, grifo no original).

Os adjetivos classificadores podem constituir-se de prefixos que indicam

valor numérico, tais como “unicelular”, “monocromático”, “ambivalente”, etc.

Também se incluem na classe dos classificadores os adjetivos derivados de nomes

próprios, tais como “machadiano”, “nietzscheano”, “shakesperiano”.

São adjetivos classificadores os que expressam noções adverbiais:

g) delimitação: nesse caso, o adjetivo restringe o domínio de referência do

substantivo que modifica. Há adjetivos que restringem em termos de domínio de

conhecimento, tais como “científico”, “literário”, “artístico”, etc. Há os que

restringem indicando um ponto de vista individual, tais como “pessoal”,

“particular”, “privado”, etc.

h) localização no espaço: adjetivos há que localizam objetos, ações,

estados e processos. A localização pode ser absoluta ou relativa.

79

Tendo em conta a própria definição de predicação dada por Neves (p. 25), como “resultado da

aplicação de um certo número de termos (que designam entidades) a um predicado (que designa

propriedades ou relações), não parece haver razão para destituir tais adjetivos do papel de

predicadores. A natureza predicativa se verifica quando combinados com os verbos que constituem

objeto deste estudo.

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Leu a política nacional.

O abrigo subterrâneo era inescrutável.

Tratava-se, pelo jeito, de uma nave central, e duas naves laterais como

convém a qualquer igreja que se preze.

Tio Heitor nadava prudentemente, paralelo à praia.

Os dois primeiros exemplos ilustram ocorrências de adjetivos que servem

à expressão da localização absoluta; os dois últimos ilustram ocorrências de

adjetivos que exprimem localização relativa.

Com valor localizador, há adjetivos que indicam ordem ou posição numa

série. Estão nesse grupo adjetivos como “último”, “final” e “derradeiro”. Deve-se

notar que a posição não tem referência numérica.

i) localização no tempo (em relação ao momento da enunciação):

Pelas histórias que ouvi de minha tia no mês passado ainda existe muito a

explorar na mansão.

No próximo sábado a gente vai fazer um piquenique na chácara.

Estive com meu pai e, até o presente momento, não tenho de que me

arrepender.

Como se pode depreender dos exemplos referidos, a localização no tempo

pode-se dar por anterioridade, posterioridade ao momento de enunciação e por

concomitância com ele. Ela pode-se dar também em relação ao momento de

referência instalado no texto e pode ser anterior, posterior a esse momento ou

concomitante com ele.

Giulio trouxe pão e um salame caseiro, do inverno anterior.

A redação é posterior a 1403.

Com Nietzsche à frente, começa-se a pôr em voga, na Europa, o

contemporâneo sentimento de niilismo diante dos valores morais.

Adjetivos há que expressam quantidade de tempo transcorrido,

relativamente a um passado.

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143

j) Referência à quantidade definida

De mãos dadas fazemos a volta completa no muro centenário.

Nesse subtipo, podemos ter também adjetivos como “secular”, “milenar”,

“sexagenário”, etc.

l) Referência à quantidade indefinida

Esse subtipo inclui adjetivos como “velho”, “idoso”, “jovem”, “novo” e

“antigo”. Vejam-se alguns exemplos:

Mauro me saudou com efusão, mostrando um velho código criminal que

tinha trazido para Abelardo.

O senhor idoso voltou a exaltar-se.

Uma jovem mulher, casada, mas sem filhos, adoeceu por causa do excesso

de humores fluindo para seu pescoço e ali causando grandes feridas.

Neves (p. 198) nota que os adjetivos atinentes à idade podem-se tornar

qualificadores, caso à noção de quantidade de tempo transcorrido se acrescente

uma avaliação sobre a idade. Veja-se um exemplo, referido pela autora:

Queria ter algum indício novo sobre Lutércio.

Neves (p. 199) faz referência ainda à possibilidade de haver transposição

de adjetivos classificadores para a classe dos qualificadores, quando aqueles são

usados em sentido metafórico. Dentre os exemplos oferecidos pela autora, cite-se

o seguinte:

A mancha que lhe adviera com o parto da filha dava lugar ao júbilo celeste

do chorinho da neta.

Importa notar que, via de regra, apenas os adjetivos qualificadores são

passíveis de gradação ou intensificação; no entanto, é possível que certos

adjetivos classificadores recebam gradação ou intensificação, o que indicaria seu

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144

caráter qualificador. Os exemplos oferecidos por Neves incluem adjetivos que

designam um traço identitário. Adjetivos referentes a qualidades identitárias

pertencem à classe dos adjetivos classificadores. A gradação serve à produção de

efeitos de sentido. Cite-se o exemplo abaixo:

Marisaura, de sapato baixo, grosseiro, num vestido claro, simples e não

muito feminino, olha concentradamente através da janela.

Finalmente, vale referir outro subtipo de adjetivos que atualizam aspecto.

Esses adjetivos atribuem uma noção aspectual à ação, processo ou estado

designado pelo substantivo a que se referem. Constituem exemplos desse subtipo

os adjetivos “momentâneo”, “habitual”, “costumeiro”, “mensal”, “anual”,

“diário”, “semanal”, etc. Citem-se dois exemplos, tomados a Neves: no primeiro

dos quais há uma implicação numérica; no segundo, não há essa implicação.

Quando comecei essa viagem mensal, mandei um bilhete pra minha noiva.

Foi despertado de seu momentâneo desequilíbrio pelo salto do menino.

4.8. Implicações para a análise

Cremos imperioso tornar patente a pertinência à nossa análise da

exposição sobre a classificação semântica dos adjetivos desenvolvida por Neves.

Em primeiro lugar, a categorização dos adjetivos em dois grandes grupos, quais

sejam, o dos qualificadores e o dos classificadores ajudou-nos na construção de

duas hipóteses correlatas: a primeira sugere que os adjetivos classificadores

favorecem o uso do verbo “ser”; a segundo sugere que os adjetivos qualificadores

selecionam tanto “ser” quanto “estar”. Dois exemplos tomados a Neves (p. 200), a

seguir, são suficientes para validar, a princípio, a primeira hipótese:

Todos os pugilistas aprendem da mesma maneira que a esquerda vem na

frente, quando o cara é destro, e a direita à frente, quando o cara é canhoto.

A representação é legal, social, protocolar e simbólica.80

80

Acerca deste exemplo, observa a autora “Na posição de predicativo, a característica

denominativa do adjetivo classificador facilmente se afrouxa”. (Neves, ib.id., grifos no original).

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No primeiro enunciado, os adjetivos “destro” e “canhoto”, classificadores,

selecionam “ser” e desautorizam o uso de “estar”. A restrição ao uso de “ser”, que

constitui a forma apropriada à inserção do referente do sujeito numa classe ou

categoria com base na qualidade dele predicada, parece dever-se ao fato de os

adjetivos designarem propriedades definidoras da entidade designada pelo sujeito.

Decerto, trata-se de qualidades das quais poderíamos dizer são “inerentes”, no

sentido de que, com base em nosso conhecimento de mundo, sabemos que os

seres humanos ou são destros, ou canhotos (ou ainda ambidestros). É preciso,

contudo, estar atento para o fato de que a ideia de inerência não pode ser inferida

por força do uso do verbo “ser”, consoante sugere certa visão tradicional da

questão. A inerência, nesse caso, é uma ideia depreendida da própria natureza

semântica dos adjetivos. Essa ideia, se estendida a casos como “O vestido é lindo”

e “o vestido está lindo” mais complica do que elucida a questão. Só por força de

preconceitos culturais e/ou subjetivos podemos sustentar que, no primeiro caso,

“lindo” designa, por força do uso de “ser”, uma qualidade inerente ao “vestido”.

Um olhar mais apurado e cuidadoso sobre a questão nos conduzirá à conclusão de

que “lindo” é um adjetivo do tipo avaliativo eufórico e de que, ao selecionar “ser”,

o falante seleciona um recurso que ativa sistemas de ‘escaninhos’, com os quais

classifica o mundo. O verbo “ser”, articulados a adjetivos, participa de enunciados

que constituem amostras de nossos sistemas classificatórios de mundo. Como os

modelos classificatórios são influenciados quer por fatores de ordem subjetiva,

quer por fatores de ordem sociocultural, eles são flutuantes, instáveis, adaptáveis.

Em segundo lugar, não descuramos do fato de que há adjetivos

classificadores que admitem o uso de “estar”, tais como os referentes à quantidade

definida, como “jovem” e “velho”. Disso se segue que será necessário considerar,

além da classificação geral dos adjetivos em classificadores e qualificadores, os

subtipos que cada uma dessas duas grandes classes compreende. À proposta de

Neves por nós adotada também devemos esse reconhecimento.

O nosso objetivo precípuo é, ao cabo deste capítulo, oferecer um quadro

sinótico da sistematização dos usos dos verbos “ser” e “estar” com os adjetivos

que figuram em nosso corpus – tarefa esta para cuja realização a proposta de

classificação dos adjetivos em Neves (2000) se nos demonstra apropriada.

Isso, contudo, não invalida nossa proposição segundo a qual tais adjetivos tendem a selecionar

“ser”. De passagem, note-se que o uso de “estar”, nesse caso, não é possível.

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146

4.9. Papéis semânticos e tipologia dos predicadores

Como estejamos interessados em fornecer uma tipologia dos predicadores

que congregue, em cada tipo, as condições semânticas que permitem prever o uso

dos verbos “ser” e “estar” com sintagmas preposicionais (SPs), adotaremos o

conceito de papel semântico, relativamente ao argumento X1 (sujeito), como uma

ferramenta descritiva, com base na qual determinaremos as propriedades

semânticas da estrutura oracional. Essas propriedades semânticas produzem as

condições quer para o uso de apenas um desses verbos, quer para o uso flutuante

deles, não sem algum efeito semântico-funcional distintivo.

Com efeito, tão logo concluímos pela pertinência da adoção desse conceito,

não nos escaparam os problemas, comumente verificados na literatura

especializada, das diferentes propostas de sistematização de papéis semânticos81

,

Esses problemas podem ser sumariados, segundo Cançado (2003), no que se

segue: 1) definições informais e vagas, que tornam difícil um tratamento teórico;

2) proliferação de papéis semânticos, com o fornecimento de listas extensas; 3)

critérios de distinção insatisfatórios. A autora assinala o desinteresse consequente

por conferir estatuto teórico aos papéis semânticos. Como pretenda contribuir para

que o interesse teórico pelos papéis semânticos seja reavivado, a autora assevera

sua posição, não sem respaldá-la numa observação de ordem empírica:

(...) assumo (...) a relevância de se atribuir um estatuto teórico aos papéis temáticos,

realçando que insistir em um modelo em que o conteúdo semântico dos papéis

temáticos é levado em consideração não é uma simples questão de gosto. Isso se

deve à existência de alguns dados das línguas que corroboram a necessidade para

uma teoria gramatical distinguir semanticamente esses papéis (Cançado, 2003, p.

98, ênfase nossa).

Segundo Cançado, há questões atinentes aos papéis semânticos que

restringem a forma estrutural da oração, do que resulta a importância de

considerá-los. Cumpre notar a definição de papel semântico82

apresentada pela

autora: “(...) o grupo de propriedades atribuídas a um determinado argumento a

partir dos acarretamentos estabelecidos por toda a proposição em que esse

81

CANÇADO, Márcia. Um estatuto teórico para os papéis temáticos. In: Müller, A. L.; Negrão, E.

V.; Foltran, M. J. (Orgs.). Semântica Formal. São Paulo: Contexto, 2003. 82

A autora adota a designação papel temático.

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argumento se encontra” (p. 95). Com base nessa definição, Cançado (p. 99)

propõe os seguintes critérios para determinar um papel semântico: a) as

propriedades semânticas do argumento; b) o conjunto de acarretamentos

estabelecidos por toda a proposição em que se acha esse argumento. No tocante às

propriedades semânticas do argumento, a autora aponta quatro que lhe parecem

fundamentais, quais sejam: 1) desempenhar o papel de desencadeador de um

processo; b) ser afetado por esse processo; 3) ser um objeto estativo; 4) ter

controle sobre um desencadeamento. Ficam, pois, estabelecidas as seguintes

propriedades, segundo Cançado: desencadeador, afetado, estativo e controle.

O desencadeador relaciona-se a ações; o afetado, a processos; e o estativo, a

estados. O controle, por seu turno, é uma propriedade compatível com essas três

propriedades, muito embora ele não ocorra isoladamente, mas esteja sempre

ligado à propriedade semântica [animação]. O afetado também é compatível com

o controle. A associação de ‘afetado’ com ‘controle’ produz o significado

‘capacidade de interromper o processo’. Assim, numa frase como “João recebeu

uma herança”, o argumento “João” desempenha o papel de afetado, porque seu

estado se modifica num dado intervalo de tempo (num tempo A, ele não tinha

uma herança; mas num tempo B, ele passou a ser portador dela); no entanto,

embora ‘afetado’, ele controla o estado-de-coisas, já que pode tomar a resolução

de interrompê-lo.

Para os nossos propósitos, cumpre-nos notar que, para Cançado, as quatro

propriedades, acima referidas, são propriedades semânticas relevantes para a

organização da estrutura sintática no português brasileiro. Ela acrescenta que essa

relevância foi corroborada por estudos empíricos que se destinavam à

investigação da correlação entre estrutura sintática e estrutura semântica em

muitas sentenças do português brasileiro (p. 106).

Definir os papéis semânticos, segundo os acarretamentos que se depreendem

da própria estrutura proposicional (prefiramos “do próprio estado-de-coisas

designado”), significa assumir que esses papéis resultam de operações de

inferenciação que o falante nativo é capaz de realizar com base no próprio estado-

de-coisas representado na oração. Assim, quando comparamos “João recebeu um

tapa” com “João leu um livro”, inferimos, com base na própria estrutura

semântico-sintática das orações, que, no primeiro caso, “João” é a entidade

afetada e destituída de controle (obviamente, ele não pode decidir não receber o

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tapa); no segundo caso, ele o desencadeador (nem “João” nem “o livro” são

afetados no processo de leitura). Se, ainda, dizemos “João tem uma casa”,

concluímos, sem muito custo, que João é o possuidor. Assim, se é verdade que

‘João tem uma casa’, é igualmente verdade que ‘João é o possuidor dessa casa’.

Cançado (p. 105) atribui a propriedade estativo ao argumento cujas

propriedades não se modificam durante um intervalo t. O estativo também é uma

propriedade compatível controle. Em alguns casos, pode-se interromper o estado

em que alguém se encontra, mesmo que não se verifique o controle sobre o

começo ou sobre o desenrolar dessa situação83

(cf. João não vai mais bajular

Maria).

Vale notar que a proposta de definição dos papéis semânticos com base na

noção de acarretamento encontra apoio em Ilari (2003). O autor define o

acarretamento como uma relação de implicação entre o valor de verdade de um

enunciado e o de outro. Em outras palavras, há acarretamento sempre que a

verdade de um enunciado implica a verdade de outro. Essa relação de implicação

se dá apenas com base no significado das palavras de que se compõem os

enunciados. O fenômeno de hiponímia desempenha aí um papel de grande monta.

Destarte, se é verdade que “João comprou o novo Voyage”, é verdade também que

“João comprou um novo carro”. Para Ilari, é possível estabelecer o papel

semântico de “João” dando outro torneio à oração (cf. O que João fez foi comprar

o carro (João é o causador)).

A essa altura, convém retomar a noção de [controle], a fim de precisá-la,

visto que ela será tomada como uma propriedade importante na proposta de

tipologia de predicadores que apresentaremos no capítulo oito. Esse traço

caracteriza a entidade que exerce influência sobre o estado-de-coisas ou que o

controla de modo a determiná-lo. Não é propriamente um traço sêmico dessa

entidade, um componente de seu significado, mas é uma propriedade do estado-

de-coisas que se associa a ela.

83

O termo situação será empregado para descrever tanto ‘a posição de um objeto, a maneira como

ele está colocado’ quanto ‘estado ou condição’.

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149

4.9.1. A noção de traços semânticos e os tipos de predicadores

Em Iniciação à Semântica (2003), Marques destina dois capítulos para tratar

dos componentes do significado (semas), dos tipos de predicações e dos papéis

argumentais. A autora chama semas aos componentes mínimos de significado dos

itens lexicais. Esses componentes mínimos podem ser específicos, genéricos ou

virtuais. Os específicos e genéricos definem o significado denotativo; os virtuais,

que podem ou não se atualizar num dado contexto, definem valores conotativos.

Acrescente-se que, no domínio dos semas genéricos, deve-se distinguir as

propriedades animado e não-animado, bem como suas subcategorias humano/ não

humano (que incluem o traço [animação) e concreto/ não-concreto. Marques (p.

71) admite a possibilidade de postular tantas subcategorias quantas necessárias.

Ao se debruçar sobre os tipos de predicadores, nota a autora que os

componentes semânticos deles são traços componenciais que selecionam por

restrição os papéis semânticos compatíveis com as propriedades combinatórias de

uma predicação (p. 121). Não menos importante é atentar para o que escreve a

autora, ao considerar a Gramática de Casos de Filmore. No excerto que se segue,

convém ter em conta o fato de que uma visão de oração como uma estrutura

semântico-relacional permite investigar os modos como a língua organiza a

experiência humana:

A essa concepção abstrata de estruturas de casos, associa-se claramente a

apresentação e organização semântica da experiência humana, através da língua,

em enunciados ou estruturas de predicação, que criam, descrevem, estruturam

acontecimentos, num dado universo de referência, indicando o papel que

desempenham determinados argumentos, como participantes ou circunstâncias,

nessas estruturas de predicação (p. 118).

Logo adiante, a autora acrescenta que a estrutura de casos “corresponderia a

julgamentos que os seres humanos são capazes de fazer sobre os acontecimentos

que os cercam” (ib.id.). Os casos são, segundo Marques, conceitos de caráter

universal, supostamente inatos.

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4.9.2. Predicações estativas84

A oposição entre as propriedades semânticas [- dinâmico] e [+ dinâmico]

constitui a base da distinção entre predicações estativas e não-estativas. As

predicações estativas, portanto, se caracterizam pela ausência de ‘dinamicidade’,

ou seja, se caracterizam por comportar a propriedade [- dinâmico].

Os predicadores estativos relacionam-se, segundo a autora, com nominais a

que se atribuem propriedades não-dinâmicas ou com nominais que se situam em

posição ou estado passivo na predicação. O papel semântico desses nominais é,

por isso, o de paciente ou entidade afetada pela predicação. Se esses nominais

afetados pela predicação comportarem o traço [+ animado], assumem o papel de

experienciador (Marques, 2003, p. 124).

Ainda, segundo Marques, os predicadores estativos são divididos em

existenciais e relacionais. Nas predicações existenciais, define-se, para a posição

de X1, o papel de paciente. São predicadores estativos existenciais os verbos “ser”

e “existir”. Nas predicações estativas relacionais, por seu turno, são estabelecidas

relações identificacionais, experienciais, transferenciais ou locativas. No que toca

às predicações estativas identificacionais85

, o X1 desempenha o papel de paciente,

que, nesse caso, não é afetado, mas identificado. Esse papel, no entanto, está

presente também nas predicações experienciais e transferenciais. Nas primeiras, o

paciente é a entidade que se relaciona com a entidade que tem uma experiência

passiva de percepção ou sensação de estados psicológicos, à qual Marques chama

experienciador (cf. Maria percebeu as rachaduras na parede); nas segundas, a

entidade paciente se relaciona com uma entidade que a possui ou para a qual se

destina como objeto possuído ou como domínio. Um dos exemplos aduzidos por

Marques é “Pedro tem um livro”. É interessante notar que a ‘transferência’, em

todos os exemplos referidos pela autora, não é uma noção decorrente da própria

natureza semântica dos predicadores86

. O papel semântico do sujeito é o de

84

Marques (2003, p. 122) distingue entre predicadores de estado ou estativos, dos quais são

exemplos (embora não só) os verbos “ser” e “estar”, predicadores de evento e predicadores de

processo. Não seguimos Marques ao considerar os verbos “ser” e “estar” como predicadores; por

isso, preferirmos considerar as predicações estativas. 85

Marques (ib.id.) dá-nos como exemplo desse tipo de predicação uma frase como “São Paulo é

uma palavra”, que, para nós, atualiza uma relação do tipo atributivo, por meio da qual o X1 é

incluído numa classe. 86

Os demais exemplos são: A casa tem dois andares; Maria/ A biblioteca possui muitos livros/

Eles são donos de uma loja (ib.id, p. 125).

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recipiente ou beneficiário, o qual representa a entidade para a qual é destinado o

paciente.

Nas predicações estativas relacionais locativas, o paciente é localizado em

relação a outra entidade, que cumpre o papel de locativo situacional. Dentre os

exemplos fornecidos pela autora, interessam-nos os seguintes: “O embarque é no

portão A”, “Maria está em casa” e “O poste é/está na esquina da rua” (p. 126).

Cabe ainda assinalar que os traços [+ controle] e [- controle]87

implicam as

propriedades ‘animação’ e ‘intencionalidade’ relativamente ao argumento. Além

dos traços ‘dinamicidade’ e ‘controle’, importa, para efeito de classificação das

predicações, o traço ‘duração’. Assim, as propriedades [+ durativo] e [- durativo]

servem para distinguir as predicações de evento, nas quais há mudança de estado

num intervalo de tempo dado, das predicações de processos, nas quais não há

mudança de estado. Nos processos, o acontecimento representado tem certa

duração num dado intervalo de tempo. Por conseguinte, os eventos se

caracterizam pela propriedade [- durativo]; e os processos, pela propriedade [+

durativo]. Os estados podem ou não comportar a propriedade [duração]. Em

“Maria permanece em casa”, há duração no estado representado.

Esquematicamente, ESTADO, EVENTO e PROCESSO podem ser caracterizados

como se segue:

ESTADO PROCESSO EVENTO

[- dinâmico] [+ dinâmico] [+ dinâmico]

[-/+ durativo] [+ durativo] [- durativo]

[-/+ controlado] [+/- controlado] [+/- controlado]

Em “Maria permanece em casa”, temos um exemplo de ESTADO; em “A

porta rangeu”, de EVENTO; e em “As batatas estão cozinhando”, de PROCESSO.

87

A autora adota os termos ‘+ controlado’ e ‘-controlado’ (p. 122).

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4.9.3. Relevância para a análise

Ao nos alinharmos com uma perspectiva que se preocupe em descrever a

estrutura semântica da oração, procurando estabelecer, para o X1, um papel

semântico e procurando determinar as propriedades semânticas do X1, do

substantivo que preenche a posição de SN encaixado no SP predicador e do

próprio SP como totalidade estrutural, pretendemos satisfazer dois objetivos: a)

determinar as condições semânticas que tornam possível o uso dos verbos “ser” e

“estar”; b) estabelecer uma tipologia semântica de predicadores preposicionais.

Tanto a determinação do papel semântico do X1 quanto à especificação dos traços

semânticos que ele e o predicador como um todo comportam constituem condição

necessária para a compreensão dos fatores internos à língua que estão na base da

seleção entre uma e outra forma, em orações constituídas de SP (predicador). Ao

propormos uma tipologia de predicadores, procuramos evitar que os sintagmas

preposicionais sejam tratados a partir de uma perspectiva reducionista, a qual nos

levaria a postular para uma mesma estrutura ‘de__SN’, por exemplo, diferentes

realizações, como em “Paulo é de Manaus”, “O relógio é de ouro” e “Ana está de

camisola”. Na medida em que os substantivos que integram o SN no interior do

SP (predicador) são semanticamente diferentes e na medida em que o próprio

significado das orações é diferente, segue-se daí que essas orações incluem tipos

diferentes de ‘de__SN’. Da caracterização desses tipos, entram a fazer parte o

papel semântico estabelecido pelo predicador para o X188

, os componentes

semânticos (semas) desse X1, bem como as propriedades semânticas do

predicador. Além disso, é necessário reconhecer que o predicador constrói, na

relação com o verbo selecionado, um significado-base, o qual não se identifica,

necessariamente, com o significado proposicional. O significado-base é sempre

virtual e se atualiza na própria estrutura relacional da oração. Esse significado

pode ser encapsulado numa única palavra. Assim, o conjunto “é de__SN’ prevê os

significados-base ‘procedência’ e ‘constituído de (algum material)’ (cf. O vinho é

de Portugal/ O anel é de ouro). A diferença entre esses significados marca a

diferença entre os tipos de predicadores também.

88

Os papéis semânticos serão apresentados e definidos no capítulo oito, durante nossa análise.

Eles estarão reunidos às demais propriedades semânticas da oração num quadro sinótico, disposto

no final do capítulo. Nesse quadro, também se acharão as definições desses papéis.

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Adotaremos, na análise das ocorrências de “ser” e “estar” com predicadores

preposicionais, que será levada a efeito no capítulo oito, os traços semânticos [+/-

animado], [+ humano] e [+/- controle], que serão associados ao X1. O componente

[controle] caracteriza o X1 tendo em conta sua influência ou não no estado-de-

coisas designado. Assim, o X1 será dotado da propriedade [+ controle], sempre

que controle o estado representado na oração. Por exemplo, em “Maria está na

academia”, o X1 “Maria” exerce influência sobre o estado posicional em que se

encontra, isto é, Maria controla a própria situação representada. Por outro lado,

em “Maria está com dor de cabeça”, o X1 não controla o estado representado.

4.10. A metáfora à luz da Linguística Cognitiva: breves considerações

Uma seção destinada ao enfoque sobre a metáfora, tal como vista à luz da

Linguística Cognitiva, na esteira de Lakoff (2003 [1980]), se justifica pelo fato de

nos permitir explicar muitos usos de “ser” e “estar” com sintagmas preposicionais

(SPs). Nosso corpus encerra vários exemplos em que o SP é concebido como um

domínio metaforizado. Ao compreendermos a natureza da metáfora com base no

aparato teórico da Linguística Cognitiva, conseguimos não só refinar a descrição,

como também estabelecer generalizações que, de outro modo, não encontrariam

lugar em nossa proposta teórica. Assim, por exemplo, dadas as frases “Rui está

em casa” e “Rui está em depressão”, é possível estender o princípio segundo o

qual o verbo “estar” é preferencialmente usado com estruturas ‘em__SN’ de valor

locativo, ambiente sintático em que “estar” conserva seu significado ‘posicional’,

aos casos em que essas estruturas assumem a noção de ‘estado’. O modelo teórico

proposto por Lakoff prevê que “estados são locais” na metáfora, isto é, que o

estado pode ser concebido como uma região delimitada no espaço.

Intentamos, nesta seção, tão-só traçar diretrizes para a análise que será

empreendida no capítulo oito. Não nos interessa descer a pormenores sobre a

forma como a metáfora é abordada na Linguística Cognitiva, tampouco

exploraremos, em profundidade, a proposta teórica de Lakoff. Tal tarefa excederia

os limites deste trabalho.

Comecemos, pois, notando que a Linguística Cognitiva atribui uma grande

importância aos processos metafóricos. Vista, tradicionalmente, como uma figura

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de linguagem no domínio do discurso literário, a metáfora passa a ser tratada,

nessa área de estudos da linguagem, como um processo fundamental no uso

ordinário da língua. Ademais, a metáfora também não é mais encarada como um

mero fenômeno de linguagem, mas como um fenômeno que, embora dotado de

uma materialidade linguística, evidentemente, encontra seu locus no pensamento e

no raciocínio. Na perspectiva da Linguística Cognitiva, a metáfora se situa numa

dimensão conceitual ou cognitiva, de modo que passa a ser vista como um

processo mediante o qual experiências são cognitivamente elaboradas com base

em outras já existentes no nível conceptual. Sucede, portanto, uma superposição

de uma experiência já linguisticamente determinada a uma outra experiência

mapeada tanto pelo pensamento quanto pela linguagem.

Ao deslocar a metáfora do domínio da linguagem literária, no qual servia

apenas para efeitos estéticos, para o domínio da linguagem do cotidiano, Lakoff &

Johnson (2003, p. 4) puderam reconhecê-la como uma dimensão de nosso sistema

conceitual, por meio do qual pensamos e agimos. Esses autores sustentam ser a

metáfora um fenômeno da vida cotidiana, o que significa dizer não só da

linguagem cotidiana, mas também do pensamento e da ação cotidianos. Consoante

notam e propõem os autores:

Metaphor is for most people a device of the poetic imagination and the rhetorical

flourish – a matter of extraordinary rather than ordinary language. Moreover,

metaphor is typicalally viewed as characteristic of language alone, a matter of

words rather than thought or action. For this reason, most people think they can get

along perfectly whithout metaphor. We have found, on the contrary, that metaphor

is pervasive in everyday life, not just in language but in thought and action. Our

ordinary conceptual system, in terms of wich we both think and act, is

fundamentally metaphorical in nature (LAKOFF & JOHNSON, 2003, p. 4).89

Na base dos processos metafóricos, reside a noção de ‘perspectiva’, a qual

supõe a correspondência entre modos diferentes de conceber fenômenos

particulares e diferentes metáforas. Em outras palavras, segundo essa noção,

diferentes modos de conceber fenômenos estão relacionados a diferentes

89

A metáfora, para a maior parte das pessoas, é um mecanismo da imaginação poética e do

requinte teórico: uma questão de linguagem “extraordinária” em vez de linguagem comum. Além

disso, a metáfora é tipicamente vista como uma característica da linguagem: uma questão de

palavras e não de pensamentos e ações. Por essa razão, a maioria das pessoas pensa que pode viver

perfeitamente bem sem a metáfora. Nós acreditamos, no entanto, que a metáfora faz parte da vida

cotidiana, não somente na linguagem, como também no pensamento e na ação. Nosso sistema

conceitual, a partir do qual pensamos e agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza

(LAKOFF & JOHNSON, 2003, p. 4).

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metáforas. Assim, podemos nos referir ao conceito de ‘afeto’ tanto como

‘temperatura’ quanto como ‘distância espacial’ (Ferrari, 2011, p. 91). Nas frases

“A minha recepção foi muito calorosa” e “Luísa é bastante acessível”,

concebemos o afeto em termos de ‘temperatura’ e ‘distância espacial’,

respectivamente. Esses exemplos ilustram uma característica essencial da

metáfora, qual seja, o fato de ela implicar a conceptualização de um domínio da

experiência tomando-se por base outro domínio. Na metáfora, um domínio de

experiência é ressignificado (ou mesmo traduzido) na base conceitual de outro

domínio. Destarte, toda metáfora encerra um domínio-fonte e um domínio-alvo.

No modelo teórico proposto por Lakoff & Johnson, conhecido como Teoria

da Metáfora Conceptual, há correspondência entre o domínio-fonte e o domínio-

alvo, e essa correspondência é unidirecional, de tal modo que o processo

metafórico toma como ponto de partida um domínio-fonte e se atualiza num

domínio-alvo, não podendo assumir direção contrário. Por isso, podemos

conceptualizar o tempo como espaço, mas não o contrário (cf. O aniversário do

Rui está chegando).

Importa-nos fazer ver que o domínio-fonte compreende propriedades físicas

ou concretas de nossas experiências; o domínio-alvo, por outro lado, assume uma

forma mais abstrata. Assim é que em “Paulo tem um alto prestígio na empresa”, o

domínio-fonte é a dimensão vertical do espaço físico, e o domínio-alvo é o status

social. Ao usarmos a linguagem, no cotidiano, para nos referir a conceitos

abstratos, tais como ‘tempo’, por exemplo, tendemos a concebê-los como

projeções de domínios relativamente concretos de nossa experiência física, em

cuja base se acha nossa atividade sensório-motora. A importância das experiências

sensório-mortoras na formação das metáforas será enfocada na subseção abaixo.

Da compreensão do papel que desempenham essas experiências na formação das

metáforas depende parte do desenvolvimento de nossa análise no capítulo oito.

4.10.1. Metáforas e Esquemas imagéticos

Convém assinalar que, no cerne da metáfora, se encontra o processo pelo

qual um dado elemento ou aspecto da realidade é experienciado nos termos de

outro. Ademais, mostramos, com base em Lakoff & Johnson (2003), que a

metáfora não é um fenômeno cingido às palavras. Ao contrário, a materialidade

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linguística das metáforas só é possível na suposição de que o sistema conceptual

humano encerra projeções metafóricas. Para aqueles autores, as metáforas devem

ser compreendidas como relações estáveis e sistemáticas entre dois domínios

conceptuais, quais sejam, o domínio-fonte e o domínio-alvo. Tanto a estrutura

conceptual quanto o domínio-fonte são utilizados para representar uma situação

no domínio-alvo.

Tendo em vista esta síntese, convém notar que a Teoria da Metáfora

Conceptual de Lakoff & Johnson também explorou a hipótese de que

determinados conceitos são resultantes de esquemas imagéticos.90

Lakoff

argumenta que tais esquemas podem servir de domínio-fonte para a formação de

metáforas.

Os esquemas imagéticos “são estruturas de conhecimentos que emergem

diretamente da experiência corpórea pré-conceptual” (Ferrari, 2011, p. 99). A

importância dessas estruturas no domínio cognitivo decorre justamente do fato de

elas derivarem dessa experiência corpórea. Assim, no exemplo já referido “Rui

está em depressão”, o esquema imagético região delimitada no espaço dá forma ao

conceito abstrato de ‘estado’.

Subjacente à proposta de pensar a conceptualização da realidade na base de

esquemas imagéticos, está a compreensão de que a nossa percepção da realidade é

construída com base na constituição de nosso corpo, pela maneira como ele se

movimenta, pela forma como nós interagimos com o mundo; enfim, pelo modo

como nossos sentidos percebem a realidade. São elucidativas, nesse tocante, as

palavras de Abreu, a seguir:

É a partir de nosso corpo que criamos conceitos como frente, trás, esquerda, direita,

alto e baixo. Como somos seres bípedes, temos de nos manter em equilíbrio

constante e, como somos seres móveis, podemos deslocar-nos continuamente. Nos

tempos primitivos, dirigíamo-nos para onde havia frutos que podíamos coletar ou

animais que podíamos caçar e, modernamente, em direção ao nosso trabalho ou a

locais de lazer. Durante nossos trajetos ou interação com seres e objetos,

enfrentamos muitas vezes obstáculos que temos de remover, quando temos

capacidade física para isso, ou dos quais temos de desviar, em caso contrário. Em

tempos remotos, morávamos dentro de cavernas; hoje, em casas ou apartamentos

(Abreu, 2011, p. 30).

90

LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind.

Chicago: University of Chicago Press, 1987; The invariance hypothesis: is abstract reason based

on image schemas? In: Cognitive Linguistics, v. 1, n. 1, pp. 39-74, 1990.

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O excerto de Abreu, acima referido, ilustra o fato de que nossos conceitos

são calcados sobre nossas experiências corpóreas com o mundo; ademais,

patenteia que tais conceitos variam segundo as condições em que se dão as

interações entre o corpo e o mundo. É com base nessa interação entre o nosso

corpo e ambiente em que vivemos que devemos entender os esquemas imagéticos

como “padrões estruturais recorrentes em nossa experiência sensório-motora”

(ibid. p. 31).

Os esquemas imagéticos são concebidos como representações de

experiências baseadas no corpo. Tais experiências são de natureza sensório-

perceptual e supõem sempre a nossa interação com o mundo.

Cumpre notar que os esquemas imagéticos representam, de um modo geral,

domínios como ‘container’, ‘trajetória’, ‘força’ e ‘equilíbrio’, os quais são

responsáveis por estruturar nossas experiências calcadas no corpo (Ferrari, 2011,

p. 86).

O esquema região delimitada está na base dos domínios container e

“superfície”; no entanto, eles se diferenciam pelo número de dimensões que

abrigam. O container encerra três dimensões: fora, dentro e uma fronteira a ser

ultrapassada. Pode-se representar esse domínio com o seguinte gráfico:

fronteira

fora dentro fora

É notável o fato de que o domínio container envolve a noção de

profundidade, que falta ao domínio de superfície. Assim, se uma “piscina” pode

ser tomada como exemplo prototípico de container (cf. Ele está na piscina),

“mesa”, por seu turno, exemplifica o domínio “superfície” (cf. O jarro está na

mesa).

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