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Contos do Cinema
Apresentação
Contos do Cinema surgiu de uma conversa entre amigos de
música. Em meados dos anos 2000, nos intervalos dos ensaios dos
nunca sucessos da banda nunca famosa, Os Gregory Hines
precursora do gênero, mundialmente, desconhecido, o besteirock, eu
e Rubens Mello trocávamos experiências sobre as labutas diárias para
sustentar nossas famílias. Eu, jornalista, na época, chefe de
reportagem da TV Cultura e Ruba, advogado aprovado pele exame da
OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que abriu mão da carreira
para se dedicar à vida de cartorário.
A música era nosso hobby, válvula de escape de uma vida
sempre atribulada. Ruba me contava as agruras de ter sido gerente
da Multiplex durante três anos. Falava das celebridades que conheceu
no Shopping Jardim Sul e das enrascadas em que se meteu para
organizar os bastidores de uma empresa cujo mainstreaming é
conduzir as pessoas à uma sala escura para terem uma experiência
de sonho coletivo e as entupir de pipoca e refrigerante.
Eu não tinha dimensão de como as pessoas lutavam,
fisicamente, inclusive, por uma poltrona de cinema. Para as gerações
mais novas, que hoje têm acesso on demand ao conteúdo
audiovisual por meio de tablets, celulares e, ironicamente, até por
aparelhos de TV, soam quase como fanatismo os contos que lerão a
seguir. Mas foram criados por mim, baseados em fatos reais descritos
por Rubens Mello.
O gênero literário foi escolhido para manter a independência
entre as histórias podem ser lidas em qualquer ordem e para
tentar simular em livro, o movimento que o cinema oferece.
Boa viagem.
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Índice
1 – BATIZADO EM ECOS DO ALÉM
2 MEU PRIMEIRO BLOCKBUSTER
3 A ENTREVISTA COM O MULTIPLEX
4 MISSÃO IMPOSSÍVEL
5 AMEAÇAS TELEFÔNICAS
6 O FILHO DO PUBLICITÁRIO BARRADO NO HOMEMARANHA
7 QUANDO O GAY DO CARANDIRU NÃO PÔDE FUMAR
8 EMBARCANDO CLANDESTINAMENTE SÍLVIO SANTOS PARA
ASSISTIR SHEREK, DUBLADO
9 O JET LEE DO MULTIPLEX ANÁLIA FRANCO
10 UMA PISTOLA 7.65 NA SALA DE CINEMA
11 A LOIRA DO AXÉ
12 DELEGADO ENCIUMADO
13 MAR EM FÚRIA
14 FAMOSOS EM CRISE
15 O FIM DA PELÍCULA
16 DE LOUCO E PENETRA TODO MUNDO TEM UM POUCO
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1 – BATIZADO EM ECOS DO ALÉM
Todos os quinhentos espectadores já haviam embarcados na
maior sala do Multiplex Jardim Anália Franco para assistir Ecos do
Além – protagonizado pelo astro Kevin Bacon.
Eu era o gerente do cinema. Pensava em tudo aquilo como um
aeroporto e gostava de ficar na ponte de embarque. Na entrada,
atrás dos porteiros que recolhem os ticket's, de canto, discreto. Dali
eu tinha certeza de que tudo estava sob controle. À esquerda, tinha
visão do grande corredor das salas de exibição e de esguelha, à
direita, a bilheteria com suas longas filas à frente.
Tudo funcionava bem. Já havia feito a contagem de estoque,
que batia com o relatório do sistema e estava conciliado com as
vendas. Também tinha fechado a escala de folga dos mais de
cinquenta funcionários, divididos entre bilheteria, portaria das salas,
bomboniere, projecionistas e técnicos de manutenção. Um staff que o
público só nota quanto tem algo para reclamar.
Você, leitor, já deve ter se queixado de alguma coisa com um
gerente de cinema. Seja da limpeza dos banheiros, do projetor que
pifou ou do filme que parou no meio.
A interrupção de uma exibição é mortal. Pega as pessoas
desprevenidas, entregues a um sonho coletivo, refesteladas nas
largas poltronas e equilibrando enormes pacotes de pipoca com copos
de refrigerantes de um litro.
Nas salas escuras, têm expectativas, choram, riem, tomam
sustos ao sabor de roteiros incríveis transformados em sequências de
imagens por diretores malucos do tipo de David Koepp que rodou Stir
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of Echoes, em 1999, titulo original do filme que foi minha prova de
fogo; meu teste de batismo como gerente da multinacional Multiplex.
x
Enquanto Tom Witzky, personagem representado por Bacon, se
movimentava na imensa tela branca a uma velocidade de 24
fotogramas por segundo, eu fui tomado de surpresa por gritos e
apupos.
O som abafado vinha de uma das salas de exibição.
Imediatamente, intuí que era da última sessão do sobrenatural Ecos
do Além.
Naquele dia, Tom Witzky não conseguiu completar a cena em
que é hipnotizado e consegue falar com os mortos. “Algumas portas
nunca deveriam ser abertas” era a chamada do filme. E, realmente, a
porta daquela sessão não deveria ter sido...
Chamei o projecionista pelo rádio.
Qrr. Mané, você tá em QAP... Qrrrr. Só estática, nenhuma
resposta. As luzes estavam acesas. Corri para a sala de projeção e já
entrei reclamando:
Qrr. Mané, por que você não responde...? Calei, quando vi
aquele macarrão de celulose. Percebi que levaria pelo menos uma
hora para desembaraçar o filme espalhado no chão e enrolálo de
novo no prato do sistema de exibição espanhol, que roda a película
na horizontal – à medida que é projetado, o filme é recolhido,
abaixo, num segundo prato e fica pronto para ser exibido
novamente. Daí o segredo dos intervalos da Multiplex terem só 15
minutos entre as sessões. Mas o sistema Multiplex faria pouco por
mim, agora. O problema era comunicar ao público que Tom Witzky
sumiu da tela, não passaria mais para o além como nas sessões
anteriores.
O sonho acabou.
Tente acalmar uma multidão desperta, repentinamente,
daquele transe que o cinema produz. Ninguém acorda de bom
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humor, pensei. O frio na barriga lembrou meus meses de estágio
no Rio de Janeiro, quando um colega foi agredido por quatro
lutadores de jiu jitsu que queriam pagar meia entrada com carteiras
de estudantes falsificadas.
A caminho da sala, chamei o segurança. Ele era meio gordo e
baixinho, lembrava o Barney Ruble, o fiel vizinho de Fred Flinstones,
do Cartoon.
Dentro da sala, quinhentas pessoas transtornadas. Algumas já
estavam de pé, xingando e jogando coisas na tela. Sem microfone ou
megafone – os cinemas ainda, hoje, são mal equipados para lidar
com a massa eu gritei para a plateia ensandecida:
Um minuto da atenção dos senhores. Vocês deverão ir
embora, pois o filme não será mais exibido hoje.
O problema é que as pessoas em grupo ficam encorajadas a
fazer coisas que não fariam sozinhas. As pessoas protestaram,
queriam o dinheiro de volta. Fiquei em dúvida sobre como proceder.
Na tensão, não lembrei dos canhotos. Só sei que não quero confusão
na porta do cinema, decidi e...acabei tomando a pior decisão
possível.
Fiquem todos em seus lugares. Vou devolver o dinheiro dos
ingressos.
O que é que estou fazendo? Me perguntei. Não medi o risco de
levar dinheiro vivo para perto de uma turba enraivecida.
Antes que eu saísse atrás do dinheiro, uma loira de uns 18 anos
que estava na primeira fileira, levantou gritando.
Esta porcaria de cinema americano, multinacional, tem que
dar um jeito. É um absurdo. Onde já se viu, no meio do filme apaga
tudo? Como vou ficar sem ver o resto? Perguntou, avançando sobre
mim.
Jovem e forte soltou um cruzado na minha cara, digno do
Evander Hollyfield. Consegui desviar. Barney, o segurança, agarrou
os braços da moça que, ato contínuo, lhe mordeu o peito. Para
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piorar, foi aí, neste ponto, que o pai da moça se levantou gritando
para a sala cheia:
Acudam, acudam, estão matando minha filhinha! Coisa de
cinema. A platéia olhou estarrecida. Eu não tinha como evitar que as
pessoas, ao botarem atenção na cena que eu e Barney
protagonizávamos, pensassem que estivéssemos agredindo a moça,
quando na verdade, ao contrário, tentávamos nos defender da ira
compulsiva da fã de Kevin Bacon. Começaram as vaias. Barney soltou
a loira e eu modulei a voz pedindo calma.
Gente, por favor. Está tudo bem. Eu vou devolver o dinheiro,
disse.
Mais vaias. Não havia mais clima para conversa.
Fiquem todos aqui que já volto! Ordenei.
Saí, fui à gerência, peguei o tupperware com milhares de reais
e voltei. Nada mais “seguro” do que transportar dinheiro num
tupperware, ironizei. Aí entendi a dimensão da besteira que estava
fazendo. Mas era tarde demais para recuar. Parei debaixo do batente
da porta, instalei uma mesa e pedi que formassem uma fila. Fui
devolvendo o dinheiro à medida que as pessoas saíam. Quando foi a
vez da antiimperialista, loira “Pitty Bull” pegar o reembolso, eu me
vinguei:
Você vá buscar os seus direitos, falei sem lhe retornar
dinheiro algum. Afinal, aquela ridícula decisão de ficar com uma
montanha de dinheiro vivo no meio da multidão tinha, em parte, a
ver com os desatinos daqueles tipos.
Deste episódio apreendi que em situações de tensão,
envolvendo um número grande de pessoas, uma decisão rápida
precisa ser tomada. Antes do desagrado coletivo crescer, é preciso
munir as pessoas de informações concisas e claras.
Nunca mais me apavorei. Aprendi a lidar com o calor das
ocorrências. O negócio era entrar na sala, dar o recado de que não
haveria mais filme e que se dirigissem à bilheteria com o canhoto
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para trocálo por outra sessão.
Agora eu pergunto, quem é que lembra de guardar o danado
do canhoto? Isto é realmente sobrenatural.
2 MEU PRIMEIRO BLOCKBUSTER
O cinema estava fechado e a aglomeração se formava do lado
de fora. Como de hábito, fiquei no meu local preferido, antes de
balançar a cabeça autorizando a abertura do cinema. De pronto, um
dos bilheteiros destravou as enormes portas de vidro provocando um
estalo: trec! Este barulho sempre me angustia, registrei,
mentalmente. Mas o ruído aliviou a tensão daquela multidão de
aficionados que aguardava ansiosamente pela entrada.
Eram centenas de místicos apaixonados por Harry Potter e a
Pedra Filosofal que se puseram a disputar o primeiro lugar na frente
dos caixas. O empurraempurra entre aqueles préadolescentes,
vestidos de casacos pretos como os personagens do longa, não era
um bom sinal. Mas nada poderia dar errado no meu primeiro
blockbuster. Eu não iria fracassar. Vai dar tudo certo! Me acalmei.
Afinal, o Multiplex foi feito para isto, pensei. As enormes salas e
corredores tinham a missão de atrair multidões para arrecadar
milhões ou bilhões de dólares como fez o filme Guerra nas Estrelas –
A Ameaça Fantasma, de George Lucas que faturou, U$ 1,026 bilhão e
deu nome para o que a Indústria Cinematográfica chama de
“arrasaquarteirão ou blockbuster.
Para minha sorte, os verdadeiros vilões do cinema estavam
longe de ser como Voldemort, o algoz do pequeno Potter. A ameaça,
aqui, vinha dos espertinhos que compravam ingressos para filmes B,
ruins, que não tinham fila e embarcavam nas salsa dos concorridos
longas, clandestinamente. Como era o caso do filme do pequeno
bruxinho e seus fiéis amigos enfrentando o cão de três cabeças.
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Ingressos na mão! Gritou um dos bilheteiros, antes da fazer
a fila andar. A ordem era intimidar os oportunistas para que não
provocassem “overbooking”. Não na minha gerência, pensei. A
pressão sempre surtia efeito. Mas sempre sobravam uns
carasdepau...
Meu ingresso está com minha namorada, lá dentro, tentou o
dissimulado profissional. Eu mesmo me aproximei do malandro e
sussurreilhe ao ouvido:
– Sem ingresso, sem filme. Funcionou, o garoto inventou que
tinha que telefonar para a tia e saiu de fininho.
A ideia de amedrontar os penetras não era minha. Assim como
Harry Potter tinha Hermione e Rony, eu também tinha meus
parceiros inseparáveis, ponderei. Os conheci no Multiplex do
Shopping Jardim Sul, logo que cheguei do estágio no Rio de Janeiro.
Marco, Cláudia e Fabíola eram pessoas geniais e juntos
desenvolvemos várias técnicas para nos livrar dos furafilas. Eles
trabalhavam com afinco e com apenas seis meses de contratação
foram promovidos.
No fundo, estava gostando do teste. Harry Potter não assustou.
A única ameaça vinha do baixo volume de vendas de refrigerantes e
pipoca. Um fracasso de bomboniere é encrenca na certa, intuí,
fazendo beicinho.
A última sessão ainda rolava, quando eu confirmei no visor da
calculadora o que mais temia: a estreia rendeu boa bilheteria, mas o
consumo per head, no jargão da casa, estava abaixo da média. E a
matriz, em Londres, não ficaria nada contente.
A magia dos bruxos do Multiplex é faturar alto com ingressos e
muito mais, mas muito mais, com milho de pipoca e refrigerantes.
Nunca me arrisquei a calcular quanto é a vertiginosa margem de
lucro deste pequeno prazer de mastigar e bebericar diante da tela.
Talvez para não dar razão às queixas dos clientes, pensei. O fato é
que comunicar sobre a queda do lucro à Diretoria faria os monstros
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pularem da tela para me assombrar na vida real. Nunca esqueci o
quanto era assustadora a figura do gerente de varejo na matriz no
Rio de Janeiro um baixinho com voz estridente e óculos de fundo de
garrafa que levou o gerente júnior, responsável pela bomboniere, à
beira de um ataque de nervos:
Você tem que aumentar o seu perhead! Tá me ouvido?
Aumentar o perhead! Por que não vendeu na sala 3? Por
que não leva um carrinho para dentro da sala antes da
sessão? Me dê explicações, Londres ficará insatisfeita,
precisamos de motivos!
Passei incólume pelo meu primeiro Blockbuster, mas tinha que
bolar uma magia que protegesse minha cabeça da sanha insaciável
dos feiticeiros da Matriz. Desde o início da minha jornada como
gerente de cinema aprendi a mesma lição que Harry Potter teve: só
os amigos salvam!
3 A ENTREVISTA COM O MULTIPLEX
Estava só na sala. Minhas mãos suavam, enquanto tentava
disfarçar a ansiedade tamborilando na mesa de reunião. Sabia que
em algum momento alguém do Multiplex entraria por aquela porta
para a entrevista fatal de um processo de recrutamento que havia
começado há dois meses. Droga! Que demora, pensei. Comecei a
organizar os pensamentos sobre como tudo aquilo começou.
Devaneei num flashback do tempo de criança. Meu pai,
divorciado, nos dias de visita, aparecia na porta de casa e carregava
eu e meus irmãos para assistir o destemido Herbie de Se Meu Fusca
Falasse, Banzé no Oeste de Mel Brooks e, mais tarde, os filmes de
aventura de Indiana Jones. Droga! Preciso de me concentrar.
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Levanteime e fui até a porta imaginando o que deveria estar
por trás. Esta demora só pode fazer parte do teste. Acho que querem
saber se mantenho a calma sob pressão. É melhor eu voltar a me
sentar, ponderei, imaginando que ali estivesse alguma câmera
escondida.
Casado, com um filho recémnascido, eu precisava daquele
emprego. Dava aulas de hotelaria na Escola do SENAC de São José
dos Campos, em São Paulo, mas a grana não era boa. Para piorar,
estávamos de favor na casa da sogra no litoral norte paulista a 60
quilômetros do trabalho. Meu emprego anterior foi traumático. Chef
de cozinha de um hotel cinco estrelas em Jundiaí, interior paulista.
É, eu me formei em culinária e sei cozinhar muito bem! Mas esta aí
uma informação que não vai me ajudar em nada nesta entrevista,
anotei, mentalmente.
Como dizia, substitui um Chef de Cuisine gordo e beberrão que
levara o restaurante à beira a falência. Tive que reinventar o
cardápio e atuar como chief executive officer, um CEO sem dó, estilo
Donald Trump, para botar ordem no negócio. Com carta branca do
dono, um inglês presunçoso, demiti 90% do staff e captei eventos
com empresários e associações para recuperar a credibilidade do
restaurante que antes da minha chegada demorava mais 45 minutos
para servir um prato! Esta sim, era uma boa história para contar aos
meus entrevistadores! Alias, cadê eles? me perguntava, apertado
numa cadeira desconfortável de escritório. Não, não era uma boa
história, eu teria que explicar porque saí, apesar do sucesso.
Me lembrei claramente do dia em que minha paciência estourou
com o gringo do restaurante. Um pedido de demissão que demorou
três meses sem salário para amadurecer:
I´m quit! Fodase! Arranquei o avental do meu corpo e o
joguei sobre a caixa registradora em que o inglês gigante e vermelho
de raiva contava a féria e vociferava em sua língua natal baixarias
que ofendiam a reputação dos brasileiros e da minha mãe. Ser
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fluente em inglês trazia algumas vantagens e reconhecer aqueles
xingamentos, foi uma delas, pensei.
O ruído da porta se abrindo me tirou do estado hipnótico. De
repente um, dois, três diretores do Multiplex todos alinhados com
calça escura, camisa de manga curta branca e gravata azul
entraram na sala e tomaram assento à mesa em que estava. Diminui
de tamanho, tive a sensação de ter virado um anão na cabeceira da
mesa cercado por missionários mórmons. Pigarreei e tentei
demonstrar naturalidade diante da emboscada armada. Calma,
coração no pé, mentalizei.
Boa tarde, disse ao estender a mão e exibir o melhor sorriso
amarelo que a ocasião permitia.
Boa tarde, Sr. Mello, desculpenos fazêlo esperar, mas
estávamos entrevistando outros candidatos, falou o mais alto deles,
um sujeito de óculos de aros pretos e corte reco parecido com
Michael Douglas em Um Dia de Fúria. Meu nome é Armando, sou
Diretor de Recursos Humanos da empresa. Apontou os dois homens
que estavam com ele, e sem apresentar seus nomes, avançou direto
ao assunto. Eles vão me auxiliar nesta entrevista. Vi em sua ficha
que estudou no SENAC e chefiou um restaurante de um hotel cinco
estrelas no interior de São Paulo...
O ímpeto daquele cara me assustava. Queria saber tudo,
número de pessoas que gerenciei, habilidade com estoque. Tentei me
comportar como mandam os manuais de entrevistas de candidatos a
emprego, mas estava achando que tinha perdido a batalha.
Balançava freneticamente a perna sob a mesa. Não conseguia
encaixar uma bola de simpatia. Os caras eram muito fechados e frios.
De repente, surgiu uma oportunidade:
O que você sabe sobre cinema? perguntou
MichaelDouglasemUmDiadeFúria.
Bem, minha primeira experiência foi numa locadora de vídeo.
Vocês se lembram do VHS, claro que sim. A locadora atendia a
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celebridades e a futuras celebridades. Sabem o Rick Martin? Na fase
Menudo, ele nos visitava com a namorada Mara Maravilha, a procura
de lançamentos como...
Caramba, tem coisas da piratariachicdosjardins que não
posso contar, pensei. Os caras são distribuidores da indústria
cinematográfica, não podem saber que os filmes eram todos piratas,
que os donos traziam boas cópias de Nova Iorque e no andar de cima
do casarão da Av. Nove de Julho, reproduziam cópias de cópias. Eram
filmes que ainda não estavam exibindo no Brasil. Enquanto evitava o
assunto, usava todo o meu charme de jovem surfista para entreter
meus entrevistadores.
Eram filmes fantásticos para uma seleta clientela, o ministro
Mário Andreazza alugava filmes de lá.
De repente a sala se silenciou, meu repertório de cases de boa
performance tinha chegado ao fim. Para descontrair o ambiente,
arrisquei expor meu suposto conhecimento sobre cinema.
O ruim é quando o projecionista não coloca a pegatina direito.
Os três me encararam de testa franzida, esperando que eu
desenvolvesse a história.
É, eu vi isto na semana retrasada, tomei um gole d’água
antes de continuar. Estava assistindo o filme da vida de Jerry Lee
Lewis, aquele interpretado por Dennis Quaid, no meio de uma plateia
de fanáticos por rock and roll. E, apesar de ser um musical, o som
estava péssimo. Foi quando um cara se levantou e saiu gritando: “eu
já trabalhei com projeção, este cara da projeção é um mané, ele não
instalou a pegatina direito!” O cidadão foi enfurecido até a cabine e
minutos depois, o som ficou ótimo. Nunca tinha visto alguém ficar tão
bravo por causa de um filme.
Os diretores se entreolharam quase como adivinhando o que eu
presenciaria nos próximos três anos. E para minha surpresa
MichaelDouglasemUmDiadeFúria esboçou, finalmente, um
sorriso de soslaio. Os mórmons foram com a minha cara. Aí tive a
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certeza: fui contratado. Yes!!
Foi um alívio, pois pude me despedir deles sem ter que revelar
o segredo, que martelava dentro da cabeça, sobre meus bons ofícios
na piratariachicdosjardins, que já posso contar: um dia, policiais e
fiscais da receita quebraram a rotina com um mandado judicial de
busca e apreensão de cópias ilegais. Pedi que esperassem pelos
donos que já estavam a caminho. Assim que os patrões chegaram,
convidaram os policiais para um reunião no andar de cima. Enquanto
isso, eu e as meninas do atendimento fomos orientados a chamar
nossos amigos a vir “alugar” de graça, por tempo indeterminado,
todos os filmes que pudessem carregar. Quando os policiais desceram
da conversa, as prateleiras estavam vazias. Mais de 1200 títulos de
VHS circulam por aí até hoje, como troféus da resistência pirata.
4 MISSÃO IMPOSSÍVEL
Consultei o relógio. Era perto das três da manhã e o espectro
de diminuição do perhead diário rondava minha mesa. A última
sessão acabou havia duas horas. Tinha que fechar tudo e ir para
casa, pois logo mais às 10hs da manhã estarei de volta, pensei.
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Enfiei as planilhas de venda na gaveta e me espreguicei, pronto
para sair. Só então me dei conta que aqueles escritórios do Multiplex
eram todos iguais: uma sala apertada com um conjunto de mesa e
cadeira de gerente, um cofre e um claviculário que nome horrível
que se dá à essa caixa de guardar chaves, cogitei, durante a
lembrança de que eu não estava mais no cinema do Shopping Anália
Franco, perto da minha casa, onde trabalhei por mais de um ano.
Agora, gerenciava a menina dos olhos da Companhia: o Multiplex dos
milionários do Morumbi: Shopping Jardim Sul. Frequentado pela
mimada nata da paulicéia, pensei em voz alta, enquanto vestia meu
casaco. A esta hora deve estar frio lá fora, estimei. Tranquei cofre,
gaveta e... toca o telefone:
Ring, ring, ring!. Droga, só pode ser encrenca, atendi
contrariado ao telefone.
Sim?
Alô, Rubens? Sabia que ainda encontraria você, sou eu, o
Sérgio Como se eu não soubesse, só mesmo o diretor de operações
para ligar uma hora dessa.
Fala diretor, tudo bem? Pelo horário, deve ter uma boa notícia
para me dar, ironizei, lembrando que uma notícia que não pode
esperar o horário comercial, só pode ser uma notícia ruim.
Bem, vou direto ao assunto: depois que você saiu do Anália
Franco, o caixa da unidade passou a ter desfalques diários...
Impossível, interrompi. As meninas que ficaram no meu
lugar são de confiança. Cláudia e Fabíola começaram estagiando
comigo aqui mesmo no Jardim Sul. Impossível! Frisei, quase gritando
com meu chefe.
É o seguinte, saio aqui do Rio de Janeiro no voo das 9h00.
Chegando ao aeroporto de Congonhas, lhe telefono. Tenho ordem
expressa do diretor geral para demitir toda a equipe de gerentes.
Você vai comigo, afinal você as conhece há mais tempo e pode me
ajudar a descobrir onde está o dinheiro.
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Mas, mas..
Te vejo, amanhã. Clic.
Apesar de cansado, aquele diálogo me roubou o sono. Tirei o
casaco, voltei à mesa e disquei para o Anália Franco. Tenho certeza
que ainda tem alguém lá.
Alô? Era a voz da Cláudia. Estava desanimada.
Oi Claudinha, sou eu, o Rubens.
Oi Rubinho, que bom que é você. Pensei que fosse o diretor
de operações de novo.
Ele me ligou, quer que vá com ele demitir todo mundo ai,
amanhã, cedo. Que aconteceu?
Não sabemos, só sei que toda a noite depois de conferir o
caixa da bomboniere e dos ingressos, eu mesma faço o lançamento
nas planilhas e tranco o dinheiro no cofre. E quando vamos recolher,
está faltando, Rubens. Não sei mais o que fazer, disse ela, já com voz
de choro.
Calma, Claudinha, amanhã eu vou com o mala e a gente
resolve tudo. Tá bem?
Mas a gente não tá roubando nada...
Eu sei, eu sei. Calma, vá para casa, descanse a gente se
encontra às 10hs da manhã.
Desisti de ir para casa. Vou dormir no sofá da recepção, decidi.
x
Logo pela manhã, na direção do meu próprio carro, tomei o
rumo do aeroporto. Não foi difícil encontrar na calçada do
desembarque de Congonhas o esbaforido diretor com cigarro a mão,
vestido à la mórmon, acenando para eu parar o carro.
Faala, Sérgio, como vai? Como foi seu voo? Perguntei com meu
sorriso simpatia, assim que ele embarcou no meu carro.
Tudo bem, Rubens.. Não é mesma coisa que viajar para o Nordeste,
praia, mas tudo bem. E ai? Já preparou as meninas? Indagou, ríspido.
Direto ao ponto!
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Já estava acostumado com o estilo
semtempoaperdercomconversafiada dos executivos do
Multiplex. Para todos nós, missão dada é missão cumprida. Ainda
mais, quando a ordem vinha de Londres.
Sérgio, o seguinte, elas estão nos esperando. Mas não
acredito que tenham pegado dinheiro.
Não falamos mais nada o resto da viagem. Descemos do carro,
ainda calados.
Oi Rubens. Bom dia, Sérgio, nos cumprimentou Cláudia, ao
chegamos. Sérgio foi logo para cima, pedindo as planilhas. Se reuniu
com as duas meninas e deu um apertão, ameaçando que iriam para
delegacia e etc.. Deixeios conversando e como Sherlock Holmes fui
para a sala de gerência. Eram todas iguais. Não havia câmera de
gravação no interior, mas na porta de entrada, sim. Assistindo as
imagens atentamente estava claro que apenas a Claudinha entrava
no recinto onde fica o cofre. Ali, ficavam valores razoáveis usados
sempre que se precisava de troco durante o expediente. Ainda bem
que o dinheiro grosso é levado, religiosamente, pelos homens da
transportadora de valores, pensei, enquanto me ajeitava na mesa de
gerente. Mas nem mesmo os guardas frequentavam a sala. Me pus a
verificar cada centímetro atrás de alguma explicação lógica, pois o
que a multinacional não queria aceitar é que as planilhas acusavam
as baixas. Ou elas eram muito burras por subtrair a grana que elas
registravam nas planilhas ou não tinham nada haver com aquilo,
raciocinei.
Sérgio queria um culpado, tivesse ele culpa, ou não. Para mim
era impossível que aquela moças contratadas comigo, com as quais
convivi um ano inteiro com a maior confiança, pudessem estar
passando a mão na grana do troco. Quando olhei para o teto, tive
uma luz. Pulei da cadeira e rapidamente chamei o diretor:
Sérgio, venha cá, dê uma olhada nisso! Disse, ao apontar
para a grelha de ventilação. Na hora me lembrei do filme Missão
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Impossível, estrelado por Tom Cruise.
Entraram pelo teto! Falei. Nas beiradas do respiradouro
estavam as marcas das mãozinhas sujas. Subi numa cadeira e abri a
grelha com cuidado. Lá estava a prova do crime: uma escada.
Preparadinha para o próximo embuste do malandro, pensei.
Fomos para segurança do Shopping e vimos as fitas de vídeo.
Não foi difícil descobrir que o culpado não era o mordomo e sim o
funcionário da manutenção! O danado sabia do sistema lusitano da
Companhia que obriga os gerentes a guardar as chaves do cofre no
claviculário dentro própria sala da gerência. Ele tirava a grade, descia
a escada, pegava a chave, abria o cofre, surrupiava a grana do troco
e se mandava. Fácil como mamão com açúcar, imaginei.
O rapaz da manutenção foi levado para a delegacia e as
meninas receberam promoção como prêmio: Cláudia de sênior para
gerente geral, e Fabíola “subiu” de gerente jr. para sênior. Como
qualquer outro longa hollywoodiano, este caso teve um final feliz.
5 AMEAÇAS TELEFÔNICAS
Naquela imensa tela da sala Multiplex, a atriz Drew Blythe
Barrymore, loura, no alto do seus 22 anos de idade, interpreta Casey
Becker em Scream no Brasil, intitulado Pânico o primeiro longa da
série. Sozinha em casa, numa pacata cidade da Califórnia, Casey
recebe um telefonema.
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Ring, ring. Ela atende
Não pense em desligar o telefone, disse a voz ameaçadora do
outro lado da linha..
O que você quer?
Conversar
Então ligue para outra pessoa, disse Casey desligando o
telefone. Clic.
Ring, ring, ring.
Escute aqui, seu idiota...
Escute você, sua vadia. Se desligar o telefone na minha cara
de novo eu vou abrir te como um peixe, entendeu?
.... Casey fica muda, em pânico.
YEhhhh!!, comemora a voz ameaçadora.
Isto é alguma piada? Pergunta Casey, assustada.
Na verdade é um jogo... Você pode suportar isto?.. Loirinha,
... sussurrou
A menção a cor do seu cabelo deixoua transtornada, com a
certeza de que estava sendo observada. Cosey sai correndo para
trancar a porta de casa.. Olha para fora...
Você pode me ver? desafia a voz ameaçadora.
Escuta, em dois segundos eu vou chamar a polícia, tá?
Eles nunca chegariam a tempo. Estamos no meio do nada...
O que você quer? Clama, chorando
Quero ver como você é por dentro...
Assustada, desliga o aparelho.
Dingdong. Toca a campainha.
Ahhh!!. Ela pula de susto. Quem está ai? Grita, tremendo de
medo.
Ninguém aparece à porta.
Quem está ai? Quem está ai? Insiste, desesperada.
Eu vou chamar a polícia. Corre para o telefone, quando....
Ring, ring. Toca o telefone, novamente, e ela grita
19
Aaaai! Atende, chorando.
Você nunca devia perguntar quem está ai? Você não gosta de
filme de terror? É um desejo de morte. Bem que você poderia sair e
investigar um barulho estranho ou algo assim.
Escuta, diz em prantos. Você já se divertiu é melhor você ir
embora senão
Se não, o quê? Interrompe a voz .
Senão meu namorado vai chegar e quebrar a sua cara...
E no clímax da sequência cai a energia no Shopping Jardim Sul.
Eu e o Paulo, gerente júnior, estávamos fazendo o inventário do
estoque, quando o súbito apagão me alertou que era o fim da
tranquilidade. Batata!
Qrrrr, soou a estática do rádio, antes da pergunta: Rubens, tá
em QAP? Chamou o bilheteiro pelo rádio.
Q A P, respondi, já a caminho e preparado para resolver
algum furdúncio.
Qrrrr.. Tem um cliente aqui.... Qrrr... Antes que ele
terminasse de falar, eu já vislumbrava a confusão, diante da
bilheteria. Duas dondocas e um adolescente protestando pela
interrupção do filme que estavam assistindo.
Como costume, me aproximei do trio com o melhor
sorrisodesarmaconflito e tentei me apresentar. Antes que
terminasse meu nome, a moça vestida num tubinho rosa choque de
alça virouse para mim e sempre desconfiei do humor de uma
mulher vestida de rosa choque disparou:
Ah! Você que é o gerente? E emendou, sem dar pausa
alguma: Olha aqui seu gerentizinho incompetente de merda. Como
você consegue interromper a sessão no meio do filme?
Desculpenos pelo incômodo, mas é uma falta de energia em
todo o Shopping, respondi.
Ela partiu para cima de mim
Não me venha com desculpas. Cadê o gerador? Isto aqui é
20
um Brasil, mesmo. Você não sabe como é difícil eu arrumar tempo
para sair com meus filhos que sequer moram aqui. Vieram dos
Estados Unidos para passar só essa semana comigo e vocês deste
cinema patético...
Mas minha senhora, nós podemos devolver seus ingressos,
falei.
Eu não quero esmolas. Enfia esses ingressos! Você sabe com
quem está falando? Disse, a mulher com o dedo em riste. Pronto,
esse vocêsabecomquemestáfalando era uma prévia de
carteirada, pensei. Agora ela vai me falar que é parente, esposa ou
amante de alguém do Multiplex.
Senhora, aqui, tratamos todos com o mesmo respeito. Aceite
estes ingressos como cortesia e esse valepipoca como um pedido de
desculp... Mas insolente, ela bateu em minha mão como um
“catadeixa”. Derrubou os ticket's no chão. Deu as costas, chamou
seus filhos e saiu em empertigada.
Vamos embora daqui. Você vai se arrepender, ela gritou para
mim, sem se virar.
Nos primeiros dias de profissão, isso me deixaria constrangido.
Mas agora estou escolado. Ótimo. Já vai tarde, pensei. Sorri para o
gerente júnior e o bilheteiro que acompanharam o episódio feito
estátuas.
Que louca, hein, Rubens, me falou Paulo. Será que ela
conhece alguém da direção? Ele desconfiou em voz alta.
Eu duvido, respondi. Se conhecesse já teria falado e aqui no
Morumbi é assim mesmo: tá cheio de alguém que conhece alguém.
Ao falar isto, escutei os sons dos aparelhos reagindo com a volta da
eletricidade.
Vamos lá pessoal! Ordenei. A energia voltou, quero tudo
mundo nos lugares, vamos retomar a rotina.
Já estava anoitecendo. A falta de energia, no final, durara o
tempo de uma sessão. Eu e o gerente júnior retomamos a contagem
21
do estoque. Completamente absortos, quando de repente:
Ring, ring. Tocou o telefone na sala da gerência.
Júnior atende para mim, por favor, pedi, enquanto fechava a
última linha do estoque.
Alô, pois não, disse Júnior ao telefone. O gerente está
ocupado agora, pode falar comigo.
Não sabia quem estava do outro lado da linha, mas pela feição
de espanto que a cara dele tomou, a coisa era feia.
Precavido, coloquei o telefone no vivavoz
... e você seu gerentezinho de merda, você respeite minha
esposa, disse a voz do outro lado da linha.
Mas... senhor, redarguiu Júnior, não ofendemos sua esposa,
pelo contrário...
Escuta aqui, seu merda, me deixa falar com o gerente...Eu
sou o Dr. Van Den Berg, neurologista do Albert Einstein e exijo uma
retratação do gerente.
Senhor...ele está ocupado.. disse, Júnior, colocando os olhos
sobre mim.
Senhor, não, Doutor.. Eu exijo respeito. Você não sabe o risco
que está correndo. Eu sei onde você trabalha. Eu sei que você pode
ser atropelado e não receber atendimento a tempo nos hospitais da
região.. Reze para não precisar da emergência do Hospital Albert
Einstein no meu plantão. Esta me ouvindo? A sua vida pode ficar
curta demais, entendeu? Você me entendeu?
Dito isto, Júnior estava atônito, sem ação, olhando para mim.
Eu, simplesmente, desliguei o telefone.
Clic
Tranquilo Pablo, tranquilo, brinquei em espanhol para acalmálo.
Não vai acontecer nada disso.
Continuamos nosso serviço e nos calamos, por mais de uma
hora. O silêncio me ajudava a avaliar se as ameaças eram críveis,
pois restava uma dúvida que não saía da minha cabeça: como esse
22
tal doutor Van Den Berg conseguiu o telefone da gerência, se não
divulgamos o número para ninguém? Até hoje, eu não saberia dizer.
Considerando que a folha corrida de ameaças em cinemas é
gigante e que sempre tem um louco fora da tela, querendo imitar a
ficção, me coloquei a pensar se o casal Berg teria sido influenciado
pelo filme Pânico que estava em cartaz para perpetrar aquela
ameaça. Acho que é por isso que se exige idade mínima para
determinados longas. Algumas pessoas são plenamente
sugestionáveis pelos filmes, pensei, seguido de arrepios e calafrios na
espinha. O melhor é deixar para lá.
Que tal uma pizza? Perguntei ao meu fiel escudeiro Júnior.
Só se for agora, respondeu ele.
Enquanto saboreávamos uma pizza de marguerita, riamos e
imitávamos a vozinha da mulher de tubinho rosa choque como ficou
conhecida entre nós.
x
Meses antes, naquele mesmo bairro, o cinema do Shopping
Morumbi foi palco do triste episódio conhecido como o do “Atirador do
Cinema” ou o “Atirador do Shopping”. O então estudante de
medicina, Mateus da Costa Meira, com 24 anos de idade, foi para
frente da tela e disparou a esmo tiros de submetralhadora durante a
sessão do filme Clube da Luta: três pessoas morreram e quatro
ficaram feridas. O “atirador” foi condenado a mais de 120 anos de
prisão. Os advogados alegaram que o cliente foi influenciado pelo
vídeo game de tiro Duke Nukem tão esquizofrênico quanto o
personagem de Edward Norton, Jack, que contracena com Brad Pitt,
Tyler, em Clube da Luta.
23
6 O FILHO DO PUBLICITÁRIO BARRADO NO HOMEMARANHA
Sempre gostei dos posteres de filmes e aquele que dois
funcionários desenrolavam para afixar no painel do corredor principal
era, especialmente, um dos mais cobiçados pelos colecionadores de
cartazes de cinema. A figura do SpiderMan, o herói mais popular dos
quadrinhos da Marvel, paira grudado no vidro de um prédio
inspirado no Word Trade Center com Manhattan abaixo dele. Um
frio na barriga, para quem tem medo de altura, pensei. Aprovei o
painel e voltei à minha sala, com uma sensação estranha.
Alguma coisa me incomodava no quadro e eu não sabia o que
era. Só me dei conta quando, sentado à mesa, reli a circular da
diretoria sobre os inúmeros aborrecimentos que os Multiplex estavam
tendo por causa da classificação da censura, especialmente, às
crianças. Os juízes não estavam permitindo quebragalhos. Se a
classificação era para maiores de 14 anos, les petit não entravam
nem acompanhados dos pais. A atriz Alessandra Negrini e a sobrinha
de 10 anos já haviam sido barradas na porta de um Multiplex do Rio
de Janeiro e o Homem Aranha herói das crianças de qualquer idade
estava proibido para menores de 12 anos.
x
Os dias de estreia ainda me davam frio na barriga. Mas, nas
duas últimas semanas, as crianças estavam sendo barradas a pencas.
O Júnior me ajudava na contenção dos pais inconformados:
Mas como pode? Meu filho compra gibi do Homem Aranha nas
bancas. Assiste na televisão. Tem a coleção inteira, por que não pode
assistir? Queria saber a mãe, enquanto eu e o pequeno Júnior nos
escudávamos na lei parar barrar a garotada.
24
Ninguém entendia a classificação etária. Havia uma censura
disfarçada. Um resquício da Ditadura esquecido em algum escaninho
do ministério da Justiça, pensei.
Eu nem havia nascido, quando o HomemAranha ganhou seu
primeiro quadrinho. Desde da sua primeira aparição, em 1962, o nerd
órfão Peter Parker é idolatrado pelas crianças e adultos de todo o
mundo, justamente, pela habilidade do superherói viajar pela cidade
pendurado em teias na luta contra a vilania. Mas, aqui no Brasil,
algum burocrata que visionou o filme achou que as crianças
pudessem ficar tentadas a se jogar dos altos dos prédios penduradas
em teias de aranha caseiras. A censura não sabia como a criançada
iria reagir. Os adultos já tiveram medo real da projeção, lembrei da
história do cinema.
Em 1896, quando os irmãos Lumière fizeram a primeira
exibição pública comercial do filme de sessenta segundos
L'Arrivée d'un train à La Ciotat (A chegada de um trem em La Ciotat)
as pessoas saíram correndo para fugir da locomotiva que se
aproximava da tela. Curioso, me divertia sozinho com meus
pensamentos, quando fui interrompido por um cliente.
Você é o gerente? Grudou na minha fuça um pai careca,
magro, muito bravo, suando. Encostou ao pé do ouvido e falou:
Gerente é o seguinte, hoje é o dia d’eu sair com meu filho.
Sou separado, ô meu! O menino está frustrado por sua causa...
Eu sei, sinto muito, mas não posso fazer nada, respondi,
impávido, tentando passar a maior frieza possível. Cada qual com
seus problemas, encarnei o personagem gerente durão.
Eu vou quebrar a tua cara, reagiu o pai careca..
Quer quebrar, é?! Aqui mesmo no Cinema? Na frente do seu
filho? E continuei Então é o seguinte, me espera depois das cinco e
meia no estacionamento. É quando largo daqui, hoje. Lógico que não
contava que ele fosse, porque eu não iria também.
A discussão foi interrompida pelo rádio.
25
Qrrr Rubens, telefone pra você, falou o gerente Sênior,
Roberto, a quem eu havia passado a tarefa de conferir as planilhas.
No caminho para a sala da gerência, pensava se iria precisar
reforçar a segurança para aqueles dias do spiderman.
A regra de ouro da casa de não envolver a polícia havia sido
quebrada várias vezes. Mas talvez fosse inevitável a presença de
policiais para que a classificação etária fosse respeitada. Atendi ao
telefone.
Rubens, me chamou do outro lado da linha a voz
incorruptível do diretorgeral. Rubens é o seguinte, antes da
primeira sessão do HomemAranha você vai passar um convidado
VIP: o publicitário Nizan Guanaes, que vai com o filho, menor de 12
assistir Homem Aranha. Você vai passar os dois. Entendeu?
A Lei! Ora a Lei. Era o paradoxo Multiplex. Nenhuma sessão
era proibida para os diretores e seus convidados.
Apesar da própria diretoria ter circulado um comunicado
ameaçando demitir o funcionário que infringisse a lei, não era
incomum a diretoria abrir exceções para espectadores renomados, o
problema era, no caso, o seu acompanhante explosivo: o filho menor
de 12 anos.
Mas não vai dar certo, diretor. A porta do cinema já tem uma
fila gigante, as pessoas vão vêlos chegar, adverti.
Eu confio em você, Rubens, para resolver este problema. Clic.
Bem, nunca seria chamado de vilão por levar uma criança para
assistir um filme, ironizei. Vamos lá, pensei, tentando arquitetar
como eles entrariam na sala. Ocasionalmente, ingressava os famosos
pela saída, pela porta dos fundos.
Mas hoje o cinema está tomado e o clima, tenso, anotei
mentalmente. Teria que ser pela porta por onde entra o staff, atrás
dos caixas. Na frente de todo mundo. Aquela porta dava acesso ao
corredor central. Se chegassem no horário, daria certo.
Havia uma repulsa da opinião pública em relação à essa
26
proibição. As críticas estavam em todos os jornais. O ministro da
justiça, na época, Miguel Reale Jr, recebia apelos com fotografias de
crianças fantasiadas de HomemAranha. A situação beirava o ridículo.
Não seria nada fácil enfrentar a segunda semana de contenção
daquela multidão fanática por um dos mais queridos heróis da
Marvel.
Bem, não havia tempo para digressões. Sai da pequena
gerência direto para encontrar Júnior que, na entrada do hall,
acompanhava tudo e me mantinha informado sobre o trabalho dos
encarregados das bilheterias, portaria e bomboniere.
Junior, vão entrar dois VIP’s ai pela lateral. Falei, medindo a
reação dele.
Eles vão demorar? Olha aí fora, isto aqui já está lotado de
gente. E daqui a uma hora, quando começarmos a vender os
ingressos, vai estar um inferno. Ele me falou, olhando com cara de
que farejou problemas.
É sabichão, eu espero que não.
x
A visão profética de Júnior se realizara. Estavam ali, diante dos
meus olhos, perto de duas mil pessoas. A maioria, em frente a
bateria de caixas, disputava os ingressos para as próximas sessões.
Uma fila de quinhentas pessoas já estava formada na parede
que dá acesso à portaria. Eram o donos dos tickets da primeira
sessão que começaria em meia hora. Mais dez minutos e seriam os
primeiros passageiros a embarcar nos efeitos especiais da luta do
Spiderman contra o Duende Verde. É sensacional. Eu mesmo traria
meu filho para assisitir, se ele não fosse um bebê, sorri amarelo, no
mesmo instante em que percebo a figura do Nizan vindo de fora da
sala, do lado das escadas rolantes. Chegava meio esbaforido de mãos
dadas com o filho. Me antecipei à entrada deles, com discrição,
27
avancei por trás dos caixas deixando que eles me vissem. Os
cumprimentei com a cabeça. Eles me viram!
Venham por aqui, disse. Abrindo um pequeno portãozinho na
lateral dos caixas. Pedi que me seguissem por trás das bilheterias,
até a porta por onde recolhemos o troco. Deu certo! Ninguém os
notou, comemorei. Atravessamos uma sala e saímos no meio
corredor principal. Agora é só leválos para a sala. Mas...mas ... não!
Que porra é essa? Quase falei em voz alta, exaltado, quando olho
para trás e vejo que Nizan não me seguia mais: deixouse apanhar
pela pipoca.
Maldita bomboniere com balcões abertos para os dois lados!
Pensei. Os dois ficaram completamente expostos para a multidão de
pessoas que, do lado de fora, esperavam sua vez para comprar
pipoca e refrigerante.
Naqueles meses de 2002, Nizan era notícia. O publicitário fazia
a campanha de Serra contra Lula. As pessoas do outro lado da
bomboniere o reconheceram e tentavam supor a idade do seu guri.
Não deu outra, os apupos chamaram a atenção das primeiras
pessoas da fila. Curiosas para saber o que se passava, inclinaram
seus corpos sobre as correntes e nos flagraram no imenso corredor
vazio: fomos pegos. Droga!
Você já enfrentou os donos dos primeiros lugares da fila?
Aqueles que chegam duas horas antes do cinema abrir? E que
passam o tempo dedurando os penetras? Desmoraliza a firma,
pensei, perplexo com o cenário que ebulia com explosões dos
humores da massa.
O porteiro, quando meu viu, começou a recolher os ingressos.
Irritadas, as pessoas entraram no corredor em direção à sala de
exibição. Antes que chegassem até nós, conduzi Nizan e seu filho e
os acomodei nas poltronas. Agíamos como fugitivos sob vaias que
começaram tímidas, mas logo se transformaram em protestos
públicos indignados em alto e bom som.
28
Olha lá, você viu o Nizan com o filho dele? Apontou uma
mulher.
Eu duvido que aquele garoto tenha doze anos, completou o
namorado.
Ei! Gerente de merda! Você pediu documento para o menino?
Gritou um homem que não pude ver quem foi.
Voltei depressa para o hall das bilheterias, onde o clima estava
incendiário.
Vamos invadir esta droga de cinema! Gritavam. As vozes
vinham das enormes filas. Corri para minha sala e retornei o
telefonema do diretorgeral.
Diretor é o Rubens, o negócio é o seguinte, o VIP que senhor
convidou... A situação ficou confusa. Os viram entrando na sala.
Querem invadir o cinema.
Rubens.... a voz emudeceu do outro lado da linha.
A polícia vai ter que ser envolvida. Vai ficar pior a situação... a
imprensa.. Enfim, vai ser ruim para a imagem Multiplex. Ops...
Palavras que nenhum diretor geral quer ver vinculada ao seu
currículo.
Bem, Rubens, se a situação está assim tão fora de controle
como você diz, faça o que tenha que fazer. Clic.
Com carta branca, não tive outra opção senão a corrigir meu
pecado original. Voltei à sala, onde já estavam instalados pai, filho e
pipocas gigantes e lhes falei:
Nizan, desculpe, mas vocês vão ter que sair. Aqui não é
mais seguro, falei. Enquanto os convencia, gritos ameaçadores
penetravam a sala pela porta que ainda estava aberta recebendo os
espectadores da primeira sessão.
Olha aí os protegidos do governo! Disse alguém. Nizan
escutou, mas não se abateu.
Vamos, eu conheço isso. Só vai piorar, insisti, olhando firme
para o publicitário.
29
Que nada! Me deixa aqui. Enquanto Nizan retrucava, os
primeiros da fila, não me perdoaram:
Como que é? Gerente filho da puta, esses aí são os seus
protegidos? Xiii!. Caiu o nível. É nesta hora que o gerente de cinema
se sente juiz de futebol, pensei.
Nizan, ordenei. Você e seu filho de dez anos não podem
mais ficar na sala, sinto muito.
Você está se metendo com a pessoa errada. Você não sabe
com quem esta falando. Eu escutei novamente a frase clichê, desta
vez, emitida por uma das maiores celebridades da criação
publicitária.
Ele saiu reclamando, sob vaias e aplausos de quinhentas
pessoas. Eu me recolhi à minha sala, completamente, extenuado
como Peter Parker depois da sua primeira surra.
X
Uma semana depois, o secretário nacional de Justiça, João
Benedicto de Azevedo Marques, declarou que “o HomemAranha é
um personagem do imaginário das crianças, um herói do bem que
luta contra o mal. Razão pela qual não há porque proibir a sua
exibição para menores de 12 anos", classificando o filme como livre
para todas as idades, a partir daquela data.
Foi uma alegria para os cofres da distribuidora Columbia Picture
que nos Estados Unidos já tinha batido recorde de faturamento o
SpiderMan. O longa entrou para história como a primeira produção
do cinema a arrecadar mais de 100 milhões de dólares no final de
semana de estreia.
30
7 QUANDO O GAY DO CARANDIRU NÃO PÔDE FUMAR
A Columbia Picture não economizou dinheiro na préestreia de
Carandiru, filme dirigido pelo argentino, naturalizado brasileiro,
Hector Babenco, que, em 2003, já era consagrado pelo premiado
longa Pixote.
Baseado no bestseller Estação Carandiru do Doutor Dráuzio
Varella, o filme era sucesso certo. O médico testemunhou os horrores
da Casa de Detenção paulista, nos anos 90, quando dava plantão
na enfermaria, cuidando dos presos com HIV.
Exatos 11 anos após o massacre dos “111 presos indefesos”
como Caetano Veloso eternizou na canção Haiti recebi a circular da
direção que todas as nove salas da meninadosolhos do Multiplex, do
Shopping Jardim Sul, estavam reservadas para 2 mil convidados.
Nove e mais dois igual a onze. Droga. Odeio numerologia, pensei.
x
Era segunda feira, dia de folga de 11 pessoas do staff,
principalmente dos bilheteiros que tinham trabalhado no final de
semana. Tudo bem, me confortei, já que não haveria venda de
bilhetes. Era um evento para convidados. Um pequeno desfrute do
glamour da indústria cinematográfica, pensei.
Todos chegavam ao cinema exibiam seus convites como
troféus. Entre eles, políticos, juízes e promotores de justiça reluziam
de felicidade por estarem ali, entre atores, técnicos e produtores do
filme.
Mas para mim, gerente de cinema, todo cuidado é pouco.
31
Qualquer menção negativa sobre o evento num grande jornal paulista
seria fatal. Posso dizer byebye ao emprego, pensei.
Felizmente, nestes momentos, a equipe ficava focada. Éramos
os heróis da noite. Unidos como Brad Pitt, George Clooney, Matt
Damon e os outros em Onze homens e um segredo, nós tínhamos um
plano que não poderia dar errado: garantir a projeção em todas as
salas ao mesmo tempo, anotei na mente.
A operação seria controlada do começo ao fim. Era uma boa
adrenalina. Trouxe projecionistas de outras unidades do Multiplex.
Todos os gerentes trabalhariam em jornada dupla. A última sessão
do dia aberta ao público acabou às 20hs.
Eram 20h30. Comecei a fazer meu circuito de checagem: como
previsto, o hall já estava lotado de convidados. Todos prontos para
atacar a bomboniere. Sempre esta maldita bomboniere! Acreditem,
não existe, em nenhum cinema Multiplex ou no concorrente
Cinemark, lojinha de doces e pipocas que dê conta de servir a duas
mil pessoas, simultaneamente.
A rotina de atender ao cliente, fazer o troco, estourar pipoca,
repor embalagens, baldes, copos e xarope de refrigerantes toma
tempo. Nas melhores performances chegamos a vender para
setecentas pessoas por hora, às vezes, para mil num mutirão de
funcionários que ficaram aturdidos pela minha expertise de chef em
“mise en place”.
Se a venda para milhares é difícil, a distribuição gratuita é mais
complicada ainda. Para evitar chilique de VIP’s, começamos cedo
estocando pipoca em pequenos sacos e enchendo copos de plásticos
com refrigerantes que, agora, estavam sendo distribuídos à medida
que as pessoas embarcavam nas salas.
Aliás, esse cheiro da pipoca com manteiga me enjoa, pensei,
enquanto me afastava em direção à salas de projeção. Atravessei
com discrição aquela multidão que se esforçava em aparentar
modéstia. Mas eu sabia que ali estavam centenas de figurantes e
32
atores. Alguns deles imortalizados no poster de divulgação do filme
em que aparecem submissos e nus, sentados no pátio da Casa de
Detenção. Um retrato fiel do massacre, quando foi transmitido, ao
vivo, pelas emissoras de TV, lembrei ao olhar o cartaz afixado no
painel do corredor central.
O filme era um marco do cinema nacional. Demorou três anos
para ser rodado e usou oito mil intérpretes. Ainda bem que não
vieram todos, respirei aliviado. Não teria como atendêlos, brinquei
comigo mesmo.
As filas já estavam organizadas por sala. Na principal,
entrariam os figurões do filme. Lá, haverá discursos, distribuição de
brindes e estarão todos aqueles que emprestaram o nome para o
letreiro final, dos créditos, estimei ao começar a rotina de checagem.
Pelo rádio chamei o projecionista.
Qrr. Mané esta em QAP? Qrr.
Qrr. Positivo. Estamos prontos aqui em todas as salas, se
antecipou Mané, para me tranquilizar. Qrr
Qrr. Ótimo, Mané, às 21hs vamos começar todas as
projeções simultaneamente. Você vai supervisionar as salas. A boa
notícia é que se der tudo certo, vocês vão sair mais cedo, hoje.
Normalmente, saíam depois da meianoite. Mas hoje era dia de gala.
Faltavam quinze minutos para as 9h da noite. A tensão subia. A
maioria dos convidados já estava aconchegada nas salas. Mas muitos
ainda esperavam impacientes no corredor e no saguão, apreensivos,
a chegada das estrelas do filme. Enquanto seguia para as salas de
projeção, vi de longe, a executiva da distribuidora, perfeita num
tubinho preto, numa roda de amigas.
Ele prometeu que vinha, falava a executiva da Columbia
Picture às amigas. Deduzi que falavam sobre a possível vinda do
Babenco. Pensei em cumprimentála, mas eu não tinha tempo.
Vou começar às 21hs em ponto, memorizei. A menos que
alguém da distribuidora ou da UCI peça para eu segurar. A gigante
33
Columbia Pictures bancava tudo aquilo, analisei, enquanto tomava o
caminho da ala que liga todas as salas de projeção e que pouca gente
conhece. É um corredor que passa sobre as portas de entrada e
ninguém o percebe. Quase um caminho secreto entre as “casamatas”
com seu respectivo projetor de filmes, carregado e pronto para ser
disparado.
Sempre atrasa, calculei. Os discursos dos diretores e
produtores e brindes, às vezes, se estendem além do previsto. Mas
duvido que Babenco venha, apostei comigo mesmo.
Estava combinado que a Ângela me daria “o vai”, o sinal, para
iniciar a exibição simultânea. Eu frisei que toleraria, no máximo, 15
min de atraso. A experiência já havia me ensinado que após 20 min
de demora, as pessoas ficam impacientes demais para esperar dentro
das salas e começam a perturbar os corredores. Não quero confusão.
Eram nove horas em ponto. Neste momento, o rádio chama.
Qrr. Rubens, tá na escuta? Qrr. Perguntou a executiva da
Columbia Pictures.
Qrr. Sim, respondi, emendando a questão: São 9hs,
podemos começar? Qrr.
Qrr. Não. Eu te chamei, justamente, para isso. Me dê mais
dez minutos, por favor. Qrr. Ela pediu.
Qrr. Tudo bem querida, mas às 9h15, eu começo. Qrr
Qrr. Sei, mas...espera ai... acho que é ele quem está
chegando.. espera que já te chamo. Qrr. Falou a executiva desligando
o rádio.
Não sabia ao certo quem chegava e, também, não tinha tempo.
Percorri o corredor das salas de exibição e desejei boa sorte a todos
que estavam de prontidão para disparar os projetores.
Passavam quinze minutos das nove. Estava na hora. E ainda
nada do “ vai” da Ângela.
Pela abertura da sala de projeção, onde me encontrava, tinha
uma visão parcial plateia. Ouvia os aplausos e sabia que os
34
produtores do filme estavam agitados, fora de seus assentos. Droga,
o que é que ta segurando? Pensei em voz alta.
Decidi chamar a executiva pelo rádio.
Qrr... Hei, Columbia, brinquei ao chamála. Está na escuta?...
Qrr.
Silêncio... Nenhuma resposta. Em vez da voz dela, surge pela
rádio a voz do Osvaldo, o segurança:
Qrr... Rubens está em Q A P?... qrr.
Qrr... Agora não dá pra falar Osvaldo, estou ocupado...qrr
Voltei a chamar a executiva pelo rádio:
Qrr Columbia, está na escuta?..qrr. Insisti.
Qrr Columbia, eu vou apagar as luzes e começar a rodar o
filme... qrr.
Falei sem ter certeza se ela me ouvia. Nada, só estática: qrrrr.
Eram 9h16. Chega de esperar, decidi.
Mané, pode apagar as luzes e começar o filme, ordenei e em
seguida desci.
Qrr... Rubens, chamou, novamente, Osvaldo. Você precisa
vir ao Q T H, aqui no Hall. Tem um Q S O em andamento. Qrr.
Qrr. Osvaldo, espera um pouco. Faz um Q T X, falei e me
pus a andar para o Hall.
Conversar por rádio gera dois problemas óbvios de
comunicação. Primeiro, a dificuldade de ouvir com clareza o que diz
seu interlocutor, em meio ao ambiente sonoro, prejudicado pelas
vozes e ruídos de estática e, segundo, o entendimento deste ridículo
código dos Q´s que foi inventado pela marinha britânica no começo
do século passado, justamente para suplantar as dificuldades
radiofônicas, mas que, na boca dos funcionários das empresas
particulares de segurança, viraram uma sopa de letras com uma
vaga proximidade do código Q original. De todo modo, o que Osvaldo
me falou é que eu deveria ir ao local (Q T H) porque havia uma
ocorrência (Q S O) e eu pedi um tempo (Q T X). Mas meu problema
35
era saber porque a Columbia não falava comigo. Quando desço ao
corredor principal, a encontro esbaforida correndo ao meu encontro.
Rubens, você começou? Ele chegou, mas sumiu?
Antes que pudesse falar com ela. Osvaldo insistiu pelo rádio e
foi terminativo:
Qrr Rubens, você precisa vir ao Q T H. É urgente... qrrr... o
cara que é o gay ... filme... qrr... ta aqui fumando... qrr.... quer
apagar...qrr.
Com o som do rádio entrecortado pela estática, não consegui
entender nada do que o segurança me falava, ainda mais com a
Columbia buzinando que alguém tinha sumido.
Rubens, ele não está na sala, você tinha que esperar para
começar a sessão, disse a executiva.
Querida, eu te avisei que começaria às 9h15 e agora já é
tarde: começou. Não tenho culpa que o Babenco desapareceu.
Não, não. O Babenco nem veio. É o Rodrigo Santoro. Ele
chegou, deveria estar na sala, mas sumiu.
Agora fazia sentido o que Osvaldo tentava me dizer...
Gay...filme? Putz.. Entendi e sai apressado para encontrar o
segurança, deixando a executiva da Columbia falando sozinha.
Os seguranças, geralmente, são aculturados em termos de
filmes. Não poderia cobrar que soubessem o nome dos atores. Mas
assim que cheguei ao canto do Hall, avistei Osvaldo, constrangido,
tentando convencer Rodrigo Santoro de que não era permitido fumar
no cinema. Rapidamente me apresentei:
Santoro, como vai? Sou o gerente do cinema, disse,
piscando para Osvaldo, numa linguagem em que, mutuamente, nos
entendíamos e que significava: deixa comigo que resolvo.
Que bom que você veio, disse Santoro, afetado. Estou
tentando explicar para seu funcionário que vou dar apenas uns
tragos....é um absurdo...
Santoro é o seguinte, o interrompi, secamente.
36
A executiva da Columbia Pictures, que fez um bom acordo
para te trazer à pré estreia, está descabelada atrás de você. E o
segurança tem razão: aqui você não pode fumar. E você estrela do
filme, no papel do travesti, Lady Di, não vai fazer esta grosseria com
o público que te aguarda.
Compelido pelos argumentos, um doce Santoro apagou o
cigarro e foi serelepe ao encontro da executiva que vinha correndo
atrás de mim.
Não falei para ele que o filme já havia começado e que, agora,
na escuridão, dificilmente, alguém o veria entrando na sala.
Mas no final da sessão poderia voltar a ser incensado pelos fãs.
Isto se aguentasse os 140 minutos restantes sem fumar, pensei.
8 EMBARCANDO CLANDESTINAMENTE SÍLVIO SANTOS PARA
ASSISTIR SHEREK, DUBLADO
Eu acompanhava Júnior fazendo a sangria do caixa. Na
verdade, esperava ele vir com o malote em minha direção.
Enquanto ele recolhia o dinheiro, imitava Sílvio Santos:
Aái, agoragoragora, quem quer dinheiiiro, Lombardi?!
Está cada vez mais parecido com ele, disse para Júnior.
Eu não quero me parecer nada com ele, neste momento,
falou, à medida que nos colocávamos a caminho do sala da gerência.
Ah, sei. Acredito, Júnior, que não gostaria de ter a fama e o
dinheiro dele: o mais famoso apresentador de TV do Brasil.
Não, Rubão, é sério, circula uma história de sequestro da filha
dele. Meu irmão é office boy na redação da TV Cultura. Vazou da
polícia. Toda a imprensa já sabe, só não pode divulgar.
Sério, Júnior? Que horrível! Comentei, enquanto abria o cofre
para guardar o dinheiro.
37
A bilheteria está forte, disse Júnior, ao ver os maços de
cédulas.
Esse Shrek vai arrecadar bem, falei enquanto confrontava os
pacotes de dinheiro com o venda. Aposto com você que vai ser um
sucesso. Eu vim com meu filho e ele achou muito engraçado
aparecerem, no mesmo desenho, Cinderela, Branca de Neve,
Princesa, Dragão, Burro e um ogro verde com a voz do Bussunda, o
humorista do Casseta e Planeta. Achei que ficou muito legal essa
dublagem. Não tão boa quanto sua imitação do Sílvio Santos,
brinquei, enquanto Júnior saía da sala.
Tranquei o dinheiro e fechei a porta do cofre. Desabei o corpo
na cadeira e temia relaxar e pegar no sono, naquele fim de tarde. De
repente soa o telefone:
ring, ring, ring
Alô, é do Cinema do Jardim Sul, Sr Rubens...?
Sim, pois não.
Aquela voz era do Sílvio Santos! Esse Júnior, pensei, se ele
acha que vai passar este trote em mim está muito enganado. Paguei
para ver e dei corda para o interlocutor da outro lado da linha.
Fala ai seu Sílvio! disse, meio insolente
Reconheceu minha voz, né verdade? Arrái, não tem mesmo
como disfarçar, ih ihh...
Ô ô Júnior..... quando ameacei interromper, a voz foi por
demais inquestionável.
Arrái, querido, é por isso mesmo que eu preciso contar com
sua discrição. Todo mundo me conhece, não é mesmo? E imagina
você, eu não consigo assistir a um filme em paz, não é verdade? Ih
Íhh..
Minha última porção de dúvida se esvaiu, quando o próprio
Júnior em pessoa entrou na sala e acenou que queria falar comigo.
Pedi que esperasse e dei de costas para ele, enquanto seguia
ouvindo o dono do SBT. De repente, quase fui traído pela memória ao
38
lembrar da história do sequestro, mas permaneci firme.
Senhor Sílvio, por favor, o que posso fazer pelo senhor?
Perguntei.
Aái Rubens, não precisa me chamar de senhor. Eu
estou te procurando por indicação do seu diretor de Marketing,
o Aloísio, sabe? Acontece o seguinte, eu gostaria de assistir a
este desenho do ogro, o Shrek. O dublado, ouviu? Mas gostaria
que você me preparasse um acesso discreto, longe do assédio
do público. Você sabe como é? Eu não consigo andar no meio
das pessoas sem ser interrompido.
Eu entendo. Quando o senhor, digo, quando você quer vir?
Perguntei.
Bem, para ser franco, eu já estou a caminho. Se você
providenciar meu acesso, estarei aí em vinte minutos.
Fique tranquilo, seo Sílvio. Vou preparar seu embarque, afirmei.
Obrigado, obrigado, Rubens.
Clic.
Desliguei o telefone, peguei o Rádio e passei instruções ao meu
pessoal e expliquei aos seguranças do Shopping que uma celebridade
chegaria logo. Eles estavam acostumados. Afinal estávamos na joia
do Multiplex: o Jardim Sul.
x
Cerca de trinta minutos depois, quase no início da sessão
dublada, o rádio chama.
Qrrr Rubens? ..
Qrr... Fala quem chamou, respondi..
Qrr... Acho que sua celebridade chegou...
Qrr. Ok. Obrigado.
Corri até o estacionamento, para recebêlo. Lá estava ele,
saindo do seu Lincoln verde. Para minha surpresa, o mestre da
comunicação dirigia ele próprio seu veículo. No chauffeur, pensei. Ele
se aproxima de mim, radiante, com o magnetismo exibido em slow
39
motion de cenas de filmes românticos.
Rubens? Ele perguntou ao se apresentar.
Sim, por aqui seo Sílvio, disse apontando o caminho.
As poucas pessoas que nos viram ficaram atônitas,
hipnotizadas pela experiência de ver em carne e osso alguém com
quem compartilham seus domingos.
Entrou pela saída da sala, o conduzi ainda no escuro a uma das
cadeiras do fundo e providenciei pipoca e refrigerante. Pronto. Ele
estava instalado, e eu, seguro. Passou clandestino as duas horas na
sala e saiu, no final, após todo mundo.
x
No dia seguinte, contava para o Júnior sobre a quase gafe que
cometi ao atender o verdadeiro Sílvio Santos, pensando ser um trote.
Júnior, cheguei a pensar que fosse você querendo passar
um trote.
Aái.. agoragoragora, brincou ele, repetindo um dos
mais famosos bordões do apresentador e reproduzido por 10
em cada 10 imitadores.
Será mesmo verdade, a história do sequestro? Perguntei.
Ele tinha mesmo uma expressão pesada.. apesar do sorriso largo.
ring, ring
Alô, Multiplex, Rubens, pois não.
Alô, seu Rubens é Daniela da bilheteria. Tem um senhor aqui
que insiste em vêlo.
Estou indo.
Clic
Chego ao saguão e dou de cara com um funcionário do Sílvio
Santos que me entrega um vinho e um cartão de agradecimento
manuscrito de punho próprio pelo dono do segundo maior grupo de
televisão do país. Cartão que guardo até hoje como um pequeno
troféu, pela minha trajetória como gerente de cinema.
X
40
Semanas depois, todos nós acompanhamos pelos canais de
televisão, a libertação da filha de Sílvio Santos. E, logo em seguida, a
prisão do sequestrador que dias depois foi morto num episódio tão
estranho como roteiro de filme. Até hoje me pergunto porque a
urgência de Sílvio Santos dele em entrar naquela sala escura para
assistir Shrek dublado em plena crise familiar. Para relaxar, né
mesmo? Ih íhh. Aái.
9 O JET LEE DO MULTIPLEX ANÁLIA FRANCO
A arquitetura do Shopping Anália Franco é de se admirar,
mesmo. Fitava atônito olhando aquele átrio de vidros climatizados,
por onde a luz iluminava todo o interior de prédio, refletindose nas
colunas metalizadas. Bonito, pensei enquanto me dirigia para dentro
da sala de cinema.
No caminho fui abordado pela Fabíola, gerente júnior do
Multiplex Anália Franco.
Rubens, as costureiras já chegaram faz uma hora, estão na
sala seis, me avisou.
Ah é? Que bom, vou pra lá.
Vou com você, decidiu Fabíola.
Tudo bem! Depois eu passo na gerência.
Fabíola era uma garota aplicada. E se vestia como tal, tipo:
calça apertada, cabelo preso, camisa social de mangas arregaças e
óculos de aro preto. Ainda nova, já havia feito intercâmbio na Disney
e tinha uma ávida curiosidade por tudo que envolvia cinema.
Você já viu colocarem a tela, alguma vez? Perguntou.
Não, nunca vi.
Aquele era o sétimo empreendimento da Multiplex em São
41
Paulo. Feito num shopping de alto padrão para os novos ricos de um
antigo bairro dormitório da Zona Leste, da capital paulista.
O que você está achando do cinema? Gosta de como esta
ficando? Perguntei.
Rubens, é coisa de primeiro mundo, ta divino, frisou Fabíola.
Como na Flórida, não é? Brinquei.
Quando entramos na sala, as costureiras já haviam prendido
um terço da tela. Eram três, uma das mulheres estava firme sobre
uma escada de abrir.
Tudo bem? Sou o Rubens, me apresentei.
Tudo bem, me responderam sem tirar os olhos das
habilidosas agulhas. Elas costuravam o tecido com ele em pé, para
ficar esticado, lisinho. A enorme faixa de tecido branco saía de uma
caixa de papelão. Me aproximei e cheguei a tocar naquele pano alvo,
acetinado, fruto de um banho químico especial para refletir melhor a
luz.
Não toque, por favor, disse a mulher que estava trepada na
escada, me fuzilando com os olhos.
Ops! Desculpe é que é um branco impressionante.
Este tecido não pode ser limpo, por isso não pode ser tocado.
Ela falou num tom como se fosse um mantra. De fato, rastros de
limpeza ficam aparentes quando se projeta o filme. Como não queria
ser suspeito de macular aquele candura, me afastei rapidamente,
avisandoas que a primeira sessão começaria dali a oito horas.
Será que dá tempo de esticar as telas de todas salas?
Perguntei.
Humpf! Desdenhou a mais velha delas.
De volta ao corredor, Cláudia, meu braço direito, me adiantou
que tudo estava bem na bomboniere.
Você sabe, né, Rubens, que hoje vem a matriz em peso para
a inauguração?! A diretoria todinha estará aqui. Talvez até o
presidente do grupo, disse Cláudia.
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Duvido. De Londres, deve vir só o diretor de marketing, Mr.
Taylor, acompanhado dos seus convidados; os distribuidores dos
grandes estúdios.
Pode ser, mas de todo modo, vem o pessoal do Rio de
Janeiro.
Os diretores do Rio aproveitam para transformar essas inaugurações
em baladas. Business. Hoje é apenas uma prévia, um piloto. O Day
Family, como dizem, é uma préinauguração aos funcionários e seus
parentes. Amanhã é que seria a abertura ao público.
X
Sete horas da noite. As famílias não paravam de chegar.
Desfilando umas após outras.
Rubens, esta é minha irmã e minha mãe, me apresentou
Maria, a gracinha da bomboniere. A mãe até que não é mal, pensei.
Sejam bemvindos, respondi e me pus a caminho da minha
sala.
No Family Day é tudo de graça pipoca, refrigerante e sessão
para os funcionários que ganham salário mínimo e ralam 40 horas
semanais. Mas ali, todos eles estavam orgulhosos de apresentar o
Multiplex para seus parentes. O clima está bom.
Na minha sala, chequei o material e vi se tudo estava de acordo
com o manual de operações da Cia. Eu não queria vacilar com o
diretor geral da empresa aqui.
x
O diretor geral Paulo chegou do Rio, exatamente, uma hora
antes dos projetores entrarem em ação. Me reconheceu ao entrar
sem cerimônia em minha sala. Puxava um carrinho de viagem e uma
pasta 007.
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Rubens, tá tudo bem? Como ficaram as telas? Paulo
perguntou, largando o corpo sobre a poltrona. Era um cara legal,
meio empreendedor e selfmade man. Já tinha produzido shows de
rock.
Você não quer ir ver com seus próprios olhos?
Saímos da sala.
Quer um refrigerante? Ofereci.
Aceito uma água.
Pegamos algo para beber e fomos vistoriar as telas de
magníficas dimensões e qualidade.
São excelentes as costureiras que mandou, Paulo, elogiei.
Eu sei, elas estão conosco desde o começo. E o Family Day,
tudo em ordem?
Tudo em ordem. O xarope de refrigerante chegou.. Tá tudo
certo.
X
O Family Day foi um sucesso. Me despedi dos diretores que
combinavam chegar até o bar do Shopping.
Vai lá pessoal. Eu preciso deixar a casa em ordem.
Aproveitem, disse ao apertar a mão do diretor geral. Invejava
os caras que iam beber, mas o cinema tinha que estar pronto
para a inauguração pública.
x
Ring, ring.
Tocou cedo o telefone em casa.
Alô Rubens, acho melhor você vir correndo pra cá. Era a
44
Fabíola. Você não vai acreditar. Os caras quebraram a porta da sua
sala.
Como é que é? Saltei da cama e enquanto vestia a roupa,
tentava descobrir o que tinha acontecido.
Os caras, como assim, Fabíola?
O Paulo, o Sérgio. Os caras chutaram a porta até quebrar.
x
O batente havia sido arrancado e a porta ainda estava
pendurada por uma das dobradiças. Um dos diretores quebrou o pé.
A câmera de segurança gravou os três executivos da empresa se
revezando em voadoras contra a porta da gerência. Tudo para
recuperar a bagagem do diretor geral que ficara presa dentro da sala.
Na minha mesa havia um bilhete manuscrito:
Rubens, não quisemos te incomodar de madrugada.
Ainda hoje, mando um pessoal para consertar a porta.
Os rapazes acharam que era fácil como nos filmes de Jet
Li, mas se machucaram. Sérgio teve que ir engessar o pé.
Abraço
P.
Realmente, na tela super branca é tudo mais fácil. Mas na vida
real, você quebra a cara, pensei, enquanto me sentava à mesa e
disparava um telefonema para a faxina vir arrumar aquela bagunça.
Ficamos eu e as meninas em silêncio. Ninguém tocou no
assunto a respeito das normas obrigatórias do manual de operações
da empresa. Um dos artigos é bem expressivo: “mantenha trancada
a sala de gerência”. Mas considerando os chutes e pontapés dos
executivos, bem que podiam acrescentar mais um: verifique sempre
se os diretores não estão esquecendo nenhum pertence na sala antes
de sair.
45
10 UMA PISTOLA 7.65 NA SALA DE CINEMA
Entrei às pressas na sala que ainda estava escura, dei de cara
com a última cena do filme A Cilada: uma foto preto e branca
congelada na tela, com o letreiro THE END sobre Marie Matiko de
braços dados com Wesley Snipes que segura um guardachuva para
proteger o casal de um temporal, enquanto seguem para o final feliz
a caminho de um restaurante num vilarejo da França. Eu
acompanhava uma mulher rotunda e baixinha da faxina que queria
me mostrar o que encontrou entre as cadeiras do cinema. Era comum
as pessoas esquecerem de tudo, até mesmo camisinhas usadas. Mas
aquela senhorinha com cara de evangélica, não me chamaria para
mostrar isto, estimei.
O som da chuva da última cena se transformou num rap que
vinha das caixas de som, enquanto subiam os créditos. Snipes era o
agente secreto Neil Shaw numa inverossímil trama que o coloca como
bode expiratório de uma história de espionagem sinoamericana
cheia de clichês, tipo 007. Mas a ação é muito boa. Snipes estava no
auge da força física e simulava boas lutas.
A sala estava vazia, as luzes foram acesas e eu olhei para o vão
entre as poltronas e ela estava lá: uma arma dentro de um coldre
envolto numa pochete preta. Eu não era bom conhecedor de armas,
mas sabia que se tratava de uma pistola automática de uso restrito.
Um civil não pode carregar esta arma, pensei. O que fazer? A
sessão já teria reinício. Tinha pouco tempo para pensar.
Recolhi a arma pela pochete, evitando deixar minhas digitais
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naquilo que não tinha a menor idéia de onde teria vindo ou onde teria
sido usada. Quem trabalha em cinema, sempre fica desconfiado de
tudo.
Pode deixar Dona Maria, eu vou levar para a minha sala. Não
tem perigo, falei para tentar acalmála.
Tive medo dela disparar sozinha, se desculpou Dona Maria.
Recolhi o objeto junto ao corpo evitando os olhares das pessoas
que andavam pelo corredor a procura de suas salas. Em cinco
minutos seria liberada a próxima sessão do A Cilada.
Pelo peso, o pente estaria carregado de balas. Quem é o tipo de
gente que traz uma pistola automática e um, dois, três..contei...três
talões de cheque para dentro de uma sala de cinema? Perguntei a
mim mesmo.
Enfiei a pochete na gaveta e liguei para a segurança do
Shopping.
Alô, quem é o líder do turno? Perguntei mostrando uma falsa
familiaridade com a empresa privada de segurança.
É o líder quem ta falando. O Sampaio, pode falar.
Aqui é o Rubens, do Multiplex, tudo bem Sampaio? Ocorre o
seguinte: nós encontramos uma pistola automática dentro da sala e
eu, realmente, não sei o que fazer.
A que horas foi a ocorrência, senhor?
Foi agora mesmo. Acabamos de encontrar.
Segura ai, que vou até o QTH. Ok?
Ok, obrigado.
Desliguei o telefone. Avaliava se fiz certo em chamar a
segurança e não a própria polícia, mas a política da casa pedia
discrição. Sem polícia. O rádio chamou.
...Qrr Rubens, QAP?
Fala, Júnior. qrr...
Vem para portaria, urgente. qrrr...
Sai para o corredor e de longe, escutava os gritos de um
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homem. As pessoas olhavam todas na mesma direção evitando
revelar o constrangimento latente com os brados de um... agora
sim, o via por trás dos vidros um tipo rambo, 92 quilos, jaqueta de
couro preta e calças apertadas.
O negócio é o seguinte, eu vou entrar para procurar minha
pochete. Eu estava na sala 6, gritava o homem, enquanto tentava
forçar a entrada pelo porteiro, em meio a outros clientes que
estavam com o ingresso na mão esperando que ele desobstruísse a
passagem.
Pensei em chamálo para minha sala e entregarlhe a pochete,
mas se fosse uma cena de um assalto? Eu sozinho com ele na sala,
seria presa fácil.
Enquanto media mentalmente qual a abordagem correta,
chegaram junto comigo dois seguranças do Shopping em seus
uniformes pretos..
Calma, meu senhor, falei firme, olhando dentro dos olhos do
Rambo. Encontramos uma pochete. O senhor sabe falar o que
tinha..nela?... Quando ele sentiu nossa aproximação teve uma reação
automática.
O que é isto aqui? disse dando um salto para trás quase
assumindo uma posição de guarda e evitando ficar cercado por três
homens. Que bom que achou, eu só quero minhas coisas e vou
embora, falou olhando para mim.
Devolvo a arma pro cara? Pensava em como lidar com a
situação, quando ela saiu do controle.
O senhor tem documentos? Perguntoulhe Sampaio, líder da
segurança que foi imediatamente rechaçado por Rambo:
Você é da polícia para me medir documentos? Disse com dedo
em riste.
Ah, você quer que chame a polícia, então tá bom,
contraatacou Sampaio em ato contínuo chamando a Base da Polícia
Militar pelo Rádio.
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Qrr Copom... QSO em andamento no Multiplex do Shopping
Jardim Sul, suspeito quer invadir cinema..
Ai, ai, ai. Pronto, lá se foi minha discrição.
O tipo rambônico empurrou Sampaio que falava ao Rádio. O
segundo segurança interveio. O Rambo se esquivou e só não bateu
uma cara contra a outra por que não quis.
Calma! Todos, calma. Eu pedi. Meu amigo o negócio é o
seguinte. O que tinha na pochete? Perguntei
Você não viu? Você não falou que achou? Então você já viu.
Ta querendo me sacanear?
Não é nada disso. Se vou ter que entregar aquilo sobre o que
estamos falando, eu preciso ter certeza de que estou fazendo a coisa
certa.
O lance é o seguinte, ele se aproximou de mim e falou bem
baixo ao pé do ouvido. Eu tenho minha arma, lá. Meus talões de
cheque. Eu tive que soltar a pochete por causa da poltrona. Disse,
quase se desculpando.
Estávamos perto de nos entender, quando chegaram dois
policiais militares.
Pois não, qual o QSO? Perguntou o tenente olhando para o
Sampaio.
Tenente, o negócio é o seguinte, suspeito ai está armado,
respondeu Sampaio apontando para o Rambo.
O tenente balançou a cabeça para o Rambo. O senhor quem
é? Tem documentos?
Tenente, sou detetive particular, todos os meus pertences
foram esquecidos na sala dos cinema, inclusive meus documentos,
falou disparando um olhar de ódio para mim.
Tenente, sou o Rubens, gerente do cinema, disse me
apresentando. Por que não vamos todos para minha sala, conversar
49
com calma, enquanto pego os pertences que encontramos?
Consegui tirar aquela confusão dos olhares dos curiosos. O
Jardim Sul é frequentado por todo o tipo de celebridades e gente que
gosta de fazer uma fofoca em jornal. Caminhamos em silêncio para
minha sala. Eu ia à frente, ladeado pelo tenente, seguido pelo
Rambo, com o Sampaio na sua cola e os demais no final do cortejo.
Abri a porta da pequena sala e pedi que entrassem. Seguiram
meu gesto, o Tenente, Rambo e o, Sampaio. Pedi licença aos demais
e fechei a porta atrás de mim. Me esgueirei entre os homens que
estavam de pé naquele cubículo e pedi que sentassem. Sampaio
escolheu a poltrona, Rambo, a cadeira em frente à mesa e o Tenente
preferiu ficar de pé. Me acomodei em minha cadeira, abri a gaveta do
meio, retirei o pacote e o coloquei sobre a mesa. Lá estava ela, a
pistola. Achava que era uma 7.65, mas não tinha certeza, só sei que
era automática. Sem alma, como dizem.
Esta foi a pochete que encontramos, disse olhando para o
Tenente que de pronto perguntou ao Rambo.
O senhor tem porte de arma?
Permisso? Perguntou Rambo ao tenente indo com a mão em
direção à pochete.
Pega só os documentos, disse o tenente. Com a mão no seu
próprio revólver e com o coldre já aberto.
Ai, ai, ai, gelei.
Como profissional, usando a ponta dos dedos de uma única
mão, Rambo desliza o zíper da pochete e retira e entrega uma
carteira de detetive.
Tenente, meu nome é Zilmar Nascimento, eu estava em
trabalho para um cliente aqui no cinema que não posso revelar, por
segredo profissional. Mas o senhor pode checar minhas credenciais,
neste telefone.
Eu não vou ligar para ninguém, mas o senhor terá direito a
um telefonema na delegacia.
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Delegacia pra quê, interferi. Tenente, eu não poderei sair
daqui para ir a uma delegacia a esta hora. Porque não fazemos o
seguinte? Eu devolvo os pertences do senhor Zilmar que vai embora
para seu escritório e nós esquecemos tudo isto. Que tal, hein? Afinal
foi tudo um mal entendido. O detetive estava na sala do filme A
Cilada e acabou armando uma cilada para ele mesmo. Não é senhor
Zilmar? Falei provocando risos amarelos.
Mas detetive, o senhor tem porte para uma pistola automática
de uso restrito? Quis saber o tenente.
Tenente, o senhor sabe como é, não é? Eu já fui da casa,
quero dizer, não da polícia militar, mas da civil. Para esta aí, eu tenho
que fazer andar uma papelada, mas eu tenho porte...
Viram só? Interrompi. Está tudo certo, disse para aliviar a
carga sobre o detetive que não tinha autorização para carregar
aquela pistola e que poderia me arrastar para a delegacia. Olha só
Tenente, o senhor não quer vir com a família assistir A Cilada. Tenho
quatro ingressos aqui, para o senhor e seu colega virem com as
esposas. Disse, estendendo as mãos. Tome também esta cortesia de
pipoca e refrigerante. Sampaio ficou olhando, meio chateado.
Tenho também quatro para você Sampaio. Tome, também,
pipoca e refrigerante.
Pronto. Ficaram todos satisfeitos. O Zilmar Rambo se livrou da
prisão. O tenente ficou satisfeito em não ter que ir fazer um flagrante
na delegacia contra um detetive que deve conhecer uma porção de
advogados aqui do Morumbi. E, é claro...as cortesias demovem
homens frios. Sempre funcionam.
Sampaio também gostou. Depois que me despedi de todos, ele
ficou na porta da sala esticando os ingressos na minha frente e falou:
É isto ai senhor Rubens, precisou de mim é só chamar.
Valeu, Sampaio, disse dispensandolhe com um tapinha nas
costas e finalmente respirando aliviado daquela cena que poderia ter
virado um tiroteio dentro da minúscula sala. Muito próximo da
51
sequência da troca de tiros do bendito A Cilada.
Mas como digo sempre. Na tela, os agentes mortos sempre
voltam nos próximos filmes, a gente, não. Que trocadilho horrível,
este, pensei.
11 A LOIRA DO AXÉ
Era uma tarde de quarta feira. Havia acabado de cruzar o
corredor central e entrar em minha sala. Estava lendo o livro de
ocorrências quando o rádio me chamou.
Qrr . Rubens, venha à bilheteria. Tem um QRU em andamento.
Ai, ai, ai. Automaticamente lembrei que “QUE ERRE U” é o
pior dos códigos de rádio. Significa ocorrência urgente em
andamento. Droga, lá se vai a tranquilidade.
A caminho da bilheteria, vi um grupo de três pessoas se
desentendendo. Júnior tentava apaziguálos, mas eles queriam falar
somente com o gerente. Humpf, praguejei, como se eu tivesse os
poderes do Super Man.
Havia um senhor de porte distinto, adornado por um terno bem
cortado, azul. Deveria ter uns 50 anos de idade, pensei. À frente
dele, havia uma loira oxigenada com um corpão ajustado numa
apertada calça jeans. Tipo aquelas que derrubam as instituições.
Meu Deus, suspirei.
Quando me aproximei, ela tentava acalmar seu parceiro:
Calma, querido. Repetia ela para um negro jovem, vestido com
roupa da moda.
Demorei para entender o que se passava.
Esse cara aí gritava roubou minha carteira que acabei de
comprar, disse apontando para o senhor.
Não, ele está enganado, disse o distinto, me dirigindo o olhar
enquanto me juntava ao grupo.
52
Calma, senhores, por favor, pedi. O que houve?
É algum mal entendido, estava atrás dele na fila e ele me acusa
de ter furtado a carteira dele.
Hum... Furtado. Aquele palavra contava muita coisa sobre o
fino senhor. Quem sabe a diferença entre furtar e roubar, com
certeza trabalho com o Direito.
O Senhor é...?
Eu sou juiz da Vara Criminal de Santo Amaro.
Pronto, sempre pode piorar, pensei. Um caso envolvendo um juiz no
meu cinema não é nada bom.
E como o senhor deve saber, continuou o juiz, posso dar voz de
prisão, agora mesmo, por crimes contra a honra: calúnia,
difamação e injúria.
Enquanto conversava, Júnior me fazia todos os sinais possíveis
para chamar minha atenção. Na primeira oportunidade, ele cochichou
ao meu ouvido:
Rubens, essa é a dançarina de Axé Blond e o namorado é o
pagodeiro Thiaguinho.
Se há uma “falha” na minha vida de gerente de cinema, chef,
surfista e guitarrista nas horas vagas é a de que não entendo nada de
pagode e axé. Simplesmente, não registro os famosos da época.
Como sempre, procurei a discrição. Me dirigi ao cantor e falei:
Esse senhor que você está acusando é um Juiz Criminal.
Precisa ter muita certeza do que está falando, senão ele pode
te levar preso daqui.
Meus argumentos amoleceram a indignação do rapaz. Que não
tinha muita convicção de onde estava sua carteira. Uns ingressos e
pipocas de cortesia terminaram por encerrar o assunto. Ótimo. Voltei
à minha sala sem ter certeza se escrevia, ou não, aquela ocorrência
no livro.
x
No domingo seguinte, enquanto zapeava os canais de TV, vi a
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loira e o pagodeiro num programa de auditório. Eles falavam sobre
gafes e confessavam à apresentadora que naquela mesma semana
tinham cometido uma no Shopping Jardim Sul.
Estávamos tão excitados que esquecemos a carteira na
mesma loja onde a compramos.
Realmente, a excitação é sempre uma boa desculpa ao lado
daquela loira, sorri.
12 DELEGADO ENCIUMADO
Já havia algumas semanas que o Multiplex não emplacava um
Blockbuster. A criatividade dos grandes estúdios de Hollywood no
final na virada do milênio estava fadigada. As salas não lotavam
mais. O grande sucesso de 99 À espera de um milagre teve seu
momento, mas era longo e desgastante. Por isso, era um sábado com
pouco movimento.
Nada causava uma comoção. Exceto, por certos expectadores.
Acho que por ser uma sala de sonho coletivo, o cinema sempre atraí
os mais estranhos seres. “É um para raio de loucos”, pensei, quando
fui procurado por um delegado de polícia.
Pois não? Perguntei ao sujeito que com aquele paletó amassado
parecia que ter saído do antigo seriado Columbo.
Olha só, me falou exibindo sua insígnia. Eu preciso revistar
todas as salas do cinema.
Mas por quê? O senhor tem algum mandado?
Ele se aproximou de mim e com um sorriso pérfido e um hálito
de cigarro sussurrou ao meu ouvido:
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Eu estou seguindo minha mulher. Sabe como é? Eu sei que ela
está em alguma dessas salas.
O problema é que aquele cara parecia ter saído da tela do filme
Vício Frenético (Bad Lieutenant, 1992).
Ele lembrava mesmo com o ator Harry Keitel em uma de suas
melhores interpretações no cinema, na qual faz um policial corrupto,
viciado em drogas e em apostas. Um filme polêmico em que o
protagonista, em busca do perdão, caça dois homens que estupraram
uma freira, mesmo depois de perdoados por ela.
Assim como no filme dirigido por Abel Ferrara, o delegado não
se constrangia em mostrar que estava armado. Pelo contrário,
gostava de ostentar seu 38.
Eu sinto muito, mas isso é contra as regras do cinema, falei.
Não posso permitir que entre armado nas salas.
Eu sou quero ter certeza de que ela não está aqui, insistiu.
Naqueles dias um japonês tinha acabado de cometer umas das
mais trágicas chacinas numa sala de cinema em São Paulo. O
problema é e se ela estivesse e ainda acompanhada de outro cara?
Por um momento devaneei com o treinamento dado pela
assessora de imprensa da Cia. que nos orientou em caso de haver
mortos ou feridos caídos no cinema, limpar o sangue o mais rápido
possível e remover os corpos da vista das pessoas.
Como ela está vestida? Perguntei, enquanto esperava uma
saída para situação.
Ela está com uma calça de oncinha, camisa amarela e uma
colar de pedras verdes.
Esta descrição extravagante caiu com uma luva. Chamei o
Júnior e perguntei.
Júnior, você viu entrar uma mulher de calça de oncinha,
camisa amarela e colar de pedras verdes? Perguntei, chacoalhando
a cabeça negativamente e piscando, discretamente.
55
Não, com certeza, não. As salas estão todas vazias. Se visse
uma mulher vestida de perua, assim, não esqueceria.
A sinceridade do Júnior constrangeu o delegado. Ninguém gosta
que falem mal da própria mulher, ainda mais naquelas circunstâncias.
Ele deixou para lá. Lhe ofereci café e uns convites assistir À
Espera de Um Milagre.
Venha com sua esposa assistir este filme. Pode mudar a sua
vida.
Ele pegou o ingressos, me olhou com desconfiança e partiu
sorrateiro, do mesmo jeito que chegou.
Eu me virei para o Júnior e falei:
Júnior, me diga a verdade, a perua está ou não em alguma
sala.
Está. Está assistindo À Espera de um Milagre, mas com este
figurino e este marido, só um milagre mesmo.
Assim era meu fiel escudeiro, o Gerente Júnior do Jardim Sul.
Afiado.
13 MAR EM FÚRIA
Ah, como era bom pisar naquela areia e pegar aquelas ondas
de Ubatuba, litoral norte paulista. Eu, mulher, filho e amigos
agregados esperávamos o réveillon na praia. Depois daquele
massacrante ano no comando do Anália Franco, desfrutava das
primeiras férias remuneradas do Multiplex.
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Tudo isso passava na minha cabeça enquanto remava atrás da
onda. Vou pegar, deu certo! Pulei na prancha e deslizei. Opa, vou
ganhar esse tubo. Uú, gritei de alegria. Aproveitei a sorte e deslisei
até a praia. Fui correndo contar para Fabi e Bruno que estavam
tomando sol na areia.
E aí? Viram o tubo que eu peguei? Perguntei deixando a
prancha no chão.
Rubens, seu celular tocou, falou Fabi, sem tirar os olhos da
revista e sem uma palavra de incentivo ao meu Surf Style.
Peguei o telefone e pelo visor tive um mau presságio. O diretor
tinha ligado.
Fabi, o Paulo ligou. Acha que ligo de volta?
Pra que fui perguntar, o olhar fulminante dela não deixou dúvidas:
Oi Paulo, tudo bem? É o Rubens, fala aí, vi sua chamada.
Fala Rubens! Tá boa a praia?
Estava boa até aquele momento, pensei.
Tá tudo bem aqui. E aí, está precisando de alguma coisa?
Rubens, o seguinte. Nós gostamos muito do seu trabalho no
cinema Anália Franco e queremos te chamar para um desafio bem
melhor. Você vai gostar. Temos planos para você crescer junto com a
empresa . Nós queremos que você assuma Multiplex Jardim Sul.
...Blá, blá, blá...
Enquanto o diretor da Multiplex me prometia o céu, eu
devaneava olhando o mar. Na hora me lembrei das promessas de Al
Pacino a Andy Garcia em O Poderoso Chefão.
Aquilo era demais! Uú!! Gritava mentalmente. O Jardim Sul é
o diamante dos Multiplex. Suas salas eram frequentadas por
celebridades da TV: Justus, Eliana, Ellen Roche, Chico Pinheiro,
Marcos Mion, Paulo Gorgulho entre outros. Eu quero estar nessa,
conclui.
Eu topo, respondi, sem saber o que me esperava.
57
X
Três semanas depois, estendendo a mão, eu me apresentei ao
Roberto, gerente sênior do Jardim Sul.
Olá, muito prazer, eu sou o Rubens que veio do Anália Franco.
O novo gerente geral.
Por um momento, pensei que ele reuniria a equipe e me levaria
para conhecer os projetores e as salas famosas pelas poltronas
enormes. Não, nada disso. Ele foi direto ao ponto:
Oi. Seja bem vindo, Rubens. Aqui temos problemas de
fornecimento de energia elétrica, disse, enquanto me guiava até a
caixa de luz. Aqui os disjuntores desarmam todo o tempo. Já
chegamos a ter 10 quedas num só dia.
Mas você já acionou os técnicos da elétrica, certo? Falei,
querendo
impor algum respeito sobre o assunto.
Está tudo bem com nossa instalação. Aqui é o final da linha de
eletricidade no bairro. A Eletropaulo não consegue garantir a carga de
energia que o Shopping precisa. Esse é o problema, me falou
enquanto abria a porta da sala da Gerência.
Pode entrar que agora é sua, falou, estendo a mão para se
despedir.
Pronto! Um desafio bem melhor pra quem?! Agora eu entendi
a oferta do Paulo. Onde eu estava com a cabeça quando aceitei?
Acho que após assistir Mar em Fúria, me empolguei com a
coragem do George Clooney e seus fiéis pescadores da embarcação
Andréa Gail. Mas aquelas cenas sensacionais do mar revolto foram
gravados numa piscina e trabalhadas graficamente. Já, no meu caso,
teria que lidar com um mar de duas mil pessoas revoltadas em suas
confortáveis poltronas, cada vez que acabasse a luz caísse, pensei,
soltando meu pesado corpo na cadeira do gerente.
58
14 FAMOSOS EM CRISE
Um pequeno empurraempurra começou entre as adolescentes
que formavam as filas diante da bilheteria. Olhei e vi que não era
nada demais. Sempre acontecia de um grupo de fãs cercar uma
celebridade atrás de autógrafos, beijos, telefone e etc...
Quem estava no centro da roda avançando em minha direção
era o apresentador Marcos Mion. Pela expressão dele não era coisa
boa.
Ainda bem que aprendi a fazer leitura corporal, pensei.
O famoso da MTV avançava tenso, sem notar as garotas a sua
volta. Quando se aproximou de mim eu já estava preparado para
qualquer reclamação que ele faria.
O Senhor é o gerente?
Eu apenas assenti balançando a cabeça.
Ótimo. Dá para explicar como é possível uma fila desse
tamanho num sábado a noite?
Sinto muito, Senhor, mas cinema de qualidade com bons
filmes têm fila aos sábados à noite, respondi,
educadamente.
A abordagem do sujeito define tudo. Tivesse chegado na
simpatia, ele até ganharia um ingresso de cortesia, pensei, enquanto
ele deu de costas pisando forte pra fora do cinema.
X
Conferia o dinheiro em minha sala, quando o rádio chamou.
Qrrr Rubens está na escuta? Qrrr
Qrrr Q A P, Barney, respondi. Qrrr
O Chico Pinheiro da Globo está aqui e quer falar com
você.
Chico Pinheiro! A que devo a honra? Pensei.
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Qrrr Qual é o Q T H? Quis saber, já me pondo a caminho.
Qrrr Aqui no banheiro masculino do corredor central.
Droga, o que poderia querer com o gerente de cinema um dos
jornalistas que mais admiro? Praguejei enquanto cruzava o corredor.
Entrei no banheiro e o encontrei todo empertigado ao lado da
pia.
Ele dispensou apresentação e como se fosse íntimo, disparou:
O senhor acha que é razoável essa pia molhada, com
essa água toda espalhada sobre ela?
Claro que não é agradável encontrar uma pia molhada. Mas
havia terminado a minutos a sessão do filme Alguém tem que Ceder.
Um romance no qual Jack Nickolson faz um personagem com
Transtorno Obsessivo Compulsivo que não pisa no preto do
quadriculado e tem inúmeras outras manias. Pavor de água sobre a
pia era uma delas, com certeza
O senhor queira aceitar nossas desculpas. Mas o movimento
aumenta muito, quando acaba a sessão. O faxineiro já está a
caminho.
Está bem, obrigado, disse ele, se despedindo com a sensação
de dever cumprido.
Os jornalistas tem essa mania, pensei. De serem os defensores
das boas causas, como encontrar uma pisa seca no banheiro do
cinema.
O faxineiro entrou com o carrinho de limpeza na mesma
abertura de porta que Chico Pinheiro saiu. Quase se trombaram.
Salvador estava no cronograma, chegou depois da sessão para
limpar a bagunça que a multidão masculina sempre deixa. Se tivesse
apurado os fatos, o jornalista saberia que os cinemas não tem um
toalheiro contratado exclusivamente para secar pias. Ainda mais
quando há um erro de projeto e as pias servem de aparadores da
água que cai das mãos de quem usa os secadores. Nos cinemas de
Londres, a água escorre direitinho pelo ralo. Isso dá matéria no
60
jornal, pensei.
15 O FIM DA PELÍCULA
Ring, ring. O telefone chamou na minha mesa. Eu ainda tinha
sobressalto sempre que ele tocava. Olhei para o relógio. Era um
pouco depois das sete da manhã.
Alô, Rubens, Jardim Sul. Pois não?
Rubens, sou eu o Paulo. Está tudo pronto para hoje? Vamos aí,
assistir a final da Copa com vocês. Era o diretor.
Podem vir. Será um prazer, respondi simulando segurança, já
que
era impossível ter certeza de como seria a primeira exibição digital
numa sala da UCI Multiplex.
Aproveitei para ir conferir como funcionava aquele projetor sem
película. Entrei na sala e encontrei o projecionista desolado por ser
um simples coadjuvante naquela história. Ao me ver, ele foi logo
antecipando a operação.
Oi, Rubens, está tudo certo aqui, disse Alexandre, atropelando
os
dois técnicos enviados pela matriz que eram, de fato, os
responsáveis pela operação.
Um deles veio de Londres. Mark tinha o nariz de bruxo e rosto
vermelho como caranguejo, pensei. O segundo era o Rafael, um
profissional enviado pela fabricante das câmeras e do sistema de
imagens em alta definição. O Full HD, High Definition, ainda era
novidade no Brasil e uma estreia no cinema.
How are you doing? Quis saber de Mark se estava bem e me
apresentei. I’m, Rubens, general manager of this cinema.
Hi! Nice to meet you. Se apresentou Mark, abrindo um sorriso
branco, naquele rosto vermelho.
Alexandre, novamente, roubou a cena:
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Olha aqui seo Rubens, ele disse, apontando para um conjunto
de monitores de TV que foram instalados atrás do projetor. Daqui a
gente vai conferir se o sinal do jogo está chegando direito na
parabólica da Unidade Móvel que está ali fora, no estacionamento do
Shopping. Não é isso Rafael? Perguntou Alê ao técnico do fabricante.
Rafael tinha firmeza na voz e começou a me explicar.
Sim, os monitores vão mostrar o sinal que está chegando do
Estádio de Yokohama do Japão. São oito câmeras HD
transmitindo para todo o mundo. O sinal vai passar por três
satélites até chegar aqui no Brasil.
Mas só a imagem? E a narração da partida? Eu quis saber,
temendo alguma confusão, já que não é comum assistir a uma final
de Copa do Mundo numa sala escura de cinema, calculei em silêncio.
Fique tranquilo, sorriu Rafael, a partida terá a narração do
Galvão Bueno. Na verdade, temos um acordo com a TV Globo
que também vai receber o mesmo sinal HD. Uma produtora de
alto nível está cuidando da distribuição do sinal de satélite para
as salas da UCI, tanto aqui, em São Paulo, quanto para o
Multiplex do Rio de Janeiro, me explicou.
Alexandre não perdeu a deixa:
Já pensou chefe, a voz do Galvão Bueno em surround:
Rrrrronaldo! Rrrrroonaldo! Rrrrrrrubens! Brincou ele.
I need to know what is the risk of this operation, eu quis saber
do Vermelhão os perigos desta operação que me respondeu em
inglês empolado:
There are two risk, drop the satellite signal or the projector
fails, but is The World Cup Football... There is no problem.
Alexandre repetiu em português claro:
Cair o sinal do satélite ou o projetor falhar. Ou seja nada que
a gente esteja acostumado a resolver, constatou.
Na verdade, Rubens, explicou Rafael, a transmissão do sinal, via
satélite, de um evento deste porte, sempre tem um caminho
62
reserva, se o principal pifar. Apontando para o equipamento em
que oscilava um gráfico eletrônico, ele completou:
Aqui a gente verifica a qualidade do áudio e aqui a do
vídeo. É difícil dar problema na recepção. Já o projetor
não pode sofrer superaquecimento. 50 graus
centígrados, ela desliga automaticamente.
Pronto, quem procura acha. Agora eu tinha um problema com
que me preocupar. Apesar daquele frio matinal, o ar condicionado
central não estava aquela beleza. E aquela sala não tinha sequer um
termômetro. Se a sala ficasse lotada poderia sim, superaquecer o
ambiente.
Esperava quatrocentos convidados. Gente do cinema, mas também
o pessoal da inovadora indústria do Full High Definition. A imagem
em movimento, que era uma sequência de fotogramas que
registravam a luz da realidade em nitrato de prata, estava sendo
substituída por bits. Um ponto chamado pixel. Milhões deles na tela
TV plana formam uma imagem que foi capturada em vídeo e, aqui,
ironicamente exibida numa tela de pano.
Alê, vem comigo. Saí da sala e fui direto encontrar Júnior na
bateria atrás dos caixas. No caminho chamei o chefe da segurança.
Qrrr. Oswaldo, na escuta. Qrr
Qrr. Q A P, chefe.
Se encontra comigo atrás dos caixas, agora. Manoel, vai na
minha frente e chama tudo mundo. Reunião Geral. Me lembrei
de um termômetro em minha sala. Eu vou em seguida.
Entrei na sala e da última gaveta da minha mesa, saquei o
termômetro. Um presente de amigo secreto que nunca pensei que
usaria. Mas era uma lembrança muito especial. O termômetro era
porque ela me achava frio, lembrei.
Ato contínuo segui para o encontro. Estavam todos com cara
de interrogação. Fui direto ao ponto.
Pessoal, não pode pode ter superlotação na sala do jogo da
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Seleção. Meu Deus, seria possível que estivesse mesmo
falando isso.
Todos me olhavam com cara de incrédulos. Impedir que
houvesse penetras na sala, significa que eles também não poderiam
abandonar seus postos de trabalho para ver a final entre Brasil e
Alemanha. Continuei com a ordem.
Como vocês sabem, o Ar Condicionado não está funcionando
bem. A aglomeração excessiva pode superaquecer o ambiente.
Não queremos que o novo projetor apague, queremos?
Roberto e Júnior se entreolharam decepcionados. Captei um fio de
frustração do rosto do Osvaldo, chefe da segurança, que
imediatamente pousou o olhar de sobrouparavocê em cima do seu
ajudante. O pessoal da bomboniere quase chorou.
Pessoal é o seguinte, eu sei que todos vocês querem ver o
jogo. Mas a sala tem somente quatrocentos lugares.
O discurso não estava colando. A multidão que chegava ao cinema,
naquele momento, era para ver o final da Copa do Mundo. A sala
estaria lotada até a tampa, com certeza!
Bem, Osvaldo você organiza seu pessoal para que não entrem
penetras. Só convidados, frisei.
Alê você vai ficar na sala de projeção com este termômetro. Se
ele passar de 40 graus você me avisa.
Roberto e Júnior, venham comigo. Os puxei de lado.
Vocês precisam ter calma, vai dar tudo certo. Vocês vão ver,
falei, dando uma piscadinha, sabendo que eles dariam um jeito
de assistir a partida.
Mal deu tempo de conversar com os dois. Fui abordado por
Paulo e demais diretores da UCI. Todos vestiam verde e amarelo. Os
filhos deles traziam cornetas, confetes e serpentinas. Seria mesmo
uma festa.
X
64
Como eu previa, o sala estava tomada. A porta mal parava
fechada. Tinha gente de pé em todo o canto. Subi para a sala de
projeção. Ela estava lotada. Os técnicos trouxeram seus chefes e
eles, levaram seus investidores. Mal tinha lugar para mim.
Alê, como está temperatura? Ele pegou o termômetro que
estava em cima do apoio do projetor e indicou a temperatura para
mim:
Vinte e oito graus.
Não estava a temperatura ideal, mas longe de qualquer risco.
“Bem meus amigos da Rede Globo”. Começou a partida. Agora
era torcer pelo Brasil.
O primeiro tempo foi só de tensão, controlada. Era uma final de
Copa do Mundo num lugar escuro, numa sala fechada, sem mesa,
sem cerveja. Quase claustrofóbico, pensei.
Tanto assim que no intervalo todos saíram da sala. Os
corredores ficaram tomadas por centenas de pessoas. Falavam em
voz alta. Queriam explodir de alegria, mas estavam contidas.
No segundo tempo, tudo tenso novamente. Eu mal conseguia
me movimentar dentro da sala de projeção. Lá em baixo, eu via a
sala de cinema repleta de gente: a cabeleira, os lojistas, os
vendedores, os seguranças. Todo o pessoal do shopping estava
presente.
Agora sim, estava como uma torcida de estádio. Algumas
pessoas ainda conseguiam assistir o jogo sentadas. A maioria já se
levantava, gritava e xingava a cada lance.
Aos 21 minutos, Ronaldo brilha num lance individual. Rouba a
bola na intermediária, toca para Rivaldo que chuta uma bomba contra
o melhor goleiro da competição: Oliver Kahn tentou encaixar o chute,
mas a bola escapou e o rebote caiu de presente no pé de Ronaldo
que só fez empurrar a redonda para o Gol!
Goooooollll.
65
O cinema explode de euforia. Todos pulam e se confraternizam.
Eu abraço Júnior, que cumprimenta Roberto, que comemora com
Manoel, que levanta Mark de alegria. Por um momento, quase
entraram na frente do projetor.
A partir dai, esquecemos de tudo. A partida ficou eletrizante.
Todos estavam hipnotizados na voz de Galvão Bueno:
“...ele cortou pro meio. Lá vem Kléberson. Rivaldo saiu.
Ronaldinho, pé direito, bateu. É gooooooool. Goooooooooooool.
Brasil. Éeeeeeeeeeeee do Brasiiiiiiiill. Rrrrrrroooooonaldinho!!!
Número nove. Aos 33 minutos...”
Foi o maior congraçamento da história do Multiplex. Queria
perguntar ao Alexandre sobre a temperatura do ambiente, mas não
tinha mais importância. O Brasil era pentacampeão mundial. Procurei
pelo termômetro que estava no chão, esmagado. Pisoteado pela
frenética multidão. Jazia o presente que ganhei por ser frio, recordei.
16 DE LOUCO E PENETRA TODO MUNDO TEM UM POUCO
Meu domingo não estava nada bom. Mal me aguentava de pé
atrás da portaria. Júnior passou por mim e não poupou comentários:
Que cara, hein!? Pelo visto, o treinamento foi muito bom
no Rio de Janeiro!
Eu e o gerente sênior acabávamos de voltar de um treinamento
intensivo no Rio.
Não enche, ô Júnior. Guarde seus comentários quando for
“gente grande”, provoquei, me referindo à regra que só o
gerente geral e sênior frequentam esse treinamento.
Estava de ressaca, confessei a mim mesmo. Não pudemos
evitar um happy hour em solidariedade ao gerente do Multiplex de
Salvador. Inácio ficou um fim de semana detido, supostamente, por
66
desacato, ao negar ingressos de cortesia a um investigador de
polícia. Realmente, o risco de ser gerente é bem maior que o ganho,
pensei.
De repente, vi um início de bateboca na frente da bomboniere.
Um casal discutia com a atendente. Rapidamente, me aproximei. Um
sujeito bem gordo, como o Faustão antes da cirurgia do estômago,
interpelava a moça.
Mas o buquê desta CocaCola está horrível, esbravejava o
rotundo.
Pois não, interrompi, me apresentando. Sou o gerente.
Em que posso ajudálos.
O senhor é o gerente? Pois fique sabendo que nunca senti
um buquê tão horrível de CocaCola.
Nunca tinha ouvido alguém reclamar do aroma da CocaCola.
Troca para mim, intimou o obeso, esticando o braço com
o copo pela metade em minha direção.
Não sei se foi efeito do meu cansaço, mas aquele gesto me
insultou.
O sistema não permite troca, afirmei.
De repente, minha pose foi interrompida pela brutalidade do
copo lançado contra mim. Passou a ressaca na hora. Me esquivei e o
copo de papel se espatifou contra a máquina de refrigerante.
Centenas de pessoas que estavam no saguão do cinema ficaram, por
uns segundo, em silêncio.
Olhei estarrecido para o cara corpulento e pelancudo. Ele deu
as costas e, em passos pesados, tomou o rumo da saída, puxando a
namorada, visivelmente, constrangida pelo braço.
Pedi que chamassem o pessoal da faxina, para limpar a
bomboniere, enquanto me esgueirava por entre a multidão.
O cinema estava lotado. Era a segunda semana do Gladiator,
com Russel Crowe e direção de Ridley Scott. O mesmo diretor do
épico Blade Runner com Harrison Ford. Os quinhentos ingressos da
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próxima sessão estavam praticamente esgotados.
Rubens, veio até mim Júnior, esbaforido. Eu me recompunha da
“copada” de cocacola.
Tá tudo bem, Júnior, já passou.
Não é nada disso, Rubens. Tem um casal na fila dando
problema de meiaentrada. Os dois querem falar com você.
Que domingo eterno! Pensei.
Resolvi aplicar uma das técnicas que nós gerentes
desenvolvemos ao longo do tempo.
Fale pra virem até aqui, Júnior, pedi, enquanto conferia se a
roupa não tinha sido atingida por refrigerante.
Geralmente, as pessoas se abalam quando são convidadas a
deixar o lugar na fila. Além disso, retirálas do meio da multidão, era
um jeito de prevenir que uma simples reclamação virasse um
discurso exaltado contra as multinacionais da indústria do cinema,
lembrei. Se bem que a companhia tinha ódio da meiaentrada. A
ordem da matriz era dificultar o meio ingresso para o dinheiro não ir
pelo ralo. Money goes down the drain, se queixavam os gringos.
De longe, observava Júnior convencendo a garota a abandonar
o primeiro lugar da fila para se dirigir até onde eu estava, próximo
dos porteiros que recolhiam os ingressos.
Partiram em minha direção. A garota morena de bata branca e
cabelos soltos puxava a mão do namorado insosso de óculos com
cara de interrogação. Atrás vinha Júnior, isolando o casal da
multidão.
Pois não, disse ao recebêlos.
A menina estava inflamada. Ergueu perto da minha cara, quase
atingindo meus olhos, sua carteirinha de estudante de inglês.
Olha aqui, senhor gerente, me explica porque raios não aceitam
minha carteira de estudante. É a última vez que vou perguntar:
Por que não aceitam minha carteirinha de estudante?
Xí!! Cursos de inglês, francês, alemão, etc. Nas reuniões da
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empresa a questão era pacífica: qualquer curso que não fossem os
regulares: básico, médio, superior ou de pós graduação não seriam
aceitos para meia entrada. Tinha que haver um critério, concordei
mentalmente com a matriz, senão vinha gente até com carteirinha de
curso crochê.
Eu sinto muito, mas a compra de meiaentrada é apenas para
alunos de cursos regulares como...
Mal completei a frase, ela pulou o cordão de isolamento, deixou
o namorado para trás, ganhou o corredor central e entrou,
justamente, na sessão do Gladiator, a mais concorrida do domingo.
Eu, Júnior e os seguranças disparamos atrás dela. Na perseguição,
ela derrubou as pipocas de um casal que recém ingressava na sala.
Entramos todos correndo e demos de frente com o auditório de
quinhentos lugares totalmente tomado. As luzes principais já
estavam apagadas. A sessão começaria a rodar em poucos minutos.
Droga, ela se agachou atrás das poltronas, mas em qual fileira?
Perguntei a mim mesmo.
O velho truque da agachadinha. Mesmo sem tempo para
distrações, fui tomado por uma recordação inevitável. Em segundos,
revi um filminho do meu passado, em que, eu mesmo, antes de
aceitar a função sadomasoquista de gerente de cinema, dei minhas
agachadinhas para assistir filme de graça.
Eu e Marião, meu parceiro de banda de música, queríamos
assistir o longa metragem que Clint Eastwood dirigiu sobre a biografia
do saxofonista Charlie Parker. Bird estava sendo exibido na boca do
lixo em São Paulo, num cinema de uma antiga e decadente galeria da
Rua Augusta, centro da cidade. O plano era entrarmos de fininho no
final do filme infantil Ursinhos Carinhosos e ficarmos escondidos até
começar sessão de Bird. Bastou a moça da portaria abandonar o
posto, por segundos, que invadimos a sala. Atrás das grossas
cortinas da entrada, demos de cara com dezenas de crianças que
explodiram de rir, quando viram que nossos corpos, atrapalhados em
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busca de esconderijo, refletiam a cor rosa choque dos Teddy Bears.
Rapidamente, nos esgueiramos detrás das últimas poltronas e
ficamos agachadinhos, tentando conter nossas próprias gargalhadas.
Rubens! E agora? Perguntou Júnior, me tirando do transe.
Tomado por uma tensão como Crowe contra os leões do
Coliseu, estimei que não haveria tempo de passar um pente fino em
todas as fileiras: droga, iria atrasar o início da sessão, praguejei.
Mas, espera um pouco! Tive uma ideia e me dirigi à plateia em voz
alta:
Um momento de sua atenção, senhores. Sou o gerente
deste cinema. Obrigado por terem vindo. Para que não
tenhamos atraso na próxima sessão, vou precisar da
ajuda de todos. Uma jovem entrou nesta sala sem
autorização e ao menos que ela saia, não poderemos dar
início ao filme.
Prontamente, as pessoas que a viram passaram a denunciála.
Ela está aqui, gritou uma mulher de meia idade.
Ei. Saia já daí, falou um playboy corpulento, se
levantando e indo até onde ela estava.
Aos poucos, a multidão foi tomada por um senso de justiceiros,
além da conta. Comecei a temer pela integridade da garota, que
assustada se revelou atrás da última fileira e saiu da sala sob vaias e
risadas.
É impressionante fácil manipular uma multidão, pensei, agora
aliviado com o desfecho e tentando compreender o que as pessoas
são capazes de fazer para assistir a um bom filme. Ai que dor de
cabeça, voltou a ressaca.