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400 Horas de Filosofia Oriental – Relatório de Estágio na Ésquilo, Edições & Multimédia Inês Filipa Castanheira Rosado Relatório de Estágio de Mestrado em Edição de Texto Abril 2018

400 Horas de Filosofia Oriental Relatório de Estágio na ... · conhecia, excepto um livro que já tinha lido: Colombo Português, do historiador Manuel Rosa do qual, recordo-me,

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400 Horas de Filosofia Oriental –

Relatório de Estágio na Ésquilo,

Edições & Multimédia

Inês Filipa Castanheira Rosado

Relatório de Estágio de Mestrado em Edição de Texto

Abril 2018

Relatório de Estágio apresentado para cumprimento dos requisitos necessários à

obtenção do grau de Mestre em Edição de Texto realizado sob a orientação científica

do Professor Dr. Fernando Cabral Martins, Coordenador deste mestrado na

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Professor Paulo Loução e à

Professorª Severina Gonçalves, que me receberam no espaço Arkhé, em Oeiras, de

braças abertos e sempre disponíveis para me ensinar e ajudar no que necessitasse.

Graças a ambos aprendi muito não só sobre livros e edição mas também sobre filosofia

oriental, à qual me dediquei durante dois meses.

Agradeço igualmente ao Prof. Dr. Fernando Cabral Martins, o meu orientador de

estágio, que me aconselhou a não desistir mesmo quando já tinha pouco esperança em

completar o relatório e, por consequência, o mestrado.

Um obrigado aos meus pais, que garantiram os meus estudos desde a

licenciatura, passando por uma Pós-Graduação e também parte do meu mestrado. Se

estou prestes a ter o Grau de Mestre, a eles o devo.

400 Horas de Filosofia Oriental – Relatório de Estágio na Ésquilo, Edições &

Multimédia

Inês Rosado

Resumo

Este relatório de estágio descreve o trabalho por mim exercido nas 400 horas de

estágio curricular realizado na Ésquilo, Edições & Multimédia, no âmbito da

componente não lectiva do Mestrado em Edição de Texto da Faculdade de Ciências

Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O estágio curricular decorreu entre

16 de Outubro de 2017 e 16 de Janeiro de 2018, no espaço Arkhé, em Oeiras, na livraria

da Ésquilo, sob a orientação do professor Paulo Alexandre Loução e da professora

Severina Gonçalves. Durante o estágio realizei, quase na íntegra, as segundas edições

das seguintes obras de filosofia oriental: Bhagavad-Gita, Dhammapada – As Palavras

de Buddha e O Evangelho de Buda.

No desempenho das minhas funções relativamente à edição destas três obras,

tinha um objectivo definido: repaginar as obras, eliminando o sânscrito das edições

bilingues [Bhagavad-Gita e Dhammapada]. Acabei por participar igualmente na revisão

dos textos e design gráfico das novas capas.

O nome da editora deriva de Ésquilo, considerado o pai da Tragédia Grega, e

tem um vasto catálogo de livros de géneros literários que vão da história, nacional e

internacional, até à mitologia, filosofia oriental e ocidental, religião e ciência, tendo

contribuído em muito para o mercado do livro histórico em Portugal, desde o ano da sua

criação no nosso país, em 2000. Desde aí conta já com 180 obras publicadas.

PALAVRAS-CHAVE: Ésquilo, Edições & Multimédia, Edição de Texto, Paginação,

Revisão, Design, Estágio, Filosofia Oriental, Livro, Relatório.

400 Horas de Filosofia Oriental – Relatório de Estágio na Ésquilo, Edições &

Multimédia

Inês Rosado

Abstract

This internship report describes my 400 hours work at the publishing house

Ésquilo, Edições & Multimédia, realized in order to accomplish my Master’s Degree in

Text Editing, at Faculdade de Ciências Sociais e Humanas of Universidade Nova de

Lisboa. This internship happened between 16th October of 2017 and 16

th January of

2018 at espaço Arkhé, in Oeiras, at Ésquilo bookshop, under the supervision of

professor Paulo Alexandre Loução and professor Severina Gonçalves. During that time

I’ve done, almost in full, the second edition of these oriental philosophy books:

Bhagavad-Gita, Dhammapada and The Gospel of Buddha.

During my work producing the second edition of these three books, I had an

objective: repaginate the books and cut off the Sanskrit, especially in both Bhagavad-

Gita and Dhammapada, which were a bilingual edition. I ended up with other functions,

such as reviewing the texts and helping with the new cover’s graphic design.

The Publishing House name results from Ésquilo, considered the father of the

Greek Tragedy, and has a vaste catalogue of books which genres goes from history,

national and international, mitology, oriental and ocidental philosophy to religion and

cience and has been contributing to increase the historical books market in Portugal,

since the year of its creation in the country, back in 2000. Since then has already publish

180 books.

KEYWORDS: Ésquilo, Edições & Multimédia, Text Editing, Pagination, Review,

Design, Internship, Oriental Philosophy, Books, Report.

Há algo que aprendi na disciplina de História do Livro e nunca mais me esqueci, acerca

da transformação dos manuscritos para os livros impressos:

O livro impresso é um instrumento que serve um determinado tipo de cultura. A cultura

escrita em si, a forma da escrita, está ligada a um determinado tipo de pensamento.

A relação entre cultura oral e escrita passa a estar desequilibrada. A oralidade era

antes poderosíssima, agora tem um rival.

A escrita passa a ter um objecto mais poderoso: o livro impresso.

ÍNDICE

Introdução ................................................................................................... 1

A Editora – Ésquilo, Edições & Multimedia ................................................. 4

Caracterização do Estágio ............................................................................ 7

As minhas funções ................................................................................. 7

Bhagavad-Gita ....................................................................................... 9

Dhammapada ....................................................................................... 10

O Evangelho de Buda ........................................................................... 11

O Design Gráfico. ................................................................................ 13

Principais Dificuldades ......................................................................... 16

Análise Crítica do Plano de Estágio ....................................................... 18

As novas tecnologias na Edição de Texto ................................................... 20

QuarkXPress ...................................................................................... 20

E-book ................................................................................................ 21

Conclusão ................................................................................................. 24

Bibliografia e Webgrafia ........................................................................... 26

Anexos ...................................................................................................... 27

1

RELATÓRIO DE ESTÁGIO DE MESTRADO – Ésquilo, Edições & Multimédia

INTRODUÇÃO

O relatório que apresento descreve o meu trabalho durante dois meses na editora

Ésquilo, Edições & Multimédia, de Outubro de 2017 a Janeiro de 20181, nesta que foi a

minha escolha de componente não lectiva para concluir o mestrado em Edição de Texto

pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Durante o meu estágio na Ésquilo preparei, quase na íntegra, as segundas

edições destas três obras: Bhagavad-Gita, Dhammapada e O Evangelho de Buda, sob a

supervisão do professor Paulo Loução e da professora Severina Gonçalves. Ambos

pertencem à Associação Nova Acrópole, organização internacional de Filosofia, Cultura

e Voluntariado, que tem sedes um pouco por todo o país, sendo que o professor Paulo é

responsável pela Nova Acrópole Oeiras-Cascais. É a Associação que “patrocina” os

livros da Ésquilo, algo de que falarei no primeiro capítulo deste relatório, inteiramente

dedicado à editora.

A Ésquilo não foi a minha primeira escolha. Acabei por chegar até eles depois

de um período conturbado passado na Alêtheia Editores, onde estagiei durante uma

semana, tendo considerado a experiência muito desagradável. Após essa infelicidade, e

já no limite do prazo de inscrição na componente não-lectiva do mestrado, entrei em

contacto com o professor Paulo que me aceitou enquanto estagiária no espaço Arkhé,

em Oeiras, local onde fica localizada a livraria da Ésquilo. Da editora pouco ou nada

conhecia, excepto um livro que já tinha lido: Colombo Português, do historiador

Manuel Rosa do qual, recordo-me, na altura tinha gostado muito pelo rigor dos factos

apresentados e porque, desde que tinha lido o Codex 6322, sempre acreditei que

Cristóvão Colombo pudesse, efectivamente, ser português. Pensei, portanto, que me

seria dada a oportunidade de trabalhar com livros sobre história, que embora não fosse o

meu género literário preferido, certamente me ensinaria algumas coisas. Acabei por

trabalhar com história, sim, mas não o tipo de história que tinha pensado.

1 Conto dois meses devido ao interregno das Férias de Natal e passagem de ano, em que estive ausente da

editora: de 15 de Dezembro a 3 de Janeiro.

2 RODRIGUES DOS SANTOS, José. Codex 632. Gradiva, 2005.

2

Foi-me dado então o primeiro trabalho: repaginar a edição bilingue da Ésquilo

do Bhagavad-Gita3, a “Bíblia Hindu”, da autoria de José Carlos Calazans, retirando por

completo o sânscrito e transformando a obra para uma edição apenas em português.

Enquanto fazia esse trabalho, apercebi-me de que um trabalho de revisão era urgente e

fundamental e acabei por também desempenhar esse papel. Seguiu-se o Dhammapada –

O Evangelho de Buddha4 (igualmente uma edição bilingue), a “Bíblia Budista” e, já no

final do meu estágio, O Evangelho de Buda5, que acabou por ser a edição mais fácil,

como explicarei ao pormenor no segundo capítulo do relatório sobre a caracterização do

meu estágio.

Estas três obras estão descritas no catálogo6 da Ésquilo como pertencentes à

categoria “Sabedoria do Oriente”. Dhammapada foi a primeira a ser editada na Ésquilo,

em 2006, seguindo-se O Evangelho de Buda, em 2007 e, por fim, o Bhagavad-Gita, em

2010. Dhammapada e Bhagavad-Gita são edições bilingues do mesmo autor, José

Carlos Calazans, actualmente Professor na Universidade Lusófona no curso de Estudos

Europeus, Estudos Lusófonos e Relações Internacionais, segundo o professor Paulo, um

dos únicos em Portugal capaz de fazer traduções directas do Pali, a língua utilizada na

Escola Teravada do Budismo, e também do sânscrito. Acontece que José Carlos

Calazans não é português e, como tal, a sua escrita em língua portuguesa é limitada,

tendo detectado erros ortográficos graves aquando da paginação das obras, tornando-se

imperativo fazer uma revisão. Sobre O Evangelho de Buda, de Paul Carus, o meu

trabalho foi simplificado, pois já tinha passado pelas mãos e olhos de uma revisora antes

de sair para a venda ao público. O meu trabalho foi, praticamente, o de modernizá-lo

esteticamente passados dez anos da sua 1ª edição.

Resta-me então enunciar como estará organizado o meu relatório. Começarei por

abordar a questão da editora, uma vez que a Ésquilo já foi, em tempos, muito

prestigiada e perdeu capacidade de produção e também destaque devido à crise

económica do país. Sendo dedicada a um nicho pequeno do mercado dos livros, com

3 CALAZANS, José Carlos. Bhagavad-Gita. ÉSQUILO, 2010.

4 CALAZANS, José Carlos. Dhammapada – As Palavras de Buddha. ÉSQUILO, 2006.

5 CARUS, Paul. O Evangelho de Buda. ÉSQUILO, 2007.

6 http://www.esquilo.com/livros.html.

3

temáticas específicas destinadas ou a professores e alunos dos temas ou a comuns

interessados nessas matérias, a Ésquilo foi obrigada a reinventar-se para conseguir

subsistir. O segundo capítulo é sobre a caracterização do meu estágio, onde falarei mais

especificamente sobre o meu trabalho em cada uma das três obras, o design gráfico das

capas, que também elaborei, assim como as principais dificuldades com que me deparei

no processo de edição. No final desse capítulo e, comparando com o meu plano de

estágio, farei uma análise crítica do trabalho realizado. O terceiro capítulo é dedicado às

novas tecnologias na edição de texto, que acaba por estar intrinsecamente relacionado

com o que descreverei sobre a editora no primeiro capítulo, nomeadamente ao nível da

sua estagnação no tempo e a incapacidade de acompanhar o mercado cada vez mais

digitalizado.

4

RELATÓRIO DE ESTÁGIO DE MESTRADO – Ésquilo, Edições & Multimédia

A EDITORA – ÉSQUILO, EDIÇÕES & MULTIMÉDIA

Sobre a Editora

"Quando um Homem tem força

de vontade, os Deuses ajudam-no."

Ésquilo (525 - 456 a.C.)

A Ésquilo – Edições & Multimédia é uma editora espanhola, com actividade em

Portugal desde o ano de 2000. Dedica-se à publicação de “obras no âmbito da história,

espiritualidade, psicologia e relações humanas, romances de carácter histórico ou

mítico, novos paradigmas da ciência, esoterismo filosófico e outros temas próprios da

nova visão do mundo que está a surgir no século XXI.”7

Podemos considerar que a Ésquilo trata de temas muito específicos, que

normalmente interessam a uma parte muito reduzida da sociedade, ou seja, sendo mais

directa, não são os típicos livros comerciais. As vendas traduzem isso mesmo. Durante

os três meses de estágio, trabalhei no espaço físico da Ésquilo, o Espaço Arkhé, em

Oeiras, onde estão à venda todas as obras da editora. Trabalhava aí por ser um local

calmo, podendo acontecer estar um dia inteiro sem entrar ninguém. O professor Paulo

explicou-me que a maior receita advém da venda em grandes estabelecimentos

comerciais, cujo lucro também por ser reduzido face às comissões a que a editora é

obrigada.

O professor Paulo Loução, historiador e filósofo, é coordenador editorial da

revista Acrópole, director de conteúdos do projecto Ésquilo, coordenador do Círculo de

Estudos de Matemática e Geometria Sagradas Lima de Freitas e também representante

do centro Oeiras-Cascais da Organização Internacional de Filosofia, Cultura e

Voluntariado, Nova Acrópole. É através da Nova Acrópole que o espaço Arkhé costuma

receber mais visitantes: às quintas-feiras tinham lugar aulas de filosofia prática e, por

vezes, através de iniciativas da Nova Acrópole, havia espaço para conferências e

colóquios sobre temas diversos, conjugados com a apresentação de algum novo livro ou

até mesmo debate sobre temas retratados em livros que já haviam sido lançados. Ao

7 http://www.esquilo.com/quemsomos.html.

5

mesmo tempo, a Associação Nova Acrópole organiza excursões a destinos que estejam

directamente relacionados com os géneros literários publicados pela Ésquilo. Por

exemplo, enquanto lá estive estava a ser preparada uma viagem de “reconhecimento” ao

Egipto, pela altura da reedição do livro Em Busca da Imortalidade no antigo Egipto8.

A Ésquilo enquanto editora está a passar por uma transformação e lentamente

começa a difundir-se com a Eranos9 – Edições & Multimédia, entidade que assinou a

minha minuta de estágio e da qual a professora Severina Gonçalves é administradora.

Senti essa convergência de editoras de forma confusa, principalmente ao nível dos

logotipos presentes na capa de uma nova edição. Cheguei à conclusão de que o logotipo

que é escolhido não é consensual. Por exemplo, na edição de capa feita para o

Dhammapada – As Palavras de Buddha foi colocado o logótipo da Ésquilo; o mesmo

não aconteceu na nova capa do Bhagavad-Gita, tendo-se optado por não colocar a

identificação da editora10

. Confesso que o porquê da escolha de identificação de uma

editora em detrimento de outra não me foi perceptível, uma vez que não corresponde a

um padrão de temáticas nem de géneros literários. Há livros que podem ser editados por

uma editora e outros por outra, ficando tal critério à escolha dos editores.

Resumindo, a Ésquilo e a Eranos são ambas geridas pelo professor Paulo Loução

e suportadas a nível de Marketing e Comunicação pela Nova Acrópole, que através da

organização de colóquios, conferências e outros eventos dá a conhecer as obras

publicadas pelas editoras em questão e não deixa que livros já publicados sejam

esquecidos, debatendo temas relacionados em iniciativas paralelas. É uma equipa oficial

de duas pessoas (professor Paulo e professora Severina), que contam com a ajuda dos

seus alunos ou dos associados da Nova Acrópole, não tendo ao seu abrigo qualquer

contratado. No que a novas edições, reedições ou reimpressões contratam serviços

externos ao abrigo da prestação de serviços.

Sobre o público-alvo, as temáticas retratadas pela Ésquilo destinam-se a um

nicho da sociedade, a uma facção reduzida de leitores. Falo, por exemplo, de

8 SOUSA, Rogério. Em Busca da Imortalidade no Antigo Egipto. ÉSQUILO, 2012.

9 Eranos é a designação dada a um encontro de pensadores dedicados aos estudos da espiritualidade que

ocorreu regularmente próximo a Ascona, na Suíça. Fonte: Wikipedia.

10 Pelo menos até à data do término do meu estágio.

6

professores universitários ou alunos de áreas como História, Filosofia, Ciência,

Esoterismo e relacionados.

Como qualquer pequena editora, a Ésquilo tem os seus problemas e procura,

neste momento, adaptar-se e reinventar-se, nomeadamente com a aposta nos livros

electrónicos ou e-books, que estará para ser lançada em breve. Através dos eventos que

organiza com o apoio da Nova Acrópole realizam-se colóquios e palestras para dar a

conhecer as obras que tem disponíveis e praticam um preço especial para essas ocasiões,

também por forma a escoar o stock de livros existentes no espaço Arkhé. As tiragens

também começam a ser cada vez mais pequenas, explicou-me o professor Paulo, numa

tentativa não só de poupança mas também de cautela, para que não fique armazenado

muito stock na livraria.

7

RELATÓRIO DE ESTÁGIO DE MESTRADO – Ésquilo, Edições & Multimédia

CARACTERIZAÇÃO DO ESTÁGIO

As minhas funções

Devido à iminência de falta de stock de alguns livros, que até tiveram alguma

receptividade ao longo dos anos, a tarefa que me foi imbuída pelo professor Paulo e pela

professora Severina foi a de preparar uma segunda edição de obras de filosofia oriental,

um género literário em que a Ésquilo é especialista. No seu catálogo têm obras como

Dhammapada - As Palavras de Buddha, uma edição bilingue, Livro Tibetano dos

Mortos, prefaciada por Dalai Lama, O Evangelho de Buda, de Paul Carus, A Via do

Bodhisattva, de Shantideva, Sabedoria Para Viver, de Dalai Lama, O Caminho da

Grande Perfeição, de Patrul Rinpoche, O Buda e o Budismo, de Paulo Borges e Duarte

Braga e o Bhagavad-Gita, de Vyasa, também uma edição bilingue.

Resumo então, por alíneas, qual o processo que realizei no tratamento das

segundas edições dos livros que me foram propostas, sendo eles: Dhammapada - As

Palavras de Buddha, Bhagavad-Gita e o O Evangelho de Buda.

a) Conversão e abertura da edição antiga para QuarkXPress 2016;

b) Download do tipo de fontes em falta, uma vez que sem as fontes era

imperceptível o que estava escrito;

c) Abertura de um novo separador para começar nova edição;

d) Medição da página para elaborar o X-Y-L-A11

dos guias de margem da página

modelo;

e) Copiar e colar apenas o texto em português (no caso das edições bilingues) de

um separador para o outro;

f) Repaginar;

g) Impressão para revisão;

h) Revisão;

i) Edição de imagem da nova capa através do Photoshop;

11

X – Margem Superior, Y – Margem Inferior, L – Largura, A – Altura.

8

j) Impressão da capa;

k) Provas de cor;

Estas funções tiveram como objectivo a minha aprendizagem do processo de

edição que envolve a criação do livro e, tratando-se de uma editora com poucos recursos

e poucas pessoas, tive total liberdade para fazer o meu trabalho ao meu próprio ritmo,

aprendendo muitas vezes com os ensinamentos do professor Paulo e da professora

Severina e outras vezes sendo autodidacta e descortinando soluções para certos

problemas por conta própria.

9

RELATÓRIO DE ESTÁGIO DE MESTRADO – Ésquilo, Edições & Multimédia

CARACTERIZAÇÃO DO ESTÁGIO

Bhagavad-Gita

O Bhagavad-Gita tem duas personagens principais, Arjuna e Krisna e é através

dos seus diálogos que encontramos reflectidas as grandes questões da filosofia humana

e como chegar à iluminação da consciência. Conhecida como a “Bíblia Hindu” foi das

três obras que paginei e revi a que me deu mais trabalho.

Primeiro, importa referir que a 1ª edição do Bhagavad-Gita editada pela Ésquilo

em 2010 não foi devidamente revista. Tal está comprovado na ficha técnica do livro, no

anexo 1 da página 27, que não refere nenhum processo de revisão. Esta obra bilingue foi

traduzida do sânscrito para português por José Carlos Calazans, que, não sendo

português, cometeu erros ortográficos graves que passaram por todo o processo de

edição até à venda ao público. Enumero apenas alguns: portãos, premanência,

precepção, invejavou, abilidades, sacrifico, renûncia, exclarecer, expontânea,

aconcelhando, hermita, incêndeia, deante, melhore12

, inemizades, alegrarme-ei, etc e

também ao nível de conjugação verbal e nominal.13

A edição desta obra apresentou algumas especificidades:

a) Todos os nomes de personagens, assim como nomes representativos da filosofia

oriental deveriam estar em itálico.

b) Devido ao alfabeto sânscrito, muitas dos nomes de personagens e outras palavras

tinham acentuação que não é usada no alfabeto português, os chamados

diacríticos. À frente de cada uma das letras que deveriam ser acentuadas estava o

símbolo □, que tive de rastrear por todo o livro e substituir pelo símbolo

correspondente à letra.14

c) Os travessões deveriam ser grandes, por ordem explícita do professor Paulo,

tendo de rastrear todos os travessões pequenos e substitui-los. 12 Na frase “Arjuna é o melhore guerreiro e o melhor homem entre os Kurus”. Nota 237, página 129.

13 Anexo 2, na página 27, 28 e 29.

14 Para tal, utilizei uma folha de word, facilitando o meu trabalho: tudo o que tinha de fazer era copiar e

colar a letra correspondente. Anexo 3 na página 30.

10

d) Devido às muitas frases penduradas que fui encontrando, recorreu-se muitas

vezes à diminuição do espaço entre linhas ou entre letras, para que uma página

não fosse impressa com apenas algumas letras.

e) Por ter muitas notas de rodapé, a confirmação era essencial. Como tal,

circundava todas as notas no corpo de texto e confirmava se estavam correctas

com as notas em rodapé15

.

f) O início de um novo capítulo deveria sempre começar na página ímpar, apesar

de tal não se ter verificado na 1ª edição impressa.

g) No glossário, no final do livro, devido às constantes formatações que foram

acontecendo ao longo da edição, acabou por existir muitos pendurados e

também o traço repetido (--)16

.

Após o trabalho de eliminação do sânscrito, repaginação e revisão, O Bhagavad-

Gita passou de 320 para 192 páginas.

Dhammapada – As Palavras de Buddha

Esta obra trata de outra religião oriental, o Budismo. Ao contrário do Bhagavad-

Gita, o Dhammapada – As Palavras de Buddha é a “Bíblia Budista”, enumerando todos

os ensinamentos pelos quais se regem (ou devem reger) os praticantes desta religião.

Senti que o Dhammapada tinha uma importância acrescida pela cultura

associada ao Budismo e por ser uma religião que transgrediu para algo mais,

nomeadamente a prática de meditação, o yoga, que hoje é praticado por um grande

número de pessoas em todo o Mundo. Ou seja, o Dhammapada não é o meio para se

chegar ao yoga hoje em dia, mas ao contrário: a prática de yoga e o interesse crescente

na meditação influenciam os seus praticantes a procurarem querer saber mais sobre o

que lhe é adjacente. Neste caso, estando afastados geograficamente da fonte da religião,

o livro é a melhor ferramenta para que as pessoas interessadas aprofundem os seus

conhecimentos. Como tal, considero que o Dhammapada é dos três o livro mais

comercial, por esse mesmo motivo. Em comparação com O Evangelho de Buda é uma

15 Anexo 4, na página 30.

16 Anexo 5, na página 31.

11

obra mais forte em termos de conteúdo mas que explica as profundidades do

pensamento oriental até se atingir o nirvana, ou seja, todos os passos que os Budistas

têm de seguir para atingir o estado pleno de libertação eterna.

Mesmo tendo sido revisto, como mostra o anexo 6 na página 31, após a minha

experiência com a ortografia do autor no Bhagavad-Gita, tive o cuidado de rever toda a

obra novamente. Contudo, a minha maior dificuldade foi a parte técnica da edição.

Estando dividido em sutras, tive de certificar-me que o espaço entre cada um dos sutras

estava correcto e era uniforme ao longo de todo o livro e que nenhum ficava partido ao

meio17

. O mesmo aconteceu com as notas de rodapé e os diacríticos, no primeiro caso

tendo de ter atenção para me certificar de que todas as notas estavam correspondentes18

,

no segundo de que substituía o símbolo □ pelo símbolo substituto. Também à

semelhança do Bhagavad-Gita, os nomes de figuras ou práticas do Budismo tinham de

estar em itálico. Após todo o processo de paginação, tive de me certificar de que as

páginas de início de capítulo não tinham número de página, tal como estava na 1ª edição

da obra.

A meu favor, realço o facto de que o Dhammapada não tem imagens, o que me

possibilitou terminar o meu trabalho mais rápido.

O Evangelho de Buda

Este foi, dos três, a obra mais fácil pois já estava revista e só precisava de um

update, principalmente a nível estético. Foi também o livro, dos três, cujo texto não

apresentava sânscrito, tendo facilitado em muito o meu trabalho.

Foi o último livro que repaginei, pelo que aproveitei os meus conhecimentos

práticos dos dois primeiros casos para desenvolver um trabalho mais perfeccionista.

Comecei o livro de raiz, tendo todo o cuidado para acertar nas medidas da página, e

depois copiei e colei o texto de um separador do Quark (onde estava a 1ª edição) para o

outro separador.

17 Anexo 7, na página 32.

18 Anexo 8, na página 33.

12

O Evangelho de Buda, à semelhança do Bhagavad-Gita é uma obra com muitas

imagens. No início de cada capítulo há uma ilustração19

, assim como entre capítulos. O

segredo para ter realizado este trabalho em pouco tempo foi 1) ter adquirido um

conhecimento mais aprofundado sobre o Quark, através das outras duas obras, sendo

todo esse trabalho técnico fulcral para o bom desempenho do meu trabalho; 2) O

Evangelho de Buda assemelha-se mais à narrativa de uma história, dando a conhecer ao

leitor todo o caminho que Buda, o Iluminado, percorreu desde o berço até à morte. O

que quero dizer é que o facto de ter uma escrita mais leve e fluída faz-nos olhar para o

tema de outra forma; e 3) o facto de ter pouco sânscrito ajudou na questão tempo, não

tendo de recorrer intensivamente à folha de word para substituir os diacríticos em erro.

Tive toda a liberdade durante o processo de repaginação para elaborar esta 2ª

edição da forma que achasse mais conveniente. Não me foram impostos tipo de fontes

nem dadas instruções sobre em que página deveriam estar as imagens, nem mesmo que

todas as imagens deveriam estar no livro. O que o professor Paulo me pediu foi que

melhorasse esteticamente o aspecto final. Terminei a 2ª edição de O Evangelho de Buda

com menos 24 páginas20

, tendo feito uma selecção das imagens utilizadas na 1ª edição e

eliminado alguns pendurados.

19 Ilustrações de Olga Kopetzky.

20 A 1ª Edição tem 240 páginas, a 2ª, 216.

13

RELATÓRIO DE ESTÁGIO DE MESTRADO – Ésquilo, Edições & Multimédia

CARACTERIZAÇÃO DO ESTÁGIO

O Design Gráfico

Como já referi anteriormente, coube-me, para além da paginação e revisão dos

textos, elaborar o design gráfico das novas capas21

das obras.

Para tal, aprendi vagamente a trabalhar com o Adobe Photoshop, onde elaborava

as minhas propostas de capa para posteriormente apresentar ao professor Paulo.

Felizmente, para este trabalho, em muito contribuiu o que aprendi na disciplina de

Técnicas de Edição do 2º semestre, complementado com a ajuda preciosa do Manual

Prático de Produção Gráfica22

, onde retirei informações e ideias.

Para o Bhagavad-Gita, ficou claro desde o início que teria de incluir as figuras

principais da obra, Krishna e Arjuna, também como forma de fugir ao minimalismo do

Ohm23

. Utilizei o Google como motor de busca, certificando-me de que a imagem não

tinha direitos de autor e podia ser usada livremente para outros fins. A minha escolha

recaiu sobre uma imagem em que Krishna está no coche com Arjuna, tendo feito

algumas edições de imagem para conseguir uma cor mais aproximada com aquela que,

em conjunto com o professor Paulo, já tínhamos decidido que seria o fundo da capa:

tons de castanho, acabando por optar-se por um degradé. Acabamos por usar uma

repetição da imagem escolhida por baixo do degradé, separadas por um filete castanho

onde pode ler-se o título Bhagavad-Gita – A Canção do Senhor, em sânscrito. É apenas

um adorno, uma vez que o conteúdo do texto não contempla o sânscrito, mas tendo em

consideração que essa pequena nota dá uma identidade mais oriental à capa. Adicionou-

se igualmente a nota “clássico do pensamento oriental”, pensando em todos os leitores

que não conhecem a obra e, por isso, não conseguem identificá-la apenas pelo título.

A parte de trás da capa também tem a imagem de Krishna e Arjuna, igualmente

por baixo do degradé em tons de castanho, apesar de ser pouco perceptível. Colocou-se

igualmente o título da obra, em português e sânscrito, lado a lado. Em relação à sinopse,

21

Anexo 9 e 10, na página 34 e 35.

22 BARBOSA, Conceição. Manual Prático de Produção Gráfica. Pincipia, 3ª Edição, 2012.

23 Ilustração da 1ª edição no anexo 11 na página 36.

14

optou-se por reproduzir igual à 1ª edição: tem duas citações retiradas do livro, uma

breve descrição da obra e uma citação de Carlos João Correia, Professor Associado da

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Sobre o processo de edição da imagem e texto contido na capa, a arte final foi

enviada para impressão em alta resolução, em formato TIFF. Foi também durante este

processo que defini os acabamentos, ou seja o “corte” ou “bleed”24

. O “bleed” garante

que, mesmo que haja um desvio na guilhotina durante o corte, não apareça o branco do

papel à volta da imagem. (BARBOSA, 2012).

De realçar que nem todas as letras ou fontes foram produzidas em formato

vectorial no Adobe Photoshop. Na capa do Bhagavad-Gita apenas o título Bhagavad-

Gita – A Canção do Senhor foi feito directamente no Photoshop, tendo as restantes

fontes sido colocadas à posteriori no QuarkXPress.

Em relação à capa do Dhammapada – As Palavras de Buddha, o processo já foi

mais simples, uma vez que já estava mais familiarizada com o programa. Com o

objectivo de não se ter uma capa parecida com a anterior25

, ilustrada com um terço

Japamala – o terço dos budistas – optou-se por usar uma imagem de Buda, seguindo o

mesmo processo que se utilizou no Bhagavad-Gita, ou seja, procurando através do

motor de busca Google uma imagem sem direitos de autor. Optámos por uma imagem

de uma estátua de Buda, com um fundo escuro, tendo-se definido que a cor da capa

seria escura. Após algumas tentativas, decidiu-se que os tons de verde seriam os ideais.

Encostou-se a imagem ao canto esquerdo e o título ficou no centro, a amarelo; o

subtítulo a branco, por baixo. Igualmente ao que aconteceu com o Bhagavad-Gita, as

restantes letras já foram colocadas posteriormente no QuarkXPress. Na parte de trás da

capa colocou-se o subtítulo As Palavras de Buddha, o primeiro sutra do Dhammapada e

duas citações de Jose Carlos Fernandez, o Director da Nova Acrópole em Portugal,

retiradas do Posfácio.

Após a arte final estar concluída, houve um certo receio de que a cor não

apresentasse a mesma tonalidade após a impressão, algo que se veio a confirmar,

apresentando uma tonalidade mais clara do que é visível através do ecrã do computador.

Essa prova de cor é importante; neste caso, como se considerou que o verde

24 Imagem da capa com “bleed” no anexo 9, na página 34.

25 O antes e o depois das capas está disponibilizado no anexo 9, 10 e 11 da página 34, 35 e 36.

15

ligeiramente mais claro também ia de encontro ao pretendido optou-se por não alterar a

imagem.

A principal diferença na elaboração destas duas capas foi a inclusão do logótipo

da Ésquilo em apenas uma: só o Dhammapada – As Palavras de Buddha tem na capa,

no centro inferior, o logótipo da Ésquilo. Para o Bhagavad-Gita ficou a incógnita se

ficaria sem logótipo ou se seria incluído o da Eranos, Edições & Multimédia26

.

26

À data do término do meu estágio tal ainda não tinha ficado decidido.

16

RELATÓRIO DE ESTÁGIO DE MESTRADO – Ésquilo, Edições & Multimédia

CARACTERIZAÇÃO DO ESTÁGIO

Principais Dificuldades

No decurso do estágio deparei-me com algumas dificuldades, que passo agora a

enumerar.

Não tendo tido qualquer contacto com o QuarkXPress foi necessário que o

professor Paulo me fizesse uma breve introdução do programa. Apesar de ser

semelhante ao InDesign (com o qual já sabia trabalhar) tive algumas dificuldades,

nomeadamente ao nível da ligação entre capítulos, uma função pouco intuitiva que me

dificultou o trabalho. Demorei algum tempo a perceber como ligar os capítulos e por

vezes, quando pensava que já sabia fazer as ligações correctas, não existia justificação

para explicar as ligações mal feitas que iam aparecendo ao longo do livro. Isso

influenciou também o posicionamento das imagens no livro, acontecendo que quando

colocava uma imagem, desformatava tudo e teria de procurar pelas mais de duzentas

páginas do livro onde estava a ligação mal feita.

Também ao nível da medição das páginas deparei-me com algumas dificuldades.

Por erro meu não medi correctamente a página da primeira vez, no caso do Bhagavad-

Gita, e já tinha realizado toda a paginação. Quando tentei corrigir, nem todas as páginas

assumiram a correção. Optou-se por não desperdiçar aquele trabalho, mesmo que as

páginas ímpares ficassem com medidas ligeiramente maiores que as páginas pares.

Ao abrir a 1ª edição do Bhagavad-Gita para eliminar o sânscrito, apercebi-me da

existência de diacríticos, letras com acentuação que não usamos no nosso alfabeto. O

que acontecia é que o tipo de letra utilizado no texto não reconhece os diacríticos,

estando à frente de cada uma dessas letras estava um quadrado □27

. O meu trabalho

consistia em substituir cada um desses quadrados pela letra/símbolo correcto e rever

tudo novamente para me certificar de que nenhum tinha faltado. Para tal, baseei-me

numa folha de word onde coloquei todos os símbolos28

utilizando a fonte Times New

Roman29

, facilitando o trabalho (tudo o que tinha de fazer era copiar e colar).

27 No anexo 5 da página 31 há um exemplo do símbolo no glossário.

28 No anexo 3 da página 30.

29 Quando copiava para o Quark, o símbolo assumia a fonte que estava a ser utilizada.

17

E porque o Bhagavad-Gita foi não só a primeira obra que paginei e revi como

também aquela que precisava de mais cuidados, tive toda a atenção enquanto preparava

a revisão do texto. Deparei-me com erros crassos de português que passaram na

primeira revisão, como explicado e exemplificado na página 4.

Depois, ao nível do design de capa trabalhei activamente com o Photoshop,

programa com o qual tinha pouco experiência e com o qual não estava familiarizada.

Para isso muito me ajudou o livro Manual Prático de Produção Gráfica. Não tinha

background em edição de imagem. A única capa que já tinha feito foi na disciplina

Técnicas de Edição, no 2º semestre da componente lectiva do mestrado.

18

RELATÓRIO DE ESTÁGIO DE MESTRADO – Ésquilo, Edições & Multimédia

CARACTERIZAÇÃO DO ESTÁGIO

Análise crítica do plano de estágio

Na altura em que elaborei o meu plano de estágio para a Ésquilo tinha como

objectivo aplica-lo de forma a aperfeiçoar as minhas competências em contexto real de

trabalho.

Assim, de todos os pontos que havia definido no meu plano de estágio, concluí o

meu objectivo de estar envolvida no processo de “fazer um livro”, desde a edição

propriamente dita do conteúdo, ao design de capa, até à impressão do livro. Pelo meio,

complementei os meus conhecimentos dos programas digitais utilizados no processo de

edição, nomeadamente Photoshop, Ilustrator, InDesign, etc., tendo, neste caso, utilizado

apenas o Photoshop e o QuarkXPress.

Este estágio correu melhor que poderia pensar ao nível da autonomia que me foi

concedida: fiz, por minha conta, a edição e revisão de textos, detectei erros ortográficos

e falhas/lapsos na estética da edição, ficando à minha responsabilidade todo esse campo

de revisão. Isto porque, para além de mim, mais ninguém iria rever as obras em questão.

Estagiar na Ésquilo foi também um grande desafio, na medida em que me

deparei com a realidade do mercado editorial em Portugal. Percebi como funciona a

editora ao nível de divulgação/promoção/marketing das suas obras, conseguindo situá-la

no mercado editorial enquanto pequena editora, algo que também se tornou mais visível

em relação às novas tecnologias de divulgação do livro, nomeadamente ao nível do e-

book, que é inexistente até à data;

Tive também a oportunidade de acompanhar a editora nos seus projectos paralelos e,

inclusive, assisti a uma aula de filosofia prática e à apresentação crítica do livro O

Alquimista30

, recorrendo-se à história do filósofo italiano Giordano Bruno para

ilustração.

No geral cumpri a grande maioria de pontos que defini para o meu plano de estágio,

não tendo, contudo, realizado a 100% o que pretendia. Nomeadamente ao nível de obter

um outro nível de prática com o InDesign que iniciei durante a componente lectiva do

30

LIVRAGA, Jorge Angel. O Alquimista. ÉSQUILO, 2006.

19

mestrado, na aula prática de Técnicas de Edição e também ao nível da pós-produção

realizada anteriormente, uma vez que acompanhei o processo de criação digital do livro

mas nunca cheguei a vê-lo enquanto produto físico. Outra das minhas ambições foi

perceber de que forma a editora faz a sua promoção e divulgação, na esperança de que

pudesse aplicar os meus conhecimentos ao nível das redes sociais para os auxiliar nesse

processo. Acabei por perceber que a utilização nas redes sociais por parte da Ésquilo é

amadora, existindo uma preterência pelo envio de e-mails, newsletters e mensagens de

texto para os associados da Nova Acrópole e amigos e conhecidos a anunciar que no dia

X pelas X horas se realiza a apresentação do livro X. Por exemplo, na apresentação

crítica do livro O Alquimista, realizada ao final da tarde, apenas compareceram os três

alunos das aulas práticas de filosofia (sendo que um deles era o autor da apresentação) e

oito pessoas que frequentam a Nova Acrópole Oeiras-Cascais. Dessa forma, a zona de

influência da Ésquilo é limitada, cingindo-se apenas ao seu núcleo, sem se expandir

para outro público que pode estar igualmente interessado nas temáticas mas não

comparece por falta de conhecimento.

Em relação à adopção e adaptação às novas tecnologias, algo de que falarei

aprofundadamente no próximo capítulo, a Ésquilo ainda não funciona com e-books nem

tem qualquer conhecimento sobre o processo de como elaborar um livro digital.

Não posso deixar de realçar, novamente, que o professor Paulo e a professora

Severina sempre me deram total liberdade para aplicar os meus conhecimentos e fazer

uso da minha criatividade e imaginação. Durante todo o processo de edição no qual

participei, realizei sempre as minhas tarefas com total autonomia, passando depois por

um processo de crítica construtiva em que, conjuntamente, definíamos o que estava

correcto e o que precisava de ser ajustado.

Sobre o estágio tenho apenas pena de não ter feito a edição de obras de outros

géneros, nomeadamente sobre assuntos ocidentais.

20

RELATÓRIO DE ESTÁGIO DE MESTRADO – Ésquilo, Edições & Multimédia

AS NOVAS TECNOLOGIAS NA EDIÇÃO DE TEXTO

“As we enter the twenty-first century, digital libraries appear to be as critical to

humanities scholarship as brick-and-mortar libraries were to scholarship in previous

centuries.”31

Howard Besser

O QuarkXPress

A utilização do QuarkXpress já não é muito comum na indústria do mercado

editorial e gráfico e as editoras optam por programas mais recentes, que apresentam

mais e melhores funcionalidades, que proporcionam ao utilizador uma utilização mais

intuitiva, uma forma mais simples e prática de utilizar um programa gráfico. Falo, por

exemplo, do Adobe Illustrator ou do Adobe InDesign, este último particularmente

utilizado na concepção gráfica do livro e que também foi o programa utilizado na

disciplina de Técnicas de Edição, no 2º semestre do Mestrado de Edição de Texto.

Não que o QuarkXPress não seja intuitivo – aliás, quem tem conhecimentos de

InDesign consegue trabalhar na perfeição com o Quark – apenas já se tornou um modo

obsoleto de proceder à edição tanto textual como gráfica.

Durante o meu estágio na Ésquilo trabalhei sempre com o QuarkXPress na

edição dos livros, sendo o programa que a editora sempre utilizou para fazer as suas

edições. A versão anterior do livro era-me fornecida em formato Quark e abria-a no

programa para começar a trabalhar a partir do que já estava feito.

O facto de a Ésquilo estar um passo atrás das outras editoras no que toca à

edição não é apenas visível deste ponto de vista mas é um indicativo de que estamos

perante uma pequena editora. Sei-o igualmente por experiência própria, uma vez que,

após o estágio fui a duas entrevistas em editoras que após a descrição “Trabalhei com

31

BESSER, Howard. The Past, Present, and Future of Digital Libraries. Blackwell Publishing Ltd,

2007.

21

QuarkXPress” me responderam “Isso já nem se usa”. Também não significa que não

estejamos preparados para trabalhar com o InDesign, apenas não temos o conhecimento

suficiente do programa para que o apliquemos com a naturalidade pretendida.

Considero que foi um ponto negativo na minha experiência, compreendendo na

perfeição as limitações da editora e também a relutância do professor Paulo e da

professora Severina em adoptar novos programas quando conhecem e funcionam tão

bem com o QuarkXPress. O Quark não segue, contudo, na minha opinião, o

desenvolvimento tecnológico dos programas de edição ao nível do InDesign. Tem as

mesmas funcionalidades, sim, mas não inova, não produz outras ferramentas, acabando

por ser o reflexo do que se passa com a Ésquilo.

Por exemplo, falando em questões técnicas do programa, a ligação (ou lincagem)

no QuarkXPress que permite ligar capítulos e separá-los para que, ao editar, não

interfira com os restantes ao longo da obra, é confusa e pode gerar uma série de

obstáculos. Ao fazer a edição das obras, deparei-me com páginas ligadas de forma

confusa, que não seguia o padrão normal por capítulos. Passo a explicar: o capítulo 1

deveria estar ligado entre si, o 2 igualmente e assim sucessivamente, mas sem ligação

entre capítulos. Aquilo com que me deparei foi o final do capítulo 1 (por exemplo)

ligado acidentalmente com o início do capítulo 4 (por exemplo), o que significava que,

quando fazia uma alteração no capítulo 1, desformatava o 4, algo que demorei muitos

dias a perceber por que motivo acontecia. Faço o reparo, para quem nunca trabalhou

com Quark que as ligações não estão perceptíveis nem visíveis durante a edição. É

preciso abrir uma função que nos permite ver as setas de ligação – algo que em mais de

300 páginas se torna complicado, especialmente se estiverem desformatadas.

O e-book

As transformações tecnológicas que se fizeram sentir na viragem do século,

especialmente com o aparecimento da internet provocaram uma série de alterações na

sociedade, especialmente ao nível da forma como as pessoas comunicam, entre si e com

o mundo que as rodeia.

22

Este desenvolvimento digital também se fez sentir nas editoras que, perante a

ameaça patente nos últimos anos do possível desaparecimento do papel, sentem que têm

como desafio adaptar-se a uma sociedade cada vez mais digital.

Surgiu então o livro electrónico, ou e-book, fruto de uma ameaça ao sector do

papel, do suporte impresso mas que pode ser igualmente visto como uma oportunidade.

Actualmente assistimos a uma convergência entre os livros tradicionais e os livros

electrónicos, sendo que a maioria das editoras e as grandes superfícies de distribuição já

optam por disponibilizar ao leitor uma panóplia de livros em formato e-book.

Considero a Ésquilo uma editora tradicional e que, tal como expliquei, atravessa

uma fase de transição na procura de soluções mais tecnológicas que a aproximem de

outras editoras do mercado, mais desenvolvidas a nível digital. Essa concorrência tem

sido muito acentuada pela criação dos e-books, que são de mais fácil acesso e quase

sempre gratuitos ou a preços mais convidativos que o livro impresso.

Foi-me pedido, no decurso do meu estágio, que identificasse qual a melhor

forma de se fazer um e-book do Bhagavad-Gita, numa tentativa de incluir esse produto

no site da Ésquilo e analisar qual o impacto que traria nas vendas da editora. Note-se

que a Ésquilo tem um separador no seu site denominado “multimédia”. Aí, onde se

poderiam encontrar e-books, estão disponíveis um audiolivro e um CD-Rom – de A Via

do Bodhisattva e Os Descobrimentos Portugueses, respectivamente – a um preço de

9,50€ cada. Ora, para além de as alternativas de formatos apresentados não serem

apelativos, o preço a que estão disponibilizados não é competitivo32

. Enalteço, no

entanto, que o audiolivro é uma alternativa viável para todos aqueles com deficiência

auditiva e invisuais, contudo, só está disponibilizada uma obra nesse formato (A Via do

Bodhisattva), que interessa apenas a um grupo reduzido de pessoas.

Pesquisei então qual a melhor maneira de elaborar um e-book, uma vez que era

algo que nunca antes havia feito nem para o qual tinha qualquer preparação. O processo

é algo complicado de se entender, especialmente porque o Bhagavad-Gita é uma obra

com muitas imagens e é necessário coordenar digitalmente o texto com as imagens.

32 Actualmente já se encontram livros nas grandes superfícies comerciais que custa metade do valor que a

ÉSQUILO cobra por um audiolivro.

23

Acabei por preparar um e-book através de um link encontrado na Internet que convertia

directamente o ficheiro para um livro digital, não sabendo até hoje se o resultado será ou

não aproveitado.

24

RELATÓRIO DE ESTÁGIO DE MESTRADO – Ésquilo, Edições & Multimédia

CONCLUSÃO

A realização deste estágio foi para mim essencial para adquirir competências

práticas e técnicas com as quais temos pouco contacto durante o período lectivo do

Mestrado. Permitiu-me adquirir mais conhecimentos, informações e desenvolver um

conjunto de novas práticas que, sem este desenvolvimento de competências em âmbito

real de trabalho, não teria conseguido reunir.

Hoje posso dizer que, mesmo sendo em QuarkXPress, já consigo elaborar um

livro de raiz. Já consigo fazer um livro. E não apenas quanto às componentes técnicas

da edição, também já consigo rever todo o conteúdo de uma obra e procurar torná-la o

mais “limpa” possível. Esta componente não lectiva do mestrado permite a preparação

que de outra forma não teria.

No desenvolvimento deste relatório abordei as principais dificuldades (na página

16) mas também posso enumerar as mais-valias. Este estágio foi não só um benefício

para a minha formação académica como também o tem sido na minha vida profissional.

Acabei por sair do estágio por ter sido aceite na FIL – Feira Internacional de Lisboa, ao

abrigo do programa de estágios profissionais do IEFP. Actualmente, trabalho no

departamento de comunicação, mais concretamente na assessoria de imprensa, mas

realizando tarefas múltiplas, onde já se inclui a revisão de relatórios, minutas e

protocolos. Essa função foi-me dirigida por saberem que estudei Edição de Texto e por

considerarem que tenho competências suficientes para garantir que a comunicação

interna e externa da empresa circule sem erros ortográficos e com uma apresentação

uniforme.

Sobre a Ésquilo, importa referir que o facto de ter estagiado numa pequena

editora me proporcionou outro tipo de experiência que não teria se tivesse realizado o

estágio curricular numa grande editora. Isto porque o facto de não terem editores, nem

revisores, nem paginadores, nem designers, etc., me permitiu explorar um pouco de

todas as competências teóricas e aprofundar as práticas que aprendi no decorrer dos dois

semestres de componente lectiva do Mestrado. Essa é outra das mais-valias que retiro da

realização deste estágio.

25

Infelizmente, sei que o mercado editorial é reduzido e muito fechado. Espero

ainda ter a oportunidade de trabalhar em contexto real de trabalho numa editora e

colocar em prática tudo o que aprendi. Mas, se não o fizer, guardo com gratidão toda a

minha experiência.

Alguém anónimo uma vez escreveu “It’s never a waste of time if you learned

something”. Concordo.

26

RELATÓRIO DE ESTÁGIO DE MESTRADO – Ésquilo, Edições & Multimédia

BIBLIOGRAFIA

ALAMARGOT, D., & CHANQUOY, L. Through the models of writing. Kluwer

Academic Publishers, Dordrecht-BostonLondon, 2001.

BARBOSA, Conceição. Manual Prático de Produção Gráfica. Pincipia, 3ª Edição,

2012.

BESSER, Howard. The Past, Present, and Future of Digital Libraries. Blackwell

Publishing Ltd, 2007.

CALAZANS, José Carlos. Bhagavad-Gita. Ésquilo, 2010.

CALAZANS, José Carlos. Dhammapada – As Palavras de Buddha. Ésquilo, 2006.

CARUS, Paul. O Evangelho de Buda. Ésquilo, 2007.

L. WEST, Martin. Crítica Textual e Técnica Editorial. Fundação Calouste Gulbenkian,

2002.

WEBGRAFIA

https://www.researchgate.net/profile/Denis_Alamargot/publication/280014349_Throug

h_the_Models_of_Writing/links/55a3cfe708aed99da24d2595/Through-the-Models-of-

Writing.pdf

http://www.esquilo.com/livros.html

27

RELATÓRIO DE ESTÁGIO DE MESTRADO – Ésquilo, Edições & Multimédia

ANEXOS

1. A 1ª edição do Bhagavad-Gita, que não faz menção a um Revisor.

28

29

2. Os maiores erros ortográficos com que me deparei durante a revisão do Bhagavad-

Gita.

30

3. A folha word com os diacríticos.

4. A verificação da concordância das notas na revisão do Bhagavad-Gita.

31

5. O exemplo dos (--) no glossário do Bhagavad-Gita.

6. Já o Dhammapada – As Palavras de Buddha contava com uma revisora na ficha

técnica.

32

7. A verificação do espaço entre os sutras no Dhammapada – As Palavras de Buddha,

para me certificar de que tudo estava uniforme.

33

8. A verificação de todas as notas no processo de revisão do Dhammapada – As

Palavras de Buddha.

34

9. Nova capa da 2ª Edição do Bhagavad-Gita.

35

10. Nova capa da 2ª Edição do Dhammapada – As Palavras de Buddha.

36

11. As capas das primeiras edições de ambas as obras.

Nas páginas seguintes deixarei a 2ª edição do Bhagavad-Gita até ao primeiro capítulo.

Bhagavad-gita- -A canção do Senhor

bhagavad-gita_24_Bhagavad-Gita pt 26-10-2017 18:12 Página 3

Ésquilo edições e multimédia, ldaAv. António Augusto de Aguiar, 17 — 4.º Esq. — 1050-012 Lisboa — Tel.: 213 502 410 — Fax: 213 502 419

E-mail: [email protected] — Endereço na Web: www.esquilo.com

Título: Bhagavad-gita – A Canção do Senhor

Autor: Tradução dos textos: José Carlos Calazans Direcção Editorial: Paulo Alexandre Loução Paginação: Inês Rosado Impressão: Distribuição: Sodilivros – Tel.: 213 815 600 1ª Edição: Janeiro de 2010 ISBN: 978-989-8092-?? Depósito Legal: ??????/09 Copyright: © Ésquilo edições e multimédia, lda

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Tradução do sânscrito para português

JOSÉ CARLOS CALAZANS

Bhagavad-gita- -A canção do Senhor

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Í n d i c e

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Quadro – Bh ī ṣ m a-Pa rva n (s e c ç ã o d e Bh ī ṣ m a) . . . . . . . . . . . 41

Tabela Fonética (vogais) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

Tabela Fonética (consoantes) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

Texto sânscrito traduzido e comentários . . . . . . . . . . . . . . . . 47

Textos Citados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271

Glossário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205

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À Professora Margariada Correa de Lacerda

a quem se deve em Portugal o continuado estudo

da língua e cultura clássica indiana.

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mêÉÑ•Åáç

esta edição da Bhagavad-Gītā, A Can ção do Senhor, da responsabilidadede José carlos calazans, constitui a primeira edição crítica, em língua portu-guesa, de um dos textos fun da mentais, não só da cultura indiana, mas da pró-pria humanidade.

só no final do século XvIII, a cultura ocidental teve acesso a uma traduçãointegral da Bhagavad-Gītā. com efeito, em 1785, é publicado em Londres, sobos auspícios da Companhia Inglesa das Índias Orien tais, a tradução inglesaintegral do sânscrito de um diálogo poético tra vado entre um príncipe indianoe o seu cocheiro particular no momento em que ambos se preparavam para en-trar numa guerra1. este diálogo poético é naturalmente a Bhagavad-Gītā ou, sese preferir, a canção ou canto poético — a Gītā — daquele que é, por natureza,Bhāgavat, isto é, adorável e divino, o que permite a José carlos calazans tra-duzir o título do poema com a designação A Canção do Senhor. convém su-blinhar que a tradução inglesa, realizada por charles Wilkins, um obscurofun cio nário da Companhia das Índias, que dedicou toda a sua vida ao estudodo sânscrito e da literatura tradicional indiana, não foi, no entanto, a pri meiraversão ocidental deste poema. como é sublinhado justamente pelo editor, naIntrodução a esta obra2, o colégio da companhia de Jesus de Goa já tinha reali -zado uma tradução de grande parte deste canto poético, mas infelizmente paraa cultura portuguesa e europeia, o manuscrito fi cou esquecido.

apesar desta obra ser, na expressão do orientalista francês oi to cen tista,emile-Louis Burnouf, “provavelmente o mais belo livro que al gu ma vez saiu

11 ________

___________1 – The Bhagvat-Geeta or Dialogues of Kreeshna and Arjoon; in eighteen lectures with notes, trad.

do sânscrito por charles Wilkins, Londres: c. nourse. Primeira edição de 1785.2 – cf. Introdução, por José carlos calazans.

bhagavad-gita_24_Bhagavad-Gita pt 26-10-2017 18:12 Página 11

das mãos do homem”3, só no final do século XvIII, a europa culta o pôdeler na sua integralidade. não devemos, assim, estranhar a surpresa e o entu-siasmo da europa romântica, quando se apercebe, através da versão integralinglesa da Bhagavad-Gītā, da existência de uma literatura prodigiosa, exu-berante e especulativa na distante Índia. o texto que era apenas consideradocomo “uma das maiores curiosidades algumas vez apresentadas ao mundoliterário”4 — para empregar a ex pressão divertida com que o editor publicitouo livro — ir-se-á tornar no filão de uma investigação que, ainda hoje, pros-segue em torno do estudo e conhecimento do pensamento clássico indiano eda sua visão filosófica do mundo. o filósofo norte-americano emerson de-signará esta obra como o “primeiro de todos os livros”,5 na qual ressoa “avoz de uma velha inteligência” com tal intensidade que — diz-nos, por suavez, o escritor Thoreau — “o nosso mundo moderno e a sua literatura nospa recem [em comparação] insignificantes e triviais”.6

contrariando uma suposição ainda hoje generalizada, este poema indianonão é um texto autónomo, mas insere-se numa obra mais geral da literaturaindiana, o Mahābhārata, constituindo apenas um dos episódios mais célebresdo sexto livro desta colossal epopeia poética cuja redacção se estende entreos séculos Iv antes e depois da nossa era.7 se, no prin cípio do século XX,

12 ________

___________3 – ce livre est probablement le plus beau qui soit sorti de la main des hommes” (Bornouf, e.-- L.

c.1950. La Bhagavad-Gita ou le chant du bienheureux. Poème Indien, ed.bilinguesânscrito/francês, Paris: Librairie de l’art Indépendant , vi. a primeira edição é de 1861”.

4 – “One of the greatest curiosities ever presented to the literary world. In the spring of 1785, aLondon bookseller advertised the forthcoming publication of a remarkable sanskrit workin translation, a series of dialogues between an Indian prince and his god. modestly financedby the east India company, the publication was aimed at the literary world. a curiosity itcertainly was, for in 1785 europe was practically unaware that India had a literary traditionof its own.” (sharpe, eric J. 1985. The Universal Gītā. Western Images of the Bhagavad-Gītā. A Bicentenary Survey, La salle [Illinois]: open court Publish, 3).

5 – “I owed a magnificent day to the Bhagavat-Gita. It was the first of books [...] The voice of an oldintelligence” (emerson. 1909-14. Journals. Boston:houghton mifflin, vII 241242).

6 – “In the morning I bathe my intellect in the stupendous and cosmogonal philosophy of theBhagvat-Geeta [...] in comparison with which our modern world and its literature seem punyand trivial” (Thoreau. 1962. “The Pond in Winter” in Walden; or, Life in the Woods, newYork: collier, 198). Primeira edição de 1854.

7 – “such a dating, from 400 B.c. till a.d. 400, is of course absurd from the point of view of asingle literary work. It makes sense when we look upon the text not so much as one opus butas a library of opera. The we can say that 400 B.c. was the founding date of that library, andthat a.d. 400 was the approximate date after which no more substantial additions were madeto the text.”

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foi colocada a hipótese da “canção do senhor” ser uma obra autónoma, in-terpolada no meio da grande epopeia, hoje é praticamente consensual a teseformulada pelo editor da edição crítica inglesa do Mahābhārata, van Buite-nen, segundo a qual, “a Bhaga vadgītā foi concebida e criada no contexto doMahābhārata. não estamos em face de um texto independente que vagueiano meio da epopeia.”8

em termos estritamente narrativos, a Bhagavad-Gītā conta-nos o iníciode uma batalha. dois exércitos estão prestes a confrontarem-se. Um dos prín-cipes de uma das facções, de nome Arjuna, solicita ao seu cocheiro Kṛṣṇa —habitualmente designado na língua portuguesa por Krishna9 — que conduzao seu carro de guerra para o meio dos dois exércitos para que ele possa verde perto o rosto dos seus inimigos. o príncipe apercebe-se então que, do outrolado, no exército adversário, estão familiares, amigos queridos, antigos pro-fessores e a sua alma enche-se subitamente de compaixão e angústia. o prín-cipe Arjuna ex pressa o seu desespero e pergunta-se para que lhe serve umreino e até a própria vida, se aqueles mesmos que, nas suas palavras, mere-cem, por direito, a felicidade, se encontram naquele campo de batalha e, comotal, renunciaram à vida10. mesmo que muitos – prossegue Arjuna — não seapercebam do mal iminente, ele próprio já o conhece11 e, como tal, preferedeixar-se matar12. Perante a grande estupefacção geral dos dois exércitos,depõe as armas com a mente trespassada pela tristeza13. Kṛṣṇa, o seu cocheiro,interroga-o sobre as razões de tal desânimo numa hora de tanto perigo e in-vectiva-o a pôr-se de pé e a combater. o príncipe declara que mais lhe valetornar-se um pedinte14 do que entrar nesta guerra e confessando que a sua

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___________7 – (cont.) (Buitenen, J.a.B. van. 1973. “Introduction” in The Mahā bhārata 1. The Book of Begin-

ning. chicago e Londres: The University of chicago Press, xxv). esta tradução visa oferecerem inglês a edição crítica do original sânscrito: The Mahābhārata, for the first time criticallyedited (edição de v.s. sukthankar, s.K. Belvalkar e P.L. vaidya), 27 volumes, Poona: Bhan-darkar oriental research Institute.

8 – “The Bhagavagītā was conceived and created in the context of the mahābhārata. It was notan independent text that somehow wandered into the epic.” (Buitenen, J.a.B. van. 1981.The Bhagavadgītā in the Mahābhārata, London/chicago: The University of chi ca go Press,5).

9 – com efeito, Krishna traduz aproximadamente na língua portuguesa a sonoridade do nomeKṛṣṇa.

10 – Bhagavad-Gītā 1:33.11 – 1:37-39.12 – 1:4513 – 1:4714 – 2:5

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mente está confusa sobre que deve fazer (dhar ma)15 solicita a Kṛṣṇa que oesclareça, afirmando-lhe, no entanto, pe remp toriamente que não lutará, sen-tando-se em silêncio16. o cocheiro aceita o repto e inicia um longo discursodidáctico e filosófico, realizado mesmo no meio daqueles dois grandes exér-citos prestes a confrontarem-se, situação que, como sublinha hegel, num dosprimeiros comentários filosóficos ocidentais ao poema, não deixa de ser umasituação, no mí nimo, insólita17.

não é só o contexto em que trava este diálogo poético e filosófico — doisexércitos prontos a confrontarem-se — que é prima facie des con cer tante,para nós, ocidentais. a resposta de Kṛṣṇa é tudo menos con vencional, mesmona cultura tradicional indiana. com efeito, em face da situação de desesperodo príncipe seria normal esperar apenas algumas palavras de ânimo. afinal éessa a habitual função dos cocheiros de guerra (sutta); faz parte das suas ta-refas, para lá de conduzirem os carros, exortar os seus senhores à luta, esti-mulando-os a manterem o ânimo e a coragem nos momentos de maior perigo.mas Kṛṣṇa prefere antes uma estratégia diferente. Para lá de umas breves pa-lavras de exortação ao espírito nobre de Arjuna, apelando a que se erga ecombata, lança-se rápida e inesperadamente num discurso metafísico e es pe -cu la tivo, si mi lar, em várias dimensões, ao célebre poema de Par mé nides cons -truído a partir da imagem de um carro puxado por corcéis que per co r re ocaminho da verdade e do ser, caminho esse, que no dizer do filó so fo e poetagrego lhe é aberto pela deusa.18 ora, da mesma forma que Par ménides subli-nha a eternidade e a perenidade do ser, Kṛṣṇa, as su min do-se finalmente comouma incarnação divina (Śrībhagavan), argumenta que não tem sentido pen-sar-se, um só instante, que aquilo que é autenticamente real, in des trutível emsi mesmo, possa alguma vez deixar de o ser, do mesmo modo que não é cre-dível que aquilo que o não é, possa realmente existir. diz Kṛṣṇa ao seu prín-cipe: “não há o ‘existente’ do sat [eterno ver da dei ro] e o ‘não existente’ do

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___________15 – 2:716 – 2:917 – “solche situation widerspricht freilich allen vorstellungen, die wir europäer vom Kriegführen

und dem augenblicke haben, wo zwei grosse armeen schlagfertig einander gegenübergetretensind, sowie allen Forderungen an eine poetische Komposition, auch unseren Gewohnheiten,aufdie studierstube oder sonstwohin, gewiss wenigsten nicht in den mund des Generals und seinesWagenlenkers in solcher entscheidungsstunde die mediatition und darstellung eines vollstän-digen philo so phi shen systems zu versetzen.” (hegel. 1995. Über die unter dem Namen Bha -ga vad- -Gita bakannte Episode des Mahabharata von Wilhelm von Humboldt. nova deli:Indian council of Philosophical research, 12. Primeira edição de 1827).

18 – Parménides. 1955. Le poème (edição bilingue – grego e francês de Jean Beufret). Paris: PUF,77-79.

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asat [ilusório]; em verdade, a natureza destes dois é conhecida pelos profetasda verdade.”19 se se aceitar esta premissa, isto é, se nos elevarmos a um planoem que apenas temos em consideração o que, em si e por si, é indestrutível eimperecível, tanto em nós, como na qui lo que nos rodeia, então a nossa angústiae ansiedade perante o que é efé mero e transitório desvanece-se. diz-nos Kṛṣṇa:“ninguém pode aniquilar o indestrutível.”20 mas, se para o pensamento ocidentalem geral, o que é ab so lutamente real — chamemos-lhes ‘natureza’ ou ‘deus’— é sempre um outro do nosso ser, pelo contrário, neste poema, o que é im pe -re cível não nos é distante, mas é, antes, o âmago, o cerne e o coração da nossaiden ti da de. numa intuição es pe cí fica da religiosidade hindu, Kṛṣṇa sustenta que“nun ca em tempo algum eu, tu ou estes reis deixaram de existir, nem dei xa -remos de existir no futuro”.21

contrariamente à visão budista da instantaneidade de todas as formas deexistência, ou à noção teísta das religiões bíblicas de uma alma criada pordeus, Kṛṣṇa advoga a noção, já presente nas Upaniṣad (Katha), de um prin-cípio, ou se se preferir, de uma mónada eterna em cada forma de vida e deexistência. como nos é dito, numa estrofe tocante, “as armas não a podemcortar, o fogo não a pode queimar, a água não a pode molhar e o vento a podesecar”.22 mas imagine-se, argumenta Kṛṣṇa, numa ad ver tência fabulosa, poisrara no discurso religioso, que se assume uma con cepção radicalmente opostaàquela que ele expôs, precisamente a vi são que afirma a efemeridade de tudoo que existente — é evidente que Kṛṣṇa visa, neste ponto, o budismo, religiãona época dominante na Ín dia. mesmo nesse caso, a ansiedade em face damorte deixaria de ter sen tido, pois se todas as formas de vida são efémeras etransitórias, se não têm substância própria, se o seu modo de ser é instantâneo— na medida em que o sentimento de continuidade de ser seria apenas umare cons trução mental ilusória — então a certeza interior dessa mesma efe me -ri da de liberta-nos-ia do desespero e da ansiedade, “pois a morte é cer ta paraaque le que nasce, como o nascimento é certo para aquele que mor re; por -tanto, não te deverias lamentar sobre o que é inevitável”23. nes te Kṛṣṇa, su-bitamente transformado num estóico budista, a angústia é apenas o resultadopsicológico da crença ilusória de se hipostasiar como absoluto e eterno aquilomesmo que é transitório e efémero. e, assim, na base de um mesmoargumento

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___________19 – Bhagavad-Gītā 2:16.20 – 2:17.21 – 2:12.22 – 2:23.23 – 2:27.

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lógico — a saber, o que é efec ti vamente real nunca poderá deixar de o ser —Kṛṣṇa constrói duas visões distintas: por um la do, aquela que será consolidadano hinduísmo, para quem a realidade úl ti ma de tudo o que existe nunca podedesvanecer, pois o que desvanece e se desintegra é aquilo que, pela sua natu-reza, nunca foi efectivamente real; por outro, a budista, segundo a qual, comonão existe, em termos absolutos, nenhuma forma de exis tên cia, nenhum enteperene e eterno que se subtraia à lei da instantaneidade, então a nossa ansie-dade em face da transitoriedade de tudo o que existe revela-se despropositadae apenas fonte de dor e sofrimento. através desta argumentação, Kṛṣṇa alteraos quadros de percepção de Arjuna que, como salienta Gandhi, no seu fa mo -so comentário a este diálogo poético,24 ainda se fundava no contraste absolutoentre aqueles que lhe eram próximos (familiares, amigos, pro fes sores) e aque-les que ele com ba tia. mas, a partir do momento em que es sa oposição entreadversários cai por terra, então como é possível — per gunta-se Kṛṣṇa na Bha-gavad-Gītā — “matar alguém ou ser a causa da mor te de alguém?”25 a partirdesse momento, sublinha, “a vitória e a der ro ta” são iguais.26 e, no en tan to,nesta mesma passagem, a exortação man tém-se e o apelo à luta per ma nece:“compenetra-te da tua missão”, apressando-se a acrescentar: mas não de qual-quer maneira... com efeito, na passagem mais célebre e pro vavelmente amais citada da Bhagavad -Gītā, o cocheiro divino de Arjuna diz-lhe: “as con-sequências das acções não deveriam ser o teu objectivo, assim como nuncate deverias deixar atrair pela inacção”.27 numa palavra, em face de um dilema,de um con flito qualquer que seja a sua natureza — o cenário da guerra é ape-nas um sím bolo de múltiplos conflitos que se enfrenta — existem prima facievá rias alternativas. a primeira seria aquela que Arjuna pensa seguir ao de poras armas e sentar-se no chão, numa palavra, optando pela inacção, pe la quie-tude e de sis tên cia. mas se analisarmos com atenção esta hi pó te se veremosque esta opção não tem consistência, não é uma opção real. co mo afirmaráKṛṣṇa, no canto III, “ninguém pode ficar inactivo nem que seja por ummomen to; todos são atraídos para a acção de forma irresistível, pelas guṇas[potências] da natureza.”28 com efeito, faz parte da nossa natureza res -pon dermos constantemente às invocações, desafios, apelos que os outros nos

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___________24 – “By reason of delusion was arjuna led to make a distinction between kinsmen and nonkins-

men.” (storbmeier, J. 2000. The Bhagavad Gita According to Gandhi. Ber ke ley, ca., Berke-ley hills Books: 35).

25 – Bhagavad-Gītā 2:21.26 – 2:38.27 – 2:4728 – 3:5.

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lançam. Toda a pretensa não-acção é ainda uma forma de agir, diz-nos Kṛṣṇa.se aceitarmos esta premissa trivial, mas tantas vezes es que cida, só existe real-mente uma única alternativa com algum sabor kan tia no: ou agimos, tendoem conta as consequências da acção — i.e., os efei tos sobre o agente, sejameles bons ou maus —, procurando-os ou evi tan do-os, como seria, por exem-plo, diz-nos Kṛṣṇa, agir pelo bem do agente em função de uma recompensa,divina ou não; ou então, a acção seleccionada deve ser praticada a partir deuma incon di cional concentração no seu exercício, sem qualquer dispersãomental em torno do que nos é útil, bom ou agradável.

como interpretar esta estranha batalha onde já não há amigos, nem inimigos,em que a acção praticada é executada como uma concentração integral no seupróprio agir? segundo o pensador indiano sukthankar,29 responsável aliás pelaedição crítica do Mahābhārata, a exegese o sen tido desta batalha pode situar-seem três planos radicalmente di ferentes: histórico, ético e metafísico. numa aná-lise histórica, o sentido desta ba talha inscrever-se-ia no horizonte das grandesgestas histórico-mi to ló gi cas presentes em múltiplos poemas heróicos da huma-nidade — e, neste con texto, os estudos de dumézil (Mito e Epopeia) ou de hil-tebeitel (Kṛṣṇa no Ma hābhārata) seriam excelentes,30 pois mostrar-nos-iam asraízes comuns do poema indiano com outras obras poéticas e mitológicas dospovos de origem indo-europeia (Táin Bó Cuailng da cultura celta, a GestaDa no rum de saxo Grammaticus, o Livro dos Reis [Shāhnāma] da culturapersa ou a Ilíada de homero); por sua vez, uma análise ética da Bhagavad-Gītāpode oscilar entre os estudos de Gandhi que realçam o papel libertador da

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___________29 – a dimensão metafísica é designada por sukthankar como “transcendental”. este plano su-

pera a oposição entre dharma (lei/ordem) e adharma (caos): “The Ṛṣis of ancient Indiawere interested in breaking the tangled knot of personality, which is the very cosmos inminiature, in order to release the captive energy for the sublimation of nature." (suk-thankar, v.s. 1957.On the Meaning of Mahābhārata. Bombaim: asiatic society of Bom-bay, 30). cf. Julian F. Woods. 2001. Destiny and Human Initiative in the Mahābhārata.new York: state University of new York Press, 9-10.

30 – dumézil, G. 1968. Mythe et épopée, 1. L’idéologie des trois fonctions dans les épopées despeuples indo-européens. Paris: Gallimard; hiltebeitel,a. 1991. The Ritual of Battle. Krishnain the mahābhārata. deli. Indian Books centre. Publicado originalmente em 1990 pela stateUniversity of new York Press. o valor da epopeia, geralmente me nos pre zado, é sublinhadopor hiltebeitel: “What is significant is that epics present a context in which the heroes, comingto terms with the origin, nature, and destiny of the universe as it impinges upon them, in-evitably make some type of response – submission, defiance, courage, faith, self-discovery,stoicism, humility, vacillation, doubt, cowardice – which takes on determinitive symbolicvalue in terms of an understanding of the origin, nature, and destiny of man.” (34). cf. aindado mesmo autor: hiltebeitel, a. 2001. Rethinking the Mahābhārata. A Reader’s Guide to theEducation of the Dharma King. chi ca go/London: The University of chicago Press.

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acção desinteressada até às observações notáveis da investigadora americanaruth cecily Katz31 sobre a dimensão humana do poema. com efeito, esta au-tora sublinha a profunda tensão existente no poema entre os valores heróicose os valores humanos, bem patentes na oscilação poética entre a apresentaçãode Arjuna como o herói que, pelo seu es forço e iniciativa, pode lutar contrao caos e o destino, e a mos tra ção do mesmo príncipe como um ser humanoque reconhece as suas fra quezas, os limites da sua iniciativa em face do des-tino, seja ele pensado como a ordem do mundo ou a vontade dos deuses.

no terceiro, e último plano, o metafísico, a batalha ganha uma nova in-tencionalidade. este sentido é, claramente expresso num dos últimos livrosdo Mahābhārata, num diálogo travado entre Kṛṣṇa e um irmão de Arjuna, opríncipe Yudhiṣṭhira: “a batalha com que te confrontas é aquela que cada umde nós tem de travar com a sua própria mente. Por isso, [Yudhiṣṭhira]... li-berta-te pelos teus próprios esforços, trans cen den do os poderes da mente não-manifesta. nesta guerra não são necessárias nem setas nem exércitos. abatalha é para ser travada na total solidão”.32

contrariamente à surpresa de hegel, não devemos estranhar esta as -sociação entre, por um lado, carros de guerra, batalhas, cocheiros e, por outro,a reflexão sobre a natureza da nossa ipseidade. Uma análise atenta mostra-nos que estamos perante uma imagem literária comum tanto da cultura orien-tal como ocidental. nas Upaniṣads,33 a identificação da nossa alma com umcarro puxado por corcéis é usual, do mesmo modo que num dos textos maisimportantes da tradição clássica budista34 a imagem volta a ser reiterada comoforma de traduzir os elementos cons tituintes da nossa identidade pessoal; porsua vez, na tradição ocidental, deparamos com imagens semelhantes: desdeos carros des cri tos tanto por Parménides como por Platão,35 enquanto sím-bolos da nossa iden tidade anímica, passando pelos “carro de fogo” de elias

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___________31 – “arjuna is a great epic hero who relies upon his bravery and strength to succeed. he is, at

the same time, a human being filled with doubts and vulnerability.” (Katz, r.c. 1990. Ar-juna in the Mahabharata. Where Krishna Is, There Is Victory. deli: motilal BenarsidassPublishers, 271. Publicado originalmente em 1989 pela University of south caroline.”r.c. Katz decifra ainda em Arjuna um terceiro plano, para lá do heróico e ao humano, as-sociado à bhakti e à religião.

32 – Mahābhārata 14:12, 11-14.33 – Katha III, 3; Maitri II.3.34 – Milindapañha (ed. de Trenckner (1880/1928), London: royal asiatic society, 27; Milinda’s

Questions I ( ed. I.B.horner de 1996). oxford: The Pali Text society, 36.35 – cf. nota 18; Fedro 246.

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e de eze quiel,36 até à enigmática cena da batalha da mitologia nórdica, emque deus Odin (Wotan) disfarçado de condutor do carro de um rei, tal comoAr juna, o conduz à batalha.37 se Kṛṣṇa é o condutor que sustém e dirige asrédeas (actos), conduzindo os corcéis, então ele é identificado com o princípiodivino que subjaz a toda a acção natural e, como tal, à ordem natural onde o su-jeito empírico e individual se movimenta. Por sua vez, Arjuna, aquele que é con-duzido pelo seu cocheiro, simboliza a dimensão activa da nossa mente, da nossasubjectividade, que testemunha a ex pe riência natural da acção natural. se estavisão é, no mínimo sur pre en dente, lem bremo-nos que a Bhagavad-Gītā sustentafirmemente o prin cípio se gun do o qual a nossa identidade pessoal mais profunda,não é direc ta mente res ponsável pelas acções no mundo mas apenas as con -tem pla ac tivamente: “Todas as acções sem excepção são realizadas pelasguṇas [po tências] da natureza; mas devido à ilusão do ego as pessoas jul-gam-se as criadoras”38, tese que é reafirmada no livro XII do Mahā bhā rata:“não é o agente, mas a sua natureza que é responsável pelos frutos daacção.”39 É esta matéria-prima, ou natureza substancial, que constitui, na Bha-gavad-Gītā, o ‘corpo do divino’ e é ela que, em última instância, age natu-ralmente, constituindo o ‘campo’ onde se oferece o eterno ciclo de geração edestruição de todos os seres.

o divino é identificado no célebre canto XI da “canção do senhor” — numadas mais belas e terríveis teofanias de toda a literatura universal — como sendoo próprio «tempo». “eu sou o terrível Kāla [tempo] que faz perecer os mun-dos”.40 siderado por esta visão do divino, pois como nos diz o poema, é como“se o fulgor de milhares de sois brilhasse como uma chama de uma só vez no

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___________36 – 2 Reis 2:11; Ez 1:4 e sgs; 3:12 e sgs; cf. ainda o poema “The new Jerusalem” de William

Blake: “Bring me my charriot of fire” (William Blake. 1977. The Complete Poems (ed.alicia ostriker). harmondsworth: Penguin Books).

37 – a divindade nórdica Odin disfarça-se de cocheiro real na batalha de Bråvalla (saxus Gram-maticus, Gesta Danorum vIII 219-220). o cocheiro, Bruni, conduz o carro real de umvelho rei cego (Haraldus) mas, em vez de o proteger, assassina-o. se nos lembrarmos queDhṛtarāṣṭra, o rei do clã inimigo de Arjuna, é cego, torna-se credível a hipótese de umahipotética raiz comum entre as duas epopeias militares, aquela que é descrita peloMahābhārata e pela Gesta Danorum. esta conjectura é defendida tanto por stig Wikander(“Från Bråvalla till Kurukshetra”, Archiv för Nordiski Filologi, LXXv [1960] 183-193) ealf hiltebeitel (“Krishna and odinn: Inter ven tions” in The Ritual of Battle, 102-113). esteúltimo sustenta a necessidade de uma investigação mais aprofundada no domínio dos es-tudos indo-europeus, em particular na esfera ritual (113).

38 – Bhagavad-Gītā 3:27.39 – Mahābhārata 12:215, 2427.40 – Bhagavad-Gītā 11:32.

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céu”,41 o príncipe Arjuna experiencia o divino como esse receptáculo infinitoem que todos os seres, sem ex cep ção, entram “nas Tuas temíveis bocas comdentes terríveis”.42 esta visão ter rífica da unidade infinita de todas as formasde vida encontra na di vi ni zação do tempo a sua expressão fundamental, namedida em que, no li mite, a temporalidade constitui o receptáculo, a formaúltima de toda a manifestação. mas, se o tempo infinito e cíclico constitui o«corpo do mundo», a substância infinita de todas as formas de existência, aBha ga vad-Gītā sustenta a ideia da presença de um outro princípio, inerentea to da a experiência e que é designado no poema tanto pelos ter mos de«si/alma» (ātma) ou «pessoa» (puruṣa).

segundo a visão filosófica subjacente a este canto poético, este últimoprincípio é radicalmente distinto da matéria-prima e, como tal, não pos sui,nenhuma energia ou potência natural que lhe seja inerente. deste mo do, aexperiência de si — se se preferir a experiência de se ser este e não outro or-ganismo —, não é mais do que se ser testemunha activa de um mundo natural.mas se, em si mesma, é desprovida de qualquer fun ção natural, traduz emcada experiência de si a presença da consciência desse organismo vivo. se-gundo o poema, na nossa vida quotidiana estes dois princípios surgem, numaprimeira análise, misturados e con fun di dos, fazendo-nos crer erradamenteque a «consciência de si» produz di rec tamente efeitos no mundo.

a experiência de libertação, segundo a Bhagavad-Gītā, não é mais do queesse trabalho tanto afectivo, como cognitivo de discriminação, de separaçãoentre estes dois níveis fundamentais que constituem uma pessoa. esta distin-ção analítica pode ser operada a três níveis: a um nível teórico, procedendoa uma distinção apurada e fina das diferentes ins tâncias que se digladiam namente; a um nível prático, o poema fala -nos na total concentração na acçãoe a nível afectivo, a “canção do senhor” aponta-nos para um tipo de relaçãodesignado por bhakti en quan to “de vo ção amorosa”. se, em termos de trabalhoou disciplina teórica, a discriminação operada consiste em mostrar o absurdológico da iden tificação apressada da “consciência de si” com qualquer enti-dade objec tiva e natural, seja ela a personalidade, a forma corporal ou as nos -sas re cor dações, em termos afectivos, no amor, o objectivo, pelo con trário, éreconhecer na própria base de distinção entre os dois prin cí pios o ponto decoexistência e de relação num mesmo ser. É evidente que, na Bha ga vad-Gītā,na “canção do senhor”, estes dois princípios têm nome, a sa ber, Arjuna e

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___________41 – 11:12.42 – 11:26/27.

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Kṛṣṇa. e esta a relação de amor, de bhakti, encontra a sua ex pressão maisforte no momento em que Kṛṣṇa declara numa passagem comovente que “souincapaz de olhar para este mundo sem a presença nele de Arjuna, nem queseja por um único instante.”43

como última palavra, gostaria de sublinhar o rigor e a probidade cien -tífica que o editor desta obra, José carlos calazans, coloca à dis posição dopúblico português. embora existam várias edições por tu guesas desta obra,nenhuma se compara ao rigor académico e científico desta. o panorama edi-torial e académico português pode agora orgulhar-se de ter uma edição críticada Bhagavad-Gītā.

Carlos João CorreiaProfessor associado da Faculdade de Letras

da Universidade de Lisboa

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___________43 – Mahābhārata 7:56, 2324

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fåí êçÇì´©ç

Portugal deve à sua história, além dos descobrimentos, a inovação na car-tografia, na náutica, na astronomia e no pensamento. Porém, o facto históricoque mais marcou a cultura portuguesa na europa e no mundo, foi este paístão pequeno ter conseguido com pouca gente abraçar os qua tro continentes edeixar a sua marca até hoje no espaço reconhecido da lusofonia. num tempoem que a conquista e a procura de melhores mer cados justificavam a neces-sidade de afirmar a soberania face às casas reais europeias (principalmente àde espanha), tentando a todo o custo con tor nar a diminuição de cereais queafectava toda a europa (com a fome endémica e fustigada por alterações cli-máticas imprevisíveis), Portugal aliou à sua intrepidez a missionação e comela, a faculdade de conhecer o outro e de se cruzar com ele. mas o domínioe a riqueza foram bens tem porais que se esfumaram com o tempo, enquantoque o maior feito que lenta e seguramente se construiu, foi o de ligar as cul-turas do mundo e de revelar ao ocidente o seu comércio, as suas línguas, assuas religiões e os seus hábitos.

neste processo tão vasto, que levou á necessidade de criar raízes em soloestranho ― com a criação dos casados em 1557, implementada na Índia porafonso de abuquerque, daqui derivando as primeiras famílias indo-portuguesas― a mesma missionação encontrou igualmente a ne ces sidade de conhecer asculturas locais para, como dizia, “melhor dou trinar”. a partir de meados do séc.XvI, a presença de missionários je suí tas na região de Goa veio introduzir umanova dinâmica à expansão por tu guesa; a criação de seminários e a necessidadede dar seguimento à evan gelização, obrigou a que os padres da companhia deJesus cedo apren dessem os dialectos locais como as línguas em que os textosre li giosos da Índia es ta vam escritos.

Porém, costuma atribuir-se ao mercador florentino Filippo sassetti, que esteveem Goa entre 1583 e 1588, o primeiro testemunho escrito so bre a proximidade

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linguística entre o sânscrito e algumas das principais lín guas da europa, comoo italiano. ora, quando sassetti ali chegou já se encontravam jesuítas e fran-ciscanos na azáfama de aprenderem o ma la bar (malayāḷam)44, o concani(koṃkaṇī) e o sânscrito, e certamente que já haviam convertos naturais queao terem aprendido o português e o latim, tinham aproveitado os seus dotesnaturais para se oferecerem como in ter pretes e tradutores dos textos sagrados,como de facto veio a acontecer mais tarde. não querendo tirar mérito algum asasseti pela notícia que pa rece ter dado em primeira mão ao cardeal Ferdinandode medici e ao grão-duque Francisco I, qualquer religioso com formação teoló-gica, co mo os fran cis ca nos e os jesuítas tinham, logo reconheceria as se me -lhanças entre o latim, o gre go e o sânscrito, não havendo forma de o não teravaliado; quanto às fa mo sas cartas enviadas por sasseti a davanzati e a Pier vet-tori, só foram tor nadas públicas na primeira metade do séc. XvIII, quando osjesuítas por tu gue ses e alguns franciscanos já há muito laboravam na apren -dizagem das lín guas vernáculas e nas traduções do sânscrito e do malabar pa rao por tu guês e vice versa45. em 1548 o Pe. henrique henriques com punha a suagra má tica da língua malabar (pu bli ca da em cochim), enquanto um seu irmãono mesmo tempo, o Pe. Lou ren ço Peres, compunha a gra mática da língua con -cani e a Doutrina Chris tam em Lingoa Bramana Ca narin (ambas pu blicadasno colégio je suíta de rachol, em Goa).

numa carta enviada de Goa pelo Pe. Paulo camerino ao Pe. simão rodri-gues, diz-se simplesmente:

“Acompanha-o [ao Pe. Belchior Gonçalves] hum mancebo de casaque prega na sua língua; e assy anda o Pe. mestre Gaspar com outro man-cebo de casa que prega em sua língua canarym. E assy Nosso Senhorpolla sua infinita bondade trouxe à conversão de sua santa fee muitosgentios e infiéis.” 46

Carta do Padre Paulo Camerino ao Padre Simão Rodrigues.Goa, princípios de dezembro de 1548

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___________44 – Língua dravidiana falada no estado do Kerala, nos territórios de mahé, no distrito de Kanya-

kumari no estado de Tamil nadu e nos distritos de Kodagu e dakshina Kannada, ambos noestado de Karnataka.

45 – vid. J. c. calazans, As primeiras traduções ocidentais de textos indianos na língua por-tuguesa, in Babilónia. Revista Lusófona de Línguas, Culturas e Tradução, n.º 6, 2009, p.24.

46 – a. silva rego, Documentação para a História das Missões do Padroado Português doOriente, vol. Iv, Lisboa, Fundação oriente, 1992, p. 145.

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doutras cartas podemos mesmo tirar à evidência que os padres por -tugueses já tinham adquirido a prática de falarem e pregarem nas línguas lo-cais antes de sasseti ali ter chegado:

“En todas estas iglesias se ensenha doctrina por la mañana e las niñas,y por la tarde a los niños. Van los hombres frequentemente a oracion.Todo esta se há hecho por saber nos otros la lenguoa, que despues que lasupimos se han hecho muchas cosas de servicio do Nuestro Señor, yaprendimos tambiem a leer y scrivir.”47

Carta do Irmão Baltazar Nunes.cabo de comorim, Janeiro de 1551.

“Agora, averá três annos principalmente despois que apren de mos alingoa que estes christãos ão vindo em grande c o nhe çi mento da nossa fee,porque falar homem por segunda pessoa he gran de tra balho, e nunquafalão verdade, porque não sabem falar de cousas de Deus interpretes ni-nhuns; despois que nós aprendemos a lingoa, se há feito mui grandefruito, porque viemos entender suas manqueiras e descobrindo seus males,pelo que facilmente caião na verdade, com lhe nós declaremos seus en-ganos.”

“(…) tudo isto causa o sabermos a lingoa, porque dispois que a soube-mos se há feito muitas cousas de grande serviço de Nosso Se nhor, e assycomo hiamos aprendendo, aprendíamos também a ler e es crever, que foygrande aiuda pêra se poder saber perfeitamente a lin goa, a qual he assastrabalhosa de aprender, mas pois hum tam inú til e sem virtude como eua aprendeo, que fareis vós, charissimos, se qua vierdes.” 48

Carta do Irmão Baltazar Nunes aos seus confrades de Portugal.colégio da santa Fé, Goa, 1551.

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___________47 – Ib. vol. v, 1993, p. 6.48 – Ib., p. 49 e 50.

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“Tenho escrito a Vossa Reverencia que as orações que se insina vãoem a própria lingoa da terra, em os tempos passados, antes eu sou besse alingoa da terra, estavão cheas de mil errores e, dispois que aprendi a lin-goa, hos tirey com muito trabalho, de maneira que o que dantes estavafeito não aproveitava; isto escrevi o anno passado. Sa be rá Vossa Reve-rencia que, tornando a ver as orações achey que em men dar nellas em oque também levei grandíssimo trabalho, e cau sou tudo isto a dificuldadeda lingoa, porque he trabalhosa.” 49

Carta do Padre Henrique Henriques aos seus Confrades de Coimbra.cochim, 17 de novembro de 1552.

não só o concani os padres portugueses falavam e escreviam, como o di-ficílimo malabar, já na primeira metade do séc. XvI. É pois natural que sas-seti ao ter chegado a Goa e no contacto com os padres portugueses, tivessesabido por eles das semelhanças entre a vernácula de Goa e o sânscrito e desteúltimo com a sua língua mãe, o italiano. mas se não se tivesse cruzado comos padres portugueses, o que seria difícil, e para que tivesse um vislumbredo sânscrito, teria de ter trocado impressões com um Brahmane e este, pelomenos, falar o português. ora, dá-se o facto de o concani ser a vernácula in-diana que mais se aproxima do sânscrito clás sico e, tão logo os padres a as-similaram, logo lhes foi mais fácil apren derem o sânscrito. sassetti só poderiadeterminar a proximidade da lín gua latina (italiana) ao sânscrito, se alguémlha tivesse revelado antes e nun ca através da via coloquial ou da escrita, estaúltima que a não co nhe cia. o sânscrito nunca foi uma língua falada e muitomenos entre o povo; é uma língua artifical criada pela casta sacerdotal dosBrahmanes, que serviu de base a todo o pensamento filosófico, literário e re-ligioso. em apenas cinco anos de premanência em Goa, sassetti pôde ter sa-bido da existência do sânscrito, e até mesmo ter aprendido o léxico que lhedes per tou a curiosidade, mas dificilmente poderia ter mergulhado nos men -daros da língua sem a ajuda dos padres da companhia de Jesus, mesmo sendoele um homem de letras; o método para conhecer uma lín gua clássica (ou atémesmo vernacular), de aprender a sua gramática, a sua morfologia, os subs-tantivos, os adjectivos e os verbos, de forma sis te má tica, era prática correntenas ordens religiosas, método que os pa dres por tugueses aplicaram na Índiaadaptando-o ao serviço da mis sio na ção, e é sabido que os Brahmanes, na fase

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___________49 – Ib., p. 225.

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inicial da permanência por tuguesa na Ín dia, nunca se mostraram receptivosa ensinarem aos cristãos a sua língua sagrada.

os colégios de Goa, de cochim e de maduré dedicaram-se com afinco àtradução das versões latinas de oração e de passagens do próprio evan gelhopara o concani, para o malabar e para o tamul, textos que deviam ser lidos napregação. mas igualmente estiveram ocupados em traduzir excertos dos tex-tos religiosos em sânscrito e noutras línguas vernáculas para o português,com o objectivo de conhecerem para melhor refutarem os Brahmanes. É naesteira deste magistral trabalho que surgem “tra ta dos”, “compêndios”, “su-mários” e “notícias” destinados a preparar os mis sionários, apetrechando-oscom o cabedal necessário para a refutação e doutrinação dos “gentios”. dapena dos padres da companhia de Jesus e de alguns franciscanos sairam aNotícia Sumária do Gentilismo na Ásia (16…-1759, anónimo jesuíta), a Tra-dução Summa do Livro, que os Gen tios da Ásia chamaõ Bagavota Guitá(16…-1759, anónimo jesuíta), o Com pendio dos Mistérios de Fee, ordenadoem Língua Bengalla (16…) do Fr. manoel da assumpção e o Tratado sobreo Hinduísmo (1616) do Pe. Gonçalo Fernandes Trancoso. este último tratadoé tão notável e úni co, por mencionar muitas obras consultadas com partestraduzidas di rec ta mente ― vinte autores e dez crónicas e épicos50 ― quasetodas escritas em sânscrito, que Trancoso teve de ler para escrever o seu tra-tado; tratado que ultrapassa em rigor a obra produzida na mesma altura peloPe. ro berto de nobili.

ainda no séc. XvII, tão prolífico na produção de notícias, de com pêndios ede gramáticas das línguas vernáculas da Índia, o jesuíta Johan nes hanxledencompunha uma gramática sânscrita em latim e o Dictio narium MalabaricumSamscrdamicum Lusitanum, embora estes seus trabalhos não tivessem sido pu-blicados na altura.

mas, merecedora do nosso destaque e do grande relevo para o estudo com-parado das religiões, como para o reconhecimento da antecipação com que ocolégio de Goa estava avançado em traduções, é a Tradução Summa doLivro, que os Gentios da Ásia chamaõ Bagavota Guitá, a primeira realizadaem toda a história da literatura ocidental, de uma obra de cultura universal eexpoente do hinduísmo. antecipada pelo menos vinte e seis anos em relaçãoà tradução da mesma obra por charles Wilkins em 1785, a primeira versãoproduzida pelo colégio dos jesuítas de Goa foi para a língua portuguesa.

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___________50 – vid. Tratado do P.e Gonçalo Fernandes Trancoso sobre o Hinduísmo (Madure 1616), Lis-

boa, centro de estudos históricos Ultramarinos, 1973, pp. XXI-XXII.

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desde então e a partir da versão de Wilkins, que se tornou conhecida sobre osilêncio da versão portuguesa, as traduções da Bhagavad-Gītā em quase todasas línguas do mundo não pararam até hoje. dada a importância histórica elinguística do ma nus crito, como pelo facto da tradução portuguesa de seis-centos apresentar os dezoito capítulos traduzidos na íntegra, preparamos parabreve a sua publicação fac-similada devidamente anotada.

a Bhagavad-Gītā é considerada desde sempre o livro mais lido e queridode todos os hindus, parte integrante do épico Mahābhārata (liv. vI) e com amesma importância literária que o outro épico, o Rāmāyāṇa; ela é o evange-lho que tem guiado docemente os crentes indianos e foi por isso mesmo queos padres da companhia de Jesus do colégio de Goa a escolheram traduzir.este e os outros manuscritos estiveram durante mui to tempo esquecidos emGoa, depois enviados para Portugal e finalmente incorporados na BibliotecaPública eborense onde se encontram hoje, exceptuando-se o tratado do Pe.Trancoso cujo original se encontra na biblioteca vaticana.

depois da primeira publicação inglesa da tradução de Wilkins, apa receramoutras em latim (por august vom schlegel em 1823), em alemão (por vonhumbolt em 1826), em grego (por demetrios Galanos em 1848) e em francês(por eugène Burnouf em 1875), mas unicamente acessíveis à elite românticae aos entendidos do meio académico. em Portugal, a Gītā foi conhecida nomeio restrito dos primeiros orientalistas e indólogos de nomeada, como vas-concellos-abreu, sebastião rodolfo dalgado, augusto epiphanio da silvadias e aniceto dos reis G. viana51, e embora já se conhecesse a primeira ver-são portuguesa de seiscentos, não houve intenção de lhe dar a justa publicação.mesmo assim, os orientalistas portugueses dedicaram-se ao ensino da línguaclássica, da literatura e do pensamento indianos da mesmo forma como se pra-ticava na restante europa, sem que, no entanto, o seu trabalho tivesse a con ti -nui dade esperada; em 1892 vas con cellos-abreu afirmava: “o meu desejo temsido sempre implantar os estudos de samscritolojía em Portugal, país a quesempre os julguei necessários, e prestar testemunho de honra à minha pátriaescrevendo um capítulo da sua história ultramarina.”52 es tranho facto paraPortugal, por quanto foi o país que primeiro chegou à Índia e dela deu notíciadas línguas vernáculas tendo produzido as primeiras gramáticas, os vocabu-

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___________51 – vid. J. c. calazans, Dhammapada. As palavras de Buda, Lisboa, Ésquilo edições e mul-

timédia, 2006, p. 9-28.52 – vasconcelos-abreu, Passos dos Lusíadas: estudados à luz da mitologia e do orien ta lis mo,

in Congresso Internacional dos Orientalistas, Lisboa, sociedade de Geografia de Lisboa,1892, p. 111.

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lários e as primeiras tra du ções. não fosse o desaire político do estado novoter cho ca do com a in de pen dência da Índia na consequente anexação de Goa,da mão e diu em 1961, e hoje Portugal teria uma tradição académica con sis -tente no âmbito dos estudos orientais.

É porém de notar o renascimento actual dos estudos orientais, que muitoembora tenha partido do empenho pessoal de alguns poucos investigadoresque não esmoreceram ― estimulados pela presença sempre constante da Prof.ªmargarida correa de Lacerda, e depois do acordo cultural de 1993 que nor-malizou as relações bilaterais estre os estado português e a Índia ― que hojePortugal vê emergirem novos estudos, encontros, cursos, traduções e publi-cações, abrangendo uma temática variadíssima que se estende da sociologia àeconomia, da geografia à etnografia, da história à literatura e da antropologiaà arqueologia.

renasce assim o interesse para os estudos orientais, mas carecemos ain -da de bibliografia de primeira mão em quantidade suficiente para pre enchera lacuna; bibliografia produzida genuinamente por por tu gueses, incluindotraduções directas das línguas vernáculas da Índia, do Tibete e da china quemais foram usadas na composição dos seus textos fun da do res em geral: osânscrito, o pali, o hindi, o concani, o punjabi, o bengali, o tibetano e o chinês.até ao momento, a maior parte das obras clássicas do hinduísmo e do bu-dismo, que se encontram no mercado livreiro por tu guês, são traduzidas deoutras línguas que não as originais; obras de literatura ou de filosofia quechegam ao leitor ou ao estudante uni ver si tário em português, mas que foramtraduzidas de uma versão inglesa, fran cesa ou alemã. se os Lusíadas fossemtraduzidos para o chinês, a par tir de uma versão inglesa, muito se perderiaalém do sentido simbólico ca racterístico do carácter dos portugueses e da suahistória; tal tradução teria de ser realizada por alguém que conhecesse as duaslínguas, a chi nesa e a portuguesa há, portanto, a necessidade de dotar a bi-bliografia orien tal portuguesa com traduções directas das línguas clássicasoci den tais e orientais. mas acima de tudo, possibilitar a formação de es pe -cia lis tas naquelas línguas.

Já não se trata apenas de traduzir para o grande público, mas de prover omercado com publicações de carácter científico, com textos preparados parao leitor mais exigente (para o investigador como para o estudante), com ano-tações e comentários apropriados ao campo alargado da in ves ti ga ção; dar aostextos (pelas traduções), às notas (pelas referências mais ade quadas) e aoscomentários (pelo discorrer interpretativo e co men ta rístico), a forma neces-sariamente adaptada ao espaço cultural português. É com este objectivo quesurge a actual versão da Bhagavad-Gītā, re sul ta do de mais de dez anos de

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estudo e de investigação, percurso de um co rolário de estudante que pelo con-tágio e estímulo do primeiro mestre, quis teimosamente continuar o exemplo,embora singelo, dos outros por tugueses que antes abriram o caminho.

a Bhagavad-Gītā contém a súmula do conhecimento clássico que partiudos Vedas, sendo por isso mesmo designada metaforicamente porBhagavadopaniṣad53, mas escrita num diálogo acessível à maioria dos leitoresindianos durante séculos até ao presente. exalada do corpo do maior épicoindiano, o Mahābhārata, da autoria de veda-vyāsa, con ver teu-se por si sónum evangelho e numa mensagem com carácter pe da gó gico e moral; masonde a transcendência dos valores humanos através da filosofia e de umaciência da religião (o Vedanta), tornaram a obra num testemunho de ética uni-versal, inteligível a todos os seres humanos. Tal é a profundidade da Gītā. ohumanismo que extravasa da sua história, por ser tão actual enquanto ohomem procurar os mesmos valores, é apon tado e exemplificado a cada passocom recurso a exemplos tirados dos princípios da integridade humana e deuma ética universal (sa nā ta na-dharma), mas vai mais longe quando apontavários caminhos de li ber tação (yogas) segundo o carácter de cada um.

Paralelamente à simbólica e à mensagem que o épico indiano transporta, asua transcendência fez evidente a necessidade de alargar a sua divulgação noocidente, facto notado entre ocidentais preocupados com a divulgação para oci-dentais. William Quan Judge deu seguimento a este anseio pu bli can do em 1890,a partir de excertos de traduções realizadas por Wilkins (1785), J. cockburnThomson (1855) e sir edwin arnold (1885), com a versão não académica e sim-plificada da Gītā; no final do séc. XIX outros épi cos e contos indianos foramigualmente publicados na europa, como o drama Śakuntalā, adaptado porKālidāsa a partir do original Mahābhārata e traduzido em formato popular (di-rectamente do sânscrito em escrita bengali) para o francês, por alphonse-Léo-nard de chézy (1830) e mais tarde (directamente do sânscrito em devanagari)por Philippe-edouard Foucaux (1867)54; o conto dos bons conselhos, Nala eDamayanti, foi outro conto exalado do mesmo Mahābhārata que o ocidente co-

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___________53 – os Upaniṣadas são a parte da colecção de textos que se destinam ao ensino do Vedanta.

como não pertencem a nenhum período particular da literatura sânscrita, e como a Bha-gavad-Gitā se destina igualmente a transmitir uma súmula de co nhe cimento na feição maispopular, igualmente passou a ser designada como pertencendo à tradição das Upaniṣadas.

54 – a primeira tradução foi realizado por William Jones para latim (1789) e depois para inglês(1790), seguindo-se outras traduções em alemão e em francês. vid. J.-L. Bac qué-Grammont (et tal.), D’un orient l’autre. Actes des troisièmes journées de l’Orient, Bor-deaux, 2-4 octobre, Paris-Louvain, Éditions Peeters, 2002, p. 362.

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nheceu, traduzido sucessivamente por Toru dutt, edwin arnold, ralph T. h.Griffit e monier-Williams.

desde o final do séx. XIX, edições com carácter semelhante têm sidopublicadas com regularidade, enquanto as de feição académica se res tri -n gem ao próprio meio e à língua. a partir da segunda metade do séc. XX,começaram a aparecer publicações da Gītá e de outros textos re li gio sos(em várias línguas), patrocionadas por grupos religiosos ou fi lo sófico-espiritualistas, de carácter mais ou menos sectário, restritos aos seus se-guidores, mas contextualizados numa missionação neo-in dia na as su midapelos ocidentais amantes da cultura indiana. a divulgação alar gou- -se,mas com ela, toda a carga sectária e ideológica de cada grupo, re ver tendopara o leitor comum a dificuldade em distinguir o original (mais filosó-fico e ético) da doutrina (mais teológica e parcial). sendo a Bha ga vad-Gītā marcadamente vixnuita (ligada ao culto de Viṣṇu en car na do emKṛṣṇa), havendo muitos grupos religiosos vixnuitas ve dan tas, e havendouma unidade no pensamento e na comentarística, há porém diferençasquanto às escolas. Para quem escolheu seguir a par ti cu la ri da de da fé,basta eleger a tradução e o comentário (bhāṣya) que lhe é in di ca do; maspara quem quer tirar por si o sentido original do texto tal e qual ele é,ne ces sita de uma tradução e de comentários que não trans portem su ple -men tos doutrinais dentro do espírito missionário. Que tenha co men tá riose referências a vários comentários (mesmo de outras escolas e tra di ções),é até necessário para o prosseguimento da investigação aca démica, masnão pode ter o pendor doutrinal que à ciência se escusa.

além das traduções e da comentarística contemporânea de feiçãoaca dé mica, datar com rigor os eventos que ocorreram durante o pe-ríodo vé dico, descritos nos textos sagrados (Vedas), nos épicos(Mahābhārata e Rāmāyāṇa) e nas crónicas (Purāṇas), é um dos maio-res problemas que se levanta aos orientalistas. a maior parte das refe-rências com in for ma ção astronómica explícita, que podem darindicações precisas sobre datas específicas, emanam dos Purāṇas, to-davia estes registos da cronística in dia na encontram-se associados aodesenrolar enaltecido e exagerado de acontecimentos, que podem terocorrido na realidade, mas que a ima gi na ção coloriu com o mito; es-critos que resultaram de uma longa tradição oral, transmitida de gera-ção em geração (paramparā) num tempo mui to posterior até seremvertidos para a forma escrita. este facto contribuiu grandemente para afalta de concordância na datação das linhagens reais, como para o desa-cordo entre historiadores e orientalistas que defendem uns, uma crono-

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logia baseada no estilo literário dos textos e outros, nas informações as-trológicas extraídas dos mesmos textos, inde pen den te men te do sentidomitológico que as configura.

segundo a crítica cronológica publicada por n. Jagannadha rao55,as datas históricas da Índia encontram-se incorrectas por erro de identi-ficação do imperador Chandragupta (o fundador da dinastia Maurya), com orei Sandracottus (ou Sandracyptus) mencionado pelos ecritores gregos ao tem -po em que alegrande magno invadiu o noroeste da Índia. este erro fez com queo dito imperador fosse colocado no seu trono de Magadha no ano de 322 a.c.,quando na realidade foi em época muito anterior56; quer orie n talistas ocidentaisquer indianos, que lhes seguiram o exemplo, re pe ti ram o mesmo erro cronoló-gico até à actualidade.

a contagem do tempo histórico indiano é bem clara quanto ao começo dasua era actual, definindo o ano zero a partir de 3102 a.c., ano em que se deu oinício da Kali-yuga (idade do ferro). esta data aparece em varia dís simos docu-mentos e crónicas indianas e é sempre associada ao ano da morte de Kṛṣṇa. Foiexactamente neste período que ocorreu a grande batalha do Mahābhārata, noano de 3139 a.c. e não parece ter havido erro em a de ter miná-la. a razão prende-se com o facto dos hindus sempre terem tido o má xi mo cuidado e precisão paracalcularem os momentos exactos na ce le bração dos rituais. Tinham por issomesmo uma percepção muito ajuizada do valor do ano (saṃvatsara), dos meses(māsa), das semanas, dos dias lu na res (tithi), das horas (horā) e dos minutos(kālā), fazendo uso da obser va ção das constelações (nakṣatra), dos planetas(bhāva), dos sol s tícios (āya naṃ) e das eras (śakābda, yuga, mahāyuga, manva-tara, kal pa e pa rārdha). a contagem do tempo se gun do os cálculos indianossem pre foi (re)co nhe cida como extraordi na ria men te precisa, como foi notadapelos jesuítas portugueses na corte de ak bar no séc. XvII, ao verificarem queas tábuas de cálculo astronómico aí utilizadas eram mais precisas do que as em -pre gadas até então na eu ropa.

há porém, tal como entre os historiadores e astrónomos ocidentais que sededicam ao estudo das cronologias da história da Índia, in ves tigadores indianose figuras de relevo da astronomia clássica que dis cor dam quanto à data da fa-mosa batalha do Mahabhārata. o grande as tró no mo Āryabhata (476-550) e a

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___________55 – n. Jagannadha rao, The Age of The Mahabharata War, varanasi, Bharat-Bharati, 1978.56 – n. J. rao dá ao período entre 1535-1501 a.c. como do reinado de chandragupta. houve

porém dois imperadores chandragupta, o primeiro apontado anteriormente e o segundo,chandra-Gupta I que realmente governou entre 328-321 a.c. e que ,na realidade, foi iden-tificado pelos cronistas gregos como Sandracottus.

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sua escola, defendeu o ano 3139 a.c. para o grande conflito, mas outros as-trónomos indianos, como Vṛddha-Garga (c. 1100 a.c.), Varāhamihira (505-587) e Kalhaṇa (séc. XII) dis cor da ram, apontando o ano 2449 a.c.57 estediscusão tão antiga man te ve-se du rante séculos e ainda hoje encontra algunsadeptos ― jun tan do-se-lhes as controvérsias dos historiadores ocidentais quereduziram subs tan cial men te a suposta data,58 partindo do pressuposto erradodo rei na do de Chan dragupta para o séc. Iv ― mas a partir de 1993 uma por -ção da ci da de de dvaraka,59 submersa após um sismo de grande mag ni tu de(acon te cimento igualmente descrito no vol. XvI do Mahābhārata), foi en -con trada pelo serviço de arqueologia marinha do national Institute of oceo a -nography (Goa), ao largo da mesma cidade actual nas costas do Gu ja ra te.descreve aquele capítulo do épico, que no dia da lua nova uma grande he -catombe arrasou a metrópole, soprando ventos muito fortes e a ce râ mi ca dacidade rachou sem causa aparente; tinham passado 36 anos após o grandeconfronto entre Kurus e Pāṇḍavas, estava-se no ano de 3102 a.c., o começoda era Kali-yuga.

a famosa batalha que deu o nome à obra homónima, serviu como panode fundo para uma síntese do conhecimento filosófico e espiritual da Índiapré-clássica, vertida numa linguagem acessível para uma au diên cia mais alar-gada do que as elites intelectuais. Tirada da memória oral sobre factos histó-ricos que devem ter ocorrido num período his tó rico, que podemos identificarcomo imediatamente anterior à cultura de harappa-mojenjodaro (c. 2.600-1700 a.c.), a Bhagavad-Gītā expõe o conflito entre dois ramos de uma sótribo descendente do rei Kuru, que disputam a soberania de Hastināpura; oramo mais antigo desta família é designado pelo nome do fundador Kuru, en-quanto o mais novo pelo do patronímico Pāṇḍu, o pai dos cinco irmãos echefes do clã dos Pāṇḍavas.

a tradição atribui a autoria do épico a Veda Vyāsa Dvaipāyana (Kṛṣṇa

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___________57 – vid. The Vedic Age, in The History and Culture of the Indian People, vol. I, mumbai,

Bharatiya vidya Bhavan 1996, pp. 271-322.58 – referimo-nos às datas propostas por William Jones, max müller e a. a. macdonell. Por

outro lado, hermann Jacobi, P. c. sengupta e a. seidenberg destacaram-se entre os inves-tigadores ocidentais na correcção das cronologias da história da Índia, con fir man do compouca margem de erro as datas tradicionais indianas. vid. J. c: calazans, Pa ra uma Revo-lução Epistemológica dos Estudos Indológicos, in Revista Portuguesa de Ciência das Re-ligiões, Universidade Lusófona de humanidades e Tecnologias, ano Iv, n.º 9/10, 2006, p.227-237.

59 – Dvārakā ou Dvāravatī. esta cidade era a capital dos Yādavas, sobre os quais o próprioKṛṣṇa governava.

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Dvaipāyana), o sábio que igualmente se supõe ter compilado os Vedas e osPurāṇas, e considerado o avô dos Kauravas e Pāṇḍavas. admite-se queVyāsa dividiu o corpo original dos Vedas nas quatro colecções que se conhe-cem (Ṛgveda, Sāmaveda, Yajurveda e Atharvaveda); como o seu nome indica,Vyāsa significa “separar”, “descrever”, “diferenciar” ou “di fundir”, uma ac-tividade característica de um grupo específico de sá bios da antiguidade in-diana, encarregados de compilarem e de darem uma ordem lógica aos textossagrados. o nome Vyāsa indica, portanto, não o nome de um indivíduo, masde uma classe de pessoas associadas à tra dição responsável por transmitir oconhecimento tradicional ao longo de muitos séculos. de facto, a mesma tra-dição conta vinte e oito as vezes que os Vedas foram organizados por difere-rentes Ṛṣis, por diferentes Vyāsas durante um longo período de tempo.

o sábio Vyāsa que emerge como autor do épico, é igualmente um dos seuspersonagens, aparecendo como o pai adoptivo de Dhṛtarāṣṭra e de Pāṇḍu.através da sua suposta pena, Vyāsa afirma o desejo de escrever o drama, masé a Gaṇapati que pede auxílio para passar à forma escrita todo o relato, en-quanto o sábio recita o poema de cor. o Mahābhārata descreve ainda no iní-cio do primeiro livro que Gaṇapati, não podendo acompanhar a declamaçãode Vyāsa, saltou várias palavras e versos. este facto relata à veracidade a tra-dição oral de todo o conhecimento, assim como a dificuldade dos escribasem tentarem redigir o que ouviam de clamado de um só fôlego; tal como oapelido Vyāsa não foi o nome específico de uma pessoa, Gaṇapati tambémnão foi o nome exclusivo de um dos deuses hindus, designando paralelamentetodos os chefes ou líderes de grandes agrupamentos de pessoas, chefes eleitos(primus inter pares) como num sistema republicado. Gaṇapati (lit. “senhorda tribo”), terá sido um destes chefes educado na arte da caligrafia, que passouà escrita o que era conhecido na oralidade. dado que a primeira forma cursivade escrita usada extensivamente na Índia foi a Brāhmī, e que esta aparece c.600 a.c., deduzimos ter sido a partir desta altura que o Mahābhārata e outrasobras começaram a ser registadas graficamente.

Porque a guerra teve de facto uma existência real, ou porque naquele mo-mento Vyāsa ou Gaṇapati quiseram sintetizar em súmula o co nhe cimento tra-dicional, um quarto do épico Mahābhārata é composto pela Bhagavad-Gītā, oque nos dá uma ideia da importância dada à mensagem nela expressa. Talveznão seja coincidência o Mahābhārata ser composto por 18 volumes, a Bhaga-vad-Gītā ter 18 capítulos e a pró pria guerra ter-se desenrolado durante 18 dias;60

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___________60 – há igualmente 18 Purāṇas maiores e 18 menores.

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parece-nos que este nú me ro assume uma importância mística e simbólica apartir do stoma (hi no) védico dividido igualmente em 18 partes (aṣṭadaśa),uma maneira carinhosa e devocional de associar metaforicamente a obra épicaà tra dição védica.

Toda a obra está feita em diálogo entre Dhṛtarāṣṭra (o rei dos Kurus) eseu conselheiro Saṃjaya, que relata minuciosamente ao rei todos os passosque antecederam a guerra no campo de Kurukśetra e durante ela. além dopatronímico Kuru, o nome designa o quadrante norte do mundo que a geo-grafia clássica indiana denomina por Dvīpa (“ilha”), re la cio na da com a cor-dilheira dos himalaias e o oceano ártico; mais tarde passou a indicar um dosnove Varṣas (divisões) do mundo. assim, Kuru abranje um conceito geo-hu-mano no qual está implícita uma parte da família cha ma da “árica” (ārya),61

que parece ter tido um papel de gran de im por tân cia no norte da Índia dandoorigem a várias dicidências políticas. os Ku rus representam um ramo étnicoimportante da família indo-europeia que ha bitou na Ásia central, numa regiãoque a tradição descreve como sendo um país de felicidade eterna; num dadomomento terão migrado para a re gião norte do continente indiano e fundadoum reino com capital em Has tināpura, sendo Vicitravīrya o seu rei; este so-berano era filho de San tanu e de Satyavatī, assim como Bhīṣma e o próprioKṛṣṇa Dvaipāyana, o Vyāsa. Vicitravīrya teve duas esposas, Ambā eAmbalikā, tendo mor ri do pouco depois do casamento e não dei xan do des-cendência. o seu meio-ir mão Vyāsa, então inspirado por deus, casou com asviúvas que deram à luz Dhṛtarāṣṭra e Pāṇḍu; ao primeiro nasceram cem fi-lhos, sendo o mais velho um dos grandes protagonistas da batalha, Duryod-hana, en quanto o último, casou com Pṛthā (também chamada Kuntī) e depoiscom Mādrī, das quais nasceram os cinco irmãos Pāṇḍavas.

em novo, Pāṇḍu foi amaldiçoado por um cervo enquanto caçava e porisso ficou impossibilitado de ter filhos. Quando Vyāsa casou com Ambā eAmbalikā, fê-lo para proteger as viúvas e embora não tivesse sido o verda-deiro pai dos cinco Pāṇḍavas, apadrinhou-os como lhe tinha sido comunicadointuitivamente pela divindade. assim, cada um dos cinco irmãos teve um paiespiritual: Yudhiṣṭhira, Bhīma e Arjuna eram filhos de Pṛthā com os deusesDharma, Vāyu e Indra, enquanto que Nakula e Sahadeva, filhos de Mādrīcom Nāsatya e Dasra respectivamente. Du ryo dhana e os seus irmãos eramo chefes dos Kurus, que no épico re pre sen tam a linhagem mais antiga doramo indiano, enquanto os Pāṇḍavas a mais nova.

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___________61 – Ārya significa “respeitável”, “honrado”, “educado”.

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Dhṛtarāṣṭra nasceu cego, mas mesmo deficiente assumiu a regência,muito embora fosse o seu filho Duryodhana a governar. Foi Duryodhanaquem convenceu o rei a expulsar do reino os seus primos Pāṇḍavas, que er-rando por uma grande parte da Índia passaram por variadíssimas provas, aomesmo tempo reunindo amizades e apoios de que viriam a beneficiar maistarde durante a batalha. Foi no campo dos Kurus (Ku ru k śetra) que os doisexércitos se confrontaram; Bhīṣma, o guerreiro mais velho e meio irmão deVicitravīrya, assumiu o comando geral do exército Kuru, enquanto Bhīma, osegundo filho de Pāṇḍu, enaltecido pela sua força e agilidade na arte daguerra, foi o general dos Pāṇḍavas.

Todo o drama é representado em Kurukśetra como uma peça teatral, masé com este mesmo pano de fundo que Vyāsa (ou Gaṇapati), encena a trans-missão de uma síntese de conhecimento que julgamos ter sido necessária àsociedade indiana de então; uma síntese filosófica, religiosa e ética que foimarcante e que continua a ser para todos os hindus da era de Kali-yuga. dadaa transcendência do conteúdo do épico indiano, a sua mensagem passou a serextensível a toda a humanidade, fazendo juz ao que a tradição espiritual daÍndia designa como corolário da aplicação universal do Sanātana Dharma(“ordem universal”). o Mahbhārata co mo um todo simbólico, e a Bhagavda-Gitā em particular, como en si na men to e como pedagogia do conhecimento(no sentido de uma ver da dei ra paidéia), apresenta o “saber” como um actonatural e genuíno de todo o ser humano, que busca como uma criança atravésda realidade, o que nela se esconde como espírito e como transcendência.

Por isso, cada actor deste drama indiano assume um perfil psicológico eum estado de consciência singulares, representativos dos vários tipos de sereshumanos (segundo o dharma e o karma); introduz como ponto de partida daindagação e da dúvida a “inércia” (viṣada), na pessoa do príncipe Arjuna, dú-vida preenchida com as emoções próprias ao ser humano, ainda submetidoao alento dos sentidos e dos sentimentos; apresenta igualmente um sistemafilosófico (o saṃkhya) que desvenda a realidade do universo fenoménico, poruma ordem de categorias naturais que o explicam; expõe a lei causal (karma)que determina o fluxo dos acontecimentos no universo e que na dimensãohumana estabelece um des tino variado ao sabor dos impulsos e das decisões;sobre essa pre cep ção de uma lei universal, estabelece ainda um conhecimento(jñāna) ge ral tirado da arte de viver em sociedade, no mais profundo respeitopelas op ções sociais e religiosas de cada um; e tem a virtude de apontar, alémda necessidade de cultivar o altruísmo (“renûncia” — saṃnyāsa) em prol deum bem comum, ou então pessoal de suprema espiritualidade, di fe ren tes op-ções de vida (yogas), segundo aquelas características psicológicas de rivadas

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de uma unidade apriorística a que designa por guṇas (sāttva, rajás e tamas).o teatro do homem abre-se no seu dramatismo e o primeiro acto da batalha

é anunciado pelo soar das conchas de guerra e os tambores de ambos os lados,como que dando à vida a natureza que cada guerreio encarna e significa; osom, criador do universo, é igualmente o anun cia dor das qualidades de cadaactor deste drama humano, Bhīṣma, o general dos Kurus, é o primeiro a dar-se à evidência seguido pelos seus pares, e em resposta afirma-se Arjuna so-prando a sua concha de guerra. Kṛṣṇa, que em compaixão para com Arjunano seu sofrimento de exílio e no pro fundo desgosto por ter de infligir a morteaos seus familiares e amigos, tor na-se no seu íntimo conselheiro, no seu am-paro e seu mestre es pi ri tual; e é no meio do drama, quando começam a choveras primeiras fle chas de ambos os lados, que Kṛṣṇa revela finalmente a Arjunaa sua verdadeira natureza como reencarnação da divindade, Viṣṇu.

mergulhado no desespero de um fraticídio, Arjuna, confuso entre a decisãode matar, de abdicar em prol da vida e de uma constatação súbita e inesperadasobre a verdadeira natureza de Kṛṣṇa, larga o seu arco querendo desistir detudo, preferindo morrer a matar. este é o ponto de partida da alma humana en-carnada na personagem de Arjuna, que Kṛṣṇa, como consciência divina, elucidacom o seu ensinamento, desengana quan to à ilusão (māyā) da vida e da mortee impele ao cumprimento e res ta be le cimento do Dharma em toda a terra, nãoapenas como mero dever de um prín cipe, mas como dever espiritual para res-tabelecer a ordem cósmica. em resultado desta revelação e deste ensino espi-ritual e filosófico, o exér cito dos Pāṇḍavas sai vitorioso e a lei universal éreposta.

entre as várias escolas interpretativas e apesar de cada uma apresentar di-ferentes pontos de vista sobre os diálogos da Bhagavad-Gītā, há um certo con-senso quando à atribuição de valores éticos e morais aos Kurus e aosPāṇḍavas, uns e outros significando os poderes e as faculdades humanas; osprimeiros representando as tendências mais físicas e ma te ria listas do homemque o impelem à ignorância ― que poderíamos tentar definir à maneira oci-dental e à luz de uma psicologia comportamental como ― associadas ou go-vernadas por thánatos, enquanto os segundos, aspirando aos mais altos valoresespirituais da humanidade e do amor universal, governados por eros. esta dua-lidade própria à vida comum dos mortais, representada por aqueles dois par-tidos, pelas duas tendências inatas do ser humano, manifesta-se igualmentena própria natureza e na vida na terra através dos dois solstícios; destes dois,a via da lua cheia durante o período do solstício de verão, é o portão para aque-les que, prestes a morrerem, conseguem partir através dele e seguindo o ca-minho do sol atingem a salvação libertando-se da roda das reencarnações,

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en quanto que pela via da lua nova durante o período do solstício de Inverno,seguem estes o caminho lunar obscuro renascendo de novo na terra. este pro-cedimento religioso ― “o ano é o próprio Prajāpati, que tem dois caminhos:o do sul e o do norte; quem cumpre apenas os rituais como me ras acções re-ligiosas e como deveres a serem cumpridos por obri ga ção, ganham apenas ocaminho da lua e por isso voltam à vida de novo; os Ṛṣis que desejam ter des-cendência fazem a viagem do caminho do sul; este caminho dos Pais é rayi[material]. mas aqueles que buscam o espírito através da austeridade, da cas-tidade, da fé e do conhecimento, viajam pelo caminho do norte e alcançam osol; o sol, verdadeiramente, é a base de toda a vida; ele é imortal, destemidoe o objectivo final; por isso eles não regressam; este caminho [do sol] estáfechado [para os ignorantes]” (1.9-10) ― que o Praśna Upaniṣada descreve,surge como a via escolhida por Bhīṣma, o comandante em chefe dos Kurus,que esperou a morte no seu leito de flechas até que soubesse da vitória dosPāṇḍavas e o sol tivesse entrado no seu caminho do norte. só então e depoisde proferir o seu último discurso, morreu.

a Bhagavad-Gītā pode ser interpretado como um tratado que define osmeios para desenvolver uma ciência da consciência individual e um instru-mento para alcançar a consciência suprema. É composta por de zo i to capítulos,que se encontram integrados no vI volume do épico Ma hābhārata, designadopor Bhīṣma-Parvan. escrita na forma poética (chan das) destinada a ser cantada,como é usual na tradição indiana, a Bhagavad toma por isso mesmo o nomede “canção” (Gītā). os mesmos dezoito capítulos estão ainda sujeitos a umasubdivisão tripla que várias escolas tradicionais aceitam consensualmente eàs quais designam como Karma Yoga, Bhakti Yoga e Jñana Yoga, cada umadelas expondo uma par ti cu la ridade do conhecimento espiritual que conduz oser humano à li ber ta ção (mokṣa), ao fim do ciclo das reencarnações e à ilu-minação.

as escolas tradicionais (sapradāyā) que têm garantido a so bre vi vên cia daBhagavad-Gītā pela via do comentário e da interpretação, estão as so ciadas aquatro fundadores e respectivos discípulos ou mestres (ācāryas) da linhagemVaiṣṇava,62 que são: Ṣṛ (que escolheu Rāmānuja-ācārya),63 Bra h mā (que esco-lheu Madhva-ācārya),64 Rudra (que es co lheu Viṣṇusvāmi-ā cā rya)65 e Sanaka

38 ________

___________62 – Que adoram Viṣṇu.63 – Rāmānuja terá vivido entre 1017-1137.64 – Madhva terá vivido entre 1238-1317.65 – Viṣṇusvāmi terá vivido no séc. XIII.

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(que escolheu Nimbāditya-ācārya).66 a partir do texto ori ginal padrão da Bha-gavad-Gītā, cada uma destas escolas desenvolveu um cor po de comentários pró-prios a partir do seu sistema religioso; a escola Nim bāditya-sapradāyā, que segueo culto de Rādhā-Kṛṣṇa a partir da Bha ga vata-purāṇa, desenvolveu uma formaparticular de interpretar a Bha ga vad-Gītā. além destas quatro escolas, outrosfilósofos não Vaiṣṇavas de di caram-se igualmente a produzir co men tários,como o monge errante Ādi Śaṃkarācārya (788-820), o re for mador da dou-trina Advaita-vedānta de linhagem Śaiva.67

durante o séc. XX, além das edições ocidentais dos comentários pro du -zidos por estas quatro escolas, incluindo o de Śaṃkarācārya, apa re ce ramigualmente outros comentários de mestres indianos con tem po râ neos que, em-bora dando uma visão mais actual e adaptada à actualidade, não deixaram deimprimir, de uma certa maneira, uma marca particular da sua tradição pessoal,como swami nirnalanda Giri, swami chi d bha va nan da, swami Gambhi-rananda, swami sivananda, swami Tapasyananda e swami vivekananda.

a Bhagavad-Gītā foi encarada por todos os quadrantes do hinduísmocomo uma obra de excelência, como uma verdadeira súmula de co nhe ci -mento, acessível ao comum dos mortais e um manual seguro para a sal va -ção. Um guia para que os homens e as mulheres se libertem da lei da mor tee atinjam, por seu próprio mérito, a libertação final pela lei do amor. e é assimque nos vem à memória os versos de camões:

“(…) E aqueles que por obras valerosasSe vão da lei da morte libertando,Cantando espalharei por toda a parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte.”68

39 _______

___________66 – Nimbāditya terá vivido no séc. XII.67 – seguidor de Śiva.68 – Ib. canto I, vr. 2, p. 1.

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||Segue-se o primeiro capítulo||

[a vI a co n F U s a d e ar J U n a]1

Dhṛtarāṣṭra disse:

Ó Saṃjaya, diz-me o que fizeram os meus e os Pāṇḍavas quando sepuseram frente a frente no campo da batalha de Kurukśetra.1-1

Saṃjaya disse:

o rei Duryodhana, ao ver a formação do exército dos Pāṇḍavas, apro-ximou-se do seu mestre2 e proferiu as seguintes palavras:1-2

“Ó mestre, dirige este poderoso exército dos filhos de Pāṇḍu, dispostosem formação de combate pelo teu talentoso discípulo, os filho de Dru-pada.”1-3

“há muitos heróis e grandes arqueiros na guerra, iguais a Bhīma e aArjuna, como Yuyudhāna e Virāṭa, assim como o grande guer reiro Dru-pada.”1-4

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___________1 – Viśāda-Yoga.2 – Droṇa.

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“Dhṛṣṭaketu, Cekitāna e o heróico rei de Kaśi; Purujit, Kuntibhoja e ogrande homem Śaibya.”1-5

“o valente Yudhāmanyu, o formidável Uttamaujas, o filho de Subha drae os filhos de Draupadī, todos eles são grandes guerreiros.”1-6

“Igualmente conhecidos são os melhores de entre os nascidos duasvezes; aqueles que se evidenciam do nosso lado, refiro-me para teu co-nhecimento, aos comandantes do nosso exército.”1-7

“Tu mesmo, Bhīṣma, Karṇa e o vitorioso Kṛpa; Aśvatthāman, Vikarṇae o filho de Somadatta.”1-8

“e muitos outros heróis que arriscaram as suas vidas por mim; eles estãoarmados com várias armas e todos são peritos na arte da guerra.”1-9

“o nosso exército, comandado por Bhīṣma, é invencível; enquanto ooutro exército, protegido por Bhīma, é fácil de conquistar.”1-10

“Portanto, todos vós, que ocupam as vossas respectivas posições emtodas as frentes, protegem unicamente a Bhīṣma”; o mais velho e po-deroso homem da dinastia Kuru,3 rugiu como um leão e soprou a suaestridente concha alegrando Duryodhana.”1-11/12

“em seguida, as conchas, os tambores do gado, os címbalos; os típanose as trompas tocaram ao mesmo tempo e grande foi a emoção.”1-13

“Kṛṣṇa e Arjuna, sentados num grande carro puxado por cavalos bran-cos, sopraram as suas conchas divinas.”1-14

“Kṛṣṇa soprou a sua concha pāṃcajanya; Arjuna soprou a sua conchadevadatta e Bhīma, o autor de grandes feitos, soprou a grande conchapauṇṭra.”1-15

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___________3 – Bhīṣma.

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“o filho de Kuntī, o rei Yudhiṣṭhira, soprou [a concha] anantavijaya, en-quanto Nakula e Sahadeva sopraram as conchas sughoṣa emaṇipuṣpaka.”1-16

“o rei de Kaśi, o grande arqueiro; Śikhaṇḍin, o grande guerreiro;Dhṛṣṭadyumna, Virāṭa e o invencível Sātyaki; o rei Drupada e os filhosDraupadi, [e] o grandioso filho de Saubhadra, todos sopraram as suasconchas, ó senhor da terra.”1-17/18

“o tumultuoso alarido, ecoando através da terra e do céu, aqueceu ocoração dos filhos de Dhṛtarāṣṭra.”41-19

“vendo que os filhos de Dhṛtarāṣṭra estavam preparados e a guerra prestesa começar, Arjuna, cuja bandeira trazia o sinal de Kapi,5 pegou no seu arcoe disse estas palavras ao senhor dos sentidos.”6 1-20

Arjuna disse:

“Ó Infalível7, pára o meu carro entre os dois exércitos para que eu de-tenha aqueles que aqui estão prontos para a batalha e com os quais eume devo envolver neste acto de guerra.”1-21/22

“desejo ver aqueles que anseiam por servir a mente maldosa do filhode Dhṛtarāṣṭra ao se reunirem aqui neste campo de ba talha.”81-23

Saṃjaya disse:

“Ó descendente de Bhārata9, Kṛṣṇa, a pedido de Arjuna, colocou o me-lhor de todos os carros entre os dois exércitos.”1-24

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___________4 – os Kauravas.5 – “macaco”, um dos cognomes de Hanuman e o totem da etnia do mesmo nome.6 – Hṛṣīkeśa, um dos cognomes de Kṛṣṇa.7 – Acyuta, “infalível”, ib. Kṛṣṇa.8 – Duryodhana era o filho do rei cego Dhṛtarāṣṭra.9 – o rei Dhṛtarāṣṭra.

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“olhando Bhīṣma, Droṇa e todos os reis, o filho de Pṛthā disse10: ‘man-tenham-se unidos, ó membros do clã dos Kurus’!”1-25

“diante do filho de Pṛthā estavam os seus tios, os avós, os mestres, ostios maternos, os irmãos, os filhos, os netos e os amigos.”1-26

“o filho de Kuntī, ao ver os sogros, todos os homens-bons e outros quelhe eram queridos nas fileiras dos dois exércitos, foi invadido por umaimensa compaixão e cheio de tristeza disse:”1-27

Arjuna disse:

“Ó Kṛṣṇa, ao ver os meus bravos à espera e desejosos por lutar, sinto-me a fraquejar e com a boca seca, o meu corpo treme e sinto- -me en-crespado; o arco Gāṇḍīva11 cai-me da mão e a minha pele ardeintensamente.”1-28/29

“Ó Keśava,12 a minha cabeça gira, sou incapaz de me ter de pé e pres-sinto maus augúrios; ó Kṛṣṇa, não vejo razão para matar em batalha osmeus melhores.”1-30/31

“Ó Govinda,13 não desejo vitória nem prazer, nem soberania; de queserve um reino, o contentamento ou até a vida?”1-32

“Pois todos eles, ó Govinda, por quem desejamos um reino, alegrias eprazeres — mestres, tios, filhos, avós, tios maternos, sogros, netos, so-brinhos e outros familiares — ó Madhusūdana,14 esperam aqui pela ba-talha dando as suas vidas e as riquezas.”1-33/34

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___________10 – a mãe de Arjuna, também designada por Kuntī.11 – o arco gāṇḍīva de Arjuna era feito de pele de rinoceronte (gāṇḍī).12 – “o de cabelo longo”, ib. Kṛṣṇa13 – o “pastor” de rebanhos; nome de Kṛṣṇa quando em novo guardava vacas e por an to no -

másia referente às gopīs (“vaqueiras”) suas apaixonadas, em especial Rādhā; este epi sódioserviu de inspiração no folclore indiano e na poesia, e no séc. XII Jaya Goswami compôsa obra em sânscrito Gītā-Govinda; a mesma vida de Kṛṣṇa inspirou o movimento bhakti.

14 – “o destruidor de Madhu”; um demónio (asura) nascido do cerume do ouvido deMahāviṣṇu.

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“Ó Janārdana,15 eu não lhes quero tirar a vida — eles que até estão de-terminados em me matar — nem que seja pelo bem estar da terra e peloreino dos três mundos16, que felicidade teremos nós?”1-35

“Ó Mādhava,17 que prazer devemos ter em matar os filhos de Dhṛtarāṣṭra?;ao matar estes amigos caímos unicamente em pecado.”1-36

“Ó Janārdana, apesar de cegos pela ganância, não vêm o mal na destruiçãoda família, nem pecado em serem maldosos com os amigos; porque nãodeveríamos pensar antes em desistir desta acção?”1-37/38

“Porque é que a destruição da família — as tradições eternas da família— são destruídas, e a imortalidade prevalece devido à des truição dastradições familiares?”1-39

“Ó Kṛṣṇa, e quando a imoralidade prevalece, as mulheres da famíliatornam-se corruptas; ó Vārṣṇeya,18 quando as mulheres ficam corruptasaparecem os problemas sociais.”1-40

“Isto leva a família e os chefes de família ao inferno; porque os espíri-tos dos seus antepassados degradam-se quando privados do sacrifíciodas oferendas de arroz e água.”191-41

“estas horrendas acções perpetradas pelos destruidores das famíliascontra as qualidades do varṇa,20 origina o aparecimento de uma geraçãocompletamente perdida, sem noção do tempo e das tradições sagradasda família e da nobreza.”1-42

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___________15 – sinónimo de Mahāviṣṇu por ele fazer tremer de medo os demónios; antonomásia de Kṛṣṇa.16 – Lokatrayaṃ “, a terra, a atmosfera e o céu.17 – “doce”.18 – ib. Kṛṣṇa.19 – o sacrifico védico.20 – “casta”, grupo social. Termo de origem portuguesa derivado de casto, relativo a ‘es pécie

animal, raça ou linhagem de homens’; vocábulo que aparece pela primeira vez referidoem documentos que datam de 1417. cf. s. r. dalgado, Glossário Luso- -Asiático, vol.I, Lisboa, academia das ciências de Lisboa, 1983, (pp. 286-290) e di cionário houaiss deLíngua Portuguesa.

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“Ó Janārdana, ouvi dizer aos entendidos que aqueles em cujas famíliasas traduções espirituais foram destruídas, passam a viver para semprenum inferno.”1-43

“então, estamos prestes a cometer um grande pecado; ao avan çarmoscom a destruição dos nossos bravos, por causa da ganância pelos pra-zeres do reino.”1-44

“seria muito melhor para mim se os filhos de Dhṛtarāṣṭra me matas-sem em batalha com as suas armas, enquanto eu estiver desarmado esem resistir.”1-45

Saṃjaya disse:

“dito isto, no campo de batalha e pondo de lado o seu arco, Arjuna foi in-vadido pela dúvida e sentou-se pensativo sobre o banco do carro.”1-46

“Om Tat Sat, aqui termina o capítulo primeiro da Śṛīma d bha - gavadgītopaniṣad, “a via confusa de arjuna”, a ciência de deus [que é] otexto do Yoga e o diálogo entre Kṛṣṇa e Arjuna.”1

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É sob a forma de diálogo, tão querido ao discurso filosófico e à poética do períodoclássico, que somos introduzidos como ouvintes no relato sobre os preparativos queantecederam a batalha entre Kurus e Pāṇḍavas. o ouvinte atento que é o reiDhṛtarāṣṭra, transporta-nos para o plano de cena recebendo de Saṃjaya o relato detoda a peça. são-nos introduzidos os heróis e co man dantes dos dois exércitos, cadaum representando uma característica da natureza hu mana, das suas virtudes ou daalma. Todos partes de um só corpo re pre sentando a própria humanidade.

Arjuna, que o mito hindu diz ser filho de Indra, encarna as excelentes qua lidadesdo protótipo do homem e do guerreiro, como a verdade, a lealdade, a edu cação, ainteligência, a ponderação e o sentido do dever; ele é ge nui na men te franco e amigoda verdade, procurando a concórdia em todo o momento da vida. É, por isso mesmo,o exemplo do homem no seu franco desenvolvimento, feito à imagem da ordem cós-mica. seguem-se os quatro irmãos de Arjuna ― Yudhiṣṭhira (que representa odharma), Bhīma (a força de vontade), Nakula e Sahadeva (a saúde física e mental)― e os outros guerreiros como Bhīṣma (a honra), Karṇa (a lealdade e a genorosi-dade), Yuyudhāna (a verdade), Drupada (a firmeza), Dhṛṣṭaketu (a audácia),Cekitāna (a inteligência), Kuntibhoja (a ca ri dade), Uttamaujas (o valor), Kṛpa (acompaixão), Dhrṛṣṭadyumna (a coragem) e Droṇa (a devoção).

como relata a lenda, Dhṛtarāṣṭra era filho do rei Vicitravīrya e de Ambikā. masnasceu cego, porque sua mãe, no momento em que viu Vyāsa pela primeira vez, ficouaterrorizada por lhe ver os olhos em chamas. o olhar comum de Ambikā sobre osábio védico marcou-a profundamente, a tal ponto de se recusar a abrir os olhos nasua presença; depreendemos que o choque emocional deve ter sido tão grande, queocasionou a cegeira congénita de Dhṛtarāṣṭra. numa leitura semiótica doMahābhārata, que podemos interpretrar igualmente à luz da comentarística tradi-cional, quer Ambikā como Dhṛtarāṣṭra, representam dois factores determinantespara a falta de discernimento no ser humano comum: a ignorância e o medo doconhecimento. a inteligência que se escusa à ex pe riên cia e à sabedoria ― aqui re-presentada na pessoa de Ambikā ―, leva à cegueira do entendimento sobre as re-gras mais fundamentais da vida em sociedade e sobre as próprias leis universais.

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cegueira personificada pelo rei Dhṛtarāṣṭra.Por ter nascido cego, o seu irmão Pāṇdu assumiu a regência e só depois da sua

morte, é que então Dhṛtarāṣṭra se tornou rei de Hastināpura. Quando Duryodhananasceu, seu pai (o rei cego), foi avisado por Vidura e por Bhīṣma que a criança de-veria ser abandonada, pois os sinais proféticos que sobre ela caíam não eram favo-ráveis para o futuro do reino. Porém, o amor de Dhṛtarāṣṭra por seu filho nãopermitiu que tal vaticínio se cumprisse. de facto, mais tarde, Duryodhana revelouuma identidade característica do ser humano, en vol vido com as emoções mais vul-gares e menos espirituais; invejavou as virtudes dos Pāṇḍavas e principalmente oseu rival ao trono de Hastinapura (o rei Yudhiṣṭhira); alimentou um certo ódio porBhīma, por este se distinguir de todos os Kauravas, pela valentia e agilidade na arteda guerra, chegando mesmo a tentar envenená-lo.

Vidura e Bhīṣma representam o lado oposto da ignorância e da cegueira. os doisnomes significam exatamente “sábio” e “terrível”, duas qualidades que definem ospressupostos do homem filosófica e espiritualmente vigilante, justamente as vozesque Dhṛtarāṣṭra não quis ouvir. apesar disso, Bhīṣma in sis tiu com o rei para quefosse justo com os Pāṇḍavas, que estavam de regresso da floresta. num exílio for-çado de catorze anos, os Pāṇḍavas tinham sido afastados após Yudhiṣṭhira perder oreino num jogo de dados, com toda a sua ri queza e até a sua esposa; vítima do ardi-loso Duryodhana, que almejava as cender ao trono de Hastināpura, Yudhiṣṭhira (o“firme”) perdera tudo.

Todo o drama desenrola-se em torno da sucessão ao trono de Hastināpura. Tronoque deveria pertencer a Duryodhana, o filho directo de Dhṛtarāṣṭra. Quando Bhīmaaconselhou o rei cego a abandonar o seu filho à nascença, o monarca optou por en-tregar metade do reino dos Kurus ao príncipe Yudhiṣṭhira, precisamente a região deKhaṇḍavapraṣtha, a mais seca e desabitada, deixando a melhor parte a Duryodhana,para quando atingisse a maioridade. Porém, Duryodhana nunca se conformou coma metade do reino, tudo fazendo para retirar o governo a Yudhiṣṭhira. eis pois, a ori-gem da guerra do Mahābhārata, que começa com os ânimos exaltados dos dois exér-citos, qual humanidade cega pelo poder da vã glória de mandar. exaltação alimentadapelos tambores e pelas conchas de guerra, que dão voz aos princípios que animamquem as tocam; apenas seis são mencionadas, indicando claramente que o tom dabatalha e o seu fim já se encontram predestinados, a favor dos Pāṇḍavas: Pāñcajanya(a concha de Kṛṣṇa), Devadatta (a de Arjuna), Pauṇṭra (a de Bhīma), Anan tavijaya(a de Yudhiṣṭhira), Sughoṣa (a de Nakula) e Maṇipuṣpaka (a de Sahadeva).

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