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relembrar a trajetória do movimento

sindical, as diÞculdades do passado e do

presente na luta do trabalhador brasileiro,

em especial dos docentes do ensino

superior, sob o olhar de uma pessoa

curiosa, jornalista, interessada e

preocupada com as questões do nosso

tempo, que nem se sabe ainda como

rotular, se moderno, pós-moderno agir com

consciência pública, e que na vida sindical

toma a ou só moderninho.

Não é a paixão cega, irresponsável, mas a

paixão que move a ação, do pensar e do

agir com consciência pública, e que na vida

sindical toma a forma de luta pela justiça

socia agir com consciência pública, e que

na vida sindical toma al.

SUMÁRIO

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 5

EDITORIAL

ENTREVISTA• Militância política e sindical: Marina Barbosa Pinto, Márcio Antônio de Oliveira e Antônio de Pádua Bosi.

SINDICALISMO EM DEBATE• Um duplo desafio

João Bernardo

• Autonomia e democracia diante da concepção de universidade empreendedoraCarmen Sílvia da Silva Sá e Sandra Simone Morais Pacheco

• O ANDES e a valorização da luta sindicalMariângela Nather

MEMÓRIA

EDUCAÇÃO E UNIVERSIDADE• Dívida pública e educação superior brasileira

Kátia Lima e Sônia Lúcio R. de Lima

• Universidade shopping centerRonaldo Rosas Reis e José Rodrigues

• A Educação na contemporaneidade: mercantilização e privatização?Olgaíses Maués

TEMAS CONTEMPORÂNEOS• 100 años de Neruda

Oscar Aguilera

• Duas armadilhas que ameaçam a esquerda brasileiraValerio Arcary

• O zapatismo, a esperança equilibrista e os novos movimentos sociaisAna Magda Carvalho

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Militânciapolítica e sindical

Nesta edição especial dos 25 anos do ANDES, Universi-

dade e Sociedade entrevista a presidente do ANDES,

Marina Barbosa Pinto, seu primeiro secretário, Már-

cio Antônio de Oliveira, e Antônio de Pádua Bosi, tesourei-

ro da entidade.

A partir da trajetória pessoal, os entrevistados falaram so-

bre seu ingresso no movimento docente, a experiência pessoal

no Sindicato, os desafios do movimento docente e do ANDES

e foram indagados sobre as qualidades que consideram fun-

damentais para os futuros dirigentes e militantes sindicais.

Embora com trajetórias de vida diferentes, com uma vi-

vência particular dos eventos das últimas décadas no Brasil,

os caminhos desses personagens se cruzam na interpretação

que fazem do passado e do presente, enriquecida com a expe-

riência de quem conhece os meandros da política.

Marina, Márcio e Bosi destacam a democracia sindical ga-

rantida pelas instâncias deliberativas do ANDES - assembléias,

congressos e CONADs - como um dos fatores que garante a

força das reivindicações do movimento docente e que dá

credibilidade ao ANDES, um diferencial em tempos de crise

institucional generalizada, instâncias que devem ser pre-

servadas a despeito de quaisquer propostas pretensamente

inovadoras.

Eles comungam também da mesma inquietude, da mesma

indignação e da mesma certeza: é preciso mudar os destinos

do nosso País.

10 - DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 11

Márcio - A maioria de nós, militantes, teveas suas primeiras experiências políticas aindacomo estudantes universitários. Comigo nãofoi diferente, lá pelos idos do início da décadade 60. Militei, primeiro, na JUC e a partir delanos espaços estudantis (DA, DCE) daFAFILE.

O fato mais marcante foi termos lideradoem Juiz de Fora, meus companheiros e eu, a“greve do terço”, a primeira manifestação na-cional pela defesa da universidade pública egratuita e pela sua democratização com a par-ticipação paritária de cada segmento da comu-nidade nos órgãos da universidade. Isso coin-cidia com a luta, num mundo bipolarizado,pela autodeterminação dos povos representadapela revolução cubana; no Brasil, com a lutapelas reformas de base - Jango havia sido con-firmado como presidente do Brasil após o ple-biscito que aboliu o parlamentarismo. Em1964, veio o golpe militar e passamos a vivermeio que como expatriados dentro da própriauniversidade e com medo, já como professorem 1965, silenciados para sobreviver, mas con-tinuando a militar, nas aulas, na reflexão con-tínua em grupos de estudos e de resistência.Apesar de ser rotulado como “partidão”, naverdade a militância era mais próxima do gru-po AP - Ação Popular, porém sem organicida-de. A ditadura, mais áspera ainda e dolorosa nofinal da década de 60 e no início da de 70, nãopôde escamotear as suas contradições e absur-dos com a crise mundial do petróleo e a reor-denação do capital, lá pela metade daquela úl-tima década. A América Latina sofria, tingidade cores sangrentas. Allende derrubado noChile e ascensão de Pinochet e, logo depois aditadura militar na Argentina. É neste quadroque se dá a reviravolta brasileira. O resto é sa-bido: os operários do ABC começaram a se or-ganizar, na luta por um novo sindicalismo; o

país, os intelectuais, as mais diversas forças dasociedade passaram a exigir a redemocratiza-ção. Neste caldo político de lutas, surgiram asAssociações de Docentes, brigando pela uni-versidade pública e gratuita com acesso paratodos, lutando por sua autonomia e democra-tização; ao mesmo tempo contra a selvagerianas instituições particulares. Em Juiz de Fora,companheiros da ADUFRJ, nos visitaram etrouxeram a sua experiência. A partir dessescontatos, um grupo de professores criou a

Entrevista

Márcio Antônio de Oliveira

Foi o movimento docente, a luta conjunta com os trabalhadores que nos deu acoragem para a ultrapassagemnecessária para enfrentar osdesafios. E assim continua sendo.”

Márcio Antônio de Oliveira

O encontro com a política e o sindicalismo

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE12 - DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006

Entrevista

APESJF em 1978 e eu sou um dos seus funda-dores. Também fui seu presidente por mais deuma vez. A partir das associações de docentesfoi fundada a ANDES em 1981, a qual, em1988, transformou-se em ANDES-SN. Umcomentário antes de concluir este ponto. Eununca me tive como um modelo de militanteem todos os sentidos. Muito mais poderia terfeito. Tenho clareza, no entanto, que hoje so-mos muito melhores - aqui incluo muitos com-panheiros com que tenho compartilhado a luta- e isso se deve à militância e ao movimentodocente que nos têm ensinado. Foi o movi-mento docente, a luta conjunta com os traba-lhadores que nos deu a coragem para a ultra-passagem necessária para enfrentar os desafios.E assim continua sendo.

Marina - Meu contato com a atuação po-lítica foi em um primeiro momento via minhainserção na igreja, atuando nos movimentosligados às pastorais da juventude e da terra. Defato, naquela época, entre os 13 e 15 anos, nãotinha a compreensão de que o que fazia era mi-litância política. Naquele momento da minha

vida, parecia tão somente uma questão de fé.Depois, quando passei no vestibular e in-

gressei na universidade, vim para a cidadegrande e as perspectivas políticas se ampliaram.Centro Acadêmico, DCE, encontros e con-gressos da UNE e UEE, contatos com corren-tes políticas, escolhas partidárias, greve de1984, o fim da ditadura e a luta pelas Diretas Já.Era a efervescência da luta pela democratiza-ção do país e foi nessa conjuntura que inicieiminha militância mais consciente. Término dafaculdade, necessidade de sobrevivência sem afamília por perto, razão da busca de um em-prego que possibilitasse ficar na cidade grandee apostar em outros projetos. Foi por essa mo-tivação que, na segunda metade da década de80, tornei-me bancária, no Rio de Janeiro, umdos palcos das lutas pela democratização dossindicatos, pela derrubada dos “pelegos his-tóricos”. Foi na militância numa das principaiscategorias do cenário político-sindical do país,a de bancários, que amadureci minha militân-cia e experimentei a luta sindical. Mas a opçãoprofissional continuava sendo investir em umprojeto que tivesse como fundamento a luta

Marina Barbosa Pinto

Mas a opção profissionalcontinuava sendo investir em um projeto que tivesse como fundamento a luta pelo aperfeiçoamento das instituições sociais em benefício da sociedade e,sobretudo, daqueles que dependeminteiramente do aparato públicopara viver com dignidade.”

Marina Barbosa Pinto

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 13

Entrevista

pelo aperfeiçoamento das instituições sociaisem benefício da sociedade e, sobretudo, da-queles que dependem inteiramente do aparatopúblico para viver com dignidade. Já no cursoda atividade docente, vieram o mestrado, o tra-balho precário nas universidades, a participa-ção em pesquisas, e a vida profissional foi sefortalecendo concomitantemente ao envolvi-mento na luta pela universidade pública, gra-tuita e de qualidade. A experiência que traziaajudou, mas foi também desafiada e aprimo-rada nas greves, no dia-a-dia do sindicato local,a ADUFF Seção Sindical, e do ANDES-SN,na construção do fio condutor geral da luta sin-dical, que é a defesa de direitos, de melhores sa-lários e condições de trabalho e democracia nasrelações trabalhistas, o que se traduz de modomuito particular no movimento docente.

Bosi - Não saberia dizer exatamente quan-do entrei na militância política, mas foi emMonte Carmelo, onde nasci. A primeira vezque investi meu tempo na participação ou or-ganização de alguma coisa parecida com polí-tica foi quando estava no 2º grau. Para impedir

que nós, estudantes, realizássemos as olimpía-das da escola do nosso jeito, o diretor lançoumão de tudo ao seu alcance. Falsificou atas dereunião, boicotou nossas atividades, difamoucolegas nossos. Não houve maneira. Conse-guimos fazer como queríamos e, em função dodesgaste, o Padre afastou-se da direção. O di-retor era padre, amigo da família e acho que fi-liado ao PDS. Minha mãe ficou um pouco de-sesperada com a situação toda, mas não seguiseus conselhos. Por conta daquele episódio meidentifiquei com a experiência dos poucos pe-tistas que existiam na cidade, em especial mi-nha professora de geografia do 1º grau, mãe deum grande amigo. Com 17 anos, em 1984, meassumi petista e conheci pessoas absolutamen-te maravilhosas. Lavadeiras, trabalhadores ru-rais, um carteiro que é batalhador incansável(embora continue petista), militantes do MST emuitos militantes das pastorais. Acho que mi-nha formação política começou ali, com eles.Li algo sobre luta de classes pela primeira veznos panfletos e cartilhas das pastorais, mas defato aprendi noções de política com uma for-midável liderança das CEBs que infelizmente

Antonio de Pádua Bosi

Li algo sobre luta de classes pela primeira vez nos panfletos e cartilhas das pastorais, mas de fato aprendi noções depolítica com uma formidávelliderança das CEBs queinfelizmente já morreu.”

Antonio de Pádua Bosi

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14 - DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Entrevista

já morreu. Nesse tempo todo participei da or-ganização do Grêmio da escola, mas me entu-siasmava mesmo era com as atividades do PT.Vi e participei de muitas coisas que não enten-dia direito, mas que achei corretas como asgreves dos professores do Estado e uma ocu-pação de terra no pontal do Triângulo, que foide dar medo. Tempos depois, ouvi e li muitacoisa sobre os movimentos sociais e popularesbrasileiros da década de 1980 que estavam nacontramão de um grande encolhimento po-lítico da classe trabalhadora em todo o mundo.Naquela época não tinha a dimensão do signi-ficado e importância daquelas pequenas lutaspor moradia, creches, asfalto, emprego, enfim,coisas do cotidiano que se tornaram importan-tes como memória de lutas e de resistências declasse. Depois disso, já em 1989, quando entreipara a universidade, é que a militância políticavirou algo mais planejado e mais identificadocom a educação pública. A universidade e omovimento estudantil eram muito sedutores.Primeiro, porque conheci muita gente, muitospensamentos, muitas posições, e tudo isso fa-zia com que as minhas verdades concorressemcom outras tantas. Segundo, porque o PC do Bainda não havia esterilizado os DAs e o DCE.Terceiro, porque tive professores que ensina-ram a pensar a política antes de fazê-la. Porcausa deles li muita coisa embaralhada, de We-ber a Trotsky, até começar a temperar melhoras idéias e as práticas sem o gosto ficar estraga-do. Acho que foi assim que me interessei porpolítica, mas ainda hoje os sentimentos quemais me mobilizam são parecidos com aquelesque me jogaram contra um padre que foi con-tra uma olimpíada escolar organizada pelospróprios alunos.

Já o movimento docente foi uma luta pramilitar nele. Antes mesmo de completar a gra-duação em 1993 eu já tentava lecionar. Traba-lhei como alfabetizador de adultos e professorda rede estadual em Minas até 1995, mas as au-

las eram sempre poucas. A primeira vez que le-cionei no 3º grau foi numa faculdade particu-lar. Ganhava por hora aula, não havia nenhumtipo de planejamento pedagógico, extensão, es-paço para pesquisa e organização sindical. Em1996 fui aprovado como professor substitutona UFU e foi então que comecei a participardo movimento docente. Foi meio esquisitoporque muitos professores me conheciam doDCE e me tratavam como estudante. Pra pio-rar, apesar dos combativos companheiros, asassembléias estavam muito esvaziadas e a dire-toria da ADUFU naquele tempo era pra lá derecuada. Ainda bem que durou pouco. Em1997 fui aprovado em concurso para professorauxiliar no campus avançado de Catalão, daUFG, onde fiquei até 1999. Lá tinha uma lutamuito justa e boa, contra os atrasos de saláriose pela encampação do corpo docente, porque ocampus era mantido pela prefeitura. Professo-res de diferentes preferências ideológicas cons-truíram aquele movimento. Foram duas gre-ves, uma muito forte. A ADCAC-S.Sindicalfoi de fato minha primeira experiência no mo-vimento docente.

Tive professores que ensinaram a pensar a política antes de fazê-la. Por causa deles li muita coisa embaralhada, de Weber a Trotsky, até começar a temperar melhor as idéias e as práticas sem o gosto ficar estragado.

‘Antonio de Pádua Bosi

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 15

Márcio - O ANDES-SN é uma realidade.Se alguém tentasse imaginar como seria o país,a educação pública, a organização sindical etc.,sem o nosso sindicato, certamente, veria queestava faltando algo. O ANDES-SN tem sidoum protagonista de primeira linha em todos ossentidos. Gostaria de lembrar as iniciativas pa-ra construção da Proposta das Associações deDocentes e da ANDES para a UniversidadeBrasileira (ainda como a ANDES), que hoje éa Proposta do ANDES-SN para a Universi-dade acrescida dos itens de carreira e educaçãotecnológica, a Plataforma da Andes para aConstituinte, a Proposta para a LDB do FórumNacional em Defesa da Educação Pública, aProposta de Carreira etc. Tem mais, lutamospela redemocratização do país, fomos comba-tivos na linha de frente pelas Diretas e estive-mos na luta sem tréguas pelo impeachment deCollor de Melo, fizemos lutas históricas pelaconquista da isonomia, pela autonomia univer-sitária. Estamos na luta pela organização sin-dical, na CNESF, este é outro exemplo. Nossasações dizem respeito a interesses do campo eda cidade, em nível nacional e internacional.

No caso da universidade, a relação é maisque especial. A universidade é parte do sistemade educação pública pelo qual lutamos, integrao nosso projeto de sociedade e é lócus do nossotrabalho, de elaboração e criação. Exatamenteporque temos um sindicato que está para alémdo imediato e do contingente é que reconhe-cemos o caráter distinto da universidade; ela édiferente, não é uma empresa para superinten-dências e gerências, como os adoradores domercado querem. A universidade é, por exce-lência o espaço da criação coletiva. Não queisto esteja acabado. Trata-se de um processoem curso iniciado pela comunidade universi-tária, penso que se possa dar destaque aos do-centes organizados no ANDES-SN, aos quais

se somaram os técnicos administrativos e osestudantes. A nossa compreensão de universi-dade abarca as instituições públicas e privadasque têm que ter compromisso com o povo e opaís. E têm de ter o ensino, a pesquisa e a ex-tensão indissociáveis. Isto é o que incomoda.Não é de hoje que governos, patrões, empre-sários e aventureiros têm outra visão de uni-versidade e busquem implantá-la. Tornou-senatural para eles o mundo da exploração noqual temos que nos adaptar. Não pensamos as-sim. Não é que as coisas sejam fáceis. A univer-sidade tem traços muito conservadores e mui-tos setores da academia têm uma concepçãoindividualizada sobre o papel dela. Aí vem oANDES-SN, a todo o momento, relembrar otrabalho coletivo, relação com o povo, proje-tos sociais, articulação com trabalhadores,democracia e autonomia da universidade. Daíos interesses diferentes sobre o nosso sindica-to, o desejo dessa gente de silenciá-lo e aman-sá-lo. Se não fosse o ANDES-SN a universida-de pública e gratuita já teria sido extinta. Nãoobstante, é necessário reverter o quadro emque as particulares são maioria e cujo ensino émuito ruim, sendo um dos principais motivoso domínio da autocracia e o abuso do patro-nato e o cerceamento da liberdade de organi-zação dos docentes.

Quanto à relação com os movimentos so-

Aí vem o ANDES-SN, a todo o momento, relembrar otrabalho coletivo, relação com opovo, projetos sociais, articulaçãocom trabalhadores, democracia eautonomia da universidade.”

Márcio Antônio de Oliveira

‘A militância sindical no ANDES

Entrevista

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE16 - DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006

ciais, esta é uma marca difícil de apagar. OANDES-SN anda com as suas pernas, às vezespara alguns de forma lenta, de forma sempresegura porque age e caminha democraticamen-te de acordo com as deliberações da base e desuas instâncias. Fomos importantes na renova-ção do movimento sindical, na criação de umacentral sindical e na organização dos SPFS. Te-mos sido protagonistas da luta pelo sindicalis-mo independente. Mas temos sido também ca-pazes de agir prontamente: a saída da CUT foibem rápida, tão grande foi a entrega da CUTao governo e o abandono dos princípios fun-damentais que a criaram. Para o ANDES-SN,docentes, universidade, movimentos sociais esindicais, são partes de uma totalidade que sequer transformada.

Marina - O ANDES-SN tem uma caracte-rística especial que é sua capacidade de elabo-ração coletiva, produto de embates de idéias ede posições políticas, mas essa elaboração nãoé corporativa no sentido burocrático e estreitoda palavra. Ao contrário, ela tem uma dimen-são que, ainda que defendendo a “corporaçãodocente do ensino superior”, é capaz de con-tribuir para as demais lutas da sociedade que secolocam no campo da emancipação. A essacaracterística soma-se uma outra capacidadeque é de atuar junto, colocar sempre o sindi-cato à disposição da unidade dos que querem

lutar pelos direitos dos trabalhadores, tais co-mo à terra, à saúde, ao trabalho, à vida e tam-bém por uma universidade democrática, dequalidade, pública e gratuita que servirá àconstrução de um outro projeto de sociedade.Esse é o ponto de ligação do sindicato com auniversidade e os movimentos sociais. Équando a singularidade de cada segmento in-terage e capta, ao mesmo tempo em que cons-trói, a totalidade do processo social, debaten-do posições, atuando conjuntamente e cons-truindo o novo.

Bosi - Um sindicato com aproximadamente73 mil sindicalizados voluntários deve ter suaexistência pautada nos interesses dos docentesem alguma medida. Somos necessariamenteum sindicato de uma categoria. Isso nos fazfortes. Por mais dificuldades que tenhamos en-frentado nesses mais de 15 anos sob a pressãoneoliberal no Brasil, o desempenho do ANDES-SN ajudou a impedir o desmonte das universi-dades públicas. Essa luta muitas vezes mobili-zou diversos movimentos sociais que se apro-ximaram do ANDES-SN e das universidadespara o intercâmbio de experiências, criando fó-runs - alguns permanentes, outros não - de de-bate, construindo intervenções conjuntas, de-senhando uma proposta de sociedade onde osdireitos universais projetavam perspectivas pa-

Entrevista

Muitas iniciativas dereconstrução da resistência, da solidariedade e da perspectiva da classe trabalhadora tem se materializado com o protagonismo do ANDES-SN.”

‘Antonio de Pádua Bosi

O ANDES-SN tem uma característica especial que é suacapacidade de elaboração coletiva,produto de embates de idéias e de posições políticas.Marina Barbosa Pinto

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 17

ra todos. O assédio do neoliberalismo do go-verno Lula sobre os movimentos sociais demaneira geral tem construído condições para oisolamento e destruição dessas experiências.Essa situação vem sendo percebida e discutidanos últimos CONADs e Congressos e muitasiniciativas de reconstrução da resistência, dasolidariedade e da perspectiva da classe traba-

lhadora tem se materializado com o protago-nismo do ANDES-SN. A intenção é buscaruma saída conjunta com a classe, o que é maisdifícil hoje porque além do assédio que muitosmovimentos sociais sofrem do governo Lulametade da classe trabalhadora não está referen-ciada em sindicatos ou movimentos sociais.Este é desafio mais atual do ANDES-SN.

Entrevista

Os desafios do movimento docenteMárcio - O nosso sindicato tem uma ca-

racterística única. É nacional e organizado pelabase a partir dos locais de trabalho. As seçõessindicais são autônomas na área respectiva desua competência, dirigidas por uma diretorialocal, e têm como instância máxima as assem-bléias gerais; no plano nacional há uma dire-ção, a instância intermediária que é o CO-NAD, e o Congresso que é o órgão máximo dedecisão. E faz eleições diretas. Não há a verti-calidade de federações e confederações comonos sindicatos tradicionais. Além disso, oANDES-SN abarca docentes de instituiçõespúblicas e particulares. O suporte do sindicatoé a autonomia em relação ao governo, patrona-to, partidos e credos. Seu compromisso é comos trabalhadores, nos quais se incluem os do-centes, com a universidade e com o povo que asustenta, de forma integrada com os trabalha-dores do mundo. Manter este sindicato funcio-nando é, pois, o principal desafio da direção. Efuncionando como sindicato combativo, queultrapassa o corporativo e o burocrático, quetem projeto de transformação da sociedade e,principalmente, faz a luta de classe.

Marina - Em primeiro lugar, o desafio éser direção por uma definição coletiva, ou se-ja, o sentido da direção é dado pelo e no fun-cionamento do sindicato que se organiza porlocal de trabalho, enraizado nas universidadespúblicas e particulares, cujas decisões são

pautadas nas definições de suas instâncias -assembléias gerais, CONADs e congressos. Ademocracia é explicitada pelo projeto estra-tégico a que o sindicato se vincula e é exercidapor todos aqueles que escolhem o métodoque preserva as instâncias deliberativas. O sin-dicato se agiganta e tem protagonismo no em-bate social brasileiro porque é classista, de-fende incondicional e intransigentemente osdireitos dos docentes e não se curva diante degovernos, patrões ou partidos. Mantêm suaindependência política.

O principal desafio é ser parte dessa entida-de e contribuir para que ela dê curso ao ideárioque sempre orientou sua trajetória de luta e, namedida em que isso ocorra, se fortaleça, nacontramão da prática da política de adesão ecolaboração assumida neste início de séculopor aqueles que não têm pejo de, abandonando

O sindicato se agiganta e tem protagonismo no embate socialbrasileiro porque é classista, defende incondicional e intransigentemente os direitos dos docentes e não se curva diantede governos, patrões ou partidos.”

Marina Barbosa Pinto

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE18 - DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006

compromissos histôricos com a classe dos tra-balhadores, serem coadjuvantes - por absolutafalta de credibilidade política e fundamentaçãoética - de um governo que vem investindo con-tra a organização autônoma e democrática doANDES-SN, preterindo-o em favor de enti-dade aventureira que reivindica, por caminhospolíticos levianos, o direito de representar osinteresses dos docentes.

Bosi - Acho que o maior desafio hoje, maisdo que nunca, é defender a existência autônoma,independente, classista e combativa do Sindi-cato Nacional. A mercantilização da educação,da saúde e de diversas dimensões importantesde nossa vida é um processo muito acelerado noBrasil e que estrategicamente só vingará sesabotar a capacidade de resistência e de luta dosmovimentos sociais. O governo Lula sabe dissoe não tem vacilado em atacar os instrumentos de

luta da classe trabalhadora. Quando o governoLula não consegue subordinar sindicatos e mo-vimentos sociais aos seus interesses e torná-losoperadores de sua política, como fez com aCUT, com a UNE e com diversos movimentosque foram transformados em ONGs subalter-nas, resta a destruição física dos oponentes. Épor isso que a camarilha de servos voluntáriosacomodados no Proifes tem como único obje-tivo a destruição do ANDES-SN. Por isso achoque é fundamental a defesa de uma identidadedocente firmada na valorização do trabalho e detodas as áreas do conhecimento sem submeter-nos aos critérios mercantis que tentam con-verter toda produção acadêmica em dinheiro.São essas condições que tornaram a naturezapública e gratuita da universidade dependenteda força e da capacidade de intervenção doANDES-SN. Não se trata mais de disputa deprojetos. É pura luta de classes.

Entrevista

Márcio - Acho que já falei demais. O que eudisse acima penso que já dá conta. Cada umtem a sua experiência. Alerto, porém, para a ne-cessidade de estarmos constantemente atuali-zando a leitura da conjuntura e verificando astransformações que estão ocorrendo. A univer-sidade está sofrendo mudanças. O professora-do hoje é diferente, como também as relaçõesacadêmicas e de trabalho. Do docente é cobra-da a produtividade e instaurou-se a competi-ção. Necessitamos refundar o diálogo com esseprofessor; necessitamos que sejam retomadosparadigmas e que este professor os assuma, quepermitam o confronto com este mundo dos ne-gócios. Penso que esse diálogo só terá sentidose envolver a sociedade. Vivemos um momentoda conjuntura, no Brasil e na América Latina,muito especial com a ascensão ao poder de líde-res de origem popular ou que militaram na es-querda. Ganham o poder com programas de

mudanças e, logo, quando assumem, passam aser políticos pragmáticos, que chamam de po-lítica de transição para dias melhores no futuro.Não é por acaso que são elogiados por órgãosinternacionais como FMI e Banco Mundial.Veja o caso Lula. Em três anos, ele fez mais pe-lo capital e pelas classes dominantes do que até

Militância do futuro

Alerto, porém,para a necessidade de estarmosconstantemente atualizando aleitura da conjuntura e verificandoas transformações que estãoocorrendo.”Márcio Antônio de Oliveira

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 19

FHC e Collor de Melo. Para se reeleger, Lulaestá menos preocupado com o seu partido, hojeesfacelado devido aos escândalos até agorapouco esclarecidos, e busca cada vez mais sejustificar como a única opção para o país e faráqualquer negócio para atingir seus objetivos.Há posições muito distintas em relação ao queestá ocorrendo no governo ocupado por esseex-trabalhador. De um lado, estão os que joga-ram a toalha (fazem uma encenação de que énecessária uma nova política econômica, semPalocci, sem Meirelles), mas, com Lula é que opaís vai avançar. Na verdade, cansaram da guer-ra, se é que estiveram em algum combate, e seadaptam, se ajustam, às suas conveniências e àsdo governo. Com eles estão muitos oportu-nistas se digladiando por espaços e a direitaconservadora. Há ainda uma grande massa demiseráveis que têm a atenção do governo quelhes dá bolsas educação, cestas básicas etc. Écerto que há uma oposição dos partidos tradi-cionais. Mas o país se vê diante de uma falsadisputa porque, afinal, as hostes do governoanterior e do atual brigam pelo mesmo projetoque é o da supremacia do capital. Diferente-mente, muitos não pensam assim. São críticos ecombativos, percebem o que está em jogo e re-conhecem a grande mistificação do lulismo.Sabem que há uma grande luta pela frente e queas dificuldades são muito grandes: um estadodesmontado, os ataques ao movimento sindi-cal, a depreciação do público e a sua submissãoao interesse privado. Sabem que só lhes resta aluta que será capaz de mudar o mundo, para ostrabalhadores. Têm projeto e querem discuti-lodemocraticamente e fazê-lo avançar. Este é ocaminho mais difícil. Também o caminho docomprometimento. Por quê? Porque é o cami-nho da independência, da autonomia que nospermite estar na história coletiva, construída,vivida, muitas vezes com grandes dificuldades,de forma sofrida. Mas, uma história de todos epara todos. Vale a pena!

Marina - A universidade está muito mu-dada; nosso trabalho tem sofrido profundastransformações; a contra-ofensiva ideológica ébrutal e tentam nos convencer de que o que tí-nhamos como verdade se foi... A exploraçãodeu corpo à barbárie cotidiana; o imperialismoavança; novos governos de esquerda assumempaíses da América Latina e prometem mudan-ças; as mudanças não vêm, o que temos é oavanço de tudo aquilo contra o que lutamos enos empenhamos em extinguir. Quadro trági-co. Mas as lutas e a resistência seguem, nãoprevalecem os que se adaptam à ordem. Isso éum fato. A rebeldia, a contestação, a ruptura segestam também nessa tragicidade.

O que tenho a dizer é que não nos confor-memos com o que aparentemente é natural,questionemos, encontremos, sempre, alterna-tiva. Reafirmemos que nosso lugar é o do tra-balho, o da organização coletiva, o da lutapelo fim da exploração, o da valorização donosso fazer acadêmico, o da construção cole-tiva, democrática e autônoma. O sindicato éo nosso lugar. Atuar nele, movidos por essessentimentos, nos torna dignos de olhar nosolhos de nossos filhos e nos de quem amamose com quem partilhamos a luta por um novoideal de vida.

Entrevista

Reafirmemos que nosso lugar

é o do trabalho, o da organização

coletiva, o da luta pelo fim da

exploração, o da valorização do

nosso fazer acadêmico,

o da construção coletiva,

democrática e autônoma.

O sindicato é o nosso lugar.” Marina Barbosa Pinto

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Bosi - Três coisas me parecem fundamentais.Lembrar-se sempre de que a condição ocupadana direção do ANDES-SN é de representaçãodocente. As orientações da ação sindical devemsempre ser as dos CONADs, dos Congressos,das reuniões de setores. Qualquer outrométodo de tomada de decisão ou de ori-entação política que subverta o modelode sindicato cuja representação emanado local de trabalho e de suas instânciasde base tira a força dos cerca de 73 milsindicalizados. Estes não existem para oANDES-SN, mas o ANDES-SN deveexistir para eles. Ao lado disso, é precisoconstruir e dar conseqüência à políticasindical com base numa relação de con-fiança com seus companheiros. Mais doque o dirigente é a direção que faz a di-ferença. Por fim, acho que uma visãominimamente nítida sobre os oponentesdo ANDES-SN ajuda muito no enca-minhamento da luta. Um sindicato quebusca permanentemente representar osinteresses de todos os docentes das ins-tituições de ensino superior exige deseus dirigentes uma visão política sem-pre atualizada dos conflitos e das condi-

ções existentes para a articulação de nossas rei-vindicações no setor das IFES, das IEES e dasIPES. Uma visão equivocada acerca do governoLula, por exemplo, ou do governo Alkimin, dogoverno Requião, ou ainda do patronato nasIPES, pode sacrificar anos de luta e de constru-ção de direitos dos docentes. Perder o enfrenta-mento devido a relação de forças é uma coisa aque todos estamos vulneráveis. Perder um en-frentamento por erro de análise política, por errona caracterização do governo e de seus aliados,ou ainda por sectarismo e incapacidade de diá-logo para reunir aliados de classe, define o desti-no de uma direção. Neste sentido, o ANDES-SN não é um campo para treinos. Por isso, pensoque hipotecarmos confiança em qualquer go-verno, mais cedo ou mais tarde, termina por des-moralizar o próprio movimento docente. Nossaautonomia, independência e sentimento clas-sista são nossa sobrevivência. Acho que devemser sempre.

Qualquer outro método detomada de decisão ou de orientaçãopolítica que subverta o modelo desindicato cuja representação emana do local de trabalho e de suas instâncias de base tira a força doscerca de 73 mil sindicalizados.”

Antonio de Pádua Bosi

‘Entrevista

20 - DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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Todos os problemas específicos sentidos ho-je pelos docentes universitários devem-seao fim da universidade de elite e à generali-

zação da universidade de massas. Aliás, écurioso ver professores de esquerda, ou mes-mo de extrema-esquerda, lamentarem esta evo-lução do ensino superior e tomarem como re-ferência ideal a época em que a universidade sededicava apenas a educar os futuros membrosdas classes dominantes, como se fosse uma de-gradação formar futuros membros da classetrabalhadora. Também os lacaios de antiga-mente disputavam a sua superioridade relativaconsoante a posição social ocupada pelo patrãoa quem serviam. Na situação actual os docen-tes universitários incluem-se com os dos ou-tros graus de ensino na mesma categoria pro-fissional, e a única distinção que se pode esta-belecer entre eles diz respeito ao nível de qua-lificações que estão encarregados de ministraraos alunos, futuros trabalhadores. Num paíscomo o Brasil – e aliás na esmagadora maioria

dos países – é muito duvidoso que existam ain-da estabelecimentos de ensino superior dedica-dos exclusivamente à formação das classes do-minantes. As elites enviam os seus filhos e assuas filhas para escolas secundárias na Suíça ecolocam-nos depois em meia dúzia de faculda-des de administração localizadas nos EstadosUnidos ou em França. Tudo o restante, e quais-quer que sejam as ilusões de professores e dealunos, se destina a formar força de trabalhoqualificada, ou pretensamente qualificada.

Desde há muitos anos tenho vindo a apre-sentar, em livros e artigos1, um modelo de aná-lise em que os professores são considerados,em termos marxistas, como trabalhadores pro-dutivos, com a particularidade de ser humanoo produto que lhes sai das mãos. O professor,nesta perspectiva, é um trabalhador produtorde trabalhadores. Esta maneira de considerar oproblema tem consequências de vulto para o es-tudo dos mecanismos da exploração, permitin-do conceber a extorsão de mais-valia num qua-

Um duplo desafioJoão Bernardo

Professor, escritor português, autor de Labirintos do Fascismo e Democracia Totalitária

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dro muito amplo, à dimensão de toda a socie-dade e de toda a vida humana. Foi aproveitan-do as potencialidades deste modelo que pude,mais recentemente, conceber também a inte-gração dos ócios nos ciclos de reprodução docapital e compreender a função desempenha-da pelos instrumentos electrónicos de fiscali-zação dos lazeres na manutenção da ordemestabelecida. Mas são outras as implicaçõesdeste modelo para as quais pretendo chamaraqui a atenção.

Enquanto trabalhadores explorados da suamais-valia, os docentes das universidades demassas adoptaram modalidades de organizaçãoe de luta comuns aos restantestrabalhadores, e inevitavelmentese sindicalizaram e começaram afazer greves. Todavia, tanto naforma de mobilização escolhidacomo nas paralisações do traba-lho a que procedem, os professo-res parece que não se têm dadoconta da especificidade que osdistingue dos outros trabalhado-res. Eles não são operários, fabri-cantes de bens materiais, nem sãoprestadores de um tipo de servi-ços que tenha uma mera funçãoacessória para o consumidor. Elessão produtores de força de traba-lho, não produtores de pessoas,mas produtores das qualificaçõesque essas pessoas vão ter quandono futuro forem trabalhadores também.

Ora, até agora os sindicatos de docentes nãoaproveitaram as enormes capacidades de acçãoanticapitalista proporcionadas pela posição deformadores de futuros trabalhadores. Conso-ante o modo como os professores orientarem ainstrução que dão aos alunos, assim contribui-rão para produzir ou um espírito de obediên-cia ou uma capacidade de resistência. Não merefiro aqui predominantemente ao conteúdodo que se ensina, que para esta questão é se-cundário. Refiro-me sobretudo à forma comose ensina, ao relacionamento vigente entre os

professores e os alunos, ao tipo de organizaçãoadoptado. Se as associações sindicais dos pro-fessores e as lutas encabeçadas pelos professo-res pretendessem efectivamente pôr em causa ocapitalismo, não deveriam desperdiçar aquelasituação estratégica.

Na verdade, porém, não se trata de uma in-compreensão por parte dos professores e dosseus organismos sindicais. Em todas as empre-sas o capital hierarquiza os trabalhadores. Anoção de classe trabalhadora é, por si mesma,um instrumento teórico de ruptura com o ca-pital, porque uma das principais preocupaçõesda administração de uma empresa é introduzir

diferenças de níveis, de compe-tências, de funções e de remune-rações que ponham uns traba-lhadores acima dos outros e osdividam a todos, impedindo queexistam como classe. Nenhumaluta anticapitalista pode prosse-guir sem romper essas hierarqui-as. O mesmo sucede nos estabele-cimentos de ensino, onde prolife-ram variadas chefias que tantasvezes não chefiam coisa nenhu-ma, e os professores sabem quesem transformar estas relações hi-erárquicas em relações solidáriasnão conseguem resistir à adminis-tração pública ou aos donos dasescolas privadas. No entanto, asinstituições escolares não são fá-

bricas nem escritórios, e em que situação ficamas outras pessoas dessas instituições – os alu-nos – durante as lutas dos professores?

Até agora, de uma maneira deliberada,consciente e sistemática, aqueles mesmos pro-fessores que pretendem reforçar a solidarieda-de e derrubar as hierarquias capitalistas no âm-bito da sua profissão têm-se esforçado porconservar os alunos numa estrita situação dedisciplina e de obediência. É claro que tudo nasescolas, como aliás em quaisquer empresas,pressiona neste sentido, mesmo a arquitecturae a disposição das salas de aula, que coloca o

Até agora, de umamaneira deliberada,

consciente e sistemática,aqueles mesmos profes-

sores que pretendemreforçar a solidariedade

e derrubar as hierar-quias capitalistas no

âmbito da sua profissãotêm-se esforçado porconservar os alunos

numa estrita situação de disciplina e de obediência.

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professor no lugar de destaque, para onde con-vergem os olhares. O problema é que até du-rante as lutas, quando eles próprios estão a vio-lar a disciplina da instituição escolar, os pro-fessores não prescindem das exigências disci-plinares relativamente aos alunos. E assim, namedida em que restringem as suas greves a rei-vindicações salariais e de carácter corporativo,os docentes têm mantido indisputada a suaposição hierárquica numa das áreas mais im-portantes da sociedade capitalista. Eles sen-tem-se entalados entre, por um lado, o Estadoou os donos das escolas e, por ou-tro, os estudantes. E para muitosprofessores os estudantes sãouma ameaça bem pior do que oEstado ou os patrões privados, jáque estes, se lhes pagam mal, aomenos os reforçam na autorida-de, ao passo que vêem nos alunosum perigo permanente para a hie-rarquia e para a disciplina. Qual-quer manifestação de protestopor parte de alunos que inclua ac-tos de indisciplina ou vexamesfeitos a autoridades académicassão vistos com indignação pelaesmagadora maioria dos profes-sores, se bem que tais actos nãoatinjam os professores enquantopessoas; e mesmo as autoridadesacadémicas, quando são visadas,são-no somente em virtude dasfunções que exercem, não en-quanto membros comuns do cor-po docente. Ao mesmo tempoque manifestam a sua hostilidadeàs formas de contestação especificamente es-tudantis ou, no melhor dos casos, que ficamindiferentes perante elas, os professores esque-cem-se de que com uma simples greve atingemos interesses materiais da totalidade dos estu-dantes. Apesar disso acusam os estudantes deatraso político quando estes reclamam da sus-pensão das aulas.

Se os professores quisessem contestar seria-

mente os mecanismos do capital aproveitar-se-iam do lugar estratégico que ocupam, e nassuas greves, em vez de se limitarem a não daraulas, dariam aulas ao contrário, alterando nãosó o conteúdo do ensino mas sobretudo inver-tendo as hierarquias, abolindo a disciplina, re-almente sabotando um dos aspectos básicosdas relações sociais capitalistas. Alcançaríamosdeste modo uma solidariedade entre os pro-dutores de trabalhadores e os trabalhadoresproduzidos.

Na perspectiva em que abordo aqui aquestão, o fracasso das lutas dosdocentes é completo. Um exem-plo flagrante é dado pela insur-reição juvenil que se generalizounos subúrbios das cidades fran-cesas. Tendo em conta as suas ca-racterísticas sociais e os seus lu-gares de residência, pode afirmar-se que entre esses jovens se con-tam maciçamente aqueles vintepor cento de analfabetos funcio-nais registrados nas estatísticasescolares dos países mais desen-volvidos. Já nos textos atrás men-cionados, em que apresentei omodelo do ensino enquanto pro-dução de mais-valia, eu pretendimostrar que, em países com umaescolarização obrigatória supe-rior a dez anos, o analfabetismofuncional de modo algum se devea qualquer insucesso escolar mas,pelo contrário, explica-se peloêxito alcançado por muitos alu-nos na resistência ao aprendiza-

do. Adestrados para serem futuros trabalha-dores numa sociedade que, tendo em conta assuas habilitações e a sua origem social, não lhesproporcionará mais do que empregos pre-cários, aqueles jovens recusam-se liminarmen-te a desempenhar o papel que lhes é atribuídona encenação. Os acontecimentos em Françaconfirmam este ponto de vista. Confirmamtambém, e muito lamentavelmente, a incapaci-

Sindicalismo em Debate

Se os professoresquisessem contestar

seriamente os mecanismos do capitalaproveitar-se-iam dolugar estratégico queocupam, e nas suas

greves, em vez de selimitarem a não dar

aulas, dariam aulas aocontrário, alterando nãosó o conteúdo do ensino

mas sobretudo inver-tendo as hierarquias,abolindo a disciplina,

realmente sabotando umdos aspectos básicos das

relações sociais capitalistas.

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dade de os professores juntarem os seus pro-testos aos dos alunos rebeldes. Não muito tem-po antes da insurreição dos subúrbios os pro-fessores franceses haviam-se manifestado, umavez mais, contra a reforma neoliberal do sistemaescolar, mas pelos vistos só desejam fazê-lo des-de que os alunos respeitem a disciplina.

Enquanto o sindicalismo docente se manti-ver dentro destes limites, não conseguirá ul-trapassar os meros interesses corporativos.Mas esta é só uma metade da questão, aquelaque diz respeito ao carácter específico dos pro-fessores enquanto trabalhadores e, portanto,ao carácter específico que se deveria exigir dossindicatos de professores. Falta a outra metadeda questão, que diz respeito a todo o tipo desindicalismo na situação actual.

Na sua estrutura interna e na maneira comofuncionam, os grandes sindicatos hierarquiza-dos de massas explicam-se pela situação do fi-nal do século XIX e do começo do século XX,quando a esmagadora maioria dos operáriosdas cidades tinha emigrado recentemente doscampos e não sabia desenvencilhar-se na socie-dade urbana e industrial. Este tipo de sindica-lismo correspondeu, do lado dos trabalhado-res, aos sistemas produtivos que, do lado dospatrões, foram instaurados com o taylorismo eo fordismo. À medida, porém, que se foi esgo-tando o fluxo migratório dos campos para ascidades e que o proletariado urbano aprendeua conhecer e a dominar o meio em que vivia eem que laborava, o sindicalismo clássico e otaylorismo clássico foram postos em causa.Nas décadas de 1960 e de 1970, deum e outro lado das fronteiras daguerra fria, tanto entre os paísesmais desenvolvidos da área de in-fluência norte-americana comona esfera soviética e na China, ostrabalhadores desencadearam umnovo tipo de movimento, carac-terizado principalmente por doisaspectos. Em primeiro lugar, ostrabalhadores mostraram-se ca-pazes de iniciar e conduzir as suas

lutas fora das estruturas sindicais. Em segundolugar, eles mostraram-se capazes não só deocupar mas ainda de fazer funcionar fábricas e

estabelecimentos comerciais, oque em certos países e em certasépocas os levou a responsabiliza-rem-se por porções muito con-sideráveis da economia. Conju-gando ambas estas características,o que sucedeu foi que os traba-lhadores, se conseguiram pres-cindir das direcções sindicais egerir as suas próprias lutas, con-seguiram também gerir as em-presas e dispensar as adminis-

A medida que o proletariado urbano

aprendeu a conhecer e adominar o meio em quevivia e em que laborava,o sindicalismo clássico e

o taylorismo clássicoforam postos em causa.

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trações patronais. Ora, a capaci-dade de gestão demonstrada pelostrabalhadores durante aquelesmovimentos surpreendeu não sóas chefias sindicais, que julgavamos filiados capazes de obedecer apalavras de ordem mas não deconceber tácticas e muito menosestratégias, como deixou igual-mente espantados os administra-dores fordistas, que tinham comoaxioma que o trabalhador mexe asmãos mas não pensa. O sindica-lismo autoritário e o taylorismo clássico foramambos postos de parte pelos trabalhadores.

O neoliberalismo e o toyotismo limitaram-se a reconhecer a nova situação e a aproveitá-laem benefício do capital. Vendo que os sindica-tos já não mobilizavam os operários mais com-bativos e que, por conseguinte, haviam perdi-do o fundamento da sua legitimidade, os go-vernos neoliberais dispensaram as burocraciassindicais. E os administradores das empresas,vendo que os trabalhadores, além de usarem osmúsculos, usavam também o cérebro, e o fazi-am com muita eficácia, passaram a explorar nãosó a componente física mas ainda a componen-te intelectual do trabalho. A capacidade de ini-ciativa dos trabalhadores foi convertida pelotoyotismo em elemento da mais-valia, e paraisso o autoritarismo dos dirigentes sindicais eranão só inútil, mas nocivo. Nesta situação, qualo lugar que resta às burocracias sindicais?

No sistema toyotista de organização do tra-balho os capitalistas podem enquadrar os assa-lariados no âmbito das empresas, sem precisa-rem de recorrer aos sindicatos. Por outro lado,a fragmentação dos regimes de trabalho susci-tada pela difusão da terceirização, do sistemade trabalho temporário, dos contratos a prazoe, em geral, a precarização do estatuto profis-sional tornaram obsoleto o sistema sindical degestão do mercado de trabalho. Neste quadro,em que se abre muito pouco espaço aos sindi-catos enquanto representantes burocráticosdos trabalhadores, desenvolveu-se outra ver-

tente menos conhecida do sindi-calismo, que eu analisei num pe-queno livro publicado há quasevinte anos2. Desde a sua origemque os sindicatos gastaram umaparte considerável dos fundosnão no apoio a greves ou outrasformas de resistência anticapi-talista mas em investimentos deinteresse económico. Foi assimque, ainda no século XIX, as bu-rocracias social-democratas daAlemanha e da Bélgica se alçaram

aos lugares de gestão de grandes cooperativasde consumo. Este tipo de investimento conti-nuou ao longo do século XX, e em alguns ca-sos extremos, como em Israel, por exemplo, ossindicatos passaram a deter uma porção mui-tíssimo considerável da economia nacional.Enquanto administradores de empresas ge-ridas como quaisquer outras, a situação destesgestores de origem sindical em nada difere dados administradores comuns de um estabele-cimento capitalista comum. Eles integram aclasse dos gestores, e o controlo que detêm so-bre as relações de produção e sobre os ritmosdo trabalho assegura-lhes a capacidade de seapropriarem, como qualquer patrão, de umaporção da mais-valia. Os gestores sindicais sãoexploradores capitalistas.

Nos últimos anos, porém, os sindicatos têmtido oportunidade de proceder a novas moda-lidades de investimento. Nos Estados Unidoscomeçou a suceder com certa frequência queos dirigentes sindicais negociem com os donosou as administrações das empresas uma redu-ção da taxa de crescimento dos salários ou umaredução de outros benefícios, obtendo em tro-ca um pacote de acções da empresa correspon-dente ao montante dessa redução. Nominal-mente, as acções são concedidas aos trabalha-dores, mas como eles não recebem a possibili-dade de as movimentar e como a sua gestão éentregue aos dirigentes sindicais, são estes diri-gentes quem, para todos os efeitos, se apoderadas acções. Ou seja, aquilo que os trabalhado-

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Desde a sua origem queos sindicatos gastaramuma parte consideráveldos fundos não no apoio

a greves ou outrasformas de resistência

anticapitalista mas eminvestimentos de

interesse económico.

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res deixaram de ganhar converte-se em capitalpara os dirigentes sindicais. Não é este mesmoo mecanismo da mais-valia? Outra modalidadede investimentos sindicais, bastante semelhan-te quanto às suas consequências, obteve umaenorme difusão na Rússia graças às privatiza-ções. Quando as empresas estatais foram pos-tas à venda, a lei concedeu o direito de opçãoaos assalariados, o que levou à generalização decoligações formadas pelos administradoresdessas empresas e pelos trabalhadores – estesrepresentados, como não podia deixar de ser,pelos dirigentes sindicais – que adquiriram amaioria das acções das empresas. Em resulta-do, o mesmo conjunto de administradores deempresa e de gestores sindicaisque já na época soviética dirigia inloco cada estabelecimento econó-mico continua agora a dirigi-los,mas através da detenção de ac-ções. Para isto é necessário que ostrabalhadores sejam impedidosde exercer influência sobre as as-sembléias de accionistas, o que seconsegue facilmente porque ostrabalhadores possuem as acçõesdispersas, e só os dirigentes sin-dicais, graças ao seu direito de re-presentação colectivo, podem fa-lar em nome da maioria dos ac-cionistas. Nunca entenderemosos mecanismos económicos mo-dernos se ignorarmos que, alémda detenção do capital através da propriedadeprivada, existe a sua detenção através do con-trolo, e que é esta que fundamenta a existênciados gestores enquanto classe dominante e ex-ploradora. Outra modalidade, estreitamenterelacionada com aquelas duas, consiste no con-trolo obtido pelos dirigentes sindicais, ou poradministradores por eles nomeados, sobre osfundos de pensões. Deste modo as burocraciassindicais, directa ou indirectamente, tornaram-se capazes de mobilizar volumes financeiroscolossais, que se contam entre os maiores emnumerosos países. Isto explica que os sindica-

tos possam ter interesses próprios de estabili-dade monetária e de contenção da inflação,muitas vezes em franco antagonismo com osdesejos dos trabalhadores comuns. Em suma,se hoje os sindicatos perderam em grande parteas suas funções de representantes burocráticosdos trabalhadores e de regulamentadores domercado de trabalho, conseguiram por outrolado um êxito crescente enquanto investidores.É este processo que eu denomino capitalismodos sindicatos.

O caso brasileiro insere-se no movimentogeral que acabei de esboçar. As greves do ABC,que liquidaram o regime militar, não se opu-seram só às direcções sindicais pelegas, mas

contestaram também o aparelhosindical existente. Contra os sin-dicatos hierarquizados de massasherdados do getulismo, as opo-sições operárias defenderam umnovo tipo de organização, ligadaàs bases e capaz de aproveitar aespontaneidade das lutas. Dede ocomeço do Novo Sindicalismofoi muito claro o confronto entrea tendência autoritária e vertica-lizante e a tendência que preten-dia privilegiar os organismos debase. Acabou por triunfar, sobum nome diferente, aquilo queera afinal uma variante do sindi-calismo tradicional, e a partir des-se momento o destino ficou di-

tado. A inevitável burocratização da CUT ge-rou tudo o resto, e aqueles que agora lançammãos aos cabelos, apavorados com o que está asuceder, teriam feito bem melhor se se tivessemarrepelado há vinte anos, quando tinham cabe-leiras mais fartas e menos brancas.

Definitivamente burocratizada e separadadas bases, a CUT encontrou nas verbas do Fun-do de Amparo ao Trabalhador o estímulo propí-cio à sua evolução capitalista. Estas verbas per-mitiram que os sindicatos se encarregassem daformação profissional e da adequação dos tra-balhadores à terceirização ou à sobrevivência no

Sindicalismo em Debate

Se hoje os sindicatosperderam em grande

parte as suas funções derepresentantes burocráti-cos dos trabalhadores ede regulamentadores do

mercado de trabalho,conseguiram por outrolado um êxito crescenteenquanto investidores. É este processo que eudenomino capitalismo

dos sindicatos.

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Sindicalismo em Debate

desemprego, tarefas que deviam ter cabido aospatrões, mas a sua verdadeira importância si-tuou-se a um nível mais profundo. Do mesmomodo que os fundos de pensões, os financia-mentos do FAT envolveram a CUT em inte-resses directa e estritamente económicos e fi-zeram com que ela acompanhasse a tendênciageneralizada de expansão do capitalismo sindi-cal. A história produz os seus próprios símbo-

los, e neste caso Delúbio Soares representa, peloseu percurso, o desenvolvimento capitalista dossindicatos da CUT, e depois a sua ligação, atra-vés do PT e do governo, ao capitalismo gene-ricamente considerado. O capitalismo dos sindi-catos é uma componente imprescindível dosactuais escândalos governamentais.

Não vejo que sirva para alguma coisa umorganismo sindical desligar-se da CUT se con-tinuar futuramente práticas do mesmo tipo,embora encobertas por outra linguagem. Oque se afigura urgente, na minha opinião, é aruptura com modalidades de organização ecom formas de reivindicação que até hoje têmvindo a ser cegamente aceitas. No caso dos do-centes esta ruptura deve ser dupla, por umlado, repensando a mobilização no interior daescola, de maneira a que as lutas dos profes-sores se liguem à rebeldia dos estudantes, emvez de a ostracizar. Por outro lado, rompendocom um tipo genérico de sindicalismo que,através da sua burocratização e dos seus in-teresses económicos, se converteu numa peçaindispensável dos próprios mecanismos docapital.

Não se trata de um desafio, mas de dois, oque não é fácil.

NOTAS

1 Ver sobretudo «O Proletariado como Produtor ecomo Produto», Revista de Economia Política [SãoPaulo], 1985, vol. 5 nº 3 e «A Produção de Si Mes-mo», Educação em Revista [Faculdade de Educa-ção, Universidade Federal de Minas Gerais, BeloHorizonte], 1989, ano IV nº 9. Ver ainda o capítulodedicado a esta questão em Economia dos ConflitosSociais. São Paulo: Cortez, 1991.2 Capital, Sindicatos, Gestores. São Paulo: Vértice,1987.

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Introdução

AUNEB é uma Universidade caracterizadacomo multicampi, que se espalha pelo ter-ritório baiano de leste a oeste e de norte a

sul, com um total de 24 campi e 29 departa-mentos. Como Universidade, ela foi criada em1983, por decreto estadual, a partir da aglutina-ção de algumas faculdades isoladas e unidadesde ensino. A sua expansão se deu com a criaçãode Núcleos em alguns municípios baianos quedepois passaram a ser unidades ou departa-mentos. A partir de 1997, quando o governodo Estado baixou a Lei no 7176/971 que re-estruturou as universidades estaduais baianas,a UNEB continuou a se expandir, ao contráriodas demais que se mantiveram ou com um úni-co campus (Universidade Estadual de SantaCruz - UESC, entre Ilhéus e Itabuna e Univer-sidade Estadual de Feira de Santana - UEFS)ou com 3 campi (Universidade Estadual do Su-doeste Baiano - UESB, em Vitória da Con-quista, Itapetinga e Jequié).

As graduações se concentram em grandeparte na área pedagógica, sendo majoritários oscursos de Letras, Pedagogia e História. Essaatuação se coaduna com o projeto de criação

da própria Instituição, pensada como instru-mento de democratização do ensino superiorna formação de professores qualificados nasdiferentes regiões do Estado. Hoje, a UNEBexpande seus cursos superiores para áreas maistécnicas, com cursos de Enfermagem, Fonoau-diologia e Direito, mais valorizados socialmentedo ponto de vista do mercado de trabalho.

A partir de 2000, a UNEB passa a atuartambém na capacitação de docentes das redesmunicipais de ensino por todo o Estado atra-vés de um programa chamado Rede UNEB,caracterizado por parcerias entre a Instituiçãoe as prefeituras municipais, que pagam um cur-so superior de dois anos para qualificar os pro-fessores atuantes em suas escolas. Esse pro-grama tem sofrido uma grande expansão e hojejá engloba também a capacitação de docentesda rede estadual (PROESP) e a formação deprofessores para atuar no meio rural (PRO-NERA), dentre outros.

A UNEB oferece apenas dois mestradoscredenciados pela CAPES e obteve, recente-mente, autorização para implantar mais doiscursos. Em contrapartida, os cursos lato sensuauto-sustentáveis se multiplicam em progres-

Autonomia e democracia diante da concepção de universidade empreendedora

Carmen Sílvia da Silva Sá*Sandra Simone Morais Pacheco**

*Professora assistente da Universidade do Estado da Bahia **Professora assistente da Universidade do Estado da Bahia

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são geométrica, denotando uma prioridade dassucessivas gestões na privatização interna, as-sim como na alocação da mão-de-obra de do-centes e funcionários locais nesses empreendi-mentos que mitigam, em parte, os baixos salá-rios recebidos por essas categorias.

No campus de Salvador está localizada aAdministração Central da Universidade e qua-tro departamentos. É relevante o fato de quemuitos dos campi do interior chegam a distarde 500 a 900 km da capital. Esse modelo des-centralizado, de característica multicampi, temjustificado uma das práticas mais lesivas àdemocratização da Universidade:segundo a administração central,o dispêndio na convocação dosseus Conselhos - o de Ensino, Pes-quisa e Extensão e o Superior -,justifica a baixa freqüência nasreuniões ordinárias. As conse-qüências disso podem ser senti-das ao se acompanhar as publica-ções do Diário Oficial do Estadoonde o número de atos ad refe-rendum da reitoria, tratando deassuntos cruciais da Universidade, extrapola oslimites do bom senso e da gestão efetivamenteparticipativa.

Nesse sentido é interessante sublinhar que acriação dos campi da UNEB ao longo dos anostem se dado por esse expediente, referendadopelo Conselho Superior, às vezes muito depoisda efetivação do campus cujos cursos são im-plantados quase sempre a partir de demandasmunicipais, atendendo a pedidos de políticossituacionistas das diversas regiões baianas.

A despeito de sua expansão e da criação denovos cursos, bem como do aumento do nú-mero de ingressantes por turmas no processoseletivo vestibular, a UNEB não obteve ne-nhum incremento do percentual orçamentáriodestinado às universidades estaduais baianas, oque denota a falta de compromisso dos gesto-res internos e externos, no que tange à qualida-de dos cursos criados. Dessa forma, a UNEBtem recebido do total do orçamento anual,

repassado pela fonte do tesouro estadual, cercade 38% do total, enquanto a UEFS (um só cam-pi) recebe cerca de 28%, a UESC (um só campi)cerca de 16% e a UESB (três campi), 18%.

Como resultado dessa política expansio-nista, a UNEB tem encerrado os últimos anoscom alto déficit orçamentário, que tem interfe-rido negativamente no seu funcionamento.Têm sido bastante comum, a cada ano, cortesde luz, água e telefone em diversos campi2. Sãotambém comuns paralisações de estudantesreivindicando espaço físico próprio - várioscampi funcionam em escolas municipais ou

estaduais emprestadas - bibliote-cas e acervo bibliográfico, labora-tórios, restaurantes e residênciasuniversitárias, bem como contra-tação de professores efetivos emais qualificados.

O movimento docente quepassou por um processo de evasãono final da década de 90, se rees-truturou a partir de 2000 atravésda deflagração de uma série demovimentos grevistas que visa-

ram aglutinar esforços na categoria docentepara garantir a resistência ao sucateamento e àconseqüente privatização da UNEB enquantobem social e coletivo da sociedade baiana. Ashistóricas greves realizadas tiveram como moteprincipal a luta pela garantia da gratuidade naUNEB, assim como, esses movimentos en-camparam também reivindicações salariais emelhorias nas condições de trabalho docente.

Muitos avanços foram conseguidos pelomovimento docente no que tange à visibilidadee discussão dos problemas da UNEB, entre-tanto, essa é uma árdua luta: se por um ladoaglutinou e propiciou a emergência de um pla-no de carreira condizente com os anseios dacategoria, por outro causou o isolamento in-terno no enfretamento da gestão governistaque vem administrando a Instituição, já que ossegmentos discente e técnico-administrativoconstituídos têm colocado suas entidades aserviço dos interesses da reitoria em variadas

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Os cursos na UNEB são implantados quase

sempre a partir dedemandas municipais,

atendendo a pedidos depolíticos situacionistasdas diversas regiões

baianas.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 33

demandas por ela colocadas.Para isso tem contribuído a forma persona-

lista dos oito anos de gestão da Profa. IveteSacramento (1998-2005), que a despeito doconservadorismo que imprimiu à sua gestão,angariou simpatias dentro de setores progres-sistas da comunidade pela sua condição de mu-lher, afro-descendente e remotamente partici-pante de grupos ligados ao movimento negro.

Nessa conjuntura e particularmente nessemomento em que o país passa por uma sériacrise política que coloca em xeque as ideolo-gias e as práticas da chamada esquerda bra-sileira, a articulação que gerou aindicação de duas professorasmilitantes ativas do movimentodocente, sem conchavo e semcomposição com grupos de dife-rentes matizes ideológicos, sereveste de importância e sig-nificado. Apesar do modelo pri-vatista de Universidade ter avan-çado sobre a prática docente econquistado os que querem re-solver seus problemas profissio-nais e financeiros via prática in-dividual, foi possível denunciar eincrementar a discussão políticainerente à prática universitária. A constataçãodesse fato não afasta, entretanto, a necessidadede uma reflexão mais ampla sobre o papel de-sempenhado pelo movimento na validação deeleições cujas características são notadamenteantidemocráticas, com o uso ostensivo da má-quina administrativa na perpetuação dos ges-tores e de diferenciados instrumentos de po-der, que vão de distribuição de cargos de con-fiança entre familiares de funcionários - con-formando uma rede de apoio técnico eminen-temente familiar - a concessões clientelistas aparcelas influentes da comunidade.

As gestões que se sucedem desde a im-plantação da UNEB têm um padrão específicode prática, que se vincula a um projeto políticomarcadamente subserviente ao governo do Es-tado e que não tem levado ao crescimento aca-

dêmico/qualitativo da Instituição. O que sequer refletir, a partir desse ponto, é como se ar-ticula, a cada processo eleitoral, a rede quemantém esse grupo no poder sem rompimen-tos políticos que venham a dar uma nova dinâ-mica à vida institucional, já que esse padrãovem se repetindo no curso das eleições realiza-das em 1989, 1993, 1997, 2001 e 2005.

A análise do último processo pode auxiliarna compreensão de onde nos situamos dentrodessa estrutura e porque não temos conse-guido guindar ao poder o grupo político quesustenta o MD, enquanto principal baluarte da

Universidade Pública, gratuita ede qualidade.

A emergência do processoextencionista/privatistafundado na concepção deUniversidade empreendedora

O modelo de Universidade queguia a prática acadêmica da UNEBé fortemente marcado pelas ativi-dades de ensino. A partir da ob-servação de indicadores, como osresultados de captação de recursosatravés das agências de fomentooficiais (CNPq, FAPESB etc.),

percebe-se que a pesquisa é ainda uma realidadea ser perseguida. Isso após 22 anos de funcio-namento como Instituição de ensino superior.

A extensão é um pilar institucional que teveum forte incremento nas duas últimas gestões.Não por simples coincidência, a pró-reitoriade extensão - PROEX - foi gerenciada duranteesse tempo pelo reitor eleito no pleito que oraprocuramos analisar. As características dessagestão fortaleceram um tipo de projeto exten-cionista de cunho populista, com uma ênfasemarcante na quantidade de ações em detri-mento da qualidade das intervenções, sem li-mites às áreas de atuação dos cursos da UNEBe muitas vezes sem envolvimento dos diversosDepartamentos da Instituição na execução dosprojetos. Somando-se isso ao estímulo a cursosde extensão pagos, gerenciados por fundações

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As gestões que se sucedem desde a

implantação da UNEBtêm um padrão

específico de prática,que se vincula a um

projeto político marcadamente subserviente ao

governo do Estado.

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privadas (oficialmente três dessasInstituições atuam dentro daUNEB) e compreende-se que oque emerge dessa realidade é umaatuação quase independente dessainstância, configurando uma prá-tica universitária paralela, onde seimplanta uma autonomia sem res-ponsabilidade institucional com asatividades fins da Universidade.

Em nome da popularização da UNEB, oque se viu foi sua transformação em um balcãode negócios de qualidade bastante duvidosa.As parcerias interinstitucionais, realizadas comórgãos públicos ou privados, fecha a equaçãode uma prática educacional bastante conveni-ente para a situação de escorcha financeira emque vivem as IES públicas: de um lado viabili-zam-se projetos de extensão “parados” a espe-ra de recursos com a captação de recursos ex-ternos para a realização dos mesmos, por ou-tro, permite aos professores e funcionários daInstituição o reforço de seus parcos saláriosatravés desse expediente, que parece ser bas-tante interessante quando se olha do ponto devista individual (até professores de dedicaçãoexclusiva referendam assim seu trabalho extra,na mesma Instituição) mas na verdade, é umminadouro da responsabilização do Estadocom a Universidade Pública.

Mediando a relação entre todos os atoresenvolvidos na miríade de possibilidades dessacaptação de recursos, duas coisas invariáveis: anecessidade de chancelar as práticas através damarca “Universidade” e a presença das funda-ções com todas as suas imprecisões e falta detransparência.

Temos assim uma parte da UNEB que fun-ciona mal, não tem recursos, é “pobre”, e outraque contrasta com essa realidade, onde o di-nheiro é tanto, que se dispensa a prestação decontas de docentes, discentes e de servidorestécnico-administrativos que atuam em proje-tos, que viajam para eventos, que promovemencontros e seminários, dentre outras ativida-des acadêmicas. Esta UNEB está alocada, prin-

cipalmente, na Pró-Reitoria deExtensão - PROEX - que mesmonão sendo gestora, consegueatender a todas as demandas dacomunidade acadêmica que nãosão possíveis de se realizar porfalta de verbas institucionais. O“milagre” é patrocinado pelaPró-Reitoria que administra con-vênios e projetos, cujos recursos

ingressam na Universidade através de “Funda-ções de Apoio”. Essas fundações são tambémresponsáveis pela administração de recursosque ingressam na Universidade por meio decursos de extensão e de cursos de pós-gradu-ação lato sensu “autofinanciáveis”. Esses cur-sos chegam a cobrar mensalidades exorbitantese na sua maioria não são projetos oriundos dosdepartamentos, muitos têm qualidade questio-nável e não trazem benefício algum para a Uni-versidade enquanto Instituição. É interessanteregistrar que as fundações estão sob o coman-do de alguns docentes que pertencem ao qua-dro da Universidade e, inclusive, ocupam car-gos importantes na administração.

É a partir desse referencial de empreen-dedorismo que ocorreu a eleição para a Pró-Reitoria em 2005, com a anuência de boa partedos professores do quadro docente, de grandeparcela dos funcionários e de um movimentoestudantil oficial amarrado nos favores e naviabilização de projetos institucionais, cu-nhados erroneamente como favores pontuaisde um gestor público.

Casuísmos na construção do processo de consulta

Em 2005, estranhamente, o processo deconsulta foi atrasado ao máximo e se inicioucom a criação de uma comissão para estabele-cer as normas eleitorais Ad Referendum doCONSU3. A comissão foi composta por ummembro de cada segmento da comunidade: umdiretor de departamento, um técnico-adminis-trativo e um discente, todos membros doCONSU. Esta composição seria absolutamen-

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Em nome da popularização da UNEB,

o que se viu foi sua transformação em um

balcão de negócios de qualidade

bastante duvidosa.

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te normal desde que os conselheiros represen-tassem suas bases a partir de discussões inter-nas, o que não tem sido prática na nossa Uni-versidade. Após a famigerada Lei no 7176/97,os docentes não têm representação no CONSUuma vez que se interpreta, de forma casuística,que diretores de departamento são professorese, portanto, não há necessidade de represen-tação indicada pela ADUNEB. Dentro dacomposição do Conselho só asentidades alinhadas politicamentecom a reitoria têm representação.

Embora a tipologia do votoestivesse amarrada na Lei no

7176/97 (percentual igual ao pro-posto na LDB: 70 – 15 – 15), des-ta vez, também estranhamente,foi feita a solicitação à comunida-de para que, em um curto espaçode tempo, se pronunciasse sobreo tipo de voto e encaminhassesuas propostas ao CONSU. AADUNEB realizou assembléiadocente com este item em pauta efoi deliberado indicar o voto universal. Foi oúnico segmento que convocou sua base paradecidir e encaminhou o resultado para oCONSU.

As normas eleitorais elaboradas pela comis-são4 foram aprovadas. Quanto à tipologia dovoto, o CONSU decidiu desconsiderar a legis-lação, mas também não acatou a proposta devoto universal, aprovando o voto paritário(peso 33,33% para cada um dos segmentos).Além de mudança na paridade dos votos, ga-rantiu-se o direito a voto a funcionários nãopertencentes ao quadro efetivo, por exemplo,comissionados há dez anos e servidores em re-gime especial (precários) contratados até doismeses antes da eleição5. Garantiu-se também odireito a voto a todos os discentes partici-pantes dos programas especiais de formação ede capacitação docente, que se espalham portodo o Estado e que muitas vezes não têm con-tato com a vida acadêmica dos departamentos.Os estudantes dos cursos de especialização

“autofinanciáveis”, que não passam por pro-cesso seletivo para admissão e os professoressubstitutos e visitantes também foram contem-plados com o direito a voto.

Estabeleceu-se um exíguo espaço de tempopara a campanha eleitoral (15 dias úteis), o queinviabilizou a discussão e o debate em boa par-te da Universidade.

A intencionalidade dos atos aprovados noCONSU quanto ao pleito ficouexplicitada quando foi homologa-da a chapa oficial e aprovadosexpedientes que favoreceram cla-ramente os dois integrantes dachapa, cada um com suas especi-ficidades: um pró-reitor/membrodo Conselho e uma Diretora deDepartamento/gestora/membrodo Conselho. É interessante ob-servar que a presença dessa últimana empreitada surgiu como conse-qüência de um acordo políticoentre as forças conservadoras dasituação e um grupo de 27 direto-

res, alguns com trajetórias de militância naesquerda e nos movimentos sociais. Como os di-retores formam o grupo majoritário do Conse-lho e somou-se a eles os aliados ocupantes decargos de confiança, como os pró-reitores, as re-gras exaradas do conclave se adequavam aos in-teresses da composição recém-formada.

Campanha Uma das primeiras derrotas da chapa de

oposição (Carmen Sá/Sandra Pacheco) foi atentativa de garantir o máximo de debates ofi-ciais: a Chapa 2 (Lourisvaldo Valentim/AméliaMaraux) não queria debate algum porque du-rante oito anos de gestão, obviamente, o Pró-Reitor de Extensão já havia feito sua campa-nha. Conseguimos, no máximo, depois demuitos embates, garantir três debates em umaUniversidade com 24 Campi!

O Movimento Docente, ao lançar a chapade oposição, tinha clara noção da desigualdadede condições, mas discutiu e definiu marcar

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O Movimento Docente,ao lançar a chapa deoposição, tinha clara

noção da desigualdadede condições, mas

discutiu e definiu marcarsua posição e

buscar um debate de idéias e projetos deUniversidade durante o

processo eleitoral.

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sua posição e, minimamente, buscar um debatede idéias e projetos de Universidade durante oprocesso eleitoral. Entretanto, os discursos dachapa da situação foram, simplesmente, a ex-plicitação de números de projetos, programas epessoas atendidas pela PROEX, assim como atentativa de desvincular-se da reitora, politica-mente desgastada após oito anos de gestão,com o slogan “a mudança já começou: diálogo,diversidade e compromisso social”.

Paradoxalmente, o programa6 distribuídopela Chapa 2 - em quantidade tão grande quesobrava em todos os setores da Universidade,com alta qualidade gráfica, nas cores utilizadaspelas propagandas do Governo do Estado -,em tudo se assemelhava ao programa divulga-do na época da reeleição da atual reitora. Valeressaltar que em todas as 41 páginas do progra-ma, nenhuma vez a palavra gratuita qualifica-va a Universidade Pública proposta por eles.Ao serem questionados sobre a ausência de pa-lavra tão significativa, se apressaram a emitirum programa reduzido onde se lia:

“Defender a Universidade Pública significacomprometer-se com os valores republica-nos, no interior dos quais prevalece o bemcomum e o interesse coletivo, o que na reali-dade brasileira e baiana atual, (grifo nosso)também significa garantir a gratuidade.”

Como se percebe, o máximo de compro-misso com a gratuidade está posta como umapreocupação pontual, conforme demonstranosso grifo, pois, para quem comunga com opensamento dos governantes da Bahia, a ma-nutenção do ensino superior pelo Estado é umluxo, que pode ser cortado a qualquer tempo.No programa também merece destaque:

“... instituir normas concernentes à revali-dação de títulos obtidos em países estrangei-ros e registro de diplomas emitidos por insti-tuições privadas não universitárias (grifonosso), atendidas as exigências legais.” (p. 23)

Isso parece um compromisso para resolvero problema de parte dos docentes que se en-contram com dificuldade de revalidar títulos ob-tidos em mestrados e doutorados realizados em

instituições não reconhecidas pela CAPES. Ou-tro ponto do programa chama a atenção e dá aexata medida do tipo de projeto que a Chapa 2realmente quer implementar: uma Universidadeque anuncia e vende seus produtos:

“... dar maior visibilidade às ações desenvol-vidas pela Universidade através de progra-mas de marketing.” (p. 29)

O mais contraditório dessa campanha nãofoi a cúpula do DCE apoiar o Professor Valen-tim antes mesmo da candidatura ser lançada etentar desqualificar a chapa de oposição, poisessas atitudes são esperadas de “estudantesprofissionais” que se mantêm por longo temponas Universidades apenas para usufruir de di-versas formas da estrutura do Diretório, mas aquase unanimidade dos diretores que, semconsultar suas plenárias, assinaram documentode apoio à candidatura da situação em nomedos Departamentos.

De nossa parte, apesar da falta de tempo ede recursos, a campanha foi extremamente po-sitiva, pois nos colocou em contato com a rea-lidade concreta da Universidade ao visitarmos16 dos 24 campi espalhados de norte a sul e deleste a oeste do Estado. Pudemos, também,com muitos anos de experiência acadêmica econhecendo de perto os principais envolvidosno jogo político da administração da Universi-dade, desvelar para a comunidade o mito da-queles que discursam usando o social comopano de fundo, mas que dirigem a Universida-de sem diálogo e não reconhecem a diversida-de, pois impõem suas decisões a todos, parti-cularmente àqueles que desenvolveram rela-ções de dependência às suas políticas assisten-cialistas.

Resultados do processoO resultado oficial do processo divulgado

pela Comissão Eleitoral7 foi rearranjado porsegmento (docente, discente e técnico-admi-nistrativo) para facilitar a análise a que nospropusemos.

A Chapa 1 só obteve maioria dos votos noDEDC de Alagoinhas, no DCH de Jacobina e

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 37

nos DCHT de Bom Jesus da Lapa e de Ipiaú.Em Alagoinhas e Jacobina esperávamos bonsresultados, pois muitos docentes militantes noMD se concentram nesses departamentos -historicamente dos mais antigos e engajados.Os resultados de Bom Jesus da Lapa tambémeram esperados por causa da militância ativa deseus docentes, apesar de ser um departamentorelativamente novo, mas o resultado de Ipiaúnos surpreendeu por ser um dos campi maisnovos, não termos conseguido visitá-lo e con-tarmos, basicamente, com um docente militan-te. Vale observar que nos outros campi novos,criados sem discussão na Universidade, cujosdiretores foram indicados e não eleitos, nãoconseguimos obter um único voto. Talvez esseresultado se deva ao fato de a maior parte dosprofessores serem substitutos ou estarem emestágio probatório, temerem represálias ou nãoconhecerem a realidade da Universidade, alémdo que, não houve tempo para a campanhanessas localidades.

A Chapa 1 conseguiu obter maior número devotos dos técnico-administrativos em Bom Jesusda Lapa. A hegemonia da Chapa 2 nesse seg-mento foi tanta que em 12 dos 24 campi todos osvotos apurados foram para ela e a Chapa 1 nãoobteve nenhum voto em 13 deles. A justificativapara essa inexpressiva votação no interior, com aúnica exceção do DTCS de Juazeiro, poderia sero fato de não sermos tão conhecidas quanto oPró-Reitor de Extensão. Se isso fosse verdadei-ro, na capital essa justificativa não se sustentaria.Até mesmo nos departamentos em que traba-lhamos e somos respeitadas por nossa atuaçãoprofissional, obtivemos poucos votos. Talvezparte dos servidores votaram na Chapa 2 porconveniência pessoal, pois parentes são acomo-dados em empresas terceirizadas, estágios, con-tratos temporários etc. e, dessa forma, ficamcomprometidos com seus superiores, gerandouma relação de cumplicidade. É ainda possívelque tenha sido feito excelente trabalho de con-vencimento de um servidor a outro ou mesmode professores e diretores.

Os discentes foram separados por tipo de

cursos: os regulares e os de capacitação e de es-pecialização que são “autofinanciáveis”. Aquantidade de votos dados às Chapas 1 e 2 sãobem distintas nos dois tipos de estudantes. En-tre aqueles que vivenciam a Universidade ob-servou-se praticamente um empate entre asduas chapas, enquanto no grupo de discentesque, muitas vezes, sequer tem contato com odepartamento e sua comunidade, o percentualde votos na Chapa 2 superou os 70%. O bomdesempenho da Chapa 1 entre os estudantesdos cursos regulares reflete a realidade do mo-vimento estudantil da UNEB: um grupo que -por desconhecimento, omissão ou conivência,aceita as decisões tomadas na cúpula do DCEe outro formado por estudantes que, organiza-dos em DA’s e CA’s independentes, ou emgrupos dissidentes, questionam a forma comoa Universidade vem sendo administrada. Esseúltimo grupo se mobilizou e encampou as pro-postas da Chapa 1 - Uma outra UNEB é pos-sível - apesar de todas as dificuldades. Por ou-

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tro lado, os representantes, ex-representantes eaté pessoas que não têm vínculo com a Univer-sidade, que gravitam em torno do DCE, es-tiveram, literalmente, fazendo campanha cer-rada para a chapa situacionista. Os resultadosevidenciam que nos departamentos onde hou-ve votação expressiva dos estudantes de cur-sos regulares para a Chapa 2 foi, principal-mente, porque não conseguimos visitar ouporque eram locais onde havia pessoas muitoenvolvidas diretamente com aquela chapa.

ConclusãoA abstenção de um grande número de do-

centes, cerca de 500, é bastante reveladora deuma prática consolidada ao longo dos anos naUNEB: muitos profissionais sededicam a outros empregos, comoclínicas, escritórios, outras em-presas públicas, faculdades parti-culares e não se interessam em sa-ber o que se passa dentro da Uni-versidade. Querem tão somenteusufruir do regime de 40 horassem dedicação exclusiva, que per-mite ao docente comparecer ape-nas para ministrar aulas, às vezesapenas o número mínimo previstoque é de 12 horas, e não se inse-rem nas questões acadêmicas e nasvivências políticas da Universi-dade.

A avaliação que fazemos sobre os cerca de600 votos que a categoria docente deu ao pro-fessor Valentim é de que alguns docentes es-tejam interessados em tocar seus projetos pes-soais nas áreas de ensino, pesquisa e extensão eacreditam que o melhor caminho é através dacaptação de recursos via fundações de apoio,ponto fundamental da Universidade enquantoempreendimento, proposta claramente ex-pressa no projeto do grupo hegemônico. Ou-tros são aqueles que já participam do mesmogrupo político, ministram ou coordenam cur-sos de especialização pagos e programas de ca-pacitação – que chegam a números impressio-

nantes8 recebendo pro-labore por turmas, au-mentando significativamente sua renda. Umoutro fator pode ter contribuído para a carac-terização da votação do segmento docente: umaparte expressiva trabalha em universidades par-ticulares e associa nossos nomes ao Sindicato(ADUNEB) e este às greves deflagradas nos úl-timos cinco anos, que tiveram como uma dasconseqüências, atrasos nos calendários acadê-micos em relação ao ano civil. Para essas pessoas,isso dificulta o equacionamento de suas cargashorárias dentro e fora da UNEB e comprometeas férias familiares.

Essa despolitização do significado do mo-vimento docente enquanto instância coletivade luta dos interesses da Universidade como

um todo é altamente providencialem contextos populistas. Com aênfase nas paralisações, enquantofator de descrédito da sociedadepara com essas instituições, o su-cateamento passa a ser responsa-bilidade dos que acreditam no fi-nanciamento público. As parceriaspúblico-privadas, baluarte do pro-jeto neoliberal para as universi-dades, tomam assim, o lugar dasolução para os grandes problemasenfrentados nas instituições públi-cas, fazendo surgir uma gama degestores empreendedores, “ante-nados” com o processo de globali-

zação, ainda que esses mitiguem, deliberada-mente ou não, a real conseqüência dessa práti-ca para a existência da Universidade Públicaenquanto bem social. Esse processo de priva-tização, travestido de busca pela excelência,tem se ampliado no campo universitário e asdiscussões entre os segmentos têm sido inci-pientes e marcadas por buscas de soluçõesparciais.

Outra questão que precisa ser pensada noâmbito das IES públicas é a tipologia do votonas eleições dos gestores. Esse assunto é polê-mico, principalmente porque parte do segmen-to docente, amparado no dispositivo da LDB

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As parcerias público-privadas,

baluarte do projetoneoliberal para

as universidades,tomam assim,

o lugar da soluçãopara os grandes

problemas enfrentados nas

instituições públicas.

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(percentual 70-15-15) acredita sero principal detentor da decisão dequem, oriundo das hostes dessesegmento, deve gerir as diversasinstâncias acadêmicas e administra-tivas das instituições. Como háabertura na legislação para mu-dança a partir de decisões dosConselhos Superiores e se legis-lando em nome da autonomia mu-da-se esse percentual - e conse-quentemente a paridade entre ossegmentos - a depender das con-veniências dos grupos políticosque se encontram no poder, geral-mente legislando com maiorianesses Conselhos.

A partir da experiência aqui relatada tor-nam-se claras as manipulações políticas possí-veis que se seguem à concepção de voto paritá-rio em detrimento do voto universal. A idéiade voto paritário significa, de alguma forma,uma visão de que alguns segmentos têm maislegitimidade que outros na definição dos ges-tores das instituições públicas, sendo que a ba-lança pende geralmente entre os docentes e ostécnicos-administrativos. Esse assunto, de na-tureza bastante complexa, precisa ser rediscuti-do nessa conjuntura porque passam as IESpúblicas, pois envolve o próprio compromissoda classe docente com a manutenção da gratui-dade nessas Instituições.

Do ponto de vista da autonomia, mais quegarantir que os processos eleitorais sejam real-mente democráticos e inclusivos, é preciso am-pliar a compreensão sobre as formas de coop-tação embutidas nas práticas privatistas, que usu-almente se colocam como salvadoras do conhe-cimento produzido na Universidade, quando, naverdade, são manipulações que favorecem o par-ticular em detrimento do público. O achatamen-to salarial, a inviabilização das práticas universi-tárias, a baixa produção científica e a falta decompromisso com a qualificação docente são es-tratégias de esvaziamento do sentido da Univer-sidade como bem público e é preciso que es-

tejamos alertas para o significado de“salvação” que representa a pre-sença ostensiva dos cursos de ex-tensão e pós-graduação pagos e,principalmente, a presença das fun-dações de apoio intermediando asrelações interinstitucionais.

O que se precisa garantir não éo simples funcionamento da Uni-versidade enquanto tal e sim ocumprimento de seu papel social.Na realidade que abordamos, é vi-sível o deslocamento da verdadei-ra autonomia da UNEB para me-canismos de atrelamento com ogoverno do Estado da Bahia, deforma que os desmandos por parte

desse e a subserviência por parte daquela, con-forma uma correlação de forças que têm, aolongo dos anos, impedido a Instituição de cres-cer qualitativamente, com o compromisso e aresponsabilidade que a sociedade baiana me-rece.

NOTAS

1 Lei estadual que reestrutura as universidades esta-duais baianas no âmbito administrativo (setembrode 1997).2 ADUNEB fax - Boletim da Associação dos Do-centes da UNEB (ADUNEB) “O Caos naUNEB”, n. 136, dez. 2005.3 Portaria no 1775/2005 - DOE 19.08.2005.4 Resolução no 345/2005 - DOE 20.09.2005.5 Portaria no 2131/2005 - DOE 04.10.2005.6 Programa da Chapa 2 à eleição da UNEB/2005.7 Ato no 2/05 - DOE 17.11.2005.8 Relatórios de Atividades Anuais da UNEB 2003 e2004.

Sindicalismo em Debate

Mais que garantirque os processoseleitorais sejam

realmente democráticos e

inclusivos, é precisoampliar a

compreensão sobreas formas de

cooptação embutidasnas práticas privatistas.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 41

O ANDES e a valorizaçãoda luta sindical

Mariângela Nather

Jornalista

Ojornalismo e a ciência têm traços comuns.A objetividade e a busca da verdade na in-vestigação da realidade. No jornalismo,

como na ciência, a verdade é o objeto de dese-jo, um ideal, como é na política, a democracia,o governo do povo.

A paixão não é uma boa medida, nem para ojornalismo, nem para a ciência. Mas é da natu-reza da política e do sindicalismo estar apaixo-nado. Não é a paixão cega, irresponsável, mas apaixão que move a ação, do pensar e do agircom consciência pública, e que na vida sindicaltoma a forma de luta pela justiça social.

O objetivo deste artigo é modesto: nesteano em que o ANDES completa 25 anos, re-lembrar a trajetória do movimento sindical, asdificuldades do passado e do presente na lutado trabalhador brasileiro, em especial dos do-centes do ensino superior, sob o olhar de umapessoa curiosa, jornalista, interessada e preo-cupada com as questões do nosso tempo, quenem se sabe ainda como rotular, se moderno,pós-moderno ou só moderninho.

É também uma singela homenagem ao pro-fessor Osvaldo de Oliveira Maciel, primeiropresidente do ANDES, que não se furtou daluta quando seu mundo cruzou com o mundodo trabalho.

Sindicalismo, movimento docente e ANDESA subordinação dos sindicatos ao Estado,

desde Vargas, deixou marcas profundas na his-tória do país. A estrutura sindical verticaliza-da, assistencialista e festiva é uma herança mal-dita. É maldita porque extremamente articu-lada. Passou por diversos governos e se mante-ve praticamente intacta. Mesmo quando seriapossível tentar quebrar sua espinha dorsal, aunicidade sindical e a obrigatoriedade da con-tribuição, ao longo dos anos 90, prevaleceu oestatuto varguista.

O movimento sindical dos anos 70/80, comos méritos devidos, acabaria acontecendo maiscedo ou mais tarde. Não fosse assim, o sindica-lismo ‘autêntico’ não teria se acomodado comtanta rapidez à estrutura vigente. Na verdade, emsituações de extrema opressão, o protagonistaque desencadeia o movimento de ruptura podeestar em qualquer lugar. Estar no lugar certo, nahora certa, saber ouvir e saber falar, faz liderançase muitos liderados. E presidentes também...

Na história do sindicalismo, o funcionalismoteve que enfrentar um obstáculo ainda maior, acondição de ser ‘Estado’. Ser poder, sem ter po-der de fato, ter uma condição privilegiada, semusufruir de privilégios. A categoria sempre tevesua história marcada por privações de represen-

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Sindicalismo em Debate

tatividade, embora isso não tenha sido um im-peditivo à organização do funcionalismo e à lutasindical, mas ela teve que seguir um caminho di-ferenciado e muito mais difícil.

A participação do funcionalismo, em espe-cial dos professores das IES públicas, foi fun-damental no movimento de resistência ao regi-me militar. Estudiosos do sindicalismo brasi-leiro (Maria Hermínia Tavares de Almeida, Leôn-cio Martins Rodrigues, Salvador Sandoval) de-monstram que o movimento docente teve umpapel importante no processo de abertura po-lítica e juntamente com outros setores do fun-cionalismo e do setor de serviços (bancários,motoristas do transporte coletivo, metroviá-rios) teve um peso considerável na atividadegrevista dos anos 80.

O saudoso professor Osvaldo Maciel, fun-dador do ANDES em 1981, um desseshomens destemidos, impulsionados pela in-dignação, sindicalista sem insígnia, teve par-ticipação na greve deflagrada em1980, primeira experiência sin-dical docente unificada nacional-mente e em 1981, quando foi de-flagrada a primeira greve por sa-lário e plano de carreira, uma gre-ve histórica de 84 dias.

Nessa época, o ANDES agluti-nava as lutas das associações do-centes que vinham levantando abandeira pela educação pública egratuita para todos, em oposição àpolítica privatista do regime mi-litar, como demonstram os docu-mentos do Conselho Nacional dasAssociações Docentes - CONAD.

A sucessão de paralisações ao lon-go dos anos 80 e as bandeiras de lutapela democratização e pela defesa doensino público demonstram que omovimento sindical dos professoresdas IES em associações docentes, sefortalecia nos porões da ditadura e jáse constituía como um sujeito políticoimportante na história do país.

Uma das conquistas dos movimentos soci-ais na Constituinte, que contou com a partici-pação do movimento docente, foi o direito desindicalização de parte do funcionalismo, oque permitiu a criação de centenas de sindica-tos pelo país logo após a promulgação daConstituição de 88.

Em 1989, o ANDES passa a ter representa-ção nacional (ANDES-SN), com Sadi Dal Ros-so na presidência.

Nesses 25 anos, com mais de 73 mil associa-dos, quase a totalidade de docentes das IES pú-blicas, o ANDES conquistou seu espaço nahistória do sindicalismo brasileiro.

No conjunto do movimento sindical hou-ve algumas mudanças qualitativas nesse pe-ríodo, que modificaram as relações entre osatores envolvidos nos conflitos do trabalho.Muitas resistências foram vencidas, inclusivena relação entre sindicatos e a chamada gran-de imprensa e entre ela e os profissionais da

imprensa sindical. O trabalho e a seriedade dos

sindicatos que substituíram a prá-tica colaboracionista por formasdemocráticas de gestão e atuaçãopolítico-sindical responsável fa-zem parte dessa mudança.

O fortalecimento da luta sindi-cal com a criação das centrais sin-dicais foi relevante, embora o agi-gantamento das centrais, que agoraquerem engolir os sindicatos e to-mar para si a representatividadedos trabalhadores, como previstona reforma sindical1, demonstraum novo campo de luta para o sin-dicalismo brasileiro que se preten-da autônomo.

Enquanto no setor privado osreflexos da reestruturação produ-tiva demandam ações pontuais emresposta ao dinamismo do capita-lismo financeiro, no setor públicoa situação é igualmente difícil. Omovimento vem sofrendo as con-

As universidadespúblicas são um foco

de resistência daspolíticas anti-sociais.

Mesmo com suas limitações

(defasagem salarial,defasagem de pes-soal, estrutura pre-cária de trabalhoetc.), continuamcomo referência

nacional e internacional,

reclamadas por milhares de jovensque querem uma

formação de qualidade.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 36, julho de 2005 - 43

Sindicalismo em Debate

sequências de uma política siste-mática de desresponsabilização doEstado. Não houve trégua nessesanos: reforma administrativa, re-forma previdenciária, terceirizaçãodos serviços, contratação tempo-rária, privatização de estatais.

De qualquer maneira, em meioà saraivada de ataques ao funciona-lismo, o movimento docente não se intimidoue nem se imobilizou.

As universidades públicas são um foco deresistência das políticas anti-sociais. Mesmocom suas limitações (defasagem salarial, defa-sagem de pessoal, estrutura precária de traba-lho etc.), continuam como referência nacionale internacional, reclamadas por milhares de jo-vens que querem uma formação de qualidade etambém por profissionais que gostariam defazer parte desse universo.

O funcionalismo público é uma pedra nosapato do governo. Ótimo. A sociedade ganhacom isso.

Comunicação e sindicalismoA comunicação é um elemento importante

de luta sindical. Os frankfurtianos não foram os primeiros a

denunciar a relação nociva entre mídia e poder,mas é inegável que estratégias adequadas decomunicação são fundamentais para qualquerinstituição, já que a comunicação é uma pode-rosa ferramenta para a transmissão de idéias,programas, análises de conjuntura e, comonão, de propostas políticas.

Declaração do ministro da Fazenda, Anto-nio Palocci, quando ele ainda não era essa figu-ra austera do homem que controla com mãosde ferro as contas do governo, era prefeito deRibeirão Preto, causou certo desconforto entreos correligionários petistas, ao defender aber-tamente e com intransigência a necessidade dosgovernos investirem pesado em comunicação emarketing, como ele próprio fez com muitacompetência e que lhe rendeu um segundomandato na cidade.

Não causa surpresa, que o go-verno federal tenha destinado, ofici-almente, mais de R$320 milhões doorçamento de 2006 em publicidadeinstitucional, como também não, oenvolvimento de profissionais dacomunicação nas denúncias de ‘cai-xa dois’ e lavagem de dinheiro dascampanhas eleitorais do PT.

E também não causa estranheza que umpresidente da república conceda entrevista ex-clusiva à emissora com maior audiência da TVbrasileira2, cuja influência sobre o eleitoradobrasileiro é notória. Essa subserviência ao po-der instituído causa constrangimento nos pro-fissionais de imprensa que levam a sério a éticaprofissional.

Evidentemente, a perspectiva adotada nestetrabalho se refere à comunicação não instrumen-talizada, aquela que comunica, informa e forma,a comunicação a serviço do interesse público.

A história da imprensa sindical se confundecom a própria história dos homens e mulheresque fizeram sindicalismo muito antes de se pen-sar em sindicato. Naturalmente, os desbravado-res da imprensa sindical tinham prática e mili-tância política e bem menos profissionalismo.

A convivência com pequenos sindicatos decidades de médio e pequeno porte mostra umarealidade penosa, que lembra esse passado: di-ficuldades para ‘rodar’ um panfleto, para redi-gir um edital e conseguir dinheiro para publi-cá-lo, pagar o aluguel da sede, contratar profis-sionais, dar comida para o comando de greve,evitar a pancadaria de grevistas e não grevistas.

Osvaldo Maciel, em entrevista de 1995, falada primeira vez que o ANDES produziu umboletim, em abril de 1981: ‘nós criamos um bo-letim, naquela época o ANDES não tinha bo-letim, feito de noite, secreto, meio escondido’.

Essa história se repete com uma freqüênciae atualidade desconcertantes.

A história de qualquer sindicato é o retratovivo da história de luta do trabalhador brasileiro.

A imprensa sindical do funcionalismo teveque enfrentar, juntamente com os sindicatos, a

A história de qualquer sindicato

é o retrato vivo da história de luta

do trabalhadorbrasileiro.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE44 - DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006

ambigüidade que permeia a relaçãoEstado/servidor, já relatada anteri-ormente. As barreiras ainda nãoforam vencidas.

Superar a reticência da grandeimprensa - as assessorias de impren-sa até pouco tempo eram considera-das uma segunda categoria dentrodo jornalismo, igualadas à figura doporta-voz do governo; a imprensasindical estava num local ainda me-nos confortável, associada à ima-gem negativa do sindicalismo;

Superar a reserva no interior dopróprio funcionalismo - quebrar aresistência de certos segmentosdentro do próprio funcionalismo,enfrentar o receio de perseguiçãopolítica, a ilegalidade na organiza-ção sindical antes de 88; depois, aausência de uma legislação específica sobre odireito de greve no serviço público e maisameaças;

Superar o preconceito contra o movimentosindical - a generalização em torno do peleguis-mo é muito forte, e justificável; mesmo hoje, háquem prefira qualificar os sindicatos como‘grupos de interesse’, distinguindo-os de ou-tros movimentos, como as ONGs, pretensa-mente desinteressadas;

Superar o preconceito quanto ao serviço pú-blico - associado à burocracia, má qualidadedos serviços, atendimento deficiente e ruim,essas imagens de descaso povoam o imagináriohá gerações, como se a precariedade e o suca-teamento da máquina pública fossem respon-sabilidade dos servidores.

Na experiência profissional com sindicatosde servidores públicos, dizia que o sindicalis-mo no setor público anda sozinho. O conflitogoverno/funcionalismo interessa à grande im-prensa, sempre puxa boas matérias (manchetes,denúncias etc.). Muito mais que qualquer ou-tra categoria profissional. A questão que se co-loca para a imprensa sindical do funcionalismonão é como atrair a atenção da grande impren-

sa, mas como fazer com que ela le-ve mais do que procura.

Como enfrentar os interessespolíticos, partidários, a superficia-lidade que marca o noticiário e su-perar o preconceito?

Muitas pessoas não têm clarezaquanto ao papel do movimentogrevista, por exemplo. Não sabemque greve é o último recurso numprocesso de negociação. Os riscossão grandes: o movimento pode to-mar um rumo inesperado e o resul-tado pode não atingir as expectati-vas da categoria, minando a capa-cidade de mobilização e a própriacredibilidade da instituição.

Não há sindicato que consigasustentar uma greve prolongada -30, 40, 50, 100 dias - sem que as

reivindicações sejam claras, precisas, possíveisde serem concretizadas e normalmente justas.

As longas paralisações, sobretudo numa áreaimportante como a educação superior, de-monstram a inflexibilidade e a arbitrariedade dosgovernos. Não fosse o movimento docente, qualnão seria a situação da educação no Brasil, hoje.

A paralisação das IFES por 112 dias em2005 e a proposta de 0,1%, que nem ao menosse concretizou!, é um exemplo claro da intran-sigência do governo atual e do descompromis-so com a educação pública. Repetindo: nãofossem as reivindicações justas, claras e possí-veis de serem concretizadas, o movimento gre-vista teria sucumbido nas primeiras negativasde negociação.

Mas a grande imprensa não tem preocupa-ção com esse tipo de reflexão, faz a crítica,quando faz, e pronto.

O ANDES, desde aquele primeiro boletimamador, vem aprimorando os canais de comu-nicação com suas bases, imprensa e sociedade.

O investimento é grande. Os profissionais de comunicação, sobretu-

do os assessores de imprensa, devem ser prepa-rados, precisam conhecer a estrutura e enten-

Sindicalismo em Debate

O conflitogoverno/funcionalis-

mo interessa àgrande imprensa,sempre puxa boas

matérias. A questãoque se coloca para aimprensa sindical dofuncionalismo não

é como atrair aatenção da grande

imprensa, mas comofazer com que elaleve mais do que

procura.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 45

Sindicalismo em Debate

der o funcionamento da instituição, inteirar-seda sua história, conhecer as bandeiras de luta,diferenciar as correntes políticas e sindicaisdentro do movimento, acompanhar o cotidia-no da entidade, dominar o vocabulário e ‘acer-tar’ a linguagem e com esse conhecimento rea-lizar seu trabalho (elaboração e execução dematerial de imprensa).

Se um repórter pode ser comparado a umespecialista em generalidades - nos veículos damaior parte da imprensa brasileira, o mesmojornalista é requisitado para cobrir furto, des-file de miss comerciária, briga de galo, briga decasal, cultura -, isso é inadmissível para um as-sessor de imprensa, que deve conhecer comprofundidade seu universo de trabalho paraque a comunicação seja efetiva.

A assessoria de imprensa segue a rotina dossindicatos. Participar de reuniões e eventos, lutarcontra a falta de interesse dos meios de comuni-cação de ouvir e dar o mesmo espaço para osatores envolvidos no conflito; no funcionalismo,cobrir longas reuniões, a maioria infrutífera,acostumar-se aos atrasos constantes das autori-dades, tolerar a arrogância daqueles que assu-mem cargos no governo e são absorvidos pelopoder fazem parte desse trabalho.

A representação nacional é um desafioconstante tanto para os sindicatos, quanto paraas suas assessorias. A mobilização local comcondução da executiva e negociações fora dolocal e do central, o que é muito comum, exigemuita organização e canais de comunicaçãoeficazes para a mobilização (local, regional, na-cional) da categoria.

Outra dificuldade é que alguns dirigentes aindaconfundem as coisas. Acham que os profissionaisda imprensa devem levantar a faixa de ‘aumentojá!’ e participar de passeata. Não funciona assim. Épor isso que a rotatividade de jornalistas é grandenos sindicatos: primeiro, porque se confunde in-vestimento com gasto, a área de comunicação é aprimeira na lista de cortes; segundo, não se preparao profissional para atuação segmentada e terceiro,se espera do profissional um comportamento ati-vista, não político.

É por isso também que poucos sindicatosconseguem alcançar seu público e comunicar-se com ele.

O dia-a-dia de uma entidade sindical com-bativa exige profissionalismo.

Quando um sindicato consegue superaresses obstáculos e crescer se está diante de umainstituição sólida. E é sempre uma grata surpre-sa quando se percebe que uma instituição sefortaleceu com independência, mesmo com asdivergências internas - conviver com as diferen-ças é muiiiiiito difícil - e que há um projeto po-lítico que sobrevive às mudanças de diretoria.

Esse parece ser o caso do ANDES, que uneluta sindical e luta política nesses tempos de os-tensiva campanha contra o serviço público, umtrabalho de resistência, que merece respeito.Destaca-se a estrutura de comunicação diver-sificada, profissional e de bom gosto. O cuidadocom a estética revela muito de uma diretoria.

Os docentes têm acesso a produtos diversifi-cados (boletins, cadernos, jornais, material de di-vulgação de eventos, material de apoio, infor-mes, comunicados) e canais de comunicaçãopróprios (impressos, rádio e internet), que fazema cobertura da diretiva e do movimento docente,e um site rico em história e informação, diaria-mente alimentado, coisa rara de se encontrar,mesmo em grandes instituições.

A revista Universidade e Sociedade, comdez anos de publicação ininterrupta e com umpadrão de qualidade inegável, é um espaço pri-vilegiado para a reflexão dos temas contempo-râneos. Deve ser mencionada a preocupaçãodo conselho editorial com o reconhecimentodo meio acadêmico e científico, com Qualis A.Essa é uma conquista do ANDES, os 10 anossão mais importantes que a avaliação da Capes.

Quando se fala na ditadura, que está viran-do página morta dos livros secundaristas dehistória do Brasil, mas vivo na memória da-queles que realmente sofreram nas mãos do re-gime militar, é que se percebe quão é impor-tante a liberdade, no sentido largo, e como éimportante ter espaços de participação na vidaassociativa e na vida pública e canais de comu-

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Sindicalismo em Debate

nicação para a manifestação dasnossas idéias.

Esses espaços criados e mantidospelo ANDES devem ser valoriza-dos. Sem esses espaços e canais decomunicação a luta sindical e políticateriam poucas chances de sucesso.

Os novos e os conhecidosdesafios da luta sindical

Lendo uma antiga entrevista doProf. Osvaldo, quando a gente en-contra algo que estava meio pensa-do e não formulado, ele dizia queno passado havia um inimigo con-creto, a ditadura. A luta se fazianesse contexto de cerceamento deliberdade, de castração dos direitoscivis e políticos, e por isso a frentegeral contra a ditadura era relati-vamente mais fácil, o movimento docente con-seguia o apoio dos professores, dos estudantese da sociedade.

Mas, e hoje? Qual a unidade da luta? A opressão é sentida e vivenciada, mas não

existe um ‘inimigo’ explícito. Há apatia, medodo futuro e muito mais medo do desemprego.

Algumas pessoas têm insistido, com certapropriedade, na associação desses nossos temposcom o ‘neoliberalismo’; mas como algo tão ...im-preciso, abstrato, talvez... mexe com as pessoas?

Os problemas contemporâneos precisam serformulados e problematizados de uma maneiraque seja inteligível para a maioria das pessoas,eles precisam de forma e conteúdo, e esse dis-curso não tem conseguido convencer, nem mo-bilizar a sociedade. E é um erro quem pensa quenão é necessária essa aproximação e insiste emfórmulas pobres de significado.

Não dá pra fugir dessa reflexão. Na prática, os sindicatos têm que resolver as

grandes questões e não descuidar das pequenas,essas batalhas do dia-a-dia, muitas, diversificadas,burocráticas, jurídicas, que movimentam o co-tidiano das entidades sindicais.

As grandes questões dizem respeito ao mo-

vimento sindical, indistintamente. O desemprego, a informalida-

de, esse conjunto de efeitos da re-estruturação produtiva, ‘inova-ções’ no campo da exploração dotrabalho. Giovanni Alves3 fala emnova ofensiva do capital no traba-lho, num texto bem didático e co-municativo, um desses artigos queconsegue desnudar seu autor e sermelhor que uma obra inteira.

A reforma trabalhista e a refor-ma sindical - preparadas pelo gover-no petista - formam uma unidadeindissolúvel, cujo objetivo é a flexi-bilização das leis trabalhistas e aprecarização do trabalho, com con-trole estatal, coordenado pelas cen-trais sindicais, que pelo projeto fica-rão responsáveis pelo direciona-

mento da luta sindical. Uma versão requentadado sindicalismo de Estado.

O assistencialismo nos sindicatos, mereci-damente criticado, volta com força redobrada,na diversificação de serviços, convênios, gran-des festas com milhões de expectadores ávidospelos sorteios de casas, apartamentos, carros eagora com os projetos sociais que, infelizmen-te, vem se sobrepondo às políticas sociais.

A pelegada continua com o mesmo objeti-vo: tirar vantagem pessoal da posição que ocu-pa. O projeto ‘político’ do pelego é comer àscustas da categoria em restaurante chique, tirarfoto ao lado de autoridades, comprar um apar-tamento na praia e ter funcionários para darordens e ser obedecido, porque no fundo elesonha ser patrão e como adora adulação, rece-ber tapinhas de agradecimento nas costas,quando resolve um problema particular ou fazalguma coisa útil pela categoria que representa.Conforme vai ‘crescendo’, sonha aparecer natelevisão e ser dirigente de central sindical, ecomeça a achar que é tão competente e traba-lhador que merece coisa melhor.

No serviço público a luta é de sobrevivên-cia. Continuar existindo. E remar contra a ma-

Os problemas contemporâneos

precisam ser formulados e

problematizados deuma maneira que

seja inteligível para amaioria das pessoas,

eles precisam deforma e conteúdo, e esse discurso não

tem conseguido convencer, nem

mobilizar asociedade.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 47

ré das parcerias público-privadas.Na educação superior, sobretudo pública, há

tantas frentes de luta! Somam-se às lutas próprias da categoria - re-

cuperação dos salários, política salarial, carreira,paridade entre ativos e aposentados, isonomia -conter o avanço da precarização nas universida-des públicas, com a terceirização, os contratostemporários, a cobrança de mensalidade, a redu-ção dos recursos para pesquisa e extensão, aameaça à autonomia universitária.

O ANDES tem pela frente a difícil discus-são sobre a regulamentação do direito de greveno serviço público, especificamente nas IESpúblicas. Essa discussão se arrasta por décadase só voltou à cena com o desgaste político dogoverno petista, devido às constantes mobili-zações promovidas pelo ANDES, um dossindicatos mais atuantes do país.

O debate de temas recentes, como o ProUnie a política de cotas, gera muitas especulações eessa é uma arma contra o movi-mento sindical.

Nas questões associadas à pro-posta de reforma universitária, oANDES tem um papel fundamental.

Seria incorreto afirmar que oANDES congrega uma parcela daintelectualidade em nosso país?

Os docentes e pesquisadoresacabam com a missão, não ingrata,de estar na vanguarda e à frentedessas discussões.

O mais difícil é que o governofederal age rápido, evita o con-fronto político e não se envergo-nha de utilizar todo seu aparatopara impor sua vontade, quer di-zer, a vontade de quem está portrás dele. A figura do rolo com-pressor, muito antiga e utilizadana imprensa sindical - é aindaapropriada para exemplificar atruculência do governo.

A ação do governo exige rapi-dez na tomada de posição e uma

comunicação eficaz, quando na verdade de-mandaria um trabalho longo de discussão, re-flexão, publicização e deliberação.

Você tem que ir às vezes contra os desejos eos sonhos das pessoas. Como colocar frente afrente o direito legítimo de cursar uma univer-sidade, de sonhar com um futuro diferente e osprojetos que se apresentam como soluções de-mocráticas? Como demonstrar e convencercom argumentos factíveis, que as conseqüên-cias de certas políticas, como o ProUni, só se-rão percebidas a longo prazo, porque estãoobscurecidas sob um discurso demagógico deacesso ao ensino superior das camadas menosfavorecidas da sociedade?

Vale lembrar, que durante a década de 90houve uma explosão de IES privadas. A faltade controle na criação de instituições e cursossuperiores acabou criando uma situação que oProUni pretende resolver: resguardar os inte-resses privados na educação, ou seja, resolver o

problema da capacidade ociosadessas escolas.

Na medida que essas políticasenvolvem recursos públicos e pri-vados, a tendência é que essa discus-são aproxime as IES públicas e pri-vadas, que as diferenças entre elassejam minimizadas e que se abra umnovo campo de luta sindical.

O financiamento público na edu-cação está no centro dessa discussão.

A conjuntura é hostil e inibe aformulação de um projeto amplode luta sindical.

Essas são questões difíceis e omovimento dos trabalhadores deveter respostas para elas.

Dessas respostas e da eficiência nacomunicação dependem a força e alegitimidade das reivindicações, oapoio social nas mobilizações sindi-cais e a transformação da realidade.

O movimento docente, como sevê, é obrigado a atacar em diversasfrentes e manter a unidade da luta.

Sindicalismo em Debate

O ANDES tem pelafrente a difícil

discussão sobre aregulamentação dodireito de greve no

serviço público,especificamente nasIES públicas. Essa

discussão se arrastapor décadas e só

voltou à cena com odesgaste político do

governo petista, devido às constantes

mobilizações promovidas peloANDES, um dos

sindicatos mais atu-antes do país.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE48 - DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006

Valorização da luta sindicalA avaliação de uma entidade sindical deve le-

var em conta sua estrutura, os níveis de associa-ção, o patrimônio, as conquistas, a capacidadede mobilização, a destinação dos investimentos,sempre na direção da diversificação dos instru-mentos de luta sindical e nunca da descons-trução do que foi construído ao longo da suahistória.

Outra boa categoria de análise é a coerência. A consciência da necessidade de uma ética

pública e uma ética privada consonantes pareceque vem crescendo, em meio a um discurso con-fuso sobre a diluição dessas esferas, de rediscussãode espaços e competências.

É preciso distingui-las muito bem e oANDES faz esse trabalho. Felizmente.

Mas voltando a questão da coerência, comoisso é percebido pelas pessoas? Na leitura da rea-lidade. Discursar sobre a importância do traba-lho voluntário e ignorar a divisão de tarefas navida privada, defender o interesse dos trabalha-dores e não registrar os próprios funcionários,contribuir com uma das maiores cargas tributá-rias do mundo que não retorna como financia-mento público na área social, defender a liber-dade, mas impor a liberdade com guerra e emnome da liberdade privar os cidadãos dos direi-tos civis, como está acontecendo nos EstadosUnidos e em países da coalizão, com desfaçatez,desde os eventos do 11 de Setembro.

A desfiliação à CUT em 2005 vai nessa di-reção. Foi uma opção pela coerência e não pelaconveniência.

O movimento sindical brasileiro enfrenta sé-rias dificuldades - antigas, reformadas e novasquestões -, mas alguns sindicatos têm conseguidoavançar na análise contemporânea e adequar suaatuação e seu discurso às mudanças no campo daluta sindical. É o caso do ANDES.

Não há perspectivas concretas de mudança napolítica ou na economia. Não positivas. Não acurto prazo.

Mas há uma história. 25 anos de história. Umahistória de luta e militância sindical, e também derenúncia. Essa história demonstra que não foi vã

a luta de Osvaldo Maciel, de Sadi Dal Rosso, dejoão, de maria, de josé... e de todos aqueles queacreditaram e que acreditam que lutar vale a pena.E que abandonar a luta não modifica a realidade.

Essa história deve servir de estímulo à par-ticipação e de fortalecimento do ANDES.

Como diz Dal Rosso, ‘... hoje as lutas sociaisestão mais difíceis. Mas não é o fim, pois en-quanto houver trabalhador assalariado, haveráespaço para o movimento sindical’.

A luta continua, indefinidamente, enquantonão formos capazes de construir um mundomelhor para se viver.

A superação das dificuldades vai de encon-tro a novos desafios e é preciso cada vez maiscompetência e preparo para a luta, e investirmais e mais na comunicação é fundamental.

A luta do ANDES é maior que a defesa dosalário dos docentes, é maior que a defesa dofuncionalismo ou de uma parcela do funciona-lismo. O ANDES faz a defesa do serviço pú-blico, faz a defesa do ensino público, gratuito ede qualidade para todos.

Uma frase encontrada escondidinha no sitedo ANDES, talvez de autoria desconhecida, écorporativa, o que não é crime, e de uma belezaque merece destaque: “amanhã, como hoje, averdadeira história do Brasil contemporâneo,só será realmente verdadeira se a memória domovimento docente superior estiver acesa”.

NOTAS

1 As informações contidas neste artigo foram obti-das no portal do ANDES, www.andes.org.br. 2 Veiculada em 1/1/2006, no programa ‘Fantástico’da Rede Globo.3ALVES, Giovanni. Reestruturação produtiva ecrise do sindicalismo no Brasil. In: TEIXEIRA,Franco J. S.; OLIVEIRA, Manfredo Araújo de.Neoliberalismo e reestruturação produtiva: asnovas determinações do mundo do trabalho. 2. ed.São Paulo: Cortez, 1998. p. 109-161.

Sindicalismo em Debate

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Memória

Ao longo dos seus 25anos, o ANDES teminvestido na promo-

ção de eventos em todo o paíspara discutir assuntos candentesda vida nacional e internacional.

Desde o primeiro congresso,em fevereiro de 1981 na cidadede Florianópolis, esses eventosregistram muitas lutas e açõespontuais, mas também lutas his-tóricas do movimento docente e

do ANDES pela educação pú-blica e pelo ensino superiorpúblico, gratuito e de quali-dade social.

As imagens dessa seção, re-produção dos cartazes de al-guns desses eventos, são referê-ncias importantes da história doANDES e do seu compromissocom a Universidade.

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Introdução

De acordo com o boletim n. 8 do Institutode Estudos Sócio-Econômicos (INESC),o pagamento da dívida pública2 continua-

rá sendo a tônica do Orçamento Geral da Uniãopara 2006. Em análise bastante precisa do Pro-jeto de Lei Orçamentária Federal, os autoresda pesquisa, publicada neste boletim, demons-tram que embora haja a previsão de reduçãoorçamentária para diversas políticas sociais em2006, o montante destinado para o pagamentode juros e encargos da dívida (superávit primá-rio) crescerá 52,2% em relação a 2005, passan-do de R$ 117,9 bilhões para R$ 179,5 bilhões3.

Estes dados indicam que, mais uma vez, oProjeto de Lei Orçamentária/2006 corrobora oque vem sendo praticado desde 2004: a priori-zação do ajuste fiscal em detrimento do finan-ciamento público das políticas sociais, o quemantém o Brasil no patamar de um dos paísesmais desiguais do planeta. Ao mesmo tempo éimportante ressaltar que nesta previsão orça-mentária, a diminuição de recursos em políti-cas sociais altamente necessárias para a classetrabalhadora é acompanhada por um aumentode recursos em políticas sociais focalizadas, em

especial para o Programa Bolsa Família, emconsonância com as políticas elaboradas, di-fundidas e monitoradas pelos organismos in-ternacionais do capital, especialmente FundoMonetário Internacional e Banco Mundial. Fa-tos que revelam o caráter fiscalista e eleitoreirodo plano de governo para este ano.

Como entendemos que este plano orça-mentário e seus efeitos sociais não podem sercompreendidos como algo inevitável, produzi-do em decorrência da pressão de um mercadoimpessoal e abstrato, nem como algo que é fru-to, simplesmente, das ações isoladas do Minis-tro da Economia, conforme difundido por al-guns representantes de movimentos sociais,consideramos de fundamental importância de-cifrar os principais determinantes e/ou condi-cionantes desta opção política do governo Lulada Silva.

Significado político e econômico da dívida pública

A análise do significado político e econô-mico da dívida pública brasileira, externa e in-terna, e suas conseqüências para a redução dofinanciamento público das políticas sociais

Dívida pública e educação superior brasileira1

Kátia Lima*Sônia Lúcio R. de Lima**

*Kátia Lima, doutora em Educação, professora-pesquisadora da Universidade Federal Fluminense**Sônia Lúcio R. de Lima, doutora em Planejamento Urbano, professora-pesquisadora da Universidade Federal Fluminense

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deve partir da retomada do conceito de capita-lismo dependente elaborado por FlorestanFernandes (1975). Este conceito constitui-secomo importante instrumental analítico paracompreensão da forma de inserção do país naeconomia mundial e da configuração da luta declasses em nossa formação econômico-social,uma inserção subordinada aos interesses eco-nômicos e políticos dos países imperialistas.No entanto, essa subordinação não deve sercompreendida como uma imposição “de fora”,mas articulada aos próprios interesses da bur-guesia brasileira em reproduzir, internamente,relações de dominação ideológica e exploraçãoeconômica.

Estas referências ajudam a perceber que, empaíses periféricos e dependentes como o nosso,a questão da dívida pública assume um caráterparticular. Encontram-se na raiz destas carac-terísticas particulares a forma de inserção daeconomia brasileira na economia mundial e oaprofundamento desta forma de inserção noatual estágio da acumulação capitalista, pormeio do qual o capital, para fazer face a sua cri-se, utiliza-se de um conjunto de estratégias en-tre as quais se incluem a reforma do Estado, areestruturação da produção e a crescente in-ternacionalização da economia.

Desde épocas remotas, os governos brasi-leiros solicitam novos empréstimos para cobriros juros não pagos dos empréstimos anterior-mente realizados. Estes empréstimos benefici-avam tanto os banqueiros internacionais (dívi-da externa), como a burguesia brasileira (dívidainterna), que repartia com o conjunto da socie-dade o pagamento destes juros das dívidas. Es-te processo será aprofundado enormementecom a instauração do regime burguês militar,fazendo com que este padrão de desenvolvi-mento impulsionasse os países centrais a rea-lizarem uma incorporação devastadora dospaíses periféricos ao seu projeto expansionista.

Além deste aspecto histórico, há outro queprecisa ser ressaltado em nossas análises. Des-de as crises, internacional e nacional, dos anos80, a política de financiar os déficits externos

com poupança do exterior resultou em tomarmais empréstimos para pagar os anteriores,atraindo os capitais, principalmente especulati-vos, com altas taxas de juros, tendo-se queconvertê-los em moeda nacional para introdu-zi-los na economia. Esta política tem geradouma acentuação na relação entre dívida internae dívida externa e um aprofundamento da de-pendência, demonstrando, assim, a íntima re-lação entre imperialismo e capitalismo de-pendente.

O neoliberalismo agravou este processocom as reformas, manifestação mais evidenteda dominação imperialista na atualidade, ga-rantindo a expropriação de seus excedenteseconômicos, sob a direção política da burgue-sia brasileira, parceira do capital internacional,e da burocracia sindical e partidária dos traba-lhadores convertida à ordem do capital.

Dívida pública brasileira nos anos de neoliberalismo: Fernando HenriqueCardoso e Lula da Silva

Ao longo do governo Cardoso, os cortes deverbas públicas nas áreas sociais; o aprofunda-mento da política de privatização; as altas taxasde juros; o contingenciamento do OrçamentoGeral da União para o pagamento das dívidasexterna e interna, sob a direção dos organismosinternacionais do capital, ampliavam o desem-prego e as desigualdades econômicas no país.Esses organismos realizam um conjunto deempréstimos aos países periféricos, como oBrasil, condicionando-os à execução de refor-mas econômicas e políticas ordenadas pela re-dução da alocação da verba pública para as po-líticas sociais, sob a aparência de uma supostaresolução da crise fiscal do Estado. O Estado,na periferia do sistema, deve financiar e imple-mentar políticas focalizadas no “alívio da po-breza extrema” e efetivar um conjunto de par-cerias com o setor privado, brasileiro e inter-nacional, para o financiamento e implementa-ção das políticas consideradas como setoresnão exclusivos do Estado, identificadas peloconceito de público não-estatal, expresso no

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Plano Diretor da Reforma do Esta-do, elaborado no governo Cardoso(Brasil/MARE, 1995).

É neste setor de atividades nãoexclusivas do Estado que está a edu-cação superior. A partir de 1995, ogoverno Cardoso imprimirá umadeterminada concepção de educa-ção superior, entendendo-a comoum conjunto complexo de institui-ções públicas e privadas, do qual asuniversidades são partes do siste-ma, mas que não devem respondera todas as demandas da sociedadeem matéria de ensino pós-médio,conforme expressão do BancoMundial. Este discurso fundamen-tará a política de privatização daeducação superior, via diversifica-ção das instituições e diversificaçãode suas fontes de financiamento,fazendo com que

“de modo complementar aoMARE, na questão da Reformado Estado, mas com uma atua-ção incisiva no propósito deprofunda reestruturação do sis-tema de educação superior, oMEC tenha se destacado pelo implementode uma série de medidas de ordem legal (LDB,Decretos, Portarias, envio ao Congresso Na-cional de Medidas Provisórias, Propostas deEmendas Constitucionais), além de articu-lado àquele Ministério e aos Ministérios daárea econômica, contingenciar recursos decusteio e capital, desautorizar o preenchi-mento, via concurso, das vagas docentes e defuncionários, congelar salários de docentes efuncionários das Instituições Federais de Ensi-no Superior (IFES)” (SILVA JR; SGUIS-SARD, 1999, p.46).

Uma importante referência da crescentedesresponsabilização do Estado com a educa-ção foi a aprovação do Plano Nacional de Edu-cação durante o governo Cardoso. O PNE foiaprovado com nove vetos presidenciais, anu-

lando os sub-itens do Plano quepromoviam alterações ou amplia-vam recursos financeiros para aeducação, sendo que a maioria dosvetos estava diretamente relacio-nada com a educação superior, asaber: 1) a proposta de ampliaçãoda oferta de ensino público, demodo a assegurar uma proporçãonunca inferior a 40% do total dasvagas, prevendo inclusive a parce-ria da União com os Estados nacriação de novas instituições pri-vadas de educação superior; 2) aproposta de assegurar, na esfera fe-deral, através de legislação, a cria-ção do Fundo de Manutenção eDesenvolvimento da EducaçãoSuperior, constituído, entre outrasfontes, por, pelo menos 75% dosrecursos da União vinculados àmanutenção e desenvolvimentodo ensino e destinados à manuten-ção e expansão da rede de institui-ções federais; 3) o indicativo deampliação do programa de créditoeducativo, associando-o ao pro-cesso de avaliação das instituições

privadas e agregando contribuições federais eestaduais, e, tanto quanto possível, das pró-prias instituições beneficiadas, de modo aatender a, no mínimo, 30% da população ma-triculada no setor privado, com prioridade pa-ra os estudantes de menor renda; 4) a am-pliação do financiamento público para pesqui-sa científica e tecnológica, através das agênciasfederais e fundações estaduais de amparo àpesquisa e da colaboração com as empresas pú-blicas e privadas, de forma a triplicar, em dezanos, os recursos atualmente destinados a estafinalidade; 5) a elevação, na década, através deesforço conjunto da União, Estados, DistritoFederal e Municípios, do percentual de gastospúblicos em relação ao PIB, aplicados emeducação, para atingir o mínimo de 7%. Paratanto, os recursos devem ser ampliados, anu-

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almente, à razão de 0,5% do PIB,nos quatro primeiros anos doPlano e de 0,6% no quinto ano; 6)a garantia de recursos do TesouroNacional para o pagamento deaposentados e pensionistas do en-sino público na esfera federal, ex-cluindo estes gastos das despesasconsideradas como manutençãode desenvolvimento do ensino e 7)a orientação dos orçamentos nastrês esferas governamentais, demodo a cumprir as vinculações esubvinculações constitucionais, ealocar, no prazo de dois anos, emtodos os níveis e modalidades deensino, valores por aluno, que cor-respondam a padrões mínimos dequalidade de ensino, definidos na-cionalmente.

Todos estes vetos estavam rela-cionados com o fato de que, estesartigos, segundo avaliação do go-verno Cardoso, “contrariam o in-

teresse público”, na medida emque ferem o estabelecido nos arti-gos 16 e 17 da Lei de Responsabi-lidade Fiscal. A desresponsabili-zação do Estado com a educaçãosuperior ocorre, portanto, atravésda redução de verbas públicas parao seu financiamento e, simultanea-mente, do estímulo ao empresa-riamento deste nível de ensino, se-ja pela abertura de novos cursosprivados e/ou da imposição deuma lógica empresarial à formaçãoprofissional. Este duplo mecanis-mo fica evidente quando analisa-mos o quadro abaixo indicado.No último ano do governo Car-doso foram gastos R$13.222.750com a educação, enquanto o paga-mento dos encargos da dívida pú-blica, externa e interna, computouum total de R$ 119.547.3254.

Diante deste quadro, um con-junto de movimentos sociais, or-

A desresponsabili-zação do Estado coma educação superior

ocorre, portanto,através da reduçãode verbas públicas

para o seu financia-mento e, simultanea-mente, do estímulo

ao empresariamentodeste nível de ensino,seja pela abertura denovos cursos privados

e/ou da imposição de uma lógica empresarial à

formação profissional.

JANEIRO A DEZEMBRO DE 2002 - GOVERNO FEDERALRELATÓRIO RESUMIDO DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA

DEMONSTRATIVO DA EXECUÇÃO DAS DESPESAS POR FUNÇÃO/SUBFUNÇÃOOOrrççaammeennttoo PPrreevviissttoo ((RR$$ mmiill)) RReeaalliizzaaddoo ((RR$$ mmiill)) LLiiqquuiiddaaddoo

(itens selecionados) (Dotação Anual) (Valores Liquidados) (%)

Segurança Pública 2.516.590 2.202.449 87,52

Assistência Social 6.611.338 6.513.151 98,51

Saúde 26.969.885 25.434.639 94,31

EEdduuccaaççããoo 1144..665566..446655 1133..222222..775500 9900,,2222

Cultura 377.703 239.527 63,42

Urbanismo 797.140 486.549 61,04

Habitação 226.099 127.169 56,24

Saneamento 248.984 97.143 39,02

Gestão Ambiental 2.831.396 1.264.882 44,67

Ciência e Tecnologia 2.198.179 1.506.710 68,54

Agricultura 8.615.611 5.500.405 63,84

Organização Agrária 1.580.406 1.380.606 87,36

Energia 8.323.374 7.819.225 93,94

Transporte 7.645.246 5.142.471 67,26

TOTAL DOS GASTOS SOCIAIS 83.598.416 70.937.676 84,86

SERVIÇO DA DÍVIDA 112233..995533..001166 111199..554477..332255 9966,,4455

Serviço da Dívida Interna 97.379.893 95.286.001 97,85

Serviço da Dívida Externa 26.573.123 24.261.324 91,30

FFoonnttee:: Relatório Resumido da Execução Orçamentária do Governo Federal e Outros Demonstrativos, Dezembro, pág 12. Disponível no site: http://www.stn.fazenda.gov.br/contabilidade_governamental/gestao_orcamentaria.asp

JANEIRO A DEZEMBRO DE 2002 - GOVERNO FEDERALRELATÓRIO RESUMIDO DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA

DEMONSTRATIVO DA EXECUÇÃO DAS DESPESAS POR FUNÇÃO/SUBFUNÇÃO

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Educação e Universidade

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 63

ganizados através da Campanha Jubileu Bra-sil5, realizou em setembro de 2000, um Plebis-cito Nacional da Dívida, quando seis milhões debrasileiros exigiram a suspensão do pagamentoda dívida e a realização de uma auditoria doscontratos até então realizados. Entretanto, o go-verno Cardoso ignorou a realização do Plebis-cito e manteve seus acordos e contratos com osorganismos internacionais, especialmente oFMI6.

Duas ações articuladas aos organismos in-ternacionais foram realizadas ao final do se-gundo governo Cardoso: em setembro de 2001,o governo estabeleceu um novo acordo com oFMI, referente ao período entre setembro de2001 a dezembro de 2002, indicando o aumen-to do superávit primário (3,5% do PIB para2003 e 2004) e, em dezembro de 2002, enviouuma Carta de Intenção ao Fundo avaliandosuas principais ações e apresentando as açõesque já estavam sendo assumidas pelo novo blo-co no poder que conduziria o país a partir de2003, a Coligação Lula Presidente.

O projeto de ajuste fiscal, reformas estru-turais e de configuração da educação como umserviço não exclusivo do Estado,como um serviço público não-es-tatal, atravessou o governo Cardo-so e está sendo aprofundado nogoverno Lula da Silva, através deuma nova geração de reformasneoliberais. Este projeto está ex-presso na Carta ao Povo Brasileiro,divulgada em junho de 2002, noPrograma de Governo elaboradopela Coligação Lula Presidente eem todas as Cartas do GovernoBrasileiro ao FMI, desde a últimaCarta do Governo Cardoso, ela-borada por Pedro Malan e Armí-nio Fraga Neto, até as Cartas enca-minhadas por Antonio Palocci eHenrique Meirelles.

Em relação à educação, o gover-no Lula da Silva vem operacionali-zando a seguinte pauta de ação po-

lítica: a) o estabelecimento de parcerias pú-blico-privadas para o financiamento e a execu-ção da política educacional brasileira: do com-bate ao analfabetismo à educação fundamental,do ensino médio e da educação superior e b) aabertura do setor educacional, especialmenteda educação superior, para a participação dasempresas e grupos estrangeiros, estimulando autilização das tecnologias da informação e da co-municação na educação, através da educação su-perior a distância (Lima, 2005).

É fundamental, portanto, a compreensão deque a reformulação da educação superior emcurso está inserida em um processo mais am-plo de reordenamento do Estado capitalista.Um processo que atravessou o governo Col-lor/Itamar, ganhou nova racionalidade no go-verno Cardoso e que está sendo aprofundadono governo Lula da Silva, constituído pelo se-guinte pressuposto básico: a educação está in-serida no setor de serviços não exclusivos doEstado. Na medida em que a educação é um“bem público” e as instituições públicas e pri-vadas prestam este serviço público (não esta-tal), será naturalizada a alocação de verbas pú-

blicas para as instituições privadas eo financiamento privado para asinstituições públicas, diluindo asfronteiras entre público e privado ejustificando o corte de verbas pú-blicas para a educação brasileira.

A tabela seguinte, elaboradapelo Jubileu Brasil, demonstra adestinação dos gastos federais pa-ra as áreas sociais e para o paga-mento de encargos da dívida pú-blica, externa e interna, em 2003,evidenciando, por um lado, o pri-vilegiamento do pagamento da dí-vida pública em detrimento dasáreas sociais e, por outro, que osvalores programados para este fi-nanciamento, ainda que reduzi-dos, não foram sequer executadosem sua totalidade, configurandomais uma estratégia para (re) alocação

O projeto de ajustefiscal, reformas estru-turais e de configu-ração da educação

como um serviço nãoexclusivo do Estado,

como um serviçopúblico não-estatal,

atravessou o governoCardoso e está sendo

aprofundado no governo Lula da

Silva, através de umanova geração de

reformas neoliberais.

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Educação e Universidade

de verba pública para o pagamento da dívida.Ao final desse mesmo ano, o superávit pri-

mário foi maior do que o acordado com oFMI: 4,3% do PIB. O resultado desta austeri-dade fiscal e orçamentária, que ainda inclui amanutenção da Contribuição Provisória sobreMovimentação Financeira/CPMF, o fato deque a tabela do Imposto de Renda de PessoaFísica não foi corrigida e que houve aumentoda taxa de juros do Banco Central, foi a perma-nência da estagnação econômica e o aumentodo desemprego.

Esta pauta de ação política do governo Lulada Silva pode ser localizada nos seguintes do-cumentos elaborados pelo Banco Mundial, em2003: O Banco Mundial no Brasil: uma parce-ria de resultados e Políticas para um Brasil Jus-to, Sustentável e Competitivo.

O primeiro documento, O Banco Mundialno Brasil: uma parceria de resultados apresentaa ampliação do investimento privado comouma das principais atribuições do Banco Mun-dial no Brasil. Para garantir o investimento

privado internacional, o Banco destaca suasanálises e recomendações sobre ajuste fiscal ereformas estruturais, especialmente em relação àreforma da previdência social e do sistema fi-nanceiro, enfatizando como ações políticas cen-trais da primeira geração de reformas estru-turais, realizadas ao longo da década de 1990, areforma do Estado brasileiro e a abertura eco-nômica, e que a segunda geração de reformas dosetor público, a ser executada pelo GovernoLula da Silva, deverá dedicar-se à redução dosgastos com esse setor, através de disciplina fiscalque venha garantir o aumento da credibilidadedo país diante dos investidores internacionais(Banco Mundial, 2003a).

No documento Políticas para um Brasil Jus-to, Sustentável e Competitivo, o Banco reafir-ma a importância das reformas estruturais con-jugadas com políticas sociais “para os mais po-bres” como o eixo central do novo governobrasileiro. Nesta concepção, um Brasil maisjusto é aquele que executa medidas de transpa-rência social, fazendo novamente referência,

GOVERNO FEDERAL - RELATÓRIO RESUMIDO DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA – 2003

IItteennss SSeelleecciioonnaaddooss PPrrooggrraammaaddoo RReeaalliizzaaddoo %% RReeaalliizzaaddoo (R$ mil) (R$ mil)

Segurança Pública 2.826.061 2.405.122 85,11

Assistência Social 9.240.408 8.416.353 91,08

Saúde 28.025.667 27.171.847 96,95

Educação 1144..994400..224466 1144..222244..227722 9955,,2211

Cultura 353.383 231.343 65,47

Urbanismo 915.500 342.852 37,45

Habitação 370.449 122.255 33,00

Saneamento 225.233 58.683 26,05

Gestão Ambiental 2.409.727 947.750 39,33

Ciência e Tecnologia 2.133.580 1.993.197 93,42

Agricultura 9.367.547 6.505.713 69,45

Organização Agrária 1.609.738 1.429.517 88,80

Energia 4.435.304 3.905.492 88,05

Transporte 5.743.839 3.048.097 53,07

TTOOTTAALL DDOOSS GGAASSTTOOSS SSOOCCIIAAIISS 82.596.682 70.802.493 85,72

SERVIÇO DA DÍVIDA 116677..333311..886666 113322..449911..114400 7799,,1188

Serviço da Dívida Interna 136.327.172 107.579.138 78,91

Serviço da Dívida Externa 31.004.694 24.912.002 80,35

Fonte: Relatório Resumido da Execução Orçamentária do Governo Federal e Outros Demonstrativos - www.stn.fazenda.gov.br. Obs: O serviço da dívida externa refere-se à dívida externa pública.

GOVERNO FEDERAL - RELATÓRIO RESUMIDO DA EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA – 2003

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principalmente, às reformas da previdência so-cial e do sistema de impostos (reforma tribu-tária). Um Brasil mais sustentável é aquele queestimula o aumento dos níveis de produtivida-de, incentivando e ampliando a ação dos seto-res privados. E um Brasil mais competitivo, de-ve realizar reformas que visem à confiança dosinvestidores internacionais nos projetos econô-micos brasileiros. O Banco também propõe oaumento do superávit primário, assim como oFMI, e a independência do Banco Central, tudoisso, conjugado com um movimento de am-pliação do capital social, ou seja, de “concessãoda participação dos mais pobres” para criaçãode um clima de consenso nacional ou pacto so-cial em torno das reformas estruturais a seremaprofundadas (Banco Mundial, 2003b).

As avaliações e indicações do Banco Mundialserão devidamente adaptadas às políticas brasi-leiras através de dois documentos elaboradospelo Ministério da Fazenda. O primeiro, intitula-do Política Econômica e Reformas Estruturais7,datado de abril de 2003, e o segundo documento,elaborado em novembro de 2003, intitulado Gas-tos sociais do governo central: 2001 e 20028. Am-bos constituem-se em coletâneas das análises econceitos defendidos pelo FMI e pelo BancoMundial, reafirmando a necessidade de manuten-ção do superávit primário. Em relação às políti-cas sociais e à redução/alívio da pobreza, os do-cumentos consideram (1) que as verbas públicasestão direcionadas para os “não pobres” e quesão mal administradas; (2) a necessidade de finan-ciamento público focalizado nas políticas queatendem aos segmentos mais pauperizados dapopulação.

No início de 2004, o governo anunciou umanova restrição à liberação de recursos no valorde R$ 6 bilhões, bem como manteve a meta desuperávit de 4,25% do PIB para pagamento (departe dos juros) das dívidas. Ao final de 2004,71% dos gastos da União foram usados na re-dução do endividamento e apenas 19% se des-tinaram aos investimentos sociais9. Deste per-centual, vale ressaltar a sistemática diminuiçãodos valores em relação ao primeiro ano do go-

verno Lula da Silva. Se, a título de ilustração,em 2003 o governo Lula da Silva executou95,21 % do orçamento da área de educação, em2004 foi executado, somente, 93,67% do valorautorizado.

Em 2005, este quadro não foi alterado. Atéagosto de 2005, apenas 40,75% dos recursostotais do orçamento haviam sido gastos com asáreas sociais. Especificamente em relação à áreade educação, somente foi utilizado 40,39% doorçamento previsto.

Para 2006, o indicativo é de continuidade eaprofundamento do corte de financiamento pú-blico para as áreas sociais, na medida em que ogoverno Lula da Silva coloca na pauta política odispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentáriasque implementa a proposta do deputado DelfimNeto para promover o déficit nominal zero.

“A proposta de trabalhar com déficit nomi-nal zero, feita ao governo pelo deputadoDelfim Neto (PP/SP), inclui o aumento dadesvinculação de receitas, o que tem geradouma grande crítica por parte dos economis-tas não-ortodoxos e dos movimentos sociaisde uma maneira geral. O que essa propostapretende é manter a lógica da prevalência dadívida financeira sobre a dívida social. A vin-culação de receitas, principalmente dos pro-gramas da área social, evita que observemosexecuções orçamentárias tão baixas de ques-tões cruciais para a maioria da população.Enquanto isso, o superávit primário vai alémdo previsto e os serviços das dívidas internae externa continuam sendo pagos, ainda quenão diminua o seu estoque na mesma pro-porção do sacrifício imposto à maioria dapopulação pela insuficiência dos programassociais” (INESC, 2005)11.

Ao final de 2005, o governo Lula da Silvaanuncia a antecipação do pagamento de US$15,5 bilhões ao Fundo Monetário Internacio-nal, que deveriam ser pagos até 2007. Este pa-gamento antecipado, entretanto, não significaruptura com a agenda neoliberal negociada en-tre o Fundo e o governo brasileiro. A manu-tenção desta agenda está expressa tanto na Lei

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Orçamentária de 2006, enviada pelo governoao Congresso Nacional limitando os gastos so-ciais a 17% do PIB para o próximo ano, comoem documento recente disponibilizado peloMinistério da Fazenda:

“O pagamento antecipado ao FMI não al-tera o bom relacionamento entre o Brasil ea instituição. Além das relações normaisprevistas no Artigo IV do Estatuto doFundo, o Brasil continuará desenvolvendoprojetos conjuntos que deverão ter im-pacto importante em muitos países mem-bros, notadamente no que concerne aoProjeto Piloto de Investimento e à imple-mentação do Manual de Contas Públicas.Além disso, o Brasil dará prosseguimentoao diálogo sobre a conveniência de desen-volver mecanismos que fortaleçam a ar-quitetura financeira mundial e amenizemos impactos de choques sobre a conta decapital das economias abertas 12”.

Conversão da dívida por investimento emeducação: considerações para o debate

É neste contexto que a proposta deconversão da dívida por investimento emeducação é apresentada. Esta proposta foisistematizada em novembro de 2003, pelaUNESCO, através do documento Conversãode Dívida por Educação13. O documento relata

que esta proposta foi apresentada na Confe-rência Geral da UNESCO daquele ano, noEncontro Ministerial da Organização dos Es-tados Americanos/OEA e no Encontro da Or-ganização dos Estados Ibero-Americanos paraa educação, a ciência e a cultura/OEI e estápautada na compreensão sobre a necessidadedo “alívio à pobreza extrema” e a importânciade investimento em educação para criação deum clima de coesão ou pacto social em tornodas reformas estruturais elaboradas, difundi-das e monitoradas nos países periféricos porestes organismos internacionais. 14

“O reconhecimento da insustentabilidade dadívida dos países em desenvolvimento já foifeito pelas instituições de Bretton Woods (i.e.Fundo Monetário Internacional e Banco Mun-dial), ao lançarem a Iniciativa HIPC (PaísesPobres Altamente Endividados), que visa àredução do endividamento externo de paísespobres, colocando a questão da redução dadívida no marco mais amplo de combate àpobreza” (UNESCO, 2003).

Uma das principais argumentações daUNESCO em relação à conversão da dívidapor investimentos em educação está assim ex-pressa:

“A troca de uma pequena parcela da dívidapor investimentos em educação aumenta acapacidade do país devedor em honrar o

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restante da dívida no longo-prazo. Alógica por trás desta afirmação é a seguinte:pesquisas empíricas nas ciências econômicasjá demonstraram há muito tempo que o nívelde educação (anos de escolaridade + quali-dade do ensino) representa, no longo-prazo,um fator central para a determinação da taxade crescimento econômico (...) Ademais, amelhoria educacional implica em um pro-cesso de crescimento baseado no aumentoda produtividade interna, o que aumenta acapacidade nacional de realizar superávitscomerciais, melhorando o perfil das contaspúblicas” (UNESCO, 2003, grifos nossos).

Fica evidente, portanto, que a defesa daconversão da dívida por investimentos emeducação está baseada em doiselementos centrais: a possibilida-de de que os países devedores, se-gundo a concepção dos organis-mos internacionais, assumam,ainda que parcialmente, o paga-mento das dívidas e uma concep-ção de educação nos marcos, tan-to da produtividade econômica,como da coesão ou pacto socialem torno do projeto burguês desociabilidade.

Em janeiro de 2005, durante o29º Congresso Nacional dos Tra-balhadores em Educação, a Con-federação Nacional dos Trabalha-dores em Educação/CNTE lança,oficialmente, o movimento pelaconversão da dívida externa emrecursos para a educação15. Estaproposta é incorporada peloMEC e, em 23 de junho de 2005,o então Ministro da Educação,Tarso Genro, lança, em Brasília, oComitê Social da Conversão daDívida em Educação, responsávelpela análise de modalidades deconversão da dívida brasileira porinvestimentos em educação16.

Argumentando com a pos-

sibilidade de “promover enfoques inovadorespara o financiamento da educação – incluindoo serviço sustentável da dívida (ou mesmo seualívio)”, o documento síntese, intitulado Con-versão de partes do serviço da dívida externapor investimentos em educação17, apresenta asseguintes modalidades de conversão: perdãode parcela da dívida, com o compromisso dopaís devedor de que investirá em educação;compra, por investidores privados, de títulosda dívida; rolagem da dívida e operação trian-gular, isto é, o credor aceita refinanciar ou per-doar partes da dívida de um ou dos dois paísesmediante a prestação de cooperação edu-cacional de um deles em benefício do outro.

Em 28 de junho de 2005, o MEC organiza,em São Paulo, o Seminário Educa-ção e Investimento: Conversão daDívida para o Desenvolvimento. Apartir desta data, vários eventos sãorealizados sobre a temática e con-tam com a presença e o apoio dogoverno brasileiro: em outubro, a33ª Conferência Geral da UNES-CO aprova formalmente a propos-ta de conversão; no mesmo mês, aCúpula de Salamanca (Espanha),reunindo os chefes de estado e go-verno dos países ibero-americanos,assume o compromisso de buscar omaior apoio possível junto a credo-res bilaterais (governos) e multila-terais (organismos financeiros) pa-ra a conversão da dívida externapor investimentos em educação;em novembro, durante a 4ª Cúpuladas Américas e em dezembro, na 6ªReunião de ministros da Educaçãoda Comunidade dos Países de Lín-gua Portuguesa (CPLP), em Lis-boa, Portugal, a temática da con-versão da dívida é novamente apre-sentada.

Estes debates estão absoluta-mente afinados com as propostasdos países imperialistas para o

A defesa da conversão da dívidapor investimentos em educação estábaseada em dois

elementos: a possibilidade de

que os países devedores assumam,

ainda queparcialmente,

o pagamento das dívidas e uma concepção de

educação nos marcos,tanto da

produtividadeeconômica, como da

coesão ou pactosocial em torno doprojeto burguês de

sociabilidade.

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“alívio da pobreza” no contexto mundial.Uma importante referência destas propostasocorreu na Cúpula de Gleneagles, na Escócia,em julho de 2005, quando os países do G-8(Estados Unidos, Alemanha, França, Inglater-ra, Japão, Itália, Canadá e Rússia) decidirampelo “alívio” da dívida dos países periféricos,em particular dos países africanos. Na oportu-nidade, os principais países membros do Clu-be de Paris anunciaram sua “disposição” emaumentar a “ajuda ao desenvolvimento” (in-cluindo a educação) em US$ 50 bilhões dedólares até 2010. Tal “disposição” foi saudada,em declaração conjunta, pelos chefes de estadoe/ou de governo do Brasil, China, Índia, Mé-xico e África do Sul, participantes da Cúpulado G-8 em Gleneagles18, desconsiderando queações no sentido de “aliviar” a dívida dos paí-ses supostamente devedores estão sendo pro-postas pelos países imperialistas desde a criseda dívida da década de 1980, sem alterar a his-tórica apropriação dos excedentes econômicosproduzidos pelos trabalhadores dos países pe-riféricos. O que se apresenta nestas propostas,portanto, é a aparência de um capitalismo hu-manizado ou reformado que, em sua essência,não rompe com o aprofundamento da hierar-quização planetária que caracteriza o atual es-tágio de acumulação capitalista.

A Campanha Jubileu Brasil apresenta duasimportantes críticas em relação à proposta deconversão da dívida externa em investimentosna educação: em primeiro lugar, considera que aproposta acaba por reconhecer a dívida públicados países periféricos como legítima. Para oconjunto de entidades que compõem a Cam-panha Jubileu Brasil, aceitar a conversão da dí-vida significa concordar com o argumento dospaíses imperialistas de que somos, de fato, de-vedores. Um segundo aspecto diz respeito àscondições impostas pelos países credores du-rante as negociações desta conversão, isto é, emque medida a conversão só acontecerá de acordocom as condições impostas por cada país credore/ou cada organismo internacional, represen-tantes dos interesses do capital internacional.

Além destes elementos fundamentais, aCampanha Jubileu Brasil analisa que, na rea-lidade, quando os países credores indicam apossibilidade de cancelamento de parte da dí-vida, omitem que (a) a dívida pública dos paí-ses periféricos já foi paga; (b) os países de-vedores que poderão ter suas dívidas parcial-mente canceladas são aqueles que estão com opagamento da dívida atualizado, critério queratifica a lógica de submissão dos países pe-riféricos aos ditames dos países imperialistas;(c) as condicionalidades impostas pelos orga-nismos internacionais serão mantidas: os go-vernos dos países supostamente devedoresdeverão se comprometer com uma agenda eco-nômica e política que mantenha as privatiza-ções dos serviços públicos, a liberalização

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indiscriminada do mercado e do comércio, aabertura das economias e os investimentos es-trangeiros como eixos norteadores; (d) a pro-posta do G-8 cobre somente 38 de mais de 160países do Sul vergados por dívidas reclamadaspelos financiadores internacionais; (e) os va-lores a serem cancelados são mínimos quandocomparados com a arrecadação dos países doG-8 e das instituições financeiras interna-cionais.

Em seis de dezembro de 2005, a CampanhaJubileu Brasil realizou, no Rio de Janeiro, oSeminário Nacional Os Desafios da DívidaExterna e Interna para a Sociedade Civil como objetivo de debater como o endividamentoestá afetando o Emprego, o Meio Ambiente, oModelo Tributário, a Previdência, a Taxa deJuros e os Direitos Sociais: Saúde, Educação,Moradia, Segurança, entre outros. A auditoriada dívida foi defendida pelos or-ganizadores do Seminário comoum instrumento tático, visandotanto à desconstrução da concep-ção historicamente difundida pe-los organismos internacionais epelos diferentes governos de queo Brasil é um país devedor e deque o cancelamento da dívida le-varia o país para o caos econômi-co, político e social, quanto à rea-firmação do princípio de que so-mos credores e não devedores!

O ANDES/SN, presente noSeminário Nacional, reafirmou suaposição histórica contrária ao paga-mento da dívida, analisando comoesse pagamento retira o financia-mento público para as áreas sociais,especialmente para a educação su-perior, substituído pelas parceriaspúblico-privadas, e, simultanea-mente, aprofunda a inserção capi-talista dependente do país na eco-nomia mundial.

De acordo com as afirmaçõesde diversas entidades presentes no

Seminário, a luta contra o pagamento da dívidaexterna deve se configurar como um dos temascentrais da agenda de lutas de parcela dos mo-vimentos sociais e sindicais do país. Isso exige,de acordo com as resoluções encaminhadas noSeminário, a necessidade do fortalecimento daunidade entre os setores combativos da classetrabalhadora representados no movimento sin-dical e movimentos sociais, articulados peloacúmulo de debates e lutas da Campanha Jubi-leu Brasil.

Considerando a importância de o ANDES/-SN integrar-se com toda a sua força militante aeste movimento, propomos para a avaliação cole-tiva algumas tarefas: (1) participar da formação eestruturação do Conselho Político da AuditoriaCidadã da Dívida, cuja criação foi aprovada nes-te Seminário, com o objetivo de fortalecer a mo-bilização e a luta pelo cancelamento da dívida pú-

blica, externa e interna. (2) participardo debate sobre a conversão da dívi-da em educação a partir dos seguintesreferenciais: a) definição da posiçãoda classe trabalhadora brasileira fren-te ao suposto processo de negocia-ção. Trata-se aqui de assumir o lugarde credor ou devedor da dívida; b)análise das distinções e dos antago-nismos presentes nos projetos de so-ciedade e de educação defendidos pe-lo ANDES/SN e pelos proponentesda proposta de conversão.

Estes passos podem, a nosso ver,não só ajudar a desmistificar a pro-posta de conversão da dívida porinvestimento em educação, de-monstrando como esta propostaomite os interesses dos países cen-trais em garantir, ainda que parcial-mente, o pagamento de dívidas que,de fato, já foram pagas, sem rompercom a exploração e o controle eco-nômico e político que exercem nospaíses periféricos; como podem,também, auxiliar na soldagem deuma forte aliança dos setores autô-

O ANDES/SN reafirmou sua

posição histórica contrária ao

pagamento da dívida,analisando como essepagamento retira o

financiamento público para as áreassociais, especialmente

para a educaçãosuperior, substituído

pelas parcerias público-privadas, e,simultaneamente,

aprofunda a inserção capitalista

dependente do paísna economia

mundial.

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nomos e combativos daclasse trabalhadora, comvistas a somar esforçospela ruptura dos acor-dos firmados pelo go-verno Lula da Silva comos organismos interna-cionais, pela revogaçãode todas as reformasneoliberais realizadasnos últimos anos (pre-videnciária, tributária,da educação superior) eo abandono definitivoda consecução de futu-ros projetos de refor-mas neoliberais, como a

trabalhista e a sindical.O pano de fundo deste debate é o que dá ra-

zão de existência à dívida: a lógica do capital.Conferir a estas lutas um caráter claramenteanti-capitalista “é a única alternativa paraaqueles que pretendem contribuir para umaforma de sociabilidade autenticamente huma-na” (Tonet, 2001) 19.

NOTAS

1 Texto que subsidiou a intervenção do ANDES-SN/SR-RJ no Seminário Nacional sobre a Dívida Externa orga-nizado pelo Jubileu Sul/Brasil em 6/12/2005.2 Por dívida pública entendemos o montante de verbasolicitado pelos governos brasileiros sob a forma, tantode empréstimos externos, em dólares, como de emprésti-mos em moeda nacional. 3 Para aprofundar estas análises, consultar http://www.-inesc.org.br/pt/publicacoes/boletins/boletim.php?oid=OTwh4FqhcI2iVfPuAPS1l4ySXk2fw17a Acesso em de-zembro de 2005.4 Disponível em www.jubileubrasil.org.br Acesso emmaio de 2005.5 A Campanha Jubileu Brasil se constitui em um amploconjunto de sindicatos e movimentos sociais, organiza-ções populares e religiosas que atua na América Latina eCaribe, África, Ásia e Pacífico, organizando a luta contrao pagamento da dívida pública dos países periféricos, aALCA e a militarização. 6 Análises sobre a realização do Plebiscito estão disponí-

veis em http://www.jubileubrasil.org.br/dividas/contaja-foipaga.htm Acesso em Janeiro de 2005.7 Disponível em http://www.enf.ufmg.br/damar/Ar-quivos/Reforma_Univ/06.pdf Acesso em Março de 2005.8 Disponível em www.fazenda.gov.br Acesso em dezem-bro de 2005.9 Disponível em http://www.inesc.org.br/pt/publica-coes/boletins/boletim.php?oid=tAb210alPg2VNESVHcMgPCdkuNMxLG74 Acesso em Dezembro de 2005.10 Disponível em http://www.inesc.org.br/conteudo/-publicacoes/notas_tecnicas/UGrmAkG2MSCOcTzLnbALvxyweNFrUQOF/NT%20101.pdf Acesso em de-zembro de 2005.11Disponível em http://www.inesc.org.br/conteudo/pu-blicacoes/notas_tecnicas/UGrmAkG2MSCOcTzLnbALvxyweNFrUQOF/NT%20101.pdf Acesso em dezem-bro de 2005.12 Disponível em http://www.jubileubrasil.org.br/Acesso em dezembro de 2005.13 Para conhecer o documento na íntegra, acessar http://-portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/unescodividaporeeducacao.pdf Acesso em dezembro de 2005.14 As primeiras experiências de conversão de parte dadívida externa em investimentos educacionais (debt foreducation swap) foram realizadas na década de 1990, noâmbito das opções admitidas pelo Clube de Paris(UNESCO, 2003).15 Informações disponíveis em http://www.cnte.org.br/Acesso em dezembro de 2005.16 A listagem das entidades que compõem este comitêestá disponível em http://portal.mec.gov.br/index.-php?option=content&task=view&id=454&Itemid=625Acesso em dezembro de 2005.17 Disponível em http://portal.mec.gov.br/arquivos/-pdf/sinteseconversaodadivida.pdf Acesso em dezembrode 2005.18 Disponível em http://www.mct.gov.br/clima/brasil/-pdf/declara%C3%A7%C3%A3o_chefes_de_estado.pdfAcesso em dezembro de 2005.19 Disponível em http://geocities.com/ivotonet/arquiv-os/universidade_publica_- 0_sentido_da_nossa_luta.pdfAcesso em dezembro de 2005.

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Contribuições para o debate. 2003. Disponível em

A proposta de conversão da dívida

por investimento em educação omite

os interesses dospaíses centrais emgarantir, ainda que

parcialmente, opagamento de

dívidas que, de fato,já foram pagas.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 71

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 73

A educação superior em tempos de Economia Competitiva

Apartir de meados da década de 1970, o ca-pitalismo mundial passou a dar sinais crí-ticos de mudança. Para continuar sua re-

produção ampliada, o capitalismo precisavaempreender uma nova metamorfose, a qual de-nominaremos padrão de acumulação flexível 1.

O feiticeiro perdera o controle do feitiço: oEstado não possuía mais os instrumentos paraadministrar os caprichos da economia mundi-al. A alternativa proposta ao Estado do Bem-Estar Social foi o neoliberalismo: um Estadoforte em sua capacidade de romper com o po-der dos sindicatos e de controlar os gastos so-ciais, e supostamente fraco nas intervenções nomercado, que, mais uma vez, deveria ser “li-vre”. A estabilidade monetária, o controle dodéficit público e a “inserção internacionalcompetitiva” deveriam ser as novas metas su-premas dos governos. Com efeito, o capitalis-mo mundial foi rompendo paulatinamente ocasulo do Estado do Bem-Estar Social: Pino-chet (Chile, 1973), Thatcher (Inglaterra, 1979),Reagan (EUA, 1980), Kohl (Alemanha, 1982).

No Brasil, somente na década de 1980,completou-se definitivamente a industrializa-ção sob o padrão fordista de industrialização,praticamente quando esse já estava superadonos países centrais. Essa década também regis-trou, por um lado, a superação do regime mili-tar, a ampliação dos espaços democráticos, afundação de centrais sindicais, dos efetivosavanços sociais na Constituição de 1988. Poroutro lado, a elevação da inflação aliada à rup-tura do padrão de desenvolvimento brasileiro(nacional-desenvolvimentista) favoreceu a es-tagnação da esfera produtiva, ampliando a po-breza e a heterogeneidade da estrutura do mer-cado de trabalho (emprego e salários).

Com relação ao novo padrão industrial-tecnológico, pode-se estabelecer que a décadade 1990 é marcada pela chamada modernizaçãosistêmica2. De uma maneira geral, a moderniza-ção sistêmica pode ser caracterizada pela im-plantação articulada de novas tecnologias pro-dutivas e novas formas de gestão da força detrabalho, e também pela desindustrializaçãopor especialização regressiva3.

É nesse cenário social, político e econômico

Universidade shopping centerRonaldo Rosas Reis*

José Rodrigues**

*Doutor em Comunicação, professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense**Doutor em Educação, professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense

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Educação e Universidade

que os industriais reorganizarão o seu discursohegemônico para a construção do telos da Eco-nomia Competitiva 4. Assim, antes mesmo daeleição de Collor de Melo, a burguesia indus-trial, através de seu órgão de representação na-cional – a Confederação Nacional da Indústria(CNI) – elaborou o documento Competitivi-dade Industrial: uma estratégia para o Brasil 5.Nesse texto, a CNI afirma que é necessário“recriar a institucionalidade, incluindo o papeldo Estado”6. Em poucas palavras,o discurso da busca pela “compe-titividade internacional da indús-tria brasileira” passa a modelar aspropostas para a reestruturaçãodo Estado (stricto sensu) e tambémda educação.

Com efeito, a burguesia indus-trial entende que o sistema educa-cional brasileiro, considerado emseus três níveis, é um “ponto deestrangulamento” interno na bus-ca da competitividade. Para osempresários industriais, a perma-nência do analfabetismo, a baixacobertura da população escolari-zável (nível secundário e superi-or), e a reduzida integração universidade-em-presa são renitentes problemas a serem supe-rados. Para tal, os industriais propuseram seisações articuladas.

Em primeiro lugar, maior rigor na transfe-rência de recursos para as universidades pú-blicas, mediante a avaliação da qualidade. Emsegundo lugar, identificação dos centros de ex-celência7. Em terceiro lugar, criação de incenti-vos fiscais para promover a canalização de re-cursos privados para o sistema público de en-sino, desde que garantida a participação diretadas empresas na decisão sobre a destinaçãodesses recursos. Em quarto lugar, implementa-ção de programas especiais de alfabetização(língua portuguesa e aritmética) voltados paraa força de trabalho industrial efetivamente em-pregada8. Em quinto lugar, flexibilização no re-gime de dedicação exclusiva dos docentes-pes-

quisadores9. Finalmente, a CNI propõe açõespara uma maior integração entre as empresas eas universidades (ou centros de pesquisa) deforma a garantir benefícios para a indústria,através da criação, nos centros de pesquisa enas universidades, de conselhos definidores delinhas estratégicas de pesquisa com a partici-pação efetiva dos empresários10. Os empresá-rios devem, na visão da entidade, participardos órgãos governamentais responsáveis

pela formulação da política tec-nológica.

Além das duas últimas açõesanteriores, explicitamente volta-das aos interesses do empresaria-do, a Confederação indica tam-bém a necessidade de implantar,naqueles espaços científicos, uma“atitude empresarial” com a fina-lidade de redefinir as suas funçõese objetivos, no sentido de incluir a“venda de serviços” e a “desburo-cratização das contratações deserviços externos”11.

Enfim, a CNI propõe, desde1988, a valorização da educação,mas uma valorização interessada,

como diria Antonio Gramsci. Isto é, a burgue-sia industrial pretende valorizar a educação e aciência que atendam aos interesses do parqueindustrial, em particular, e aos interesses docapital, em geral. Em outras palavras, a edu-cação que convém à burguesia é aquela deter-minada pela busca de uma Economia Compe-titiva.

Além do plano discursivo da burguesia in-dustrial, a trajetória e a atual perspectiva daeducação superior brasileira tem, também, seadequado ao quadro mais geral das transfor-mações sócio-econômicas do capitalismo tar-dio. As instituições de educação superior (IES)- privadas e públicas12 - têm buscado se moldarao telos da Economia Competitiva (Cf. Silva Jr& Sguissardi, 2001, p. 269).

Nesse sentido, pode ser detectada uma ní-tida tendência das IES privadas de, por um la-

A burguesia industrial entende

que o sistema educacionalbrasileiro,

considerado em seus três níveis, é um “ponto de

estrangulamento”interno na busca da

competitividade.

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do, se transformarem em efetivasempresas de ensino, e, por outrolado, de operarem o pensamentopedagógico empresarial no sentidode (con)formar uma força de tra-balho de nível superior adequadaao telos da Economia Competitiva.

Ao mesmo tempo, a esfera pú-blica vem sofrendo o mais drásticoconstrangimento ao crescimentoda história brasileira13. Apesar dis-so, a mais remota possibilidade decontrole estatal sobre a educaçãosuperior privada ou mesmo a co-brança regular de impostos e tri-butos parece ameaçar a liberdadede exploração do mercado educa-cional superior em expansão, gerando enérgi-cos protestos dos empresários da educação su-perior14.

Nesse contexto, a qualificação do corpo do-cente e a atividade de pesquisa - até agora con-siderada central na instituição universitária –acabam por serem relegadas a meras formalida-des, quando não descartadas abertamente. Emoutras palavras, a “identidade mesma da insti-tuição universitária” está em processo de rápidamutação levando as universidades a se conver-terem em empresas prestadoras de serviço.

Um novo perfil se desenharia para as IESprivadas. As instituições isoladas ou integradasdedicar-se-iam tão somente à venda de ensinode graduação; os centros universitários e asuniversidades tenderiam a acentuar o seu cará-ter local/regional de prestação de serviços va-gamente associados à idéia de pesquisa aplica-da e/ou consultoria, e, mesmo assim, se lhesfossem garantidas verbas públicas.

Enfim, a nova configuração do mercadode serviços educacionais e a emergência deuma “nova burguesia de serviços”15, com al-ta dose de competitividade, vêm produzindonos gestores do setor privado a busca perma-nente por métodos e formas gerenciais cor-rentes no mundo empresarial, ao mesmotempo que lutam pela manutenção do finan-

ciamento público (direto e indi-reto). Em poucas palavras, a ló-gica acadêmica de gestão univer-sitária está sendo subsumida à te-leologia do capital, através dagestão empresarial. Se estas ten-dências se mantiverem, despon-ta no horizonte da EducaçãoSuperior brasileira a Universi-dade Competitiva.

A universidade vai ao “shopping center”

Já em sua terceira versão, divul-gada em 29 de julho de 2005, o an-teprojeto de Lei Orgânica da Edu-cação Superior pouco se modi-

ficou desde que o Ministério da Educação re-cebeu do Grupo de Trabalho Interministerial,em fins de 2003, o documento base com idéiaspara enfrentar a crise atual das universidadesfederais e orientar o processo de reforma dauniversidade brasileira16.

Criado por decreto de 20 de outubro de2003, o GTI assinala em seu documento que “oBrasil precisa de uma universidade que nãoapenas vença sua crise financeira, com a ajudade medidas emergenciais, e faça pequenos ajus-tes no seu desenho [...como] precisa de uma re-volução”. Desde então, no entanto, a única in-tenção anunciada foi a criação de vagas públi-cas em universidades privadas, através do cha-mado Pacto de Educação Superior para o De-senvolvimento Inclusivo (PROUNI).

A despeito do ‘apelo revolucionário’ suge-rido pelo documento do GTI, a política edu-cacional perseguida pelo atual governo tem seguiado pelo mesmo telos competitivista quelevou o Estado brasileiro, no curso de umadécada, a privatizar empresas estatais como aCompanhia Vale do Rio Doce e a CompanhiaSiderúrgica Nacional, além da Rede Ferroviá-ria Federal etc.

Quanto à educação superior, em linhas ge-rais, o atual governo aparenta conservar a ava-liação do anterior de que a superação da crise

A “identidade mesmada instituição

universitária” estáem processo de rápida mutação

levando as universidades a seconverterem em

empresas prestadoras de

serviço.

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da universidade brasileira deve ser buscada nomercado. Exemplo disso é a acentuada flexibi-lização dos mecanismos de captação de recur-sos financeiros no mercado ocorrida nas uni-versidades públicas, sobretudo na forma daimplementação de cursos de pós-graduação(MBAs e outros), regiamente cobrados. Entre-tanto, se a prática dos cursos pagos nas univer-sidades públicas ainda é capaz de chocar parteda sociedade pelos óbvios sinais contraditóriosque eles emitem, o mesmo nãoocorre com um fenômeno que hámenos de uma década tem se in-tensificado nos principais centrosurbanos do país. Trata-se da re-configuração do espaço físico dasuniversidades que resumimos numduplo movimento: a universidadevai ao shopping center e o shoppingcenter ingressa no campus univer-sitário.

Um breve olhar sobre os maio-res shoppings centers do Rio de Ja-neiro é suficiente para observar ocrescimento da tendência de incor-poração de estabelecimentos edu-cacionais privados de todos os ní-veis ao tradicional mix de lojas. Defato, diversos indicadores sócio-econômicos têm revelado que a segmentaçãode mercado é uma forte característica do atualestágio do capitalismo, sendo a juventude umdos segmentos para onde mais vem se expan-dindo o consumo. A maciça presença de jovensnos corredores dos shopping centers, em buscade consumo, lazer e também trabalho, atrai asempresas de educação superior, que têm ocu-pado o espaço do shopping center como verda-deiras “lojas-âncoras”.

No sentido inverso, porém de forma análo-ga, os shopping centers têm adentrado ao cam-pus universitário. Além das tradicionais livra-rias e lanchonetes, os campi oferecem postosde atendimento bancário, inclusive banco 24h,quiosques ofertando cartões de crédito, agên-cias de veículos (incluindo test drive de novos

modelos)17, salões de beleza, comércio deroupa e acessórios, camelódromos etc. Aprópria lógica de instalação, divulgação,funcionamento e financiamento dos cursosuniversitários (graduação e especialização,principalmente), cada vez mais rapidamentebuscam se amoldar à lógica do mercado,flexibilizando e invertendo, nessa ordem, osentido da moderna compreensão de demandasocial. Considerando a atual velocidade de ex-

pansão das lojas e outros estabele-cimentos comerciais e de serviçono interior das universidades pú-blicas, é fácil deduzir que, em bre-ve, os atuais campi subsumirão in-tegralmente à identidade dos shop-pings centers.

Finalmente, há que se conside-rar ainda nesse contexto a questãodo modelo de utilização dos recur-sos da internet adotado pelas uni-versidades públicas, de resto seme-lhante ao modelo adotado por em-presas comerciais e de serviços emseus “sites-âncoras”

28.

É sabido que a internet, comoprincipal ferramenta da ‘revoluçãodigital’, impôs uma nova dinâmicaàs relações de produção na univer-

sidade. De um lado, com a institucionaliza-ção

19do aparato midiático digital, a academia

universalizou a produção científica e cultural,abrindo-se para um tipo de raciocínio ‘integra-do’

20, como os de Pierre Lévy

21e também de

Manuel Castells22, a pontificar de forma oti-

mista sobre os efeitos ‘democráticos’, ‘trans-parentes’ e ‘inclusivos’ alcançados pela expan-são do atual aparato tecnológico de informa-ção e comunicação

23. De outro lado, na medida

em que o modelo adotado pelas universidadesse baseia, fundamentalmente, na estratégia deoferta de serviços/captação de recursos, o queneles se observa é um mercado produtor, me-diante o qual a universidade, a unidade e o de-partamento de ensino, o núcleo de pesquisa e odocente/pesquisador se oferecem ao consumo

Com a atual velocidade de

expansão das lojas e outros

estabelecimentoscomerciais e de

serviço no interiordas universidadespúblicas, é fácil

deduzir que os atuaiscampi subsumirãointegralmente à identidade dos

shoppings centers.

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conspícuo do conhecimento pro-duzido sob a forma de mercado-ria24. Nesse sentido, percebe-seaqui a característica essencial da‘revolução digital’, cuja gênese éconstituinte do padrão de acumu-lação flexível, que é a de asseguraros interesses capitalistas em jogo.Portanto, não obstante as visõesotimistas do tipo ‘integrado’, doponto de vista estrutural os efeitospositivos da revolução digital ‘des-mancham-se no ar’ quando observa-da “a natureza reacionária da trans-formação social em curso”

25.

ConclusãoPara concluir este breve ensaio

falta responder em que medida ofenômeno analisado aqui tem sidorecebido com indiferença e até uma certa natu-ralidade por professores e pesquisadores,contribuindo decisivamente para o declínio daeducação superior pública.

Uma primeira resposta pode ser encontradano acúmulo de cerca de três décadas de inten-sas campanhas de convencimento da noção deequivalência entre consumo e cidadania. Talnoção, recorrente no discurso pós-moderno denatureza conformista, tem por finalidade tor-nar palatável o culto ao “deus mercado”. Nes-se sentido, a referida noção é operada sublimi-narmente em duas frentes publicitárias: masca-rando as desigualdades sociais e, no limite, eli-dindo artificialmente as diferenças de classe. Aincrível força de penetração dessa noção al-cançou, nos últimos anos, o meio universitárioe encontrou no mesmo segmento de acadêmi-cos que celebra o advento dos MBAs, elemen-tos para se sustentar politicamente. Conside-rando a compra como um ato de prazer, essesacadêmicos sentem-se à vontade para justificara “relevância social” do shopping center na uni-versidade, na medida em que “atendem às ne-cessidades humanas” da comunidade univer-sitária e da população do entorno dos campi.

Da mesma forma, no vácuo dodesmantelamento físico dos campi,a emergência de discursos otimis-tas e francamente favoráveis à vir-tualização das relações mascarama falta de investimentos governa-mentais na universidade pública,decorrendo daí uma forçosa natu-ralização do ideário consumista-cidadão, deslocando para um pla-no secundário, ou mesmo enfra-quecendo, o sentido geral da lutapor verbas para manter a univer-sidade pública viva.

Finalmente, não estamos muitodistantes do dia em que professo-res, estudantes e funcionários dei-xarão de lado suas reivindicaçõeshistóricas para clamar, por “e-mail”, pelo aroma “McWorld”.

NOTAS

1 Para uma discussão completa, ver Harvey (1992).2 Cf. Leite (1994).3 Para Armando Boito Jr. (1999, p. 45 passim), como avanço do neoliberalismo, na América Latina, a“indústria perde importância no conjunto da eco-nomia e muda de perfil, perdendo em sofisticação eintegração” já que passa a “especializar-se” no pro-cessamento de recursos naturais exportáveis, ou embens de uso de baixo valor agregado.4 Para uma discussão completa sobre a metamor-fose teleológica do discurso da burguesia industrial,ver Rodrigues (1998).5 CNI. Competitividade industrial: uma visão es-tratégica para o Brasil. Rio de Janeiro: CNI, 1988.6 Idem, ibidem, p.11.7 Cabe ressaltar que, a partir de 1996, o MEC ins-taurou o processo de avaliação dos cursos de gra-duação, cuja face mais visível, e criticável, era a doExame Nacional de Cursos (provão). Além disso,naquele ano, o MCT passou a implementar o Pro-grama de Apoio a Núcleos de Excelência (PRO-NEX), projetado ainda durante o governo Collorde Melo, hoje denominado Institutos do Milênio.

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8 O governo Lula lançou o projeto Escola de Fá-brica que “pretende possibilitar a inclusão social dejovens de baixa renda por meio da formação profis-sional em Unidades Formadoras no próprio ambi-ente de trabalho, aproximando o setor produtivodos processos educativos e promovendo maior res-ponsabilidade social das empresas” (Brasil, MEC,2004).9 Em 5 de novembro de 2002, Fernando HenriqueCardoso enviou para o Congresso Nacional o pro-jeto de “Lei de Inovação”, que transforma profun-damente a relação universidade-empresa. Em de-zembro de 2004, Luis Inácio Lula da Silva sancio-nou a lei 10.973, que, grosso modo, incentiva “par-cerias público-privadas” no campo do desenvolvi-mento científico e tecnológico.10 Provavelmente, é nessa direção que caminha aproposta de criação, nas universidades, do Conse-lho Social de Desenvolvimento (ou Conselho Co-munitário Social, na segunda versão) previsto noatual anteprojeto de lei da educação superior (Cf.Brasil, MEC, 2005).11 CNI, idem, p. 21.12 Pode-se facilmente verificar, pela observação dejornais de grande circulação, notadamente nos finsde semana, a farta e variada oferta de cursos pagosem universidades públicas, eufemisticamente cha-madas de “atividades autofinanciadas”. Em que pe-se o grau de importância da privatização branca queestá ocorrendo nas IES públicas, dada a natureza eo enfoque da pesquisa ora proposta, não aborda-remos - neste artigo - diretamente o setor públicoda Educação superior brasileira.13 Atualmente, cerca de 71% das matrículas emcursos de graduação são em IES privadas. 14 Vide as reações do Fórum Nacional da Livre Ini-ciativa na Educação (FÓRUM, 2005).15 Para uma análise completa sobre os novos mer-cados em tempos neoliberais, ver Boito Jr. (1999),particularmente, pp. 67 e 70. Resta saber se a dinâ-mica capitalista no Brasil permitirá, a médio e lon-go prazo, a acumulação de capitais no setor educa-cional, ou se este será sacrificado frente às deman-das do capital financeiro, aliás, grande vitorioso dapolítica econômica neoliberal. 16 Para uma análise específica sobre a reforma da

educação superior, ver Rodrigues (2005).17 Cabe mencionar, a título de exemplo, a instala-ção de uma agência móvel de uma concessionária daVolkswagen em Niterói, num campus da Universi-dade Federal Fluminense, em 2002, para o lança-mento do modelo Fox. Autorizada pela reitoria, aagência ocupou o campus durante cerca de 60 diasoferecendo test drive a eventuais interessados.18 Por ‘sites-âncoras’ referimo-nos tanto aos cha-mados portais dos grandes provedores (UOL, IG,Globo etc.), quanto às páginas principais dos sitesde empresas industriais, comerciais e de serviços.19 Cabe sublinhar que atualmente as universidadespúblicas estão obrigadas pelo MEC a manterem umsite padronizado. Recentemente, a CAPES subme-teu aos Programas de Pós-Graduação um modelode página a ser adotado sob a curiosa forma de“adesão induzida”.20 Referimo-nos ao termo consagrado por Umber-to Eco (s/d.) para denominar um tipo de pensamen-to próximo à visão gramsciniana de luta hegemô-nica. Nesse sentido, o pensamento “integrado” ten-deria a absorver os elementos negativos do sistemavisando transformá-los em uma positividade refor-mada. Em oposição ao tipo “integrado”, Eco deno-mina de “apocalíptico” o pensamento revolucioná-rio. 21 Lévy (2003, pp. 367-384).22 Castells (2003, pp. 255-287).23 De acordo com os autores citados, o caráter pú-blico, inclusivo, transparente e universal das novasmídias interativas e o crescimento das comunidadesvirtuais, conferem às tecnologias de informação ecomunicação (TIC) o poder de renovarem profun-damente as condições da vida pública no sentido deuma liberdade e de uma responsabilidade maior doscidadãos. Para eles, esta seria, desde já, a possibili-dade de existência de uma “outra comunicação”.Isto é, uma comunicação fundamentalmente demo-crática. Cf. Lévy (idem, p. 367) e também Castells(idem, especialmente pp. 276-280).24 A referência à lógica cultural do capitalismo tar-dio descrita e analisada por Jameson (1996) é aquievidente. Em linhas gerais, trata-se do processo deconsumo da própria produção de mercadoria (o co-nhecimento). Cf. Jameson (1996, p. 13-4).

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25 A contradição se torna mais evidente na medidaem que se observa o caráter essencial do telos datransformação operada pelas TIC. Ou seja, seu ob-jetivo é restabelecer [e reforçar] “o poder e a rendadas classes proprietárias dos meios de produção”,assumindo, portanto, ideológica e estrategicamentea finalidade de ampliar a ilusão do espectro da de-mocracia burguesa mediante falsas promessas de li-berdade, transparência e inclusão social.

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Aeducação tem sido considerada pelos or-ganismos internacionais uma ferramentapoderosa para diminuir a pobreza. O

Banco Mundial tem demonstrado esse pensa-mento de forma inequívoca. As Conferênciasde Jomtiem (1990) e de Dakar (2000) deixaramclara essa intenção, na medida em que colocamque um grau maior de educação pode ajudarno alcance de algumas metas: erradicação dapobreza, já citada, redução da mortalidade in-fantil, combate a doenças, como a AIDS.

Na direção das prioridades contidas nosdocumentos dessas conferências, várias açõesforam desenvolvidas. Mas é necessário exami-nar as intenções implícitas em tais recomenda-ções, uma vez que partiram de organismos quehistoricamente têm explorado os países em de-senvolvimento e os periféricos.

No mesmo período em que essas recomen-dações eram feitas, ocorria uma crise no Estadocapitalista, o que foi considerado por alguns au-tores (BRESSER PEREIRA, 1997, CANA-BRAVA, 2002) uma crise fiscal motivada peloônus do estado benfeitor, que teve vida longa naEuropa ao final da II Guerra Mundial.

A lógica empunhada é que a crise fiscal le-vou a uma reestruturação do Estado, passandoeste a exercer menos funções, delegando aomercado as atribuições que antes lhe competia,

tais como a educação, saúde, habitação, trans-porte, seguridade social. É nessa compreensãode Estado neoliberal, necessário à globalizaçãoda economia e frente aos desafios de desregula-mentação do comércio para ampliar o merca-do, que a educação adquire um papel funda-mental tanto para contribuir para o consenso,quanto para preparar a mão-de-obra para essenovo cenário de globalização, no qual as novastecnologias ocupam um papel de destaque.

Para tanto foram necessárias que reformasestruturais ocorressem a fim de conformar oEstado à nova etapa do capital mundializado,permitindo assim uma adequação às exigênciasdos donos do poder, da ocidentalização domundo, da hegemonia da “grande nação” ame-ricana, agora, após a Guerra Fria, reinando ab-soluta.

Marilena Chauí (1999) analisou de formamuito interessante a influência da reforma doEstado na educação.

Reforma tem um pressuposto ideológicobásico: o mercado é portador de racionalida-de sociopolítica e agente principal do bem-estar da República. Esse pressuposto leva acolocar direitos sociais (como a saúde, a edu-cação e a cultura) no setor de serviços defini-dos pelo mercado. Dessa maneira, a Reformaencolhe o espaço público democrático dos

A educação na contemporaneidade:mercantilização e privatização?

Olgaíses Maués

Doutora em Educação, professora da Universidade Federal do Pará

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direitos e amplia o espaço privado não só alionde isso seria previsível – nas atividades li-gadas à produção econômica –, mas tambémonde não é admissível – no campo dos direi-tos sociais conquistados.

As reformas na educação que pontuaram epontuam o mundo civilizado não poderiam fu-gir da intencionalidade do novo padrão tecno-lógico e de suas implicações. As reformas queestão sendo implementadas podem ser analisa-das como arranjos que facilitam um reordena-mento social e político a partir dos novos pa-drões de produção. Assim, as reformas podemser vistas como modos de regulação, com-preendidas no espírito da Escola Francesa deRegulação1, que as entendem como “o conjun-to de mecanismos e de instituições que permi-tem a acumulação capitalista de funcionar du-rante os períodos relativamente estáveis”.(AGLIETTA, 1997). Esse autor analisa a crisedo paradigma existente (no caso, o fordismo)como uma crise do modo de regulação, de ca-ráter estrutural, uma crise do regime de acu-mulação intensiva, que compromete a elevaçãodas taxas de mais-valia absoluta e que pararestabelecer esse padrão precisam ser introdu-zidas mudanças, que em geralocorrem a partir de normas, há-bitos, leis, redes de regulamenta-ção, que possam garantir a re-produção do capital.

As Conferências de Educaçãojá mencionadas (Jomtiem e Da-kar), além de outras ações comoaquelas promovidas pela Organi-zação de Cooperação e Desenvol-vimento Econômico (OCDE), pe-la Organização das Nações Uni-das (ONU) e suas congêneres -UNESCO, UNICEF, trouxerama necessidade de colocar a educa-ção a serviço do capital, na sua no-va etapa de mundialização. Orga-nismos internacionais, como oBanco Mundial e o Fundo Mone-tário Internacional, passaram a

colocar a educação nas condicionalidades paraos empréstimos e pacotes de ajuda para odesenvolvimento (assim considerado por eles).O discurso vigente era que se deveria diminuira distância entre reforma econômica e reformaeducativa, numa clara demonstração da inten-ção em colocar a educação a serviço dos inte-resses econômicos.

Essa é a ótica através da qual a educação étratada: uma ferramenta fundamental para anova etapa do capitalismo. Para a consecuçãodessa educação para o capital, a reforma do Es-tado prevê novos marcos regulatórios, incluin-do a centralização das decisões (currículos,avaliação) e a descentralização das ações. Asreformas na educação passam a ocorrer na ló-gica que norteou a reforma do Estado: con-cepção de uma gerência empresarial que leva àeficiência e a avaliação de resultados, sem con-siderar o processo.

As reformas na educação brasileiraAs últimas décadas trouxeram inúmeras

mudanças na educação brasileira. As políticaseducacionais “inspiradas” pelo Banco Mundial

deslancharam reformas em todosos níveis e modalidades de ensino.

A Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional sofreu umaprofunda influência do documento“Priorités et Stratégies pour l’Édu-cation: une étude de la Banque Mon-diale” (Banque Mondiale, 1995),assim como as medidas tomadassobre a educação superior, foramdeterminadas pela posição do mes-mo organismo internacional, pormeio de vários documentos, dentreeles, “La enseñanza superior. Laslecciones derivadas de la experien-cia” (Banco Mundial, 1994).

Em relação à educação básicapode-se observar, seguindo os pre-ceitos enunciados no documentoPriorités, a relação direta entreeducação, desenvolvimento e cres-

Educação e Universidade

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

Organismos internacionais, como o Banco

Mundial e o FundoMonetário

Internacional, passaram a

colocar a educação nas

condicionalidadespara os empréstimos

e pacotes de ajuda para o

desenvolvimento.

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cimento econômico. São recomendadas seismedidas consideradas essenciais: 1) priorizar oensino fundamental; 2) atentar para os resulta-dos, dando pouca atenção ao processo; 3) cen-trar os gastos na educação fundamental, maiseficaz em termos de retorno; 4) dar ênfase àequidade, no lugar da igualdade; 5) estimular aparticipação das famílias; 6) promover a des-centralização.

É dentro desses “preceitos” que são realiza-das as reformas curriculares, definidos os Pa-râmetros Curriculares Nacionais (PCNs), cri-ados os ciclos de ensino e que a preocupaçãocom a formação do professor toma proporçõesde prioridade. A formação passa a ser funda-mental, na medida em que os profissionais deensino devem se adequar aos no-vos paradigmas educacionais. Aimplantação do novo receituário,que coloca a educação a serviçodo novo estágio do capital, depen-de muito da ação pedagógica exer-cida por esse profissional, aquiloque Bourdieu (1970) chama deviolência simbólica.

Essas reformas têm caráter in-ternacional (MAUÉS, 2003), dan-do ênfase à pratica em detrimentoda teoria, colocando as competên-cias (saber-fazer, aprender a apren-der) como o “eixo nuclear” da for-mação, utilizando a educação adistância como ferramenta prefe-rencial da formação inicial e fazendo a “uni-versitarização” nos institutos superiores deeducação e nos cursos normais superiores, istoé, em instituições que não têm, na sua gênese,o compromisso da indissociabilidade do en-sino, da pesquisa e da extensão.

Na lógica da eficiência, de resultados e daimplantação dos princípios da gerência em-presarial nas escolas são criados programas co-mo “dinheiro direto na escola”, “fundescola”,“plano de desenvolvimento da escola”, “pro-jeto político-pedagógico”, eleição para direto-ria e outras medidas tidas como democratizan-

tes. Essas ações, na realidade, encobrem a des-responsabilização do governo também comesse nível de ensino e reforçam a concepção degestão educacional enquanto forma burocráti-ca de controle das atividades que se passam nointerior da escola.

Já o documento “La enseñanza superior.Las lecciones derivadas de la experiencia” é abase para as medidas pontuais que foram to-madas ao longo dos anos 90, no governo Car-doso (1995-2002), e que estão sendo aprofun-dadas no governo atual. O documento apontaquatro estratégias de reforma: 1) fomentarmaior diferenciação das instituições, incluindoo desenvolvimento das instituições privadas; 2)criar incentivos para que as instituições públi-

cas diversifiquem as fontes de fi-nanciamento, por exemplo, com aparticipação dos estudantes no cus-teio e com a estreita vinculação en-tre o financiamento fiscal e os re-sultados; 3) redefinir a função dogoverno no ensino superior; 4)adotar políticas que estejam desti-nadas a outorgar prioridade aosobjetivos de qualidade e equidade.(tradução minha).

A partir desses “preceitos” fo-ram definidas algumas ações, taiscomo: escolha de dirigentes por umconselho superior composto por70% de docentes, definição das Di-retrizes Curriculares para todos os

cursos2, Avaliação por resultados, AvaliaçãoInstitucional - substituída pelo Sistema Nacio-nal de Avaliação da Educação Superior (SI-NAES), mudando o nome, mas permanecendoa mesma lógica produtivista e ranqueadora -,expansão absurda de instituições privadas3,contratação de professores temporários, naproporção em que diminuiu a abertura de va-gas para concurso de professores efetivos; di-minuição do tempo para cursos de mestrado,diferenciação das instituições (Decreto 3.860/-01), constituindo-se em universidades, centrosuniversitários e faculdades/institutos, com

As reformas têmcaráter internacional,

dando ênfase à pratica em

detrimento da teoria,colocando ascompetências (saber-fazer,

aprender a aprender)como o “eixonuclear” da formação.

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abrangências e funções diferenciadas, prolife-ração de cursos de especialização pagos. Essassão algumas das medidas implementadas naeducação superior, seguindo as orientações doBanco Mundial.

O financiamento sofreu um revés. Em rela-ção ao ensino fundamental foi criado poremenda constitucional (EC 14/97) o Fundo deManutenção e Desenvolvimento do EnsinoFundamental e Valorização do Magistério(FUNDEF), lei 9.424/96, que não injetou re-cursos novos na educação, simplesmente alte-rou a forma de gerenciamento desses recursos,estipulando o custo/aluno, devendo o governofederal suplementar aqueles estados que nãopudessem fazer face a esse teto, coisa que nãoocorreu. O valor/aluno/ano, estipulado pelopróprio governo federal e que serviria de basepara o salário dos professores, não foi cumpri-do por nenhum governo, de FHC a Lula daSilva (ARELARO, 2005). Atualmente, discu-te-se o FUNDEF. O Ministro da Educaçãoencaminhou ao Congresso Nacional um Pro-jeto de Emenda Constitucional (PEC 415/-2005), mas com as mesmas orientações do seuantecessor. Trata-se apenas de uma forma degerir os recursos sem aumentá-los e mesmo as-sim excluindo uma parte da educação básicareferente às creches.

No tocante à educação superior o financia-mento diminuiu, na medida em que foi apro-vada a Desvinculação da Receita da União(DRU)4, cujo prazo vencia em 2003, mas quefoi prorrogada pelo governo, por meio de Emen-da Constitucional (EC 42/2003), até 2007. ADRU é a desvinculação de órgão, fundo oudespesa de 20% da arrecadação de impostos econtribuições sociais da União, já instituídosou que vierem a ser criados, permitindo ao go-verno que gaste livremente esse recurso. Dessaforma, os 18% constitucionalmente definidos,como sendo de responsabilidade da União pa-ra com a educação, passam a representar 14,6%.

Um outro aspecto a destacar, em relação aofinanciamento da educação superior, é o re-passe de recursos públicos para a iniciativa pri-

vada. Isso tem se caracterizado tanto no Fun-do de Financiamento ao Estudante do EnsinoSuperior (FIES)5, cujo orçamento para 2004 foide R$ 872 milhões (ANUP, 2004) para atender52 mil estudantes, quanto no ProUni6 (Progra-ma Universidade para Todos) que, por meio derenúncia fiscal de alguns tributos7, o que cor-responderia a cerca de R$ 2,3 bilhões de reais,ofereceria bolsas de estudos para alunos caren-tes, tendo em 2004 atendido cerca de 112 milestudantes. (MEC, 2005).

Davies (2005) faz uma análise dessas me-didas e afirma que:

São muitas as debilidades do Prouni. A maisgrave, sobretudo num governo que alegavadefender a escola pública, é que representa adesresponsabilização do governo federalcom a expansão do ensino superior público eo incentivo à iniciativa privada, que contou econta ainda com muitos estímulos por partedo Poder dito Público. Outra é que parte dopressuposto de que o estudante carente po-de ficar numa IES de pior qualidade, comoé o caso das privadas de modo geral. Emoutras palavras, o estudante pobre deve secontentar com uma IES pobre [...] (DAVIES,2005, p. 93).

Essas medidas sinalizam na direção do for-talecimento das instituições privadas em de-trimento das públicas. A desobrigação do Es-tado, em relação ao ensino superior vem seaprofundando no governo Lula da Silva, quefez uma opção preferencial pelo pagamento dadívida externa, por meio do superávit primárioque já atinge 6,1% do PIB. Um exemplo clarodisso é a diminuição dos recursos para esse ní-vel de ensino, cujo orçamento da União para2004 reduziu em 17% as verbas para o funcio-namento dos cursos de graduação das univer-sidades federais, em relação aos recursos in-vestidos em 2003, que já não eram suficientes(ADUFRJ, 2004).

Segundo Assis (2005), a aprovação de umdispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentária(LDO), que implementa o déficit nominal ze-ro, implica em maior redução dos gastos públi-

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cos não financeiros da União. Em 2006, o go-verno só poderá gastar em despesas correntesaté 17% do PIB.

Quando se fala em reduzir gastos públicosnão financeiros, estamos falando em cortarna saúde, na educação, no saneamento bá-sico, na segurança, na defesa, na habitação,no controle da aftosa. O limite de 17% doPIB praticamente implica o congelamentode salários e de contratação denovos funcionários públicosem 2006. O setor público so-frerá uma nova rodada de su-cateamento. Enquanto isso, aimprensa cooptada exulta como superávit primário recordede 6,1% do PIB: o resultadoacumulado até setembro, deR$ 86,5 bilhões, já supera ameta para o ano inteiro, de R$82,7 bilhões. Isso é impostoarrancado da sociedade, inclu-sive dos pobres. Para quê?(ASSIS, 2005, p.1)

A reforma da educação superior, já na terceiraversão, aprofunda as questões analisadas anteri-ormente, sobretudo a ênfase no setor privado. Areforma já está em curso por meio da Lei doSINAES (10.861/04), da Inovação Tecnológica(10.973/04), do ProUni (11.096/05). A lógicadessas reformas continua a mesma: a desrespon-sabilização do Estado com a educação.

Privatização e mercantilização da educaçãoO mundo globalizado-ocidental tem avan-

çado no sentido de conseguir o controle ab-soluto do planeta, utilizando o mercado comoo lócus fundamental das decisões. A hegemoniado chamado Império se fortaleceu após aGuerra Fria, juntamente com a centralidade docapitalismo, tendo o neoliberalismo comodoutrina econômica. Os Estados Unidos pas-saram a ser, de fato, o grande epicentro das de-cisões mundiais.

Alguns dados ajudam a compreender esse fato. Boron (2004) informa que os Estados Uni-

dos são responsáveis pela metade dos gastosmundiais em armamentos e mantêm bases emissões de treinamento militar em 121 paísesdo planeta. Além disso, continua o autor,48% das maiores empresas transnacionaistêm sua base e estão radicadas naquele país.Das 50 maiores empresas do mundo, 35 sãode origem norte-americana. Esse país é o cen-tro do sistema financeiro, além de ser seu

principal operador político noterreno internacional, o que é de-monstrado pela força que o BancoCentral americano e Wall Streetexercem sobre os mercados finan-ceiros internacionais e sobre asinstituições financeiras - como oFMI, o BM e a OMC -, “na prá-tica simples agências do governoestadunidense”.

Chomsky (2004) faz uma aná-lise interessante sobre essa domi-nação norte-americana, o que eledenomina de “uma nova doutri-na”. O autor enumera alguns fatos

que estão mudando a face do mundo, como aimportância do anúncio da Doutrina deSegurança Nacional de G.W. Bush, que searvora “senhor” do mundo, decidindo que temo direito soberano de usar a força militar,sempre que os EEUU se sentirem ameaçados.É a denominada “Guerra Preventiva”, em no-me da qual o Iraque foi invadido. As famosas“armas de destruição em massa”, nunca en-contradas, foram o pretexto para a invasão quena realidade representa a intenção explícitadaquele país em dominar o petróleo do Ori-ente Médio, aumentando assim seu domíniosobre o mundo.

Essa hegemonia não está descolada da am-pliação de mercados que tem na OrganizaçãoMundial do Comércio (OMC), por meio doAcordo Geral sobre Comércio de Serviços(AGCS ou GATS)8 um grande aliado. O GATSé um acordo global que permite às empresastransnacionais apoderarem-se dos serviços pú-blicos de todo o mundo, desmantelando as

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O mundo globalizado-ocidental

tem avançado nosentido de conseguiro controle absoluto

do planeta, utilizando

o mercado como olócus fundamental

das decisões.

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barreiras estatais, regulamentandoo comércio internacional das ati-vidades não industriais e não agrí-colas. Na medida em que a educa-ção é transformada em serviço, nãosó qualquer país poderá desenvol-ver essa atividade no mundo afora,como a OMC poderá impor san-ções àqueles países que não estive-rem obedecendo a suas normas deliberalização. O acordo (GATS)traz explícito no artigo VI a per-missão para que a OMC interve-nha no interior de fronteiras nacio-nais, com o objetivo de eliminarqualquer obstáculo que possa afe-tar o comércio de serviços. OGATS é mais que um acordo co-mercial. É um instrumento jurí-dico que elimina os obstáculos aocomércio e aos investimentos e, ao mesmotempo, encoraja os governos para que colo-quem as normas nacionais sobre a via da priva-tização, da desregulamentação e da desrespon-sabilização dos serviços públicos.

A educação é um dos serviços9 que deveráser centralizado pela OMC, isto é, que deveráobedecer às regras de livre comércio. Afinal,esse “serviço” é um imenso filão para o merca-do, representando hoje cerca de dois trilhõesde dólares. (ROSA, 2003)

Não é por acaso que a proposta de ReformaUniversitária abre, pela primeira vez no Brasil,a possibilidade da entrada do capital estrangei-ro no setor, na proporção de até 30%. Nessamesma proposta para a educação superior, asentidades particulares poderão reconhecer osdiplomas de cursos promovidos por institui-ções estrangeiras10, além da normalização daeducação a distância.

Esse conjunto de fatos (GATS, dispositivosda Reforma Universitária, Educação a Distân-cia) caracteriza, na minha avaliação, a neces-sidade do Brasil se adaptar às exigências domercado, colocando a educação no formatoapropriado para tal

11. Em outras palavras, é

uma maneira do imperialismo sereforçar via comércio internacio-nal, e assim a educação passa a serum serviço que se vende e compra.

A intencionalidade que está nocentro desse acordo, transforman-do a educação em um mero servi-ço, tem levantado algumas ques-tões em função das modificaçõesque a oferta da educação vem so-frendo, levando os responsáveis aum processo de privatização e demercantilização da educação. Pri-meiramente é necessário que sefaça a diferença entre essas duasexpressões.

Hirtt (2004) faz uma diferen-ciação dos termos de forma muitoclara. Para o autor, a privatizaçãocorresponde à transferência dos

serviços públicos para o setor privado. A mer-cantilização seria a adaptação dos sistemaseducacionais às exigências do mundo econô-mico, podendo tomar, pelo menos, três for-mas: 1) adaptação dos programas, das estru-turas, das práticas pedagógicas e dos métodosde gestão do sistema de ensino às condições domercado; 2) utilização do ensino com a finali-dade de estimular certos mercados, em parti-cular aqueles associados às tecnologias de in-formação e comunicação; 3) transformação doensino em si em mercadoria, quer dizer a pri-vatização, certo, mas também a comercializa-ção das relações entre os usuários e as institui-ções educativas.

A privatização já foi abordada neste texto,pelo menos uma de suas faces, que é o estímulodo governo à iniciativa privada, por meio derepasse de recursos ou da renúncia fiscal. Con-tudo ela é mais ampla.

A Reforma do Estado brasileiro, propostaem 1995, formalizou a abertura da educaçãopara o setor privado, na medida em que a co-loca no setor denominado “serviços não-ex-clusivos”, caracterizados como “o setor onde oEstado atua simultaneamente com outras or-

Na medida em que a educação é

transformada emserviço, não só

qualquer país poderádesenvolver essa

atividade no mundoafora, como a OMC

poderá impor sançõesàqueles países que

não estiverem obedecendo a suas

normas de liberalização.

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ganizações públicas não-estatais e privadas.[...] os serviços envolvem direitos humanosfundamentais, como os da educação e da saú-de”. (Brasil, 1995). Com esse projeto começaum trabalho do governo para mudar o sentidodo que até então se entendia como público.

Difundem-se novas categorias e definiçõescomo, por exemplo: público não-estatal, pu-blicização e outros jargões que acabam con-fundindo os menos avisados das intençõesreais por traz da conotação ideológica das pa-lavras. Bourdieu (1996) já dizia que “as pala-vras não são neutras”, ao contrário, elas sãocarregadas de sentidos, de poder, “elas fazemcrer, elas fazem agir”, elas exercem um podersimbólico sobre as pessoas, sobretudo, depen-dendo de quem é o porta-voz, em nome dequem ele fala.

Assim, a mudança no sentido do que é pú-blico veio com a definição do que seja o pú-blico não-estatal. Este ficou determinado que éconstituído por organizações sem fins lucra-tivos e que estão orientadas diretamente para oatendimento do interesse público. Também apublicização, outra palavra intro-duzida com a Reforma do Estado,se constitui na “transferência parao setor público não-estatal dosserviços sociais e científicos quehoje o Estado presta”. (BRESSERPEREIRA, 1997).

A transferência de recursos pú-blicos para o setor privado passa,na ótica do governo e dos empre-sários da educação, a ser justifi-cada pelo fato da iniciativa privadaestar ofertando um bem público –a educação. Tal fato é compreen-dido por setores da sociedade,dentre eles o movimento docente eoutros movimentos sociais, comouma pura e simples privatização.

A mercantilização da educaçãoestá sendo feita tanto pelas insti-tuições públicas, quanto pelas par-ticulares. Se considerarmos a opi-

nião de Hirtt (2004) sobre o assunto, já ex-pressa anteriormente neste ensaio, pode-seconstatar que a reforma curricular nacional emtodos os níveis, os Parâmetros CurricularesNacionais (PCNs), os Parâmetros Curricula-res do Ensino Médio (PCEM), as DiretrizesCurriculares Nacionais (DCN), a avaliação es-tabelecida pelo Sistema de Avaliação da Educa-ção Básica (SAEB), o Exame Nacional de En-sino Médio (ENEM), o Exame Nacional deDesempenho do Estudante (ENADE), o mo-delo posto para formação de professores para aeducação infantil e séries iniciais, cujo núcleoduro é a pedagogia das competências, pode-seconcluir que esses mecanismos regulatórios(currículo, avaliação, formação) estão servindopara a adaptação do ensino ao mercado.

Esposando a lógica de Hirtt, a opção pelaeducação a distância, ou pelas tecnologias deinformação e comunicação (TICs) abre umenorme mercado para a venda de equipamen-tos, possibilitando a comercialização de com-putadores, softs, hards, e tudo mais que vemnesse pacote, embora não se deva ignorar os

avanços tecnológicos, até porqueseria impossível querer fazê-lo,isso representaria uma exclusão di-gital. O que se está destacando, é pa-ra a forma e a prioridade que estásendo dada à utilização desses re-cursos via educação a distância, semconsiderar, na maioria das vezes, aqualidade, importando a relaçãocusto/benefício.

Um outro ponto que indica amercantilização da educação, e quenão necessariamente significa aprivatização, é a venda de serviçosnas instituições públicas, com oobjetivo de complementar o orça-mento, com os cursos pagos (espe-cialização), os contratos com em-presas privadas que financiam pes-quisas dirigidas e a realização decursos que aproximam a universi-dade pública de uma universidade

Bourdieu já dizia que “as palavras não

são neutras”, ao contrário, elas são

carregadas de sentidos, de poder,“elas fazem crer, elas fazem agir”,elas exercem umpoder simbólico

sobre as pessoas,sobretudo,

dependendo de quemé o porta-voz, em

nome de quem ele fala.

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corporativa, entendida como “a pro-posta do setor empresarial para a ade-quação da educação formal às ne-cessidades específicas das empresas”.(QUARTIERO; CERNI, 2005).

A nova etapa de acumulação docapital, tendo a globalização e oneoliberalismo como pano de fun-do, e a financeirização ou a mun-dialização financeira como chamaChesnais (1996) representa a con-cretização da antiga tendência deinternacionalização da economia.O mercado constituiu-se no entemaior, tem humor, fica nervoso edefine eleições. As próprias ques-tões políticas têm ficado em se-gundo plano em relação às ques-tões econômicas. E para a forma-ção, manutenção e expansão domercado a educação tem servidocomo ferramenta privilegiada, contribuindocom pessoas e conhecimento para a alimenta-ção de um mercado mundial e para a divisãointernacional do trabalho.

Há saídas?Existe hoje uma “nova pedagogia da hege-

monia”, que tem como objetivo levar a “umaeducação para o consenso sobre os sentidos dedemocracia, cidadania, ética e participação ade-quados aos interesses privados do grande capitalnacional e internacional”. (NEVES, 2005). Masa contradição está presente na sociedade e porisso existem movimentos que constróem acontra-hegemonia, numa ação difícil no mo-mento atual, no qual a busca por saídas pareceimpossível ante o discurso neoliberal, que paragarantir a sobrevivência do capitalismo diz que“não tem saída”. A própria tese do fim da his-tória revela o caráter do capitalismo, que se co-loca como o destino universal e permanente dahumanidade. Como diz Anderson (2004), “Nãohá nada fora deste destino pleno”.

Para ele, essa certeza arrogante se constituino chamado

[...] núcleo do neoliberalismo co-mo doutrina econômica ainda forte-mente dominante nos governos emtodo o mundo. Esta jactância fanfar-rona de um capitalismo desreguladocomo o melhor de todos os mundospossíveis é uma novidade do sistemahegemônico atual. Nem mesmo nostempos vitorianos se proclamava demaneira tão clamorosa as virtudes enecessidades do reino do capital. Asraízes desta mudança histórica sãoclaras: é um produto da vitória cabaldo ocidente na Guerra Fria. Entenda-se bem, não simplesmente da derrota,mas do desaparecimento total de seuadversário soviético, e da conseqüenteembriaguez das classes possuidoras,que agora não necessitavam mais deeufemismos ou rodeios para disfarçara natureza de seu domínio. (AN-DERSON, 2004, p. 38)

É nesse contexto que floresce a nova pe-dagogia da hegemonia, que, para Neves, buscaorganizar a escola de acordo com a visão demundo da classe dominante e formar intelec-tuais orgânicos, segundo as mesmas idéias daclasse dirigente. Para a autora, a pedagogia dahegemonia ou da conservação, pela forma co-mo é divulgada e aplicada, dificulta bastante oaparecimento da pedagogia da contra-hege-monia, sobretudo após a Guerra Fria, fato quefortaleceu o império americano que passou ater mais espaço para difundir e impor a suaideologia.

O movimento de contradição está presentee é possível visualizar alternativas, apesar dasdificuldades que se colocam em função de seestar vivendo:

[...] um capitalismo cada vez mais re-gressivo e reacionário nas áreas social,política, econômica e cultural, que cri-minaliza os movimentos sociais de pro-testo e militariza a política internacionala partir do primado absoluto da força.Diante de uma situação como esta, dizía-

Educação e Universidade

Para a formação,manutenção e expansão do

mercado a educaçãotem servido como

ferramenta privilegiada,

contribuindo compessoas e

conhecimento para a alimentação de ummercado mundial e

para a divisão internacional do trabalho.

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mos só um diagnóstico preciso sobre aestrutura e o funcionamento do sistemaimperialista internacional permitirá aosmovimentos sociais, partidos, sindicatose organizações populares de todo tipoque lutam por seu derrocamento encararas jornadas de luta com alguma possibi-lidade de êxito. (BORON, 2004, p.152).

A educação tem buscado estratégias de re-sistência para enfrentar essa dominação econô-mica, política e social por meio de ações con-tra-hegemônicas, como o Fórum Mundial deEducação, que congrega educadores de todo omundo e que tem sido um instrumento pode-roso na defesa da educação, construindo umaplataforma mundial de educação, adotandoprincípios fundamentais, tais como os defini-dos na sua terceira edição (2004):

1. A educação é um direito humano priori-tário e inalienável, por toda a vida.2. Esse direito é essencial para o acesso aos de-mais direitos, para a construção de valores so-lidários, para a emancipação e o exercício dacidadania.3. As políticas públicas devem assegurar aconcretização desses direitos.4. Os estados têm a obrigaçãode garantir de forma universal egratuita, sem discriminação ouexclusão, o pleno direito a umaeducação pública emancipató-ria, em todos os níveis e modali-dades.

A contra-hegemonia tambémvem sendo exercida por outrosmovimentos sociais, como o MST,que defende uma educação eman-cipadora, tendo a clareza e a cons-ciência que a luta pela terra é umdireito que vem junto com outrosdireitos, como o direito à educa-ção. A educação formal dos mili-tantes desse movimento vem se fa-zendo de forma planejada e objetiva,buscando a libertação das mentes pa-ra a compreensão do sentido da luta

que empreendem na direção de uma sociedadesocialista.

Alguns sindicatos têm exercido um papelcontra-hegemônico fundamental, como é o ca-so do ANDES-SN, que em seu 50º ConselhoNacional das Associações de Docentes (CO-NAD), ocorrido em julho de 2005, reafirmoua defesa de uma educação pública, gratuita, lai-ca e socialmente referenciada, se posicionandocontra o imperialismo norte-americano e de-fendendo a soberania nacional.

Mézáros (2005) acena com outras possibi-lidades “para além do capital”, já que os pro-cessos educacionais e socias de reprodução es-tão ligados e, portanto, uma reformulação daeducação só é possível juntamente com a trans-formação do quadro onde essa prática socialocorre, isto é, na sociedade. O autor salientaque o capital é irreformável, alertando para ainviabilidade de se dar uma “face humana” aesse modo de produção.

É por isso que hoje o sentidoda mudança educacional radi-cal não pode ser senão o rasgarda camisa-de-força da lógicaincorrigível do sistema: perse-guir de modo planejado e con-sistente uma estratégia de rom-pimento do controle exercidopelo capital, com todos osmeios disponíveis, bem comocom todos os meios ainda a serinventados, e que tenham omesmo espírito. (MÉZÁROS,2005, p.35)

Na perspectiva que Mézáros co-loca “a educação para além do ca-pital” fica evidente a necessidade dese alterar todo o sistema de educa-ção que tem o papel de internali-zação. Ele alerta que é preciso rom-per com a lógica do capital na áreada educação e criar uma ordem so-cial qualitativamente diferente, eisso não se faz com reformismo, mascom a ruptura total do status quo.

Educação e Universidade

A contra-hegemoniatambém vem sendoexercida por outrosmovimentos sociais,

como o MST, quedefende uma

educação emancipadora,

tendo a clareza e a consciência que a luta

pela terra é um direito que vem juntocom outros direitos,

como o direito à educação.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE90 - DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006

A “educação para além do capital” repre-senta a luta pela universalização da educaçãoem todos os níveis, pela gratuidade com qua-lidade social, contra a mercantilização e a favorda vida digna de todos e todas.

Algumas consideraçõesA educação está sofrendo uma profunda

mudança. De direito inalienável do ser huma-no transformou-se em serviço, no bojo de umareforma do Estado que busca viabilizar resul-tados, por meio de uma gerência nos moldesempresarias. O Estado reformado, adaptado àglobalização, coloca a educação como um ser-viço não exclusivamente estatal, abrindo mãode suas prerrogativas de responsável direto pe-la educação do povo.

Esse fato, junto com globalização neolibe-ral, reafirmou a lógica do capital na sua etapatransnacional, que tem no Estados Unidos ocentro do Império capitalista. A educação pas-sa a ser requisitada pelo capital para, numa“nova pedagogia da hegemonia”, fazer o papelideológico de consentimento para o projeto desociabilidade demandada pelo modelo emimplantação.

Os organismos multilaterias, com as suascondicionalidades, têm exercido um papel fun-damental na determinação das políticas educa-cionais e nas reformas da educação que estãosendo implementadas. Os receituários do Ban-co Mundial trazem o arcabouço ideológico noqual se assentam as mudanças em curso. A in-dicação da Organização Mundial do Comércioe do Acordo Geral de Comércio e Serviços deincluir a educação como um dos doze serviçoscomponentes de seu portifólio tem levado osgovernos a mercantilizarem a educação e a re-forçarem as instituições particulares por meiode financiamento com recursos públicos.

Todos esses fatos têm encontrado reação emgrupos organizados que buscam, numa luta de-sigual, defender a educação da rapinagem que acerca no atual estágio do capitalismo. A possi-bilidade de ir além do capital exige um trabalhocontínuo e coordenado que envolva movimen-

tos sociais, sindicatos, partidos políticos e ou-tros meios que permitam, numa ação unificada,buscar saídas para essa situação.

Termino com Mézáros:De fato, da maneira como estão as coisashoje, a principal função da educação formalé agir como um cão-de-guarda ex-officio eautoritário para induzir um conformismogeneralizado em determinados modos deinternalização, de forma a subordiná-los àsexigências da ordem estabelecida. O fato de aeducação formal não poder ter êxito nacriação de uma conformidade universal nãoaltera o fato de, no seu todo, ela estar ori-entada para aquele fim. Os professores ealunos que se rebelam contra tal desígnio fa-zem-no com a munição que adquiriramtanto dos seus companheiros rebeldes,dentro do domínio formal, quanto a partirda área mais ampla da experiência educa-cional ‘desde a juventude até a velhice’.(MÉZÁROS, 2005, p. 55)

A organização e a luta parecem ser as fer-ramentas mais propícias para se elaborar a pe-dagogia da contra-hegemonia e para se colocara educação como instrumento de construçãode uma sociedade “além do capital”, isto é, so-cialista.

NOTAS

1 A Escola Francesa de Regulação tem como prin-cipais representantes Michel Aglietta, RobertBoyer, Alain Lipietz e Benjamin Coriat. Surge nadécada de 1970 com a tese de Aglietta sobre a regu-laridade e a acumulação em longos períodos, o queele chama de modo de regulação. 2 Até novembro de 2005, as Diretrizes para o Cur-so de Pedagogia não foram definidas e aprovadaspelo Conselho Nacional de Educação.3 Em 1995 havia 684 instituições privadas de edu-cação superior (INEP, 2005), hoje existem 1762. 4 A DRU foi criada pela EMENDA CONSTITU-CIONAL Nº 27/2000 que acrescenta o art. 76 aoAto das Disposições Constitucionais Transitórias,instituindo a desvinculação de arrecadação de im-postos e contribuições sociais da União.5 O FIES a partir de novembro de 2005 financia

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50% do valor da mensalidade para alunos ditoscarentes, com taxas fixas de 9% ao ano, devendo aamortização ocorrer após a formatura.6 O ProUni tem como finalidade a concessão debolsas de estudo integrais e parciais, a estudantes decursos de graduação e seqüenciais de formação es-pecífica, em instituições privadas de educação supe-rior, oferecendo em contrapartida, isenção de al-guns tributos àquelas que aderirem ao Programa.(MEC)7 Para as IES com fins lucrativos a renúncia serásobre: Imposto de Renda da pessoa jurídica (IRPJ),Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL),Contribuição Social para Financiamento da Segu-ridade Social (Cofins) e Contribuição do Programade Integração Social (PIS). AS IES sem fins lucra-tivos terão isenção de todos os impostos.8 Esse acordo também é encontrado com a siglaGATS (General Agreement on Trade in Services).9Os setores visados pela AGCS são serviços às em-presas; serviços de comunicação; serviços de cons-trução e de engenharia; serviços de distribuição;serviços educacionais; serviços concernente aomeio ambiente; serviços financeiros; serviços de tu-rismo; serviços de lazer, cultura e esporte; serviçosde transporte; serviços de saúde, incluindo os hos-pitais, cuidados odontológicos, cuidados para a in-fância, serviços para o idoso; serviços de educaçãobásica e superior; serviços de atividade jurídica, as-sistência social, energia, serviços de água, imobi-liário público, seguros, correios, transporte públi-co, indústria editorial, telefonia e outros. 10 Até então essa era uma prerrogativa das institui-ções públicas.11 Os modos previstos para fornecimento de servi-ços, regulamentados pela OMC são quatro: serviçosoriginados num país com destino a outro; serviçosprestados num país a um consumidor de outro país;serviços fornecidos pela presença comercial de umpaís fornecedor noutro país e serviços fornecidos pelapresença física de pessoas de um pais noutro país.

REFERÊNCIAS

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Neruda 100 añosOscar Aguilera

Escritor, professor, membro do Diretório da Sociedade de Escritores do Chile (SECH)

Este texto é uma transcrição das palavras doescritor chileno Oscar Aguilera, nas jor-nadas “Neruda 100 Años”, no auditório da

Reitoria da Universidade Federal de Santa Ca-tarina, em 7 de julho de 2004.

Boas noites, amigas e amigos, companheirase companheiros. Queria muito nesta oportuni-dade falar em português, mas sei que vocêscompreenderão minhas palavras, porque esta-rão centradas em um homem que pertence a to-dos nós, os que amam a liberdade, a beleza, apaz, a democracia: Pablo Neruda.

Agradeço, em nome do Partido Comunistade Chile e do povo chileno, a oportunidade quevocês nos concederam para conversar sobrenosso companheiro. Agradecemos também es-ta comemoração do povo de Florianópolis nocentenário de um homem que, entre milharesde versos, escreveu, “ganaremos nosotros losmás sencillos”.

Seu registro de nascimento encontra-se naOficina de Registro Civil da pequena cidade deParral, no sul do Chile, Agôsto de 1904. RI-CARDO ELIECER NEFTALI REYES BASOALTO,filho de José del Carmen Reyes Morales e deRosa Neftalí Basoalto Opazo, nascido em 12de julho de 1904.

Procurarei com os versos de meu livro “Lasvidas del poeta. Cantata por la vida de Neruda”resumir a existência gigantesca de este RicardoEliecer Neftalí Reyes Basoalto que recorda-mos, nestes dias em diversas partes do mundo,como Pablo Neruda, poeta da humanidade.

“Para decir la vida de Neruda retiro los libros de la lluviapongo capa y sombrero a lo joven del siglo.Paseo por Asia y el oriente cual si anduviera por mi propia calle. Conozco Buenos Aires y regreso a mi España,a mi guerra civil, a mi guerra mundial,a este poema absurdo del planeta.Recorro el Norte Grandey junto con las piedras, y junto a las estrellasy junto a los mineros elijo senador al poeta y sus manos...Después sigo la ruta de todos los destierros.Viajo por todo el mundo en nostalgias de cueca

DF, Ano XV, Nº 37, março de 2006 - 95UNIVERSIDADE E SOCIEDADE

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Temas Contemporâneos

y retorno a la patria, al mar de todo Chile.Para decir Neruda repito poesía,repito embajador, repito Premio Nobely lluvia, siempre lluviao mar. Levanto el puño. Continúo escribiendoy dejo a las canções explicar mi silencio.

“Passamos a vida aprendendo a viver, equando aprendemos, morre-se”, disse Nerudaa seu amigo, o escritor Francisco Coloane.

Las vidas del poetason las vidasdel hombre que viviólo suficienteel combate moral,la divididadistancia entre lo fríoy lo calienteLas vidas del poetason las vidas multiplicadas,rotas, perseguidas:las vidas de los otrosque estuvieron o las que apenas fueronapresentidasLas vidas del poetafueron siempreencuentros generososcon el díay nocturnos debatescon la nocheteniendo por lugarla poesíaLas vidas del poeta son un lentocamino con los ojos muy abiertos,con la limpia alegríade los vivosy la triste tristezade los muertos

Las vidas del poetano tuvieronmás límiteque un versoentrecortadoPero es curioso:Luego de esa muertesiguió viviendo siempreen todos ladosComencemos por sua infância na chuvosa

cidade de Temuco, no sul de Chile.La infancia es un poema en gotas de aguae insectos luminosos enseñando la redondez del día y de la vida.Un poeta se forma en la niñez,soledad luminosa de la tardeenseñando los nombres posibles e imposiblesde la lluvia.Seu primeiro artigo, publicado aos 13 anos

no jornal “La mañana” de Temuco, dirigidopor seu tio Orlando Masson, intitula-se “En-tusiasmo y Perseverancia”.

Estas palavras marcarão a vida do poeta pa-ra sempre. Sua obra gigantesca o comprova.Desde aquela tenra idade foi um trabalhadorda poesia entusiasta e perseverante.

Pouco mais tarde conhece a poetisa Gabri-ela Mistral, que exerce o cargo de Diretora doLiceo de Niñas de Temuco. Gabriela (PrêmioNobel de 1945) já era uma jovem e prestigiosaescritora.

A época da adolescência está cheia de cola-borações em publicações da província e deSantiago, já com o pseudônimo Pablo Neruda.Em setembro de 1971, os redatores do semaná-rio francês L’Express, em uma grande entre-vista, perguntaram ao poeta porque havia ado-tado este nome. A resposta foi: “Um dia quetemia mais do que de costume que meu paidescobrisse a verdade - o que teria sido umacatástrofe - ocorreu percorrer as páginas deuma revista na qual havia um conto assinado:Jan Neruda. Precisamente em esse momento

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eu tinha que enviar um dos meus poemas paraum concurso. Tomei então Neruda como se-gundo nome e coloquei Pablo como o primei-ro. Pensei que seria por alguns meses.”

Jan Neruda foi um grande escritor checo.Hoje, na cidade de Praga, existem duas ruasNeruda, uma por Jan e a outra por Pablo.

La juventud de todos los cuadernosy la universidad de la pobrezale dictan a un muchacho de Temucomás de veinte poemas,más crepúsculos, más amormás ciudades nebulosas.En la calle Maruri de Santiagoaprende, reaprende el hambre, la sonrisa,la soledad, la nube,la lección de mañana,la tinta verde, el vino,el rostro de mujer-pasajera en silencio-y el peso de la noche extrañamente lento.

O período de juventude, no Chile, de 1921a 1927, abarca uma extensa produção literáriaque inclui as primeiras publicações de “Cre-pusculario” (1923) e “Veinte poemas de amor yuna canción desesperada” (1924). Este livro depoemas de amor está traduzido em mais deuma centena de idiomas, em todo o planeta.

Em 1926, a Editorial Nascimento publica“Tentativa del Hombre Infinito”, a novela “Elhabitante y su Esperanza” e “Anillos”, escritoem conjunto com Tomás Lago.

Após um grande tempo de incerteza, perío-do demasiado extenso de boemias poéticas qua-se desenfreadas, surge uma viagem funda-mental. Neruda ingressa no serviço diplomáticochileno em um dos últimos lugares: é nomeadocônsul honorário en Rangoon, Birmania.

Cruzar el mar encierra los peligrosde saber el azul y la distancia,de mirar los colores de otra forma

y de hablar la inocencia en otro espejo.En tanta Oceanía de los hombresun joven cónsul habla con su sombra.

Em um período fundamentalmente existen-cial, sofredor, metafísico, Pablo Neruda come-ça a escrever a série “Residencias en la Tierra.”

Após voltar ao Chile em 1932, casado coma holandesa María Antonieta Agenaar, é publi-cada a edição definitiva de “Veinte poemas deamor y una canción desesperada”. Em 28 deagosto de 1933 é nomeado cônsul em BuenosAires. Em outubro, conhece García Lorca. Em1934, viaja a Barcelona e em 1935 assume comocônsul chileno em Madrid.

Assim García Lorca apresenta Neruda naUniversidad de Madrid em 1935:

“E digo que vos disponhais para ouvir a umautêntico poeta dos que têm seus sentidosamaestrados em um mundo que não é o nossoe que pouca gente percebe. Um poeta maispróximo da morte que da filosofia; mais pró-ximo da dor que da inteligência; mais próximodo sangue que da tinta. Um poeta cheio de vo-zes misteriosas que afortunadamente ele mes-mo não sabe decifrar; de um homem verdadei-ro que já sabe que o junco e a andorinha sãomais eternos que a mejilla dura da estátua”.

Em 1934, conhece Delia del Carril. Após al-gum tempo se separa de María Antonieta Age-naar. Delia del Carril exerce uma enorme influ-ência sobre as concepções do poeta. Nesse anoo conflito na Espanha faz os escritores toma-rem partido. A “Tercera residencia en la Tier-ra” contém os poemas de “España en el Cora-zón”. Aí Neruda escreve, como outros poetasdo mundo: “Generais traidores, olhai minhacasa morta. Olhai España rota”. A partir de1936, a poesia de Neruda começa a abarcar ouniverso da luta política.

Após a derrota dos republicanos na Espa-nha, em 1939, Neruda consegue depois demuitas gestões ante o governo chileno do pre-sidente Pedro Aguirre Cerda, o traslado de trêsmil republicanos, vacinados em campos deconcentração na França. Junto ao governo re-

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publicano no exílio logra despachar um naviocargueiro chamado “Winnipeg”, que por fimaporta em Valparaíso, cumprindo sua missãohumanitária. Entre esses três mil homens emulheres vêm crianças. Um dos meninos doWinnipeg era José Balmes, hoje um dos maio-res pintores do país, Premio Nacional de Arte.

Nos anos posteriores cumpre serviço di-plomático no México. É agredido por um gru-po nazista. Cartazes com seus poemas são co-lados em milhares de muros da Ciudad de Mé-xico. Regressa ao Chile com Delia del Carril eem 1945 aceita ser candidato ao Senado poruma das zonas mais pobres do país: o NorteGrande.

La palabra sagrada “compañero”aprendida en España después de tanto horrorpudiera ser, tal vez,el después de la vida.El Frente Popular le nombra candidatoy las banderas rojas y las banderas blancas,las banderas azules de estrellas y salitrelo encuentran con los pobrespara ser Senadordel norte y del desierto,de su gente que sabela lentitud del tiempo.

NERUDA SENADOR (1945)Las piedras, los salares de Atacamaven escribir su nombre en letras gruesas.Mil discursos reparten la proclama:“Trabajo, Escuela y Pan sobre la mesa”Propagandista activo, infatigableagitador imán de los aceros,los curtidos pampinos inmutablesescuchan tus poemas en silencioEl salitre y el sol abren los versos,la pampa escucha el grito repetido.El triunfo organizado es el esfuerzopor cumplir con el pacto prometidoNeruda Senador. La poesíaentró al glacial Congreso centenario.Algunos senadores desconfían:“su padre fue un obrero ferroviario...”

Neruda é eleito senador em abril de 1945em uma das regiões mais pobres de Chile, Ta-rapacá y Antofagasta, a zona do deserto e dosestabelecimentos salitreiros. Formaliza seu in-gresso no Partido Comunista do Chile em oitode julho de 1945, em um gigantesco ato públi-co, junto a um grupo de destacados intelectuaise artistas. Durante três anos, intervém no se-nado “para servir ao despojado”, como assina-la seu amigo e principal biógrafo, Volodia Tei-telboim. “Eleva sua voz examinando e pronun-ciando-se sobre as questões fundamentais deuma época que acaba de sair do grande ex-termínio da Segunda Guerra Mundial.”

1948Pero nunca se sabe ciertamente qué hace cordero al loboo al lobo un corderillo.Desde el palacio mismo se dictan los decretos“Queda fuera de la ley el Partido Comunista”“Prohibido pensar de tal o cual manera”Una cárcel de cristal tiembla por la patriaUna cárcel de cristal tiembla por la patria.Se inaugura por primera vez en la Historia General de Chileel Campo de Prisioneros de Pisaguay aquel que esté libre de las garras aprenderá a ser clandestinoo a cruzar las paredes del exilio.O senador Neruda entra na clandestinida-

de. Aí começa a criação do “Canto General”.Ao ser concluído o texto de aproximadamentequatrocentas páginas é impresso secretamentee distribuído no Chile.

O sueco Arthur Lunkdvist no artigo “Ne-ruda”, publicado no Boletín de la Universidadde Chile de junho de 1964, resenha assim aetapa do Canto General: “durante os anos ime-diatamente após a Segunda Guerra Mundial,Neruda considerou seriamente sua missão co-mo poeta e assumiu a mudança. Em vez de sero poeta da morte, da melancolia e da derrota,chegou a ser o poeta da luta, do trabalho, daalegria e da esperança. Já tinha em suas mãos osmeios de expressão, necessitou apenas dar-lhes

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outra direção, outra meta. Sua primeira poesiaé semeada em terra escura onde a morte espera,mas somente como uma etapa de transforma-ção, um caminho para a ressurreição. Sua poesiasubseqüente cresceu, ondulante, cresceu triunfal-mente e colheu de uma riqueza imprevista.

Chile, o país de origem, ainda é o centro dogrande poema do continente americano que é o“Canto General”. O drama social chileno ocupao maior espaço, está olhado mais de perto que odos outros países. A natureza se apresenta comoraiz e a chave desta épica elementar.”

Na década de 50, Neruda se une a sua ter-ceira esposa, Matilde Urrutia, que o acompa-nhará até seus últimos dias. Ela inspira livros,como “Los versos del capitán” e “Cien sonetosde amor”.

Toda navegación tiene regresoSiempre vuelve a un lugar el que ha partidoy aquel que viaja colecciona sus recuerdoscon seriedad de niño enamoradoTodo coleccionista compra, cambia, roba.Cómprenme una ilusión este momento,cámbienme una cereza coloradajunto a dos estampillas de correospor tres almendras y un barco de papelRóbenme esta canción de saludar al capitán

del amor, Pablo Neruda,coleccionando sueños y oleajes.

Em 1969, forma-se uma coalizão de partidosde esquerda, a Unidad Popular. Cada coletivi-dade proclama um pré-candidato. O Partido Co-munista de Chile propõe Neruda e o Partido So-cialista, Salvador Allende. Após uma intensacampanha política em todo país ele declina suacandidatura em favor da candidatura de SalvadorAllende. Em quatro de setembro de 1970, Allen-de obtém a primeira maioria em uma eleição queé observada pelo mundo inteiro por suas reper-cussões: a via eleitoral ao socialismo.

Quando o Presidente Allende assume, Ne-ruda é nomeado embaixador na França, cargodiplomático de enorme transcendência políticae econômica para o Chile.

Yo me quedo calladoEs mejor que hablen los periódicosy las radioemisorasy la televisión.Que hable todo el planetaque hable el pueblo de Chilediciendo su alegría(primavera floreada, año setenta y uno).

PREMIO NOBEL (OCTUBRE 1971)Una paloma blancatrajo la noticiaDos ruiseñores piensanque se hizo justíiciaTres gallos de penachorojo como el fuegoen plena tarde cantanincendiando el cieloCuatro caballos verdespor Madrid galopanEn Estocolmo el hielose cambió de ropa¡¿Y cuál es el sucesoque está tan preso?!Cinco elefantes gordosserios y africanosnombran al continentesudamericanoCasi son seis las letrasque escribió una manoY siete codornicesde alitas agudassobrevolando el surnos dicen: “¡Es Neruda!”París... En la embajadaun telegrama llamay se equilibra y brincapor sobre una camaPor ocho cisnes blancoslibres y rotundosse da por enteradocasi todo el mundoUn rey que es de verdadcomo en los mismos cuentosanuncia en la mañanasilabeando lento:

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PREMIO NOBEL DE LITERATURA 1971:PABLO NERUDA...”

Son nueve los volcanesy montes chilenosque empiezan a aplaudirsonoros como truenosZorzales, picafloreslibran su alborotoy los trabajadoresestán orgullososEl Presidente Allendedesde la Monedafelicita a su amigoembajador poetaPor diez momentos,horas, días, largos mes es,la Patria entera ríe,escribe, sueña y crecePablo Neruda, simple nietode la alturasonríe al Nobel Premiode Literaturay en plena ceremoniade formal prestancia recuerda un parecido premio de la infancia...

DECLARAÇÃO DA REALACADEMIA SUECA EM OUTUBRO DE 1971

Aos treze anos de idade publicou seu pri-meiro poema, aos vinte já era um poeta conhe-cido. Aos quarenta e cinco anos, depois deuma produção contínua, só havia escrito umapequena parte de sua coleção, que alcançou em1962 duas mil páginas. Dois anos mais tarde,quando comemorou 60 anos, publicou cinconovos volumes de poemas, sob o título de“Memorial de Isla Negra”.

Posteriormente, vieram à luz muitas obrasnovas, entre elas obras-primas como “La Bar-carola”. Ante tal vagas poéticas uma curtaapresentação seria insuficiente.

Que neste mundo sem fim tratemos deapresentar um poema ou uma coleção seria ri-dículo. Isto seria como tratar de diminuir uma

embarcação de cinquenta mil toneladas comuma colher. Não podemos sintetizar a obra dePablo Neruda, isto nem ele mesmo conseguiu.

Em 1972, por motivos de saúde, com umcâncer avançado, Neruda regressa ao Chile.Realiza-se, para ele, uma gigantesca homena-gem no Estadio Nacional. Na segunda fila dasautoridades, saúda e faz reverências um militarcinzento de óculos escuros: o então comandanteda guarnição de Santiago, Augusto Pinochet.

1973Como si fuera poco haber andado tantosigues andando luego de abandonar la vida.Como si fuera poco conocer la alegríate mueres de tristeza con la patria en tiniebl asun septiembre violado.Pido un monumento para Pablo Nerudahecho con gotas de agua y con violetasCon piedras del sur y el nortey la espuma blanca de una ola de Isla Negra.Pido se me entreguen las cenizas de sus libros quemados esa fecha.Pido que otra escuela y otra tardelleven siempre los nombres del poeta.

O golpe militar de 11 de setembro de 1973, amorte de seu querido amigo e companheiro delutas, Salvador Allende, no palácio de La Mone-da, o horror dos primeiros dias da ditaduraapressam também a morte de Pablo Neruda,que faleceu em 23 de setembro. Seu funeral pro-voca a primeira manifestação antiditatorial.

Un día y en un mesen que jamás llegó la primaveraUn día y en un mesen que quedó más solala solitaria estrellaen la banderaUn día y en un mesde un añoque no tiene calendarioUn domingo sin solla muerte le obligóa tomar un descanso necesario

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No reposes en pazhasta el minuto luminoso y totalde la victoriaTu muerte es sóloun verso diminutoVivirás junto a Chiley a su gloriaGanaremos nosotroslos más sencillos,los que fuimos madera,hambre o martilloGanaremos nosotros,José y María,Pedro, Eduardo y Miguel,Laura y ElíasGanaremos nosotros,los humillados,los negados tres veces,los olvidadosGanaremos nosotros,trabajadores,

estudiantes, mujeres, los pobladoresGanaremos nosotros,Pablo Neruda,tu vida con nosotrosno estará mudaGanaremos nosotros, los más sencillosGanaremos nosotros:te lo decimos.

Queria, concluir este encontro com pala-vras do próprio Neruda: “Fui o mais abandonado dos poetas e minhapoesia foi regional, dolorosa e chuvosa. Mastive sempre confiança no homem. Não perdijamais a esperança. Por isso talvez tenha chega-do até aqui com minha poesia, e também comminha bandeira.”

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Omarxismo interpreta os debates de táticapolítica caracterizando, em última análise,cada posição em função da intensidade das

pressões de classe. Há mais de cem anos que aesquerda socialista conhece as conseqüênciasdevastadoras da força de cooptação dos regi-mes democrático-liberais. Primeiro a social-de-mocracia, depois o eurocomunismo, depois ossandinistas e petistas. Estas pressões nocivas semanifestam agora no Brasil, não só na esquerdado PT - que foi o porta-voz da estratégia da“democratização da democracia” nos últimosdez anos - mas dentro até da oposição de es-querda que já rompeu com o governo Lula.

Diante da atual crise política, assistimos aoconfronto de dois blocos burgueses. Não sãosocialmente homogêneos, mas ambos são, poli-ticamente, burgueses, pela suas alianças políticase pelos seus programas. Um articulado em tornodo Governo Lula/Palocci – PT e PC do B à fren-te, aliados a Meirelles, Furlan, e os partidos mer-cenários da base parlamentar, tendo como sa-télites a CUT e a UNE - e outro encabeçado pelaoposição parlamentar, dirigida pelo PSDB e

PFL, com seus aliados, o PPS de Roberto Freire,o PDT de Jefferson Perez, a Força Sindical, e atéo PV de Gabeira. A pressão do regime democrá-tico - portanto, do eleitoralismo - tem sido tãogrande que, diante da crise política aberta com asdenúncias de Jefferson, estamos vendo as forçasque foram majoritárias na esquerda se dividirempraticando o seguidismo aos dois blocos. Amaioria da esquerda se alinhou como um vagão-zinho atrás da locomotiva do Governo Lula,como ficou claro nas eleições internas do PT. Aesquerda do PT, devastada pelos mais de trintameses do Governo Lula, tem demonstrado pou-ca capacidade de construir uma intervenção ex-pressando a independência de classe dos traba-lhadores. São duas, todavia, as armadilhas queameaçam a esquerda brasileira: abdicar diante dogoverno Lula ou ceder à oposição burguesa.

No PT, do Campo Majoritário até a Arti-culação de Esquerda e DS, passando pelo Mo-vimento PT, todos saíram na defesa do Gover-no. Defesas contundentes, críticas, condicio-nais, mas, finalmente, defesa. Não estão dis-postos a mobilizar para que a investigação

“O direito à revolução é o único ‘direito histórico’ real, o únicosobre o qual repousam todos os Estados modernos sem exceção” 1

Friedrich Engels

Duas armadilhas que ameaçam a esquerda brasileira

Valerio Arcary

Historiador, professor do CEFET, autor de As Esquinas perigosas da História

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possa ir até o fim, porque temem, com razão,que se revele até que ponto Lula estava envol-vido na “conjuração financeira” organizadapor Delúbio. A argumentação dos líderes doPT e do PC do B de que a burguesia se expres-saria, justo no Brasil em que a organicidade detodos os partidos é molecular, somente peloPSDB e PFL não é séria. Ninguém ignora quea classe dominante brasileira não se expressasomente através destes partidos. A democracialiberal é, entre outras razões, um conforto paraos capitalistas porque lhes permite, também,uma expressão plural através de diferentes ór-gãos de imprensa e de variadas organizaçõespatronais. A burguesia brasileira conviveu -

alegremente - com o GovernoLula nesses mais de três anos.E defende uma solução nego-ciada – a pizza do acordão quepoupe Lula e Palocci - preocu-pada com a possibilidade de quea crise contamine a economia,ou seja, que o mal-estar difuso eo desprestígio crescente tantodo governo quanto do Con-gresso não transborde em açõesde massas.

O PC do B aderiu a umaestratégia “autista” e abraçou afantasia do golpe. A constru-ção imaginária de uma conspi-

ração não resistiu à visita de John Snow, repre-sentante de Bush que esteve no Brasil, e repetiuque o Governo Lula é uma maravilha. Seriamuito estranha uma cabala burguesa no Brasilpara derrubar um suposto governo popular,contrariando o Governo Bush. Basta comparara posição de Washington diante de Chávez,para concluir que a posição do imperialismoamericano não é pela derrubada de Lula.

O grande desafio da esquerda socialista é aconstrução de um terceiro campo, de oposiçãode esquerda. Um campo independente contrao governo Lula – porque manteve a política dogoverno FHC contra os interesses da maioriado povo e, ao mesmo tempo, inimigo irrecon-

ciliável da oposição burguesa. Enquanto go-verno e oposição de direita se engalfinham noCongresso, este terceiro campo tem a vocaçãode acumular forças nas ruas. Até agora, porém,todas as manifestações de rua, tanto a favor,quanto contra o governo foram ações de van-guarda, ou seja, passeatas que mobilizaram al-guns milhares. Mas, comparativamente, asações de apoio ao Governo foram um fiasco.Pressionados pela convocação do Conlutas deuma marcha para 17 de agosto de 2005, as di-reções da CUT e da UNE chamaram o dia 16em Brasília, com a óbvia intenção de medir for-ças, e não juntaram mais do que cinco mil. Ha-bituados a mentir e manipular, impunemente,não tiveram pudores e anunciaram dezenas demilhares. No dia seguinte, a Conlutas, com oapoio do PSTU, PCB e P-SOL reuniu umpouco mais do que o dobro, e com uma força emoral, incomparavelmente, superior. Algumassemanas depois foi a vez da Força Sindical -com o apoio de toda a oposição burguesa - ir asruas, agora em São Paulo. Não foram além dealguns poucos milhares, e ainda passaram a ver-gonha de ser denunciados pelos próprios tra-balhadores presentes, que confessaram aos jor-nalistas que tinham sido levados das fábricas pe-los próprios patrões.

Que a Força Sindical e os partidos burgue-ses tenham sofrido um insucesso na tentativade manifestação de rua não parece uma grandesurpresa. Os seguidos malogros do PT e seusaliados em realizar ações de apoio a Lula, con-tudo, não é um aspecto menor da crise política,e merece ser destacado. O PT manteve duranteos últimos vinte anos um, digamos, “monopó-lio das ruas” no Brasil. Depois das Diretas, em1984, as maiores ações de rua foram comanda-das ou influenciadas, incontestavelmente, pelopartido de Lula. Claro que a UNE esteve àfrente das primeiras manifestações do ForaCollor. Mas, sendo rigorosos, só o MST con-seguiu romper o cerco, em 1997, realizandouma ação de vanguarda muito significativa –umas 50 mil pessoas - em apoio à marcha na-cional sobre Brasília, no primeiro aniversário

A democracia liberalé, entre outras

razões, um confortopara os capitalistas

porque lhes permite,também, uma

expressão pluralatravés de diferentesórgãos de imprensa ede variadas organiza-

ções patronais.

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do massacre de Eldorado dos Carajás. A crisedo Governo Lula e do PT são agora tão gravesque, até mesmo em São Bernardo, a manifesta-ção de apoio a Lula abortou. Ninguém ignoraque são profissionais na organização de even-tos e puseram o aparelho na rua. Distribuíramcentenas de milhares de panfletos, divulgaramno Tribuna Metalúrgica - jornal diário dos me-talúrgicos -, colocaram carros de som passandovários dias seguidos, enfim, apostaram em umademonstração de toda a região do ABC, umgrande ato de desagravo e, jogando em casa,colheram um fracasso monumental: não erammais do que mil pessoas.

Um dos elementos chaves da conjunturaque vivemos, portanto, é que bases sociais desustentação ao Governo Lula, mesmo nos“bastiões” mais tradicionais, não param de di-minuir. Nas grandes fábricas, nas refinarias,nas universidades, entre a juventude e os pro-fessores, enfim, nos setores em que a esquerdaconquistou maior influência nos últimos 25anos, o PT está desmoronando. O PT tende amanter, porém, influência em segmentos dascamadas médias acomodadas, e entre as massasmais miseráveis beneficiadas pelo programaBolsa Família. O comparecimento de quase 300mil nas eleições internas (de setembro de 2005)não contraria esta análise: predominou o voto decabresto e a manipulação do aparelho. No calorda maior crise de sua história não houve qualquerdebate, qualquer esforço - ao que parece, infeliz-mente, nem mesmo das correntes de esquerda -de construir um evento com um mínimo de dig-nidade, para quem se reivindica da causa da igual-dade e liberdade humana.

Entre os que se opuseram ao curso do quefoi o Governo Lula/Palocci, surgiram propos-tas como a antecipação de eleições, AssembléiaConstituinte e a perspectiva de impeachment.Tentaremos demonstrar que esta polêmica táti-ca tem implicações estratégicas.

Democratizar a democracia?Os defensores da estratégia da “democrati-

zação da democracia”, título de um livro de re-

ferência organizado pelo sociólogo portuguêsBoaventura de Sousa Santos, esgrimem três ar-gumentos principais. Diante da crise políticabrasileira de 2005, que colocou em cheque ogoverno Lula e o próprio Congresso Nacional,dividem-se várias propostas táticas com umdenominador comum: a procura de uma saídanos limites do regime democrático. Afirmam,alguns, que não restaria aos socialistas alter-nativa melhor diante da necessidade da investi-gação até o fim, que considerar o impeachmentpelo Congresso. Outros não admitem a legiti-midade do Congresso para jul-gar Lula, mas sugerem a propos-ta de eleições antecipadas ou,pior ainda, de Assembléia Cons-tituinte. Elas corresponderiam àatual relação social e política deforças, já que não se abriu aindano Brasil, ao contrário de outrospaíses da América do Sul, umasituação revolucionária. Serianecessária, nessas circunstâncias,uma palavra de ordem plausível,viável, compreensível, ou seja,democrática. Democrática, mas,acrescentam, radical.

É verdade que não se abriuuma situação revolucionária no Brasil, mas abandeira de eleições antecipadas não irá en-curtar o caminho. Não é verdade que os socia-listas têm que levantar sempre uma palavra deordem de poder positiva em seu programa deagitação política - poucas idéias para muitos -que corresponda à consciência média dos tra-balhadores. Na verdade, fora de uma situaçãorevolucionária, as palavras de ordem sobre aquestão do poder são, invariavelmente, nega-tivas, ou seja, variações de: Contra, Nenhumailusão, Basta, Abaixo. A arte da palavra de or-dem - e a sorte da campanha - dependem dograu de exasperação das massas, e do maior oumenor tino dos marxistas. Pode-se pedir a que-da de uma parte do governo burguês de plan-tão, ou todo o governo. Pode-se considerarque a palavra de ordem contra o governo deva

Nas grandes fábricas,nas refinarias, nas

universidades, entrea juventude e os

professores, enfim,nos setores em que aesquerda conquistou

maior influência nos últimos 25 anos,

o PT está desmoronando.

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ser mais cuidadosa - Nenhuma confiança ouChega - ou mais incisiva – Fora – porém, sem-pre pela negativa. Finalmente, estas palavras deordem podem ser para a agitação, para ampliaruma opinião que já existe entre os trabalhado-res, mas ainda não é majoritária, ou para aação, quando está aberta a possibilidade dederrubá-lo. Mas, não houve experiência revo-lucionária que não confirmasse que o processode mobilização de massas se inicia pela recusada ordem política de dominação.

A alternativa de poder pela positiva, quan-do em situações não revolucionárias, é semprepropagandística - muitas idéias para poucos -ou seja, uma explicação longa da necessidade

dos trabalhadores construírematravés de seus instrumentos eorganismos de luta, uma saídaanticapitalista. Por isso defen-demos um Governo socialistados trabalhadores, e confessa-mos que é ultra-propagandís-tica. Só alguém que chegouontem de Marte ignora quenão há hoje no Brasil organis-mos dos trabalhadores quepossam dar materialidade àfórmula, porque os instru-mentos de luta, CUT e UNE,foram destruídos pelo PT epelo PC do B, que os amorda-çaram, burocratizaram e esta-tizaram. É verdade que toda a

esquerda russa, inclusive os bolcheviques, de-fendia depois de fevereiro de 1917 a bandeirade Constituinte, porque, afinal, as massas ti-nham deposto uma tirania secular, mas não foia bandeira de eleições que foi levantada paradesmascarar a impotência de Kerensky. Todossabemos que foi Pão, Paz e Terra, todo o poderaos sovietes. Não há nem segredo, nem atalho: sóem situações revolucionárias é que as palavras deordem de poder que chamam as organizações dostrabalhadores a assumirem o governo podem serabraçadas pelas massas. Aliás, esta é uma das carac-terísticas chaves de uma situação revolucionária.

É possível usar a bandeira de eleiçõesantecipadas contra o regime democrático?

O segundo argumento apresentado parajustificar a estratégia democratista tem sido adefesa incondicional da palavra de ordem deeleições antecipadas como bandeira democráti-ca que adquire, ou pode adquirir, um carátertransicional. O equívoco desta formulação é oincondicional. É muito diferente agitar Cons-tituinte contra uma ditadura, e levantar elei-ções antecipadas em um país que tem calendá-rio eleitoral regular há vinte anos. Na luta con-tra um regime tirânico a bandeira de eleiçõespode adquirir um conteúdo revolucionário.Não há “abre-te sésamo” em política marxista.Seria muito mais simples se existissem fórmu-las mágicas e universais, mas não há. A revolu-ção não vem com um manual de uso, com tudoprevisto e explicado. O papel de todas as pala-vras de ordem, à exceção das diretamente anti-capitalistas como expropriação, é condiciona-do pelas circunstâncias concretas. A burguesiaprevê, manipula, age, se antecipa, elabora planoA e plano B. A tradição marxista-revolucionáriasempre defendeu a atualidade das reivindicaçõesdemocráticas - em especial nos países periféricosonde a revolução por fazer será a simultaneidadede várias revoluções - mas nunca confundiu rei-vindicações democráticas com a defesa da refor-ma do regime democrático.

Os defensores da bandeira das eleições an-tecipadas ou da Assembléia Constituinte, noentanto, não aceitam os limites impostos pelarelação de forças que, já sabemos e estamos to-dos de acordo, não é revolucionária. Acusamde ultimatismo aqueles que não estão de acor-do com a bandeira de eleições, seja para o par-lamento, ou para uma Constituinte. Argumen-tam que a tradição socialista legitima o uso depalavras de ordem democráticas contra os li-mites do regime democrático. É verdade que atradição socialista recomenda o uso de palavrasde ordem democráticas, mas para denunciar oregime, não para reformá-lo. Ou então se pen-sa que o presidencialismo brasileiro não podeabsorver as eleições antecipadas. Desde quan-

A revolução não vemcom um manual de uso, com tudo

previsto e explicado.O papel de todas aspalavras de ordem,

à exceção das diretamente

anticapitalistas como expropriação,

é condicionado pelas circunstâncias

concretas.

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do a exigência de eleições antecipadas - seja lápara o que for - poderia pôr em cheque o regi-me democrático? Por que precisaríamos acenarcom eleições antecipadas como saída para acrise, se essa bandeira não surgiu em nenhumsetor organizado das classes trabalhadoras, enão há razão alguma para crer que o resultadoeleitoral pudesse ser favorável? Ou será que al-guém acredita que as dimensões ainda peque-nas dos atos que vieram ocorrendo até agora seexplicam porque não foram convocados pe-dindo eleições já? Quando e em que país acon-teceu alguma experiência revolucionária a par-tir da exigência de eleições antecipadas? Nem arevolução mexicana que começou em 1910contra o direito de reeleição de Porfírio Diaz -que estava no poder desde 1876 - levantou aexigência de eleições.

O argumento a favor das eleições antecipa-das não desmoronou ainda, somente porquenenhum setor burguês defende seriamente oimpedimento de Lula – à exceção de CésarMaia, mas de forma exploratória e francamenteminoritária – como ficou claro depois da reu-nião dos partidos no final de agosto/2005 quefechou o acordo em torno do primeiro relató-rio da CPI e da lista dos 18 deputados que foiencaminhada para o Conselho de Ética. O pe-rigo da bandeira de eleições antecipadas é queao apresentar uma saída democrática – umasaída sem uma delimitação de classe – apresen-ta um programa que permite uma frente comumentre a oposição de esquerda e a oposição de di-reita. Queremos lutar contra a corrupção, entreoutras razões, porque se não valorizarmos a lutacontra a corrupção, a oposição burguesa não va-cilará em tomar essa bandeira e disputar as nos-sas bases sociais.

Lutamos contra o governo Lula - agente es-condido até o momento atrás do PT - mas quefoi quem instrumentalizou a compra dos parti-dos mercenários. Uma política marxista, po-rém, não pode aceitar uma frente com a oposi-ção burguesa contra o governo Lula. Qualquerunidade na ação com PSDB, PFL, PPS, PV,PDT e seus aliados como a Força Sindical seria

um gravíssimo erro. Este critério não precisaser uma lei universal, e não é. Fizemos unidadena ação com setores burgueses nas Diretas, edefendemos eleições imediatas para a presidên-cia, porque havia uma ditadura no país. Quan-do do Fora Collor defendemos eleições gerais.Fizemos unidade na ação contra Collor -Quércia subiu no palanque - porque a perspec-tiva aberta pelo processo de luta que culminoucom o Lula-lá em 1989 estava aberta. A ques-tão de quem dirige a mobilização não é secun-dária, é essencial. Quércia não dirigia o ForaCollor. Ao contrário das Diretas, a direção es-capou de mãos burguesas. A UNE encabeçouaté o final de agosto de 1992 e,depois, em setembro, quandoas mobilizações de rua deramum salto de qualidade e deixa-ram de ser somente estudan-tis, Lula e o PT se readequa-ram e dirigiram. A políticaunânime da burguesia, depoisque ficou insustentável man-ter Collor, era a posse de Ita-mar, e o PT capitulou. No en-tanto, nesta crise, a esquerdasocialista não deve se aliar anenhum dos dois campos emdisputa. Combatemos os dois,porque nem queremos a recu-peração do governo, nem queremos que sejaderrubado pela oposição burguesa.

Os socialistas reconhecem que no Brasil háuma revolução democrática por fazer, porquehá tarefas democráticas pendentes. Distingue,todavia, aquelas palavras de ordem democráti-cas que podem ameaçar o regime democráticodaquelas que podem ajudar a fortalecê-lo. Ésabido que a luta por uma segunda indepen-dência pode assumir um caráter transicional,ou seja anticapitalista, assim como a luta pelareforma agrária. Pode, mas não há garantiasfora do processo real de mobilização do prole-tariado e seus aliados sociais. Até estas palavrasde ordem estarão condicionadas à dinâmica declasse do processo de luta. O conteúdo social

Queremos lutar contra a corrupção,entre outras razões,

porque se não valori-zarmos a luta contraa corrupção, a opo-sição burguesa nãovacilará em tomaressa bandeira e

disputar as nossasbases sociais.

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anticapitalista dependerá da entrada em cenado movimento dos trabalhadores de forma in-dependente. Senão, nem isso.

Aceitamos, portanto, que existem reivindi-cações democráticas progressivas. Mas, de no-vo, eleições antecipadas? O que há de revolu-cionário em defender eleições no Brasil, em2005, vinte anos depois do fim da ditadura? Játemos eleições de dois em dois anos e, se há al-go progressivo na atual crise, é justamente a

conclusão que, mesmo parci-almente, alguns milhões estãose retirando da crise, e se per-guntando se é possível mudaro Brasil com um voto na urna.Durante 25 anos os setores or-ganizados esperaram o Lula-lá. Depois de mais de 30 mesesde governo, a paciência come-ça a se esgotar. Milhões já per-ceberam que este governo éreacionário, e se perguntam se,neste regime - com a necessi-dade de campanhas eleitoraismilionárias, alianças no con-gresso - não seria inevitável oque aconteceu. Por que o pa-pel da oposição de esquerdadeveria ser o de diminuir estasconclusões, e propor como

saída, novas eleições? Em um regime democrático-liberal – presi-

dencialista ou parlamentar, ou os híbridos quecombinam elementos de ambos – o instrumen-to de antecipação eleitoral tem sido um clássi-co recurso de estabilização de crises com a pro-messa da alternância através do voto, destinadoà preservação das instituições, e aprisionando omal-estar social nos limites do regime. Nãosurpreende, portanto, que alguns na oposiçãoburguesa, como o líder do PSDB, tenhamaproveitado a crise para defender o parlamen-tarismo. A proposta de Constituinte é aindamais aventureira, porque transfere para o futu-ro Congresso poderes para revisar a Constitui-ção em vigor por maioria simples. Alguns acre-

ditam que o chamado à Constituinte, pelos po-deres acrescidos desta Assembléia em relaçãoao Congresso Nacional, poderia despertar umentusiasmo revolucionário entre as massas.Mas, quais são as mínimas garantias de que acomposição desta Constituinte não seria igualou ainda pior que o atual Congresso? Por quedeveríamos diminuir o risco de uma revisãoconstitucional reacionária? Esta não tem sido aorientação estratégica fundamental da burgue-sia nos últimos quinze anos, inconformadacom os poucos direitos impostos pela pressãode massas nos anos 80?

Não é difícil demonstrar que a bandeira deeleições antecipadas não está entre as palavrasde ordem democráticas que debilitam o regimedemocrático no Brasil, mas o fortalecem. Nãofaz sentido atribuir à antecipação de eleiçõesuma qualidade transicional, se não é preciso re-fletir muito para concluir que, se viesse a ocor-rer, não há milagre capaz de impedir a reeleiçãoda maioria dos atuais deputados, se é que acomposição do Congresso não seria ainda pior.Ou alguém se ilude sobre a possibilidade deRoberto Jefferson ser eleito deputado, e comuma votação ainda maior? As eleições são omecanismo que absorve - dentro das fronteirasda democracia - a ruptura política com o go-verno de plantão. Por que lutar agora, se pode-remos votar daqui a alguns meses? Qual o sen-tido de mobilizações para derrubar o governo,revolucionariamente, se podemos corrigir opresidencialismo, e adotar o excelente recursoplástico do parlamentarismo e convocar elei-ções? “Que o povo decida, mas através do vo-to, dentro da lei e da ordem, reelegendo ama-nhã os seus carrascos de ontem.” Evidente-mente, o capital prefere que os calendárioseleitorais não sejam alterados e mantenham umcurso previsível. Não gostam de improvisa-ções. Eleições têm os seus inconvenientes, por-que as pressões populistas - a camuflagem de-magógica necessária à hipnose eleitoral - exi-gem mais gastos. No Brasil, aprendemos nosúltimos 20 anos que os anos ímpares, em quenão há eleições, são os anos em que os gover-

No Brasil, aprendemos nos

últimos 20 anos queos anos ímpares, emque não há eleições,são os anos em que

os governos, nasdiferentes esferas -

municipal, estadual efederal - fazem os

ataques mais duros,para poder

flexibilizar nos anos pares.

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nos, nas diferentes esferas - municipal, estaduale federal - fazem os ataques mais duros, para po-der flexibilizar nos anos pares. Não deve escaparà análise marxista, portanto, que uma mudançano calendário com antecipação das eleições sópoderá acontecer sob a pressão de uma crise sé-ria, ou seja, uma concessão burguesa à preser-vação das ilusões populares na eficácia da demo-cracia. Mas, isso não significa que seja a nossa po-lítica. Porque mesmo sob improvisação, a ante-cipação das eleições é uma saída que permite arecuperação do regime democrático.

O impeachment de Lula pela oposiçãoburguesa seria uma saída reacionária

O terceiro argumento é o que afirma que aantecipação das eleições permite uma frentecom mais aliados, maior possibilidade de mo-bilização porque apresenta depois do Fora,uma saída para o day after, e não conseguire-mos grandes mobilizações contra o GovernoLula e o Congresso sem apresentar uma saídaque desperte a esperança de milhões. Na ver-dade, em primeiro lugar, não está demonstradoque a dificuldade de superar, até o momento, asmobilizações de vanguarda, repousa na ausên-cia de uma alternativa de poder. Na verdade,vêm acontecendo grandes mobilizações demassas estudantis, e há mais de um ano. Salva-dor, Fortaleza, Florianópolis, Vitória, e maisrecentemente a USP em São Paulo. Tudo indi-ca que há uma vanguarda social na linha defrente da luta que, não por acaso, são os jovensque não mantêm relações de confiança tão só-lidas com o PT e Lula. Qual é o problema emadmitir que a realidade que nos cerca sugereque a ruptura dos setores de massas organiza-dos com Lula ainda é incompleta?

A política marxista é dialética e não absolu-tiza as formas fora dos contextos e dos confli-tos. Há mobilizações de massas que são pro-gressivas e outras que são reacionárias. Para ossocialistas a interpretação do que pode ser pro-gressivo está condicionado por um critério declasse: o que ajuda a avançar a organização efavorece o combate dos trabalhadores e seus

aliados. Existem reivindicações democráticasque podem ser progressivas em um contexto eregressivas em outro.

O direito ao habeas corpus é progressivo,quando o reivindicamos para retirar um líderdos sem-terra da cadeia, mas é reacionárioquando é esgrimido para poupar Paulo Malufda prisão. A luta contra o sigilo bancário dosdeputados é legítima, mas é reacionária quandoé usada para investigar a transferência de ver-bas das cooperativas da Reforma Agrária parafinanciar as ocupações de latifúndios. A lutacontra os paraísos fiscais é progressiva, mas ostribunais especiais para presidentes, governa-dores e deputados são reacionários.

Por essa razão não é correto, nas atuais cir-cunstâncias, sem que tenham acontecido mo-bilizações de massas significativas, levantar abandeira do impeachment. O impeachment é aproposta da derrubada de Lula em um julga-mento feito pelo Congresso Nacional, ou seja,a derrubada de Lula pelo PSDB e pelo PFL.Na atual conjuntura, essa bandeira seria umacapitulação da oposição de esquerda à oposi-ção de direita. A queda do governo Lula seriaprogressiva, sem dúvida, desde que aconte-cesse tendo como sujeito social os trabalhado-res e a juventude. Poderia ser progressivo umimpedimento de Lula somente se fosse impos-to ao Congresso pela mobilização de massas,como em 1992, mas somente nessas condições,ou seja, se a força social capaz de impor o im-pedimento fossem os trabalhadores. Se Lulaviesse a ser derrubado pela oposição de direita– hipótese ainda longínqua, mas não descar-tável – estaríamos diante de uma evolução des-favorável da situação política.

Em resumo, os socialistas só defenderam, his-toricamente, o regime democrático em uma cir-cunstância excepcional: quando a democracia es-tá ameaçada pelo perigo imediato de um golpe deEstado que vise impor um regime ditatorial.

NOTA

1 ENGELS, Friedrich. Introdução a Luta de classes naFrança. In: MARX e ENGELS. Obras escolhidas. SãoPaulo: Alfa-Omega, v.1, p.108.

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Introdução

Quem assistiu ao filme “A nuvem”, do ar-gentino Fernando Solanas (2000), certa-mente saiu do cinema com a impressão de

que, na era do neoliberalismo, vivemos sobuma chuva ácida e eterna, sob um céu eterna-mente cinza. O filme fala dos nossos atuaistempos neoliberais. Nas cidades, nas ruas, se-res-fantasmas andam para trás, anônimos e so-litários. O exercício da esperança ficou paratrás também, e do alto, um dito de ordem quediz: “não há alternativas”. Se esses fantasmasquerem ter alguma espécie de sobrevida, algumprazer banal, fugaz ou efêmero, eles precisamesquecer que são fantasmas e que por isso nãoconseguem lutar por outras formas de existir,sem senhores e escravos, com dignidade. Mas ofilme de Solanas não compartilha do cinismo edo ceticismo contemporâneos. Para além daeterna chuva cinza e dos passos dados paratrás, ele nos sugere que a senha para dissipar ascarregadas nuvens destes tempos neoliberaissão a solidariedade, o movimento, o estar-jun-to nas lutas e contendas do existir coletivo, nahistória e no cotidiano, contra todas as formasde opressão.

Afinado com o filme de Solanas e, comoeste, antes de ser uma apologia da desesperan-ça, do desespero e do let it be, do “deixa rolar,

deixa sangrar”, o presente ensaio tem por ob-jetivo mostrar que o gênero humano tem sidocapaz de lutar pela sua emancipação, em váriasfrentes de batalha, que algo está acontecendosob a aparente apatia política da “nova ordemmundial”, que algo se move nos seus canaissubterrâneos e entre seus exércitos de “barõesfamintos, napoleões retintos e pigmeus do bou-levard...”1. Centelhas de esperança que rom-pem a estagnação da história e mostram que aordem social é uma obra inacabada, um eternodevir que precisa se impor sobre as manifesta-ções de desordem que oferecem ao mundoprojetos e práticas revolucionárias. Neste sen-tido, o texto parte de experiências históricas,concretas e discretas (no sentido de localizadasespacial e temporalmente) que encarnam essesmovimentos de resistência e rebeldia, como omovimento zapatista e indígena-camponês deChiapas, no México, onde se realizou a combi-nação explosiva da miséria e sua consciência,através da formação de um exército popular deíndios e camponeses. Sua declaração de guerraao Estado mexicano foi a temperatura mais altae a ponta de uma cadeia de lutas engendradasdesde muito tempo pelos povos indígenas ecamponeses no México, crescendo politica-mente com o esforço de articulação e mobili-zação entre esses subtraídos e olvidados da

O zapatismo, a esperança equilibrista e os novos movimentos sociais*

Ana Magda Carvalho

Professora visitante da Universidade Estadual de Feira de Santana

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história. O cenário que culminou no levante dejaneiro de 1994 foi, simbólica e concretamente,a bandeira mexicana, a pátria e a nação mexica-nas. Marco referencial de lutas e movimentossociais contemporâneos, o Ya Basta! enuncia-do com o estampido das balas acordou o Méxi-co do seu sono profundo, trazendo, paradoxal-mente pela morte e sacrifício da vida, a espe-rança de mudar radicalmente as coisas, comonas esquecidas décadas anteriores, quandopensava-se que fazer a revolução significava“alçar em armas”. Esse estampido, enfim, re-despertou sonhos de revolução em indígenas,camponeses, mexicanos e concidadãos emChiapas, no México, e no mundo.

Assim, o movimento zapatista e indígena-camponês de Chiapas, no México,desde o seu levante armado, em 1ºde janeiro de 1994, até os dias atu-ais, tem sido uma referência ealternativa de resistência ao neoli-beralismo, na medida em que pro-cura se posicionar em rede e nocentro da sociedade mundial, bus-cando articular um projeto revolu-cionário de libertação não só dasforças singulares e particulares dasociedade (as classes, os grupos ét-nicos, as minorias...), mas tambémevocando a libertação geral da hu-manidade. Este seria, nos parece,um elemento novo presente nosnovos movimentos sociais – a bus-ca de um sentido de universalização e solida-riedade entre as lutas coletivas, e de modesta eambiciosa tentativa de reinvenção das utopiaslibertárias, onde as demandas são particulares euniversais, onde o conceito do político exigeuma reformulação séria e uma urgente necessi-dade de recolocação no mundo, na sociedadecivil, capaz de traduzir os novos significadosda “democracia, da liberdade, e da justiça”, co-mo reivindica o brado zapatista.

A tentativa de libertação do México pelasarmas através da sublevação do exército zapa-tista e indígena-camponês de Chiapas teve co-

mo contexto o cenário apático, sombrio e deretrocessos sociopolíticos dos anos 90, quandoos regimes comunistas de Estado – gerados, emum primeiro momento, pelo alento, sonho eideologia que alimentaram durante muitotempo, desde a revolução de outubro de 1917,a fome maior de libertação da humanidade –caíram como um castelo de cartas, viraramcinzas nos escombros do Muro de Berlim. De-pois, portanto, dos ventos e barulhos pós-modernos, tornou-se então antiquado e dese-legante definir esquerda e direita, já que ahistória teria suplantado a polaridade que de-finia o que era esquerda ou direita – comunis-mo ou capitalismo –, depois que o politica-mente correto e a militância tornaram-se

rótulo de políticos profissionais eacadêmicos engessados. Neste sen-tido, a enorme visibilidade do za-patismo talvez resulte em parte dasua capacidade de preencher ovazio das utopias deixado pelas lu-tas emancipatórias e revolucioná-rias de que fomos capazes de en-campar em outros tempos. Trata-se de uma contundente reelabora-ção da esperança, fustigada inces-santemente pela realidade que nãoaceitamos, pelo presente que nãoqueremos viver, pelo futuro quenão queremos temer. É um desafioespecialmente difícil, pois vivemosnum contexto onde as condições

históricas nunca estiveram tão desforaváveisaos projetos de vida e movimentos sociais queainda se permitem a algum rasgo revolucioná-rio, radical, portanto, de afetar e mudar as coi-sas pela raiz, como diria o velho Karl Marx.Mas também, ou talvez mesmo em função des-ta dificuldade de enxergar a “paisagem na ne-blina”2, apesar da chuva, persiste a vontade delibertação, traduzida nas lutas locais e univer-sais dos novos movimentos sociais, no mundo,e na América Latina. O desafio maior destesmovimentos – acentuadamente situados forada esfera político-partidária – talvez seja este, o

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A enorme visibilidadedo zapatismo talvezresulte em parte dasua capacidade depreencher o vazio

das utopias deixadopelas lutas

emancipatórias e revolucionárias deque fomos capazesde encampar em outros tempos.

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de reelaborar (e não requentar) a esperança, dereacender as luzes (talvez as mesmas do Ilumi-nismo, mas combinada com novas....) nas tre-vas do capitalismo ou sistema-mundo, en-quanto conjunto de práticas e valores, enquan-to condições materiais e simbólicas de existên-cia detratoras e predatórias.

O objetivo deste ensaio será analisar o papeldo movimento zapatista no contexto das novaslutas de resistência ao neoliberalismo, buscan-do observar a relação entre as demandas espe-cíficas, particulares e as de caráter universal,presentes naquele movimento social e no con-junto dos novos movimentos sociais, que lu-tam por demandas particulares e, ao fim, con-tra o neoliberalismo. Para tanto, não podere-mos nos furtar à análise do lugarda diversidade – seu discurso, suarealidade – nas sociedades con-temporâneas, seus usos e abusos,seus desafios e limitações. É umdebate necessário. Sabemos, porexemplo, que o conflito Israel-Pa-lestina é uma guerra de fundo ét-nico que envolve nação, Estado,território, cultura, credo e sangue,tanto quanto envolveu a guerraétnica nos Bálcãs, o etnocídio dospovos indígenas das Américas e aexploração, partição e coloniza-ção do continente africano, dentreoutras. São a manifestação de queas fronteiras étnicas existem e não são meraperfumaria. A etnicidade, seu estudo, sua reali-dade, recolocou e impulsionou o debate sobrea questão da diversidade, também cortejadapelo discurso pós-moderno, fragmentador,obscurantista e niilista, que apreende as cultu-ras e as sociedades com conteúdos particularesirredutíveis, despedaçando qualquer possibi-lidade de uma unidade em torno da condiçãohumana. Em movimento contrário e aparente-mente contraditório, o discurso pós-modernoexalta a “nova ordem mundial”, por pressupô-la fragmentada e desordenada, ao mesmo tem-po em que fornece a justificativa moral, política,

estética e cultural para assim seguirmos adiante eaderirmos cegamente a esta nova velha ordem/es-tado de coisas.

Para além da ideologia da fragmentação e daesquizofrenia do mundo, paradigma (?!) pós-moderno que alimenta as formas seculares dedominação, a diversidade é um desafio cons-tante das civilizações e um estorvo aos projetosde controle e hegemonias globais. É precisorecolocar a questão da etnicidade sob outrosparâmetros, não como uma categoria que temameaçado abolir as classes e a luta de classesdas Ciências Sociais, e do mundo; não se tratatambém de um resíduo arcaico ou pré-moder-no, ou de nacionalismo atávico ou fascista. Aetnicidade diz respeito aos fenômenos das rela-

ções de entendimento/conflito en-tre os grupos humanos, e repousana contradição fundante entre aunidade e a diversidade, entre oparticular e o universal, e não namera diferença que separa e isola.O exemplo zapatista mostra, demaneira incomum, que o étniconão é algo que está descolado desistemas mais amplos, e o seu pro-jeto de resistência ao neoliberalismobusca dar conta, justamente, dessatensão entre as realidades locais e assupra-locais, e que portanto, aspira auma universalidade com a afirmaçãode sua particularidade, aspira a um

“...mundo donde quepan muchos mundos”. 3

Neste sentido, o zapatismo instiga desafiospráticos e teóricos das mais variadas ordens. Éum fenômeno que é melhor compreendido seestudado em suas múltiplas dimensões, con-teúdos, contradições, em graus diferenciadosde análise, em escala reduzida e ampliada, entree o particular e geral. Muitos estudos sobre omovimento zapatista se colocam em uma ououtra extremidade, como algumas análises so-ciológicas e históricas que acantonam o étnico,local, a comunidade e suas relações cotidianas,e buscam entender o zapatismo como deside-rato do neoliberalismo enquanto sistema-

Para além da ideologia da

fragmentação e daesquizofrenia do

mundo, a diversidadeé um desafio constante das

civilizações e umestorvo aos projetos

de controle e hegemonias globais.

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mundo, enquanto que algumas análises antro-pológicas não conseguem superar o nível etno-gráfico local, do indígena, do diferente, do par-ticular. Ambas as posições são insuficientespara entendermos esses índios, camponeses emexicanos das selvas chiapanecas que lutam elutaram por muitas coisas e causas. Porqueseus sonhos são, em parte, os sonhos da hu-manidade.

A rebeldia zapatistaSegundo Luiz Hernandez Na-

varro, em Chiapas, la lucha índia,o surgimento do movimento zapa-tista irrompeu e desautorizou odiscurso do “fim da história”, e doesmaecimento das utopias que ali-mentam os “sonhos de liberaçãodos povos”. E não é outra coisa se-não a utopia o que inspira o sonhozapatista: “...reivindicar o utopismomesmo e deixá-lo livre para queande pelo mundo uma vez maissem sentir-se envergonhado, e semacusações de má fé”. 4 Reinvenção da utopia, re-invenção da esperança, não como a fé em um pa-raíso que não existe, mas na digna vida concretae possível.

Não contaremos aqui a(s) história(s) domovimento zapatista. Há uma produção emlarga escala de estudos nessa linha, exaustivasnarrativas históricas e análises sob os mais di-versos prismas. Sem contar com a produção bi-bliográfica, sob as formas tradicionais de livrose artigos impressos. Só o acervo internáuticodisponível sobre o assunto parece interminá-vel. Ainda que nos reportemos aqui e alhures ànarrativa histórica, serão passagens iluminadasnum amplo repertório de eventos que podería-mos destacar para compreender, estrutural ehistoricamente, o movimento zapatista. Daí aeleição de dois destes eventos como marcos re-ferenciais, quais sejam, o levante armado doExército Zapatista de Libertação Nacional(EZLN) no dia 1o de janeiro de 1994 e a suaapresentação ao povo mexicano perante o

Congresso da União, no dia 28 de março de2001, durante a campanha para a aprovaçãopelo Congresso da União da Lei de Direitos eCultura Indígena. Nossa hipótese é de que es-ses dois acontecimentos cumprem um ciclo deamadurecimento das lutas do EZLN, as quaisestão a exigir um novo sentido para superar oimpasse gerado pelos recentes retrocessos, co-

mo o fim da ditadura do PartidoRevolucionário Institucional segui-do do continuísmo de Vicent Fox,eleito em 2000, e os desenganos daLei Indígena que foi efetivamenteaprovada pelo Congresso da União,em março de 2001, quando chegaao “zócalo” do México a Caravanada Dignidade, formada por repre-sentantes de indígenas (e zapatistas)de todo o México.

São muitas as causas e os ante-cedentes da rebelião zapatista, sãomuitos os recortes cronológicospossíveis. Pablo Gonzalez Casa-nova, em “Causas de la rebelión

en Chiapas” aponta alguns desses “possíveis”:a herança rebelde dos maias, a crise da fazendatradicional, a ação pastoral tributária da Teolo-gia da Libertação, os legados dos estudantes de1968, a “politização” dos povos indígenas, aviolência institucionalizada no estado de Chia-pas, e a usurpação de terras indígenas na SelvaLacandona no início dos anos 1970 - fato esteque desencadeou uma nova etapa de mobiliza-ções, envolvendo os “...los cientos de líderes in-dígenas del Exodo, los ocho mil ‘catequistas’,los ex lideres del 68, los de las guerrillas delNorte y del Pacífico...” 5. Este mesmo autor ca-racteriza o levante armado do EZLN como a“primeira revolução do século XXI”: “Noso-tros no somos guerrilleros, somos revoluciona-rios”, lia-se numa parede de San Cristóbal deLas Casas6.

Outros analistas do movimento, como o jámencionado Luiz Hernandez Navarro, levamem conta a história da reconstrução dos movi-mentos indígenas e camponeses durante a dé-

O surgimento domovimento zapatista

irrompeu e desautorizou o

discurso do “fim dahistória”, e do

esmaecimento dasutopias que

alimentam os “sonhos de liberação

dos povos”.

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cada de 1970. Para este autor, o zapatismo po-de ser compreendido como o resultado do sur-gimento e redimensionamento de grande quan-tidade de organizações indígenas e a “...conver-são de organizações camponesas em organiza-ções de corte abertamente etnopolítico”7. As-sim, Navarro discute a gestação do movimentozapatista e do levante de janeiro de 1994 a par-tir da relação histórica entre organizações indí-genas e camponesas:

“...os membros destas organizações, ain-da que se identificassem como campone-ses pobres, sem terra, eram indígenas.Não importa que em sua particular no-menclatura, alguns reafirmariam suas ori-gens étnicas (...). A luta zapatista preci-pitou um processo de recompo-sição das identidades muito sig-nificativo”. 8

Navarro pontua como impor-tante marco histórico a realizaçãodo primeiro Congresso NacionalIndígena em 1974, em São Cristó-bal de las Casas, no estado de Chi-apas, com o apoio do bispo da dio-cese local, Samuel Ruiz. As orga-nizações indígenas se multiplica-ram assim como as camponesas,muitas vezes lutando por causasem comum – a terra, por exemplo –e criando canais de diálogo e trocade experiências – em verdade, des-de muito, índios e camponesessempre se confundiram na históriado México. No entanto, é somenteno final da década de 1980 que omovimento indígena-camponês co-meça a formar o perfil de luta con-junta que hoje tem.9

Entre 1989 e 1992, um fato que impulsio-nou estes movimentos foi a série de encontrose reuniões em torno da campanha 500 anos deResistência Indígena, Negra e Popular nasAméricas10. É neste mesmo ano que as bases doEZLN são consultadas para decidir ou nãopelo Ya Basta!, sendo ali plantadas as sementes

da vindoura sublevação popular em Chiapas.Os meios de expressar este Ya Basta! foramdoravante debatidos. A Marcha pela Paz e osDireitos Humanos dos Povos Indígenas até àCidade do México mostrou a força relativa dosnovos movimentos indígenas e populares. Re-lativa, pois apontou as limitações da “via legal”e política ou pacífica para a resolução dos pro-blemas dos indígenas, dos camponeses, da na-ção mexicana. Assim, as comunidades estavamdivididas quanto ao teor da insurgência. Parce-las significativas da Diocese liderada pelo bis-po Samuel Ruiz não respaldavam o uso das ar-mas. No entanto, “...apesar da grande influênciada Igreja nas comunidades, a eleição da confron-tação armada seguiu adiante.” 11

Um outro fator importante degestação da rebelião chiapanecadestacada pelos analistas é o perfile a formação das novas liderançasindígenas, as quais tiverem umhistórico de escolarização míni-ma, mas que optaram em regressarao contexto camponês e trabalharem suas comunidades de origem.Essas lideranças estariam vincula-das a “diversos circuitos indígenasinternacionais, com os quais tro-cam experiências e reflexões”, bus-cando formar seus próprios qua-dros intelectuais.12 Navarro afirmaque esta “intelectualidade indíge-na” tem produzido significativareflexão teórica em torno de con-ceitos como auto-determinação,autonomia e etnodesenvolvimen-to, combinando diferentes matizesteóricos, experiência política, tra-

dições, ensinamentos e cosmologias indígenase outras referências, como as três Declaraçõesde Barbados, o Convênio 169 da OrganizaçãoInternacional do Trabalho sobre Povos Indí-genas, o Pacto Internacional de Direitos Civise Políticos, o Pacto Internacional de DireitosEconômicos Sociais e Culturais, dentre ou-tras13.

As organizações indígenas se

multiplicaram assimcomo as camponesas,muitas vezes lutando

por causas emcomum – a terra, porexemplo – e criandocanais de diálogo e

troca de experiências– em verdade, desdemuito, índios e cam-poneses sempre se

confundiram nahistória do México.

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O levante armado de 1º de janeiro signifi-cou um parteaguas na história, tanto do mo-vimento indígena no México, quanto da pró-pria México e da relação entre ambos. Ironiada história, eram predominantemente indíge-nas que pegavam em armas para reclamar aemancipação da nação mexicana14. Ao final,por trás dos pasamontañas, estava o indígena,o camponês, o mexicano, o ex-guerrilheiro de1968, e eram todos soldados lutando por uma“pátria livre”. Independentemente de seremíndios, camponeses ou guerrilheiros zapatistas,há que se tomar em conta que uma guerra teveinício em janeiro de 1994. Como coloca RubénJiménez Ricárdez,

“...em Chiapas se luta com armas na mão eisso significa fogo, destruição, dor e sofri-mento.(...). A polêmica nacional – sobre oreparto da riqueza, a marginalização e a mi-séria, o problema indígena, as formas de go-vernar e a democracia, e enfim, sobre nossodestino nacional – recebe um forte impulso eadquire um caráter de urgência. Porque aconsciência coletiva dos mexicanos tem sidoferida e comovida pela situação-limite queimplica enfrentar os fatos decisivos da vida eda morte.”15

O movimento zapatista pode ser analisado,a partir do levante armado de janeiro de 94, emtermos de um gradual e linear afastamento ouaproximação de uma agenda étnico-indígena.Assim, quando ocorre o levante de janeiro de1994, naquele momento não se tratava de ummovimento claramente orientadopara fins étno-políticos, mas quevisava a emancipação geral do po-vo mexicano. Tanto é assim que na1a Declaração da Selva Lacandona,ali o sujeito coletivo é o povo me-xicano representado por um“exército de liberação nacional”.Muito embora o efetivo maior desuas tropas fosse indígena, naqueladeclaração não havia o sujeito his-tórico indígena, não havia uma sópalavra ou sentença afirmando ser

aquela uma luta propriamente indígena comobjetivos particulares voltados para a eman-cipação dos povos indígenas no México. Aocontrário, era um clamor, um canto geral delibertação nacional:

“Povo do México: nós, homens e mulheresíntegros e livres, estamos conscientes de quea guerra que declaramos é uma medida ex-trema, porém justa. Há muitos anos os dita-dores estão aplicando uma guerra genocidanão declarada contra nossos povos. Por isso,pedimos sua participação decidida, apoiandoeste plano do povo mexicano que luta portrabalho, terra, teto, alimentação, saúde,educação, independência, liberdade, demo-cracia, justiça e paz. Declaramos a intençãode não deixarmos de lutar até conseguirmoso cumprimento destas demandas básicas,formando um governo livre e democráticoem nosso país.”16

Desde 1/1/1994, foram 12 dias de enfrenta-mentos entre o EZLN e o Exército FederalMexicano. Insurgentes e Governo sentam-se à“mesa do diálogo”, e os zapatistas - forçados aperceber que a revolução pelas armas não tinhase processado, porquanto sem o esperadoapoio popular - silenciaram seus fuzis, deixan-do à sociedade civil o desafio de propor umasaída “política” para o conflito, ainda que ho-mens e mulheres, velhos e crianças, índios,camponeses e zapatistas continuassem sendohostilizados, agredidos e cercados pelas forçasde segurança nacional e pelos paramilitares ou

“guardias blancas”, forçando acontínua subida às montanhas. Fa-zia parte da estratégia de contra-insurgência do Governo a aparen-te disposição para o diálogo, ostrâmites políticos “legais”, a mili-tarização, o belicismo e a violên-cia, eficaz combinação que culmi-nou na preparação do massacre deActeal, em dezembro de 1997,quando foram assassinados 45 in-dígenas, sob os auspícios do Go-verno Zedillo.17 Mesmo assim, o

O levante armado de1º de janeiro de

1994 significou umparteaguas na

história, tanto do movimento indígenano México, quanto da

própria México.

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EZLN, ainda que militarmente ativo, mantevesua posição de não reagir à intimidação dascomunidades chiapanecas pela violência. Suarebeldia seguiu sendo a ocupação e manuten-ção, no estado de Chiapas, de 34 municipalida-des indígenas rebeldes e autônomas, as quaissão até hoje referência e embrião de experiên-cias auto-gestionárias e baseadas nos princí-pios de auto-determinação dospovos indígenas e das nações, con-tidos nos pactos internacionais jáaludidos. Isto não quer dizer que,estando temporariamente suspen-sa a tentativa de emancipação danação mexicana pelas armas, e ini-ciados os diálogos em torno dosAcordos de San Andrés, o EZLNtenha passado a lutar somente pe-las demandas indígenas.

Desde o fim dos doze dias de enfrenta-mentos em janeiro de 1994, o EZLN passou aconvocar sistematicamente a sociedade civilpara tomar as rédeas da luta e promover novasformas de organização que pudessem fazeroposição ao Estado e às classes dirigentes re-presentadas pela PRI (Partido RevolucionárioInstitucional): Convenção Nacional Democrá-tica18, Movimento Nacional de Libertação,Frente Zapatista de Libertação Nacional, estasforam sucessivas tentativas de articulação domovimento indígena-camponês de Chiapas ede todo o México com um projeto de transfor-mação geral das relações de poder na sociedademexicana. E é através da análise do conteúdodos comunicados e declarações produzidas noâmbito destas organizações, que se pode ob-servar um maior ou menor afastamento entreas demandas particulares (indígenas) e gerais(da nação mexicana) reclamadas pelo EZLN.Mesmo sem uma sistemática averiguação, apartir de tais documentos, dessas relações entreas demandas e lutas, é possível afirmar que oétnico-indígena e o nacional sempre estiveramentrelaçados e presentes no horizonte zapatis-ta. Firmados os Acordos de San Andrés, em fe-vereiro de 1996, a luta passou a girar em torno

da exigência do seu cumprimento, isto é, de suatransformação em legislação pelo Congressoda União:

“Pelo compromisso assumido desde o pri-meiro dia do nosso levante, hoje voltamos acolocar em primeiro lugar, acima do nossosofrimento, acima de nossos problemas, aci-ma das dificuldades, a exigência de que sejam

reconhecidos os direitos dos indígenasatravés de uma mudança na Constitui-ção Política dos Estados Mexicanosque garanta a todos eles o respeito e apossibilidade de lutar pelo que lhespertence: a terra, o teto, o trabalho, opão, o remédio, a educação, a demo-cracia, a justiça, a liberdade, a inde-pendência nacional e a paz digna.” 19

Uma hipótese plausível, destar-te, é a de que a campanha pelo cumprimentodos acordos de San Andrés e sua transforma-ção em lei encerrou o movimento zapatistanum impasse político de difícil resolução, poisa Lei de Direitos e Cultura Indígena efetiva-mente aprovada pelo Congresso da União pas-sou longe de contemplar as demandas mínimasdo movimento zapatista e indígena do México,reivindicadas pela via “pacífica”. Assim, emcomunicado veiculado na rede em 29 de abrilde 2001, o Comitê Clandestino Revolucioná-rio Indígena-Comandância Geral (CCRI-CG)do EZLN, através do Subcomandante Marcos,avalia os resultados da reforma constitucionalaprovada pelo Congresso da União:

“Primer - La reforma constitucional aproba-da en el congreso de la unión no responde enabsoluto a las demandas de los pueblos in-dios de méxico, del congreso nacional indí-gena, del ezln, ni de la sociedad civil nacionale internacional que se movilizó en fechas re-cientes. Segundo - Dicha reforma traiciona los acu-erdos de san andrés en lo general y, en lo par-ticular, la llamada “iniciativa de ley de la co-copa” en los puntos sustanciales: autonomía ylibre determinación, los pueblos indios comosujetos de derecho público, tierras y territo-

É possível afirmarque o étnico-indígenae o nacional sempreestiveram entrelaça-dos e presentes nohorizonte zapatista.

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rios, uso y disfrute de los recursos naturales,elección de autoridades municipales y derechode asociación regional, entre otros”. 20

Depois disso, e mesmo antes disso, com avitória conservadora de Vicent Fox como Pre-sidente e o fim brando da ditadura do PartidoRevolucionário Institucional, o movimentozapatista, de uma certa forma, estagnou com afalta de novas perspectivas de luta. É bem ver-dade que existem ainda células de rebeldia ope-rantes, como os aludidos 34 mu-nicípios autônomos no estado deChiapas; é bem verdade tambémque os indígenas e camponesescontinuam vivos e em resistência, eque o movimento zapatista aindacontinua a ser uma importante re-ferência de luta contra o neolibe-ralismo, mas a saída política que oEZLN foi forçado a adotar, de ten-tar mudar a realidade através do diálogo e dodiscurso racional, em que se deve crer em pala-vras, leis e boas intenções professadas mas qua-se nunca cumpridas, forçosamente o levou devolta ao mesmo lugar de onde partira, como sedepreende do comunicado acima citado, levan-do-se em conta, evidentemente, todas as aqui-sições e conquistas que logrou o movimento,como o próprio fortalecimento do movimentoindígena nacional e da sociedade civil mexica-na, e mais extensamente, do chamado zapatis-mo civil, posto que o zapatismo nunca aban-donou sua perspectiva universalista. Ao con-trário, o zapatismo civil tornou-se, em escalamundial, o símbolo de uma nova ideologia, visãode mundo e utopia, cujas sementes foram lança-das durante a realização, em 1996, nas selvaschiapanecas, do I Encontro Internacional daHumanidade e contra o Neoliberalismo, colo-cando a questão da emancipação geral e especí-fica da humanidade:

“O zapatismo armado que nasce em 1994começa a converter-se em algo novo nomomento em que o zapatismo civil en-contra, no México e no resto do mundo,gente que pensa como nós, que luta pelo

mesmo [fim], mas que não está armadanem tem um pasamontañas, mas que éigual a nós e de uma ou outra forma con-sideramos que partilhamos o que signifi-ca estar por trás do pasamontañas.” 21

O neoliberalismo como sistema econômico,político e cultural

O neoliberalismo pode ser entendido comoum fenômeno histórico das sociedades mo-

dernas que abrange pelo menostrês níveis de análise: o econômi-co, o político e o cultural. Trata-se,ainda, de uma nova investida dosvelhos sistemas coloniais com no-vas armas, cujo projeto de hege-monia planetária tem provocadouma resposta de confronto porparte dos movimentos sociais,marcando assim uma linha de con-

tinuidade com os processos de descolonização,que ocorreram ao longo do século XX, em to-do o mundo.

“Trata-se de um processo econômico comapoio político, militar e cultural. Trata-se deuma nova etapa de acumulação do capitalna sua fase neoliberal, que começou na me-tade dos anos de 1970, o que se chama deconsensus de Washington. Tomamos a pa-lavra globalização num sentido muito mi-nucioso, sabendo evidentemente que é umarealidade histórica e antiga, mas que tem to-mado características específicas nos últimos30 anos”.22

O neoliberalismo significa capitalismo defronteiras avançadas, significa maior pobreza,maior embrutecimento da vida. O mundo égovernado por meia dúzia de “grandes”, ospaíses mais ricos, os empresários e seus po-tentados, engenheiros, tecnocratas, intelectuaisde gabinetes, “cabeças pensantes” e políticosprofissionais. Neste cenário, o capital - e seusistema/mercado de valores - é o sangue quecircula nas veias abertas da humanidade, ondea moeda norte-americana tem passaporte livreem qualquer lugar. Durante o I Encontro da

O zapatismo civiltornou-se, em escalamundial, o símbolo

de uma nova ideologia, visão demundo e utopia.

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Humanidade e contra o Neoliberalismo, deba-teu-se incessantemente sobre os significados,as causas e as conseqüências deste sistema-mundo “de que todos padecemos”.

“O neoliberalismo constitui uma ofensa glo-bal contra a vida e o humano de alcance pla-netário: empobrecimento, desemprego, des-mantelamento dos direitos sociais, privatiza-ção de bens e serviços públicos, destruiçãoecológica, desarticulação de organizações so-ciais, autoritarismo, arrregimentação ideoló-gica, atomização social e subsunção de todoser humano à lógica do dinheiro e do mer-cado, formam parte dessa ofensiva a que, emdistintos ritmos e sob formas diversas, todospadecemos.”23

A fase “avançada” do capitalismo, chamadade neoliberalismo, tem ameaçado a humanida-de com a destruição, tanto molecular, no sen-tido de imediato, local, cotidiano e imediato,quanto a longo prazo, no sentido de compro-meter a vida no seu sentido mais amplo, natu-reza e cultura. A um só tempo, as práticas pre-datórias do neoliberalismo destróem o ambi-ente e os recursos disponíveis para as diversasformas de existência, dentre as quais a humanaé apenas uma pequena parte. Nestes tempossombrios e de nuvens carregadas, produzimosvenenos para as lavouras, enlatados, plásticos,cancerígenos e depressão, bombas químicas ebiológicas e outros lixos tóxicos não reciclá-veis. Somos produtos e processos de um gê-nero particular de civilização, a civilização oci-dental e moderna, que não consegue reciclarseu próprio lixo, não consegue aplacar a fome(material e espiritual) da humanidade. A cultu-ra tecnológica da modernidade oferece a mor-te e a destruição, a partir da criação de meca-nismos globais de destruição bélica da vida, co-mo a bomba atômica e toda uma lista sinistrade armas químicas e biológicas.

Neste sentido, o neoliberalismo não é ape-nas uma nova fase da economia capitalistamundial. É a instituição total da modernidade,que dita não apenas as leis do mercado, mastambém conteúdos políticos, ideológicos, esté-

ticos, morais e culturais. E assim sendo, se tra-duz em práticas, comportamentos, valores éti-cos e estéticos, tanto no âmbito do públicoquanto do privado. Sob a máscara da desordeme da fragmentação, a ordem (em seus sustentá-culos básicos) persiste e perdura, a despeito daideologia pós-moderna que faz o elogio do“homem precário” e dos destinos coletivossem alternativas de libertação.

Novas esperanças e lutasCada vez mais e intensamente tem-se pro-

pagado a idéia de que para combater o neoli-beralismo e a globalização, é necessário arti-cular formas locais e universais de resistência eluta. Sinal dos novos tempos são, por exemplo,os inúmeros protestos, manifestações e encon-tros internacionais que são realizados, comcrescente freqüência, envolvendo redes de or-ganizações sociais das mais variadas naturezase procedências, como o I e II Encontro Sur-Norte “Los pueblos de América construyendoalternativas ante el neoliberalismo”, realizadosrespectivamente em Washington (1999) e emSão Cristóbal de Las Casas, estado de Chiapas,México, em 2000.24

Alguns intelectuais marxistas se posicionamsobre esta questão das alternativas, da esperan-ça. Em entrevista para o Cadernos do CEAS, oprofessor de Sociologia da Universidade doEstado de Nova York, James Petras, autor de24 livros sobre a América Latina e EstadosUnidos, comentando a globalização e o neoli-beralismo nestes contextos, afirma que umaalternativa para essa “estrada perdida” em quenos encontramos está na (re)articulação entreos partidos políticos e os movimentos sociais,sem o apoio “assistencialista” das organizaçõesnão-governamentais (ONGs):

E qual é a alternativa? Eu acho que é umgrande debate e uma grande luta para reno-var os laços entre partidos políticos e organi-zações políticas com os movimentos sociais.E não é simples, porque existe um desencan-to e a institucionalização do pensamento quedevemos tomar um caminho em direção às

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ONG’s. Porém, se o caminho da renovaçãopolítica e social não funciona, não devemosidealizar o movimento pelo movimento,porque isto só nos leva a lutas setoriais25.

Certamente, o movimento zapatista éapenas um dentre outras “bolsas de resistên-cia” ao neoliberalismo, como define o Sub-Comandante Marcos, em um dos seus textosmais ricos, As 7 peças do quebra-cabeçasmundial. Sobre estas “bolsas de resistên-cias”, ele diz:

La aparente infalibilidad de la globalizaciónchoca con la terca desobediencia de la reali-dad. Al mismo tiempo que el neoliberalismolleva adelante su guerra mundial, en todo elplaneta se van formando grupos de inconfor-mes, núcleos de rebeldes. El imperio de lasbolsas financieras enfrenta la rebeldía de lasbolsas de resistencia. Sí, bolsas. De todos los tamaños, de diferen-tes colores, de las formas más variadas. Suunica semejanza es su resistirse al “nuevo or-den mundial” y al crimen contra la humani-dad que conlleva la guerra neoliberal. Al tratar de imponer su modelo económico,político, social y cultural, el neoliberalismopretende subyugar a millones de seres, y de-shacerse de todos aquellos que no tienen lu-gar en su nuevo reparto del mundo. Pero re-sulta que estos “prescindibles” se rebelan yresisten contra el poder que quiere eliminar-los. Mujeres, niños, ancianos, jóvenes, indí-genas, ecologistas, homosexuales, lesbianas,seropositivos, trabajadores y todos aquellosy aquellas que no sólo “sobran”, sino quetambién “molestan” al orden y el progresomundiales, se rebelan, se organizan y luchan.Sabiéndose iguales y diferentes, los excluidosde la “modernidad” empiezan a tejer las re-sistencias en contra del proceso de destruc-ción/despoblamiento y reconstrucción/reor-denamiento que lleva adelante, como guerramundial, el neoliberalismo.

Vale lembrar também que diversas outrasorganizações de resistência civil ao neolibera-lismo têm partido de países do chamado Pri-

meiro Mundo, como os movimentos anti-capi-talistas europeus tributários de idéias anarquis-tas, mas sem um projeto revolucionário sólido,partindo mais de experiências cotidianas degrandes protestos ou pequenas ações anti-ca-pitalistas, como o “Buy nothing’s day” ou o“dia de não comprar nada”.

Outro importante núcleo de debate em tor-no das possíveis alternativas ao neoliberalismo- e de reinvenção das utopias libertárias - têmsido os Fóruns Sociais Mundiais:

O Fórum Social Mundial de Porto Alegresignificou uma mudança fundamental de or-dem cultural: do “não há alternativas” ao“existe uma outra maneira de pensar a eco-nomia, a política, a cultura”. Isso é um saltoqualitativo de grande importância.Deste ponto de vista parece importante pen-sar em 3 níveis de alternativas. Em primeirolugar, consiste em reconstruir as utopias, nãono sentido de coisas impossíveis, mas simcomo objetivos mobilizadores. Trata-se desaber qual sociedade queremos, qual traba-lho, qual educação, qual agricultura, qual co-municação, qual ética. As utopias não caemdo céu. Não podem ser senão o resultado deum trabalho de conjunto com o aporte de to-dos no mundo inteiro.26

Palavras finaisDiante do exposto, resulta que a esperança

equilibrista “corre ao fio da navalha”, resiste,persiste como uma dívida ainda não quitada,da humanidade para com ela mesma. Somostributários do desencanto para com o “mo-desto objetivo de mudar o mundo”, mas se-remos nós mesmos responsáveis por umpossível transencantamento, ou seja, pelaconstrução de novos sentidos para a existên-cia no “mundo da vida”, no sentido de refa-zer, incessantemente, como no mito de Sísifo,a trajetória da esperança. Basta abrir os olhose observar que ao nosso redor “a terra se mo-ve”, a terra, os indivíduos e as coletividadescom sede e fome de libertação.

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NOTAS

* Este artigo é uma versão aprimorada de um paper apre-sentado como trabalho final da disciplina “Novos Movi-mentos Indígenas e Camponeses na América Latina”, mi-nistrada pelo Prof. Antônio da Silva Câmara no Pro-grama de Pós-Graduação em Ciências Sociais/Antropo-logia, da Universidade Federal da Bahia, em 2001. AoProf. Câmara agradeço o caloroso estímulo para prosse-guir no fazer ciência e, ao mesmo tempo, perseguir o(trans)encantamento, o sonho e a esperança.

1 Da canção “Vai passar”, de Chico Buarque de Holanda.2 Título do filme do diretor grego Theo Angelopoulos.3 Esta é uma insígnia zapatista encontrada em muitos co-municados e declarações do Exército Zapatista de Liber-tação Nacional e que condensa toda uma visão de mundohumanista e universalista do movimento. Sintetiza aindaa relação entre unidade e diversidade, entre o universal eo particular.4 NAVARRO, L. H. 1998. Chiapas – La nueva lucha in-dia. Madrid: Ediciones Talasa.5 CASANOVA, P. G. “Causas de la rebelión en Chia-pas” In Site EZLN: www.ezln.org.6 CASANOVA, P. G., Op. Cit.7 NAVARRO, L. H. Op. Cit., p. 11.8 NAVARRO, L. H. Ib., p. 12.9 Estas idéias estão implícitas nos trabalhos de NA-VARRO (Op. cit) e de CONDEARENA, L. 1997. Chia-pas – El despertar de la esperanza. Gakoa Liburuak.10 Estes e outros marcos estão contidos nos documentosdo próprio Congresso Nacional Indígena, veiculados pe-la Internet: “Ao final da década de 70 e princípios dos anos80, começaram os preparativos de reuniões a nível nacio-nal e internacional sobre o significado do 5º Centenárioda viagem de Colombo. Se organizou a Campanha Con-tinental 500 anos de Resistência, e no México o conselhomexicano 500 Anos de Resistência Indígena, Negra e Po-pular abarcou muitas organizações indígenas, campone-sas, operárias, populares, sindicatos, acadêmicos e estu-dantes entre muitos outros, em torno do rechaço à culturado medo e do engano do neoliberalismo”. In “El movi-miento nacional indígena”, site do Congresso NacionalIndígena (www.ezln.org/cni).11 CONDEARENA, L. Op. cit, p. 80.12 NAVARRO, L. H. (Op. cit) e PETRAS, J. 2000. La iz-quierda contraataca – conflicto de clases en América La-tina en la era del neoliberalismo. Madrid: Akal Ediciones.13 A consciência dos direitos dos povos indígenas a partirdesses aportes jurídicos está expressa nos documentos emanifestos do Congresso Nacional Indígena, como no“Manifiesto Indígena del Primeiro de Maio”, onde sãoavaliados como desastrosos os resultados da aprovaçãoda Lei Indígena pelo Congresso da União em março de2001. (cf. site www.ezln.org/cni).

14 Essa hipótese, no caso do movimento indígena brasi-leiro, seria pouco plausível, dadas as distâncias históricase estruturais que separam os movimentos indígenas doscamponeses.15 RICARDEZ, R. J. “La Guerra de enero” In site doEZLN (www.ezln.org/revistachiapas/ch2jimenez.html).16I Declaração da Selva Lacandona, janeiro de 1994. Insite oficial do EZLN: www.ezln.org.17 “Para ter tempo de preparar estes esquadrões de morte,o Governo Federal mexicano desenhou uma estratégiaparalela de diálogo simulado, que consistia em levar adi-ante uma negociação sem nenhuma intenção de cumprir oque vinha sendo acordado e aumentando a presença mili-tar nas zonas zapatistas. O governo do Estado de Chiapasficou encarregado de garantir a impunidade dos gruposparamilitares e de facilitar suas operações nas principaisáreas rebeldes: Norte, Selva e Altos de Chiapas” (“De-núncia do massacre de Acteal” In site EZLN-BRwww.chiapas.hpg.com.br).18 “Convocamos a realização de uma Convenção Demo-crática Nacional, soberana e revolucionária, da qual sa-iam as propostas de um governo de transição e uma novalei nacional, uma nova constituição que garanta o cum-primento legal da vontade popular. (...). O Exército Zapa-tista de Libertação Nacional reconhecerá a ConvençãoNacional Democrática como autêntico representante dosinteresses do povo mexicano em sua transição para a de-mocracia. O EZLN está presente em todo o território na-cional e já tem condições de apresentar-se ao povo do Mé-xico como exército capaz de garantir o cumprimento davontade popular.”19 V Declaração da Selva Lacandona, janeiro de 1998. Insite EZLN-BR: www.chiapas.hpg.com.br.20 Site oficial do EZLN (op. cit.)21 “Unas palabras sobre nuestro pensamiento”, Subco-mandante Marcos In EZLN. 1998. Crónicas intergalá-ticas – Primer Encuentro Intercontinental por la Huma-nidad y contra el Neoliberalismo, Chiapas, México, 1996.Planeta Tierra, Montañas del Sureste Mexicano (3a Ed.),p. 69.22 “O estado atual da globalização”. François Houtart(do Centro Tricontinental e Fórum Mundial de Alterna-tivas). Site do Portal Popular (www.projetoadia.com.br).23 In Crónicas Intergaláticas (op. cit). 24 Participaram destes encontros, organizações sociaisprocedentes de diversos países das Américas, inclusive doBrasil, como o Movimento dos Trabalhadores RuraisSem-Terra (MST). Informações colhidas no site doCOMPA – Convergência dos Movimentos dos Povos dasAméricas.25 PETRAS, J. (1995). “A propósito de globalização eneoliberalismo”. Entrevista ao Cadernos do CEAS, no.158, julho/agosto.26 “O estado atual da globalização”. François Houtart(Centro Tricontinental - Forum Mundial de Alternati-

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Temas Contemporâneos

vas). Site do Portal Popular (www.projetoadia.com.br).Para se ter idéia da amplitude destes movimentos locais einternacionais de luta contra o neoliberalismo, basta aces-sar este e outros sítios da chamada mídia independente,que trazem as agendas de luta anti-globalização/anti-neoliberalismo, e apresentam uma infinidade de análises,debates e posições políticas as mais variadas em torno dasmuitas formas possíveis de luta.

REFERÊNCIAS

AFINAL, O QUE ESSES ANTICAPITALISTASQUEREM?. 2000. Financial Crimes - Reclaim The Stre-ets, Londres.CÂMARA, A. 2001. “Novos movimentos indígenas ecamponeses na América Latina: as faces distintas das lu-tas do EZLN e do movimento indígena no Equador”.Comunicação apresentada ao X Congresso de Sociologiada Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS).___________. 2001. “Análise das contradições nos Acor-dos de San Andrés em Chiapas”. Toulouse-França, mms.___________. 2000. “A luta emancipadora dos movimen-tos camponeses EZLN e MST”. Comunicação apresen-tada ao Congresso Internacional de Americanistas.Polônia, mms.___________. 2000. “A crítica intelectual ao movimentoindígena-camponês de Chiapas”. Texto para o II Con-gresso Virtual de Antropologia e Arqueologia, mms.___________. 1999. “Movimento zapatista – A constru-ção de um novo discurso emancipatório”. Comunicaçãoapresentada ao Congresso de Sociólogo, mms..___________. 1996. “O Pós-modernismo e o liberalismotardio: novo projeto de uma velha ideologia”. In TEX-TOS/APUB – Associação dos Professores Universitáriosda Bahia. Salvador.CASANOVA, P. G. “Causas de la rebelión en Chiapas”Site EZLN: www.ezln.org.CCRI-CG-EZLN. 1994. I Declaração da Selva Lacando-na. Site EZLN-BR: www.chiapas.hpg.com.br.______________. 1994. II Declaração da Selva Lacando-na. Ib.______________. 1995. III Declaração da Selva Lacandona. Ib.______________. 1996. IV Declaração da Selva Lacando-

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