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41047 – Problemas Sociais Contemporâneos Apontamentos de: Jorge Loureiro E-mail: [email protected] Data: 04.09.2008 Livro: Problemas Sociais Contemporâneos (Hermano Carmo – coord.) Nota: Matéria referente ao ano lectivo 2007-2008 (Mestre Rosana Albuquerque)

41047 – Problemas Sociais Contemporâneos · A problematização sociológica dos problemas sociais implica mesmo a des-construção destes, ... patologia social, os problemas sociais

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41047 – Problemas Sociais Contemporâneos

Apontamentos de: Jorge LoureiroE-mail: [email protected]: 04.09.2008

Livro: Problemas Sociais Contemporâneos (Hermano Carmo – coord.)

Nota: Matéria referente ao ano lectivo 2007-2008 (Mestre Rosana Albuquerque)

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1. Estudar os problemas sociais1.1. Dos problemas sociais aos problemas

sociológicosO que são problemas sociais? Podemos apresentar desde já duas definições possíveis: segundo Rubington e Weinberg (1995:4), um problema social é “uma alegada situação incompatível com os valores de um significativo número de pessoas, que concordam ser necessário agir para a alterar”. Para Spector e Kitsuse (citado em Hester, Eglin 1996:1), um problema social é constituído pelo conjunto das acções que indivíduos ou grupos levam a cabo ao prosseguirem reivindicações relativamente a determinadas condições putativas. As duas definições são muito diferentes nos seus pressupostos. Enquanto que a primeira se centra na situação que é considerada problema, a segunda definição privilegia o processo pelo qual uma situação é considerada como problema.

É difícil chegar a uma definição consensual do que seja um problema social, quer ao nível da realidade social, quer entre os sociólogos que se dedicam ao seu estudo, porque a definição depende da perspectiva que se adopta.

Os problemas sociais, imbuídos de um significado social (porque se definem em função de um conjunto de valores sociais), ao passarem pelo crivo do método científico, adquirem um significado sociológico, isto é, reflectem valores sociológicos relativos às perspectivas teóricas e metodológicas seguidas (Pais 1996). Para que um problema social possa ser considerado problema sociológico deve possuir as condições de regularidade, uniformidade, impessoalidade e repetição (Gonçalves 1969:12).

A problematização sociológica dos problemas sociais implica mesmo a des-construção destes, o desmantelar do significado social de maneira a criar um significado de acordo com o discurso científico (Quivy, Campenhoudt 1992).

Ao nível do significado social, a juventude é problematizada relativamente a aspectos tão variados como a inserção profissional, a emancipação adulta, a toxicodependência, a crise dos valores tradicionais, entre muitos outros aspectos. Mas, problematizar sociologicamente a juventude será questionar, por exemplo, se os jovens sentem estes problemas como seus e de que forma os percepcionam (Pais 1996). Será questionar a definição de jovem, quais as soluções que a sociedade preconiza para os problemas da juventude e quais as suas consequências.

A velhice enquanto problema social e sociológico é outro exemplo (Fernandes 1997). Foi com a industrialização, a urbanização e o envelhecimento demográfico que começaram a criar-se as condições para a definição da velhice enquanto problema social a ser solucionado. Problematizar a velhice em termos sociológicos será questionar, por exemplo como o faz Fernandes (1997: 62-63), “que transformações ocorreram nas famílias e na sociedade portuguesa que possam explicar a emergência do problema social [...] velhice?[...]”

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1.1.1. A questão do positivismo versus relativismo

Pensamos ser fundamental fazer aqui uma primeira reflexão sobre as condições epistemológicas do estudo dos problemas sociais. O conhecimento sociológico pode ser situado num contínuo epistemológico que vai do Positivismo ao Relativismo.

A sociologia positivista defende a procura de leis sociais (à semelhança das leis do mundo natural) a partir de um método indutivo-quantitativo, e advoga uma separação absoluta entre a Ciência e a Moral, isto é, entre os factos e os valores (Lapassade, Lourau 1973).

Para a ciência positivista é possível conhecer objectivamente a realidade social, uma vez que existem critérios universais do conhecimento e da verdade. Ao abordar os problemas sociais, a sociologia positivista estuda situações objectivas, que são definidas como problemas em razão de características que lhe são próprias. Daí a necessidade de se conhecerem as suas causas e de se chegar à elaboração das leis que regem o fenómeno.

No outro extremo do contínuo está a posição relativista , segundo a qual não existe nenhum critério universal para o conhecimento e para a verdade. Todos os critérios utilizados serão sempre internos ao sistema cogniscente e, como tal, serão relativos e não universais. Consequentemente, a definição do que seja um problema social será sempre relativa, será antes de mais um rótulo colocado a determinadas situações, e não uma característica inerente à situação em si mesma.

Como resultado desta argumentação, o estudo das causas ou da etiologia da situação é deixado de lado ou secundarizado. O que importa estudar é a definição subjectiva dos problemas sociais, conhecer os processos pelos quais uma dada situação se torna problema social.

1.1.2. A aplicabilidade da ciência e o desenvolvimento teórico

Um problema pressupõe uma solução. O nascimento e desenvolvimento das ciências sociais, particularmente da sociologia, durante o século XIX esteve intimamente ligado ao estudo das preocupações humanas para as quais os actores sociais pensaram e desenvolveram soluções humanas, isto é, sociais.

Desde o início, os sociólogos tentam equacionar o que Rubington e Weinberg (1995:360) denominam de mandato duplo:

a) por um lado, dar atenção aos problemas existentes na sociedade, numa perspectiva de correcção da realidade social, através dos conhecimentos empíricos adquiridos;

b) por outro lado, desenvolver teórica e metodologicamente a sociologia enquanto ciência.

Hester e Eglin, seguindo Matza (Hester, Eglin 1996:4) consideram que o primeiro tipo de perspectiva pode ser denominado de sociologia correctiva, que parte dos seguintes pressupostos:

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• Equivalência de problema social a problema sociológico

• As questões sociológicas derivam das preocupações sociais

• O grande objectivo do estudo sociológico é a melhoria dos problemas sociais

• Preocupação central com as causas ou etiologia dos problemas

• Compromisso com os princípios positivistas da ciência

Ao concentrar-se em responder à questão porque é que os comportamentos acontecem, não questiona porque é que as situações são definidas como problema, aceitando as definições socialmente estabelecidas.

O mandato duplo dos sociólogos não deve ser entendido como mutuamente exclusivo, pois como já defendia Kurt Lewin, uma boa teoria é sempre prática, e a prática empírica é sempre indispensável ao desenvolvimento teórico. A separação entre os dois domínios é um falso problema.

A questão da aplicabilidade da sociologia e doutras ciências sociais leva-nos a referir a posição que muitos autores tomam denominada de Sociologia de Intervenção (Carmo 1999; Hess 1983). A Sociologia de Intervenção não é uma especialidade ou ramo sociológico, mas sim um modo de ver o trabalho do cientista social que, em vez de isolar assepticamente o investigador do seu objecto de estudo, o desafia a ser “contaminado” por este, o leva a intervir activamente na realidade que estuda e a não separar os papéis de investigador e de cidadão. A investigação social deve ser utilizada para melhorar a sociedade, segundo princípios humanistas de solidariedade e de libertação.

Na Sociologia de intervenção, a sociologia é um vírus que toca a toda a gente. Ela deve ser feita pelos próprios grupos sociais, sendo o sociólogo antes de mais aquele que propaga o vírus do que aquele que produz a sociologia como momento particular do saber social.

Após esta breve introdução a dois aspectos que consideramos fundamentais para se perceberem as diferentes aproximações sociológicas ao estudo da realidade social, passamos a descrever algumas perspectivas possíveis de estudo e compreensão dos problemas sociais, para o que seguimos de perto as sete correntes sociológicas propostas por Rubington e Weinberg (1995) na sua obra de síntese sobre esta matéria, sendo apresentadas pela ordem cronológica em que dominaram o pensamento sociológico norte-americano, como defendem estes autores.

Dividimos as perspectivas em duas categorias, segundo a linha positivista ou relativista que adoptam, de acordo com o que foi exposto acima.

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1.2. As perspectivas de estudo dos problemas sociais

1.2.1. As perspectivas da Sociologia Positivista

1.2.1.1. Patologia SocialOs avanços e os sucessos de disciplinas já instaladas, como a biologia e a medicina, influenciaram profundamente os sociólogos a adoptarem a analogia do organismo ao seu objecto de estudo: a sociedade. Adoptaram igualmente um modelo médico de diagnóstico e de tratamento. Os problemas sociais são entendidos como doenças ou patologias sociais.

O pensamento organicista, cujo autor mais consistente foi o britânico Herbert Spencer, defende que a sociedade e os seus elementos podem sofrer malformações, desajustamentos e doenças, à semelhança dos organismos vivos. Este argumento pressupõe um estado de saúde ou de normalidade do organismo, sendo que as pessoas e as situações que interfiram com este estado de normal funcionamento do organismo social são assim considerados problemas sociais.

Para a corrente da Patologia Social, um problema social é uma violação de expectativas morais (Rubington, Weinberg 1995:19). A condição de saúde ou normalidade do organismo é definida por valorações do Bem e do Mal.

A patologia pode ser encontrada no indivíduo ou no mau funcionamento institucional. Foi a perspectiva do Homem Delinquente da escola positiva italiana de criminologia, donde se destacaram Cesare Lombroso, Ferri e Garófalo (Dias, Andrade 1984).

Uma vez que o problema está no indivíduo, é essencial que se identifiquem as características que diferenciam o elemento doente daqueles que são normais. Para Cesare Lombroso, era claro que a explicação do comportamento criminal dos indivíduos estava em características fisiológicas particulares, como o tamanho dos maxilares, assimetria facial, orelhas grandes ou a existência de um número anormal de dedos. Já no séc. XX, avançaram-se outras explicações de base psicológica ou biológica, ao nível de anormalidade cromossomática (um duplo cromossoma Y) ou predisposição genética para a extroversão, que segundo Eysenck está ligada a comportamentos de violação de normas (Aggleton 1991; Dias, Andrade 1984).

Esta corrente voltou a ganhar alguma importância na década de 1960, mas os novos patologistas sociais afastaram-se da procura de deficiências nos indivíduos e centraram-se antes nas deficiências na socialização. Segundo esta nova aproximação à patologia social, os problemas sociais seriam o resultado da incorporação de valores “errados” pelos indivíduos, fruto de uma “sociedade doente”. Neste sentido, a solução para os problemas

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sociais passaria necessariamente pela educação moral da sociedade e pela incorporação de valores moralmente correctos.

A grande crítica, e para muitos autores fatal, que se coloca a esta perspectiva reporta-se à definição de patologia: como podemos definir o que é patológico? Vytautas Kavolis (citado em Rubington, Weinberg 1995:35-39) propôs a conceptualização de patologia como sendo um comportamento destrutivo ou auto-destrutivo. Para Kavolis a definição de comportamento destrutivo seria possível em termos absolutos, isto é, igual em todas as sociedades humanas.

Mas, apesar desta tentativa de Kavolis, os autores relativistas, como Carl Rosenquist (citado em Rubington, Weinberg 1995:45-50) defendem que é impossível chegarmos a uma definição objectiva do que é patológico, até porque a “saúde” da sociedade passa muitas vezes pela “doença” de algumas das suas partes. Para Rosenquist, a única forma de se estudarem os problemas sociais é passando ao lado do que constitui a sua condição problemática e aceitar o julgamento social como um dado.

1.2.1.2. Desorganização SocialAinda segundo Rubington e Weinberg (1995), os quatro teóricos mais importantes da desorganização social foram Charles Cooley, Thomas, Znaniecki e William Ogburn.

Cooley teorizou a distinção entre grupos primários e secundários, sendo que nos grupos primários os indivíduos vivem relacionamentos face a face, mais intensos e duradouros, enquanto que nos grupos secundários as relações sociais são mais impessoais e menos frequentes. Na sua obra de 1909, precisamente intitulada “Social Organization” (citado em Rubington, Weinberg 1995), Cooley definiu a desorganização social como sendo a desintegração das tradições.

De forma semelhante, Thomas e Znaniecki, no seu estudo clássico sobre os imigrantes polacos, conceptualizaram a desorganização social como a quebra de influência das regras sociais sobre os indivíduos.

O contributo de Ogburn centrou-se no conceito de desfasamento cultural (cultural lag) que este autor propôs. Para a perspectiva da desorganização social, a sociedade não é um organismo mas sim um sistema, composto por várias partes interdependentes.

Aos teóricos acima mencionados, gostaríamos de acrescentar os nomes de Robert Park, Ernest Burgess e Roderick McKenzie, os quais consideramos incontornáveis ao falarmos em desorganização social, no seguimento dos estudos que levaram a cabo sobre a organização espacial da cidade. Efectivamente, o fenómeno da urbanização é central para a perspectiva da desorganização social ao estar relacionado com o enfraquecimento das relações face a face e das tradições sociais.

Para os autores da Escola de Chicago a desorganização social, e por conseguinte os problemas sociais, têm uma distribuição

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desigual pelas zonas da cidade, apresentando maior intensidade na zona II1, precisamente uma zona de Transição, onde se concentram os migrantes recentes (imigrantes e população vinda das zonas rurais) e onde é maior a quebra do peso das tradições.

Embora o conceito de desorganização social se tenha revelado inicialmente de grande utilidade para a compreensão de um mundo onde a mudança começava a ser cada vez mais rápida, começaram a ser postas em evidência as fraquezas desta perspectiva.

Passamos a apresentar as críticas apontadas por Marshal Clinard (citado em Rubington, Weinberg 1995:81-82) ao conceito de desorganização social:

a) o seu poder explicativo para a sociedade em geral é reduzido, por ser um conceito demasiado vago e subjectivo.

b) confundiu-se desorganização social com mudança social, o que desde já deixa por explicar porque é que nem todas as mudanças originam desorganização, e implica que se prove que a situação anterior era de organização.

c) é um conceito fortemente sujeito aos julgamentos de valor do investigador, tal como o conceito de patologia. Por um lado, tende-se a considerar desorganização numa perspectiva negativa, como se todas as situações de desorganização sejam por essência “más”.

d) por outro lado, aplicou-se o conceito de desorganização social a situações que não são de desorganização, mas que, pelo contrário, traduzem outros tipos de organização, de que é um exemplo típico o que se passa nos bairros de lata.

e) o sistema social pode acolher em si focos de desorganização ou a existência de comportamentos desviados sem que tal comprometa o seu funcionamento, desde que outros objectivos do sistema estejam a ser alcançados, contrabalançando as influências desestabilizadoras que possam existir.

f) no seguimento da crítica anterior, ao constatarmos a existência de diferentes formas de organização social, não podemos inferir que tal situação seja desastrosa para a sociedade podendo pelo contrário ser indispensável para a manutenção da coesão social.

Outra crítica importante a apontar é que a perspectiva da desorganização social utiliza frequentemente explicações circula-

________________________________1 Relembrando o sistema das zonas concêntricas proposto por Burgess, Park e McKenzie, começamos por uma zona I que corresponde à área central de negócios onde estão instalados grandes armazéns, sedes de empresas, escritórios, pequena indústria, espaços de divertimento e outros serviços; a zona II é a zona de Transição, área deteriorada e de guetos, habitada principalmente por trabalhadores não especializados e imigrantes; segue-se a zona III onde habitam os trabalhadores mais especializados e a segunda geração de imigrantes; as zonas IV e V são áreas de residência das classes mais elevadas, respectivamente zona de apartamentos e zona de moradias dos trabalhadores pendulares (commuters).

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res para os problemas de desorganização (Aggleton 1991), isto é, o mesmo facto é considerado indicador e causa de desorganização social (por ex. o desemprego).

1.2.1.3. Conflito de ValoresUm outro modo de ver os problemas sociais é considerá-los como o reflexo de um conflito de valores na sociedade relativamente a uma dada situação.

Esta perspectiva concebe a sociedade como um palco onde se confrontam grupos sociais com interesses diferentes, fazendo deste conflito permanente a dinâmica central da vida social. Os problemas sociais daí resultantes só podem ser solucionados pela resolução dos conflitos que estão na sua origem, pela negociação e consenso, ou pela coerção e imposição.

A perspectiva do conflito de valores, ao definir os problemas sociais em relação a valores ou interesses dos grupos sociais envolvidos, coloca em evidência a importância da definição subjectiva, sem a qual a condição objectiva de base não seria só por si um problema social.

Os teóricos mais importantes desta corrente na sociologia norte-americana foram Richard Fuller e Richard Myers. Segundo estes autores, podem ser distinguidos três tipos de problemas que afectam as sociedades (citados em Rubington, Weinberg 1995:93-98):

a) problemas físicos

b) problemas remediáveis (ameliorative)

c) problemas morais

Relativamente aos problemas físicos, que não são causados pela acção humana (por ex. sismos ou furacões), existe consenso geral de que a condição objectiva é indesejável e nada se pode fazer para controlar as causas do problema2.

Os problemas remediáveis (por ex. delinquência juvenil), apresentam consenso quanto à indesejabilidade da situação e quanto à necessidade de agir para a corrigir, mas criam-se conflitos no que diz respeito ao conteúdo da acção, ou seja, o que fazer.

Por fim, os problemas morais (de que podem ser ex. o consumo de marijuana ou a eutanásia) são os mais complexos, pois não existe consenso quanto à própria indesejabilidade da situação.

Ainda segundo Fuller e Myers, os problemas sociais evoluem segundo três fases (citados em Rubington, Weinberg 1995:98-108):

1ª) inicialmente processa-se a tomada de consciência do problema, quando os grupos sociais começam a encarar uma dada situação incompatível com os seus valores mais importantes, reconhecendo a necessidade de agir,

________________________________2 O que constitui um problema físico muda com o avanço científico e tecnológico, à medida que a ciência domina o conhecimento das causas de certos fenómenos e concebe meios de os controlar.

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2ª) segue-se uma fase de determinação política, isto é, um processo de clarificação dos valores e das posições em presença e definição de propostas de acção,

3ª) por fim, a fase das reformas, na qual são postas em prática determinadas soluções para o problema, que podem ser levadas a cabo por agentes públicos ou por organizações privadas.

A fase da consciencialização dos problemas pode ser considerada como estando sempre em aberto.

1.2.1.4. Comportamento DesviadoA intenção de integrar campos, que tantas vezes estavam em oposição, está na base da perspectiva do comportamento desviado. Observou-se uma clara tentativa de conciliar as duas grandes escolas que dominavam o pensamento académico da sociologia norte-americana:

a) a Escola de Harvard, de ênfase teórica,b) e a Escola de Chicago, iminentemente empírica e

descritiva.

Na Universidade de Harvard, pontificava a figura de Talcott Parsons e dos seus alunos, que iam desenvolvendo o pensamento funcionalista-estrutural. Sendo uma escola com forte pendor teórico, aí se discutia o pensamento de sociólogos clássicos europeus, com especial destaque para Durkheim e Max Weber. É precisamente com o conceito de anomia que Robert Merton, um aluno de Parsons, irá dar um importante contributo para a perspectiva do comportamento desviado.

Para Durkheim, o conceito de anomia significava uma ausência de normas, um quebrar das regras (Aggleton 1991; Barata 1990; Timasheff 1979).

O conceito de anomia em Merton é um tanto diferente: refere-se antes a um desfasamento entre metas culturais a atingir e os meios que a sociedade proporciona para o efeito. Se determinadas metas culturais forem enfatizadas mas os indivíduos não dispuserem dos meios sancionados pela estrutura social, estaremos perante uma situação de anomia.

Daqui resulta que o comportamento desviado é entendido como normal em relação a situações anormais, concepção que já Durkheim tinha avançado3.

Segundo Merton, o desfasamento entre meios e metas dá origem a quatro tipos de adaptação individual:

• a inovação, na qual as metas são mantidas mas são utilizados novos meios para as alcançar (por ex: roubar ou subornar),

• o ritualismo, pelo qual se renuncia às metas, mas se sobrevalorizam os meios,

________________________________3 Os comportamentos desviados apresentam mesmo funções sociais, nomeadamente como definição do contrário do comportamento aceitável na sociedade e catalizadora da coesão social.

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• a evasão, na qual tanto os meios como as metas são renunciados (por ex: alcoolismo),

• e a rebelião, quando se pretende instaurar novas estruturas de metas e de meios.

Como vimos acima, também a Universidade de Chicago influenciou a perspectiva do Comportamento Desviado. É aí que Edwin Sutherland desenvolve a teoria da associação diferencial, apresentada pela primeira vez em 1938 (Aggleton 1991; Rubington, Weinberg 1995).

Sutherland, mais tarde em parceria com Donald Cressey, apresenta em nove pontos este processo de génese do comportamento criminoso (citado em Rubington, Weinberg 1995:149-151):

1. o comportamento criminoso é apreendido, não é inato,

2. é aprendido pela interacção com outros indivíduos num processo de comunicação,

3. a aprendizagem mais importante é feita em grupos primários4,

4. a aprendizagem envolve, por um lado, as técnicas necessárias ao crime e, por outro lado, os motivos, as racionalizações e as atitudes a ele ligadas,

5. os motivos e os impulsos são aprendidos segundo a definição favorável ou desfavorável aos códigos legais. Podemos estar num meio no qual os códigos legais são definidos favoravelmente e são para ser observados, ou, pelo contrário, podemos estar rodeados de indivíduos que são favoráveis à violação dos códigos legais,

6. um indivíduo torna-se delinquente pela razão de encontrar um excesso de definições favoráveis à violação da lei em detrimento das definições desfavoráveis à violação da lei,

7. a associação diferencial varia em termos de frequência, duração, proximidade e intensidade,

8. o processo de aprendizagem dos comportamentos criminosos e não criminosos integra todos os aspectos normalmente envolvidos em qualquer tipo de aprendizagem,

9. as necessidades e os valores gerais (ex: segurança, riqueza material) que são reflectidos pelo comportamento criminoso não explicam este mesmo comportamento, uma vez que outros comportamentos não criminosos também os reflectem.

10. Em meados dos anos 50, Albert Cohen, na sua teoria da subcultura delinquente (Cohen, 1968), sustentou que os jovens da classe trabalhadora enfrentavam uma situação de anomia no sistema escolar, pensado segundo os valores da classe média. Na escola eram ensinados a prosseguir estes valores mas eram-lhes vedados os meios legítimos para os

________________________________4 Esta proposição secundariza a importância dos mass media na aprendizagem dos comportamentos desviados.

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poderem atingir. Em resultado, estes jovens uniam-se e formavam uma cultura própria que violava os códigos legais. As novas normas eram socializadas através do processo da associação diferencial.

Outra teoria de síntese foi proposta por Richard Cloward e Lloyd Ohlin nos anos 60 (Cloward e Ohlin 1966). Na sua teoria da oportunidade, estes autores sustentam que não basta considerarmos a estrutura de oportunidades legítimas na génese do comportamento delinquente: é igualmente essencial ter em conta a estrutura de oportunidades ilegítimas .

A perspectiva do comportamento desviado entende que os problemas sociais reflectem, de forma mais ou menos directa, violações das expectativas normativas da sociedade, sendo que todo o comportamento que viola essas expectativas é um comportamento desviado. A solução para os problemas de comportamento desviado deverá passar pela ressocialização dos indivíduos e pela mudança da estrutura social de oportunidades, de forma a que sejam aumentadas as oportunidades legítimas e diminuídas as oportunidades ilegítimas.

Outros sociólogos não se interessaram pelo processo como etiologia e revolucionaram o modo como os problemas sociais estavam a ser estudados.

1.2.2. As perspectivas da Sociologia Relativista

Neste ponto iremos abordar três perspectivas que seguem uma visão relativista da ciência, de base interaccionista (o labeling e o constructivismo social) e estruturalista (a perspectiva crítica). Nelas se defende, em oposição ao positivismo, que o conhecimento é socialmente construído. Se assim é, a questão central é saber como é que a realidade faz sentido para as pessoas e através de que processos estas dão e partilham significados sociais.

1.2.2.1. LabelingMead, que foi professor de filosofia na Universidade de Chicago, concebeu a formação do Ego como o resultado das interacções sociais com Outros Significativos (Aggleton 1991; Barata 1990a). As pessoas interagem fundamentalmente através de símbolos (sons, imagens, gestos, etc.) e os seus significados emergem da interacção social.

Herbert Blumer desenvolveu a ideia de que os significados não são dados, mas requerem uma interpretação activa por parte dos actores sociais envolvidos (Aggleton 1991).

Erving Goffman introduziu o conceito de identidade social, para se referir às qualidades pessoais que permanecem constantes em diferentes situações (Aggleton 1991). Defendeu ainda que a identidade social pode ser consolidada pelas reacções dos outros ao comportamento dos indivíduos. Se as reacções forem negativas, as pessoas podem ser forçadas a aceitar uma “spoiled identity”, processo que Goffman define como de estigmatização.

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Se é certo que os autores acima referidos foram fundamentais para a teoria do labeling, os nomes pioneiros da perspectiva propriamente dita são indiscutivelmente os de Edwin Lemert e Howard Becker. Edwin Lemert defendeu, no início dos anos 50, a teoria de que o desvio é definido pelas reacções sociais e introduziu os conceitos de desvio primário e desvio secundário (Aggleton 1991; Rubington, Weinberg 1995). Esta distinção de conceitos baseia-se numa outra distinção que Lemert estabeleceu entre comportamento desviado (deviant act) e papel social desviado (deviant role). Existe uma multiplicidade de causas, biológicas e sociais, para os comportamentos desviados, isto é, para o desvio primário. Mas a causalidade dos papéis sociais desviados, ou desvio secundário, reside na interacção social entre o indivíduo que é definido como desviado e a sociedade onde se insere. A reacção social ao desvio primário está assim na origem do desvio secundário.

Segundo Lemert, a sequência de interacção que leva ao desvio secundário pode ser esquematizada com a seguinte evolução (Lemert citado em Rubington, Weinberg 1995:194):

1. ocorrência do desvio primário

2. sanções sociais

3. recorrência do desvio primário

4. sanções sociais mais pesadas e maior rejeição social

5. continuação do desvio, agora com possível hostilidade e ressentimento por parte do indivíduo desviado para com aqueles que o sancionam

6. o coeficiente de tolerância chega a um ponto crítico, que se reflecte nas acções formais de estigmatização do indivíduo levadas a cabo pela comunidade

7. fortalecimento do comportamento desviado como reacção à estigmatização e às sanções

8. aceitação do estatuto de desviado por parte do indivíduo estigmatizado e consequentes ajustamentos com base no novo papel social

Esta perspectiva é reforçada por Howard Becker ao introduzir o conceito de labeling, que deu o nome a esta corrente, e o conceito de carreira desviante.

Becker defendeu que o comportamento desviado é aquele que a sociedade define como desviado. Os problemas sociais, tal como os comportamentos desviados, são definidos pelas reacções sociais a uma alegada violação das normas ou expectativas sociais, e podem ser ampliados por essas mesmas reacções.

Para que alguém seja rotulado de desviado é necessário percorrer uma série de fases sequenciais, num processo de interacção dinâmico, a que Becker apelidou de carreira desviante.

O que a perspectiva do labeling constatou é que nem todos os que

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violam as normas são rotulados de desviados5, o que nos leva a considerar que, em última instância, todo este processo traduz uma certa equação do poder na sociedade : quem define as regras, quem aplica os rótulos, quem é rotulado.

Este aspecto está relacionado com algumas das críticas feitas a esta corrente: afirmar que o desvio é originado antes de mais pela formulação das regras que são violadas e pelas reacções a esta violação das normas, soa como uma desculpabilização e desresponsabilização dos comportamentos em vez de uma explicação dos mesmos.

1.2.2.2. Perspectiva CríticaA perspectiva crítica, também denominada de perspectiva radical, veio a centrar-se na questão da influência do poder na definição dos comportamentos desviados e dos problemas sociais, e numa concepção alargada da contextualização social do desvio.

Partilham com a corrente interaccionista a posição de que os problemas sociais são definições sociais, mas preocupam-se em explicar em termos estruturais porque é que certas situações se transformam mais facilmente em problemas sociais do que outras.

Assume, portanto, uma postura de conflito na génese dos problemas sociais. Segundo a tradição marxista, os modos de produção da infra-estrutura económica determinam relações sociais distintas. No estádio capitalista de desenvolvimento, a divisão social mais importante é a que separa os que possuem os meios de produção, a classe capitalista, dos que têm unicamente a sua força de trabalho para vender, e que constituem a classe trabalhadora.

Os interesses da classe capitalista e os da classe trabalhadora são irremediavelmente opostos. A vida social é consequentemente caracterizada pelo conflito.

Todas as instituições sociais estão assim interligadas e dominadas pela infra-estrutura económica. A abordagem à realidade social deve ser holística e analisar cada fenómeno social em relação a todo o sistema social.

Para a perspectiva crítica, os problemas sociais advêm das relações sociais impostas pelo modo de produção, e traduzem a necessidade de controle da classe capitalista e a necessidade de resistência e acomodação das classes exploradas.

A solução para os problemas sociais reside, em última instância, na mudança (de preferência revolucionária) do sistema social de classes para uma sociedade sem classes, isto é, sem exploração humana, sem injustiças e sem desigualdades.

O surgimento da corrente crítica e a sua influência no pensamento________________________________5 Ver por exemplo o interessante estudo de William Chambliss, de 1973, The Saints and the Roughnecks (citado em Rubington, Weinberg:205-219), que ilustra as diferenças na imposição do rótulo de delinquente a jovens provenientes de classes sociais distintas.

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sociológico datam dos anos 70, uma década de crise e de profunda crítica social, no seguimento aliás da década anterior. Foi um período de renascimento das grandes discussões teóricas.

Os autores mais significativos desta abordagem foram os sociólogos britânicos Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young (1975; 1981), responsáveis pela obra fundamental “The new criminology”, que deu nome à corrente da nova criminologia ou criminologia radical. Segundo Taylor, Walton e Young, o desvio deve ser analisado de forma materialista e histórica: materialista porque deve ser analisado o contexto material no qual surge o desvio; histórica poque se deve relacionar o desvio com a evolução histórica dos modos de produção.

Esta perspectiva tem sido fortemente criticada por autores positivistas que argumentam ser este tipo de abordagem mais uma ideologia do que uma teoria científica. Da mesma forma que a teoria do labeling foi criticada por se limitar a explicar o processo da rotulagem social e não os comportamentos desviados, também se apontou à perspectiva crítica o facto de se ter centrado na explicação da génese das leis e no funcionamento das instituições de controle e ter negligenciado neste processo a explicação dos comportamentos desviados.

Outro tipo de crítica é relativa à ênfase dada por esta corrente às questões de classe e ao poder económico, quando existem outras fontes de conflito social, com base no género, idade ou nas diferenças étnicas (Marshall Clinard e Robert Meir citados em Rubington, Weinberg 1995:279-280). Efectivamente, a perspectiva crítica aborda estas questões, mas considera-as como sendo dependentes da infra-estrutura económica.

Como perspectiva de conflito que é, torna-se mais plausível quando na sociedade não há claramente um consenso quanto à definição do que sejam comportamentos ou pessoas desviados. Como notam Marshall Clinard e Robert Meir (citados em Rubington, Weinberg 1995:280), existem leis que beneficiam claramente toda a sociedade (como sejam as leis contra homicídios), e algumas acabam por proteger mais as classes trabalhadoras do que as classes capitalistas (segundo Clinard e Meir, as leis que penalizam os roubos e os assaltos são disso exemplo).

1.2.2.3. Constructivismo SocialA afirmação de que a realidade social é socialmente construída pode ser subscrita, num sentido amplo, por todos os sociólogos, independentemente do seu posicionamento teórico. Ao falarmos aqui em constructivismo social estamos a referir-nos a correntes teóricas cuja ideia central e geradora é a de que as pessoas criam activamente a sociedade.

Os autores que introduziram formalmente esta perspectiva foram Peter Berger e Thomas Luckmann, com a obra “The social construction of reality”, publicada nos EUA em 1966 (Berger, Luckmann 1999; Corcuff 1997). Ambos os sociólogos foram alunos

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de Albert Schutz, considerado o pai da sociologia fenomenológica e um dos mentores da teoria do labeling.

Berger e Luckmann (1999) defendem que a sociedade é uma produção humana e o Homem é uma produção social. Para estes sociólogos, a sociedade é ao mesmo tempo uma realidade objectiva e subjectiva. É objectiva porque é exteriorizada, relativamente aos actores sociais que a produzem, e é objectivada, sendo constituída por objectos autónomos dos sujeitos sociais. É uma realidade subjectiva porque é interiorizada através da socialização.

Quando Berger e Luckmann publicaram “The social construction of reality” a teoria do labeling estava em plena expansão. Mas em razão do seu próprio desenvolvimento as vozes críticas cedo começaram a surgir no interior da teoria. As de John Kitsuse e de Malcolm Spector foram duas delas.

Embora a teoria do labeling tenha defendido que o desvio só é desvio quando é assim reconhecido socialmente, acabou por não pôr em causa essas mesmas definições, isto é, não questionou porque é que certos comportamentos eram definidos como desvio e outros não, e desenvolveu a sua construção teórica à volta das definições de desvio socialmente estabelecidas. A perspectiva do labeling preocupou-se fundamentalmente em explicar o processo pelo qual o rótulo de desvio era afixado aos indivíduos. Para Kitsuse e Spector a questão que deverá ser colocada é, antes de mais, saber porque é que algumas situações são consideradas problemas sociais e outras não. O que pretendem explicar é o surgimento do próprio rótulo de problema social. Segundo estes autores, somente através desta problematização sociológica será possível chegarmos a uma teoria social dos problemas sociais.

A condição objectiva do problema social é, portanto, posta de lado pela perspectiva constructivista, pois esta não é essencial para a existência de um problema social.

É a definição subjectiva do problema social que se revela essencial para a existência do mesmo e como tal só esta deve ser investigada pelos sociólogos. Problemas como a violência conjugal, o trabalho infantil, a discriminação das mulheres ou a poluição ambiental são exemplos de situações que só se converteram em problemas sociais quando se estabeleceu com sucesso um movimento de reivindicação que definia estas situações como problemas.

Um problema social só se constitui em razão de todo um processo de reivindicação e reacção social. Daqui resulta que para a perspectiva constructivista importa identificar quem considera que existe uma situação inaceitável e exige acção reparadora, ou seja,• quem define uma dada situação, real ou virtual, como

problema social;• quais as razões que apresenta;• quem reaje a esta pretensão e• que tipo de dinâmica se estabelece entre as duas partes(Rubington, Weinberg 1995).

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Somente após o estudo empírico do processo de definição de cada problema social é que podem ser elaboradas possíveis soluções para o mesmo.

Esta posição constructivista, que Rubington e Weinberg consideram de posição subjectiva radical (1995:292) é fortemente criticada, nomeadamente por aqueles que enfatizam a aplicabilidade da investigação no melhoramento da sociedade e que acusam esta perspectiva de menosprezar o sofrimento causado pelas situações objectivas que secundarizam. Os constructivistas sociais argumentam em resposta que o conhecimento do processo de reivindicação de problemas sociais pode ser produtivamente aplicado às mais variadas situações sociais: para que se dê a devida atenção às condições objectivas causadoras de sofrimento é necessário antes de mais que exista quem reivindique eficazmente por elas (Joel Best citado em Rubington, Weinberg 1995:341-351).

É igualmente importante reconhecer que nem todos os autores constructivistas põem completamente de lado as condições objectivas dos problemas sociais, nem esta corrente afirma que não se devem estudar estas situações objectivas: o que afirmam é que este não deve ser o tipo de problema sociológico a ser respondido pelos sociólogos que pretendem estudar os problemas sociais enquanto definição de fenómenos sociais.

Podemos exemplificar esta ideia com o fenómeno da delinquência juvenil: segundo o constructivismo social, ou estudamos a delinquência juvenil, investigando aspectos como as causas do comportamento desviado dos jovens, a evolução dos casos de delinquência, ou a sua distribuição pelos estratos sócio-económicos, ou então estudamos o problema social da delinquência juvenil, ou seja, como é que a sociedade veio a reconhecer este fenómeno como problema social, e neste caso não é essencial que se saibam as causas do comportamento desviado em questão.

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1.3. SíntesePerspectivas de estudo dos problemas sociais

Perspectiva Definição de Problema Social Elemento Central

Patologia Social Violação de expectativas morais Pessoas

Desorganização Social Falha no funcionamento das regras sociais Regras sociais

Conflito de Valores

Situação incompatível com os valores de um grupo social Valores e Interesses

Comportamento Desviado Violação de expectativas normativas Papéis sociais

Labeling Resultado da reacção social a alegada violação de normas ou expectativas Reacções sociais

Perspectiva Radical

Resultado da exploração da classe trabalhadora

Relações de classes sociais

Constructivismo social

Processo pelo qual grupos sociais reivindicam que uma dada situação é um problema social

Processo de reivindicação

Fonte: Adaptado de Rubington e Weinberg (1995)

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2. Perspectivas político-doutrinárias sobre os problemas sociais2.1. Os problemas sociais e a alteração do

papel do EstadoOs modos como os problemas sociais têm sido encarados pela sociedade, bem como foram concebidos e implementados os sistemas para lhes dar resposta, evoluíram significativamente ao longo da história humana. Nas sociedades pré-industriais, em regra,

(...) a legitimação da intervenção (foi), quase exclusivamente, de ordem ético-religiosa, não se considerando que o Estado (tivesse) o dever de ajudar, nem o cidadão o direito de esperar ajuda. O modelo de intervenção (era) claramente assistencial (Carmo, 1999: 55).

2.1.1. O Estado protectorA progressiva centralização do poder nas mãos do soberano que se registou concomitantemente com a desagregação da sociedade do Ocidente medieval, deu origem a um modelo de Estado a que alguns autores chamaram Estado Protector (Rosanvallon, 1984).

Partindo da ideia de que o poder não é uma simples capacidade de obrigar, mas que traduz a resultante da tensão entre tal capacidade e a vontade de obedecer (Moreira, 1997), poder-se-á afirmar que a centralização registada resultou de duas tendências:

● um processo de concentração da capacidade de obrigar por parte do poder político, de que foram expressão, entre outras, a criação dos exércitos nacionais e a concentração progressiva do poder tributário;

● a emergência de um consenso crescente sobre a vontade de obedecer, do sector que mais tarde se viria a chamar sociedade civil.

O modelo de Estado que daqui resultou, privilegiou os fins de segurança e de justiça em detrimento do fim de bem estar social que, por regra, foi remetido para a esfera da sociedade civil, ainda que por vezes se tenham observado incursões orientadoras dessa actividade, por parte do poder estatal, não tanto por via directa mas por intermédio de acções das casas reais e da aristocracia6.

________________________________6 Em Portugal, registam-se diversos exemplos desse tipo de intervenções, sobretudo a partir do século XV, de que o exemplo mais significativo foi a criação de condições para a proliferação do movimento das Misericórdias (Tavares, 1989: 267 e sgs).

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O Estado Protector

Para garantir a eficiência do Estado Protector, o príncipe recorreu a dois tipos de pessoas:

● aos políticos profissionais e semi-profissionais que actuavam ao seu serviço sendo elementos da sua confiança.

● aos funcionários profissionais que pouco a pouco foram aumentando na Europa, em função da progressivamente maior complexidade dos problemas que ao Estado competia resolver. Assim se passou no campo da administração financeira, da técnica guerreira e da actividade jurídica, em que o profissionalismo especializado tomou o lugar do amadorismo polivalente. Iniciou-se deste modo e simultaneamente, o predomínio do absolutismo do príncipe sobre os feudos e a lenta abdicação que o mesmo príncipe faz da sua autocracia, em favor dos funcionários profissionais, cujo auxílio lhe era indispensável para vencer o poder feudal.

Apesar da complexificação crescente descrita por Max Weber, a verdade é que o aparelho que serviu de suporte ao Estado Protector era de pequena dimensão, com uma organização difusa e com um sistema de decisão pouco profissionalizado, se o compararmos com as modernas administrações públicas.

2.1.2. O Estado ProvidênciaCom a revolução industrial e a emergência de problemas económicos e sociais que daí resultaram, o Estado foi chamado a assumir funções

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Desagregação da sociedade feudal

Concentração da capacidade de obrigar

pelo poder político

Maior consenso na vontade de obedecer por

parte da sociedade civil

Estado Protector

Objectivos:. Produzir segurança. Reduzir a incerteza

Fins dominantes do Estado:. Segurança. Justiça

Características dominantes do aparelho de Estado:. Pequena dimensão. Organização relativamente difusa. Pilotagem centralizada

de regulação e de orientação progressivamente maiores, sobretudo nas áreas da política económica e social, tendo emergido a consciência crescente de que o Bem-Estar constituía um fim do Estado, a par dos referidos anteriormente.

Para realizar tal finalidade, o seu aparelho administrativo teve de assumir uma dimensão progressivamente maior, com uma organização cada vez mais complexa7 e uma pilotagem progressivamente mais profissionalizada8.

As tendências para a dimensão crescente da Administração Pública e para a assunção de um papel cada vez mais intervencionista na tentativa de resolução dos problemas económicos e sociais, tiveram como resultado o aumento das despesas públicas e, naturalmente, da carga fiscal para lhes fazer face.

É este o quadro geral em que se inscreve a polémica, permanente desde há dois séculos, entre as correntes que advogam o dever do Estado em intervir na resolução dos problemas sociais e económicos e as que defendem que tais problemas seriam melhor resolvidos pela sociedade civil.

O Estado Providência________________________________7 A complexidade da organização pode ser observada através de três indicadores: a instauração de mais patamares hierárquicos, diferenciando crescentemente os papéis de mando e de obediência, a divisão de trabalho, num processo de crescente especialização funcional, e o aumento de sistemas de regulamentação.8 Exemplos recentes desta tendência são, o aumento das qualificações formais pedidas nos concursos de ingresso à função pública e o peso crescente da formação complementar como parâmetro de avaliação nos concursos de acesso.

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Revolução industrial

Crescimento e radicalização das funções do Estado

Problemas económicos Problemas sociais

Estado Providência

Objectivos:. Produzir segurança. Reduzir a incerteza. Promover a regulação e a orientação sócio-económica

Fins dominantes do Estado:. Segurança. Justiça. Bem estar

Características dominantes do aparelho de Estado:. Dimensão progressivamente maior. Organização progressivamente mais complexa. Pilotagem progressivamente mais profissionalizada

2.2. As perspectivas liberaisDuma forma simplificada pode dizer-se que a perspectiva liberal foi resultado de uma lenta sedimentação de natureza económica, doutrinária e política que ocorreu na Europa a partir do século XV.

Génese do liberalismo

2.2.1. GéneseCom a expansão europeia e a consequente diversificação de mercados e acumulação de capital, a burguesia consolidou-se como classe social.

Paralelamente a este processo, a ordem política foi também ela profundamente alterada, como atrás foi referido, apresentando como traços dominantes, a centralização do Poder real e o consequente enfraquecimento da velha aristocracia, apoiada na ascensão da burguesia.

Acompanhando esta dupla tendência e escorando-a ideologicamente, foram surgindo diversas doutrinas económicas e sociais, como o mercantilismo, a fisiocracia e todo um corpo filosófico que procurou

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Movimentos delegitimação doutrinária

Génese económica Génese política

Expansão(séculos XV e XVI)

(implica diversificaçãode mercados;

acumulação de capital)

Centralização dopoder real

Industrialização Guerras religiosas(século XVII)

Nova ordemeconómica

(consolidação daburguesia)

Consolidação danova ordem política(o Estado-Nação aoserviço da economia

subsidiada)

Liberalismo

. Mercantilismo

. Fisiocracia

. Movimentosde reacçãoaos excessosdo Príncipeque culminamna Revoluçãofrancesa

limitar o despotismo do príncipe, que veio a criar condições para a revolução francesa.

O liberalismo deve ser compreendido no seu sentido mais global (como uma) doutrina baseada na denúncia de um papel pais activo do Estado e na valorização das virtudes reguladoras do mercado (Rosanvallon, 1984: 49).

2.2.2. As tesesÉ esta a tese defendida por grande parte dos principais autores do liberalismo positivista clássico, como Adam Smith, Jeremias Bentham, Burke, Humbold, do liberalismo utópico como Paine e Godwin e do neoliberalismo como Robert Nozick ou John Rawls. Em todos estes autores encontramos uma forte crítica à excessiva dimensão do Estado, variando, no entanto, nos critérios definidores das suas funções e na definição do seu campo de actuação. É o caso, mais recente, da corrente neoliberal , que deve ser entendida como uma crítica, da crítica à economia de mercado.

Para discutir esta questão, Rosanvallon (1984) parte da teoria das internalidades (Wolf, 1979). De acordo com esta teoria, a acção do Estado tem, com frequência, efeitos imprevistos (internalidades), que pervertem as intenções de justiça e de promoção do Bem-Estar das suas políticas. Um exemplo deste tipo de efeitos perversos é o do ciclo vicioso das despesas públicas descrito por este autor:

● O crescimento das necessidades dos cidadãos (económicas, sociais, de segurança, etc.), implica uma pressão sobre o Estado no sentido de as colmatar (aumento da procura de Estado).

● O aumento da procura de Estado, obriga este a concentrar recursos e articulá-los para dar resposta às necessidades (aumento da oferta de Estado).

● Para que a oferta de Estado cresça, este é obrigado a fazer mais despesas públicas.

● O aumento das despesas públicas determina um aumento dos impostos para lhes fazer face.

● O aumento da carga fiscal sobrecarrega os cidadãos o que, naturalmente, lhes aumenta as necessidades e a procura de Estado, e assim sucessivamente.

No que respeita aos problemas sociais e económicos, o pensamento liberal tem evoluído, ainda que partilhe de uma ideia comum: o mercado é melhor regulador que o Estado e, por consequência, os problemas sócio-económicos devem ser atacados predominantemente pela sociedade civil.

Em suma, a posição liberal face aos problemas sócio-económicos pode resumir-se em dois aspectos:

● A maior parte dos problemas sociais e económicos resultam de uma excessiva intervenção do Estado

● A resolução dos problemas sociais e económicos deveria ser deixada aos mecanismos (naturais) de auto-regulação do mercado.

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2.2.3. As limitaçõesEm traços gerais os críticos à perspectiva liberal apontam-lhes as seguintes limitações (Rosanvallon, 1984):

● Os limites da acção do Estado são, em regra, insuficientemente operacionalizados.

● Normalmente a crítica à acção do Estado é bem feita, nomeadamente no que respeita aos efeitos perversos da burocracia, baseada na teoria das internalidades. No entanto, os efeitos imprevistos do funcionamento do mercado que condicionam fortemente a emergência e o agravamento dos problemas sócio-económicos não são convenientemente equacionados.

De acordo com Suzanne de Brunhoff (1987), a conjuntura é vista como um cenário de guerra económica o que implica, por parte dos decisores políticos, uma atitude de nacionalismo económico. Neste contexto, as funções económicas e sociais do Estado procuram atingir dois objectivos:

● reforçar a frente de combate económica, apostando em políticas de obtenção de encomendas no estrangeiro e em estratégias de financiamento e de proteccionismo dos sectores sociais mais fortes, como os segmentos que apostam no desenvolvimento tecnológico e nas exportações;

● ajudar a tratar dos feridos da guerra económica (pobres e novos pobres, grupos mais atingidos como os jovens, as mulheres, os idosos, os imigrantes e os desempregados de regiões industriais sinistradas).

Neste cenário, o reforço da frente de combate é normalmente mais forte que a ajuda ao tratamento dos feridos da guerra económica, criando-se um ambiente tendente a retirar os direitos sociais e económicos aos cidadãos.

2.3. As perspectivas marxistas2.3.1. GéneseO pensamento marxista enquadra-se historicamente na Europa do século XIX, em plena revolução industrial, na tentativa de analisar a sociedade coeva e de propor soluções para as disfunções sociais que então se viviam.

A abundante obra de Marx (1818-1883) reflecte isto mesmo, não devendo ser entendida como um sistema fechado mas, pelo contrário, uma teoria em permanente evolução, por vezes mesmo contraditória, contrariamente à imagem que as correntes ortodoxas posteriores fizeram passar.

Para isso muito contribuiu o próprio percurso existencial de Karl Marx: nascido e criado numa família de origem judia, cujo pai se viu na contingência de se baptizar para não ser alvo de medidas discriminatórias anti-semitas (Mclellan, 1974: 5), fez a sua formação

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inicial na Alemanha, onde nasceu, tendo vivido sucessivamente exilado em França, na Bélgica e no Reino Unido.Na Alemanha onde viveu até 1843, analisou e criticou a filosofia alemã do seu tempo, tendo sido profundamente influenciado pelo pensamento de Hegel e pelo convívio com os Jovens Hegelianos, radicais seus amigos na Universidade (Mclellan, 1974:10).

Em França, onde chegou exilado em Outubro de 1844, Marx continuou a trabalhar nos seus escritos filosóficos e económicos – Correspondência de 1843, Sobre a questão judaica (1843-44), Para uma crítica da filosifia do Direito de Hegel: Introdução (1844), Manuscritos económicos e filosóficos (1844), Comentários a “O rei da Prússia e a reforma social” (1844), A sagrada família (1844-45) – tendo aprofundado o pensamento de socialistas franceses e começado a estudar a economia política britânica, nomeadamente a obra de Adam Smith e David Ricardo, através de traduções francesas.

Em Bruxelas, para onde foi deportado em Janeiro de 1845 e permaneceu durante três anos, continuou os seus estudos de economia e começou uma colaboração permanente com Engels9, que se manteve até ao fim da vida. São dessa época as Teses sobre Feurbach (1845), A ideologia alemã, (1846) e A miséria da filosofia (1847), este último em réplica ao livro de Proudhon intitulado A filosofia da miséria, em que publicita pela primeira vez as suas teses sobre o materialismo histórico10.Regressado a Paris em 1848, onde soube da publicação em Londres do Manifesto comunista, que havia escrito com Engels no ano anterior para a Liga Comunista, lá residiu por uns meses a convite do governo provisório formado após a abdicação do rei Luís Filipe, tendo voltado à Alemanha devido à conjuntura de maior liberdade política que então se vivia, onde ficou por pouco tempo, como jornalista, tendo sido de novo expulso, sucessivamente para Paris e para Londres, em Agosto de 1848.

Em Londres, onde viveu até à sua morte (1883), escreveu, entre outros, A luta de classes em França (1850), O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1850), Crítica da Economia Política (1859) e Crítica do Programa de Gotha (1875), continuando as suas investigações económicas, que culminaram com a publicação da obra minumental em três volumes, O capital (1865, 1867 e 1869/79).A influência da gigantesca obra de Marx foi enorme na evolução do pensamento filosófico11, económico, sociológico e político12 do século XX, bem como no desenrolar dos acontecimentos que marcaram a sua história, pelas forças que congregou13 e pelas reacções que suscitou14.

________________________________9 A colaboração entre os dois amigos havia tido já um primeiro episódio, em Paris, com o trabalho A sagrada família.10 “Lassalle, o proeminente dirigente socialista alemão dos anos sessenta, disse a respeito do livro que, na sua primeira metade, Marx mostrava-se um Ricardo tornado socialista, e na segunda parte um Hegel tornado economista” (Mclellan, 1974:63).11 Nomeadamente no desenvolvimento do materialismo dialéctico.12 Cfr. Aron, 1994, op.cit. A sua principal contribuição foi o desenvolvimento da abordagem materialista histórica e a sua aplicação à análise do capitalismo.13 As tentativas de aplicar as concepções marxistas nas estratégias de conquista e exercício do Poder foram muitas e diversificadas, como se sabe, podendo agrupar-se em dois grandes conjuntos: aquelas que ocorreram em sociedades com alguma estrutura industrial, de que os exemplos mais significativos foram o soviético e os regimes comunistas da Europa de Leste, e as que se observaram em sociedades dominantemente pré-industriais, cujo modelo dominante foi o chinês.14 As reacções vieram de todos os quadrantes políticos, tanto de regimes totalitários, como de regimes demo-liberais.

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2.3.2. As tesesO pensamento de Marx relativamente ao papel do Estado não é idêntico ao longo da sua obra, nela se encontrando

● desde uma posição idealista defendida na Gazeta Renana, em 1843, em que descrevia a possibilidade da existência de “uma associação de homens verdadeiramente livre num estado idealizado, concebido, com base no modelo hegeliano, como uma incarnação da razão (Mclellan, 1974: 293),

● passando pela afirmação de que o Estado era uma expressão da alienação humana semelhante à religião, ao direito e à moralidade (Manuscritos de 1844), um biombo que esconde as verdadeiras lutas inter-classes, assumindo-se como instrumento da classe dominante (Ideologia Alemã), uma mera comissão de gestão dos assuntos da burguesia (Manifesto),

● até à afirmação de que poderia desempenhar, apesar de todas as críticas, algum papel positivo em favor das classes oprimidas (A guerra civil em França), ou mesmo que poderia ser, quando em situação de ditadura do proletariado, instrumento de mudança para a sociedade comunista (Crítica do Programa de Gotha).

Apesar desta aparente ambivalência, parece ser constante o reconhecimento do importante papel que cabe ao Estado como instrumento da classe dominante (seja ela a burguesia ou o proletariado), nas funções de regulação e orientação da sociedade global.

Se a esta constatação acrescentarmos que, na perspectiva marxista, os problemas económicos e sociais são resultantes, em última análise, da situação de exploração de uma classe em benefício de outra num cenário de permanente luta de classes, poderemos entender as duas estratégias defendidas por esta corrente, consoante detenha ou não o controle do Estado:

● quando o Estado não é controlado pela classe trabalhadora15, às organizações desta classe cabe fazer pressão16, no sentido de que o poder político lhes faça concessões, em nome de uma paz social ameaçada, no sentido de prevenir e atenuar os problemas sociais; uma vez que a raiz dos problemas está no sistema de dominação, qualquer reivindicação de solução para os problemas referidos deve ter em atenção, ainda que a longo prazo, a conquista do poder pela classe trabalhadora;

● quando o Estado é controlado pela classe trabalhadora, deve centralizar a definição de rumos e a articulação de meios para fazer face aos problemas sociais e económicos; neste sentido, deve-lhe competir um papel dominante no planeamento e organização da economia e da protecção social17.

________________________________15 À expressão inicial proletariado, foi sendo preferida a designação mais populista classe trabalhadora, na qual poderiam sentir-se identificados vários grupos progressistas de origem burguesa como aqueles que Gramsci designava intelectuais orgânicos.16 Através dos grupos de interesse ou de partidos que a representem.17 Mesmo no caso singular do sistema titista de socialismo jugoslavo, a concentração de poder foi um facto, o que aliás, parece ter sido um sistema eficaz para evitar a balcanização do país que voltou a verificar-se posteriormente.

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2.3.3. As limitaçõesCorrendo o risco de simplificar em demasia as críticas que têm sido feitas à perspectiva marxista de ver os problemas sociais, podemos agrupá-las em dois conjuntos:

● do ponto de vista doutrinário as que sublinham que, ao privilegiar a luta de classes como instrumento de intervenção, o marxismo provocou danos elevados na coesão social, lançando as classes sociais umas contra as outras, gastando consideráveis energias sociais necessárias ao crescimento económico e ao desenvolvimento social, em nome da igualdade e em detrimento da liberdade.

● Do ponto de vista político, as que o acusam de falta de eficácia e de eficiência uma vez que, nos países em que foram aplicadas as concepções marxistas de ataque aos problemas sociais e económicos, os resultados obtidos foram muito inferiores aos previstos (ineficácia) e, os avanços conseguidos, foram-no frequentemente a custos económicos e sociais muito elevados (ineficiência), uma vez que exigiram uma máquina estatal excessivamente pesada.

2.4. As perspectivas conciliatóriasSe nos reportarmos aos três valores centrais da Revolução Francesa, a Liberdade , a Igualdade e a Fraternidade , observa-se que os dois primeiros foram claramente apadrinhados pela perspectiva liberal (liberdade) e marxista (igualdade), um em detrimento do outro. Quanto ao valor da Fraternidade, foi remetido, em regra, para a esfera da sociedade civil, não sendo considerado uma questão política tão relevante como a da Liberdade ou da Igualdade.

2.4.1. Os fundamentosOs fundamentos da intervenção do Estado relativamente aos problemas sociais e económicos podem encontrar-se na constatação de efeitos imprevistos (positivos18 ou negativos19) do funcionamento do mercado a que Pigou, em 1920, chamou externalidades (cit in Rosanvallon, 1984: 49).

2.4.2. Os pilares do Estado IntervencionistaA expressão Estado-Providência surge na França do segundo império, criada por pensadores liberais hostis ao aumento das atribuições do Estado, mas igualmente críticos em relação a uma filosofia individualista demasiado radical (Rosanvallon, 1984: 111).

Procurava-se com esta designação fazer referência a um modelo de Estado intervencionista, que na Alemanha da década de 1880 era apelidado de Estado Social e no Reino Unido, já nos anos 40 do século

________________________________18 Dois exemplos: o desenvolvimento de novos materiais de confecção a partir da investigação espacial (Toffler, 1970) e o desenvolvimento da indústria de transportes navais a partir da criação do contentor (Drucker, 1985).19 Por exemplo: a diminuição da camada de ozono em virtude da produção de aerossóis, os estragos ambientais causados pela energia nuclear, pela implantação de sistemas de monocultura ou pela excessiva concentração urbana.

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XX, passou a ser crismado de Estado de Bem-Estar.

2.4.2.1. O primeiro pilar: o seguro obrigatório de Bismarck

O primeiro passo para a construção do modelo de Estado intervencionista foi dado na Alemanha, nas décadas de 1870 e 1880, por iniciativa dos governos do chanceler Bismarck, em resposta à pressão conjugada, do movimento trabalhista alemão devida à situação de alto risco em que se encontravam os trabalhadores da indústria e da acção de grupos de académicos20

e políticos21 que se juntaram, para denunciar os malefícios das opções liberais e para defender uma intervenção do Estado no combate aos problemas sociais.

A resposta política a tal conjuntura traduziu-se num conjunto de leis que procuraram melhorar a protecção social dos trabalhadores através de mecanismos de seguro obrigatório, numa altura em que os sistemas de protecção eram meramente mutualistas. As leis estruturantes de tal sistema foram as seguintes:

● Lei da responsabilidade limitada dos industriais em caso de acidentes de trabalho (1871)

● Lei do seguro obrigatório (1881)

● Leis do seguro-doença (1883), dos acidentes de trabalho (1884) e do seguro velhice-invalidez (1889), que aplicaram a lei de 1881 a essas três áreas de risco social.

2.4.2.2. O segundo pilar: a teoria intervencionista de Keynes

A segunda contribuição que permitiu legitimar e estruturar o intervencionismo do Estado foi dada pelo economista John Maynard Keynes que

não era um socialista, embora partilhasse de muitas das preocupações de Marx e dos sociais democratas. Como Marx, Keynes pensava que o capitalismo possuía elementos irracionais, mas acreditava que estes podiam ser controlados de forma a defender o capitalismo de si próprio (...) (Este autor) mostrou a forma como o capitalismo de mercado podia ser estabilizado através da gestão da procura e da adopção de um sistema de economia mista (Giddens, 1999: 19).

Os princípios defendidos por este autor, aplicados para combater a crise de 1929 pelo Presidente americano Franklin Roosevelt na política do New Deal, basearam-se numa vigorosa intervenção estatal através de investimentos públicos que criaram muitos empregos. Ao fazê-lo, aumentaram o poder de compra das famílias o que provocou um crescimento da procura, revitalizou a economia e, por consequência, reduziu os problemas sociais e económicos.

________________________________20 Ex: o grupo cujos participantes ficaram conhecidos por socialistas de cátedra (Wagner, Schaeffle e Schmoller) que, em 1872, declaram guerra ao liberalismo num documento que ficou conhecido por Manifesto de Eisenach (Rosanvallon, 1984:118).21 Como Ferdinand Lassalle, uma das principais figuras do socialismo alemão.

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2.4.2.3. O terceiro pilar: o relatório BeveridgeO intervencionismo estatal para dar resposta a problemas sociais teve, no Reino Unido, raízes muito anteriores ao século XIX, podendo-se situá-lo no século XVI, com a aprovação das Leis dos pobres, no reinado de Isabel I.

Com esse conjunto de leis foram instituídas diversas medidas de protecção aos indigentes de acordo com a sua condição face ao trabalho (1601), proibindo as paróquias de se livrarem deles e obrigando-as a dar-lhes trabalho (1662).

É, em plena segunda guerra mundial (1942), com o Relatório Beveridge, que se lançam as bases recentes dos sistemas de segurança social, de acordo com quatro princípios:

● O princípio da universalidade (de população-alvo), segundo o qual a protecção social seria devida a toda a população, qualquer que fosse a sua situação face ao emprego ou ao rendimento.

● O princípio da unicidade (de inputs do sistema), pelo qual uma única quotização cobriria todos os riscos de privação de rendimento.

● O princípio da uniformidade (de outputs do sistema), que preconizava a uniformidade das prestações, independentemente do rendimento dos beneficiários.

● O princípio da centralização (organizacional), que obrigava à criação de um sistema único de protecção social (saúde e segurança social) para todo o país.

O relatório Beveridge constituiu um claro avanço relativamente ao conjunto de medidas estipuladas por Bismarck, uma vez que incluía, sob protecção do estado, diversos grupos que aquele sistema não contemplara, como as mulheres domésticas, as crianças e outros inactivos.

2.4.3. A situação actualNo período de vinte e cinco anos que se seguiu ao termo da segunda guerra mundial o modelo intervencionista, resultante dos três tipos de contribuições acabados de referir, foi aplicado com bastante êxito nos países mais industrializados, auxiliado pela conjuntura propícia à conjugação de esforços de reconstrução e de expansão económica.

Os ingredientes básicos que proporcionaram consistência política a este modelo de Estado intervencionista, foram três:

1. o pleno emprego como objectivo estratégico,2. a organização da protecção social em torno de um sistema de

serviços universais ou quase universais para satisfação das necessidades básicas e

3. o empenho em manter um nível nacional mínimo de condições de vida (Mishra, 1995: xi).

Com as duas crises do petróleo ocorridas nos anos setenta a situação económica mundial alterou-se drasticamente, iniciando-se um período de

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recessão que teve dois efeitos conjugados nos sistemas de protecção social:

● por um lado, aumentou a procura de Estado, devido ao crescimento do desemprego provocado pela recessão económica;

● por outro lado, a diminuição das contribuições para o sistema de segurança social, em função da crise e do envelhecimento demográfico dos países industrializados, condicionou a redução da oferta de Estado, para fazer face às necessidades.

Esta situação fez perder pouco a pouco a confiança depositada no modelo de Estado-Providência22, propiciando o estabelecimento de políticas neoconservadoras em vários países, como se observou nos Estados Unidos com Ronald Reagan e no Reino Unido com Margaret Thatcher, fortemente alicerçadas nas doutrinas neoliberais.

Do ponto de vista do modelo neoconservador, sendo grande parte dos problemas sociais decorrentes de uma excessiva despesa pública , a sua solução passava pela redução da oferta de Estado, operacionalizada numa política de privatizações, tanto da economia como dos serviços sociais.

O excessivo custo social das medidas implementadas, e a sua ineficácia23 conduziram a uma reacção por parte das sociais-democracias, no sentido de adaptar o modelo de Estado Providência aos novos desafios. Foi neste contexto que começaram a emergir novas propostas políticas que colheram a aceitação da opinião pública eleitoralmente manifestada24.

________________________________22 A perda de confiança na acção do Estado (e não apenas do Estado-Providência) não se deveu apenas às crises petrolíferas: teve a ver com a situação de anomia provocada pela mudança acelerada que causou um autêntico choque do futuro (Toffler, 1970, 1980, 1991), que afectou a sua credibilidade em dois aspectos: as tendências para a globalização e a localização (vide capítulo sobre as questões económicas) puseram em causa o conceito tradicional de soberania; a crise do sistema organizacional burocrático questionou as administrações públicas como principais instrumentos da realização dos fins do Estado (Carmo, 1985, 1997; Bilhim, 2000; Sá, 1997).23 “a administração Reagan chegou ao poder com a promessa de reduzir o défice orçamental. O que aconteceu foi que, no tempo de Reagan, o défice orçamental elevou-se como nunca. No Reino Unido, também o advento do governo Thatcher coincidiu com um crescimento, e não um decréscimo das despesas públicas (...) A estrutura dos serviços sociais universais, nomeadamente a educação, a saúde e a segurança social, também se manteve em grande parte intacta, quer nos Estados Unidos quer no Reino Unido, apesar das proclamações neoconservadoras sobre privatização e retracção da assistência social” (Mishra, 1995:7).24 Foram exemplos desta tendência, a vitória de Clinton nos Estados Unidos, bem como a de Tony Blair no Reino Unido, com a sua política de terceira via (Giddens, 1999).

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2.5. Em Portugal2.5.1. A perspectiva intervencionista na

evolução constitucionalConstituição Características

Constituição de 1822 • Pretende criar instituições liberais e democráticas• Não passou de um projecto pois o seu suporte social era

débil (burguesia mercantil), os inimigos, muitos e, a secessão do Brasil, uma questão urgente, que remeteu a organização das FESE para segundo plano

Carta Constitucionalde 1826

• Sendo conservadora mantém as FESE numa perspectiva liberal

Constituição de 1838 • Mantém a concepção de uma monarquia liberal assente na aliança do Rei com a burguesia (Jorge Miranda)

Constituição de 1911 • Não altera a perspectiva liberal das funções do Estado, condimentando-as de laicismo, anti-clericalismo e municipalismo.

• Dá grande realce à política de Educação.

Constituição de 1933 • Corporativista, apresenta um cariz muito mais intervencionista, pretendendo ser a pedra de toque em que as FESE são sensivelmente maiores e mais complexas.

• Explicita princípios de protecção à família, incumbências económicas do Estado, organização de interesses sociais, da empresa e do direito ao trabalho.

Constituição de 1976 • É influenciada pelas doutrinas marxistas e do Estado-Providência.

• Consolida medidas socializantes das FESE• Identifica três sectores de propriedade (público,

cooperativo e privado)• Consagra direitos, liberdades e garantias democráticas• Explicita princípios de protecção aos cidadãos e aos

trabalhadores em particular, em diversos domínios das FESE: Educação, Saúde, Segurança Social, Habitação, Trabalho, etc.

Evolução das funções económicas e sociais do Estado nasConstituições Portuguesas

A figura procura registar algumas características das constituições portuguesas desde 1822, para daí se poder ter uma ideia sobre a evolução doutrinária quanto ao entendimento das funções económicas e sociais do Estado. A partir da sua leitura pode-se observar:

● As constituições do período monárquico foram todas elas marcadas por concepções liberais, no modo como olhavam os problemas sociais e económicos, considerando não ser dever do Estado intervir na sua resolução.

● A primeira constituição republicana, de 1911, mantém a tradição liberal. No entanto, o laicismo e o anti-clericalismo dominante, tiveram como consequência a assunção da educação como dever do Estado , sendo-lhe dado um realce que as anteriores constituições não apresentavam.

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● A constituição de 1933 é intervencionista, num quadro doutrinário corporativista. Era permitido e incentivado o papel da Igreja Católica na política social. O modelo de intervenção social preconizado foi marcado pela visão bismarckiana, separando claramente os subsistemas de previdência (de seguro obrigatório) e de assistência (em que ao Estado competia uma função supletiva em relação à intervenção da sociedade civil).

● A constituição de 1976 foi também intervencionista, mas fortemente influenciada pela perspectiva marxista, nomeadamente no que respeitava ao controlo da actividade económica, social e política. O modelo beveridgeano de prestações universais foi consagrado através da criação de um sistema integrado de segurança social, de um serviço nacional de saúde e da responsabilidade do Estado pelo sistema educativo, ainda que em cooperação com a sociedade civil.

2.5.2. A perspectiva intervencionista na evolução do planeamento

Outro indicador interessante, revelador do modo como evoluiu o interesse político pelos problemas sociais e económicos é a sua presença no planeamento. Isto porque a função planeamento está presente em todos os sistemas políticos contemporâneos, expressando um quadro normativo que pretende traduzir o querer comum dos respectivos povos.

Assim, pela análise dos sucessivos planos, é possível inferir as representações dos decisores políticos sobre o modo como concebem as funções económicas e sociais do Estado e, em particular, como concebem o seu papel relativamente à resolução dos problemas sociais e económicos.

Em Portugal, a primeira experiência de planeamento, no sentido que hoje lhe damos, parece ter surgido apenas em 1935, com a Lei 1914 de 24 de Maio, que ficou conhecida por Lei da Reconstituição Económica. Um outro aspecto de sublinhar foi o facto de permitir estruturar a realização de grandes obras de infra-estruturas, dado o seu horizonte temporal ser de 15 anos.

O Primeiro Plano de Fomento (1953-58), manteve o intervencionismo económico que, sendo uma novidade e um salto de qualidade no caso português, preconizava uma intervenção económica do Estado bastante modesta se a compararmos com o que se praticava na Europa de então.

O Segundo Plano de Fomento (1959-64), apresentou pela primeira vez o conceito de Pólos de Desenvolvimento, regiões onde se iriam concentrar recursos para promover a modernização do país. Para suportar financeiramente esse esforço foi então criado o Banco de Fomento Nacional.Com o Plano Intercalar (1965-67), surgiu a necessidade de se proceder à realização de estudos de conjuntura para calcular se o acréscimo de despesas com a defesa obrigaria a recorrer a empréstimos externos (estava-se em pleno esforço de guerra do Ultramar).Observa-se pela primeira vez, neste documento, um conjunto de preocupações de natureza social, nomeadamente no que respeita à

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correcção dos desequilíbrios regionais e à definição de uma política de repartição de rendimentos.

A intervenção social e económica do Estado português vista atravésde alguns marcos do planeamento

Marcos Características

Lei 1914 daReconstituiçãonacional (24/5/35)

Apenas contempla política financeiraBase dos planos seguintesComo tinha vigência de 15 anos permitiu a realização de gran-des obras de infra-estruturas.

1º Plano deFomento(1953-58)

Total dos investimentos previstos: 13.5 milhões de contos, 6 dos quais destinados ao Ultramar, correspondendo a 2% do PNB.Na mesma época: 5 a 10 % na Irlanda, 10 a 15 % em França; 15 a 20 % no Reino Unido; 20 a 25% na Alemanha; 25 a 30 % na Suécia

2º Plano deFomento(1959-64)

Objectivos: Subida do PNB, subida do nível de vida, incremento do emprego, melhoria da balança de pagamentos.Conceito-chave: Pólo de desenvolvimentoCriação do Banco de Fomento Nacional para financiar progra-mas de médio prazo (1959)

Plano Intercalar(1965-67)

Lançamento de estudos de conjuntura para indagar se o acrés-cimo de despesas militares obrigaria à contracção de emprésti-mos externosProgressos metodológicos na feitura do Plano.Começam a registar-se, no próprio Plano, preocupações sociais.

3º Plano deFomento(1968-73)

Consolidação dos progressos metodológicosInício do planeamento regional

4º Plano deFomento(1974-79)

Maior preocupação com a promoção socialPreocupação com o ordenamento do territórioSuspenso pela Revolução

Plano Económicoe Social (1975)

Medidas estratégicas para execução dos três objectivos da Revolução (os três Dês): Descolonizar, Democratizar e Desenvolver.Três políticas básicas: planeamento regional, descentralização administrativa e subordinação do poder económico ao poder político.Política de austeridade face ao 1º choque petrolífero (redução das balanças comercial e de pagamentos).Políticas de combate ao desemprego, de estabilização da inflação e de redistribuição de rendimentos.Suspenso em 11 de Março de 1975.

O Planeamento naConstituição daRepública (1976)

Ideias-força (Título III, 2ª Parte):O plano é um instrumento básico para construir a sociedade socialista.A sua orientação é, de facto, imperativa.Legitimação das regiões Pano

O Planeamento naConstituição daRepública(Revisão de 1982)

Instauração da orientação de planeamento indicativo

As melhorias registadas no Plano Intercalar aparecem consolidadas no Terceiro Plano de Fomento (1968-73), onde são explicitadas medidas de Planeamento Regional.

No Quarto Plano de Fomento (1973-79), que foi suspenso pela Revolução de 1974, já transparece uma maior preocupação com o ordenamento do território e com a promoção social.

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O primeiro esforço de planeamento após revolução regista-se no Plano Económico e Social (1975) que, no entanto nunca entrou em vigor, em virtude da radicalização política após os acontecimentos do 11 de Março25.

Nesse plano eram contempladas diversas medidas de intervenção económica e social, a curto e médio prazos, marcadas pelo combate ao desemprego, à estabilização da inflação e à redistribuição dos rendimentos, defendendo uma política de austeridade para fazer face aos efeitos do choque petrolífero ocorrido em 1973. O planeamento regional, a descentralização administrativa e a subordinação do poder económico ao poder político eram defendidas como políticas estruturantes do plano.

A Constituição de 1976, de acordo com a perspectiva marxista então vigente, valorizou o Plano como instrumento básico para construir a sociedade socialista (artigo 91º), apresentando-o com uma natureza imperativa.

Do que se acaba de referir, pode sublinhar-se que as preocupações de intervencionismo económico foram muito mais precoces que as sociais, correspondendo aliás ao espírito do tempo em que os planos foram concebidos. Com efeito, só com o Plano Intercalar e com os Terceiro e Quarto Planos de Fomento é que começam a registar-se timidamente, tendo sido uma preocupação efectiva só após a revolução de 1974.

________________________________25 Uma das razões da suspensão do Plano foi o facto dele ter um cariz considerado demasiado reformista pelas forças políticas dominantes, ainda que respeitasse escrupulosamente os três Dês do Programa do Movimento das Forças Armadas (descolonização, democratização e desenvolvimento). Os seus principais autores foram Melo Antunes, Victor Alves, Maria de Lourdes Pintasilgo, Rui Vilar e Victor Constâncio.

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3. Grandes problemas ambientais3.1. Gestão da Água

3.1.1. IntroduçãoA água é uma das principais necessidades para a existência de vida na Terra, constituindo conjuntamente com o ar um dos bens essenciais ao homem.

Refira-se que, de toda a água existente na Terra, apenas cerca de 3% é doce e nem toda é directamente utilizável. Desta forma, considera-se que, de toda a água existente na Terra, apenas 0,03% está facilmente acessível ao consumo humano. Destes 0,03 % refira-se ainda que 52 % encontra-se em lagos, 38 % retida no solo, 8 % está na atmosfera sob a forma de vapor de água, 1 % está acumulada na biomassa dos organismos e apenas 1 % está nos rios (Alves, 1998).

Além do facto da água disponível para consumo humano ser reduzida, os resíduos resultantes das diferentes actividades do homem, ou seja, os efluentes de origem antropogénica, são descarregados nos diferentes meios receptores existentes na Terra, em especial no meio aquático.

Os diferentes contaminantes que se podem encontrar na água provêm de diversos factores resultantes de, • causas naturais (e.g. erupções vulcânicas),• descargas pontuais de águas residuais e de resíduos sem

tratamento adequado ou• poluição difusa, como por exemplo devido a escorrências agrícolas.

Esses contaminantes podem ser• físicos (e.g. sólidos suspensos e temperatura),• químicos (e.g. metais pesados, hidrocarbonetos halogenados ou

Bifenilos Policlorados – PCBs) ou• biológicos (e.g. microrganismos patogénicos).

3.1.2. Disponibilidade de águaSegundo dados recentes, perto de 2 biliões de pessoas ainda não têm acesso a água potável e a sistemas de redes de abastecimento e mais de 1 bilião de pessoas não está servida com adequados sistemas de tratamento de água (Gleick, 1996).

É provável que a evolução do consumo de água na Europa se mantenha estável até à próxima década, embora no resto do mundo seja previsível um aumento do consumo devido ao desenvolvimento económico, crescimento da população e aumento dos processos de irrigação. O aumento do consumo de água de 1990 para 2050 é projectado para um factor de 2,12 relativamente ao uso doméstico, 2,37 relativamente ao uso industrial e 1,06 relativamente ao uso agrícola.

A disponibilidade de água apresenta ainda o maior problema em áreas de escassez de água onde rios e outros cursos de água atravessam fronteiras de diferentes países. Este facto irá ocasionar conflitos entre esses países, que só poderão ser evitados quando a distribuição da água puder ser discutida em conjunto. Este problema é um dos desafios que se colocam ao nível da gestão da água tendo em conta o

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desenvolvimento sustentável (ver sub-capítulo Instrumentos de Política de Ambiente). Portugal e Espanha são um bom exemplo onde esta questão se coloca.

A quantidade de água disponível é afectada pela sobre-exploração de aquíferos e/ou pelo desvio de cursos de água, originando a diminuição do seu caudal e modificando por sua vez a quantidade de água disponível.

Face a toda esta problemática é igualmente previsível um aumento na utilização das fontes não convencionais de água como a dessalinização e a reutilização da água, essencialmente em países com problemas de escassez de água.

3.1.3. Qualidade da águaSegundo dados da EEA (1995), apenas cerca de 4 % das águas residuais apresentam tratamento antes de serem descarregadas. É previsível que a quantidade de esgotos contaminados aumente e que as práticas de agricultura intensiva continuem, com a consequente utilização excessiva de fertilizantes, originando a eutrofização das zonas costeiras e a contaminação de aquíferos. Esta contaminação dos aquíferos pode também dever-se à intrusão salina resultante da exploração de águas subterrâneas ao longo da costa, onde estão centralizadas áreas urbanas, industriais e de turismo (EEA, 1999).

3.2. Efeito de estufa e alterações climáticas3.2.1. IntroduçãoO balanço térmico ideal para a manutenção da vida na Terra é proporcionado principalmente pela presença de vapor de água e dióxido de carbono (CO2) existente na atmosfera. Estes gases absorvem a radiação solar infravermelha, emitida pela superfície terrestre impedindo assim que a radiação seja perdida para o espaço. Este fenómeno natural denomina-se efeito de estufa, uma vez que permite o aquecimento da superfície terrestre e promove a subida da temperatura da troposfera com consequente aumento da evaporação e precipitação.

No entanto, a libertação de CO2 resultante da conversão dos combustíveis fósseis, tem sido responsável pela amplificação deste fenómeno nos últimos séculos, em conjunto com outros gases como o metano (CH4), os óxidos de azoto (NO2, NO), os Cloro-Fluor-Carbonetos (CFCs), e o ozono troposférico26 (O3). O dióxido de carbono e o metano têm sido responsáveis pelo incremento de cerca de 80 % da temperatura global em consequência do aumento drástico das emissões de origem antropogénica nos últimos 140 anos (IPCC, 1992). Não é apenas a queima de combustíveis fósseis responsável pelo efeito de estufa.

________________________________26 Não confundir o ozono troposférico existente na camada inferior da atmosfera (troposfera), com o ozono estratosférico. Os hidrocarbonetos não queimados na combustão dos combustíveis fósseis nos veículos de transporte e nas indústrias, por acção da radiação solar podem converter-se em ozono. Este gás é um poluente, pois trata-se uma substância altamente reactiva que pode provocar efeitos negativos na saúde pública e nos ecossistemas.

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3.2.2. Alterações climáticasAinda que exista uma relação clara entre o aumento da temperatura e a emissão de alguns gases que contribuem para o efeito de estufa, não é possível afirmar com certeza que se trata de uma relação causa-efeito.

Os modelos de clima estimam que o aumento será de 2ºC no ano 2100, comparativamente aos níveis de 1990. Dado que é previsível o crescimento da economia, estima-se que as concentrações médias globais dos três gases que mais contribuem para o efeito de estufa se alterem. Assim, para o ano 2050, comparativamente ao ano de 1990, está projectado o aumento em cerca de 45 % no caso do CO2, 80 % no caso do CH4 e 22 % no caso do N2O.

Será necessária até o ano de 2100 uma redução de 50 – 70 %, em relação ao verificado em 1990, das emissões globais de CO2 para estabilizar a concentração de CO2 (IPCC, 1996). No entanto, mesmo que as emissões sejam imediatamente reduzidas algumas alterações climáticas não poderão ser evitadas devido à dinâmica dos sistemas climatéricos.

3.2.3. O protocolo de QuiotoO encontro mundial onde pela primeira vez se regulamentaram as emissões dos gases com efeito de estufa foi a III Conferência das Partes da Convenção – Quadro das Alterações Climáticas ocorrida em Quioto em 1997, onde vários países assinaram um protocolo no sentido da redução global de 5,2 % em relação aos níveis de 1990, das emissões dos gases que contribuem para o efeito de estufa:• dióxido de carbono (CO2),• metano (CH4),• óxido nitroso (N2O),• hidrofluorcarbonetos (HFCs),• perfluorcarbonetos (PFCs), e• enxofre hexafluoreto (SF6)

entre os anos de 2008 e 2012 (IPCC, 1997).

No entanto, este protocolo tem algumas limitações, como o facto de não incluir os países em desenvolvimento que para já estão sem obrigação de redução ou limitação de crescimento de emissões e de não terem sido criados mecanismos de punição para quem não cumprir o acordo.

3.2.4. O encontro em Buenos AiresNa IV Conferência das Partes da Convenção – Quadro das Alterações Climáticas ocorrida em Buenos Aires em 1998, mais alguns passos foram dados, tendo sido acordado um plano de acção finalizado no ano 2000 e do qual se destacam (EEA, 1999):

● os mecanismos de financiamento para apoiar os países em desenvolvimento relativamente aos efeitos adversos das alterações climáticas, nomeadamente através de medidas de adaptação;

● o desenvolvimento e transferência de tecnologias para os países em desenvolvimento;

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● as actividades implementadas conjuntamente;

● o programa de trabalhos dos Mecanismos de Quioto, com prioridade no desenvolvimento de mecanismos de tecnologias limpas.

A estratégia eficiente para a minimização deste problema passa pela modificação da quantidade e tipo de combustíveis fósseis. Este facto pode ser considerado como a próxima grande transição no sistema energético mundial.

É igualmente importante evitar a perda e/ou fragmentação de habitats visto ser uma das mais importantes causas de extinção de espécies. Deverá igualmente ser efectuada a reflorestação tendo em conta que as florestas são importantes sumidouros de CO2, embora se exija a planificação cuidada deste processo de modo a não pôr em causa o equilíbrio dos ecossistemas (ver sub-capítulo Desertificação e Desflorestação).

3.3. Rarefacção da camada de ozono3.3.1. IntroduçãoO ozono é um gás cuja molécula contém 3 átomos de oxigénio, formada por acção da luz a partir do oxigénio molecular (O2). Na atmosfera, as maiores concentrações de ozono apresentam-se na estratosfera (20 a 40 km da superfície da terra), formando o que se designa de camada de ozono. Esta camada funciona como filtro às radiações solares ultra-violeta B, que são prejudiciais à fauna, flora e saúde humana, sendo responsáveis pelo desenvolvimento precoce do cancro de pele, aparecimento de cataratas e diminuição da capacidade do sistema imunitário.

Através das imagens de satélite (Nimbus 7), relativas às concentrações do ozono obtidas, é possível observar a rarefacção da camada de ozono na Antárctida, usualmente denominada como o “buraco do ozono”. Refira-se que a concentração média de ozono é de cerca de 400 unidades de DOBSON, ou seja, mais do dobro das concentrações mais baixas encontradas na Antárctida.

3.3.2. O protocolo de MontrealNo caso dos países em desenvolvimento este protocolo refere que a eliminação de CFCs e Halons pode ser efectuada até 2010, e até 2015 no caso de metil-clorofórmio (UNEP, 1997).

Actualmente as concentrações totais de cloro na baixa atmosfera estão a diminuir desde o seu máximo obtido em 1994, devido essencialmente à redução de metil-clorofórmio, embora as concentrações de Halons continuem a aumentar, contrariamente às expectativas anteriores.

No entanto, existem ainda muitos produtos antigos que contêm CFCs e Halons, como extintores e refrigeradores que se não forem destruídos ou recuperados libertarão estes compostos para a atmosfera. Além deste facto, desde a proibição da produção de CFCs nos países desenvolvidos, o comércio de CFCs tem-se tornado num negócio muito lucrativo, dado que a utilização de CFCs ainda é permitida nos países

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em desenvolvimento e nos países desenvolvidos desde que seja para a utilização nos países em desenvolvimento.

Saliente-se ainda que a China é responsável por cerca de 90 % da produção mundial de Halon-1211 e uma vez que apenas em 2010 tem que parar a sua produção, este país pode contribuir para o atraso da estabilização das concentrações de ozono na estratosfera (EEA, 1999).

A difusão dos CFCs desde a primeira camada da atmosfera até à estratosfera pode levar décadas e provavelmente só nos meados do próximo século se atingirá o valor máximo de cloro estratosférico, partindo do princípio que será limitada a produção e consumo de CFCs de acordo com o protocolo de Montreal.

3.4. Biodiversidade3.4.1. IntroduçãoA tendência para a diversificação, é uma propriedade inerente à progressão ecológica e à evolução biológica em geral. Apesar de não haver um inventário de todas as espécies terrestres, estima-se que existem entre 5 e 30 milhões de espécies. Destas, estão descritas 1,5 milhões, das quais, 90 % apenas se sabe o nome (Bellés, 1998).

Apesar do desconhecimento sobre a imensa diversidade biológica que povoa a terra, é alarmante constatar que uma importante fracção desta riqueza tem a sobrevivência ameaçada, registando-se anualmente a extinção de aproximadamente 13 000 espécies. No âmbito do presente sub-capítulo referiremos biodiversidade para designar a diversidade de habitats e espécies existentes nos diferentes ecossistemas.

Ao longo de milhões de anos, verificaram-se na terra, episódios de destruição massiva de espécies, resultado de fenómenos naturais, de natureza vulcânica, geofísica e tectónica, unidos ou não a alterações climáticas27. De uma forma geral, estas extinções foram lentas e graduais, verificando-se o desaparecimento das espécies ao longo de milhares de anos.

No entanto, o ritmo a que hoje se verifica o desaparecimento das espécies é assustador, atribuindo-se ao homem a responsabilidade desta destruição.

Com a descoberta do fogo o Homo sapiens idealizou e concebeu novos utensílios domésticos e instrumentos que lhe permitiram caçar com maior eficiência as suas presas. Aumentou a sua autonomia em relação aos alimentos, passando a retirar da terra com alguma sabedoria plantas, raízes e tubérculos. A pouco e pouco foi-se tornando sedentário.

A agricultura foi o ponto de partida para a escalada na exploração dos recursos naturais. Foi através de uma exploração mais intensiva dos solos que nos últimos séculos o homem modificou ecossistemas naturais, incentivou a monocultura, aumentou a uniformidade genética da exploração agrícola, contaminou o meio com excesso de fertilizantes e pesticidas orgânicos, desbravou e queimou florestas para conquistar solos para as práticas agrícolas.

________________________________27 Recorde as extinções verificadas no Ordovício, Devónico, Pérmico ou Triásico.

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A excessiva exploração dos solos e as alterações de comportamentos hidrológicos, conduziram a desequilíbrios importantes que em alguns ecossistemas demonstraram ser irreversíveis.

3.4.2. Diminuição da biodiversidadeMuitos são os exemplos que se podem apontar, conducentes à extinção de espécies vegetais ou animais.

A contaminação que mais frequentemente se aponta, é a contaminação de origem química.

A rarefacção da camada de ozono e o aquecimento global são também fenómenos que poderão afectar o desenvolvimento e sobrevivência de muitas espécies do planeta.

Existe legislação que regulamenta para cada época do ano, as espécies e o número de indivíduos de cada uma que é legal capturar e comercializar. No entanto, os interesses económicos das empresas multinacionais que dominam este mercado são demasiado grandes para que estas se preocupem em respeitá-la.

O comércio ilegal de fauna e flora selvagem dá elevados rendimentos às empresas que o dominam, sendo um negócio cuja rentabilidade só é superada pelo contrabando de armas e pelo tráfico de drogas.

Para lutar contra esta situação, foi assinado em Washington (1973) o Convénio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Silvestre (CITES) que incita a cada um dos 23 países signatários a criar legislação que proteja os seus recursos selvagens.

3.4.3. Biodiversidade aplicadaA diversidade genética dos seres vivos, deve ser guardada, constituindo-se bancos de genes para utilização futura.

3.4.4. Protecção da biodiversidadeA preservação da biodiversidade tem um grande impacte social.

Este facto foi abordado na Conferência do Rio em 1992. Sendo os países pobres aqueles que dispõem de uma maior diversidade biológica, a partir da ractificação deste acordo, passam a ter direito a benefícios económicos pela transacção dos seus recursos biológicos com terceiros. Surge o problema que as entidades compradoras são, regra geral, grandes empresas multinacionais farmacêuticas, químicas ou agro-alimentares, que preferem tirar partido de um recurso de outrem, do que pagar direitos sobre eles. Neste caso, há que actuar, sendo obrigação da sociedade civil ou das ONGs (Organizações Não Governamentais), fazer valer os direitos e proteger este património genético.

3.5. Desertificação e desflorestação3.5.1. IntroduçãoA relação do homem com o ambiente que o rodeia nem sempre é inofensiva. Como Ser racional que é, procura sempre solucionar com

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proveito próprio os entraves que se colocam à sua colonização da terra. No passado, a melhoria das condições ambientais, as descobertas que foi efectuando e a supremacia intelectual que demonstrou ter relativamente aos outros seres que povoavam a terra, permitiram-lhe fixar-se. A agricultura e o pastoreio exigiram novos e mais férteis campos para o cultivo e pastagens, que se roubaram às florestas28. Consequentemente as áreas florestais foram diminuindo, os solos perdendo fertilidade, e o homem teve que continuar a avançar floresta dentro procurando meios de subsistência. É a este processo, natural ou artificial, que leva à redução da área coberta com um sistema florestal que se dá o nome de desflorestação.

Este quadro é o que ainda hoje se verifica em muitos países do hemisfério Sul, onde a necessidade de encontrar meios de sobrevivência leva as populações que lutam contra a fome à destruição maciça de florestas. Mas esta não é a única razão que conduz os países, principalmente os países pobres do Sul, a destruir as suas riquezas florestais. Muitos são os interesses dos países que pactuam com esta destruição em busca de madeiras exóticas, novos e variados destinos de oferta turística, mão-de-obra barata para a produção agro-alimentar, extracção de lenha e carvão, entre tantas outras razões que se podem referir. Segundo a FAO (“Food and Agriculture Organization” das Nações Unidas), na década de 80 foram destruídos 155 milhões de hectares de floresta tropical, o que é no mínimo preocupante.

3.5.2. Floresta e protecção ambientalNa América Central e do Sul, na Indonésia e na Ásia encontram-se ainda luxuriantes florestas que têm que ser protegidas dos interesses comerciais dos países desenvolvidos. Estas florestas, apesar de serem hoje uma pequena percentagem do que foram no passado, são os pulmões do planeta e sustento de uma imensa variedade biológica. A queima de extensas áreas de floresta, qualquer que seja a justificação, conduz a uma importante libertação de CO2 para a atmosfera. Deste modo, em vez de absorver este gás, a floresta deixa de o poder utilizar, contribuindo também para aumentar a quantidade que é libertada para a atmosfera.

No ano imediatamente após a queima, a produtividade dos solos é suficiente mas, ao fim de 2 ou 3 anos, o solo exposto às radiações solares, ao aquecimento e à falta de protecção por uma camada de folhagem, sofre mineralização e torna-se improdutivo. Como consequência, é abandonado. Sofre a erosão, e sob a influência dos factores climáticos, lentamente transforma-se num deserto. A este processo regressivo em que os ecossistemas tendem para situações de deserto, dá-se o nome de desertificação.

Deste modo, ano após ano, estamos a destruir as florestas e a acabar com uma riqueza biológica que nunca mais poderemos reconstruir.

________________________________28 Entende-se por floresta todo o ecossistema dominado por árvores de folha caduca ou perene, larga ou em agulha, mais ou menos evoluído, no qual se incluem florestas aparentemente arbustivas como o maquis mediterrânico, seja ele alto ou baixo (Alves, 1998). É um sistema pluri-estratificado que alberga uma imensa biodiversidade numa grande variedade de nichos ecológicos.

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3.5.3. Floresta e biodiversidadeMadagascar é um caso emblemático, onde a desflorestação tem assumido proporções devastadoras.

A imensa riqueza biológica estava protegida numa vastíssima área de floresta tropical. O estabelecimento de colonos, a expansão europeia, a colonização francesa até à independência em 1958 trouxeram para esta ilha milhares de habitantes que para nela sobreviverem e se instalarem, tiveram de cortar e queimar florestas.

Os solos esgotados, pisoteados pelos animais, são abandonados, deixados à mercê dos agentes climáticos, e onde antes existia vegetação abundante, hoje encontra-se deserto.

Deste modo, em Madagascar como em tantos outros locais, o homem está a contribuir para a saelização29 e desertificação de vastas áreas da terra, esquecendo que as suas actuações a nível local se fazem sentir de forma global, à escala planetária.

Actuando deste modo torna impossível a autorregulação do planeta proposto nos anos 70, por Lovelock na Teoria Gaia30. Segundo este autor, até há pouco tempo, as actividades humanas eram assimiladas pela biosfera. No entanto, actualmente a biosfera já não consegue fazer frente ao excesso de CO2 existente na atmosfera, notando-se o seu aquecimento global.

3.5.4. Medidas futurasOs impactes antropogénicos sobre a floresta são demasiado alarmantes para que não se tome qualquer atitude. Muitas das soluções que se propõem são político-económicas, mas o problema tem importância social e ética. Propor que os países do Norte, que têm climas temperados e solos de melhor qualidade, produzam bens para vender aos países do Sul, a preços baixos, é uma hipótese que não é fácil de aceitar por uns nem por outros.

3.6. Resíduos3.6.1. Introdução

3.6.2. Resíduos sólidos urbanos31 (RSU)Um dos indicadores financeiros de que dispomos para avaliar o crescimento e conómico de uma sociedade é o rendimento disponível das famílias. Quanto maior for o rendimento líquido per capita , maior se considera o desenvolvimento de uma determinada sociedade. A apetência para o consumo, característica das sociedades modernas, tem consequências nem sempre previsíveis aos mais diversos níveis: económico, social e ambiental. Aliciados por campanhas publicitárias e estratégias de marketing agressivas, os indivíduos são levados a consu-

________________________________29 Saelização: processo regressivo em que os ecossistemas tendem para situações de pré-deserto.30 Segundo Lovelock (1983), “A biosfera é uma entidade autorreguladora com capacidade para manter a saúde do nosso planeta mediante o controlo do equilíbrio químico e físico” (ide. Benito, 1999).31 RSU é sinónimo de resíduos domésticos ou urbanos.

42

mir. Adquirem inúmeros produtos, dos quais não necessitam, que deitam fora com facilidade, uma vez que, para além de apresentarem uma baixa durabilidade são frequentemente substituídos por novos e mais interessantes modelos constantemente lançados no mercado. Em Paris, a quantidade de resíduos domésticos rejeitados/ano/habitante era em 1962 pouco mais de 184 kg, enquanto que em 1994 se aproximava dos 549 kg.

A taxa de tratamento e eliminação de resíduos, em 1991, era menor em Portugal do que em qualquer outro país da U.E. Verificando-se nessa altura a deposição em lixeiras preferencialmente à compostagem32, incineração ou à deposição em aterro sanitário33.

Os governos, municípios, e os meios de comunicação social têm, nos últimos anos, feito um esforço para sensibilizar os cidadãos e a sociedade em geral, para a importância da valorização dos resíduos. Neste sentido, têm surgido em algumas autarquias, ecopontos34, recolhas porta-a-porta de materiais, como papel, vidro e cartão que posteriormente são tratados em indústrias de reprocessamento destes materiais.

3.6.3. Resíduos industriaisEstimativas de 1992 apontavam Portugal como o responsável pela produção de 1 300 000 toneladas de resíduos industriais. Este valor é relativamente baixo quando comparado com os produzidos por países industrializados da Europa. Apesar da grande quantidade de resíduos produzidos pelas indústrias químicas, de pasta de papel e extractivas o mais alarmante deve-se ao facto de cerca de 2/3 destes resíduos serem eliminados por descarga no solo e no sub-solo registando-se uma pequena percentagem de tratamento por incineração (MARN, 1994).

As indústrias são responsáveis pela produção de resíduos perigosos e emissão de produtos tóxicos ocasionando contaminações de lençois freáticos, águas superficiais, solos, atmosfera e cadeias tróficas, seja pela emissão de gases tóxicos ou pela deposição de resíduos no solo e no subsolo conducentes à destruição de muitos ecossistemas.

Apesar deste panorama, a problemática dos resíduos industriais está mais bem controlada em termos legislativos que a dos resíduos domésticos. As indústrias estão sujeitas a pressões dos mais diversos quadrantes: institucionais, políticos, económicos e sociais.

O tratamento de resíduos perigosos pode ser feito através de dois tipos de tratamentos:• físico-químicos (utilizado no tratamento de resíduos constituídos por

metais pesados e ácidos) e• incineração (destina-se fundamentalmente a matérias orgânicas não

biodegradáveis).

________________________________32 Processo de reciclagem dos resíduos que envolve a separação e conversão biológica dos resíduos sólidos orgânicos. O produto final, o composto, pode ser utilizado posteriormente como correctivo agrícola.33 Destino final dos resíduos urbanos, industriais ou perigosos que consiste em depositá-los de forma controlada de modo a produzir uma degradação natural e lenta por via biológica até à mineralização da matéria biodegradável.34 Ecoponto: centro equipado com baterias de contentores para produtos específicos: vidro, papel, cartão, plástico ou metais.

43

Refira que, no caso dos resíduos urbanos, exige-se que, para não haver perigo de emissões tóxicas e para o processo ser eficiente, haja uma prévia separação dos materiais a incinerar, o que só poderá ser feito com a contribuição das populações que fizerem a separação dos resíduos domésticos. Na Dinamarca, país onde as populações estão muito sensibilizadas para a triagem dos desperdícios domésticos, a incineração é um processo usado com êxito para o tratamento dos resíduos (Pichat, 1995).

Algumas indústrias grandes consumidoras de energia, como as cimenteiras, podem co-incinerar alguns destes resíduos na forma de combustível como é o caso de materiais plásticos não clorados, óleos, gorduras e substratos celulósicos. Mesmo quando a cimenteira está preparada para queimar resíduos, os poluentes ou ficam retidos nas “poeiras” emitidas pela própria unidade industrial ou são incorporadas no cimento, o que pode reflectir-se negativamente na saúde das populações, já que estas estão em permanente contacto com estruturas de betão.

Apesar de muitas indústrias terem desenvolvido grandes esforços para a diminuição dos resíduos que produzem, há alguns resíduos que não podem ser resolvidos no seu interior, sendo muitos destes produtos recolhidos, armazenados e tratados por indústrias de recuperação.

Os custos de tratamento e valorização são variáveis, dependendo da composição dos resíduos nomeadamente das suas propriedades físicas, da quantidade e qualidade dos resíduos finos solidificados e estabilizados e do custo do armazenamento.

3.6.4. Medidas futurasNum futuro, que já começou, é urgente não apenas sancionar, legislar e aplicar taxas de tratamento mas educar, sensibilizar e formar consciências. É fundamental dar conhecimentos aos cidadãos, aos industriais, aos políticos sobre as consequências ambientais das atitudes menos reflectidas ou mais oportunistas que cada um toma. É urgente informar para que cada um seja responsabilizado preocupando-se em reduzir a quantidade de resíduos que produz, reutilizar tanto quanto puder os “desperdícios” que causa e por último reciclar e valorizar os bens que possui.

3.7. Instrumentos de Política de Ambiente3.7.1. EnquadramentoEm 1984 foi constituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a Comissão Mundial para o Ambiente e o Desenvolvimento (CMAD), como um órgão independente e integrado por 21 países. Esta Comissão foi criada com o objectivo de:

a) Reexaminar os problemas vitais do ambiente e do desenvolvimento, e formular propostas de acção inovadoras, concretas e realistas para tentar “remediá-los”;

b) Reforçar a cooperação internacional nos domínios do ambiente e do desenvolvimento, bem como estudar e propor novas formas de cooperação, que possam surgir a partir dos padrões existentes e

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influenciar as políticas e os acontecimentos no sentido da mudança necessária;

c) Aumentar o nível de compreensão e de compromisso dos cidadãos, organizações voluntárias, empresas, instituições e governos (MPAT, 1989).

A CMAD publicou então um relatório, em 1987, denominado “O Nosso Futuro Comum”, também conhecido como “Relatório Bruntland”35. Deste relatório resultou uma nova esperança com a introdução do conceito de desenvolvimento sustentável. Tal como enunciado no relatório Bruntland, define-se desenvolvimento sustentável como o desenvolvimento que satisfaz as necessidades das gerações actuais, sem com isso comprometer a possibilidade das gerações futuras satisfazerem as suas próprias necessidades.

Mas tanto a tecnologia como a organização social podem ser geridas e melhoradas por forma a abrir caminho para uma nova era do crescimento económico. O processo não é fácil nem simples.

A implementação prática dos princípios expressos nos diplomas legais resultantes do Relatório Bruntland, só se tornou mais intensa e clara após a Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento (CNUAD), realizada em Junho de 1992 no Rio de Janeiro, também conhecida por Eco'92.

Foram objectivos pré-definidos pela organização da Conferência – a elaboração de Documentos como a Carta da Terra36, as Convenções sobre Alterações Climáticas, Biodiversidade e Florestas dotadas dos necessários instrumentos de implementação (recursos financeiros, mudanças institucionais e transferência de tecnologia). No entanto, o conflito entre o Norte rico e o Sul pobre dominaram o assunto das reuniões, e poucos acordos foram atingidos. Das três convenções previstas, apenas a do Clima e a da Biodiversidade foram concretizadas, embora sem metas nem prazos definidos.

Com o objectivo de serem cumpridas as medidas elaboradas na Conferência do Rio e de se caminhar para um terceiro milénio mais equitativo e sustentável, foi criada em 1993 a Comissão de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (CDS).

Passados 5 anos sobre a Conferência do Rio, teve lugar, em Junho de 1997, a Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas (UNGASS), também denominada “Cimeira Rio + 5”, com a missão de fazer a avaliação dos compromissos da Eco'92 e, sobre ela criar um novo plano de acção capaz de, na viragem do século, suster o ritmo da degradação das condições de vida no planeta e impulsionar os factores de mudança e de melhoria a todos os níveis: mundial, nacional e local.

No entanto, nesta Sessão caracterizada por intensas negociações, não foram, uma vez mais, atingidos os objectivos pré-definidos. Na realidade, até ao final dos trabalhos, o que era suposto vir a constituir a declaração política e o programa para implementação da Agenda 21, foi objecto de árduas negociações saldando-se o acordo em torno do Programa por

________________________________35 Esta designação deve-se à sua apresentação ter sido efectuada pelo presidente da Comissão, G. H. Bruntland.36 Documento constituído por um conjunto de princípios e programas de acção com base no respeito pela Terra e por todos os organismos vivos que dela fazem parte.

45

fracos compromissos.

Se os níveis de desigualdade dos rendimentos económicos forem mantidos ao actual ritmo é de esperar que a pobreza local relacionada com problemas ambientais, como a sobre-exploração local de recursos naturais e a morbilidade e mortalidade relacionada com problemas ambientais seja mantida ou agravada.

É assim necessário identificar prioridades políticas e estratégias efectivas para a aplicação do desenvolvimento sustentável e para o progresso na implementação da Agenda 21.

3.7.2. Estratégias para a implementação da Agenda 21

De uma maneira geral a integração de políticas ambientais com as económicas e as sociais é fundamental para a implementação da Agenda 21. São também importantes para este fim estratégias como• a promoção de tecnologias limpas,• o aumento da eficiência através da transferência de tecnologia e• as mudanças estruturais nos padrões de produção e consumo.

Conforme já referido estas modificações só podem ser realizadas se as condições socio-económicas e institucionais se encontrarem tendo em vista a melhoria dos sistemas ambientais.

Em termos práticos existem actualmente diversos instrumentos de política ambiental para se efectuar a transição ambiental que integre o ambiente e os processos de decisão económica.

Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) – Procedimento administrativo que garante que, antes da autorização de um projecto, os seus potenciais impactes significativos sobre o ambiente sejam satisfatoriamente avaliados e tidos em consideração. Este procedimento está actualmente bem estabelecido, embora a eficiência da AIA dependa da sua elaboração ser iniciada antes do projecto estar em curso de forma a permitir a sua influência aquando da execução do projecto.

Avaliação Ambiental Estratégica – Procedimento que visa a aplicação da Avaliação de Impacte Ambiental a políticas, planos e programas. Este novo instrumento possibilita colmatar as lacunas dos AIA (apenas direccionada por projectos), evitando que as medidas de protecção ambiental sejam sugeridas já numa fase tardia de planeamento.

Legislação Ambiental – Processo para regulamentar e proteger por lei o ambiente.

Gestão Ambiental e Auditorias Ambientais – Processo que consiste na avaliação da qualidade ambiental de uma empresa em todos os níveis da sua actividade, por exemplo, consumo de matérias primas, consumos energéticos, produção de resíduos e emissão de efluentes, qualidade do ambiente de trabalho, iniciativas para a promoção da qualidade do ambiente, (e.g. retoma dos resíduos do consumo dos seus produtos). As Normas Internacionais ISO 1400037 visam a aplicação de sistemas de gestão ambiental e de outros instrumentos relacionados. Estas normas foram concebidas de forma a serem aplicáveis a qualquer tipo de entida-

________________________________37 ISO – Organização Internacional de Normalização.

46

de, pública ou privada, e determinam quais os requisitos de um sistema de gestão ambiental e englobam um conjunto complexo de técnicas e práticas ambientais. Existem já várias empresas que as aplicam e que são reguladas por estas normas.

Análise do Ciclo de Vida de Produtos (ACV) – Técnica de avaliação dos impactes ambientais associados a um produto ou serviço, onde são compilados os fluxos de entradas e saídas e avaliados os impactes ambientais associados a um produto ao longo do seu ciclo de vida (desde a extracção de matérias primas ou transformação de recursos naturais, até à deposição final do produto).

Rótulos Ecológicos – Processo de atribuição de rótulos ecológicos a equipamentos que são submetidos a um licenciamento perante a análise do ciclo de vida do produto, sendo necessário que as empresas comprovem que na sua composição e fabrico foram seguidos determinados critérios tendo em conta a preservação do ambiente. Existem diversos rótulos como é o caso do Sistema Comunitário de Atribuição do Rótulo Ecológico cujos critérios são definidos pela comunidade europeia.

Acordos voluntários – Acordos com os governos de cada país no sentido de motivar o tecido industrial a considerar critérios de natureza ambiental nos seus processos produtivos, conduzindo à implementação de medidas, tanto externas como internas às instalações, considerando a integração de práticas ou equipamentos de redução da poluição. Existem várias empresas que já efectuaram estes acordos com os respectivos governos, sendo no entanto importante garantir a sua eficácia.

Tecnologias limpas – Processo de implementação de tecnologias menos poluidoras nas industrias que tenham em conta a prevenção da poluição e não a utilização de técnicas de despoluição apenas no final da linha do processo produtivo convencional.

Subsídios – Procedimentos que tanto podem originar degradação ambiental (e.g. apoio a agricultura intensiva ou industrial de carvão) como beneficiar (e.g. apoio a medidas agro-ambientais).

Taxas Ambientais – Processo que consiste na incorporação dos custos da poluição e outros custos ambientais nos preços, ou seja um processo de correcção de preços e, simultaneamente, de aplicação do “Princípio do Poluidor-Pagador”. Desta forma todos os custos sociais e ambientais devem ser integrados nas actividades económicas, para que as externalidades ambientais sejam consideradas. Existem essencialmente três tipos de taxas:• “taxa por serviço prestado”, como o tratamento da água,• “taxas de incentivo” que visam mudar o comportamento dos

produtores e/ou consumidores, oferecendo, por exemplo benefícios fiscais e

• “taxas fiscais ambientais” essencialmente destinadas a gerar receitas.

Mais recentemente efectua-se a integração em “reformas fiscais verdes” em que os impostos sobre problemas como a poluição substituem alguns impostos sobre “bens” de trabalho, como é o caso do emprego (AEE, 1997).

Comércio ambiental e implementação conjunta – Instrumento económico que se baseia na fixação total de uma quantidade de poluição permitida

47

(avaliada por emissão de poluentes) sendo permitido o comércio de emissões entre diferentes países desde que o balanço total seja mantido.

Segundo RIVM/UNEP (1997), numa análise global preliminar dos custos adicionais das medidas políticas para incrementar as diversas transições, os custos serão da ordem de pequenas percentagens do PIB. Estes níveis são substanciais mas não proibitivos, e na maioria dos casos, pagarão as estimativas dos níveis presentes e futuros de estragos ambientais. No entanto, para os países em desenvolvimento, os custos em percentagem dos seus PIB's serão substancialmente superiores.

48

4. Problemas demográficos4.1. Explosão demográfica

4.1.1. Evolução da população mundialFoi necessária toda a história humana até 1801, para que a população mundial atingisse o primeiro bilião (milhar de milhões). Prevê-se que em 2050, a população seja de 8.9 mil milhões e em 2150 passe para 9.738.

Assim, foram necessários 130 anos para que se atingisse o 2º. milhar de milhão, para o 3º. apenas 30 anos, o 4º. milhar de milhão foi alcançado em 14 anos, 13 bastaram para que o 5º. milhar de milhão fosse atingido, em 12 anos apenas o mundo atingiu o 6º. milhar de milhão de pessoas.

1.º Milhar de Milhão História Humana até 18002.º Milhar de Milhão3.º Milhar de Milhão 30 Anos (1960)4.º Milhar de Milhão 14 Anos (1974)5.º Milhar de Milhão 13 Anos (1987)6.º Milhar de Milhão 12 Anos (1999)7.º Milhar de Milhão 14 Anos (2013)8.º Milhar de Milhão 15 Anos (2028)9.º Milhar de Milhão 26 Anos (2054)

De facto, o que torna o século XX único na história da Humanidade é o comportamento da taxa de crescimento da população mundial, que atinge um pico em 1976, para depois iniciar uma queda que, no horizonte temporal do gráfico seguinte, é quase tão vertiginosa como tinha sido o seu aumento anterior.

________________________________38 As projecções das Nações Unidas incluem 3 cenários, alto, médio e baixo com base no comportamento da fecundidade (relação do número de nascimentos com a população feminina em idade de procriar, assumindo-se o período fértil entre os 15 e os 49 anos). Os dados que se mencionam para os anos 2050 e 2150, referem-se ao cenário médio, por ser considerado como o mais provável, e assume-se que o número médio de filhos por mulher será de dois, ou seja assume-se que haja renovação das gerações. Nações Unidas (1998) Long-Range World Population Projections: Based on the 1998 Revisions, 1999.

49

130 Anos (1930)

2,5

2

1,5

1

0,5

05000a.C.

4000 3000 2000 1000a.C.

0 1000d.C.

1776 1976 2176 3000 4000 5000d.C.

Ta

xa

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%)

Anos

4.1.1.1. Evolução da população mundial● Até ao século XVIII

Até ao século XVIII, o crescimento da população foi lento, ainda que a taxa da natalidade 39 fosse alta a taxa da mortalidade 40 era também muito alta.As elevadas taxas da mortalidade deviam-se sobretudo, à falta de condições de higiene, desde a higiene pessoal que era muito precária, às condições sanitárias que propiciavam o surgimento de certas doenças contagiosas, como a peste, a cólera, a varíola e o tifo, com consequências desastrosas.41

● De 1750 até 1950

• Melhores condições sanitárias;• progressos na medicina preventiva e curativa;• melhor alimentação (em variedade e quantidade);• melhores condições de habitação;• melhor higiene pessoal (por exemplo, com o uso do sabão e

de roupas de algodão, mais fáceis de lavar do que as de lã);estes, entre outros factores, permitiram uma baixa da taxa da mortalidade e um aumento da esperança média de vida42. Consequentemente um grande aumento populacional que incidiu, sobretudo, na Europa e América do Norte.

● De 1950 até 1999

A partir da II Grande Guerra Mundial, nos países menos desenvolvidos verificou-se uma acentuada melhoria das condições de vida, no acesso a cuidados médicos e a água potável permitindo um decréscimo da mortalidade.

● 1999 – O ano dos seis biliões

A 12 de Outubro de 1999 o planeta atingiu 6 mil milhões de habitantes.Contudo, as assimetrias entre os países mais desenvolvidos e os menos desenvolvidos são cada vez maiores.

● De 1999 até 2050

Prevê-se que a população mundial continue a crescer nos próximos 50 anos. A diferença entre os cenários elaborados resulta das variações da taxa de fecundidade, sendo o cenário médio o mais provável, segundo a ONU.

________________________________39 Taxa de Natalidade – número de nados-vivos ocorrido durante um certo período de tempo, normalmente o ano, referido à população média desse período (habitualmente número de nados-vivos por 1000 habitantes), (1999) Estatísticas Demográficas, Lisboa, INE, 1998.40 Taxa de Mortalidade – Número de óbitos ocorridos durante um certo período de tempo, normalmente o ano, referido à população média desse período (por regra o número de óbitos por cada 1000 habitantes), (1999) Estatísticas Demográficas, Lisboa, INE, 1998.41 “O número de mortos devido à peste contou-se por vezes por milhões. Calcula-se que a grande peste de 1348 terá provocado 25 milhões de mortos, ou seja, um quarto da população da Europa nesse tempo.” Barata, 1968: 335.42 Corresponde à duração média de vida de um indivíduo.

50

● Cenário Alto – Se o número médio de crianças por mulher for de 2,5, a população mundial será de 10,7 mil milhões;

● Cenário Médio – Se o número médio de filhos por mulher for de 2, a população mundial será de 8,9 mil milhões;

● Cenário Baixo – Se o número médio de filhos por mulher for de 1,6, a população mundial será de 7,3 mil milhões.

4.1.1.2. Causas principais do crescimento demográfico

Ainda que se tenham verificado alterações, no sentido de baixar a natalidade, esta continua a ser elevada43, podendo apontar-se como causas:

● Estatuto e papel da Mulher centrados na maternidadeA progenitura é considerada como o meio de se alcançar muitos objectivos da vida quotidiana.44

● Valor da CriançaAs crianças são vistas como garante do futuro dos mais velhos, devido à inexistência de segurança social.

● Mortalidade infantil elevadaO número de crianças que conseguem sobreviver é reduzido, o que origina a necessidade de famílias numerosas.

● Baixo nível educacional da mulher45

Tende a reduzir a idade média do primeiro casamento.

● Planeamento familiar reduzido e baixo uso de contraceptivos46

________________________________43 Nas regiões menos desenvolvidas, em 1950, o número médio de filhos por mulher era 6,2, passando em 1999 para menos de 3. O decréscimo mais rápido da fecundidade verificou-se na América Latina e na Ásia, foi menos rápido no Norte de África e Médio Oriente e muito lentamente na África sub-sariana (entre 1950 e 1995, passou de 6,5 para 5,5).44 Nas sociedades “(...) onde o parentesco forma a base principal da organização social, a reprodução é um meio necessário para quase todos os principais objectivos de vida. A salvação da alma, a segurança na velhice, a produção de bens, a protecção do lar, e a garantia de afecto podem depender da presença, ajuda e apoio da prole. (...) Esta articulação do status parental com os restantes status de um indivíduo é o supremo estímulo da fertilidade.” Davis 1949: 561, citado por Weeks, 1996: 134.45 Nos países menos desenvolvidos a taxa de alfabetização das mulheres é de 61%, sendo nos países africanos que se registam as taxas mais baixas com 46%, idem. “Os demógrafos e os sociólogos verificaram que mais educação para as mulheres e as raparigas está relacionada com melhorias na saúde e com a descida das taxas de fecundidade.” FNUAP, 1999: 20.46 350 milhões de mulheres, quase um terço das mulheres de países menos desenvolvidos, não tem ainda acesso aos diversos meios de planeamento familiar. FNUAP, 1999:2. A percentagem de mulheres casadas que usam meios de contracepção modernos nos países menos desenvolvidos é de 37%, sendo na África a Sul do Sara onde a percentagem é menor com 18%. Idem.

51

4.1.1.3. Consequências principais do acelerado crescimento demográfico

● Consequências sócio-económicas:

• Maior pressão demográfica;• Maior urbanização;• Aumento do desemprego e subemprego;• Maior número de pobres;• Fome e Subnutrição;• Maiores tensões sociais;• Recurso à emigração.

● Consequências políticas:

• Mudança na composição do eleitorado;• Surgimento de novas ideologias e de novos partidos;• Instabilidade política;• Corrupção;• Tendência para a formação de governos autocráticos;• Intervenção das forças militares e de segurança, na

governação.

● Consequências ambientais:

• Escassez de água potável ou útil em determinadas regiões (provocando desertificação, menor produção agrícola e maior salinação das terras)47;

• Redução das florestas;• Decréscimo da terra de cultivo per capita48;• Aquecimento gradual da atmosfera;• Mudanças climáticas mundiais em grande escala (subida

do nível do mar, aumento da pluviosidade em alguns lugares ou ainda aumento das temperaturas em determinadas zonas.

● Face a esta situação, que medidas tomar?

No quadro síntese, que se segue, são referidas estratégias possíveis de intervenção. De modo geral, trata-se de:• acelerar o desenvolvimento social e económico; e de• aumentar o controlo das mulheres e dos homens sobre a

sua vida, nomeadamente sobre a sua vida reprodutiva e permitir que gozem os seus direitos humanos fundamentais.

________________________________47 Entre 1940 e 1990, o uso da água quadruplicou. Population Reference Bureau (1999) More Than Just Numbers.48 O aumento da população reduziu a zona de cultivo de cereais por pessoa em 50%, desde 1950. FNUAP, 1999: 27.

52

Explosão Demográfica - Síntese

Principais Consequências Sociais Possíveis Estratégias de Intervenção

• Rápido crescimento populacional;• Pressão sobre o ambiente e

serviços;• Pobreza;• Êxodo rural;• Maior afluxo às cidades;• Elevada taxa de desemprego;• Condições de vida precárias;• Recurso à imigração;• Adopção de políticas e legislação

anti-natalistas.

—Aumento da escolaridade feminina que permitirá:

• Maior participação na vida activa;• Maior participação na vida política

e económica;• Aumento da idade média à data

do 1.º casamento;• Recurso ao planeamento familiar

e meios de contracepção;• Maior capacidade de decisão

sobre o número de filhos pretendidos e o intervalo entre eles;

• Menor número de filhos;• Campanhas anti-natalistas.

53

Estatuto e papel da mulher centrados na

maternidade

Melhores condiçõesde vida

Valorização da criança

Acesso a cuidadosde saúde modernos

Baixas habilitaçõesliterárias da Mulher

Melhores condiçõessanitárias ehigiénicas

Planeamento familiarreduzido e baixo uso

de contraceptivos

Prevenção de certasdoenças

infectocontagiosas

Mortalidade infantilelevada

Acesso a águapotável

Elevada taxa defecundidade

Baixa da taxa demortalidade

Maior esperançamédia de vida

EXPLOSÃO DEMOGRÁFICA

54

4.2. Envelhecimento demográfico ou populacional

4.2.1. Envelhecimento da populaçãoAssiste-se hoje, na generalidade das sociedades mais desenvolvidas, ao fenómeno do envelhecimento demográfico ou populacional, ou seja, ao aumento da percentagem relativa de indivíduos com 6549 e mais anos de idade no conjunto da população total.

O reconhecimento da relevância e escala do fenómeno e dos seus prementes reflexos nos sistemas sociais e de segurança social dos países mais ricos do planeta tem justificado que o envelhecimento mereça hoje mais atenção até do que a explosão demográfica50 nos países em vias de desenvolvimento, embora o problema do envelhecimento da população venha também a atingir estes últimos, a curto prazo, com grande intensidade.

4.2.2. Evolução da população por grupos etários nas grandes Regiões

4.2.2.1. MundoDesde a década de 50, que se tem verificado um aumento da população com 60 e mais anos comparativamente à população com menos de 15 anos.

4.2.2.2. Regiões mais desenvolvidasA alteração tem maior significado nos países mais desenvolvidos. Assim, em 1950, a proporção de jovens era de 27% e a dos com 60 e mais anos era de 12%. Em 1998, e pela primeira vez, a proporção dos jovens foi mais baixa do que a proporção dos mais idosos, 18,8% contra 19,1%.

4.2.2.3. Regiões menos desenvolvidasNos países menos desenvolvidos, o processo de envelhecimento da população tem sido mais lento.

4.2.2.4. Evolução do número de indivíduos com 65 e mais anos no total da população mundial

Existe uma tendência global para o envelhecimento da população no Mundo, contudo será mais acentuada para os países mais desenvolvidos.

________________________________49 Considerou-se a idade de 65 anos para delimitar os indivíduos idosos por ser, na maioria dos países, a idade de entrada para a reforma. Consideram-se jovens, os indivíduos que tenham idades entre os 0 e os 14 anos. A população activa compreende os indivíduos entre os 15 e os 64 anos de idade.50 Por explosão demográfica, entende-se o acelerado crescimento da população que se tem verificado nos países menos desenvolvidos a partir de 1945, mas com maior significado a partir da década de 80.

55

4.2.3. Causas do envelhecimento demográficoO envelhecimento demográfico ou populacional deriva de uma de três razões principais:

● A primeira consiste no envelhecimento natural do topo, resultante do acréscimo da percentagem da população idosa, em consequência de tendências demográficas endógenas normais. O acréscimo do número de indivíduos com 65 e mais anos resulta, da baixa taxa de mortalidade e da mortalidade infantil51 com consequente aumento da esperança média de vida52, resultado do avanço da medicina e de melhores condições de vida (melhores condições sanitárias e higiénicas, melhor alimentação, entre outras).

● Uma segunda razão, refere-se ao envelhecimento artificial do topo, que acrescenta à primeira, a concentração de idosos em regiões particularmente atraentes, devido, entre outras causas, às boas condições climáticas e existência de serviços especializados. A presença e intensidade destes e outros factores exógenos às normais tendências demográficas, tem por paradigma o caso da Florida – que, por isso mesmo, tem constituído um verdadeiro laboratório de pesquisa, como antevisão do que virá a ser, a curto prazo, a estrutura de idades da população dos E.U.A. e as de outros países desenvolvidos53, ou ainda devido às migrações, quer internas quer internacionais, dado serem os jovens que maior tendência têm para migrar.

● Por fim, há a considerar o envelhecimento natural na base, resultante da quebra da natalidade característica de sociedades urbanas e industriais, com a consequente redução progressiva da camada mais jovem, no total da população.

________________________________51 Número de óbitos de crianças com menos de um ano ocorrido durante um certo período de tempo, normalmente o ano, referido ao número de nados-vivos do mesmo período (habitualmente número de óbitos de crianças com menos de um ano por 1000 nados-vivos). INE (1999) Estatísticas Demográficas, Lisboa, 1999.52 Na década de 50, a esperança média de vida era de 45,1 anos para os homens e de 47,8 anos para as mulheres. Na década de 90, era de 62,4 e 66,5 respectivamente. Em 2020, será de 70,2 para os homens e de 74,9 para as mulheres. Houve um acréscimo de, cerca de, 18 anos em 50 anos. No entanto, a esperança média de vida não é igual em todas as regiões do planeta. Assim, nos países mais desenvolvidos a esperança média de vida é de 71,1 para os homens e de 78,7 para as mulheres, nas regiões menos desenvolvidas é de 61,8 para os homens e de 65 para as mulheres.Os ganhos do aumento da longevidade, poderão vir a ser reduzidos devido ao número crescente de indivíduos afectados com o HIV/SIDA, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.53 Note-se que, segundo as projecções realizadas pelas Nações Unidas para 2050, com base no cenário médio, a Espanha terá a população mais envelhecida do mundo, em que a idade média será de 47,4 anos e África terá a população mais jovem, com idade média de 30,7 anos.A Espanha será o país mais envelhecido do mundo, com a idade média de 54,3 anos, em que para cada indivíduo com menos de 15 anos existirão 3,6 com mais de 60 anos. De todos os países mais envelhecidos, Portugal será “o mais jovem” com idade média de 50 anos.A área mais jovem do mundo será a Faixa de Gaza, com a idade média de 26,9 anos, seguindo-se o Burkina Faso, com 27,6 anos.

56

4.2.4. Consequências do envelhecimento populacional ou demográfico

4.2.4.1. Consequências Económicas e SociaisA nível económico, o aumento da população idosa acarreta maiores custos com a segurança social (com pensões e reformas), com a saúde (hospitais e medicamentos), com a criação de infra-estruturas (lares, centros de dia). Todos estes encargos financeiros para com o Estado serão suportados por uma população activa, cada vez mais reduzida, o que implicará uma diminuição da sua qualidade de vida.

4.2.4.2. Consequências políticasUma sociedade com menor percentagem de população activa, poderá apresentar certas características:

● Inflação baixa (os eleitores idosos vão dominar as eleições e deverão ser particularmente hostis à ideia de verem as suas poupanças diminuídas pela inflação);

● Taxa de desemprego baixa (devido à queda da proporção de pessoas em idade normal para trabalhar);

● Criminalidade baixa (os jovens cometem mais crimes, enquanto que os mais velhos têm tendência para tolerar menos o crime);

● Baixa tolerância da desordem e do comportamento anti-social, e com isto

● Maior aceitação da autoridade no controlo deste tipo de comportamento.

4.2.4.3. Consequências individuais do envelhecimento

● Consequências físicas

Com a idade o organismo fica mais debilitado, com menor resistência às doenças e com menor capacidade para realizar determinadas actividades.

● Consequências económicas e sociais

A entrada para a reforma ou a dependência de pensões ou subsídios estatais, significa para a maioria da população idosa, uma redução dos seus rendimentos. A perda de contacto com a vida activa e produtiva leva a que muitos se sintam excluídos da sociedade.

57

4.2.5. Tendências do envelhecimento populacional

● A maioria da população com 60 e mais anos viverá em países mais desenvolvidos (33%, em 2050, enquanto que nos países menos desenvolvidos representarão 21%);

● O maior acréscimo da população com 60 e mais anos dar-se-á nos países menos desenvolvidos, onde passará de 240 para 1.594 milhões;

● Feminização da população envelhecida;

● Estima-se que aumente o número de pessoas com 80, 90 e 100 anos relativamente ao total da população idosa;

● Redução do número de activos por cada idoso.

4.2.6. Possíveis estratégias de intervençãoCiclo do Envelhecimento Demográfico - Síntese

Principais Consequências Possíveis Estratégias de Intervenção

• Maior número de indivíduos com 65 e mais anos;

• Desequilíbrio crescente entre população inactiva e activa;

• Maiores custos com reformas e pensões;

• Maiores custos com a saúde;• Maiores custos com infraestruturas;• Maiores encargos financeiros e

fiscais para os activos;• Redução da qualidade de vida da

população activa;• Alterações nas estruturas sociais;• Alterações de valores;• Alterações políticas.

• Fomentar a natalidade com recurso a políticas natalistas;

• Aumentar a idade da reforma;• Redefinir o papel e imagem do

idoso;• Educar para a vida na terceira idade;• Criar medidas para apoio de idosos

na vida activa;• Promover acções de formação para

os idosos;• Reintegrar os idosos na vida activa;• Fomentar a participação de idosos

em regime de cooperação com países em desenvolvimento.

58

Maiores habilitações literárias da mulher

Melhores condiçõesde vida

Maior participação da mulher na vida activa

Avanço damedicina

Baixa taxa da mortalidade infantil

Planeamento familiar e uso de contraceptivos

Baixa da taxa daFecundidade

Baixa da Taxa daMortalidade

ENVELHECIMENTO DEMOGRÁFICO

Maior EsperançaMédia de Vida

4.3. MigraçõesFoi a partir do século XVI que se deram os movimentos “(...) mais espectaculares e aparentes, (...) as grandes migrações transoceânicas que levaram ao povoamento por europeus da América, da África meridional, da Austrália e da Nova Zelândia”.

4.3.1. Classificação das migrações54

As migrações podem ser classificadas em:

• Migrações Internas;• Migrações Internacionais.

4.3.1.1. Migrações internasPor migrações internas, entendem-se os movimentos definitivos ou sazonais das populações dentro de um país, território ou área restrita.

● Classificação das migrações internas:

● Definitivas, como o êxodo rural (saída dos campos para as cidades)55;

● Sazonais56, constituídas por grupos organizados de pessoas em resposta a ofertas de trabalho for a das suas regiões habituais de residência durante determinados períodos do ano.

● Causas das migrações internas, exemplos:

● Ordem económica – as que se referem fundamentalmente, a questões de natureza laboral (desemprego, subemprego, baixos salários).

● Ordem não económica – que podem ser de vária natureza, por exemplo:

● Ecológicas (Infertilidade das terras, escassez de água potável; maior rigor do clima;

● Sociais (conflitos, dificuldades de comunicação; inexistência de infra-estruturas, como Centros de Saúde, Escolas, Universidades, etc.)

● Consequências das migrações internasA principal consequência das migrações internas é a crescente urbanização que trará problemas sérios a vários níveis:

________________________________54 Por migração, entende-se o movimento de uma população, temporário ou permanente, de um local físico para outro. Contudo, não se poderá considerar migração a ida regular para o local de trabalho mesmo que distante, ou a visita de familiares. A migração envolve necessariamente uma transição social bem definida, implicando por regra uma mudança de estatuto ou uma alteração no relacionamento com o meio envolvente, quer físico quer social.55 Nos Estados Unidos da América está a surgir um novo processo migratório, a mudança das áreas urbanas para as áreas rurais. Nos novos habitantes incluem-se reformados, profissionais liberais, entre outros, na busca de uma vida que a cidade já não proporciona.56 Designam-se por sazonais por terem uma duração inferior a um ano e repetem-se ciclicamente com periodicidade annual.

59

● Ao nível demográfico – desertificação do interior e zonas rurais que contribui para o envelhecimento destas regiões e ao aumento da densidade populacional nas áreas urbanas dando origem a mega cidades57;

● Ao nível familiar – o abandono de mulheres, crianças e idosos, enquanto os homens vão para as cidades;

● Ao nível social – desemprego ou subemprego, baixos salários, bairros com precárias condições de vida, tensões sociais e pressão sobre os sistemas de prestações de serviços.

4.3.1.2. Migrações internacionaisPor migrações internacionais entendem-se os movimentos populacionais que ocorrem entre países.

Considera-se emigrante o indivíduo que sai do seu país para ir trabalhar para outro país. O mesmo indivíduo chegado a França é aí considerado imigrante.

● Migrações internacionais. Alguns factores.

● Natureza das motivações de deslocação, em que se enquadram● as migrações políticas (guerras, revoluções,

perseguições étnicas ou religiosas) e● as migrações económicas (desemprego, baixos

salários, más condições de vida);

● Distância percorrida que poderá envolver● grandes distâncias (migrações longínquas ou

transoceânicas, p. ex. as que se desenvolveram da Europa para outros continentes; ou

● curtas distâncias, como as principais migrações contemporâneas desde o início da década de 90;

● Duração de permanência , que poderá ser● definitiva (geralmente é o caso das migrações

transoceânicas, como, no passado, as de Portugal para o Brasil) ou

● temporária (migrações sazonais, anuais ou plurianuais, contratos por temporada, p. ex. na construção civil ou na área da agricultura).

● Duração do fluxo, que está relacionado com a conjuntura económica e/ou por decisões políticas dos países de origem58 e de destino.

● A estrutura familiar dos grupos migrantes, que tenderá a reflectir-se nos respectivos comportamentos, consoante a emigração seja de curta ou longa distância

________________________________57 Em 1960, as três maiores cidades do mundo situavam-se em países desenvolvidos. Nova Iorque (com 14,2 milhões de habitantes), Tóquio (com 11 milhões) e Londres (com 9,1 milhões). Em 2015, as maiores cidades serão Tóquio, Bombaim e Lagos, com 28,9, 26,2 e 24,6 milhões de habitantes respectivamente, Population Reference Bureau (1999), International Migration.58 Foi, por exemplo, o que aconteceu durante o regime de Mussolini, que durante 15 anos impediu a emigração legal dos italianos, George:1977: 36.

60

(por exemplo, neste último caso, a emigração será menos problemática para os solteiros e isolados).

● As qualificações dos migrantes, que, por regra, quanto mais elevadas forem mais facilitarão a sua entrada e integração sócio-profissional nos países de destino.

● Proximidade cultural entre os migrantes e a população anfitriã (língua, etnia, cultura). Quanto maior for essa proximidade, maiores as facilidades de integração e maior preferência terão os migrantes nas políticas de imigração.

● Causas das migrações internacionais

Podemos distinguir como principais causas dos fluxos migratórios internacionais: causas de ordem económica e de ordem não económica que levarão a que um número cada vez maior de pessoas procure refúgio fora dos seus países de origem, quer legal quer clandestinamente:

● As de ordem económica – as que se referem fundamentalmente, a questões de natureza laboral (desemprego, subemprego59, baixos salários, informação sobre empregos através de recrutadores, dos media e de compatriotas no estrangeiro, redes de transportes e comunicações desenvolvidas).

● As de ordem não económica - que podem ser de vária natureza, nomeadamente:

● Políticas (guerras, revoluções, perseguições);

● Demográficas (maior densidade populacional);

● Sociais (falta de infra-estruturas sociais, escolas, hospitais, etc.);

● Religiosas/Culturais (proibição de professar outros cultos, existência de certas práticas rituais como, por exemplo, mutilação genital feminina)60;

● Familiar (reagrupamento familiar)61;

● Pessoal (realização profissional, gosto de viver no estrangeiro).

● Consequências das Migrações Internacionais

● Consequências para o País de destino

As consequências são fundamentalmente de três ordens, económica, demográfica e socio-política:

________________________________59 Por exemplo, a China, em 1996, tinha 40% da sua população desempregada ou subempregada. Population Reference Bureau, International Migration, 1999:4.60 M.G.F. - Ablação parcial ou total dos órgãos genitais externos da mulher. No mundo inteiro, estima-se que 130 milhões de raparigas e mulheres tenham, sido objecto de alguma forma de M.G.F., FNUAP: 1999: 33.61 Processo designado pela reconstituição da família no estrangeiro, em fase subsequente à emigração do primeiro dos seus membros. Rocha-Trindade, 1995:49.

61

● Ordem económica: por exemplo, o acréscimo da população activa e o aumento da população menos qualificada (para realizar tarefas que os naturais não queiram desempenhar);

● Ordem demográfica: por exemplo, o rejuvenescimento das suas populações (geralmente com tendência para o envelhecimento populacional) e o aumento do número de efectivos62;

● Ordem socio-política: por exemplo, o surgimento de sentimentos de xenofobia e racismo por parte das populações anfitriãs que poderão levar a que os governos adoptem medidas restritivas de migrantes, particularmente os oriundos de certas áreas culturais ou geográficas.

● Consequências para os países de origem:

● Ordem económica: por exemplo, contribuição financeira dos seus emigrantes através do envio de remessas63, redução da população activa qualificada (cuja integração no país de destino é tendencialmente mais fácil);

● Ordem demográfica: por exemplo, envelhecimento das suas populações (dado que a tendência é para que emigrem mais os jovens do que os mais velhos);

● Ordem social: por exemplo, abandono de mulheres e crianças, contacto com outras culturas e tradições que poderão levar à extinção de determinadas práticas tradicionais ou à adopção de práticas novas como, por exemplo, maior recurso às técnicas de planeamento familiar.

● Tendências das migrações internacionais para os próximos 20 anos:

● Globalização das Migrações64 – Tendência para que um maior número de países seja afectado ao mesmo tempo por movimentos migratórios, oriundos de uma maior diversidade de áreas.

● Crescimento das Migrações65 – Tendência para que o volume dos movimentos migratórios se torne cada vez maior.

________________________________62 É, por exemplo, o caso do Japão que face ao envelhecimento da sua população e escassez de mão-de-obra, se tem socorrido de estrangeiros. Entre 1985 e 1995 a população estrangeira aumentou 60%, FNUAP, 1999:4.63 Os migrantes enviam mais de 70 milhões de dólares para o seu país natal, sob a forma de remessas, FNUAP, 1999:4.64 O número de países com uma população migrante de 300.000 pessoas ou mais aumentou mais de 50%, entre 1965 e 1990, FNUAP, 1999:26.65 Em meados dos anos 90, cerca de 145 milhões de indivíduos viviam fora dos países de origem, e prevê-se que este número aumente entre 2 a 4 milhões por ano. Population Reference Bureau (1999) World Population: More Than Just Numbers.

62

● Indiferenciação das Migrações – Inicialmente os movimentos migratórios eram de um só tipo; por exemplo, ou só de trabalhadores ou só de refugiados66.

● Feminização das Migrações67 – No passado, os movimentos de trabalhadores e refugiados eram maioritariamente masculinos, e os movimentos das mulheres eram, na maioria das vezes, justificados pelo “reagrupamento familiar”. A partir da década de 60, as mulheres têm assumido um papel cada vez mais importante em todos os tipos de migração. É o que se verifica, por exemplo, entre as mulheres turcas que em grande maioria precedem os maridos na emigração para a Alemanha.

● Processo migratório internacional: o modelo das 4 fasesO processo de migração, na maioria dos casos, processa-se por fases, passando-se de uma estada temporária à opção por uma estada permanente. Por vezes, porém, a situação pode ser mais complexa: por exemplo, após uma estada temporária no estrangeiro, o migrante regressa ao país de origem, de onde, confrontado com as mesmas dificuldades que o haviam levado a emigrar, parte de novo para o país anfitrião.

________________________________66 Por refugiados entendem-se os indivíduos que são forçados a mudar de país ou região devido a factores como: guerra, genocídio ou perseguições (políticas, religiosas). Nos anos 90 os países com maior número de refugiados foram, Ruanda (1994) com 1.700.000, Iraque (1991) com 1.500.000 e Somália (1991) com 1.000.000 idem.67 Em 1990, do total da população migrante, a percentagem das mulheres foi de 48%. A maioria das mulheres migrantes em busca de trabalho tende a concentrar-se em empregos menores, idem, ibidem.

63

Modelo das 4 fasesFases Tipo de estada Processo de ajustamento

1ª. FASE Inicialmente opta-se por uma estada temporária, envolvendo um membro a-dulto ou jovem cujo objectivo é ganhar dinheiro e enviá-lo aos familiares que fi-caram.

Adaptação ou ajustamento ao novo ambiente, no qual se ajustam ao novo meio físico e social e aprendem as me-lhores maneiras de se integrarem na vida quotidiana do país anfitrião.

2ª. FASE Dá-se o prolongamento da estada ini-cial e desenvolvem-se redes sociais ba-seadas no parentesco e nas relações de inter ajuda entre indivíduos da mes-ma origem.

Aculturação – Nesta fase os migrantes adoptam a língua, alinham a sua dieta pela cultura local, ouvem música e lê-em jornais, revistas e livros da cultu-ra anfitriã, e fazem amigos fora do seu grupo migrante. Isto, tende a ser mais provável se o imigrante for proveniente de uma cultura idêntica e se tiver filhos, dado que estes estão mais intensamen-te expostos à nova cultura do que os a-dultos. A adopção da língua é frequ-entemente usada como indicador de aculturação.

3ª. FASE Dá-se o reagrupamento familiar. Cresce uma maior consciência de fi-xação permanente e a emergência de comunidades étnicas com instituições próprias (associações, locais de culto, lojas, cafés, agências, profissões, etc.)

4ª. FASE A fixação torna-se permanente, de-pendendo a sua forma• das políticas governamentais e do

comportamento e atitudes dos natu-rais desses países de destino;

• da segurança legal e de uma even-tual naturalização; ou

• de políticas de exclusão e margina-lização socio-económica, originando a formação de minorias étnicas perma-nentes.

Assimilação – Para além da adopção da língua, os migrantes adoptam tam-bém o modo de vestir, comportamen-tos e atitudes dos membros da cultu-ra anfitriã. O casamento com um membro do país de destino é frequ-entemente usado como indicador de assimilação.

64

Migrações-Síntese

Causas:

Ordem Económica:• Desemprego;• Baixos Salários;• Subemprego;

Ordem Não Económica:– Ecológicas

• Infertilidade e/ou insuficiência de terras;

• Escassez de água potável;• Maior rigor do clima;

– Demográficas• Crescimento populacional;

– Sociais• Fome;• Guerras; Conflitos• Perseguições;• Ausência de infra estruturas

65

MIGRAÇÕESINTERNAS INTERNACIONAIS

CONSEQUÊNCIAS

Ordem não Económica:

o A Principal consequência é a crescen- te urbanização, que provocará:

o Desertificação das zonas rurais;

o Envelhecimento das populações das zonas rurais;

o Abandono de mulheres, crianças e idosos;

o Surgimento das mega cidades;

o Pressão demográfica e pressão na prestação dos serviços;

o Fome;

o Desemprego;

o Pobreza;

o Tensões sociais.

CONSEQUÊNCIAS

País de destino

Ordem económica: o Acréscimo da população activa; o Populações com baixas qualificações: salários mais baixos, menor protecção social; o População qualificada, menor investi- mento na qualificação de mão-de-obra local;

Ordem Não Económica: - Demográfica: o Aumento de efectivos; o Rejuvenescimento da população;

- Socio-política: o Sentimentos de xenofobia e racismo; o Políticas restritivas à imigração;

País de origem

Ordem económica: o Remessas dos emigrantes; o Redução de mão-de-obra qualificada;

Ordem Não Económica: o Envelhecimento das suas populações.

66

4.4 Políticas demográficas ou políticas da população4.4.1. Evolução da população mundialEnquanto os países mais desenvolvidos, evidenciam uma tendência para um decréscimo do seu efectivo populacional, nos países menos desenvolvidos verifica-se uma situação inversa, ou seja, as suas populações terão um peso cada vez maior no total mundial.

Nos países mais desenvolvidos, o número médio de filhos por mulher(1,5) é menos de metade, dos que têm as mulheres nos países menos desenvolvidos(3,2).

4.4.2. Políticas demográficas. O que são?Entende-se por políticas demográficas, o conjunto de medidas tomadas pelas entidades governamentais, que de forma directa ou indirecta, visam alterar a evolução da população. Estas alterações do movimento da população podem ser feitas com base nas áreas do processo populacional, ou seja:

● da natalidade;

● da mortalidade;

● das migrações (internas ou internacionais).

● Área da natalidade

Para a alteração do crescimento da população, é na área da natalidade que as políticas da população mais têm incidido e, onde os governos mais tendem a intervir – mais ainda do que no campo das migrações.

● Área da mortalidade

Na área da mortalidade, as políticas são sempre evidentemente no sentido da baixa incidindo fundamentalmente em medidas que permitam melhores condições de vida, como melhor acesso a cuidados médicos, a água potável e saneamento básico. Note-se que, enquanto nos países mais desenvolvidos a principal causa de morte, são doenças do sistema circulatório (46%), nos países menos desenvolvidos, as principais causas de morte (43%) devem-se às doenças infecto-contagiosas e parasitárias, como o sarampo, a diarreia, malária e cólera, o que condiciona as diferenças das políticas adoptadas, num e noutro caso.

● Área das migrações

No que diz respeito às migrações, as políticas escolhidas também variam de acordo com as características demográficas dos países e, portanto, em função do seu grau de desenvolvimento.

67

4.4.2.1. Políticas demográficas ou da população na área da natalidade

Temos assim, três tipos de políticas:

● Políticas Natalistas, que visam o aumento da taxa da natalidade;

● Políticas Anti-natalistas, que visam a diminuição da taxa da natalidade.

● Políticas de Neutralidade, cujos resultados variarão de acordo com as circunstâncias de cada país.

Da análise geral dos dados, constata-se que, a nível mundial, predominam as políticas anti-natalistas, de maneira geral embora nas regiões mais desenvolvidas (com destaque para a Europa) se privilegiem as políticas para aumentar a fecundidade, dado o seu índice sintético de fecundidade ser baixo não permitindo a renovação das gerações68 e ainda, provocando o envelhecimento das populações. Inversamente, constata-se, também, que são os governos dos países menos desenvolvidos onde a taxa de fecundidade é mais elevada, (com realce para África) que tomam medidas no sentido de reduzir o número de nascimentos por mulher.

● Medidas natalistas e da família – Exemplos

As medidas adoptadas para o aumento da natalidade, podem ser directas ou podem ser indirectas (como são as políticas da família que incidem nas áreas dos abonos). Vejamos algumas áreas de possível intervenção:

● Área dos benefícios fiscais (p.e., redução dos impostos às famílias numerosas);

● Área das infra-estruturas sociais (p.e., a criação de creches, infantários, jardins-escola, escolas, parques de diversão);

● Área do apoio à maternidade (p.e., serviço gratuito de assistência médica pré e pós parto; consultas gratuitas no campo da medicina materna e infantil, abonos de aleitamento e abonos de família);

● Área da legislação (p.e., proibição do aborto, da esterilização masculina e feminina e de campanhas anti-natalistas);

● Área laboral (facilitação de horários e condições especiais para mulheres grávidas ou com filhos).

________________________________68 Índice Sintético da Fecundidade ou índice conjuntural da fecundidade ou soma dos nascimentos reduzidos indica o número médio de filhos por mulher de uma geração de uma dada idade num ano determinado.Para que a substituição da geração seja assegurada é preciso que o número médio de filhos por mulher seja pelo menos de dois (uma vez que existem dois parentes a substituir), Géhanne, 1995, cit. por Torres, 1996:153.

68

● Adopção de políticas natalistas – O exemplo francês

A França foi o primeiro país europeu a evidenciar uma tendência para a baixa da natalidade69.

4.4.2.2. Políticas anti-natalistas ou neomalthusianas70

As medidas adoptadas para a diminuição da natalidade, podem como as anteriores, ser directas ou indirectas.

● Medidas anti-natalistas directas ou indirectas

Medidas anti-natalistas

Condições pré-vias para a obtenção dos e-feitos desejados

Exemplos de Políticas

Directas Indirectas

Escolha Racional

• Alargar os direitos das mu-lheres;

• Aumentar a idade legal à data do primeiro casamen-to da mulher.

• Promover a educação;• Promover o diálogo entre

os cônjuges na tomada de decisões sobre o número de filhos pretendidos e o intervalo entre eles.

Promoção das famílias peque-nas

Medidas Incentivadoras• Subsidiar as famílias para

que não tenham filhos;• Dar prioridade no empre-

go, habitação e educação às famílias pequenas.

Medidas Dissuasoras• Aumento dos impostos às

famílias por cada filho adi-cional;

• Maiores custos com a ma-ternidade e educação por cada filho adicional.

Medidas Incentivadoras• Aumento das oportunida-

des educacionais para as mulheres;

• Aumento das oportunida-des no mercado de traba-lho para as mulheres.

Medidas Dissuasoras• Adopção de legislação a

proibir o trabalho infantil;• Educação obrigatória para

as crianças;• Campanhas de estigmati-

zação social.

Meios disponí-veis para limitar o tamanho das famílias

• Legalização do aborto;• Legalização da esteriliza-

ção feminina e masculina;• Legalização de outras for-

mas de controlo da fecun-didade;

• Distribuição gratuita de meios de contracepção.

• Realização de campanhas públicas para divulgação e promoção do planeamento familiar;

• Políticos a favor do pla-neamento familiar.

________________________________69 Segundo Maisons Laffitte uma das causas da baixa da taxa da natalidade em França foi o novo valor atribuído à família e à criança: “A família começa então a organizar-se em torno da criança, a dar-lhe uma importância que a faz sair do seu antigo anonimato, não sendo já possível perdê-la e substituí-la sem grande desgosto, nem “repeti-la” demasiadas vezes – passa a ser considerado conveniente limitar o número dos filhos para melhor cuidar deles”, Ariès, 1988: 12-13.70 Políticas que preconizam a utilização de métodos anti-concepcionais como meio de combate à ameaça de um excessivo crescimento populacional. Estas políticas têm a sua génese na doutrina defendida por Malthus. Para o aprofundar destas matérias confira-se, Malthus, op. cit.

69

● Adopção de políticas anti-natalistas – O exemplo chinês

Em 1949, altura em que Mao Tsé-Tung sobe ao poder na China, a esperança média de vida dos chineses era de 40 anos, sendo em 1999, de 69 anos, teve em meio século um acréscimo de cerca de trinta anos!

Em 1956, e face ao acelerado crescimento demográfico, as autoridades chinesas prepararam um programa de limitação dos nascimentos, essencialmente baseado no adiamento da idade média à data do casamento (a idade fixada por lei era, de 18 anos para as raparigas e de 20 para os rapazes). Em 1976, quando Mao morre, a taxa de crescimento era de 2,6%, o que significava a duplicação da população em 27 anos. Face ao acelerado crescimento demográfico, a partir de 1971, foram tomadas medidas, consideradas draconianas, no sentido de se alterar o crescimento, sendo radicalizada a partir de 1979, com a política do filho único (hoje, a taxa de crescimento é de 1%). Caso nasça mais um filho, a família terá que reembolsar as mensalidades correspondentes a 1/10 do salário e perderá todas as regalias, além de serem socialmente estigmatizadas71.

Face ao esforço desenvolvido para reduzir o crescimento do efectivo populacional, prevê-se que a China deixe de ser, em 2050, com 1,478 milhões, o país mais populoso do mundo (situação que mantém desde 1950) para passar ao segundo lugar, depois da Índia.

4.4.2.3. Políticas sem intervenção específica na área da natalidade. Políticas de imigração

Face à baixa da taxa da natalidade e ao consequente envelhecimento populacional, alguns países adoptam medidas populacionistas. Estas medidas, inserem-se no âmbito das políticas da imigração, como é por exemplo o caso do Canadá, da Austrália e do Japão.

A adopção destas medidas permite o aumento do seu efectivo populacional com o aumento da natalidade, acréscimo da população activa e rejuvenescimento demográfico, uma vez que quem imigra, maioritariamente, são os jovens.

● Políticas que podem influenciar as migrações, exemplos:

As medidas poderão ser adoptadas, por exemplo, com base em:

● Factores profissionais – limitando a entrada de indivíduos estrangeiros consoante a qualificação que possuam.

● Factores sanitários – recusando a entrada de indivíduos com base no seu cadastro criminal ou ainda, com base em controlos sanitários destinados a impedir a entrada de indivíduos portadores ou potenciais portadores de determinadas doenças.

________________________________71 As famílias com três filhos são muito penalizadas, por exemplo, é-lhes retirado 1/10 do salário do casal, não terão acesso à educação gratuita, podendo ser preteridos nas promoções no emprego.

70

● Factores étnicos e raciais – adoptando medidas tendentes a beneficiar determinadas etnias em detrimento de outras. Foi, por exemplo, o que aconteceu com o sistema de quotas adoptado pelos Estados Unidos da América, nos finais do séc. XIX, facilitando a entrada de indivíduos provenientes da Europa em detrimento dos provenientes da Ásia.

4.4.3. Conferências mundiais sobre a população

Neste âmbito, foram organizadas, pela Organização das Nações Unidas até hoje, três conferências mundiais sobre a população:

● Conferência Mundial de Bucareste (1974);

● Conferência Internacional do México sobre a População (1984);

● Conferência Internacional do Cairo sobre a População e o Desenvolvimento (1994).

As três conferências mundiais partem da premissa de que o crescimento da população é um potencial obstáculo ao desenvolvimento económico e que o bem estar das populações passa por uma estratégia de limitação do crescimento populacional (nem todos os países estão de acordo com esta estratégia, existindo mesmo duas posições contrárias sobre esta temática, uma, em que se inserem os países mais desenvolvidos, que defendem o crescimento da população como um factor de bloqueio, e outra, a dos países menos desenvolvidos, que o consideram como um motor). Nas três conferências, foi sempre defendida por consenso, a prioridade a dar à redução da mortalidade, ainda que o seu decréscimo provoque uma maior pressão demográfica. No que diz respeito às migrações, defende-se que deverá ser controlada, embora não tenham surgido medidas específicas neste domínio.

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Políticas Demográficas - Síntese

PolíticasDemográficas

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PolíticasNatalistas

PolíticasAnti-natalistas

Natalidade

Mortalidade

Baixa

Baixa

Alta

Baixa

Migrações InternasInternacionais

ExplosãoDemográfica

EnvelhecimentoDemográfica

5. Globalização económica5.1. IntroduçãoEste capítulo apresenta os principais conceitos usados na análise dos determinantes da globalização, assim como a moldura analítica básica necessária para a compreensão das relações entre globalização, desnacionalização e vulnerabilidade externa. O argumento central é que o processo de globalização económica provoca relações mais complexas e profundas de interdependência entre economias nacionais e, no caso de alguns países, (Brasil e, basicamente, toda a América Latina) essas relações levam à consolidação ou ao agravamento de uma situação de vulnerabilidade externa.

A entrada de empresas de capital estrangeiro (ECE), com destaque para as empresas transnacionais, representa uma menor capacidade de resistência a factores desestabilizadores e choques externos, na medida em que a actuação dessas empresas vem acompanhada de extraordinárias fontes internas de poder e, principalmente, fontes externas de poder.

A globalização é, na realidade, um tema de múltiplas dimensões, que dificultam significativamente a elaboração conceptual ou teórica (Baumann, 1995; Ianni, 1995).

Neste texto, um dos principais conceitos usado é o de investimento externo directo (IED).

De um modo geral, o investimento externo directo refere-se a todo o fluxo de capital estrangeiro destinado a uma empresa (residente) sobre a qual o estrangeiro (não-residente) exerce controlo sobre a tomada de decisão.

A ECE é também referida, às vezes, como empresa internacional, multinacional, transnacional ou, mais simplesmente, como empresa estrangeira.

5.2. Da internacionalização à globalizaçãoA globalização pode ser definida como a interacção de três processos distintos que têm ocorrido ao longo dos últimos vinte anos e afectam as dimensões financeira, produtiva, comercial e tecnológica das relações económicas internacionais. Esses processos são:

● a expansão extraordinária dos fluxos internacionais de bens, serviços e capitais;

● a concorrência desenfreada nos mercados internacionais;

● a maior integração entre os sistemas económicos nacionais (Gonçalves, Baumann, Prado e Canuto, 1998).

a) O primeiro processo refere-se à expansão extraordinária dos fluxos internacionais de bens, serviços e capitais (Chesnais, 1996; Hirst e Thompson, 1996). No caso dos fluxos de capitais, os dados mostram que os empréstimos internacionais mais o investimento de acções em bolsa aumentaram de aproximadamente 400 biliões em 1987 para 1,6 triliões de dólares em 1996. Nesse período os empréstimos e os investimentos em bolsa cresceram a uma taxa média annual de aproximadamente 17%.

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No que se refere ao processo de globalização na esfera produtiva, deve-se ressaltar que a internacionalização da produção ocorre sempre que residentes de um país têm acesso a bens e serviços com origem noutros países. Esse acesso pode ocorrer por meio do comércio internacional, investimento externo directo e relações contratuais (Gonçalves, 1992). Entretanto, em termos da inserção produtiva dos países no sistema económico internacional, os mecanismos relevantes são o investimento externo directo e as relações contratuais. As exportações e as importações são formas de inserção comercial no sistema económico mundial.

Cabe ressaltar que o investimento externo directo significa que um agente económico estrangeiro actua na economia nacional por meio de subsidiárias ou filiais, enquanto as relações contratuais permitem que agentes económicos nacionais produzam bens ou serviços que têm origem no resto do mundo. Os contratos de transferência de know-how , marcas, patentes, franquias, parcerias e alianças estratégicas são os exemplos mais comuns.

A partir de meados dos anos 80 houve um aumento extraordinário dos fluxos de investimento externo directo e das relações contratuais, assim como da actuação das empresas transnacionais.

Não obstante, no período mais recente (1991-97), o produto mundial cresceu a uma taxa média annual de 4,9%, enquanto o fluxo de investimento externo directo cresceu 12,1%, o pagamento de royalties e taxas (usadas para as relações contratuais) cresceu 12,2%, e o comércio mundial aumentou 7,2% anualmente.

b) O segundo processo característico da globalização é o acirramento/agitação da concorrência internacional. Embora não seja possível mensurar directamente essa agitação, a crescente importância da questão da competitividade internacional na agenda da política económica dos países sugere que, de facto, há uma rivalidade cada vez maior no sistema económico mundial. Deve-se mencionar que o maior banco de investimentos dos Estados Unidos, Merrill Lynch, ocupou o primeiro lugar na emissão internacional de títulos, com 16,5% do mercado mundial em 1994 (Dreifuss, 1996, p. 159).

Além disso, os investidores institucionais (fundos de pensões, fundos mútuos e seguradoras) passaram a adoptar estratégias de diversificação de investimentos em Bolsa em bases geográficas. Esses investidores podem actuar por meio de instituições financeiras internacionais ou, então, directamente nos mercados nos quais têm interesse. Esses “mercados emergentes” passaram a ter centros financeiros importantes para aplicação ou intermediação de recursos. Esses centros estão em todos os continentes como, por exemplo, Singapura e Hong Kong na Ásia; São Paulo e Cidade do México na América Latina; Varsóvia e Budapeste, na Europa.

c) O terceiro processo refere-se à crescente integração dos sistemas económicos nacionais. Esse processo manifesta-se quando, no caso da globalização financeira, uma proporção crescente de activos financeiros emitidos por residentes está nas mãos de não-residentes e vice-versa. Nesse sentido, um indicador importante é o diferencial entre as taxas de crescimento das transacções financeiras internacionais e

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nacionais. Assim, por exemplo, nos cinco primeiros anos da década de 1990, o conjunto de “bónus” emitidos nos mercados de capitais dos países desenvolvidos cresceu a uma taxa média anual de 9%, enquanto o conjunto dos “bónus” emitidos no mercado internacional de capitais por esses países cresceu 12% (IMF-WEO, 1996, p. 58).

Outro exemplo: a participação de títulos estrangeiros na carteira dos fundos de pensões norte-americanos aumentou de 0,7% em 1980 para 10,3% em 1993, e no caso dos fundos de pensões britânicos esse aumento foi de 10,1% em 1980 para 19,7% em 1993; já o aumento correspondente para os fundos de pensões japoneses foi de 0,5% em 1980 para 9,0% em 1993.

A globalização económica corresponde, assim, à ocorrência simultânea dos três processos já mencionados. Deve-se notar que em momentos anteriores da História esses processos também se verificaram, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos distinta. O exemplo mais evidente é a extraordinária expansão do movimento internacional de capitais e do comércio mundial nas quatro ou cinco décadas que antecederam a Primeira Guerra Mundial.

A especificidade da globalização económica no final do século XX consistiu na simultaneidade dos processos de crescimento extraordinário dos fluxos internacionais, “acirramento” da concorrência no sistema internacional e integração crescente entre os sistemas económicos nacionais. Essa especificidade é particularmente importante e, portanto, merece um nome específico: globalização. É provável que esse contramovimento se manifeste, de forma mais evidente, já no início do século XXI, tendo em vista o acumular de problemas causados pelo neoliberalismo nas últimas duas décadas do século XX.

O conceito de globalização económica, assim como outros principais conceitos usados no texto, serão resumidos nos Anexos.

A questão central é, então, saber quais foram os factores determinantes do fenómeno recente da globalização económica.

5.3. Determinantes da globalizaçãoOs determinantes da globalização podem ser agrupados em três conjuntos de factores:

● tecnológicos,

● institucionais,

● sistémicos.

a) O primeiro conjunto de determinantes da globalização económica refere-se aos desenvolvimentos tecnológicos associados à revolução da informática e das telecomunicações. O resultado foi uma extraordinária redução dos custos operacionais e dos custos de transacção numa escala global.

b) O segundo conjunto de determinantes envolve os factores de ordem política e institucional vinculados à ascensão das ideias liberais ao longo dos anos 80, tendo como marco de referência os governos Thatcher na Grã-Bretanha e Reagan nos Estados Unidos. O resultado dessa ascensão foi uma onda de desregulamentação do sistema

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económico à escala global. Entretanto, no que se refere à esfera financeira, deve-se notar que a liberalização do movimento internacional de capitais já se observava no início dos anos 70 em alguns países desenvolvidos, talvez como resultado da própria pressão no sentido de uma maior liberdade para o capital após a ruptura do sistema de Bretton Woods . Essa ruptura foi acompanhada da instabilidade de taxas de juros e câmbios, assim como pela crise económica nos anos 70 (menores oportunidades de negócios). Nesse caso a reorientação da estratégia e da política governamental – na direcção da liberalização cambial e da desregulamentação do movimento internacional de capitais – parece ser o resultado, principalmente, de uma restrição imposta pela fragilidade das contas externas (e da necessidade de atrair capital). A liberdade de escolha, diante de opções políticas e ideológicas mais liberalizantes, parece ter desempenhado um papel coadjuvante no processo de liberalização, tendo em vista a força avassaladora e a gravidade da realidade económica, bem como a própria fragilidade e a incapacidade das elites nacionais de definirem projectos alternativos de ajuste e desenvolvimento (Gonçalves, 1999, p.30).

Ainda no que se refere à determinação institucional, importa referir que, no caso da globalização financeira, a criação do mercado de euromoedas nos anos 50 e o seu desenvolvimento nas décadas de 1960 e 1970 foram fundamentais para a configuração do actual sistema financeiro internacional. Nesse sentido, pode-se mencionar o desenvolvimento de novos instrumentos financeiros de protecção perante riscos e incertezas. O exemplo de maior destaque é o desenvolvimento do mercado de produtos financeiros derivados de moedas e taxas de juros, principalmente, a partir dos anos 80.

Ao longo dos anos 80, os fundos mútuos, as companhias de seguros e os fundos de pensões dos países desenvolvidos defrontaram-se com a instabilidade das taxas de juros e das taxas de câmbio, e com os próprios limites de expansão dos mercados de capitais dos países desenvolvidos. O resultado foi uma mudança de orientação na estratégia de diversificação dos seus recursos, no sentido de uma maior dispersão geográfica.

c) O terceiro e último conjunto de determinantes da globalização refere-se a factores de ordem sistémica e estrutural. A questão central refere-se ao menor potencial de crescimento dos mercados domésticos dos países desenvolvidos, ricos em capital, isto é, trata-se do problema clássico de realização do capital. Como resultado, há um deslocamento de recursos da esfera produtiva para a esfera financeira e, portanto, um efeito de expansão dos mercados de capitais domésticos e internacional.

No caso dos EUA a taxa média annual do crescimento do produto potencial reduziu-se de 3,8% na década de 1960 para 2,3% no período 1990-94. No caso da Alemanha, a queda correspondente foi de 4,1% para 2,7%, enquanto no Japão a redução foi de 8,8% para 3,3% (Unctad-WIR, 1995, pp. 171-3). Para ilustrar ainda mais o argumento, pode-se mencionar que a taxa média anual de crescimento da formação bruta de capital fixo nos EUA caiu de 5,0% no período 1960-68 para 2,5% no período 1979-90. No caso da Alemanha, a queda correspondente foi de 3,1% para 1,9% e, no caso do Japão, a

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redução foi 15,2% para 5,0% nos períodos mencionados. O resultado foi um processo generalizado de desaceleração do crescimento económico das economias capitalistas na chamada “era da globalização”. De facto essas economias parecem estar a convergir para um nível “medíocre” da ordem dos 2% para o crescimento annual do PIB (Gonçalves, 1999, p.32).

No início dos anos 80, após o período de crise (estagnação e inflação) dos anos 70, a situação das economias capitalistas “maduras” era particularmente difícil.

As economias capitalistas desenvolvidas defrontavam-se com quatro respostas básicas para sair da crise de acumulação.

● A primeira é a conhecida “saída keynesiana”, com políticas fiscais expansionistas e défices públicos. A expansão dos investimentos públicos é uma das principais formas de realizar essa saída da crise.

● A segunda resposta consiste na “saída schumpeteriana” de indução do processo de destruição criadora, por meio do qual se promove uma nova onda de inovações tecnológicas e organizacionais capaz de aumentar os gastos (consumo e investimento). O problema com esse processo é que ele tem, também um forte componente aleatório (invenções, inovações e decisões de investimento), mesmo no caso de países que têm uma severa institucionalidade articulando governo e empresas, política industrial e tecnológica e investimento privado (Gonçalves, 1999, p.33).

● A terceira saída centra-se na distribuição do produto e riqueza. Ainda que essa resposta seja muito mais efectiva em economias atrasadas, com populações pobres e enormes desigualdades, ela pode ter algum impacto nas economias desenvolvidas. O problema central é de natureza política.

● A quarta e última saída encontra-se no mercado externo e procura transformar as exportações na “locomotiva” da economia nacional. O maior obstáculo é a existência, no contexto internacional actual, da crescente dificuldade para esse tipo de estratégia, pois a maioria dos países procura explorá-la no limite. Restrições pelo lado da procura externa também são cada vez maiores, considerando o lento crescimento da economia mundial, as suas flutuações cíclicas e as ondas de proteccionismo (Gonçalves, 1999, p.33).

No caso dos Estados Unidos os dados mostram uma queda dramática da taxa média de lucro de 20% em 1947-69 para 12,4% em 1970-83. O processo de globalização por meio da abertura e exploração dos mercados externos – tem permitido uma recuperação das taxas de lucro.

Deve-se notar ainda que o período que precedeu o processo recente de globalização foi marcado por uma redução extraordinária da taxa de crescimento da produtividade. No caso dos Estados Unidos, a taxa mádia anual de crescimento da produtividade total dos factores reduziu-se de 1,0% em 1961-73 para 0,01% em 1973-81. Essa queda foi particularmente importante no sector produtor de bens, que mostrou um crescimento negativo da produtividade. Em serviços (non-tradeables, não directamente envolvidos no processo de globalização) o que se observa é a manutenção da tendência da queda da produtividade ao longo das últimas quatro décadas. Entretanto, recentemente, houve uma forte recuperação das taxas médias de crescimento

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da produtividade, liderada pelo sector produtor de bens. Nesse caso a taxa de crescimento da produtividade de 2,1% no período 1981-92 é ainda maior do que no período 1961-73 (1,4%), tendo sido negativa (-1,2%) no período 1973-81.

Na realidade, a saída preferencial usada pelas economias capitalistas desenvolvidas desde o início dos anos 80 tem sido aquela que procura maior acesso aos mercados internacionais de bens, serviços e capitais. Essa estratégia surge como reacção à insuficiência de procura interna nos países capitalistas desenvolvidos, sendo activamente promovida por governos e empresas transnacionais. Portanto, a insuficiência da procura colectiva nos países desenvolvidos constitui-se no mais importante e determinante fenómeno da globalização económica deste final de século.

5.4. Capital estrangeiro e poderO conhecimento sistemático das fontes ou dos elementos da base de poder de empresas de capital estrangeiro (ECE) é fundamental não somente para uma melhor compreensão da distribuição dos benefícios entre as ECE e os países, mas também nos ajuda a entender por que é que as ECE são capazes de ter determinados efeitos sobre as economias nacionais.

Importa esclarecer que neste breve texto, o poder, e nas situações em que conceptualmente é utilizado o termo poder ele é entendido como “a probabilidade que um actor, dentro de uma relação social, estará em posição de realizar a sua própria vontade, apesar da resistência de outro actor social e independentemente da base sobre a qual essa probabilidade se apoia” (Weber, 1947, p. 152).

A avaliação crítica a respeito dos conceitos de poder apresentados por autores como Weber, Parsons, Dahl e outros é parte da Teoria Política. Pode-se afirmar, inclusive, que poder é “um conceito parcialmente quantificável”, assim como “um conceito obsessivo”. Neste último sentido, “quaisquer que sejam as objecções lógicas ao seu uso, ainda desejamos ter um conhecimento sobre ele” (Allison, 1974, p.141). Considerando que este capítulo do manual não trata de Teoria Política, o conceito clássico de poder apresentado por Weber é usado sem uma discussão mais aprofundada, ou seja, é usado de modo estritamente funcional.

Há três diferentes formas de exercício de poder: coacção, autoridade e influência.

● Coacção “existe quando o consentimento é baseado na privação física, ou a ameaça de privação física;

● autoridade refere-se a consentimento legitimado;

● influência é um termo residual, referindo-se a um consentimento não-legitimado e não coercivo” (Martin, 1977, p. 48; Dahl, 1968).

O objectivo é apontar as principais fontes de poder ou os elementos na base do poder das ECE e, portanto, meramente descrever os elementos que permitem a essas empresas realizar a sua própria vontade (de forma directa ou indirecta) por meio da coacção, autoridade ou influência.

A não-decisão é “uma decisão que resulta na supressão ou impedimento de um desafio latente ou manifesto para os valores ou interesses do tomador de decisões”. Nesse sentido, uma tomada de não-decisão é “uma maneira pela

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qual demandas por mudanças na alocação existente de benefícios e privilégios na comunidade podem ser• sufocados antes mesmo que sejam anunciadas; ou• mantidas encobertas; ou• eliminadas antes que ganhem acesso à arena relevante da tomada de

decisão; ou faltando todos esses procedimentos,• mutilados ou destruídos no estágio de implementação de decisão do

processo político” (Gonçalves, 1999, p. 44).

Além disso, constata-se que poder existe quando qualquer agente social limita de alguma forma o escopo do processo político por meio da definição da gama de questões a serem tratadas, questões estas que são consideradas seguras “do ponto de vista desse agente” (Lukes, 1974).

No que se refere às ECE, esse poder sobre a tomada da não-decisão parece ser significativo quando se considera a capacidade dessas empresas de influenciar ou moldar percepções e preferências por meio, até, dos tipos de bens e serviços fornecidos, assim como pelo uso dos meios de comunicação de massa. O “conflito é latente no sentido de que se supõe que existirá um conflito de vontades de preferências entre aqueles exercendo poder e aqueles sujeitos a este poder, caso este último se torne consciente dos seus interesses” (Lukes, 1974, p. 25).

Dado o conjunto apresentado de conceitos básicos, o objectivo é examinar as principais fontes ou elementos da base de poder de ECE. Essas fontes são divididas em dois tipos: externas e internas.

● As fontes externas são derivadas de elementos for a do controlo dos países receptores de IED (investimento externo directo), de modo que o governo tem pouca, se alguma, probabilidade de mudar esses elementos. Assim, estes podem ser vistos como “parâmetros” na análise do papel político das ECE.

● As fontes internas de poder podem, até certo ponto e sob certas circunstâncias, ser colocadas sob o controlo dos governos dos países receptores e, consequentemente, vistas como variáveis a serem usadas para reduzir o poder das ECE (Gonçalves, 1999, p.43).

Entretanto, deve-se assinalar que, nalguns casos, é difícil definir um elemento da base de poder das ECE como externo ou interno. Além disso, esses elementos nem sempre são independentes uns dos outros, já que a própria existência de um elemento externo pode criar condições para o aparecimento de um elemento interno. Um exemplo evidente nesse sentido é o da estrutura de mercado, isto é, a influência da estrutura do mercado internacional sobre a estrutura do mercado interno (as petrolíferas, o sector automobilístico, as telecomunicações, a informática e as farmacêuticas).

No que se refere às fontes internas de poder das ECE pode-se mencionar:

● a estrutura do mercado interno,

● controlo de associações patronais,

● liderança de mercado,

● acesso aos decisores governamentais,

● efeito fiscal,

● padrões de associação com grupos industriais e financeiros locais,

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● interligação de administrações/direcções,

● conexões políticas locais,

● padrão ideológico hegemónico,

● influência do nacionalismo,

● conjuntura política,

● disponibilidade de formas alternativas de internacionalização da produção,

● importância estratégica dos bens e serviços produzidos,

● potencialidade do mercado interno,

● controlo e uso dos meios de comunicação,

● níveis de alfabetização/educação/formação profissional do país receptor,

● atitudes culturais,

● coerência da política governamental,

● natureza das políticas públicas (comercial, cambial, financeira),

● institucionalidade (aparelho repressivo/coercivo do Estado),

● grau de desnacionalização, e vulnerabilidade externa do país (Gonçalves, 1999, p.44).

Uma parte substantiva das fontes internas mencionadas também se aplica ao caso das empresas privadas nacionais, particularmente aos grandes grupos económicos nacionais. Por exemplo, num país no qual a corrupção é difundida e encontrada em alguns sectores governamentais (sabemos que não é difícil mencionar), qualquer sector, departamento ou grupo do aparelho do Estado que tenta realizar uma política mais séria (ou restritiva) relacionada às ECE pode ver o resultado dos seus esforços prejudicado por qualquer “vazamento” que ocorra nos sectores corrompidos. Isso ocorre quanto mais não seja pelo facto de que iniciativas e estímulos reduzem-se quando os resultados não são alcançados nos termos das regras claras do jogo. Naturalmente, práticas comerciais questionáveis (quando não proibidas legalmente) podem ser usadas tanto pelas ECE como por grandes grupos económicos nacionais (Gonçalves, 1999, p.45).

Quanto mais importantes forem os recursos da propriedade das ECE, maior tende a ser a sua capacidade de usar diferentes métodos para controlar mercados, criar poder económico e, consequentemente, poder político. O maior volume de recursos também permite às ECE financiar programas que objectivam o uso de métodos, legais e ilegais, para influenciar o processo da tomada de não-decisão e o processo de tomada de decisão por meio, por exemplo, da propaganda. Naturalmente, grandes grupos económicos nacionais também têm essa vantagem de usar grandes volumes de recursos financeiros e, portanto, gerar um extraordinário potencial de poder. A origem da propriedade não é relevante nesse caso.

A especificidade das ECE está, de facto, nas fontes externas de poder. Nesse caso, a origem da propriedade é de importância fundamental na determinação do poder político específico de um agente económico – a empresa de capital estrangeiro.

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5.5. Fontes externas de poderAs principais fontes externas de poder das ECE são:

● capacidade de mobilização de recursos à escala global,

● grau de integração do sistema matriz-filiais,

● assimetria da informação,

● estrutura do mercado internacional,

● interdependência do mercado à escala global,

● concentração segundo a origem,

● importância relativa do país receptor,

● dinâmica da inovação tecnológica,

● concentração do desenvolvimento tecnológico,

● política externa do governo do país de origem,

● marco jurídico e institucional no sistema internacional (Gonçalves, 1999, p.46).

a) Capacidade de mobilização de recursos

As ECE têm uma capacidade extraordinária de deslocar recursos de uma subsidiária para outra, de um país para outro.

b) Grau de integração

O grau de integração do sistema matriz-subsidiárias permite às ECE uma maior flexibilidade no uso do mecanismo dos preços de transferência (sub e superfacturamento) por meio do comércio externo. Esse mecanismo deve ser entendido como uma forma de exercer o poder quando os canais alternativos da remessa de recursos estão parcial ou completamente fechados.

c) Assimetria da informação

A posse de um activo específico à propriedade é uma das condições básicas que determinam a própria existência das ECE. Essas empresas possuem informações sobre a situação e perspectivas a respeito de produtos e mercados, que não estão disponíveis. Assim, quando estão a negociar com essas empresas, os representantes governamentais, principalmente de países menos desenvolvidos, podem ser levados a usar a informação monopolizada e fornecida pelas ECE, informação à qual eles não têm acesso directo, nem maneira de verificar a sua autenticidade. Esse aspecto está directamente vinculado à questão da estrutura do mercado internacional.

d) Estrutura do mercado internacional

Mercados com um elevado grau de concentração à escala global tendem a aumentar o poder de comercialização menos claro das ECE (Gonçalves, 1999, p.47).

e) Interdependência do mercado

A natureza da concorrência – concorrência oligopolista ou monopolista – pode restringir a rivalidade por meio da moderação ou cooperação, como uma

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táctica para controlar mercados e também para criar solidariedade, reciprocidade e, consequentemente, uma comunidade de interesses no plano internacional.

f) Concentração segundo a origem

Deve-se esperar maior probabilidade de acordos formais ou informais quando há um grau mais elevado de concentração do país de origem das ECE.

g) Importância relativa do país receptor

O poder das ECE num determinado país está inversamente relacionado com a importância relativa do país receptor no cenário internacional, particularmente no que se refere ao volume de investimento externo directo à escala global. As ECE podem correr um risco maior quando têm activos e investimentos mais diversificados entre os vários países do que quando estão concentradas somente nalguns poucos países.

h) Dinâmica da inovação tecnológica

As ECE caracterizam-se por certo dinamismo tecnológico. Assim quanto mais rapidamente se processar a inovação tecnológica num sector específico, maior tende a ser o poder de intervenção económica das ECE num país isoladamente. Isso ocorre na medida em que, sendo a tecnologia de ponta de difícil obtenção no mercado, esse país teria alternativas limitadas e, portanto, o governo tem menor poder de intervenção.

i) Concentração do desenvolvimento tecnológico

O poder de intervenção de proprietários de tecnologia é uma fonte evidente de pressão.

j) O Governo do país de origem

As ECE tendem a influenciar a política externa dos governos dos seus países de origem, a fim de obter algumas vantagens nos países receptores (Frankel, 1969, p. 153). Quando existe uma coincidência do “Interesse nacional” e dos interesses privados no exterior, é provável que haja uma aliança tácita ou explícita entre governo e ECE, de modo a tentar combinar considerações político-estratégicas com interesses económicos.

k) Elementos institucionais

Num processo de resolução de situações de conflito entre as ECE e os países receptores, essas empresas podem apelar de forma directa ou indirecta para elementos externos de natureza institucional, que podem ampliar a sua base de poder. Não é por outra razão, por exemplo, que desde 1995 há uma forte resistência à criação do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) (Unctad-WIR, 1998, pp. 65-8). O objectivo central do AMI é definir um conjunto de diereitos para as ECE e, por outro lado, restringir o grau de manobra de governos na direcção da regulamentação dessas empresas.

5.6. Os Consumidores e a globalizaçãoOs próximos parágrafos são uma tentativa de descrever/entender a forma como as mudanças na maneira de consumir alteraram as possibilidades e as formas de exercer a cidadania numa época de globalização. Estas sempre estiveram associadas à capacidade de apropriação de bens de consumo e à

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maneira de usá-los, mas supunha-se que essas diferenças eram compensadas pela igualdade nos direitos abstractos que se concretizava ao votar, ao sentir-se representado por um partido político ou um sindicato.

Num tempo em que as campanhas eleitorais se mudam dos comícios para a televisão, das polémicas doutrinárias para o confronto de imagens e da persuasão ideológica para as pesquisas de marketing, embora ainda nos interpelem como cidadãos é mais fácil e coerente sentirmo-nos convocados como consumidores.

5.6.1. Do nacional ao globalPode-se perceber o carácter radical destas mudanças examinando a maneira como o significado de certas expressões do senso comum foi variando até não terem nenhum sentido. Em algumas sociedades mais ruralizadas, até meados deste século, talvez fosse normal que uma discussão entre pais e filhos sobre o que a família podia comprar ou sobre a competição com os vizinhos terminasse com a seguinte máxima paterna: “Ninguém está satisfeito com o que tem”. Quem pronunciava essa frase estava a responder aos filhos que chegavam à educação de nível médio ou superior e desafiavam os pais com novas exigências. Respondiam à proliferação de aparelhos electrodomésticos, aos novos signos de prestígio, às inovações da arte e da sensibilidade, às aventuras das ideias e dos afectos aos quais lhes custava incorporar-se.

Vamo-nos afastando da época em que as identidades se definiam por essências a-históricas: actualmente configuram-se no consumo, dependem daquilo que se possui, ou daquilo que se pode chegar a possuir. Essa versão política de estar contente com o que se tem, que foi o nacionalismo ainda de épocas bem recentes, é vista hoje como o último esforço das elites desenvolvimentistas, das classes médias e de alguns movimentos populares para conter dentro das vacilantes fronteiras nacionais a explosão globalizada das identidades e dos bens de consumo que as diferenciavam.

Como vamos poder estar felizes com o próprio se nem sequer sabemos o que é? As culturas nacionais pareciam sistemas razoáveis para preservar, dentro da homogeneidade industrial, certas diferenças e certo enraizamento territorial, que mais ou menos coincidiam com os espaços de produção e circulação dos bens. Comer como um português (certamente o mesmo acontece para um espanhol, brasileiro, etc.) significava não apenas guardar tradições específicas, como também alimentar-se com os produtos da própria sociedade, que estavam à mão e costumavam ser mais baratos que os importados. Uma peça de roupa, um brinquedo, noutros casos um carro ou um programa de televisão eram mais acessíveis se eram nacionais. O valor simbólico de consumir “o nosso” era sustentado por uma nacionalidade económica. Procurar bens e marcas estrangeiras era um recurso de prestígio, se bem que às vezes era uma opção por qualidade.

Liga-se a televisão que pode ser japonesa e o que se vê é um filme-mundo, produzido em Hollywood, dirigido por um cineasta alemão com assistentes franceses, actores e actrizes de dez nacionalidades e cenas filmadas nos quatro países que o financiaram. As grandes empresas que nos fornecem alimentos e roupas fazem-nos viajar e engarrafarmo-nos em auto-estradas idênticas em todo o planeta, fragmentam o processo

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de produção fabricando cada parte dos bens nos países em que o custo é menor. Os objectos perdem a relação de fidelidade com os territórios de origem. A cultura é um processo de montagem multinacional, uma articulação flexível de partes, uma colagem de traços que qualquer cidadão de qualquer país, religião e ideologia pode ler e utilizar (Clanclini: 1998).

O que diferencia a internacionalização da globalização é que no tempo da internacionalização das culturas nacionais era possível não se estar satisfeito com o que se possuía e ir procurá-lo noutro lugar. Mas a maioria das mensagens e dos bens que consumíamos era gerada na própria sociedade, e havia alfândegas estritas, leis que protegiam o que se produzia em cada país. Agora o que se produz em todo o mundo está aqui e é difícil saber o que é o próprio. A internacionalização foi uma abertura das fronteiras geográficas de cada sociedade para incorporar bens materiais e simbólicos das outras. A globalização supõe uma interacção funcional de actividades económicas e culturais dispersas, bens e serviços gerados por um sistema com muitos centros, no qual é mais importante a velocidade com que se percorre o mundo do que as posições geográficas a partir das quais se está a agir.

Muito do que é feito actualmente nas artes é produzido e circula de acordo com as regras das inovações e da obsolescência periódica, não por causa do impulso experimentador, como no tempo das vanguardas, mas sim por que as manifestações culturais foram submetidas aos valores que “dinamizam” o mercado e a moda: o consumo incessantemente renovado, a surpresa e o divertimento. Por razões semelhantes a cultura política tornou-se errática: as decisões políticas e económicas são tomadas em função das seduções imediatistas do consumo, o livre comércio sem memória dos seus erros, a importação desenfreada dos últimos modelos que nos faz cair, uma e outra vez, como se cada uma fosse a primeira, nesse consumismo.

A maneira neoliberal de fazer a globalização consiste em reduzir empregos para reduzir custos, competindo entre empresas transnacionais, cuja direcção tem origem a partir de um ponto desconhecido, de modo que os interesses sindicais e nacionais quse não podem ser exercidos. A consequência de tudo isto é que mais de 40% da população das sociedades em “vias de desenvolvimento” se encontra privada de trabalho estável e de condições mínimas de segurança, que sobrevive nas aventuras também globalizadas do comércio informal, da electrónica japonesa vendida junto a roupas do sudeste asiático, junto a ervas esotéricas e artesanato local, em volta dos sinais de trânsito: nesses vastos “subúrbios” que são os centros históricos das grandes cidades, há poucas razões para se ficar contente enquanto o que chega de toda a parte se oferece e se espalha para que alguns possuam e imediatamente esqueçam.

5.6.2. A cidadania numa época de consumoQuando admitimos a globalização como uma tendência irreversível, também é necessário ter em atenção que partilhamos algumas suspeitas quanto ao modelo:

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● Primeiro, existem muitas dúvidas fundamentadas que o global se apresente como sibstituto do local,

● Segundo, os últimos acontecimentos mundiais, nomeadamente a reunião da OMC, fragilizou completamente a ideia que o modo neoliberal de nos globalizarmos seja o único possível.

Se considerarmos as maneiras diversas pelas quais a globalização incorpora diferentes nações, e diferentes sectores dentro de cada nação, a sua relação com as culturas locais e regionais não pode ser pensada como se apenas procurasse homogeneizá-las. Surge, então, a pergunta: qual será o modelo mais satisfatório para efectuar a reestruturação transnacional das sociedades?

Mas também é preciso examinar o que a globalização, o mercado e o consumo têm de cultura.

Para vincular o consumo com a cidadania, e vice-versa, é preciso desconstruir as concepções que julgam os comportamentos dos consumidores predominantemente irracionais e as que somente vêem os cidadãos actuando em função da racionalidade dos princípios ideológicos. Por outro lado, reduz-se a cidadania a uma questão política, e acredita-se que as pessoas votam e actuam em relação às questões públicas somente em função das suas convicções individuais e pela maneira como raciocinam nos confrontos de ideias (Dagnino: 1997).

Não foram tanto as revoluções sociais, nem o estudo das culturas populares, nem a sensibilidade excepcional de alguns movimentos alternativos na política e na arte, quanto o foi o crescimento vertiginoso das tecnologias audiovisuais de comunicação, o que tornou patente como vinha mudando desde o século passado o desenvolvimento do público e o exercício da cidadania. Mas estes meios electrónicos que fizeram irromper as massas populares na esfera pública foram deslocando o desempenho da cidadania em direcção às práticas de consumo. Foram estabelecidas outras maneiras de se informar, de entender as comunidades a que se pertence, de conceber e exercer os direitos. Desiludido com as burocracias estatais, partidárias e sindicais, o público recorre à rádio e à televisão para conseguir o que as instituições públicas não proporcionam: serviços, justiça, reparações ou simples atenção. Não é possível afirmar que os meios de comunicação de massa com ligação directa via telefone, ou que recebem os espectadores nos seus estúdios, sejam mais eficazes que os órgãos públicos, mas fascinam porque escutam e as pessoas sentem que não é preciso estar à espera dos adiamentos, prazos, procedimentos formais que adiam ou transferem as necessidades. A cena de televisão é rápida e parece transparente; a cena institucional é lenta e as suas formas (precisamente as formas que tornam possível a existência de instituições) são complicadas até a opacidade que gera o desespero (Barbero: 1997).

No entanto, não se trata apenas do facto de os velhos agentes – partidos, sindicatos, intelectuais terem sido substituídos pelos meios de comunicação.

A aparição destes meios põe em evidência uma reestruturação geral das articulações entre o público e o privado que pode ser

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percebida também no reordenamento da vida urbana, no declínio das nações como entidades que comportam o social e na reorganização das funções dos actores políticos tradicionais.

5.7. O novo cenário sociocultural perante a Globalização

As mudanças socioculturais que estão a ocorrer em todos estes campos podem ser sintetizadas em cinco processos:

a) um redimensionamento das instituições e dos circuitos de exercício do público: perda de peso dos órgãos locais e nacionais em benefício dos conglomerados empresariais de alcance transnacional;

b) reformulação dos padrões de ordenamento e convivência urbanos: do bairro aos condomínios, das interacções próximas à disseminação policêntrica da mancha urbana, sobretudo nas grandes cidades, onde as actividades básicas (trabalhar, estudar, consumir) têm lugar, frequentemente, longe do lugar de residência e onde o tempo empregue para se deslocar por lugares desconhecidos da cidade reduz o tempo disponível para habitar a própria;

c) a reelaboração do “próprio e do nosso”, devido ao predomínio dos bens e mensagens provenientes de uma economia e uma cultura globalizadas sobre aqueles gerados na cidade e na nação a que se pertence;

d) a consequente redefinição do lugar de pertença e identidade, organizado cada vez menos por lealdades locais ou nacionais e mais pela participação em comunidades transnacionais ou desterritorializadas de consumidores (os jovens em torno do rock, os telespectadores que acompanham os programas da CNN, MTV e outras redes transmitidas por satélite);

e) a passagem do cidadão como representante de uma opinião pública ao cidadão interessado em desfrutar de uma certa qualidade de vida. Uma das manifestações desta mudança é que as formas argumentativas e críticas de participação dão lugar à fruição de espectáculos nos meios electrónicos, em que a narração ou simples acumulação de anedotas prevalece sobre a reflexão em torno dos problemas, e a exibição fugaz dos acontecimentos sobre sua abordagem estrutural e prolongada.

Muitas destas mudanças eram incipientes nos processos de industrialização da cultura desde o século XIX. Isto é comprovado pelos estudos sobre as raízes da telenovela no teatro de rua e no folhetim, os antecedentes da massificação da rádio e da televisão naquilo que antes fizeram a escola e a igreja (Barbero: 1997; Canclini: 1998), em suma, as bases culturais do que agora se identifica como a “esfera pública plebeia”. O que é novidade na segunda metade do século XX é que estas modalidades audiovisuais e massivas de organização da cultura foram subordinadas a critérios empresariais de lucro, assim como a um ordenamento global que desterritorializa os seus conteúdos e as suas formas de consumo. Esta reestruturação das práticas económicas e culturais leva a uma concentração hermética das decisões nas elites tecnológico-económicas e gera um novo regime de exclusão das maiorias incorporadas como clientes. A perda de eficácia das formas tradicionais e ilustradas de

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participação pública (partidos, sindicatos, associações de base) não é compensada pela incorporação das massas como consumidoras ou participantes ocasionais dos espectáculos que os poderes políticos, tecnológicos e económicos oferecem através dos meios de comunicação de massa.

Poderíamos dizer que no momento em que mal saímos do século XX as sociedades se reorganizam para nos fazerem consumidores do século XXI e, como cidadãos, levar-nos de volta para o século XVIII. A distribuição global dos bens e da informação permite que o consumo dos países centrais e periféricos se aproxime: compramos em super-mercados análogos os produtos transnacionais, vemos na televisão os últimos filmes de Spielberg ou Wim Wenders, o Campeonato Mundial de Futebol, a queda de um presidente da Ásia ou da América Latina filmada ao vivo e os destroços em Timor Leste. Nos países latino-americanos transmitem-se em média mais de quinhentas mil horas anuais de televisão, enquanto na Europa latina são apenas onze mil; na Colômbia, no Panamá, no Peru e na Venezuela há mais de um aparelho de videocassete para cada três residências com televisão, proporção maior que a da Bélgica (26,3%) ou da Itália (16,9%). “Somos subdesenvolvidos na produção endógena para os meios electrónicos mas não para o consumo” (Canclini: 1998).

Por que é que este acesso simultâneo aos bens materiais e simbólicos não vem a par de um exercício global e pleno da cidadania? A contradição explode, sobretudo, nos países periféricos e nas metrópoles aonde a globalização selectiva exclui desocupados e migrantes dos direitos humanos básicos: trabalho, saúde, educação, habitação. O projecto iluminista de generalizar esses direitos levou a procurar, ao longo dos séculos XIX e XX, que a modernidade fosse o lar de todos. Pela imposição da concepção neoliberal da globalização, para a qual os direitos são desiguais, as novidades modernas aparecem para a maioria apenas como objectos de consumo, e para muitos apenas como espectáculo. O direito de ser cidadão, ou seja, de decidir como são produzidos, distribuídos e utilizados esses bens, restringe-se novamente às elites.

No entanto, quando se reconhece que ao consumir também se pensa, se escolhe e se reelabora o sentido social, é preciso, também, analisar-se como esta área de apropriação dos bens e signos intervém em formas mais activas de participação do que aquelas que habitualmente recebem o rótulo de consumo. Noutros tempos, devemos interrogarmo-nos se ao consumir não estamos a fazer algo que sustenta, nutre e, até certo ponto, constitui uma nova maneira de ser cidadãos.

Se a resposta for positiva, será preciso aceitar que o espaço público transborda a esfera das interacções políticas clássicas. O público é o marco 'mediático' graças ao qual o dispositivo institucional e tecnológico próprio das sociedades pós-industriais é capaz de apresentar a um 'público' os múltiplos aspectos da vida social.

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Anexos(Glossário)

A Globalização; a mundialização do capitalismo

Ocorrência simultânea de três processos, a saber: a expansão extraordinária dos fluxos internacionais de bens, serviços e capitais; a competitividade e concorrência nos mercados mundiais; e a maior integração entre os sistemas económicos.

Agregados Macroeconómicos

Grandezas económicas que quantificam as operações que todos os agentes de uma economia efectuam durante um ano.

Neoliberalismo

Hegemonia nas esferas políticas e económica da maior liberdade para as forças de mercado, menor intervenção do Estado, desregulamentação, privatização do património público, preferência revelada pela propriedade privada, abertura para o exterior, ênfase na competitividade internacional e menor compromisso com a protecção social.

Exclusão Social

Grupos humanos que não têm acesso a bens, serviços e meios de produção (uso, controlo e propriedade) que permitem a satisfação das necessidades básicas nas dimensões económica, política, social, cultural e afectiva.

Política

Conjunto dos princípios e dos objectivos que servem de guia a tomadas de decisão e que fornecem a base da planificação das actividades.

Estado

Instituição com o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território ou núcleo do exercício do poder político onde as distintas forças políticas resolvem os seus conflitos.

Nação

Grupo humano consciente de formar uma comunidade e partilhar uma comunhão de interesses, necessidades, aspirações, cultura e tradições (em que a identidade de língua, de religião ou de raça são importantes, mas não imprescindíveis), ligado a um território claramente demarcado, tendo um passado e um projecto comuns e a exigência do direito de se governar.

Estado Nacional

Tipo de Estado que possui o monopólio do que afirma ser o uso legítimo da força dentro de um território demarcado, e que procura unir o povo submetido ao seu governo por meio da homogeneização, criando uma cultura, símbolos e valores comuns, revivendo tradições e mitos de origem ou, às vezes, inventando-os.

Nacionalismo

Sentimento de pertencer a uma comunidade cujos membros se identificam com um conjunto de símbolos, crenças e estilos de vida e têm vontade de decidir sobre o seu destino político comum. Pode ser também um patriotismo intelectualizado e arvorado em doutrina política que faz da Nação um absoluto.

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Vulnerabilidade externa

Reduzida capacidade de resistência diante de pressões, choques ou factores desestabilizadores.

Conferência de Bretton Woods

Conferência realizada na localidade norte-americana de Bretton Woods ainda no decorrer da 2ª Guerra Mundial, entre os EUA e o Reino Unido, e que originou o estabelecimento de um Sistema Monetário Internacional (FMI).

Fundo Monetário Internacional (FMI)

Fundo das Nações Unidas criado em 1944, na Conferência de Bretton Woods, e que se tornou operacional a partir de 1947. Tem como objectivo promover a cooperação monetária internacional e o crescimento do comércio internacional, e estabilizar a variação cambial.

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económicos (OCDE)

Organização internacional fundada em 1961 com o objectivo de promover o desenvolvimento económico e o comércio mundial. Carecendo de poder decisório, a OCDE é sobretudo um organismo de acompanhamento da evolução económica.

GATT

Conjunto de acordos de comércio internacional que têm como fim a abolição das tarifas e das taxas aduaneiras entre países signatários.

Banco Mundial

Instituição especializada da ONU que elabora projectos para financiar o desenvolvimento económico dos estados membros.

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6. A educação como problema social6.1. A nova equação educativaNos primeiros anos do século XX, Durkheim definia educação como uma

acção exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda se não encontram amadurecidas para a vida social. Ela tem por objectivo suscitar e desenvolver na criança um certo número de condições físicas, intelectuais e morais que dela reclamam, seja a sociedade política, no seu conjunto, seja o meio especial a que ela se destina particularmente.

Até há bem poucos anos, quando se discutia sobre educação quase todos os interlocutores se referiam ao que hoje se chama formação inicial. Estava-se numa época em que o ciclo de vida do conhecimento , isto é, o tempo que mediava entre o momento da sua criação e o da sua morte, era longo, podendo mesmo exceder o ciclo de vida humano.

6.1.1. A complexificação do conceito de educação

Hoje a situação alterou-se drasticamente: o Futuro entra cada vez mais depressa no Presente sem pedir licença (Toffler, 1970, 1980, 1990), daí resultando um processo de mudança acelerada que, na expressão feliz de Margaret Mead, nos confere o estatuto de migrantes no Tempo (Mead, 1969) levando outros autores a considerar estarmos a entrar numa espécie de Idade do Ferro Planetária (Morin, 1991).

Resultante da força conjugada do aumento da esperança média de vida das populações e da redução drástica do ciclo de vida do Conhecimento (Knowles, 1980: 40-41), a formação inicial perdeu peso relativo, circunscrevendo-se à aprendizagem básica de conhecimentos, técnicas e atitudes, susceptíveis de virem alicerçar a aprendizagem ao longo do resto do ciclo de vida. Em contrapartida regista-se o alargamento da formação contínua, à medida em que se vai tomando consciência da degradabilidade do saber e do seu ciclo de vida cada vez mais curto.

Deste modo, a educação no mundo contemporâneo assume-se como um processo que acompanha o ciclo de vida humano configurando um conjunto de vertentes muito diverso.

Em termos genéricos podem distinguir-se duas vertentes principais do processo educativo, consoante a aprendizagem de papéis esteja codificada e institucionalizada ou não: a educação formal e a educação não formal.

Como atrás se referiu, as necessidades de educação formal, hoje, não se circunscrevem à educação inicial – que integra o ensino básico (pré-escolar e escolar), secundário, profissional e superior – mas abrangem a chamada formação contínua, em múltiplas facetas de formação profissional (actualização, reciclagem, extensão e reconversão) e de formação contínua superior, esta última em contexto académico (pósgraduação) ou mais direccionada para a investigação e desenvolvimento de unidades produtivas (formação avançada).

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Por seu turno, a consciência progressivamente maior de que a educação institucionalizada não cobre todas as necessidades educativas, tem vindo a desenhar um quadro de necessidades educativas, que podemos agrupar em dois conjuntos que se interpenetram:

● em primeiro lugar uma educação que permita às gerações vivas, não só adaptarem-se à mudança acelerada da sociedade contemporânea, mas também aprenderem a geri-la em seu proveito.

● um outro conjunto de necessidades de aprendizagem que podemos englobar sob a designação de educação cívica e comunitária, apela para diversas competências transversais, tanto ligadas ao desempenho de papéis do foro privado como ao exercício da cidadania.

O processo de complexificação do conceito de educação que se acabou de esboçar resulta de três macrotendências da sociedade contemporânea, a que se fará referência nos pontos seguintes:• as tendências para a aceleração da mudança,• as tendências para as assimetrias sociais e• as tendências para a alteração dos sistemas de poder.

6.1.2. Efeitos da mudança na educaçãoEntre os diversos sinais que traduzem o desajustamento do sistema educativo contemporâneo, vejamos alguns indicadores (Naisbitt, 1988: 45-46):

● no relatório da Comissão Nacional (EUA) para a Qualidade do Ensino (1983), significativamente intitulado Uma Nação em Risco, refere-se que “a presente geração de finalistas do liceu é a primeira na história da América a concluir o curso com menos conhecimentos do que os seus pais;

● em consequência do desajustamento do sistema educativo à mudança, no princípio dos anos oitenta, as estimativas do número de analfabetos funcionais nos Estados Unidos variava entre 18 e 64 milhões.

● as taxas de absentismo e de abandono no ensino secundário aumentaram dramaticamente a partir dos anos setenta, tendo como consequência um afluxo crescente de jovens à procura de primeiro emprego, impreparados para um correcto desempenho de tarefas exigidas na vida activa;

● para agudizar a crise, à invasão dos postos de trabalho pelos computadores, obrigando os titulares a uma familiarização mínima com estas ferramentas da sociedade da informação, o sistema educativo não conseguiu responder ao mesmo ritmo, correndo-se sérios riscos de estar a criar uma geração de analfabetos informáticos.

Podemos tipificar essas novas necessidades educativas em dois grupos que mutuamente se interligam:• necessidades relacionadas com a adaptação ao processo de

mudança e• necessidades ligadas à gestão dos conteúdos dessa mudança.

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6.1.2.1. Aprender a adaptar-se à mudançaEm primeiro lugar, o adulto contemporâneo (e não só a criança e o jovem) tem necessidade de aprender estratégias adaptativas face ao choque cultural provocado pelo ritmo acelerado do processo de mudança que actualmente se verifica.

A compressão do Tempo, acelerando o metabolismo social, torna imperiosa a aprendizagem da adaptação aos novos ritmos de vida, através da racionalização de processos de decisão cada vez mais rápidos. Isto implica, aprender a dominar o medo ao desconhecido e a assumir o estatuto de imigrante no tempo, interiorizando que o novo, o diverso e o transitório, não são maus em si: são riscos que contêm ameaças mas também oportunidades de melhorar a qualidade de vida. Neste sentido, torna-se importante aprender a:

● adaptar-se a novos instrumentos e a novos processos de trabalho para que deles possa extrair um desempenho qualificado;

● a ser um consumidor crítico e não um mero objecto das estratégias de venda do sistema massificador da sociedade de consumo;

● a adaptar-se rapidamente a novos lugares e ambientes sabendo deles tirar partido.

Ligado a este conjunto de aprendizagens, é cada vez mais imperativo que se ganhem novas competências comunicacionais de modo a poder, com maior rapidez e melhor qualidade estabelecer, intensificar e gerir as efémeras relações sociais nos níveis interpessoal, grupal, organizacional e institucional.

Quanto à relação com o saber, o cidadão contemporâneo necessita de aprender a (re)aprender, a partir da consciência de que o saber e degradável e a ignorância uma constante. É indispensável que aprenda a seleccionar, processar e difundir informação pertinente para a sua própria vida. O fenómeno da planetarização, por seu turno, torna urgente o investimento na aprendizagem sobre a unidade e sobre a diversidade da espécie humana, combatendo toda a espécie de etnocentrismos.

6.1.2.2. Aprender a gerir a mudançaPara terminar esta breve reflexão sobre os efeitos da mudança na educação, vale a pena recorrer a Margaret Mead (1969), que chama a atenção para o facto de, actualmente, em virtude da mudança singular a que a sociedade contemporânea está sujeita, o processo de socialização integrar três diferentes sentidos, por vezes conflituais:

— uma socialização de tipo tradicional, das gerações mais velhas para as mais novas;

— uma socialização semelhante à que os grupos migrantes sofrem, em que as várias gerações em presença sofrem

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uma (res)socialização em simultâneo, fruto do contacto com as sociedades de acolhimento;

— uma socialização de sentido inverso, das gerações mais novas para as mais velhas.

Este complexo fenómeno, a que aquela autora atribui a principal causa do conflito de gerações, remete para uma questão fundamental a que já se fez referência: a do alargamento das necessidades educativas a todas as gerações o que, naturalmente, tem vindo a criar uma sobrecarga de exigências aos sistemas educativos contemporâneos.

6.1.3. A educação e as assimetrias sociaisDesta segunda característica do mundo contemporâneo, traduzida na manutenção ou, em certos aspectos, no agravamento das desigualdades da qualidade de vida das populações, emerge um conjunto de necessidades educativas e de formação para toda a população (e não só para as suas camadas mais jovens como tradicionalmente tem sido considerado) que poderíamos englobar na expressão educação para o desenvolvimento e para a solidariedade. Esta expressão, integra duas vertentes indissociáveis:

— Por um lado, a necessidade de educar as gerações contemporâneas para o Desenvolvimento, ou seja, ensiná-las a

● tirar partido, de forma sustentada, do meio ambiente e dos recursos que dispõe;

● evitar mortes desnecessárias e prolongar a vida com qualidade;

● pôr a render as potencialidades humanas de produção, distribuição e consumo de bens escassos no quadro de uma efectiva cidadania económica;

— Por outro lado, a necessidade de educar para a solidariedade, novo nome da fraternidade, o valor central da revolução francesa mais esquecido durante a época industrial.

A própria questão ambiental, muitas vezes posta de forma meramente tecnocrática, pode e deve ser posta em termos de solidariedade inter-geracional, uma vez que as acções das gerações actuais irão condicionar fortemente a qualidade de vida das gerações futuras.

6.1.4. A educação e a alteração dos sistemas de Poder

Uma terceira tendência que se observa na sociedade contemporânea é para uma substancial alteração dos sistemas de poder devido, entre outras, a duas circunstâncias:

● em primeiro lugar, o avanço das novas tecnologias de informação e comunicação (NTICs) e o desenvolvimento da sociedade de informação fizeram com que a principal fonte de poder deixasse de ser a riqueza e passasse a ser o conhecimento (Toffler, 1991).

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● em segundo lugar, como expressão política do duplo processo de planetarização e de localização registado na segunda metade do século XX, observou-se um aumento dos protagonistas políticos e uma diversificação das suas relações, de acordo com uma tendência para complexidade crescente (Moreira, 2000).

Tais alterações traduzem-se, em termos mundiais, em três macrotendências políticas:• a participação crescente dos cidadãos,• o fim do socialismo de economia centralizada e• a privatização do Estado-Providência.

As novas formas de regulação e de orientação da sociedade que daqui decorrem, exigem novas aprendizagens, por parte dos cidadãos, de modo a poderem tirar partido dos novos sistemas de poder, quer através de formas mais eficazes e mais eficientes de governação, quer pela instauração de estratégias e práticas adequadas para se defenderem contra os excessos dessa governação. De entre elas ressaltam:

● aprender a planear, ou seja, a definir rumos, (...)”adoptando a atitude prospectiva: olhando o presente a partir de um futuro desejável, a fim de seleccionar (...) os factos portadores de futuro” (Rosnay, 1977: 249). Por outro lado, aprender a decidir sozinho e em grupo, para o que precisa de ganhar competências no domínio da identificação de problemas, do confronto dialógico dos modos de os resolver e da escolha de soluções assumindo riscos. Em suma, aprender a ser autónomo, sem se insularizar no individualismo;

● aprender democracia, quer como meta a alcançar quer como método a desenvolver no dia-a-dia.

6.1.5. Três níveis de análiseO contexto que se acaba de descrever configura a questão da educação, em qualquer sociedade, como um problema social complexo, com efeitos imediatos na sua coesão interna e na sua locomoção em direcção a objectivos globais como o Desenvolvimento e a Democracia.

Uma prova clara da importância conferida à educação como variável estratégica da sociedade contemporânea foi a escolha de dois indicadores de educação entre os quatro seleccionados para integrarem o índice de desenvolvimento humano (IDH) do Plano das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)72.

A fim de poder analisar brevemente algumas das suas dimensões mais relevantes, organizaremos a informação seleccionada em três conjuntos, correspondentes a outros tantos níveis de complexidade:

● numa perspectiva macro-sociológica, a questão da educação deve ser concebida como um problema económico e político, tanto pela amplitude das necessidades e dos recursos envolvidos como pelos efeitos globais do seu funcionamento.

________________________________72 Os quatro indicadores que integram o IDH do PNUD são a esperança média de vida à nascença, a taxa de alfabetização de adultos, a duração média da escolaridade da população maior que 25 anos e o rendimento per capita corrigido.

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● Numa óptica meso-sociológica é indispensável entendê-la como um problema organizacional, uma vez que a organização dos recursos tem efeitos imediatos na eficácia e na eficiência do processo educativo.

● Numa aproximação micro-sociológica interessa equacioná-la como um problema psico-social, dado o processo educativo resultar fundamentalmente de relações inter-pessoais, estabelecidas entre os diversos protagonistas envolvidos no processo.

6.2. A educação como problema económico e político

A breve análise que se segue, será feita a partir da perspectivação do ensino como indústria.

Uma outra razão para se observar o ensino nesta perspectiva, tem a ver com o facto de ele constituir a maior «indústria» da nossa época, tanto pelos recursos humanos e financeiros que absorve como pela importância da sua «produção» dos quadros administrativos, científicos e técnicos, que desempenham um papel motor no desenvolvimento das sociedades actuais (Khôi, 1970: 10).

Como para qualquer indústria, a análise do ensino deverá incidir nos seus factores de produção e nos seus produtos.

6.2.1. Os factores de produçãoOs principais factores de produção em presença são• os recursos humanos, entre os quais se encontram os aprendentes

(alunos e formandos), os ensinantes (professores e formadores) e os outros protagonistas do processo educativo,

• os recursos materiais, que englobam verbas, instalações, equipamentos e materiais de ensino, bem como bens e serviços diversos, e

• os recursos ambientais, que integram as infraestruturas de comunicações e telecomunicações, o ambiente social, económico e político.

Quanto aos aprendentes, observa-se que nos últimos anos o seu número e diversidade aumentaram significativamente, devido a diversos factores:

● crescente consciência da importância que tem a melhoria do nível de educação de um povo para o seu desenvolvimento económico e social;

● aumento da população infantil e juvenil, em termos absolutos, nos países menos desenvolvidos;

● aumento das necessidades de formação contínua da população adulta, criando um enorme contingente adicional de aprendentes.

Para fazer face à pressão da procura educativa muitos sistemas educativos têm-se confrontado com um duplo problema político: os

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recursos são escassos e frequentemente são desviados para fins militares.

Para além de escassos, os recursos encontram-se assimetricamente distribuidos.

Parece portanto que o investimento em educação tem sido globalmente assimétrico, em detrimento dos países mais pobres. Se, a esta assimetria, juntarmos as carências de outros recursos materiais, como instalações, equipamentos, materiais de ensino, abastecimento de água, electricidade e outros bens e serviços, poderemos concluir que a indústria do ensino está claramente falha de recursos materiais e que tal carência é mais grave nos países que apresentam baixos índices de desenvolvimento humano.

Ligado a este problema está o da carência de ensinantes e o do seu custo crescente.

Aparentemente em termos globais, a relação entre alunos e professores, registou uma ligeira melhoria (menos um aluno por professor), no intervalo de 1965 a 1989. Todavia, tal facto é desmentido pela análise diferencial, da qual se chama a atenção para os seguintes aspectos:

— a situação dos países com baixos rendimentos deteriorou-se, aumentando a relação alunos/professor, contrariamente ao que se verificou com os restantes países que registaram significativas melhorias;

— agravou-se o fosso entre o grupo dos países mais ricos e o dos mais pobres, de uma diferença de apenas nove pontos percentuais, em 1965, para uma distância de vinte, em 1989.

Perante esta situação e tendo em conta que os ensinantes (professores e formadores) perderam o monopólio que detinham na distribuição do saber em detrimento de outros agentes (rádio, cinema, televisão, etc) têm-se vindo a desenvolver em muitos países programas alternativos ou simplesmente metodologias complementares de ensino, que revelam duas tendências distintas mas não antagónicas:

● por um lado, para uma maior captação de recursos ensinantes, através da utilização de não profissionais de ensino em programas de desenvolvimento comunitário virados para a educação de adultos;

● por outro lado, uma tendência para dotar os sistemas ensinantes de maior eficiência, introduzindo-lhes uma maior diversificação de meios, nomeadamente no campo audio-visual e informático.

O que acabamos de observar relativamente aos recursos humanos repete-se quanto aos recursos ambientais: das fontes disponíveis pode concluir-se que tanto o número de aparelhos de rádio como os de televisão e os telefones sobe na razão directa do IDH.

6.2.2. Os produtosA diferente situação em que os diversos sistemas de ensino se encontram relativamente aos recursos disponíveis e às exigências a que têm de fazer face, naturalmente afecta os seus produtos, que se

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traduzem na qualidade das qualificações produzidas pelo sistema e no número de pessoas qualificadas nos vários níveis de ensino.

A qualidade das qualificações , sendo difícil de medir, pode no entanto ser revelada por alguns indicadores como o número médio de anos de escolaridade da população adulta e o número de diplomados, de cientistas e técnicos por mil habitantes.

No quadro pode comparar o número médio de anos de escolaridade da população adulta, dos países em desenvolvimento com os industrializados, por sexos. Da sua análise pode facilmente concluir-se que

● em termos mundiais, existe um baixo número de anos de estudos na população adulta, o que imediatamente chama a atenção para a necessidade da sua formação complementar de forma a fazer face às novas exigências profissionais.

Média de anos de estudos da população com idade superior a25 anos (1990)

TIPO DE PAÍS HM H M

MUNDO 5.0 5.8 4.3

Países em desenvolvimento 3.7 4.6 2.7

Países industrializados 10.0 10.4 9.6

● a população adulta dos países em desenvolvimento tem um número de anos de escolaridade média (3.7), equivalente a 37% da escolaridade dos industrializados (10);

● a situação do segmento feminino é bem pior que a do masculino tanto em termos globais como diferenciados, observando-se um fosso maior nos países em desenvolvimento.

Quanto ao número de diplomados, de cientistas e técnicos por mil habitantes, as carências e assimetrias mantêm-se.

A primeira impressão com que se fica – comparando os indicadores mundiais com os dos países industrializados – é a de uma grande carência de diplomados, de cientistas e de técnicos, em termos globais.

A partir dos dados apresentados, podem extrair-se três conclusões:

● a qualidade das qualificações produzidas pelos sistemas de ensino contemporâneos é ainda insuficiente, quer porque a quantidade de conhecimentos passível de transmissão é baixa (dado o pequeno número de anos de escolaridade), quer pelo número insuficiente de quadros superiores globalmente produzidos;

● o fosso de qualidade entre os sistemas de ensino dos países em desenvolvimento e dos países industriais é ainda muito alto, com a agravante dos primeiros terem necessidades educativas muito superiores às dos segundos;

● o segmento feminino ainda é particularmente discriminado no acesso ao conhecimento.

Quanto ao número de pessoas qualificadas a situação pode ser observada, antes de mais, através da taxa de alfabetização de adultos,

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por indiciar as dificuldades globais de acesso ao conhecimento, normalmente feito em suporte escrito73.

Em termos mundiais a taxa de analfabetismo reduziu-se de 45 % em 1965, para 35 % em 1989 (Steer, 1992), o que denota um ritmo muito lento da sua redução: se esta evolução se mantivesse, a população mundial, no seu conjunto, atingiria a taxa de 4% – existente em 1989 para os países de rendimento alto – só por volta do ano 2068.

A comparação destes e doutros indicadores disponíveis, mostra claramente• que se registou nos últimos decénios uma melhoria global da

alfabetização mas a um ritmo demasiado lento para as necessidades;

• que o fosso entre países ricos e pobres , neste domínio, está a reduzir-se;

• que a taxa de alfabetização está claramente relacionada com o estádio de desenvolvimento, que, em função disso, são os países mais carecidos que apresentam índices piores;

• que, finalmente, o segmento feminino se encontra claramente em piores condições e que estas são agravadas com o estádio de desenvolvimento.

Vejamos seguidamente as taxas de cobertura dos vários níveis de ensino por níveis de rendimento per capita.

Nos últimos 25 anos registou-se um aumento da taxa de cobertura do ensino primário, que atinge a quase totalidade da população da respectiva faixa etária. O ensino secundário, sofreu também uma evolução positiva (de 31 para 52%), tal como o terciário (de 9 para 16%). Dois aspectos, no entanto, devem ser salientados: por um lado, as taxas de cobertura diminuem substancialmente com o nível de ensino; por outro, o ritmo da mudança ocorrida quer no secundário quer no superior foi relativamente lento face às necessidades.

Comparando as diversas taxas de cobertura com o nível de rendimento per capita (à excepção do primário, uma vez que atingiram o valor 100), observa-se que elas aumentam com o rendimento, com pequenas flutuações entre os países com rendimentos medianos o que seria de esperar.

O fosso entre países ricos e pobres reduziu-se quer na cobertura do ensino primário quer no secundário. No ensino terciário, não se dispondo de dados sobre os países com menos rendimentos em 1989, apenas se pode dizer, recorrendo às informações de 1965, que o fosso era enorme, uma vez que a taxa de cobertura destes países correspondia a 10% da taxa de cobertura dos países industrializados.

Em síntese, observando os sistemas de ensino contemporâneos como indústrias, regista-se uma crise global, resultante de uma insuficiente oferta de ensino perante uma crescente pressão da procura:

● as necessidades do mercado aumentaram vertiginosamente tanto pelo aumento numérico dos aprendentes, como pela diversidade das exigências feitas;

________________________________73 Este indicador, deve ser utilizado com alguma prudência, uma vez que o monopólio do suporte scripto tende a acabar e que a simples alfabetização acrítica não é condição suficiente de acesso ao conhecimento.

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● os recursos materiais, humanos e ambientais , indispensáveis para fazer face ao acréscimo de necessidades, são claramente insuficientes, sendo muitas vezes desviados para outros fins;

● a falta de recursos é mais grave nos países menos desenvolvidos, simultaneamente os mais carecidos de investimentos em educação.

● as assimetrias observadas reflectem-se nos produtos dos sistemas educativos, quer no que respeita à sua qualidade quer no que concerne à quantidade, e são agravadas directamente pela condição feminina e pelo nível de desenvolvimento.

No contexto que acaba de se descrever, podemos afirmar que a educação se assume como um problema sócio-político por excelência, uma vez que a adequação dos recursos às necessidades educativas tem efeitos evidentes na sociedade global, quer em termos da coesão dos grupos que a integram quer em matéria da locomoção em direcção a objectivos colectivos como o desenvolvimento ou a democracia.

6.3. A educação como problema organizacional

Reduzindo a escala do nosso olhar, podemos afirmar que a educação também se pode encarar como um problema organizacional uma vez que independentemente da justeza das políticas aprovadas, a sua execução depende do modo como os recursos são geridos no terreno, tornando o processo educativo mais ou menos eficaz e mais ou menos eficiente.

Estes dois conceitos são extremamente importantes mas muitas vezes confundidos:• a eficácia do processo educativo tem a ver com a convergência entre

objectivos (resultados) previstos e alcançados;• a eficiência, relaciona os objectivos alcançados com os recursos afectados

para os atingir.Por exemplo, o objectivo de reduzir a taxa de insucesso escolar de uma dada escola pode ser alcançado num dado momento, configurando uma acção educativa eficaz. No entanto, se tais resultados foram alcançados a custos muito elevados (pouca eficiência) é provável que não possam ser mantidos durante muito tempo. Isto significa que muitas vezes a ineficiência compromete a sustentabilidade da eficácia.

Encarando a escola como organização, para que se assuma como um instrumento de solução dos problemas de educação e não um obstáculo adicional, há diversos aspectos que devem ser bem geridos.

6.3.1. Gestão da dinâmica externaQuanto às relações da escola com o exterior, é indispensável garantir um desempenho adequado da organização em duas principais vertentes:

● Na relação da escola com a estrutura de tutela é fundamental identificar os papéis específicos que cabem às várias agências em presença, de modo a propiciar um efectivo espaço de manobra à organização escola, no quadro da política educativa. Definidos os papéis, a criação de regras de comunicação

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(padrões, canais e suportes) é condição indispensável para que o relacionamento se processe com qualidade e com rapidez.

● Na relação da escola com a comunidade envolvente é indispensável o mesmo tipo de cuidados, tanto na definição dos papéis que cabem aos protagonistas como na manutenção de uma rede de comunicações adequada.

6.3.2. Gestão da dinâmica internaA dinâmica interna da organização escola deve ser posta ao serviço de um projecto educativo comum, que agregue as contribuições dos vários protagonistas (estudantes, e pessoal docente e não docente). Para que tal aconteça, a gestão da organização deve procurar coordenar diversas áreas-chave, das quais podemos salientar as seguintes:

● Circuitos. Os circuitos de decisão devem ser bem definidos e garantir a participação de quem deve tomar parte no processo.

● Estrutura formal. Os diversos orgãos da escola devem exercer o papel atribuído pelo sistema normativo vigente num quadro de cooperação institucional evitando situações de competição e de conflito.

● Estrutura informal. A gestão da escola deve estar atenta à estrutura informal, particularmente aos grupos de pares e aos líderes informais, procurando tirar partido do seu potencial em favor do projecto educativo.

● Rede comunicacional. Para que todo o processo educativo decorra sem incidentes é indispensável que a rede de comunicações no interior da organização funcione adequadamente, tanto a vertical (descendente e ascendente) como a horizontal.

● Cultura. A cultura de uma organização é o conjunto de assunções básicas (valores, padrões de actuação), muitas vezes não explicitados mas que orientam a sua dinâmica quotidiana. Os orgãos gestores da organização escola devem ajudar a sedimentar uma cultura orientada para os grandes objectivos educativos atrás expressos74 através de uma liderança adequada.

Pelo que se acaba de referir, para que a organização escola funcione com eficácia e eficiência é exigido que os seus decisores tenham uma formação específica para o desempenho como gestores educativos. Tal formação deve não só dotá-los das competências técnicas necessárias ao desempenho da função de gestão – saber planear, organizar e controlar – mas também treinar a sua inteligência emocional de modo a poderem desempenhar as funções de liderança organizacional – motivação, comunicação e desenvolvimento dos recursos humanos em presença.

________________________________74 Como atrás se fez referência, qualquer sistema educativo deve ter como finalidades, a educação para a adaptação e gestão da mudança, para o desenvolvimento, para a solidariedade, para a democracia e para a autonomia.

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6.4. A educação como problema psicossocial

Procedendo a uma terceira aproximação, de natureza micro-sociológica, podemos equacionar a educação como um problema psico-social, dado o processo educativo ocorrer sobretudo numa moldura de relações inter-pessoais.

Neste contexto, e independentemente das singularidades dos protagonistas envolvidos (bons ou maus professores e bons ou maus alunos), interessa saber que aspectos é que condicionam o processo de ensino aprendizagem independentemente das idiossincrasias dos agentes, a fim de equacionar o problema com alguma objectividade.

Em qualquer acto educativo formal estão presentes três subsistemas que o condicionam:• um aprendente,• um ensinante e• um sistema de comunicação educacional.Para que o acto educativo seja eficaz e eficiente é fundamental que os três subsistemas desempenhem o seu papel adequadamente.

6.4.1. Condicionadores do aprendenteOs factores que condicionam o desempenho do aprendente podem agrupar-se em dois conjuntos: os factores exógenos e os factores endógenos.

São factores exógenos, por exemplo, o meio social donde provém o aluno, e o sistema de recursos que ele dispõe, fora do meio familiar, para poder gerir o seu processo de aprendizagem.

● Entre as variáveis decorrentes do meio social podem referir-se como de grande relevância a situação sócio-económica da família, o seu grau de instrução, a língua materna e a etnia.

● O sistema de recursos do meio (por exemplo, a existência ou ausência de locais de estudo, de bibliotecas, de cantinas, de outros significativos, etc.) pode compensar ou, pelo contrário, agravar as dificuldades do meio familiar.

São factores endógenos, aqueles que o aprendente encontra em si para gerir com êxito o processo de aprendizagem, como a sua ambição pessoal, a capacidade de se auto-motivar, etc.

6.4.2. Condicionadores do ensinanteOs factores que condicionam o desempenho do ensinante podem agrupar-se também em variáveis exógenas e endógenas.

São variáveis exógenas, a coerência curricular, os recursos disponíveis na escola e na comunidade envolvente.

São variáveis endógenas do ensinante, a competência científica e pedagógica adquirida através da formação inicial e contínua, e a inteligência emocional.

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6.4.3. Condicionadores da comunicação educacional

Ainda que motivados é necessário que o sistema de comunicação educacional seja adequado. Isto implica, entre outros aspectos:

● Materiais educativos de qualidade em suporte escrito, audio-visual e informático.

● Espaços específicos como laboratórios, bibliotecas, ginásios e salas para actividades expressivas bem como espaços polivalentes, onde estudantes e professores possam trabalhar e conviver em regime de cooperação educativa.

● Estratégias activas para melhorar a comunicação educacional, como programas de educação intercultural, formação e dotação de meios para fazer face aos alunos com necessidades educativas especiais, etc.

6.5. Algumas políticas relevantesSituação da educação e algumas estratégias necessárias

Situação POLÍTICAS E ESTRATÉGIASEscala macro• Maior procura educativa• Oferta educativa insuficiente

Escala macro(qualificação e diversificação da oferta)• Coerência curricular (mudança, desenvolvimento,

solidariedade, autonomia, democracia)• Controlo dos desvios de investimentos globais para

fins educativos e de bem-estar• Autonomização do aprendente (Ex: Ensino aberto e a

distância)• Uso de recursos fora do sistema educativo tradicional

– empresas comunidade, ONGs, NTICs, etc• Alfabetização audiovisual e informática• Discriminação positiva relativamente à educação do

género feminino e das crianças em idade escolar

Escala meso• Problemas de eficácia• Problemas de eficiência

Escala meso• Qualificação da gestão do relacionamento da

organização escola com o seu ambiente externo (estrutura de tutela e comunidade envolvente): definição de papéis e de regras de comunicação.

• Qualificação da gestão da dinâmica interna (circuitos, estrutura formal e informal, rede comunicacional e cultura)

• Formação de gestores escolares (competências técnicas e inteligência emocional)

Escala micro• Factores condicionantes do

aprendente (classe social, instrução, língua, etnia, recursos do meio, aspectos endógenos)

• Factores condicionantes do ensinante (coerência curricular, recursos disponíveis, competência profissional, inteligência emocional)

• Factores condicionantes da comunicação (materiais, espaços, estratégias)

Escala micro• Estratégias compensatórias (aprendentes)• Formação contínua (ensinantes)• Estratégias de empowerment (ambos)• Educação intercultural (ambos)• Desenvolvimento comunitário (ambos)• Fomento de grupos de auto-ajuda (ambos)• Programas de desenvolvimento da inteligência

emocional (ambos)

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6.5.1. À escala “macro”À escala macro-social, os sistemas educativos devem procurar responder à sobrecarga da procura com uma política que privilegie a qualificação e a diversificação da oferta. Isto implica diversas medidas estratégicas, de que se apontam algumas das mais relevantes:

● Em primeiro lugar uma política de coerência curricular, uma vez que como se sabe, não há ventos favoráveis quando não se conhecem os rumos. Em termos genéricos parece que qualquer sistema educativo se deverá orientar para as seis necessidades educativas básicas atrás referidas: a adaptação e gestão da mudança, o desenvolvimento, a solidariedade, a autonomia e a democracia.

● Tal política exige, como corolário, o controlo sistemático da ajuda internacional destinada ao desenvolvimento das populações, de modo a que não seja desviada para fins militares ou para benefício de poderosas oligarquias locais.

● Relativamente aos aprendentes todo o processo educativo deve visar a sua autonomização progressiva. Tais políticas devem visar o desenvolvimento de competências metacognitivas que permitam a cada um, ser sujeito da sua própria história (Freire, 1967, 1972). Um modelo de ensino que se tem vindo a revelar de grande eficácia para a autonomização do aprendente é o do ensino a distância, hoje implantado em todo o planeta e em fase de expansão explosiva, por vezes combinado com modelos de ensino presencial (Carmo, 1997; Belloni, 1999; Trindade, Bidarra e Carmo, 2000).

● Outra política de diversificação da oferta passa pelo uso de recursos exteriores ao sistema educativo tradicional, através de parcerias com agentes da comunidade envolvente – como empresas, autarquias e organizações não governamentais – ou tirando partido das novas tecnologias de informação e comunicação – NTICs. Tal política exige a necessidade de generalizar a alfabetização audio-visual e informática dos cidadãos, sem a qual se criarão novos grupos de excluídos (Toffler, 1991).

● Dois tipos de discriminação positiva têm sido recorrentemente defendidos pelas agências internacionais a fim de compensar o profundo fosso actualmente existente: a que respeita à educação do género feminino e à das crianças e adolescentes em idade escolar.

6.5.2. À escala “meso”A uma escala organizacional, as políticas educativas têm vindo a direccionar-se frequentemente em três diferentes sentidos:

● Na clarificação dos papéis e das regras de comunicação entre a escola e os organismos de tutela.

● No estabelecimento de parcerias entre a organização escola e a comunidade envolvente, a fim de procurar potenciar os

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recursos mútuos para o desenvolvimento de projectos educativos em regime de co-responsabilização.

● Na qualificação da gestão interna da escola, registando-se uma consciência crescente de que o desempenho da função de gestão exige competências específicas, para além da simples preparação profissional exigida a um docente.

6.5.3. À escala “micro”Finalmente, a uma escala psicossocial, têm vindo a defender-se a implementação de uma gama muito diversificada de políticas de intervenção, das quais seleccionamos apenas algumas pela sua relevância:

● Relativamente aos aprendentes, têm vindo a multiplicar-se programas compensatórios, que procuram criar uma situação de discriminação positiva relativamente aos diversos tipos de handicaps (sócio-económicos, étnicos, linguísticos, relativos a deficientes, etc.).

● No que respeita aos ensinantes, a formação contínua tem vindo a assumir-se simultaneamente como um direito e um dever, constituindo-se já não como uma excentricidade de alguns mas como uma rotina de todos, valorizada em termos de progressão na carreira docente.

● Finalmente têm vindo a desenhar-se políticas que visam dotar ambos os principais protagonistas do processo educativo, de empowerment para vencer as dificuldades quotidianas do processo complexo que é ensinar e aprender em circunstâncias por vezes muito difíceis.

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7. Problemas de origem ideológicaOs fenómenos do racismo e do sexismo têm como denominador comum uma visão essencialista dos seres humanos, que alimenta um projecto de sociedade onde o tratamento desigual entre as pessoas é justificado pelas diferenças de características físicas. É por esta via que se assiste constantemente ao desrespeito dos Direitos Humanos, embora o mundo tenha assumido o compromisso de instituir a sua universalidade. Os atentados aos Direitos Humanos devem, assim, ser entendidos como sinais do projecto ideológico inacabado da Modernidade, cujos alicerces são a igualdade, a fraternidade e a solidariedade entre os seres humanos.

A compreensão da emergência destes fenómenos nas sociedades contemporâneas exige, então, que remontemos, ainda que brevemente, ao período do Renascimento para que possamos analisar de que modo estes problemas foram emergindo e acompanharam a evolução dos sistemas sociais e políticos das sociedades europeias ocidentais. É no período renascentista que vamos encontrar a ruptura com o pensamento tradicional e claramente teológico da Antiguidade e a abertura das portas da Modernidade, que defende uma ideologia humanista e universalista.

E é neste quadro de valores e ideologias conflituais que iremos traçar a análise dos fenómenos do racismo, da xenofobia, dos fundamentalismos e do sexismo, bem como dos atentados aos Direitos Humanos, que, no seu conjunto, marcam a História das sociedades contemporâneas.

7.1. RacismoO conceito de racismo é uma construção recente. No entanto, o termo “raça” começou a ser utilizado a partir de finais do século XV e a Europa assistiu ao longo dos séculos XVIII e XIX ao impulso da produção científica e discussão política em torno da “raça”. A diferenciação entre “raças superiores” e “raças inferiores” e a legitimação da supremacia das primeiras face a estas designa-se por racialismo. O racialismo designa, portanto, a vertente ideológica do racismo.

O domínio que os colonizadores Europeus detinham sobre os países e povos por eles colonizados, não só económico como também científico, conduziu a explicações científicas marcadamente etno e eurocêntricas, traduzidas em representações inferiorizantes dos “outros”, sendo a grande arma que legitimava os abusos da colonização e a própria escravatura. É assim que o projecto ideológico de construção de uma nação alemã, unificada sob a pertença ancestral a uma “raça ariana”, era sustentado pela classificação convergente de “raça” e nação, justificando assim a exclusão da “raça judia”.

7.1.1. O determinismo biológicoO pensamento social era, na Europa do século XIX, dominado pelo determinismo biológico, em que se destacam três teorias fundamentais para a legitimação científica do racismo:

1. a obra de Gobineau, “Essai sur l'inégalité des races humaines” (1852), que alertava para a degenerescência das “raças” como resultado da mistura entre si;

2. o darwinismo social, de Spencer (1862), teoria que vai aplicar às sociedades humanas a tese selectiva que Darwin avançou quanto aos organismos vivos, defendendo a rejeição dos elementos mais

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fracos e menos adaptados da sociedade em prol da sobrevivência e evolução desta75;

3. o eugenismo, de Francis Galton (1883), teoria que defendia a melhoria da espécie humana através de um processo de selecção semelhante àquele que se utilizava no reino animal – selecção dos progenitores para assegurar uma melhor descendência – e que se propunha identificar os genes “bons” e os genes “maus”, afirmando que para acabar com a criminalidade e outros “vícios” bastava eliminar os genes por eles responsáveis.

7.1.2. A evolução do racismo no século XXA passagem para o século XX é feita com a herança do determinismo biológico. Mas é apenas nos finais da década de 20 que nasce o conceito de racismo, definido como uma ideologia que defende a superioridade de determinadas “raças” e legitima a sua supremacia em relação às “raças” identificadas como “inferiores”.

Por outro lado, é a partir de meados do século XX, e sobretudo a partir da década de 60, que o conceito de “raça” vai desaparecendo, quer na Europa quer nos EUA. Tal deve-se à demonstração científica de que o conceito de “raça” é uma construção social sem fundamentação biológica e, sobretudo, ao conhecimento dos horrores dos campos de concentração e ao início da descolonização dos países africanos.

7.1.2.1. A emergência do “novo racismo”A classificação das populações em “raças” foi substituída pela definição de grupos étnicos ou culturais, substituindo-se a ênfase na “raça” pela ênfase na cultura. Esta viragem é a característica central do conceito de “novo racismo”, construído por oposição ao “velho” racismo biológico. Assim, em períodos de recessão económica, o imigrante ou o indivíduo pertencente a uma cultura minoritária é o alvo mais fácil de acusação, o bode expiatório, o objecto ameaçador.

7.1.2.2. O racismo institucionalA segunda metade do século XX viu também nascer uma nova interpretação do racismo que não apela a uma componente ideológica: trata-se da construção do conceito de “racismo institucional”. Originalmente defendido pelo movimento “Black Power” nos EUA, nos anos 60, a ideia de “racismo institucional” assenta no pressuposto de que a sociedade está estruturada de maneira a manter a exclusão de um grupo específico (naquele caso os negros Afro-Americanos) e a evitar a sua progressão na sociedade. A existência de políticas ou acções que tendiam à marginalização dos negros, bem como a ausência de políticas ou acções que promovessem a melhoria da sua situação, eram inter-

________________________________75 A teoria de Darwin sobre a evolução das espécies tem sido frequentemente apelidada de racista e promotora de uma ideologia que legitimava a desigualdade e a discriminação dos seres humanos. No entanto, vários cientistas sociais têm vindo em sua defesa apontando ao darwinismo social, elaborado por Spencer, a desvirtualização das ideias defendidas por Darwin, uma vez que este nunca aplicou a teoria da selecção natural aos seres humanos, mas tão somente ao reino animal (cfr. Tort, 1996).

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pretados como manifestações de racismo institucional. Como, muitas das vezes, as práticas de exclusão estão inscritas no normal funcionamento das instituições, nem sempre são questionadas e, consequentemente, não têm necessidade de serem legitimadas por uma ideologia.

A adesão ao Acto Único Europeu, em 1993, foi interpretada por várias organizações anti-racistas europeias como um exemplo de racismo institucional, pois um efeito directo da livre circulação entre as fronteiras da União Europeia para os seus nacionais era a exclusão do direito a essa liberdade para os não-nacionais e a instituição de uma estrutura discriminatória no normal funcionamento daqueles países.

7.1.3. As facetas da desigualdade e da diferença

O racismo encerra em si três componentes (Wieviorka, 1995, p. 25):

1. a “naturalização” de um grupo, que consiste na identificação desse grupo com base em características físicas naturais;

2. a percepção do “outro” como ameaça;

3. o apelo a medidas de protecção, discriminação ou segregação.

Nem sempre a discriminação de outrem é uma expressão de racismo, mas tão só se incorporar estas três componentes. Por outro lado, o racismo combina dois princípios de exclusão:• a desigualdade e• a diferença.

No entanto, apesar do racialismo não ser abertamente defendido, devido à decadência do uso do conceito de “raça”, vamos encontrar no “novo racismo” traços da velha diferenciação biológica.

A relação entre as dimensões da diferença e da desigualdade não é consensual entre os autores que se dedicam à análise do racismo. Assim, Taguieff (1988) defende que estas duas dimensões estão separadas, resultando em dois tipos de racismo:• a desigualdade está relacionada com a naturalização do “outro”

(sobretudo o “outro” enquanto colonizado ou sujeito à dominação por parte de outrem) e com a sua inferiorização;

• a diferença está ligada à ideia de preservação da especificidade de cada cultura.

Em contrapartida, Wieviorka define o racismo pela complementaridade entre estas duas dimensões, afirmando que se o tema da desigualdade está fortemente ligado à dominação colonial, o racismo só existe se a consciência da inferioridade dos povos colonizados for acompanhada pelo medo de invasão ou de perda da identidade do colonizador. Por outro lado, a percepção da diferença cultural só produz racismo se a cultura ou culturas minoritárias forem entendidas como ameaçadoras pela cultura dominante. Hoje, o facto de existirem numerosas comunidades migrantes nos vários países Europeus, havendo uma menor distância entre as diferentes culturas e uma maior possibilidade de trocas entre elas, faz aumentar o medo de perda da identidade nacional por parte da cultura maioritária (embora as culturas minoritárias

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sejam mais pressionadas a receber influências da cultura maioritária e a submeterem-se a uma assimilação cultural, do que o contrário). Como afirma Wieviorka, para que o racismo se manifeste é necessário que «(...) haja o sentimento de que o superior está ameaçado pelo inferior, a qualidade pela quantidade, a riqueza pela pobreza (...)», numa associação da diferença e da inferioridade (Wieviorka, 1995, p. 27).

7.1.4. O racismo como uma doença da Modernidade

Todorov define o racismo como uma doença de passagem para a Modernidade.

A exclusão que afecta tão fortemente as comunidades imigrantes na Europa Ocidental, e designadamente em Portugal, é o resultado do falhanço do projecto ideológico universalista em tornar igualitárias as relações sociais e o funcionamento das sociedades em si mesmas.

Um exemplo desta mescla de facetas do racismo actual é a situação das jovens gerações de origem migrante residentes em vários países da Europa Ocidental – tais como a Alemanha, a França, o Reino Unido e Portugal. Hoje, grande parte dos jovens das comunidades imigrantes constituem segundas ou terceiras gerações, mas continuam a ser identificados como estrangeiros e a ser alvo de exclusão, apesar de culturalmente estarem muito mais próximos dos “verdadeiros necionais” do que as primeiras gerações de migrantes.

Duas manifestações ilustrativas da ideologia racista contemporânea: quer o Front National quer os grupos de skin-heads Portugueses não argumentam abertamente em termos rácicos, mas antes exacerbam a diferença cultural e acusam os estrangeiros de ocuparem postos de trabalho dos nacionais; em ambos os casos, estes argumentos justificam a defesa do regresso dos imigrantes aos países de origem. O próprio direito à diferença é absorvido pela ideologia racista contemporânea como forma de justificar a incompatibilidade das culturas minoritárias com a cultura dominante, facto que colocaria em risco a homogeneidade cultural da nação (ideia que alicerçou os nacionalismos emergentes nos finais do século XIX).

7.2. Xenofobia e fundamentalismosA xenofobia e o racismo estão interrelacionados, pois ambos os conceitos se referem a uma diferenciação entre grupos que resulta na exclusão de uns face a outros. No entanto, a xenofobia diz respeito a um leque muito mais abrangente de diferenciações, na medida em que traduz toda a rejeição de outrem, identificado como dissemelhante do “eu” ou do “nós”, quer essa diferença seja baseada em traços físicos, na cultura, na pertença nacional ou em outros aspectos, ou resulte tão só da subjectividade implícita à atribuição de uma identidade diferente a esse “outro”. Ao contrário do racismo, a xenofobia não constitui por si só uma ideologia, apesar de ser um fenómeno determinado culturalmente e influenciado pelos contextos político-ideológicos fundadores das sociedades. Em termos etimológicos, xenofobia significa medo do estrangeiro. Ora, é a conjugação destas duas características – rejeição daquele que identificamos como diferente e medo face a ele – que fazem associar frequentemente o fenómeno da xenofobia à questão dos fundamentalismos.

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O fundamentalismo reporta-se à crença e à defesa de um conjunto de princípios religiosos (ou fundamentos ) , que são entendidos como verdades fundamentais.

Os fundamentalismos emergentes nas últimas décadas do século XX são um símbolo ímpar dos paradoxos da Modernidade, onde as sociedades evoluem no sentido da abertura e da expansão de fronteiras, não só físicas como mentais, e, simultaneamente, desenham novas restrições e limites a essas mesmas fronteiras.

7.2.1. A origem dos fundamentalismos modernos

A nova ordem económica influenciou as formas de interacção social e os valores, traduzindo-se no enfraquecimento das solidariedades, no aumento da competição entre os grupos e no reforço de valores individualistas, por oposição ao colectivo.

A conjugação destes factores conduziu, por um lado, à procura de novos espaços de solidariedade onde os indivíduos se sentissem protegidos, sendo a religião e a pertença étnica espaços privilegiados para tal, e, por outro lado, à construção de novos projectos de sociedade, fortemente marcados pelo retorno ao religioso. No entanto, no mundo islâmico existe uma mais forte base social de apoio do fundamentalismo religioso do que no mundo judeu ou cristão, facto que determina a sua maior extensão e a intensidade com que é defendido (Riera, 1996, p. 140).

A Europe Ocidental de finais do século XX vê precisamente no fundamentalismo islâmico a grande ameaça do futuro, sendo esse medo o motor de muitos sentimentos xenófobos contra as comunidades imigrantes muçulmanas aí instaladas. Por vezes, o reforço do fundamentalismo islâmico é uma reacção a essas manifestações de rejeição. Tal é o caso da “re-islamização” das jovens gerações de origem magrebina em França (Riera, 1996, p. 144). Neste caso, a persistência das condições que tendem à exclusão social dessas comunidades e o racismo e a xenofobia de que são alvo, não só pelo facto de serem imigrantes como também por serem muçulmanas, têm atraído jovens, já bastante assimilados à cultura francesa, para as tradições familiares. A adopção dos princípios religiosos islâmicos por parte desses jovens é uma forma de reforçarem o seu sentimento de pertença a uma comunidade étnica que lhes proporciona segurança e bem-estar, por oposição à comunidade francesa que muitos deles consideram como sua sem que essa pertença lhes seja reconhecida.

7.2.2. A interligação entre xenofobia, fundamentalismos e nacionalismos

A análise dos temas da xenofobia e do fundamentalismo deve, porém, também ter em conta a sua estreita ligação com o nacionalismo, uma vez que a identificação a uma nação integra, muitas das vezes, uma quota parte de exclusão xenófoba e, por outro lado, a identificação nacionalista levada ao extremo pode resultar em manifestações de fundamentalismo, onde o motor político se confunde com o religioso. Nesta perspectiva, a eclosão de manifestações xenófobas e de fundamentalismos na segunda metade do século XX, pode ser

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interpretada como uma reacção colectiva de medo face ao futuro, provocada pelo enfraquecimento do poder dos Estados nacionais a favor de formas de organização política e económica supra-nacionais, pela atomização dos próprios Estados mediante a conquista de independência por parte dos paízes colonizados ou da autonomia por parte de outros, pelo aumento de conflitos internos às fronteiras nacionais como consequência da rigidez de fronteiras desenhadas após a 2ª Guerra Mundial.

7.2.3. A interligação entre xenofobia, fundamentalismos e conflitos étnicos

Para alguns autores, o enfraquecimento de poder dos Estados e a sua incapacidade em assegurar segurança e bem-estar para todos os grupos é uma condição directa para a emergência de conflitos de cariz étnico, pois faz com que os grupos se organizem com base numa identidade comum (excluindo portanto os estrangeiros, os outros, aqueles a quem o “nós” atribui uma identidade diferente) para zelarem pelos seus interesses (Lake, Rotchild, 1998, p. 8). As manifestações xenófobas e fundamentalistas são, por sua vez, manifestações colaterais dos conflitos étnicos ou constituem mesmo factores coadjuvantes na eclosão destes conflitos.

Se a avaliação que fazem da sua situação por oposição a outros grupos é desfavorável, facilmente surge o desejo de autonomia como forma de apropriação de mais poder, tanto económico como político, geralmente acompanhado pela reivindicação do direito a uma identidade étnica específica (que tinha sido diluída no conjunto da identidade nacional, aquando da construção de Estados nacionais multiétnicos).

Encontramos um exemplo desta situação na guerra que eclodiu em 1991 na Jugoslávia: Eslovenos e Croatas ressentiram-se com o sistema de redistribuição federal às regiões mais pobres do país, tendo surgido manifestações de insatisfação por parte da população face à política seguida e que motivaram os passos para as reivindicações de autonomia; a questão da etnicidade foi aí utilizada para exacerbar a oposição entre grupos religiosos diferentes, dando origem a uma guerra pautada pela xenofobia, pelo fundamentalismo religioso e pela questão nacionalista (Lake, Rothchild, 1998, p. 10). Também os conflitos no Burundi e no Rwanda, entre Tutsis e Hutus, tiveram por base um conflito económico provocado pela escassez de recursos, que foi absorvido pela questão da etnicidade.

7.3. SexismoAs consequências dos preconceitos sexistas são diferentes para os dois sexos: as mulheres são as suas maiores vítimas pois dos estereótipos resultam discriminações e uma posição de subordinação face aos homens. O termo sexismo é, assim, utilizado mais frequentemente quando nos reportamos às desigualdades sofridas pelas mulheres.

A análise da desigualdade e da discriminação das mulheres face aos homens gira em torno de três grandes temas:• a natureza;• a família;• o trabalho.

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7.3.1. A questão da “natureza feminina”Para alguns autores, a discriminação das mulheres reside fundamentalmente nas diferenças físicas e de personalidade que distinguem e opõem a feminilidade da masculinidade, estando associadas à primeira traços como a emotividade, a intuição e a submissão, enquanto que à masculinidade se associa a racionalidade, a lógica e a dominação. À semelhança do que sucedeu com a discussão e produção científica em torno da “raça”, a questão do sexo e a interpretação do binómio masculino/feminino, homem/mulher, foi muito dominada pelo determinismo biológico e pela sua visão essencialista das diferenças entre os seres humanos. O próprio ciclo menstrual era interpretado como um facto da natureza que não podia ser controlado e, por essa mesma razão, concedia à mulher uma certa irracionalidade.

Assim, o mundo da “natureza feminina” era definido por oposição ao mundo da lógica e da racionalidade masculinas. Sendo a Ciência obra de homens – quer na Biologia, na Medicina ou na Filosofia – o universo feminino vai ser analisado com base em perspectivas androcêntricas: «(...) Se a experiência e a história masculinas, tal como são entendidas pelos homens, são dominantes, tendem a transformar-se em experiência e história universais e, por via da ciência moderna, em verdades objectivas. (...) Por esta via, o masculino transforma-se numa abstracção universal, fora da natureza, enquanto o feminino é tão só um ponto de vista carregado de particularismos e de vinculações naturalistas (...)» (Santos, 1991, p. 35).

7.3.2. A família como fonte de desigualdadesOutros autores argumentam que a interpretação da desigualdade entre os sexos dada pela diferenciação biológica é muito incompleta, argumentando que a origem da discriminação da mulher reside na organização das sociedades patriarcais, assentes na lei paternal e sendo a família a sua célula-base. Neste tipo de sociedade, a lei concede ao homem, enquanto pai e marido, o direito à propriedade privada, sendo o exercício do poder sobre a mulher e os filhos visto como uma extensão do direito à propriedade.

A análise marxista dá particular realce à questão da família como fonte de opressão da mulher, designadamente a família burguesa. Nesta óptica, as relações pessoais nas famílias burguesas são relações mercantis, denunciando o casamento como um contrato de propriedade do homem face à mulher e aos filhos. No entanto, a tese marxista sobre o capitalismo não permitiu ver que o desenvolvimento acelerado da industrialização foi um factor de emancipação para a mulher, pois libertou-a do espaço privado e deu-lhe a possibilidade de entrar na esfera da produção, entrando também no espaço público da vida social.

7.3.3. As desigualdades na esfera do trabalhoO facto da revolução industrial ter permitido criar postos de trabalho femininos, que não existiam anteriormente, retirando a exclusividade da mulher ao espaço do lar, veio colocar a questão da compatibilidade ou incompatibilidade da feminilidade com o trabalho assalariado. A divisão entre espaço público e espaço privado que vigorava até aí, é agora

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desequilibrada pela forte exigência de mão-de-obra por parte do sistema económico então em desenvolvimento. A mulher trabalhadora tornou-se assim, no século XIX, um problema: «(...) O “problema” da mulher trabalhadora, então, era ela ser uma anomalia num mundo onde o trabalho assalariado e responsabilidades familiares se tinham tornado ocupações a tempo inteiro e espacialmente diferenciadas (...)» (Duby, Perrot, op. cit., p. 444). Uma vez que socialmente a função dominante da mulher é a maternidade, facto que a obriga a interromper a sua actividade produtiva, os postos de trabalho que ela viria a ocupar não são especializados e a eles correspondem menores salários.

Adam Smith, um proeminente economista do século XIX, avançou a noção de que o salário do homem tinha de ser suficiente para a sua própria subsistência e para a da sua família, enquanto que o salário da mulher «(...) tendo em conta a atenção que necessariamente tinha de dar aos filhos, não se esperava mais do que o suficiente para o seu próprio sustento (...)» (in “The welfare of nations”, citado por Duby, Perrot, op. cit., p. 456). Por um lado, o salário da mulher é visto apenas como um complemento do orçamento familiar. Por outro, as profissões que lhe são destinadas correspondem a funções que são vistas como compatíveis com a “natureza feminina” e que implicam, na maior parte das vezes, o cuidar dos outros (função que é entendida como específica dessa “natureza feminina”), daí resultando o exercício de funções que podemos designar por “maternidade social” (é o caso, entre outras, das profissões de educadora, de professora e de enfermeira).

O modo de organização do trabalho no sistema capitalista recorria, portanto, à visão essencialista das diferenças biológicas entre os sexos para justificar as diferenças de tratamento entre homens e mulheres. É esta a base para a justificação da diferença de valor e de remuneração do trabalho da mulher e é por esta mesma razão que os movimentos feministas tiveram, e têm, como uma das suas principais bandeiras a exigência de “salário igual para trabalho igual”.

7.3.4. O novo rosto das desigualdades no século XX

A 1ª Guerra Mundial permitiu a emancipação das mulheres uma vez que a mobilização dos homens exigia a sua participação, sem concorrência, na esfera da produção económica. No entanto, o pós-guerra rapidamente exigiu o retorno das mulheres ao lar e à função da maternidade, dada a urgência de restabelecer as taxas de natalidade e de assegurar o emprego aos homens então desmobilizados.

7.3.4.1. Dois exemplos de sistemas político-ideológicos sexistas

Encontramos, neste século, dois exemplos extremos da discriminação das mulheres, fundamentada por sistemas político-ideológicos:• a política natalista do regime fascista italiano, comandado

por Mussolini; e• a política sexual nacional-socialista da Alemanha de Hitler.

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À mulher era-lhe exigido que procriasse e educasse os filhos da pátria, contribuindo assim para a aplicação do programa político ao nível da esfera mais privada da vida em sociedade.

Por seu lado, a política sexual levada a cabo pelo regime de Hitler está fortemente associada à própria ideologia racista daquele regime. A preocupação pela “pureza da raça” determinou políticas antinatalistas baseadas na esterilização sistemática de pessoas consideradas não válidas, aplicando-se as teorias eugénicas surgidas no século XIX.

7.3.4.2. Os efeitos da democratizaçãoÉ com a recuperação económica verificada após a 2ª Guerra Mundial, concretamente entre 1945 e 1975, que se assiste a uma cada vez maior democratização do mercado de trabalho, do acesso à educação (não só para as mulheres como também para as classes sociais mais pobres) e, consequentemente, a uma democratização das relações sociais.

No campo da educação, apesar do acesso maciço das raparigas à escola, rapazes e raparigas continuam a ser orientados para carreiras específicas, reproduzindo a divisão sexual do trabalho: no ano lectivo de 1994/5, a taxa de feminização nos ramos do ensino superior (ao nível dos estudantes matriculados) foi de 79,8% para as Ciências da Educação e a Formação de Professores e apenas de 26,2% nas Ciências de Engenharia (CIDM, 1998).

No campo do trabalho, têm surgido nas últimas décadas novas formas de trabalho que têm vindo a acentuar as desigualdades entre os sexos. O trabalho a tempo parcial , instituído amplamente em vários países europeus e com especial relevância nos países escandinavos, é, na maior parte dos casos, um trabalho feminino, conservando a diferença salarial entre os sexos bem como a divisão das tarefas domésticas. A expansão do trabalho domiciliário resultou num aumento da população feminina activa, mas sempre numa situação de grande precariedade e em tarefas vistas como “naturalmente” femininas. Por fim, o trabalho temporário e os contratos a prazo são o resultado da mais recente re-estruturação económica, afectando mais duramente as mulheres e os jovens.

Hoje, as desigualdades são mais encobertas e reproduzidas mais subtilmente, mas continuam a ser legitimadas por uma diferenciação essencialista dos sexos. O sexismo contemporâneo, à semelhança do novo racismo, revela-se com um rosto multifacetado, onde argumentos naturalistas e culturalistas se interpenetram para justificar a manutenção de uma ordem social alicerçada no poder masculino – ao nível económico, científico, político, jurídico.

7.3.5. As análises feministas e o conceito de género

Actualmente, podemos encontrar nas análise feministas, que têm vindo a surgir no mundo da ciência, contribuições pertinentes para a denúncia

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dos preconceitos sexistas que enfermam o próprio pensamento social e científico, como também análises inovadoras sobre as relações sociais entre os sexos, pulverizando o binómio masculino/feminino. Daqui resulta a construção do conceito de género. A análise das relações de género insiste no carácter fundamentalmente social e não sexual das diferenças entre homens e mulheres, rejeitando o determinismo biológico e destacando, em simultâneo, o carácter relacional e assimétrico entre os dois sexos – homens e mulheres são definidos em relação ao outro e já não como dois grupos separados por diferenças imutáveis e atribuídas naturalmente.

7.4. Atentados aos Direitos HumanosA Declaração Universal dos Direitos Humanos (assinada a 10 de Dezembro de 1948) nasce no rescaldo da 2ª Guerra Mundial, simbolizando a vontade dos Estados com assento nas Nações Unidas de introduzirem um novo quadro legal que regulasse as relações internacionais.

7.4.1. A ONU e a nova ordem mundialA Declaração Universal surge como um primeiro passo tomado pela Organização das Nações Unidas (ONU), constituída em Maio de 1945, na construção dessa nova ordem mundial. Enquanto que a ONU tem como princípio fundador a busca e a manutenção da paz mundial, a Declaração torna claro que este objectivo só é alcançado mediante o respeito dos direitos humanos.

7.4.2. A evolução dos Direitos HumanosA Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) saída da Revolução Francesa, marcam a “primeira geração” dos Direitos Humanos, caracterizada pela fase da «proclamação jurídica», que pretendia garantir no plano formal a dignidade dos cidadãos perante um Estado de direito e donde resultou a instituição dos direitos civis e políticos.

A “segunda geração” nasce em meados do século XIX, constituindo a fase da «socialização», caracterizada pelo reconhecimento de que as liberdades não estavam garantidas apenas pela sua inclusão na lei e de que era necessário instituir novos direitos, tais como os direitos económicos, sociais e culturais. Esta segunda geração dos direitos humanos corresponde à visão marxista das liberdades e é parte integrante das Constituições dos Estados socialistas já no século XX.

A Declaração Universal de 1948 nasce na “terceira geração” dos direitos humanos, a qual corresponde à fase da «internacionalização». Esta fase é marcada pelo reconhecimento de que a instituição dos direitos humanos não pode dizer respeito apenas a cada Estado, internamente, mas tem de constituir uma preocupação mundial e assegurar os direitos mínimos a todos os povos. Esta nova visão desenvolveu-se depois da Grande Guerra, mas é após a Segunda Guerra Mundial que se assiste à sua verdadeira expansão. Esta mesma geração de direitos humanos vê nascer os «direitos de solidariedade» após a emergência de novos Estados que tinham alcançado a sua independência. O subdesenvolvimento que enfrentavam e a exploração

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de que tinham sido alvo pelas antigas potências coloniais europeias justificavam o seu direito à ajuda internacional.

Podemos resumir a importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos em cinco aspectos (aa.vv., 1998, p. 476):

1. restaurou e consolidou um processo de desenvolvimento legal que emergiu em algumas sociedades nos séculos XVII e XVIII;

2. alargou e tornou mais consistentes os conceitos de liberdade e de igualdade, bem como a reciprocidade entre eles;

3. expandiu o conteúdo dos direitos humanos relativamente às noções tradicionais;

4. instituiu que os direitos são universais e que todos os seres humanos deles beneficiam;

5. tornou os direitos humanos uma questão fundamental na lei e nas relações internacionais.

7.4.3. O desrespeito pelos Direitos HumanosApesar de se ter evitado, na segunda metade do século XX, a eclosão de guerras e de conflitos generalizados, não se conseguiu, mesmo nas regiões onde o impacto foi mais positivo, como na Europa e nos EUA, assegurar o respeito pelas liberdades e direitos fundamentais de todas as pessoas.

Os fenómenos de racismo, xenofobia, fundamentalismos e sexismo, que tratámos anteriormente, são manifestações actuais da incapacidade dos Estados subscritores assegurarem o cumprimento dos princípios que aprovaram.

O desrespeito pelos direitos dos povos autóctones constitui uma outra constante na história da Humanidade, e especificamente na época contemporânea, tendo resultado no extermínio quase completo de povos ou na sua discriminação sistemática (por exemplo, nos EUA, e apesar da proclamação das liberdades fundamentais se ter verificado já no século XVIII, os Índios Americanos vivem como reféns nas suas reservas, depois de lhes ter sido negado o direito às suas terras e à expressão livre da sua cultura). O princípio da auto-determinação dos povos tem sido permanentemente desrespeitado e é aliás um dos principais desafios que se coloca à ONU no século XXI.

A situação de crise de poder que a ONU vive actualmente é um dos sinais visíveis da crise da ordem internacional que o mundo procurou instituir em 1945.

7.4.4. A tendência actual para o reforço dos Direitos Humanos

A par dos atentados aos direitos humanos, assistimos, contudo, a uma tendência para reforçar a defesa de determinados direitos – sobretudo relativos a grupos minoritários e discriminados, como é o caso das minorias étnicas e das mulheres – através da criação de novos documentos legais, em complementaridade com a Declaração Universal. Uma outra tendência é a da celebração de acordos regionais, como tem

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frequentemente acontecido no quadro do Conselho da Europa, de onde destacamos três documentos: a Convenção europeia para a salvaguarda dos direitos humanos e das liberdades fundamentais (1950), a Carta social europeia (1961) e a Convenção para a prevenção da tortura (1987).

É pois no sentido do reforço do poder de reivindicação dos cidadãos que caminham os direitos humanos nas sociedades contemporâneas.

FIM

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