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41059 – Sociologia da Família I Apontamentos de: Jorge Loureiro E-mail: [email protected] Data: 13.01.2009 Livro: Sociologia da Família nas Sociedades Contemporâneas (Maria Engrácia Leandro) Nota: Matéria referente ao ano lectivo 2008-2009 (Mestre Fátima Alves) Este documento é um texto de apoio gentilmente disponibilizado pelo seu autor, para que possa auxiliar ao estudo dos colegas. O autor não pode de forma alguma ser responsabilizado por eventuais erros ou lacunas existentes. Este documento não pretende substituir o estudo dos manuais adoptados para a disciplina em questão. A Universidade Aberta não tem quaisquer responsabilidades no conteúdo, criação e distribuição deste documento, não sendo possível imputar-lhe quaisquer responsabilidades. Copyright: O conteúdo deste documento é propriedade do seu autor, não podendo ser publicado e distribuído fora do site da Associação Académica da Universidade Aberta sem o seu consentimento prévio, expresso por escrito.

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41059 – Sociologia da Família I

Apontamentos de: Jorge LoureiroE-mail: [email protected]: 13.01.2009

Livro: Sociologia da Família nas Sociedades Contemporâneas (Maria Engrácia Leandro)

Nota: Matéria referente ao ano lectivo 2008-2009 (Mestre Fátima Alves)

Este documento é um texto de apoio gentilmente disponibilizado pelo seu autor, para que possa auxiliar ao estudo dos colegas. O autor não pode de forma alguma ser responsabilizado por eventuais erros ou lacunas existentes. Este documento não pretende substituir o estudo dos manuais adoptados para a disciplina em questão.

A Universidade Aberta não tem quaisquer responsabilidades no conteúdo, criação e distribuição deste documento, não sendo possível imputar-lhe quaisquer responsabilidades.

Copyright: O conteúdo deste documento é propriedade do seu autor, não podendo ser publicado e distribuído fora do site da Associação Académica da Universidade Aberta sem o seu consentimento prévio, expresso por escrito.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO1. A EMERGÊNCIA DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO ACERCA DA FAMÍLIA

1.1. A família nas Ciências Sociais1.1.1. Perspectiva interdisciplinar1.1.2. A família objecto de pensamento social e científico1.1.3. As perspectivas sobre a família na primeira metade do século XX

1.2. O dealbar da sociologia da família1.2.1. As primícias da sociologia da família em França no quadro do

pensamento social1.2.2. O surgimento universitário da sociologia da família1.2.3. O carácter sócio-histórico da sociologia da família nos Estados Unidos1.2.4. As metamorfoses da sociologia da família em Portugal

1.3. A abordagem sociológica do conceito de família1.3.1. A ambiguidade da noção de família1.3.2. A família concebida à luz duma tipologia de laços1.3.3. À procura dum conceito da família contemporânea

2. FAMÍLIA E SOCIEDADE2.1. Perspectiva histórica da família

2.1.1. A família na memória do tempo e do espaço2.1.2. Fundamentos gregos e romanos da família2.1.3. A família nas civilizações árabe, chinesa, indiana e japonesa2.1.4. A perspectiva sócio-histórica e antropológica2.1.5. O olhar socio-histórico sobre a família em Portugal ao longo do século XX

2.2. O grupo doméstico nas sociedades modernas e contemporâneas2.2.1. A noção de grupo doméstico2.2.2. O grupo doméstico associado à família alargada2.2.3. O grupo doméstico associado à família tronco2.2.4. O grupo doméstico associado à família conjugal e monoparental2.2.5. Os grupos domésticos decorrentes da comunidade tácita e da zadruga2.2.6. Considerações gerais

2.3. A família na sociedade contemporânea2.3.1. Entre a economia e a família2.3.2. A mulher e a família a caminho da sociedade do emprego2.3.3. Factores de índole política e cultural2.3.4. As descobertas científicas e os seus efeitos nos comportamentos

familiares2.3.5. As influências culturais na ordem do dia2.3.6. A família contemporânea e a sua relação com a escola2.3.7. As imbricações sociais e familiares: a razão e o amor2.3.8. A relação entre a família e a religião católica2.3.9. A redescoberta e revalorização da família nos finais do século XX2.3.10. A velha e a nova questão das funções sociais da família

2.4. Situação da família em Portugal2.4.1. Os principais factores de mudança no interior da família portuguesa2.4.2. As principais peculiaridades estruturais e demográficas da família

portuguesa2.4.3. A entrada na vida conjugal e as rupturas familiares em Portugal2.4.4. A família portuguesa perante o jurídico

2.5. Modalidades de controlo social sobre a família2.5.1. A família do passado e do presente sob o olhar de uma panóplia de

instituições2.5.2. Do Estado para a família2.5.3. Da normatividade social à família normal

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3. TEORIAS SOCIOLÓGICAS ACERCA DA FAMÍLIA NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS3.1. A família perspectivada por F. Le Play

3.1.1. A obra e o pensamento de Fréderic Le Play3.1.2. Perspectiva le playsiana sobre as formas de família

3.2. O olhar de E. Durkheim sobre as metamorfoses da família3.2.1. As particularidades da família num processo democrático3.2.2. A lógica do privado e do público na família contemporânea3.2.3. A crescente autonomia familiar em relação ao parentesco3.2.4. A individualização familiar3.2.5. O investimento nas relações intrafamiliares3.2.6. Do conjugal ao filial nos novos tempos3.2.7. Casamento e família

3.3. A família nuclear americana na pluma de T. Parsons e R. Bales3.3.1. A família como subsistema dum sistema geral3.3.2. Uma teoria das funções sociais da família3.3.3. Uma teoria das estruturas familiares3.3.4. Uma teoria dos papéis conjugais

3.4. A família contemporânea vista por W. Goode3.4.1. Uma abordagem plural da questão familiar3.4.2. A acção socializadora familiar e social e a sua interactividade3.4.3. A família perante as mudanças nas sociedades da modernidade3.4.4. A lógica conjunta da perplexidade e do discernimento no seio da família

3.5. As mutações de passagem à família moderna na lupa de P. Ariés3.5.1. O advento da família moderna vista através da infância e da vida

sentimental3.5.2. A relação entre a escola e a emergência da família moderna3.5.3. As estratégias da família contemporânea perante a escola

3.6. A família à luz da sociologia mais recente3.6.1. Novos olhares sobre as formas de família e de parentesco3.6.2. A família e a conjugalidade3.6.3. A família perante a instituição3.6.4. O laço familiar, (des)institucionalização e reelaboração

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IntroduçãoA família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado.

Declaração Universal dos Direitos do Homem,Art.º 16, al. 3, 1948.

A formação da família estava estritamente associada ao casamento, tal como era preconizado pelas orientações sociais e religiosas. A bem dizer, as rupturas familiares, com ou sem divórcio, eram mínimas.

De maneira geral, poder-se-á dizer que o trajecto de reflexão sociológica acerca da família, embora se tenha intensificado a partir de meados dos anos setenta do século XX, não deixou anteriormente de ser estimulado por um certo número de pensadores sociais, inclusive sociólogos.

E o que se torna patente nesta afirmação é que, do século XIX aos nossos dias, para os sociólogos, designar com rigor as peculiaridades da família e o seu carácter institucional, significa reconhecer a sua historicidade e variabilidade, no tempo e no espaço, em função do enquadramento social de que é alvo. Para todos, a família não é uma identidade abstracta, indiferente à sociedade em que se inscreve e, por conseguinte, definida uma vez por todas nas suas estruturas e organização, mas é tributária da dinâmica desta relação. Por outro lado, esta relação não é linear, na medida em que através dos tempos, a família, enquanto instituição, tem um carácter de permanência e de plasticidade. Os sociólogos do século XIX, cada um a seu modo, encontraram caminhos peculiares para esta compreensão.• A. Tocqueville e F. Le Play, através das viagens que iam empreendendo e, por

conseguinte, do contacto que daí resultava com outros povos, procuravam compreender, comparativamente, os universos de significação de que são portadores;

• F. De Coulanges e M. Weber, graças ao seu interesse pela história;• E. Durkheim, socorrendo-se da literatura de viagens e da etnologia.

Esta metodologia de trabalho conduz a que o estudo sociológico da família seja concebido em articulação com um conjunto de configurações sociais singulares que lhes conferem as suas próprias peculiaridades. Aludindo a A. Comte e E. Durkheim, olhando para a trajectória social das sociedades, consideram que a família foi evoluindo de uma forma mais tradicional para uma outra mais avançada, até chegar à família perfeita, ou seja, a família conjugal moderna.

Os contextos sociais, embora uns e outros atravessados por grandes mutações sociais, são distintos, porque diferentes são as condições em que as mesmas se produzem. Esquematicamente, poderá dizer-se que a variedade e a complexidade da sociologia contemporânea em torno das questões da família exprime como que uma tensão entre o seguimento duma tradição nesta matéria e a vontade de inovar, porque nova é também a realidade.

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1. A Emergência do Pensamento Sociológico acerca da Família

A família não é uma entidade abstracta, estática, unilinear e unidimensional no seio da sociedade, porque participa profundamente da sua dinâmica, reestruturação e complexidade.

1.1. A família nas Ciências Sociais1.1.1. Perspectiva interdisciplinarNo interior das Ciências Sociais com particular destaque para os últimos dois séculos, o estudo da família é comum a várias disciplinas, designadamente, a história, a antropologia, a demografia, o direito, a sociologia, a psicologia, a psicanálise e as ciências políticas. Mas é sobretudo a historiografia alemã, apoiada nos estudos jurídicos, linguísticos, mitológicos e arqueológicos e sempre preocupada com a questão das origens dos povos e dos estados da nação alemã que, para além de exercer uma influência notável, a este propósito, consegue recuar aos séculos obscuros (P. Guichart, 1986).

O estudo das relações de parentesco, no século passado foi, sobretudo, apanágio da antropologia social, nomeadamente com os trabalhos de J. McLennan (1865), L. Morgan (1877), R. Smith (1855), segundo os quais a família fazia parte da grande marcha da civilização que erguera o homem do nível da besta bruta, dando-lhe um conjunto de normas para viver. Estamos, assim, perante uma visão linear evolucionista da família que é também partilhada por pessoas do direito, como J. Bachofen (1861), da filosofia e da economia como F. Engels, este publicado em português em 1976, e da sociologia como F. Tonnies (1887) e E. Durkheim (1888, 1892), entre outros. Aliás, convém assinalar que, para estes últimos, esta evolução era tributária do progresso social instaurado, designadamente, nas sociedades modernas.

Importa, todavia, referir que esta visão socio-histórica evolucionista sobre a família só começa a sofrer algum abalo por volta dos anos vinte deste século com os trabalhos de A. Radcliffe-Brown (1942) que, sendo antropólogo, não deixou de se interessar pela dimensão histórica do fenómeno.

Foram os franceses, com uma tradição sociológica mais desenvolvida, quem por volta dos anos quarenta e nomeadamente com C. Levi-Strauss, mais se agarrou ao conceito de leis gerais ou de estruturas. Mais tarde, o sociólogo P. Bourdieu, considerado um dos expoentes máximos do anti-estruturalismo francês dirigiu-lhe duras críticas. Para P. Bourdieu (1980), as estruturas familiares não são instituições fechadas, mas antes adaptações singulares do psiquismo humano à cultura e ao contexto social local.

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1.1.2. A família objecto de pensamento social e científico

Na linha da Sociologia é de assinalar que os estudos sobre a família, em França como noutros países, são anteriores à sua solidificação institucional. De facto, quando se começam a desmoronar, logo a seguir à revolução francesa de 1789, as tradicionais restrições advindas da religião e da política, um certo número de pensadores sociais (simultaneamente filósofos, historiadores, sociólogos e até médicos), não deixa de estar atento às mudanças que se vão operando em termos dos laços sociais e da coesão social que daí decorre e o papel da família. Entre outros, destacam-se F. De Coulanges, J. Michelet, A. Tocqueville, L.-R. Villermé, F. Le Play, E. Durkheim. Mais directamente só os três últimos prosseguiram trabalhos sobre a família, sendo os de F. Le Play os que tiveram maior divulgação em todo o mundo ocidental.

Socorrendo-se da perspectiva histórica, quer através das próprias viagens como A. Tocqueville e F. Le Play ou das leituras de viagens e de etnólogos como fez E. Durkheim, quer dos estudos históricos empreendidos por F. De Coulanges, K. Marx, F. Engels e M. Weber, todos relevam que a família não é um corpo abstracto no seio da sociedade, uma entidade em si mesma. Com estas prerrogativas, poder-se-á dizer que este conjunto de autores, seguindo o caminho da ruptura epistemológica inaugurada por Montesquieu (1748), mais do que qualquer explicação subjectiva ou especulativa, preocupa-se antes em encontrar e mostrar as diferenças entre as instituições, dado que estas são correlativas dos constrangimentos exercidos pelas diferentes sociedades.

Quanto à economia, entre outros, importa fazer referência aos trabalhos de A. Smith, K. Marx e F. Engels, nos séculos XVIII e XIX. Em filigrana, cada um a seu modo, preconiza as condições para uma vida de família saudável. Esta preocupação, integrando simultaneamente uma dimensão de carácter teórico e outra de índole revolucionária, é particularmente clara no caso dos dois últimos em torno do fenómeno da designada “crise da família”, em virtude duma brecha nos sistemas de valores tradicionais com o advento da modernidade e a desestruturação de um modo de organização produtiva, devido ao desenvolvimento e implementação da economia industrial e as mudanças sociais e culturais que lhes estão associadas.

1.1.3. As perspectivas sobre a família na primeira metade do século XX

Tudo parecia indicar que o designado modelo clássico da família conjugal do século XIX estava solidificado e permanecia de boa saúde. Daí que a família deixe de ser, praticamente, um objecto privilegiado de análise dos cientistas sociais. As ideologias políticas de carácter fascista ou fascisante que predominaram em vários países europeus nos anos 30-40 e que em Portugal se prolongaram até 1974, de maneira geral, todas tomavam a família não só como elemento valorativo, mas também como pilar fundamental da sua ideologia.

Nos Estados Unidos, sendo as coisas algo diferentes, nem por isso as questões familiares suscitaram um interesse generalizado dos cientistas

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sociais na primeira metade do século XX. Foi necessário esperar pelos anos sessenta para que a produção sociológica sobre a problemática familiar se tornasse mais abundante.

É neste turbilhão de mudanças que, tanto por razões de ordem empírica (políticos, trabalhadores sociais, profissionais da escuta, agentes do sagrado e do associativismo), como teórica, as investigações sociológicas acerca da família ganham novo fôlego nas três últimas décadas do século XX.

A questão da família nas Ciências Sociais em Portugal, por força das circunstâncias em que a sociologia da família emergiu na sociedade portuguesa, virá a ser tratada mais demoradamente no item seguinte. Contudo, vale a pena referir que, também aqui, o estudo da família tem sido, simultaneamente, objecto da história, da literatura, do direito, da antropologia, da sociologia, da psicologia, da demografia, da demografia histórica e da economia (K. Wall, 1993).

1.2. O dealbar da sociologia da família1.2.1. As primícias da sociologia da família em

França no quadro do pensamento socialOs trabalhos de L.-R. Villermé, insertos na sua obra: Tableau de l'état physique de la santé et moral des ouvriers employés dans les manufactures de coton, laine et soie, publicada em 1835, visando fazer tomar consciência à classe política e patronal da extensão da miséria da classe operária e das consequências que daí advinham, são eloquentes a este propósito. A partir dos resultados deste conjunto de acções, foram sendo elaboradas teorias e programas de acção política e social em torno da família e da sociedade, ainda que não isentas de certas ideologias.

Na lição 50 do Curso de Filosofia Positiva de 1839, A. Comte afirma que, na sociedade, a família, constituindo a verdadeira unidade social, é o gérmen das diversas disposições que caracterizam a unidade social, pois que é ela que educa as pessoas para a vida social.

Vale a pena referir ainda que, no caso concreto de A. Comte, contrariamente aos cientistas e filantropos do século XVIII, as suas reflexões e proposições de acção não são apoiadas por qualquer tipo de investigação empírica, o que não deixa de denotar, de algum modo, um tipo de abordagem “psicologizante e pseudo-científica” (M. Segalen, 1981).

Sendo Engenheiro de Minas e contactando quotidianamente com a classe operária F. Le Play, interessa-se por conhecer mais profundamente os seus modos de vida familiar. A partir de trinta e seis monografias de famílias operárias e de outras que se lhe seguiram, procura encontrar resposta para duas grandes questões: a família terá o seu futuro assegurado? Está em vias de ascensão social? Estas duas questões decorrem, uma da sua moral cuja primeira regra é de orientar o presente em função do futuro; a outra, da sua representação da classe

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operária como um purgatório1.

Ao mesmo tempo, estabelece uma tipologia da organização familiar na Europa distinguindo:• a “família patriarcal” formada por todos os filhos que se casam, os

seus cônjuges e a sua prole vivendo no mesmo espaço habitacional sob a autoridade do pai, progenitor;

• a “família tronco”, na qual um único filho, normalmente, o mais velho varão, é escolhido para herdeiro, coabita com os pais bem como a sua esposa e prole e, eventualmente, os outros filhos solteiros ou até os deficientes, se porventura os houver;

• a “família instável” que, separando-se dos filhos logo que estes se autonomizam, se reduz, de novo, ao casal progenitor e acaba com a morte dos mesmos, ao passo que a família tronco bem como o património que lhe está associado, terão sempre continuidade.

Não admira, pois, que, movido por preocupações morais e sociais que assegurem a ordem social, preconize um modelo de família intermédio que no seu entender, por um lado, não asfixie os indivíduos e, por outro, não os abandone à sua sorte. Sendo assim, Le Play torna-se um defensor acérrimo da família tronco, pois que só esta poderá corresponder a estes objectivos.

1.2.2. O surgimento universitário da sociologia da família

Cabe a E. Durkheim ser o fundador da sociologia da família, no âmbito universitário, quando em 1888, na Universidade de Bordéus, profere um curso designado de Sociologia da família e em 1892 o curso da Família conjugal (E. Durkheim, 1975). Pode dizer-se que os princípios da sua obra mais imediata, como seja, por exemplo, a Divisão do trabalho social, o Suicídio e as Formas elementares da vida religiosa, estão explícitos neste trabalho. Assim, quando aparece a revista Année Sociologique é ainda E. Durkheim que, numa rubrica designada de Organisation domestique, faz um inventário das obras relativas à família e ao casamento publicadas por historiadores e etnólogos.

Tal como outros já o haviam afirmado anteriormente, por exemplo, L. Morgan, F. Engels e J. Bachofen, E. Durkheim considera que a família não é um agrupamento natural constituído por parentes; pelo contrário, é uma instituição social resultante da organização social das sociedades e, como tal, deve ser explicada. Deste modo, em termos científicos, como em qualquer outro domínio do social, devem ser banidas as tendências moralizadoras, ideológicas, porventura algo estereotipadas, e até os simplismos de análise.

Assim, “é o agrupamento familiar que emerge do agrupamento político e não o político que é procedente, por dilatação do doméstico”.

Claro que, a este respeito, estudos posteriores, prosseguidos por historiadores (Escola dos Annales), antropólogos e sociólogos, não deixaram de revelar que esta visão de E. Durkheim é algo caricatural,

________________________________1 E não se pense, como aliás quase sempre se tem procurado fazer crer, que a classe operária da época seja mais amoral que qualquer outra classe social em relação à família. Só que o modelo de família que lhe era proposto, quer pela burguesia, quer por grupos filantrópicos e até pela Igreja Católica, perante a miséria económica e social em que as famílias operárias viviam, não se coadunava com as suas condições de existência.

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pois que a família nuclear conjugal não é o resultado de qualquer evolução nuclear. Só que, nas sociedades modernas, foi-se tornando predominante e incarna outras características.

1.2.3. O carácter sócio-histórico da sociologia da família nos Estados Unidos

A estrutura nuclear conjugal é definida como um subsistema dotado de funções e de papéis específicos, segundo os sexos e as gerações, no conjunto do sistema social (T. Parsons, R. Bales, 1955).

No após-guerra verifica-se uma reorientação da investigação sobre a família, aparecendo, neste contexto, os estudos de T. Parsons e R. Bales que não deixaram de ser bastante controversos. Por um lado, preconizava-se um modelo de família, a família nuclear conjugal, que melhor servisse os interesses das ideologias políticas e económicas vigentes; por outro, estes trabalhos, rapidamente, foram objecto de várias críticas, devido ao seu carácter ideológico, designadamente, em termos das relações de género e das relações entre as gerações, à falta de apoio em estudos empíricos e à desadaptação de que eram alvo, perante as mutações sociais em curso, por volta dos anos sessenta (A. Michel, 1983).

Assim, foi necessário esperar pelo início dos anos sessenta para que os trabalhos de W. Goode (1964, 1970) viessem introduzir uma ruptura decisiva na sociologia da família nos Estados Unidos, tanto sob o ponto de vista teórico como metodológico.

Interessa referir, a propósito que, se é certo que a produção de trabalhos nesta área do conhecimento tem vindo a aumentar um pouco por toda a parte, nas sociedades ocidentais como, aliás, em muitas outras áreas do conhecimento, muitos surgem em resposta a solicitações de várias instituições, estatais ou não, preocupadas com as questões sociais e vendo na família um “remédio” para muitos dos problemas que vão surgindo na sociedade.

Uma das questões mais sintomáticas a este propósito, é a designada crise do Estado-providência, pois que, perante esta, se faz cada vez mais apelo às solidariedades familiares, quando afinal esse mesmo Estado parecia ter oferecido ao indivíduo uma certa capacidade de autonomia em relação ao parentesco e à vizinhança. Afinal ao fazer apelo a uma “sociedade-previdência” quando o Estado-previdência reconhece não dispor de meios suficientes para continuar a garantir a sua função tradicional, na realidade parece confirmar-se é que quem continua a mobilizar-se é uma família-previdência, no que J. Arriscado Nunes (1995) designa por “solidariedades primárias”.

1.2.4. As metamorfoses da sociologia da família em Portugal

Aludindo, agora, ao percurso da sociologia da família em Portugal pode dizer-se que é pontuado por três etapas fundamentais.

a) O tempo dos percursores

P. Descamps (1935), membro do grupo de ciência social no princípio dos anos trinta, foi docente na Faculdade de Direito de Coimbra para

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ministrar um curso de ciência social. Nesse mesmo período foi convidado por A. O. Salazar, então Ministro das Finanças, para proceder a um estudo de cariz social, em forma de diagnóstico, sobre a sociedade portuguesa da época. Como este trabalho visava estudar as redes de solidariedade familiar em Portugal segundo a metodologia então adoptada, as monografias familiares, seria necessário proceder a uma investigação junto de algumas famílias.

Deste modo, a partir das sessenta e nove monografias levadas a efeito em várias regiões do país pelos “Le playsianos”, 16 das quais a sul do Tejo, P. Descamps identificou cinco formas de família:• a “família desorganizada ou instável” (uniões de facto) com maior

predominância nas classes operárias a sul do Tejo;• a “grande comunidade familiar”, mais predominante nas montanhas do

norte;• a “família tronco” com maior incidência no noroeste de Portugal;• a “família nuclear conjugal” e• a “pequena comunidade” (composta, em geral, por dois casais)

espalhada por diversas regiões do país.

Segundo K. Wall (1993), “a orientação geral de Descamps, incidindo sobre os elementos de estabilidade e de solidariedade das sociedades e das famílias, estava em consonância com a ideologia do Estado Novo que via na família a guardiã moral da sociedade”.

Importa, todavia, referir que estes trabalhos de investigação sociológica de P. Descamps foram de curta duração em Portugal, pois que, apesar de uma certa afinidade entre a ideologia do governo de então e a escola playsiana, por um lado, A. O. Salazar não deixava espaço para implementar os ideais reformistas de P. Descamps e, por outro, não estava interessado no desenvolvimento da sociologia em Portugal. Por conseguinte, foi necessário esperar pelos anos sessenta-setenta, sobretudo, a partir de 1974, para que a sociologia, em geral, e a sociologia da família, em particular, pudessem não só ganhar novo fôlego, como implementar a sua solidificação.

b) O tempo das inter-conexões e da procura

Ainda nesta fase, há a salientar que o desenvolvimento da sociologia da família acompanha, de perto, o desenvolvimento da sociologia em Portugal. Ambas são tributárias da conjuntura política, económica, social e cultural que então se vivia na sociedade portuguesa.

Tendo em conta o contexto político da época, não deixavam de se apresentar alguns limites a este propósito. Eram particularmente notórios, logo que se tratasse de recorrer, por exemplo, a teorias e análises de inspiração marxista ou outras similares. Com efeito, estava-se ainda longe de uma investigação que integrasse o trabalho de campo, permitindo, assim alargar a articulação entre conhecimento teórico-realidade empírica, o que, só a partir de 25 de Abril de 1974, atinge uma nova dimensão.

c) O tempo das estratégias de solidificação

Na UTAD, embora não exista esta disciplina de ensino, têm sido desenvolvidos vários trabalhos de investigação que abrangem domínios directamente relacionados com a família (M. Ribeiro, 1997, T. Bezerra, 1998.

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No que se refere à Universidade do Minho, por iniciativa da então direcção de curso, esta disciplina de ensino foi criada, no ano lectivo 1994-1995, primeiro enquanto cadeira de opção do curso de sociologia das organizações, tendo registado uma adesão significativa da parte dos alunos. Porém, com a reestruturação deste curso, que veio a dar lugar a um curso de sociologia com dois ramos de especialização, a partir do 3.º ano inclusive: sociologia das organizações e políticas sociais, a disciplina de sociologia da família foi introduzida, enquanto cadeira obrigatória, a nível do 3.º ano, neste último ramo de especialidade.

Convém, ainda, notar que, por aprovação unânime do Senado da Universidade do Minho, na sua reunião de 26 de Outubro de 1998, foi criado um mestrado de sociologia incluindo, entre outros ramos, o da família e solidariedades sociais.

1.3. A aborgadem sociológica do conceito de família

1.3.1. A ambiguidade da noção de famíliaA noção de família, sendo etimologicamente de origem latina, do vocábulo “famulus”, que quer dizer servidor, só no século XVII aparece com uma definição moderna, isto é, mais aproximada da dos nossos dias. Se desde então, até cerca dos anos setenta do século XX, este grupo e noção pareciam estáveis, o que aparentava fixar, de uma vez por todas, os contornos de um grupo e da concepção que lhe está associada, logo a realidade familiar e social, entrando em profundas mutações, parece dissipar as certezas.

Desta maneira, a família tem-se tornado uma noção polissémica, em virtude da diversidade das suas estruturas, formas de organização e representações. Estas, sendo múltiplas e tendo variado através dos tempos e das sociedades como bem refere W. Goode (1970), levam a família a constituir, por todo o lado, uma componente da estrutura social. Não obstante, apesar da variedade de formas e de sentido segundo D. Behnan (1992), as ideias clássicas, praticamente de forma estereotipada, apontam para dois grandes tipos de família: a nuclear e a alargada. A família tronco, por exemplo, seria uma variação entre estas duas modalidades de família.

Trata-se, em nosso entender, de uma visão um tanto ou quanto reducionista, uma vez que a história revela que a humanidade tem sido muito mais inventiva. A família do Génesis (2, 27-28; 3, 24) é nuclear conjugal. Em contrapartida, a família do Antigo Testamento é predominantemente poligâmica, ao passo que a do Novo Testamento, com o modelo da família de Nazaré, é nuclear conjugal.

Seja como for, a questão conceitual da noção de família permanece. Antes de mais, convém lembrar que, como bem o afirma C. Levi-Strauss, “a família tem uma natureza dual”. É da ordem do natural, uma vez que lhe é confiada, pela generalidade das sociedades, a reprodução da espécie e os cuidados da prole, normalmente até à idade adulta ou, pelo menos até à juventude. É da ordem do social, pois que toda a sua existência é pautada por um conjunto de regras que emanam da sociedade.

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Mais ainda, segundo o mesmo autor, sem sociedade não poderá haver família, dado que a lei do incesto, sendo universal, obriga a uma outra lei, a da exogamia, isto é, cada nova família, ao formar-se, deve procurar, numa outra que lhe é estranha, os elementos da sua constituição. Apesar da família não se confundir absolutamente com o casamento, pese embora a variedade de normas jurídicas e formas rituais que o mesmo possa revestir, o certo é que todas as sociedades distinguem as famílias casadas das que o não são.

Perspectiva idêntica encontramo-la em B. Bawin-Legros (1988) para quem o termo família é “familiar e ambíguo”, na medida em que, por um lado, sendo-nos tão próximo – aliás o termo familiar reenvia sempre a algo da ordem da evidência, do habitual e da intimidade – e de uso tão corrente, parece não precisar de qualquer definição, por outro, relaciona-se com a tal dupla dimensão biológica e social. Na verdade, enquanto os laços verticais asseguram a continuidade das gerações, a transmissão da filiação, dos nomes e do património, os laços horizontais permitem a dois indivíduos deixar a sua família para formar uma outra (Platão, Génesis, 2, 24), em alguns aspectos decalcada sobre as anteriores, ainda que as transformações tenham sido contínuas e muito mais profundas ao longo dos últimos decénios. Nesta óptica, poder-se-á dizer que a família é uma noção fragmentada: une separando e separa unindo.

De resto, segundo a mesma autora, todos temos uma família de origem e outra de orientação. Outros autores, entre os quais nos incluímos, utilizam outra terminologia, ou seja, uma família de orientação, a de origem, e uma outra de procriação, a que os próprios indivíduos formam, podendo esta não ser um decalque da primeira. Contudo, a dificuldade conceitual persiste, prendendo-se, exactamente, com a realidade biológica que, sendo universalmente reconhecida, não deixa de ser enquadrada pelas leis e costumes, ainda que estes se encontrem, actualmente, em profunda mutação e o sistema de representações em que se fundamenta, em virtude da organização económica, das crenças religiosas e outros universos de significação e das diferentes normas que lhe impõem certas peculiaridades.

Por exemplo, na Roma antiga, o termo família derivado do latim “famulus”, isto é servidor, abrangia uma realidade muito vasta que englobava o conjunto de pessoas vivendo debaixo do mesmo tecto, umas em função dos laços de aliança e de sangue e outras dos laços contratuais de serviço, tal o caso dos escravos e dos serviçais, mas também o património. Em suma, no direito romano mais antigo a família era constituída pelo conjunto de elementos pessoais e patrimoniais que viviam sujeitos à autoridade do “pater familias”. De alguns tempos a esta parte, regista-se um acordo comum entre historiadores, antropólogos e sociólogos, segundo os quais nenhuma forma de família é universal. Sendo assim, a noção de família poderá ser entendida como “... um estratagema que consiste em utilizar uma palavra simples e mítica, qual etiqueta cómoda para mascarar formações heterogéneas nas suas estruturas e funções materiais e simbólicas”.

Poderá dizer-se que a família, sendo formada por um grupo de indivíduos unidos pelos laços de aliança, de sangue, jurídicos e/ou religiosos, se eleva acima do biológico e do material mais imediato. É o espaço onde se desencadeiam os principais acontecimentos da vida

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humana: união, procriação, nascimento, partilha da vida e da morte, ainda que, tanto o nascimento como a morte, tendam a passar da casa familiar para o “nascimento-instituição e morte-instituição”, como sejam os hospitais, clínicas e lares da terceira idade, como bem refere L.-V. Thomas (1985, 1991).

Adoptando a definição de C. Levi-Strauss (1979), a família, como grupo social apresenta pelo menos três características mais ou menos comuns.

● Tem a sua origem no casamento.

● Compreende o marido, a esposa, os filhos nascidos dessa união e, eventualmente, outros parentes aglutinados a este grupo. Estes membros estão unidos por laços de aliança, de sangue, legais e/ou religiosos e obrigações de natureza económica, social, cultural ou ideológica.

● Possui ainda uma rede bem definida, quer pelas leis quer pelos costumes, de direitos e obrigações sexuais e um conjunto diversificado de sentimentos psicológicos, como o amor, a afeição, o respeito, a sujeição ou outros, incluindo os que decorrem dos constrangimentos sociais ou culturais.

Apesar de todas as sociedades distinguirem as famílias formadas através do casamento daquelas que o não são, não deixa de ser verdade que este facto sempre existiu e assume cada vez maiores proporções na sociedade contemporânea.

Pelo contrário, a definição de P. Laslett (1978), considerando o grupo doméstico como aquele que integra pessoas identificáveis por três aspectos – a localização, o funcional e o parentesco – parece corresponder melhor à realidade familiar do passado e do presente. Sendo assim, fazem parte do grupo doméstico os indivíduos que vivem em coabitação (localização), que partilham um conjunto de actividades, de elementos e de modos de vida (funcional) e que estão unidos por uma rede de laços que integram a consanguinidade e a aliança (parentesco).

Na família da Roma Antiga e da Idade Média, os serviçais eram parte integrante da família, o que não foi mais o caso com a família burguesa forjada nos séculos XVIII-XIX. O que se pode, então dizer, é que na noção de P. Laslett os três critérios evocados se revelam mais ou menos universais e de algum modo “atemporais”. Com efeito, toda a família ou grupo doméstico se define e organiza a partir dum espaço comum, obedece a um certo número de formalidades e funcionalidades e obedece a regras de definição, selecção e distinção dos parentes, com base no sangue, na aliança institucional ou de facto e no contratual, daqueles que o não são.

1.3.2. A família concebida à luz duma tipologia de laços

Era o casamento que, institucionalizando e fundamentando a família, oficializava a sexualidade e a procriação e garantia a estabilidade do grupo. Não deixa de ser verdade que, em todas as circunstâncias, são os laços de sangue que se impõem, ainda que o casamento religioso católico seja indissolúvel. Contudo, como afirma F. Queré (1990, 235), a

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aliança sendo firmada por um contrato entre os esposos, “... associa dois seres que existem sem a sua intervenção. Exposta aos humores, aos acontecimentos da vida, pode ser vilipendiada, omitida e até ser definitivamente revogada. Divorciar, abandonar, trair não é coisa rara.

É certo que as sociedades, estando conscientes do contraste existente entre estes dois laços igualmente constitutivos da família, mas com poderes bastante desiguais, pretenderam equipar a fragilidade da palavra com dispositivos que lhe conferissem objectividade e permanência: tal é o papel da lei que transporta a linguagem ao seu mais alto grau de realidade e obrigação”.

Mesmo assim, a realidade, mais recente e actual, tem vindo a evidenciar quanto esta disparidade é grande.

Numa perspectiva conceitual pode inferir-se que a família é formada por um conjunto de pessoas unidas por três tipos de laços: de aliança, de sangue e institucionais, isto é, exclusivamente jurídicos ou jurídicos e religiosos. Não é necessário, no entanto, que eles estejam, simultaneamente, presentes em todas as configurações familiares.

Tal é o caso de indivíduos que, mesmo não tendo qualquer laço de parentesco, decidiram partilhar o mesmo espaço habitacional e um certo número de serviços. Mas, há também a situação da família monoparental que decorre tanto do divórcio, da viuvez e de certos casos de e/imigração, como do fenómeno que, no passado, era designado de mãe solteira. No caso da união de facto estamos perante famílias onde os laços jurídico e religioso estão ausentes, mas prevalecem os laços de aliança e de sangue, logo que haja filhos. O laço de aliança poderá ser vivido de forma compartimentada no tempo, na medida em que se tem a ideia de que estas famílias têm uma duração mais precária, o que, frequentemente, é desmentido pela realidade dos factos.

Logo que se trate de novas configurações familiares decorrentes de rupturas conjugais anteriores, normalmente designadas de “famílias recompostas”, mesmo casadas, pode acontecer que os novos esposos não tenham filhos comuns, o que, em termos demográficos e de reelaboração dos laços paterno-filiais e fraternais, não é um fenómeno de somenos importância. Apesar disso, mesmo que estejamos em presença do primeiro caso, os laços de sangue não deixam de ter aqui o seu lugar: por um lado, entre aquele(s) que trouxe(xeram) os filhos consigo e, por outro, entre aquele, que não partilhando a habitação com os filhos do anterior casamento, lhes permanece vinculado por estes mesmos laços, independente da qualidade das relações que possa manter com eles. Aliás, numa dimensão relacional mais alargada e não apenas em termos destes laços peculiares, entre outros aspectos, o que caracteriza estas famílias é a rede de relações familiares que devem reinventar para poderem articular as anteriores e as actuais, como bem o fazem notar C. Villeneuve-Gokalp (1991), C. Martin e D. Le Gall (1997).

1.3.3. À procura dum conceito da família contemporânea

J. Kellerhals, P.-Y. Troutot e E. Lazega (1984), retendo apenas a família nuclear conjugal, aliás a estrutura mais difundida na contemporaneidade, dizem que esta “É hoje definida como a coabitação e a cooperação socialmente reconhecidas de um casal e dos seus filhos”. Por sua vez,

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Y. Castellan (1982) diz que a família pode ser definida como “Uma reunião de indivíduos, unidos pelos laços de sangue e vivendo sob o mesmo tecto, numa comunidade comum de serviços”.

Perante esta proliferação de formas e concepções familiares que, não sendo nova (M. Bloch, 1939, P. Laslett, 1972, F. Lebrunt, 1975, M. E. Leandro, 1995), tem vindo a ampliar-se e complexificar-se no interior das sociedades ocidentais contemporâneas, particularmente, a partir dos anos setenta, não parece correcto querer encerrar a família numa definição conceitual unilinear e muito menos estática. De resto, como bem o assinala M. Weber (1971, 374) “o conceito de família, cuja significação histórica é complexa, apenas é utilizável, quando é, caso a caso, claramente definido”. Com efeito, a família, no sentido amplo do termo, é o que há de mais ancestral na história da humanidade e o mais estável, mas também o que se modifica, actualmente, de maneira radical.

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2. Família e SociedadeNeste capítulo, num primeiro tempo, esforçamo-nos por colocar no seu contexto várias formas de família em civilizações bastante diferenciadas e, paralelamente, a dinâmica de que são portadoras através do tempo. Deste modo, são referenciadas algumas mudanças sociais que acompanham o devir da família nestas civilizações e nas sociedades que lhes estão associadas, embora numas sejam mais acentuadas que noutras. Porém, como dizia Buda, o que há de mais constante no mundo é a mudança.

De seguida, tentamos apresentar e analisar, em toda a sua complexidade, as condições económicas e sociais em que se foram forjando os grupos domésticos e as formas de família moderna e contemporânea nas sociedades ocidentais, desde o século XIX até aos nossos dias.

A partir da recente produção sociológica e antropológica sobre a família em Portugal e a sua inter-relação com outras produções do mesmo teor de âmbito internacional, será então chegada a ocasião de verificar e analisar os dados do INE, alguns elementos de natureza jurídica e religiosa e numa perspectiva longitudinal, a situação da família contemporânea em Portugal.

Finalmente pensamos que, independentemente das várias posições que se possam ter em todos os tempos e contextos sociais, ainda que nuns mais do que noutros, a família é objecto de controlo e normalização social. É o que procuramos estudar na última parte deste capítulo.

2.1. Perspectiva histórica da família2.1.1. A família na memória do tempo e do

espaçoA família, sendo uma instituição ancestral e universal, nem por isso deixa de integrar uma extrema diversidade, sendo esta tributária da pluralidade de culturas e sociedades existentes. Segundo C. Lévi-Strauss (1986, 14) “Quando se percorre o imenso reportório das sociedades humanas – de cerca de quatro a cinco mil – sobre as quais desde Heródoto se tem informações de desigual valor, o que se pode, no entanto, dizer é que a família conjugal parece ser a mais difundida em qualquer parte e quando esta estrutura se altera é porque se está perante sociedades onde se processa uma evolução social, política, económica ou religiosa particular”.

Sendo assim, desde tempos remotos que a família conjugal tem coexistido com muitas outras formas de família de índole associativa, patriarcal ou paternal, embora, por vezes, se tente fazer crer que a família conjugal resulta de uma evolução de formas de família mais ou menos primitivas e complexificadas, para uma mais perfeita que atinge o auge na família nuclear conjugal (E. Durkheim, 1975).

2.1.2. Fundamentos gregos e romanos da família

Na Grécia Antiga, contrariamente às concepções mais utópicas de Platão expressas em A República, segundo as quais uma polis sem família seria não só possível como preferível para o bom

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desenvolvimento político, Aristóteles, no primeiro livro A Política, preconizava a existência da família nuclear conjugal ligada a uma residência comum, embora com algumas particularidades em relação à época moderna. De facto, a oika ou oikos era formada por uma comunidade (koinomia), ou seja, a família que, em torno da casa, integrava três tipos de relações elementares:• senhor-escravo,• a associação marido-esposa e• os laços pais-filhos.Deste modo, esta tríplice relação conjugal integra igualmente a aliança entre os esposos, mas também uma outra de ordem contratual, de índole económica e política, o que não é o caso dos filhos, cuja relação decorre dos laços de sangue e dos efeitos que daí advêm, sob o ponto de vista económico, educativo, moral e afectivo.

Aludindo mais uma vez a Aristóteles, é a família que medeia as relações entre o indivíduo e a sociedade. Na verdade, só a família formada segundo as regras em vigor, isto é, a família nuclear formada pelos pais e os filhos (ainda que englobe também os escravos, estes são, considerados mais como objecto de serviço do que pessoa de direito familiar), concedendo aos atenienses o direito de cidadania, constitui uma estrutura basilar e intermédia, fundamental no conjunto da sociedade. Mais ainda, sendo nuclear, os cônjuges não têm necessidade de se adaptar às regras da família alargada (G. Sissa, 1986).

Perspectiva idêntica encontra-se na Roma do século II a. C., embora a concepção da família seja aqui algo diferente. Por exemplo, a mulher, esposa e mãe não tem aqui qualquer estatuto, em termos de cidadania, contrariamente à mulher casada ateniense, e a sua existência só tem razão de ser em função do “pater familias”.

Por extensão de sentido, a família chegou a designar os “agnati” e os “cognati” e a ser sinónimo de “gens”, pelo menos na língua corrente, ou seja, a família no sentido de um parentesco mais alargado.

Ao invés, a família medieval é bastante diferente da romana, tendo sido forjada, como o refere J. Goody (1985), pela influência do cristianismo. Este alicerça a família no casamento que, a partir do século XII, o direito canónico eleva à dignidade de sacramento indissolúvel, cuja matéria é formada pelo livre consentimento dos esposos.

2.1.3. A família nas civilizações árabe, chinesa, indiana e japonesa

Para uma configuração mais precisa das formas universais, importa ter presente outras modalidades de família, praticamente ausentes na civilização ocidental. Estão neste caso a família islâmica, a chinesa, a indiana e a japonesa.

Quanto à primeira, nos nossos dias, a forma de família poligâmica tem vindo a diminuir, mais por razões de ordem social e económica do que religiosas, que se prendem com uma dupla passagem progressiva: a do meio rural ao meio urbano e a de uma economia dos grandes domínios agrícolas a novas formas de organização económica mais moderna que deixam, por um lado, o pai chefe de família patriarcal com necessidade de menos braços para trabalhar os seus domínios e, por outro, sem

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meios para sustentar as várias casas familiares de que era chefe e responsável.

Detendo-nos ainda que sucintamente sobre a família chinesa , dir-se-á que esta sendo decalcada sobre o modelo de organização clânica, parecia estável no tempo, durante a vigência do regime imperial e, de certo modo, durante a República (W.Goode, 1970). Assim, se a organização doméstica propriamente dita era autónoma, na medida em que a estrutura de autoridade do clã não interferia directamente na vida do grupo familiar de tipo conjugal de pequena dimensão – 4 a 8 pessoas – (M. Cartier, 1986), não deixava de reflectir este tipo de organização social, pois que toda a vida social, económica, administrativa e cultural da aldeia gravitava em torno da administração clânica. Aliás, no conjunto, as famílias recebiam o sobrenome do clã a que pertenciam e a partir daqui eram estabelecidas as regras de exogamia. Todavia, com a revolução chinesa de 1949, no prazo de uma década, este tipo de organização familiar veio a ser abolido, para se adoptar e mesmo impôr um outro mais consentâneo com os valores da revolução e que, de resto, não se afasta, grandemente, da forma de família conjugal nuclear ocidental, embora tenha as suas próprias peculiaridades.

Quanto à civilização indiana a situação é bastante complexa, não só em termos de estruturas e de linhagem, predominantemente patriarcal e algo em consonância com a forma de família tronco de que falava F. Le Play. Está associada ao sistema de castas que, frequentemente, faz com que os grupos domésticos e as famílias sejam indivisos, isto é, cada indivíduo casa-se na sua casta e sujeita-se às próprias concepções acerca da família. Lembremos tão somente que o sistema familiar indiano integrando a monogamia contempla, também, a poliandria. Tal é o caso dos Nayar e dos Toda na Costa de Malabar e dos Pahari na região de Caxemira e do Nepal, embora os primeiros se organizem em torno de uma estrutura e linhagem matrilinear e os segundos de uma estrutura e linhagem patrilinear (W.Rivers, 1907). Por sua vez, os Pahari do Nepal praticam a poliandria de cariz sororal, isto é, uma mulher é, simultaneamente, esposa de um conjunto de irmãos.

Constata-se que, actualmente, apesar de todo o peso da tradição e de uma certa tendência para a reprodução social, de que o casamento endogâmico será o principal garante, é o modelo de família nuclear, entendida como uma unidade de residência e de consumo, que é predominante (R.Lardinois, 1986).

Quanto à família japonesa, contrariamente ao que se tem passado na civilização ocidental, a valorização do indivíduo só tem razão de ser enquanto sujeito de um grupo familiar e este do poder político (P.Beillevaire, 1986).

Uma digressão rápida sobre os modos de conceber a família nesta sociedade propiciará a oportunidade de verificarmos que não estamos perante uma realidade imutável. Constata-se que, progressivamente, a uma sociedade de tipo feudal, que parecia estável e sólida, onde predominava o sentido da primogenitura (chôshi sôzuku) e, por conseguinte, uma realidade comparável à forma da família tronco, perfilhada por F. Le Play, depositária e transmissora de vários tipos de património organizados em torno da casa (dôzuku), inclusive a unidade e relação com os mortos ascendentes, desde meados do século XIX vai sucedendo o passo à industrialização, o crescimento demográfico, as

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migrações e com eles a grande difusão da família nuclear conjugal, sem que esta tenha sido uma emanação daquela. Ademais, com a forte industrialização e urbanização que se tem feito sentir nesta sociedade, por vezes, os valores da modernidade em termos de sucesso e as consequências individuais e solidariedades familiares inter-geracionais que daí advém são vividos acerrimamente.

Sem sair do âmbito da perspectiva histórica e a lista poderia alongar-se se nos fosse possível registar a grande diversidade de formas organizativas da vida doméstica e familiar, diga-se que ao longo dos séculos e nas mais variadas circunstâncias, no interior das diferentes sociedades, a humanidade sempre se mostrou muito inventiva no que se refere à elaboração da diversidade de estruturas e formas familiares.

2.1.4. A perspectiva sócio-histórica e antropológica

Continuando a ver as coisas com o andamento da história, não podemos deixar de nos referir ao contributo sócio-histórico e antropológico de L. Morgan (1974), para quem a propriedade desempenha um papel fundamental na passagem da família de formas mais alargadas, para outra mais conforme aos tempos modernos, embora estes, na sua perspectiva, possam dizer respeito a um passado muito mais recuado que os séculos XVII-XVIII. Assim, salienta o sentido primitivo do vocábulo família, derivado do latim “famulus” que, com o tempo, foi investido da significação de lar-património e não de descendência e parentesco que estavam associados a “gens”.

Na civilização euroasiática, a acumulação do capital e com ele o aumento da propriedade, ou seja, do património familiar, era muito mais provável que na civilização africana negra. Ora, a organização familiar, nos seus processos de transformação diferenciada no tempo e no espaço, não é alheia a estes fenómenos.

Seja como for, o que se pode dizer é que, com o decorrer do tempo e das transformações sociais que têm acompanhado as diversas sociedades, estes círculos familiares têm variado de dimensão, de estrutura e até de algumas funções e representações sociais. Mas também não é menos verdade que, em qualquer época e nas diferentes sociedades, embora possa ter existido e exista ainda uma forma de família predominante, se constata uma coexistência de formas e estruturas familiares diversificadas, tendo, no entanto, alguns elementos comuns, como sejam a coabitação, a funcionalidade, a existência de laços de aliança, de sangue e institucionais ou contratuais.

Várias formas e estruturas familiares têm sido inventadas e praticadas através dos tempos.

Para Confucius, embora não isento de algum pendor familialista, a sociedade seria próspera e feliz se todos se portassem correctamente, como membros de uma família. Em sentido análogo, Pitágoras dizia: “Educai as crianças e não será necessário castigar os Homens”.

Todavia, é importante referir que, entre os vários sentidos que a noção de família possa ter, designadamente em relação às estruturas que lhe dão forma e aos papéis desempenhados no seu interior, um parece comum: o grupo doméstico, ao referir-se ao grupo familiar de residência,

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faz referência à história das várias formas de família, chegando a incluir, num passado ainda recente, os serviçais que trabalhavam e coabitavam com os outros elementos ligados pelos laços do parentesco2.

Inversamente ao que pensam alguns antropólogos e sociólogos do século XIX que se interessaram por estes assuntos, a família conjugal, fundamentada no casamento, não é o resultado de uma evolução unilinear ao longo da qual a família, partindo de um vasto clã exógeno amorfo, se teria contraído à medida que o meio social envolvente se estendia (E. Durkheim, 1975).

Estes estudos permitem dizer que a família nuclear conjugal é dominante desde a Idade Média numa grande parte da Europa do norte e do nordeste. Na Europa central e meridional, este modelo é menos difundido, contrariamente à família tronco (M. Bloch, 1939, P. Laslett, 1969, F. Lebrun, 1975, W. Shorter, 1975). Ainda assim, no interior desta, normalmente, um casal progenitor e a sua prole são sempre identificados.

Segundo F. Lebrun (1975, 58), “Na Gália romana, a família conjugal é de regra até às últimas invasões do século IX, que vêem em simultâneo a decadência do Estado, a implementação do feudalismo e, por consequência, o ressurgir da família alargada, como meio suplementar de protecção ... A partir do século XIII, o fortalecimento do Estado – e os progressos da segurança que daí decorrem – conduzem à contracção da família extensa”.

2.1.5. O olhar socio-histórico sobre a família em Portugal ao longo do século XX

Em Portugal, os estudos de L. Poinsard (1910), de J. Fontes (1918) e de P. Deschamp (1935, 1959), empreendidos entre 1909-1934, também detectaram diferentes modalidades de grupos domésticos. Este último fala de cinco formas de família:• a família “desorganizada e instável” (ou união de facto) dominante

entre os assalariados agrícolas ao sul do Tejo;• a “grande comunidade” (composta por vários casais e um grande

número de parentes co-residentes) nas montanhas do Norte;• a família “tronco” no Noroeste;• a família de “casal simples” e• a “pequena comunidade” (composta em geral por dois casais),

existentes em diversas regiões do país (K. Wall, 1993, 1000).

________________________________2 Para dar uma ideia das mudanças que têm existido em relação à inclusão-exclusão dos serviçais na noção de família, basta dizer que esta última foi, sobretudo, implementada no século XVIII-XIX, por influência da família burguesa que, então, se solidificava. Com efeito, dando cada vez mais importância à intimidade familiar, em contraste com a família do Antigo Regime, os serviçais vão sendo relegados para um espaço à parte, quer no que toca ao lugar das refeições, quer da dormida.

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2.2. O grupo doméstico nas sociedades modernas e contemporâneas

2.2.1. A noção de grupo domésticoA realidade mostra-nos que o grupo doméstico é bastante diverso de uma sociedade, de uma região e de uma época para a outra. Não obstante, patenteia sempre dois pontos comuns:• independentemente da sua dimensão e estruturas, é o lugar onde,

pelo menos aparentemente, se tecem os laços mais intensos entre os sexos e as gerações;

• é formado por um grupo de pessoas que, para o melhor e para o pior, partilham o mesmo espaço de vida.

Por isso, tal como o refere M. Segalen (1986) a noção de coabitação e de residência comum é essencial neste domínio. Ao mesmo tempo, é o espaço de reencontro, de partilha de serviços, de consumo, de comensalidade, de convívio e até de conflitos que cada um tem a resolver com os outros e, porventura, da indulgência que daí advenha. É o espaço de dificuldades e de (des)enredos com que, todos e cada um, provavelmente, terão que se defrontar, mas também onde cada um projecta as suas esperanças e sonhos de ser feliz, de reconhecimento recíproco e de construção da sua própria identidade.

Embora na maioria dos casos, família e grupo doméstico tendam a confundir-se e a serem sinónimos um do outro, na realidade nem sempre as coisas são assim tão claras. Na terminologia francesa recorre-se, frequentemente, à noção de ménage (tal o caso dos recenseamentos do INSEE) e de grupo doméstico. A primeira, sendo mais limitada que a de grupo doméstico, reenvia, essencialmente, para o laço conjugal: “le jeune ménage”. Nesta óptica, o “ménage” em sentido lacto, sendo constituído pelo pai, a mãe e os filhos identifica-se mais com o conceito moderno de família conjugal e forma, simultaneamente, um grupo doméstico.

A este respeito, no essencial, poderá dizer-se que nem todos os grupos domésticos se confundem com família no sentido da concepção que acaba de lhe ser atribuída e inversamente, pelo menos em permanência. A mesma família nuclear conjugal pode estar repartida em dois ou mais grupos domésticos revestindo estes composições variadas mais ou menos fragmentadas: mâe e filhos no país de emigração, pai ou mãe sozinhos no país de imigração ou pai ou mãe e filho(s) no país de imigração, pais no país de imigração e filhos no país de emigração em companhia dos avós, dos tios ou outro familiar ou ainda em algum internato (M. E. Leandro, 1993, 1995).

De resto, se a maioria dos grupos domésticos são constituídos apenas por um casal e os seus filhos, outros podem integrar vários casais e a sua prole. Tal é, por exemplo, o caso da família alargada e da família complexa, o que é menos frequente.

O que se pode, então, dizer é que neste espectro de formas e onde as fronteiras são diluídas, as noções e as respectivas delimitações tornam-se, frequentemente, opacas. Não é por acaso que quando se querem evocar sentimentos e relações mais profundos com alguém, em sentido figurado, se recorre, frequentemente ao léxico familiar, tanto de índole

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paterna como fraterna: é para mim como um pai, uma mãe, um irmão. Acrescente-se que, precisamente em França, M. Barthélemy, A. Muxel e A. Parcheron (1986), no seguimento de um inquérito, a uma população com mais de 15 anos, de cariz evocador: “Se vos falar de família...”, concluíram que para 98% dos inquiridos a regra continua a ser a de um casal com filhos.

Em suma, a “sociedade doméstica” é uma comunidade que assegura as necessidades regulares da vida quotidiana dos familiares, tanto em bens como em trabalho.

Tendo em conta todos estes aspectos em termos muito gerais, poder-se-á dizer que, apesar da predominância desta ou daquela forma de organização familiar, nas sociedades modernas foi-se sempre verificando a coexistência de várias formas de família e grupo doméstico, tendendo a associar uma e outro.

2.2.2. O grupo doméstico associado à família alargada

Frise-se que a “família alargada”, segundo a definição dos historiadores e antropólogos do Cambridge Group, se define, em geral, por um grupo que, para além de um casal simples, integra, também, outros casais e parentes solteiros, podendo estes ser ascendentes, descendentes ou colaterais. Assim, uma família alargada será ascendente no caso dos membros suplementares que a integram pertencerem a uma geração mais velha que a do chefe de família. Ao invés, será descendente se os outros membros que a integram pertencerem a uma geração mais nova do que a do chefe de família. Mas poderá ainda ser colateral se integra elementos advindos à família por esta via (F. Lebrun, 1975).

Uma das principais características desta forma de família é a de corresponder às necessidades sociais e económicas essenciais dos membros do grupo. Daí que tenda a difundir-se quando o Estado e as suas instituições têm menor capacidade de resposta para certas solicitações sociais dos indivíduos, como meio de protecção suplementar e, inversamente, quando o Estado reforça o seu poder e os progressos da segurança se fazem sentir F. Lebrun diz que esta situação era frequente na Idade Média, em virtude do regime feudal que favorecia o enfraquecimento do Estado.

Esta posição tem sido corroborada pelos estudos dos historiadores da escola dos Annales, do Cambridge Group e do grupo da demografia histórica através do método Henry, isto é, a reconstituição dos grupos familiares através dos registos paroquiais desde o século XVII (entre outros J. Dupaquier, 1979; N. Amorim, 1987).

Ora, sobretudo, para os grandes e até médios proprietários, quanto maior fosse a família maior seria a mão-de-obra disponível. Mas é raro que as estratégias familiares obedeçam, puramente, à racionalidade económica. Por outro lado, é importante não esquecer que um certo mecanismo de inércia, decorrente da instituição e do peso do sistema de valores vigente, que não tinham, de modo algum, uma dinâmica idêntica à dos nossos dias, contribuía para a manutenção destes sentimentos familiares.

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Refira-se, no entanto, que nos séculos XV-XVI, o desenvolvimento é bastante desigual no conjunto da Europa. O que se pode então dizer é que foi durante o período considerado que se consolidou a oposição entre um modelo nuclear, largamente predominante, na parte norte ocidental e uma maior frequência das formas de família alargada ou complexa no resto do continente. Mas, não foi este surto de desenvolvimento que a criou. A natureza das fontes estatísticas disponíveis acerca das estruturas familiares, o seu carácter lacunar, mas, por vezes, também a falta de vontade em romper com a ideia de uma trajectória linear e uniforme da família alargada à família nuclear, fazem com que seja difícil discernir, por enquanto, o que mudou nas formas de organização familiar da Europa na época moderna (J. Casey, 1989).

2.2.3. O grupo doméstico associado à família tronco

Entre outros aspectos, a família tronco distingue-se das anteriores pela natureza das relações de poder e pela presença de um menor número de casais coabitantes, pois nunca ultrapassa dois, podendo integrar alguns colaterais como é o caso dos irmãos solteiros ou até dos deficientes. Assim, é o casal mais velho que exerce a autoridade, até que proceda à sua transmissão ao herdeiro, normalmente, o filho varão mais velho que, por sua vez, deverá assegurar a continuidade do grupo e do património que o legitima. Não obstante, o pai, como autoridade patriarcal, pode fazer recair esta escolha num outro filho, o que não era prática frequente.

2.2.4. O grupo doméstico associado à família conjugal e monoparental

Normalmente, este grupo vive em residência neolocal e é independente dos outros membros do parentesco, ainda que as relações inter-familiares, a este nível, contrariamente ao que dizia T. Parsons e R. Balles, nunca tenham deixado de se verificar (A. Girad, 1964; A. Michel, s. d.; C. Gokalp, 1987).

Diga-se ainda que, apesar da sua antiguidade e embora nem sempre reconhecido como grupo doméstico equivalente a uma família, outro grupo nuclear em grande difusão, frequentemente em virtude de anteriores rupturas familiares, é o que decorre da família monoparental.

2.2.5. Os grupos domésticos decorrentes da comunidade tácita e da zadruga

As “comunidades tácitas”, datadas da Alta Idade Média, emergem, regularmente, em circunstâncias sociais e económicas particulares, mais relacionadas com as formas de vida rural e economia agrária. Porém, não era uma forma de grupo doméstico muito difundido. Este termo designa, simultaneamente, um grupo doméstico particular e um território agrícola comum. Sendo assim, o património é indiviso e todos devem contribuir não só para a sua preservação como para o seu aumento.

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No que se refere ao exercício da autoridade, pode dizer-se que, de alguma forma, emerge de uma prática democrática de eleição do detentor da autoridade perante o grupo, pois que os membros votantes elegiam, entre si, um chefe, muitas vezes o mais velho, em todo o caso, um homem a quem a idade conferisse experiência. O mesmo acontecia com a mulher que nunca poderia ser a esposa ou parente próxima do homem eleito, que governaria as outras mulheres, o conjunto das filhas e as orientaria em função da preparação para o casamento.

Quanto aos casamentos, eram concebidos em função da preservação do património. Deste modo, ou eram endogâmicos ou então um grupo de irmãos casaria com um grupo de irmãs de um outro grupo doméstico do mesmo género, o que salvaguardava a unidade do património.

O poder da mulher da “Zadruga” na Jugoslávia, era menos reconhecido. O casamento é neste caso, de carácter exógeno, ou seja, entre pessoas de diferentes “zadrugas”.

Tratou-se de uma forma de grupo doméstico que, por razões idênticas às da França, teve o seu “terminus” de maneira que o grupo doméstico de natureza simples se foi tornando predominante (E. Sicard, 1943).

2.2.6. Considerações geraisPor todas estas razões podemos continuar a afirmar que as formas de grupos domésticos, embora de dimensão e estruturas diferentes, coexistindo no tempo e no espaço, ainda que algumas tendam a ser mais prevalecentes que outras, são tributárias das formas de organização social, económica e cultural de qualquer sociedade. Na opinião de M. Segalen (1986, 41), “A dimensão mais do que a estrutura do grupo doméstico é interessante porque é reveladora de uma certa forma de organização, regularizando a transmissão das práticas e dos valores culturais, articulando família e trabalho, família e poder, família e haveres”. A interacção familiar é particularmente notória no que se refere à articulação entre o grupo doméstico e a actividade produtiva, o sistema da herança, as influências culturais e religiosas e as representações sedimentadas através dos tempos.

A situação é hoje bem diferente, designadamente, em todas as sociedades que foram influenciadas pelo cristianismo e pela própria civilização europeia ocidental.

2.3. A família na sociedade contemporânea2.3.1. Entre a economia e a famíliaDoravante, é o salário que deve assegurar a subsistência do grupo doméstico e não tanto a economia agrária de subsistência. Sendo assim, cada vez mais homens e mais mulheres vendem a sua força de trabalho, em troca de um salário.

De facto, como refere K. Marx (1978, 182-183), “O que distingue uma época económica da outra, é menos o que se produz do que o modo de produzir ... Efectivamente, os meios e os modos de trabalho são o encadeamento dos patamares do desenvolvimento do trabalhador e expõem as relações sociais em que trabalha”.

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Aliás, a este respeito, o que acontece nesta nova época é que, entrando nas rodagens do capitalismo, contrariamente ao que se passava na exploração agrícola familiar, os trabalhadores estão cada vez mais separados dos meios de produção, que se tornam agora propriedade de um patrão com quem eles passam “a comercializar” o seu trabalho em troca de um salário. Rompe-se, desta maneira, com uma forma de contrato feudal entre servo e senhor, onde o elemento produtivo retirado directamente da terra e o laço de protecção-vassalagem era crucial, para passarmos a outra caracterizada por uma relação mais racionalizada e monetarizada entre patrão-operário-proletário. Mas, em termos de relações operários-operárias, é interessante observar que a mão de obra feminina, sendo mais mal paga e, por vezes, mais adestra no exercício de certas profissões, se, por um lado, não deixaria de contribuir para o aumento da produtividade, por outro, tornava-se uma concorrente da mão de obra masculina, o que mobiliza os sindicatos da época neste combate.

Podemos juntar a estas preocupações a do patronato capitalista, pois que a mortalidade infantil entre a classe operária, sendo elevada, comprometia a reprodução desta força de trabalho, a do corpo médico e grupos filantropos que, privilegiando a mãe como principal aliada, iam desenvolvendo campanhas higienistas e de mentalização no combate às doenças de índole infecto-contagiosa que abrangiam tanto as crianças como os adultos, assim como a da burguesia e da Igreja católica em favor da familiarização da classe operária, segundo as suas regras (J. Donzelot, 1977; J. Chevalier, 1978).

Seja como for, nem por isso o capitalismo, contrariamente a qualquer outra forma de sistema económico, deixou de abrir uma brecha na esfera privada e no caminho de emancipação da mulher. Ao aceder ao trabalho profissionalizado, no caso à condição de operária, a mulher passa a ficar menos confinada à autoridade e dependência do homem, pai ou marido, ainda que passe a depender de um outro homem, o patrão. Porém, neste caso, a relação de autoridade-dependência diverge da anterior, na medida em que, sendo monetarizada, passa a ser orientada pela lógica da relação empregador-empregada.

Foi sobretudo, o espaço salarial que ofereceu à mulher profissionalizada a possibilidade de deixar de estar confinada ao espaço doméstico, de aceder a outro tipo de relações sociais e familiares, bem como a outras prerrogativas e, porventura, a algumas desvantagens. Contudo, como se tratava de trabalho e não de emprego remunerado, esta participação da mulher na economia familiar – para não falar também da importância e valor do trabalho doméstico, em termos de ganhos palpáveis para a economia nacional – era soberbamente ignorada.

Todas as considerações que possam ser desenvolvidas, a propósito das consequências desta mudança de posição da mulher perante o trabalho, o salário e a família, que se intensificaram, sobretudo, após a segunda guerra mundial, ainda que em Portugal o movimento seja, particularmente, notório a partir dos anos sessenta, revelam que se trata de um facto social primordial no processo de emancipação e de respeito pela dignidade de mais de metade da humanidade que, até então, vivia praticamente na dependência da outra metade: a do homem, marido, pai, provedor de bens e/ou salário e chefe patriarcal da família.

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2.3.2. A mulher e a família a caminho da sociedade do emprego

No total, no interior da União Europeia em 1993, a taxa de população activa, entre 25-49 anos, era de 94% para os homens e 68,5% para as mulheres. Se é verdade que há ainda uma certa distância, pelo menos em alguns países, tende a diminuir ou até a aproximar-se, como é, por exemplo, o caso da Suécia: 90,0% e 87,1%, respectivamente. Em Portugal a mesma relação é de 85,3% e 75,1%, ao passo que na Irlanda e na Espanha, é de 92,0% e 53,7% e 93,7% e 55%, respectivamente.

Porém, as coisas tendem a ser diferentes logo que se trate do trabalho a tempo parcial. Assim, ele é mais elevado na Holanda: 66,0%, seguida do Reino Unido: 44,3%, da Suécia: 43,4% e menos elevado na Grécia: 8,0%, seguida da Finlândia: 11,1%, de Portugal: 12,1%, da Itália: 12,4% e da Espanha: 15,2%. Se tivermos em conta a relação homens/mulheres, as distâncias são menos elevadas na Finlândia: 5,7% e 11,1%, seguida de Portugal: 4,7% e 12,1% respectivamente. No total dos países da União Europeia, a média é de 4,8% para os primeiros e de 30,5% para as segundas.

Assinale-se que, em ambas as situações que acabam de ser indicadas, a distância diferencial, tende a reduzir-se, mesmo se mais dilatada no último caso. Em termos geográficos, denota-se que a taxa de actividade profissional feminina, tanto a nível global, como comparativamente com os homens, é mais elevada nos países do norte e do centro, com excepção da Irlanda em relação ao norte e de Portugal no quadro dos países do sul. Comparativamente, é nos países do norte, com excepção da Finlândia, que a distinção é maior: 49,9% da Holanda seguida dos 35,3% da Suécia e os 5,4% da Finlândia.

2.3.3. Factores de índole política e culturalRecuando no tempo, quanto ao primeiro, é inegável que as revoluções políticas da modernidade dos finais do século XVIII, tanto na América como em França, bem como, posteriormente, noutros países, como por exemplo, em Portugal no princípio do século XIX, preconizavam um ideal de igualdade e de liberdade. Doravante, o fundamento não é mais a lei divina advinda dum Deus omnipotente, mas a lei humana, baseada em fundamentos racionais e perante a qual todos são livres e iguais. Ora, a mulher que, normalmente, durante séculos foi desprovida de direitos cívicos e sociais, chegando até a pôr-se a questão se era dotada de alma como os homens (P. Darmon, 1983) vai, progressivamente, conquistando a sua autonomia e capacidade de afirmação.

Este factor revela-se de importância crucial, uma vez que, revolucionando profundamente a maneira de conceber a sociedade, as suas estruturas e as relações entre elas e as pessoas, ainda que as estruturas tradicionais paternas não sejam grandemente abaladas nesta época, reforça a representação da singularidade dos indivíduos. Este vigoroso reforço aproveita de sobremaneira às mulheres, na medida em que eram as que estavam mais afastadas destas prerrogativas.

Porém, é, sobretudo, nos anos sessenta-setenta deste século que o mesmo atinge o seu apogeu (E. Sullerot, 1977, A. Michel, 1978). Mas não de somenos importância é a mudança simultânea, nesta época, das

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leis jurídicas e das descobertas científicas ligadas, designadamente, ao campo da biologia e da medicina que constituem autênticas revoluções biológicas.

Com efeito, as primeiras tendem a ajustar-se às transformações e às práticas sociais em curso, se bem que seja sempre difícil responder à eterna questão das respectivas influências dos costumes e das leis nas mudanças que se vão operando nas sociedades. Mas não deixa de ser verdade que, sobretudo na segunda metade do século XX, são, por vezes, o social e as práticas que lhes estão associadas, marcados por um ritmo vertiginoso de mudança, que parecem impelir as leis a modificarem-se. Contudo, vale a pena assinalar que, contrariamente a um passado muito recente, o Estado, sem deixar de regular os requisitos da família institucional, imiscui-se menos na regulamentação dos comportamentos familiares, ainda que, ao invés, seja insistentemente solicitada a sua intervenção em matéria de ajuda política e social da família.

2.3.4. As descobertas científicas e os seus efeitos nos comportamentos familiares

A reprodução depende hoje essencialmente da mulher, o que contrasta com os tempos em que era mais o homem que ditava as regras do jogo a este propósito. Claro que, essencialmente por razões culturais e até de condição social, mesmo no interior das sociedades ocidentais, verificam-se ainda alguns focos de resistência a este respeito (P.Remoaldo, 1993), designadamente, quando está em causa o controlo do homem sobre a mulher e as representações a este respeito ou ainda quando continua a verificar-se a força de certas ideologias e projectos natalistas. O que se pode dizer é que, sendo bem simples na aparência, na realidade a questão é bem mais complexa.

Na verdade, é incontestável que a família da sociedade contemporânea é cada vez menos prolífera, situando-se o ideal num ou dois filhos e, neste caso, preferencialmente, um rapaz e uma rapariga. Ademais, o sonho do casal de filhos, na linha do prolongamento do casal que são os pais, concorre, frequentemente, para a formação de um certo imaginário social que, a este nível, se torna extensivo a todos os grupos sociais, ainda que muitos casais optem, hoje, pelo filho único ou no máximo dois.

Todas as taxas de fecundidade nas sociedades ocidentais atestam esta realidade. Em 1988, a média era de 1,59 nos países da União Europeia, contra 1,45, 10 anos depois. Para Portugal, esta relação é de 1,62 e 1,46, respectivamente (EUROSTAT, 1997). Estamos, portanto, perante índices de fecundidade que não asseguram, sequer, a renovação da população, pois que, para o efeito, seria necessária uma taxa de 2,1, situação que, actualmente, na União Europeia, só se aproxima na Dinamarca, Finlândia, Irlanda, Noruega e Suécia, ao invés, dos países mediterrânicos e setentrionais.

A Organização das Nações Unidas, não prevendo a alteração deste forte contraste, considera só ser possível atenuar os efeitos deste fenómeno através da abertura das fronteiras à imigração, por parte dos países do norte, que receberiam, assim, parte de excedentes de população dos países do Sul.

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Seja como for, a realidade familiar e o modo como os diferentes actores aí se investem é, nos nossos dias, bem diferente de um passado recente, graças ao concurso da ciência, da técnica e à mudança das mentalidades. Porém, uma coisa é certa: todo este conjunto de elementos de mudança vai contribuindo aos poucos, embora com momentos mais intensos do que outros e com diferenças substanciais quando se tem, em conta as sub-regiões, os grupos sociais e a escolarização, para que a mulher, à semelhança do homem, entre num processo de crescente individuação e se afirme diferentemente na sociedade contemporânea.

2.3.5. As influências culturais na ordem do diaImporta lembrar que, logo que a cultura com os seus grandes sistemas de valores que constituem um suporte simbólico e dão força e coesão a esta ou àquela atitude, entram em profunda mutação, geralmente, perdem algo do seu impacto na regulação dos comportamentos individuais, familiares e sociais. Foi assim desde todos os tempos, por exemplo, com a queda do Império Romano e a implementação da civilização cristã no Ocidente, a passagem do Antigo Regime às sociedades modernas e continua a ser assim nos nossos dias, com particular destaque dos anos sessenta a esta parte.

Simultaneamente, a religião e a Igreja com a família e a escola, tradicionalmente as principais instâncias socializadoras, vão sendo atingidas neste seu predomínio, ou seja, de agentes de transmissão inter-geracional quase exclusivas, passarão a ser umas entre muitas outras confessionais ou não (partidos políticos, sindicatos, associações, “mass media”, grupos de pares, turismo, migrações internas e externas, informática, seitas, movimentos sociais, conjuntos musicais, entre outros), mas que conjuntamente, quiçá, algumas em oposição, influenciam, doravante, os novos valores sociais e a sua transmissão inter-geracional. Estes são, agora, de outra ordem, mais direccionados para o material e para o imediato e, por conseguinte, muito mais efémeros e mutantes.

É, pois, à luz deste turbilhão de mudanças culturais que convém olhar a realidade familiar contemporânea.

Tendo em conta estes aspectos, importa começar por olhar as mudanças operadas em matéria da escolha do cônjuge. É no século XIX que se esboçam as grandes tendências de mudança neste domínio. Até então e ainda durante um certo tempo, era corrente a prática dos casamentos arranjados, ou seja, os grupos sociais proprietários, tanto burgueses e aristocratas, como camponeses, persistiam numa prática tradicional que consistia no casamento de duas pessoas e dos respectivos patrimónios familiares (P.Bourdieu, 1976). Na perspectiva de N. Luhmann (1990, 165-166), “A família era, antes de mais, concebida como uma unidade que subsistia à renovação das gerações e, por isso, era inconcebível deixar realizar livremente as uniões que viriam a fundar novas famílias mas, ao contrário, a sua concretização deveria ser controlada em nome da reprodução da família”. De algum modo, só no interior das classes proletárias e de outros grupos sociais desprovidos de bens patrimoniais para salvaguardar, havia alguma margem de manobra para a escolha mais ou menos individualizada e, porventura, amorosa, do cônjuge, ainda que esta fosse também endogâmica. Importa,

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contudo, sublinhar que as condições de então eram bem diferentes dos nossos dias.

Mas os caminhos entreabertos pelas mudanças em curso abalam as mentalidades, a este respeito, não fora o século XIX, por excelência, a centúria do romantismo de que o século XVIII havia sido um forte precursor. Na concepção de alguns autores que, aliás, não são desmentidos pelas práticas sociais familiares, esta ideia constitui, ao mesmo tempo, a força e a fraqueza da família, logo que se trate de ruptura e/ou perseverança.

Sabe-se que, no passado, na relação entre o indivíduo e o grupo familiar, prevaleciam os interesses deste último, como aliás no que se refere à sociedade. Deste modo, estava assegurada a continuidade-reprodução das gerações, que se sobrepunha aos interesses mais imediatos do indivíduo e a predominância da vontade sobre os sentimentos.

E. Durkheim, em 1888 e 1892, dizia que a família moderna era relacional e tinha menos horizonte inter-geracional, precisamente, porque valorizava mais as relações do que a reprodução patrimonial, uma vez que a industrialização da sociedade e, por conseguinte, o trabalho assalariado conferiam mais independência ao indivíduo, em relação à parentela e à vizinhança.

Tentando esclarecer um pouco melhor esta margem crescente de autonomia individual até aos nossos dias e a sua relação com a escolha do cônjuge e a endogamia, vale a pena insistir que esta continua a ser a regra, apesar de uma menor interferência-imposição familiar. Só que, como o refere P. Bourdieu (1989), ao longo dos últimos tempos, a natureza do património mudou, isto é, deixou de ser, sobretudo, de índole económica para passar a ser de cariz cultural.

2.3.6. A família contemporânea e a sua relação com a escola

Como começou por observá-lo E. Durkheim, ao invés do capital económico, o capital cultural é incorporado, o que significa que nem sempre oferece total garantia de transmissão e reprodução. P. Bourdieu (1989, 390) considera que “Da mesma maneira que as estratégias de escolarização são os resultados das estratégias de fecundidade, que antes de mais são tributárias das exigências de investimento escolar, as estratégias matrimoniais, sem sombra de dúvida, não são independentes das estratégias escolares e em âmbito mais alargado, do conjunto das estratégias de reprodução”.

Para conseguir um futuro melhor para os filhos, mobiliza vários esforços que gravitam, essencialmente, à volta de uma ética do esforço que compromete, igualmente, pais e filhos, com particular destaque para a mãe e do recurso a explicações suplementares, embora os grupos sociais mais desfavorecidos, frequentemente até por razões económicas, sejam os menos propensos em adoptar estes comportamentos.

Mas interessa relevar que em Portugal, 40% dos alunos universitários, no ano lectivo 1997/1998, eram oriundos de grupos sociais de condição social modesta. O caso dos portugueses em França, a partir dos anos oitenta e dos árabes, um pouco mais cedo, também não é menos significativo a este respeito (Z. Zéroulou, 1998; M. E. Leandro, 1995,

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1998). O que se pode então dizer, parafraseando P. Bourdieu e F. De Singly, é que a família contemporânea adopta, insistentemente, estratégias de mobilização educativa, visando dotar os filhos, rapaz ou rapariga, de um capital escolar que lhes permita aceder a uma profissão e estatuto social mais valorizados.

Em suma, é a própria família de orientação que prepara a autonomia e independência dos filhos, tanto para antes como para depois de formarem a sua família de procriação, o que se inscreve perfeitamente nos grandes valores da modernidade: racionalização, separação das instituições e valorização do indivíduo em si mesmo, de modo a fomentar a sua autonomia e capacidade de intervenção.

Neste sentido, no que diz respeito à distinção dos comportamentos parentais em função do sexo, é interessante sublinhar que está ultrapassado o tempo em que a educação escolar mais prolongada, com particular destaque para o ensino superior, era mais direccionada para os rapazes. As mulheres tal como os homens, acedem aos mesmos graus de ensino e, ainda que algumas continuem a encaminhar-se, preferencialmente, para as designadas áreas “feminizadas”, outras, também, à medida que o sistema institucional escolar e alguns ramos do mercado de emprego se abrem aos novos ventos da mudança, conseguem romper com tabus ancestrais, enveredando por percursos escolares e profissionais que, até há bem pouco tempo, lhes eram vedados.

Ainda aqui, o tempo mais recente, conjuntamente com as transformações sociais, políticas e culturais em curso, joga em favor da individualização e da individuação, tento em termos familiares, como individuais, no sentido literal do termo, e a qualidade do diploma escolar, pelas perspectivas que abre ou que, inversamente, bloqueia, não é alheia a este fenómeno. Senão vejamos: são os indivíduos, homens ou mulheres, com diplomas escolares mais qualificados que têm, normalmente, melhores condições de acesso a empregos mais valorizados, a níveis culturais mais elevados e, portanto, a melhores condições de conquista da sua autonomia, um aspecto que tem vindo a ser enaltecido e procurado de modo incessante, ainda que, diferentemente, em função dos níveis económicos, sociais e culturais.

2.3.7. As imbricações sociais e familiares: a razão e o amor

É claro que a relação entre estas instâncias se transformou profundamente. Contudo, o espírito do nosso tempo dá muito mais importância à autonomia individual e à qualidade das relações, valorizando, acima de tudo e em todos os momentos, a sinceridade e a autenticidade reais, ainda que as mesmas estejam sujeitas ao efémero, pois que os sentimentos, frequentemente, se expõem aos imponderáveis de índole afectiva, psicológica e social.

Convergente com esta asserção, é a frequência com que muitas pessoas, após terem passado por fases de grande efervescência sentimental no interior da família, institucionalizada ou não – pois que se entre nós até cerca dos anos setenta o casamento era a forma normal e quase exclusiva de constituir família e, desde então, as uniões de facto

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não têm deixado de aumentar – vêm depois a romper com essa relação, mesmo quando há casamento civil ou civil e religioso.

É no mesmo sentido que ocorre uma duração incerta do casamento, contrariamente ao que acontecia até há bem pouco tempo, em que ele durava enquanto durasse a vida de ambos, conforme o preceito evangélico, segundo o qual, “O que Deus uniu não o separe o homem” (Mt. 19, 7). Porém, convém ter presente que, de acordo com as regras do livre consentimento, os cônjuges serão também artífices desta união. Seja como for, são muito mais frequentes, nos nossos dias, os casamentos que terminam por um divórcio ou uma separação. A nível da União Europeia a taxa é de cerca de ¼ dos casamentos (EUROSTAT, 1997).

Note-se, contudo, que, no passado, a duração média dos casamentos oscilava entre os 15-20 anos, em certas circunstâncias, em virtude de dois efeitos contraditórios: a esperança de vida era muito menor e a idade do casamento para as mulheres, contrariamente a tempos recentes, era, por vezes, mais avançada, normalmente, como estratégia de controlo da natalidade. Actualmente, com o aumento da esperança de vida, ainda que se entre mais tardiamente na vida de casal, essa duração é de cerca de 50 e mesmo mais anos.

Repare-se que, sobretudo, para os homens, são cada vez mais frequentes os casos de divórcio na idade dos 40-50 anos, dando, geralmente, lugar a uniões, com ou sem casamento, com mulheres muito mais novas do que eles. Mas, importa frisar que no passado, a par das situações de morte das mulheres por ocasião do parto, estava, também, presente uma certa forma de bigamia mais ou menos camuflada, ainda que proibida pelas leis, que impõem em Portugal e na generalidade dos países ocidentais, o casamento monogâmico. Porém, ao nível das práticas, eram frequentes os casos de uma certa “bigamia” camuflada, em forma de “amantização-concubinagem”, tacitamente aceite por uns e contestada por outros. O caso da amante e não do amante era, em muitas situações, uma prática tolerada e até desfrutava de alguma sanção social, ainda que proibida pela moral dos bons costumes.

Mas em alguns casos, exactamente porque hoje a sociedade é, por um lado, mais aberta e, por outro, mais exigente a este propósito, uma vez que os cônjuges homem ou mulher, não aceitam resignados as infidelidades, em vez da ambiguidade das situações duplas, opta-se mais pela ruptura definitiva para reiniciar, com outrem, porventura a já pessoa amada, uma nova vida conjugal. A partir destas constatações, a título de hipótese poderá dizer-se que num contexto mais rígido sob o ponto de vista jurídico e dos costumes, esta forma de vida dupla, normalmente do homem logo esposa-amante, e perante o olhar mais ou menos resignado da primeira, incapacitada de agir de outro modo, fazendo contraponto com situações familiares menos realizáveis sob o ponto de vista humano e afectivo, acaba por exercer uma função de continuidade de uma “família unida”, o que, actualmente, raramente é o caso em situações análogas. Nesta perspectiva, dir-se-á que vivemos numa época em que o amor conjugal e afectividade emocional que lhe está associada, independentemente da sua duração, se querem fortes e exclusivos.

Em contrapartida, é inegável que existe hoje uma certa transição periódica entre parceiros sexuais, cônjuges ou não, sem que esta seja

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objecto de tanta censura social. Deste modo, vai-se instalando uma lógica, do romper e do recomeçar e até da hesitação em assumir compromissos duradoiros, ou seja, aqueles que comprometem a pessoa para toda a vida, o que de resto é extensivo a muitas outras circunstâncias e estados de vida. De certa maneira, quando algo parece não dar certo, também os sentimentos se parecem inscrever na lógica da sociedade e do consumo, isto é, do pronto a consumir e a utilizar e do pronto a deitar fora e a recomeçar inovando, num ciclo que parece ser vítima do ritmo e do espírito do tempo (E. Morin, 1983), que parece investir mais na realização imediata das aspirações e desejos individuais mais profundos.

Mais do que o tempo de duração, parece ser importante respeitar a qualidade e a exclusividade da relação.

Poderá, então, dizer-se que, no passado, em que se atribuía menos importância à prioridade dos sentimentos amorosos, enquanto tais, e o amor era mais entendido como uma relação de disponibilidade, serviços e obrigações, na maioria dos casos, a duração, a longo prazo, era mais respeitada, independentemente da qualidade da mesma.

Assim, espera-se que a vida de casal preencha os desejos de cada um, permita ser reconhecido e compreendido na sua individualidade, mas também na harmonia sexual, no acordo dos corpos, no prazer físico, na ajuda mútua e na realização imediata dos objectivos recíprocos.

Em suma, privilegia-se o privado, personalizado numa família refúgio, ninho e abrigo, ao invés do passado em que a intervenção de terceiros, parentesco e vizinhança, era mais premente. Na concepção de E. Durkheim, para os finais do século XIX, em que a qualidade da privacidade familiar não era de modo algum comparável à dos nossos dias, essa só era possível graças ao emprego e ao respectivo salário, principal fundamento da autonomia individual e familiar, e à intervenção do Estado e das suas instituições em matéria de medidas sociais. Ora, estas prerrogativas têm vindo a ser intensificadas nos nossos dias.

2.3.8. A relação entre a família e a religião católica

Vendo agora estas mutações em correlação com a religião, o que se nos oferece dizer é que se, como bem o afirma M. Segalen e J. Goody, o cristianismo construiu um modelo de família na Europa e que se estendeu a outros povos através da missionização e da colonização, constata-se, todavia, que a sua grande influência se vai debilitando. A diminuição da influência da religião, não sendo recente em relação à instituição familiar, pois que as revoluções liberais impõem o casamento civil, relegando o casamento religioso para o domínio das escolhas privadas, é hoje muito mais notória.

Globalmente, constata-se que a Igreja católica, no século XIX, teve uma imensa dificuldade em se adaptar aos desafios das mudanças em curso e muito menos foi capaz de intervir, activamente, nas questões sociais que grassavam nas sociedades industrializadas, pese embora, em termos de doutrina social, a publicação da encíclica Rerum Novarum que ainda hoje continua a ser um marco histórico de referência dos tempos modernos no percurso das publicações da doutrina social da Igreja. No século XX, apesar da grande abertura proporcionada pelo Concílio

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Vaticano II e o seu impacto, em certos aspectos, à semelhança de outras épocas, a Igreja católica parece continuar a oferecer pouca capacidade de adaptação às novas questões sociais e culturais que não têm deixado de se intensificar, o que, de algum modo, se inscreve na sua própria essência, uma vez que a mudança não é apanágio das grandes religiões, secularmente estabelecidas, tal como é o caso do cristianismo católico. A verdade, é que, em todos os países ocidentais, a prática religiosa católica e a adesão institucional tem vindo a decrescer, ainda que o religioso pulule um pouco por toda a parte no dealbar deste milénio e que a maioria da sua população se identifique como cristã.

Mais ainda, tal como noutros domínios, a religião é hoje vivida de modo fragmentado, isto é, observam-se certos aspectos que mais se coadunam com os interesses pessoais, imediatos ou não, e ignoram-se os outros. A doutrina da Igreja católica em matéria de contracepção, sendo bastante restritiva, a avaliar pelos índices de fecundidade no seio das famílias católicas praticantes, parece ser pouco tomada à letra. Se é certo que as pessoas que casam, religiosamente, se divorciam menos do que as outras, também não é menos verdade que, logo que o façam, muitas não deixam de voltar a casar-se civilmente, mesmo contra todas as normas da Igreja.

Não obstante, vale a pena assinalar que a doutrina da Igreja católica, fazendo, desde tempos remotos do uso da sexualidade em função da procriação o fim primário do casamento, introduz uma viragem importante em 1965 com o Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes), ao preconizar que o fim primário do casamento é o apoio mútuo, sendo o amor e a procriação fins secundários. Todavia, todos os métodos anticonceptivos, que não se inscrevam na ordem do “natural”, continuam a ser condenados, o que não terá deixado de contribuir para um certo afastamento de alguns católicos praticantes, porventura, pecadores permanentes, pois que, neste caso, lhes é vedada a capacidade de arrependimento.

De facto, para que um sistema de valores e um certo número de regras, decorrentes da religião, possam produzir efeitos sobre as atitudes e os comportamentos é necessário que sejam acatados, cabalmente e não de maneira fragmentada, pelos crentes, o que parece não ser sempre o caso, nos nossos dias.

2.3.9. A redescoberta e revalorização da família nos finais do século XX

Os sistemas de valores orientando-se mais para o material e o bem estar pelo bem estar, “hic et nunc”, multiplicam-se mas tornam-se efémeros; os universos de sentido para a existência, sendo multiformes e tornando-se fragmentados deixam instalar, por vezes, uma certa sensação de vazio e as pessoas sentem-se, frequentemente à deriva (M. E. Leandro, M. Vaz Pato, 1977).

Sem sair do âmbito desta problemática, refira-se que no inquérito aos valores europeus que teve lugar em 1991 nos países da então designada Comunidade Europeia, sem que a Dinamarca, a Grécia e o Luxemburgo tenham respondido, para 82% dos europeus a família é um valor muitíssimo importante contra 64% dos portugueses, embora para mais de 33% destes últimos ela seja um valor importante. Com base

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nestes dados A. Nunes de Almeida e M. Dores Guerreiro (1993, 184), dizem que “A família é representada, ainda, como 'uma identidade' em que 83% dos indivíduos dizem confiar totalmente – por contraste, aliás com uma realidade de carácter mais geral como a dos 'portugueses', em que apenas 19% declaram depositar inteiramente a sua confiança. Lugar primeiro da realização individual, a família é ainda um reservatório fiel de confiança e de crença”.

Ela aparece, para os indivíduos, como o lugar da partilha e da protecção – pois que na família, paradoxalmente, na hora em que se reivindica a igualdade para todos, ninguém é igual a ninguém, em virtude da sua singularidade individual e estatutária – do amor, do reconhecimento recíproco, mas também do conflito, da aprendizagem do perdão, eventualmente, das rupturas, para logo (re)construir uma outra e nos momentos de crise económica, que pode conduzir ao desemprego, do suporte material, social e psicológico imediato.

2.3.10. A velha e a nova questão das funções sociais da família

No contexto social que é o nosso, comparativamente com outros tempos, podemos, então, perguntar-nos se as funções da família moderna mudaram substancialmente. Num passado, não muito recuado, atribuíam-se-lhe, essencialmente, três funções:• a reprodutora ,• a educativa e• a económica .Estas, ainda que com elementos novos e, certamente, aliadas a outras, continuam a estar presentes nos nossos dias, embora sejam vividas de modo diferente. Com efeito, a reprodução da espécie poderia ser feita à margem da família.

Continua a ser à família, por direito próprio – no caso português, segundo o que decorre do art. 1878.º do Código Civil de 1977 – e por tradição, que é cometida a responsabilidade educativa dos seus filhos. Assim, importa sublinhar que é no seio da família que a criança desabrocha para a vida, aprende os primeiros rudimentos da linguagem, a relacionar-se com os outros, a sociedade e até com a vida do além, uma vez que é aqui que começa por elaborar ou recusar um certo sistema de crenças, sem deixar, contudo, de ir formalizando um sistema simbólico e um conjunto de representações que orientam o seu processo de socialização, conjuntamente com todas as outras influências externas.

Além do mais, convém não esquecer que a educação recebida na família é determinante em toda a vida do indivíduo, ainda que o papel da escola e dos média seja, cada vez mais importante, a este propósito bem como os processos de socialização secundária cada vez mais persistentes. A verdade é que, apesar da proliferação das instâncias educativas, estas são de algum modo interactivas e, por conseguinte, umas não se substituem às outras. De qualquer modo, a família continua a ser uma instância basilar em matéria educativa, como bem o revela a realidade social quando se tem em conta, por exemplo, o acesso-descriminação perante todos os trunfos escolares.

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Apesar da igualdade de direitos consagrada nas leis jurídicas e escolares e mesmo que se comece por frequentar, igualmente, a creche e o jardim de infância e que estes possam colmatar algumas desvantagens, não se usufrui de idênticos privilégios escolares quando se é oriundo desta ou daquela família, pertencendo, distintamente, a este ou aquele grupo e meio social. Porém, em última instância, é a família educadora, até porque adopta estratégias de mobilização educativa, muito mais do que a escola por si só, que vai delineando o pendor das trajectórias individuais e sociais.

Importante corolário desta perspectiva é o seguinte: dado que a família e a escola não têm critérios, perfeitamente uniformes em matéria educativa, mas, conscientemente ou não, criam entre si uma relação interactiva, é admissível que as influências educativas de cada uma se repercutem na outra, ainda que seja à primeira que é solicitado e confiado o papel mais activo.

Quanto à função económica, apesar de correntemente se tentar fazer crer que a família deixou de ter uma função económica e macro social para passar a ter, antes, uma função micro-social e de consumo (T. Parsons, R. Balles, 1955), as coisas são bem mais complexas. Se em virtude da separação do trabalho – emprego, a família deixou de ser uma unidade de produção – no sentido tradicional do termo – continua a ter uma importante função económica. Basta pensar, por exemplo, que é no seu seio que se produz e reproduz a força de trabalho e que são os membros que exercem uma profissão no exterior que, por sua vez, garantem a subsistência de todos os outros. Logo, o papel económico da família, embora dependente do mercado de trabalho e do emprego, é primordial para a sua sobrevivência.

Admitindo que possa ter menos uma função económica e mais uma outra de consumo, será que esta possa ser desligada daquela? Em nosso entender, trata-se antes de duas vertentes profundamente imbricadas, na medida em que sem meios não é possível consumir e sem consumo, no actual sistema económico e produtivo, a produção também sofreria sérios reveses.

Subjacente a esta problemática das mudanças e das funções, pode descortinar-se, actualmente, uma outra importante função que, implicitamente, é atribuída à família pelos próprios indivíduos: a da construção da identidade e do sentido para a existência.

Ora, uma vez que, “grosso modo”, a identidade consiste na dialéctica do mesmo e do outro (M. Martins, 1996), do que, simultaneamente, distingue, peculiariza e assemelha, implica o respectivo reconhecimento individual e social que lhe está subjacente e a faculdade através da qual tal indivíduo ou grupo social passam, igualmente, a reconhecer e a serem reconhecidos como tais, sem confusão com qualquer outro, graças aos elementos que os particularizam. Logo, duma parte, o indivíduo tem necessidade de pertencer a um conjunto, um grupo, uma família, uma classe, um povo e, da outra, de ser reconhecido como membro particular de uma entidade de pertença. Isto significa que, a necessidade de identificação e de diferenciação, sendo opostas e complementares, exige a relação com “Alter” para poder dar corpo a este processo.

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Assim sendo, nos nossos dias, em que o individualismo teima em afirmar-se, o outro do encontro, da revelação quotidiana e que faz emergir a possibilidade da reconstrução identitária individual parece ser, por excelência, a família, concebida, neste caso, como o duplo jogo do eu e do outro a quem me revelo e me revela e de principal entidade de interconhecimento, reconhecimento e de permuta.

Nesta perspectiva, enquanto instituição identificadora, a família torna-se num espaço onde cada homem e cada mulher forjam uma forma de interioridade-exterioridade peculiar, capaz, por um lado, de permitir aos familiares individualizados de se reconhecerem como seres dotados de profundidades íntimas e, por outro, de forjarem um sentimento de autenticidade, ou seja, uma certa maneira de ser homem ou mulher, distinta de qualquer outra, o que se ajusta perfeitamente aos valores da modernidade mais recente (C. Taylor, 1992). Com esta incursão, não será despropositado dizer que a família advem, frequentemente, o espelho onde cada um, pode ao mesmo tempo reflctir a sua imagem e retrabalhá-la através da imagem que lhe reenvia o outro. Deste modo, ela permite aos seus elementos encontrar as componentes que lhe permitem forjar uma certa forma de identidade personalizada, sem, contudo, ter de ser absorvido pela da família (F. de Singly, 1996).

A questão “quem és?” tem-se convertido em “o que fazes?”. Ora, reduzida à lógica da utilidade marginal a produzir e a consumir e da “performance”, num vasto processo de globalização, a pessoa precisa de encontrar outros espaços onde a sua identidade se possa evidenciar e reelaborar muito mais pelo que se é do que pelo que se faz e o que representa para o exterior. Ademais, se num passado ainda recente, em parte, as identidades eram hétero-determinadas (D. Riesman, 1964), tendem hoje a complexificarem-se e a individualizarem-se. Desta maneira, cada um é solicitado a construir-se individualmente e a encontrar a sua inscrição social num contexto de crescente indeterminação.

O indivíduo tem necessidade de pessoas que saibam reconhecer nele outra coisa que o sucesso, e ele próprio deve ser capaz de olhar para lá das aparências associadas às posições sociais. A identidade latente do EU só pode ser reconhecida porque outros a reconhecem como tal, isto é, definida como estritamente pessoal e não segundo as lógicas da pertença aos grupos e aos estatutos (pertencer ao grupo dos homens, dos jovens, dos operários ou da lógica de que para existir e ser reconhecido é necessário fazer alguma coisa, ser útil e produtivo, isto é, ser “homo faber”.

Mesmo aceitando a ideia de que vivemos em sociedades de mobilidade e de que, com o desenvolvimento do individualismo e do liberalismo, é preciso fazer o seu caminho e conquistar o seu lugar para ser reconhecido, isto é, tornar-se produtor da sua própria vida, denota-se, todavia, que nem por isso este processo deixa de fazer apelo a outras relações ou grupos de afinidades, normalmente de actores mais próximos, como é o caso da família.

Como diz F. De Singly (1996, 25-26), “... a validação da identidade por um próximo familiar deve garantir a revelação e a coerência – função que pode ser assegurada por um Pigmalião, que deve criar, também, um sentimento de totalidade e plenitude”.

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Os sistemas de significação sendo, nesta modernidade mais recente, plurais e fragmentados, não se reduzem ao puramente simbólico ou sacral, mas forjam outras orientações capazes de trazerem respostas mais imediatas e concretas.

A família é uma realidade do passado, do presente e do futuro, provavelmente, em relação a este último, ainda bastante diferente do que é hoje, porque, com efeito, se trata de uma entidade extremamente dinâmica. Apesar dessa dinâmica, é o garante da perenidade de um tecido social em profunda mutação. Por isso, a família actual, sendo uma instituição vital, não se fecha sobre si mesma, mas interage com as transformações em curso na sociedade.

Poder-se-á dizer que hoje, mais do que nunca, a família, pelo menos idealmente, se torna o eixo da coesão social, contrariamente a um passado não muito recuado, em que este papel era exercido pela religião. Deste modo, a família é o que persiste, mas também o que se renova, continuadamente, nos nossos dias de maneira algo radical, o que nos permite falar de uma realidade nova em destruição-reconstrução.

2.4. Situação da família em Portugal2.4.1. Os principais factores de mudança no

interior da família portuguesaÀ semelhança do que se passa nas outras sociedades ocidentais, embora mais tardiamente, a família tem sido, em Portugal, objecto de profundas transformações, mercê de aspectos tão variados que decorrem do económico, do social, do político, da organização do trabalho e do emprego, do jurídico, da cultura, da religião e das mentalidades. Para a configuração precisa de cada um dos aspectos que acabámos de enunciar, múltiplas são as razões invocáveis, sem que tenhamos a pretensão, no âmbito deste trabalho, de proceder a um inventário exaustivo das mesmas, em termos analíticos.

Mesmo num regime de ditadura política, que teimava em fazer prevalecer a ordem tradicional da família, estava dado um primeiro passo fundamental para o processo de transformação da mesma, o que se prende, sobretudo, com o acesso da mulher ao emprego e, por conseguinte ao salário, pois este, em correlação com outros elementos sociais e culturais, permite-lhe ir trilhando o caminho da sua autonomia e individuação.

Deste ponto de vista, as modificações têm sido substanciais. De facto, com a dimensão salarial feminina, por um lado, é dada às trabalhadoras empregadas a capacidade de deixarem de estar confinadas ao espaço doméstico familiar e, por outro, a família passa a ter um duplo ganha-pão. Paralelamente, o salário feminino vai outorgando à mulher uma maior capacidade de afirmação e independência e permite-lhe deixar de estar confinada ao seu papel de esposa e mãe no seio da família, ao mesmo tempo que a leva a fazer um percurso rumo à igualdade.

Para mostrar a pertinência desta correlação, basta pensar que a população activa feminina em Portugal passou de 17%, na década de

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quarenta, para 15% em 1960 e para 75,1% em 1993. Como já vimos, esta é uma das taxas mais elevadas entre os países da União Europeia.

Esta situação, entre outros aspectos, articula-se com duas razões fundamentais. Uma prende-se com a tradição e contrariamente a certas ideias correntes que pretendem fazer crer que a população feminina portuguesa não era activa, em virtude das baixas taxas de emprego. Como o afirma M.-A. Barrière-Maurisson (1992), “Reconhece-se hoje que as mulheres sempre trabalharam e que a sua actividade constituiu, em todos os tempos, uma das componentes importantes da nossa economia, sendo a sua relação com o emprego que mudou através de um salariato massivo”. É, sobretudo, nestas circunstâncias que o salário feminino constitui mais um suplemento – traduzindo, portanto, um comportamento de necessidade (P.-H. Combart de Lauwe, 1975), ainda que não deixe de contribuir para a autonomia e auto-afirmação da mulher – do que a livre passagem para uma maior independência, apesar de, em todas as circunstâncias, esta ser sempre relativa, na medida em que cada ser humano é sempre regido pela interacção e a inter-dependência em relação ao outro.

Seja como for, se, em grande parte, a hierarquia dos papéis masculino e feminino tende a esbater-se no seio da família e esta é cada vez mais imbuída de um ideal igualitário, as mudanças operadas no estatuto profissional e económico da mulher e os efeitos daí decorrentes têm-se revelado cruciais. A nível do secundário, houve imensas transformações no seio da população portuguesa: 11,8% para os homens e 11,1% para as mulheres em 1995, o que não era, de modo algum, o que se passava anteriormente em que, mesmo o analfabetismo era sempre muito mais elevado para a população feminina adulta com mais de 20 anos.

Vale a pena referir que, apesar das mulheres se dirigirem, preferencialmente, para áreas consideradas de natureza feminina, vão vencendo a barreira de ingresso noutras áreas de ensino, outrora apanágio dos homens como sejam a economia, o direito, as engenharias, a medicina e a teologia, entre outras. Porém, esta transformação recente não pode ocultar uma outra realidade, mais antiga e persistente, que faz com que as taxas de analfabetismo da população portuguesa, designadamente, a partir das faixas etárias 40-50 anos, continuem a ser mais elevadas para as mulheres do que para os homens: 23% e 12,4%, respectivamente (A. Barreto, C. V. Preto, 1996)

Em caso de doença, de contactos com a escola ou outras instituições sociais mais relacionadas com a família é, geralmente, a mulher que deve preterir o emprego em favor da família e, inversamente, para o homem, porque, para além da força da tradição, acresce ainda o facto de que, na maioria dos casos, a sua carreira profissional é considerada de menor importância, correlativamente à do homem. A igualdade de direito nem sempre é igualdade de facto e, principalmente, quando se trata do exercício dos papéis de género no interior do espaço doméstico.

Compreende-se que todos estes aspectos, com particular relevo para o acesso a uma escolarização mais prolongada, mesmo de nível superior, ao mercado de trabalho e à igualdade de direitos, reconhecida juridicamente, ainda que algumas mentalidades se mostrem muito refractárias à mudança concedem à mulher portuguesa os trunfos necessários para lutar pela construção de uma nova identidade e por

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uma maior diversidade dos modos de ser mulher, tornando-a mais reivindicativa na sociedade e na família.

2.4.2. As principais peculiaridades estruturais e demográficas da família portuguesa

Aludindo às características estruturais e demográficas da família em Portugal, pode dizer-se que entre os mais de três milhões de famílias distribuídas, de forma irregular, no espaço nacional, à semelhança de outros aspectos, contrastam as regiões do interior mais ruralizado e do litoral mais urbanizado, sendo de realçar nestas últimas, as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Por conseguinte, as estruturas familiares e a sua diversidade e implantação acabam por ser tributárias desta distribuição sócio-espacial, embora a forma predominante seja a da família nuclear conjugal, isto é, a que apresenta uma estrutura triangular constituída pelo pai, mãe e filho(s).

Frise-se que, em 1991, entre as 3.148.133 famílias portuguesas, 43.534, 797.275, 747.724, 681.735, 275.964 e 209.891 eram constituídas por uma, duas, três, quatro, cinco, seis e mais pessoas, respectivamente, contra 253.848, 460.694, 526.289, 430.197, 282.268 e 403.686 em 1960. A estrutura familiar constituída por duas pessoas é relevante em relação às outras, tendo mesmo a primazia em 1991. Assim, em 1960 engloba, essencialmente, casais que, após o abandono dos filhos da célula familiar de orientação para a família de procriação3, se vêem reduzidos ao núcleo inicial, ou seja, o casal progenitor, ao passo que no segundo, seguramente, integra estes, mas também algumas das designadas famílias monoparentais e as famílias recém-formadas que, contrariamente a um passado ainda recente, prolongam o espaço que medeia entre a formação da família e o nascimento do primeiro filho, pelo menos até que a situação profissional de ambos os cônjuges esteja estabilizada.

Uma referência à estrutura etária e dimensão das famílias portuguesas em 1991, segundo os dados do INE, permite verificar que, a este último nível, o aumento é notório em todas as circunstâncias, tanto para o número de famílias com apenas um adulto entre 15-64 anos, como com 65 ou mais anos, embora a ordem de grandeza seja muito mais elevada no último caso: 7,9% e 22,9% respectivamente. A este fenómeno não é alheio, o aumento da longevidade e da viuvez, designadamente para as mulheres, como bem o revelam os dados disponíveis: 78,16% contra 21,84% para os homens. Porém, o aumento e a respectiva ordem de grandeza foi ainda mais elevado nas famílias de dois adultos: 10,3% para o grupo etário de 15-64 e 24,5% para o de 65 e mais anos.

Por um lado, em 1960, as famílias alargadas e complexas, ligadas à economia agrária, tinham ainda um maior impacto, sobretudo, no que se refere à coabitação com os pais de um ou dos dois membros do casal, pelo menos temporariamente, em idade mais avançada ou em estado mais debilitado, inversamente aos nossos dias, uma vez que, em situa-

________________________________3 A propósito desta dinâmica do deixar para (re)construir, Platão, não sendo um campeão da defesa da família tal como existia na sua época, pois que a considerava um entrave à reorganização da vida social, económica e política da “polis”, diz, no seu livro As leis, que, deixando o seu pai e a sua mãe, assim como os pais da jovem donzela, o novo casal parte para formar uma colónia. Como podemos constatar esta concepção inscreve-se na linha directa da família nuclear conjugal tal como, de resto, já havia sido preconizado pelo autor sagrado da Bíblia, no livro do Géneses, 2, 24.

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ção idêntica, os pais são frequentemente enviados para Lares da 3ª Idade ou outras instituições similares (L.-V. Thomas, 1991; M. E. Leandro, 1995). Por outro, é inegável que estamos perante uma clara baixa do número de filhos, pois que as taxas de fecundidade não têm, desde então, deixado de decrescer em Portugal: 3,2 em 1960 contra 1,46 em 1998. Estes dados são ainda mais significativos se tivermos em conta que entre 1930-1960 as taxas de fecundidade foram de 3,9 e 3,2, respectivamente.

Pode dizer-se que há uma correlação directa entre o crescimento da população e o aumento do número de famílias, só que as ordens de grandeza não são similares, verificando-se uma taxa média de crescimento por década para o número de famílias e população residente de 11,7% e 4,9% respectivamente (INE, 1995). Entre 1981-1991 a variação da população foi de +0,3, ao passo que a das famílias foi de +7,6% (INE, 1995).

Quanto às estruturas familiares, globalmente em 1991, 2.510.894 das famílias portuguesas são constituídas por um único núcleo. Mais ainda 3,72% das famílias são formadas por dois núcleos e 0,19% por três ou mais núcleos.

Esquematizando, o que se pode então dizer é que, no princípio da última década, tendo em conta as estruturas e os núcleos, temos em Portugal 5 formas de família:• a família sem núcleo,• a família nuclear conjugal,• a família alargada,• a família complexa e• a família monoparental.No que se refere à dimensão da família, esta tende a ser cada vez mais limitada a um número reduzido de pessoas, pois que 25,32%, 23,75% e 21,65% das famílias portuguesas são formadas por duas, três e quatro pessoas respectivamente. O que se pode dizer com os dados da demografia é que as famílias portuguesas adquiriram um comportamento “neo-maltusiano” em matéria de natalidade. O que parece recusar-se são as famílias numerosas.

Assim,• 16,24% formam uma família sem núcleo, englobando 13,83% de

isolados;• 79,75% apresentam uma estrutura nuclear conjugal formada por um

casal, com ou sem filhos ou mesmo por outras pessoas cujo parentesco se desconhece;

• 7,17% de famílias monoparentais, sendo o núcleo mãe/filho(s) o que atinge maior destaque: 5,86% contra 0,9% para o núcleo pai/filho(s); 0,36% avós/neto(s), respectivamente 0,03% avô/neto(s) e 0,33% avó/neto(s);

• 3,91% de famílias com dois e três núcleos: 3,72% e 0,19%, respectivamente.

Significativo é o aumento das famílias sem núcleo em relação a 1981, cuja variação global é de 11,6%, sendo ainda de +17,3% para os isolados. É interessante verificar, para o mesmo período, que, diminuindo a percentagem de famílias com três núcleos ou mais de -96,3%, ao invés, as famílias com dois núcleos estiveram em franco crescimento, ou seja, mais 215,1%.

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2.4.3. A entrada na vida conjugal e as rupturas familiares em Portugal

Refira-se a este propósito que, na opinião do presidente da Sociedade Nacional de Sexologia Clínica (1998), a vida sexual dos jovens é mais retardada, iniciando-se por volta dos 16-17 anos, continuando, no entanto, a ser os homens que mais cedo se iniciam na vida sexual.

Sendo assim, entre outros aspectos, poderia haver mais razão para a coabitação juvenil assumida, mas, tal não é o caso. Isto não significa que ela não exista, designadamente, quando se está longe do olhar da família e da comunidade de vizinhança, no sentido tradicional do termo. Estudos recentes que orientámos no quadro universitário revelam estas contradições comportamentais, segundo se está longe ou perto da família e do meio social de origem.

A. Torres (1996), estudando esta questão na área da Grande Lisboa, considera haver quatro razões para o efeito:

– o pragmatismo que visa não criar dissenções com a família que continua a valorizar muito mais a entrada directa na vida conjugal através do casamento, mesmo civil, ainda que a maioria dê preferência ao religioso. Aliás, ainda que a questão do divórcio se possa pôr, para o caso da mulher, a sociedade parece aceitar melhor uma divorciada do que uma outra que tenha passado pela experiência da coabitação, uma vez que o tabu da sexualidade parece estar mais presente do que à partida se poderia esperar;

– o estatutário, uma vez que o casamento confere um novo estatuto socialmente reconhecido. Perante o direito, só a família jurídica é considerada família. Na prática, porém, aqueles que vivem em união de facto, querendo, talvez, escapar às normas estabelecidas, são constantemente solicitados a darem provas da sua situação, desde que desejem ter acesso a certas regalias sociais e familiares;

– o ritualismo que se inscreve, por um lado, no seguimento da tradição e, por outro, no esplendor festivo que confere a este acto social;

– o institucional que, além de uma conformidade com as normas, no caso do casamento católico comportando a indissolubilidade, poderá, à partida, dar mais garantias perante o espectro do divórcio.

A segunda nupcialidade é superior no caso dos homens: em 1993, do total de nubentes do sexo masculino, 2,1% eram viúvos e 6,3% eram divorciados; das mulheres 1,1% eram viúvas e 4,5% divorciadas.

Sendo verdade que a taxa de divórcios tem aumentado em Portugal, pois que passou de 1% em 1970 para 21% em 1994 (A. Torres, 1996, 210) e em permilagem de 0,5 em 1976 para 1,5 em 1998 (INE), nem todos os divorciados voltam a contrair casamento e, muito menos, religiosamente, o que está fora de causa perante as regras da Igreja católica com excepção dos casos de anulação do matrimónio. E, na verdade, os divórcios aumentam simultaneamente para os que casaram religiosamente e para os que casaram civilmente. Contudo, é importante

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aludir, como o analisa A. Torres (1996) que, neste período, enquanto os primeiros descem os segundos sobem.

Todavia em sentido global, segundo os dados do INE analisados por A. Torres (1996, 236-237), “... Verifica-se igualmente que, embora ao longo do tempo os divórcios de ambas as formas de celebração de casamento subam – o que também seria de esperar dado o aumento global da ruptura conjugal –, a subida dos divórcios de casamentos civis é superior à dos casamentos católicos”.

Perante este panorama, está à vista que se vai operando uma modificação nas práticas e nos valores em relação à família e ao casamento em Portugal que se inscrevem no espírito da modernidade avançada, embora permaneçam, simultaneamente, vários elementos tradicionais.

Esta (des)coincidência é essencialmente notória no que se refere às imagens do casamento que se vai laicizando, mesmo entre aqueles que contraem o casamento católico. Segundo os resultados das investigações prosseguidas por A. N. de Almeida, M. D. Guerreiro, C. Lobo, A. Torres e K. Wall (1998, 67-68), na área da grande Lisboa, acerca das representações do casamento civil e/ou religioso, 20% partilham da ideia de que o 'casamento é um sacramento', ideia que está associada à indissolubilidade do laço conjugal. “Em contrapartida, a perspectiva, inteiramente laica, manifestava-se, de forma muito evidente, quer na escolha maioritária da opinião 'o casamento religioso não acrescenta nada à união entre duas pessoas' (cerca de 40%), quer na adesão à perspectiva ritualista 'o casamento pela Igreja é uma cerimónia bonita e festiva que consagra um momento importante' (cerca dos 30%)”. Se passarmos das opiniões às práticas, apesar do casamento católico ser, sem sombra de dúvida, o mais elevado, não deixou de descer: 17% entre 1970 e 1995. Paralelamente, os divórcios decorrentes de casamentos religiosos, como já foi referido anteriormente, continuam a aumentar.

Poder-se-á dizer que o casamento civil ou civil e religioso, sem ser praticado por todos, uniformemente, continua a ser a forma mais corrente de entrar na vida conjugal, em Portugal. Ainda que aumentem as famílias monoparentais, estas são, na maioria dos casos, uma consequência do divórcio. Na verdade, havendo uma persistência do laço formal e, ao invés, aparecendo uma visão quase completamente desinstitucionalizada ao nível da opinião, tal circunstância pode prender-se, entre outros aspectos, com a falta de protecção, reconhecimento e dignificação das situações da união de facto, a pressão dos pais (caso dos jovens), o desejo de aceitação das normas sociais, a cedência ao que se presume ser ainda a força da tradição, logo a força do controlo social e, diremos nós, a grandiosidade da festa que envolve o casamento religioso.

2.4.4. A família portuguesa perante o jurídicoComo corolário da Constituição da República de 1976, o Código Civil português foi reformado pelo decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro.

Quanto à noção de família, esta decorre do que está estipulado no artigo 67º e 36º. Um dos primeiros aspectos a realçar é, como já antes o dissemos, a dissociação entre a família e o casamento. Poderá então

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perguntar-se se a família natural, socialmente designada de “união de facto”, também é reconhecida como família à luz da realidade social embora o não seja perante o jurídico.

O casal nascido da união de facto também é família, contrariamente ao passado, em que esta era apenas considerada como uma forma de concubinagem ou de amancebia, isto é, na expressão latina more uxorio, à maneira de marido e mulher.

Porém, importa salientar que a nova legislação continua a reconhecer apenas a família monogâmica e monoândrica duradoira, ou seja, a heterosexual, que deve apontar para a duração e não para a separação, se bem que esta é igualmente sancionada pelas mesmas leis, como veremos a seguir.

Entre outros, detenhamo-nos sobre nove aspectos fundamentais em termos de grandes repercussões jurídicas, sociais e familiares:

– o vínculo da perpetuidade do casamento católico é rompido, uma vez que os tribunais civis podem decretar a dissolução do próprio vínculo sacramental, ainda que, a nível da Igreja católica, esta prerrogativa não produza qualquer efeito. Ao mesmo tempo, abre-se o leque das causas do divórcio solicitado por qualquer dos cônjuges, sendo de realçar que o divórcio deixa de ser encarado apenas como uma sanção para o cônjuge faltoso, mas também entra em linha de conta a concepção do divórcio-falência que consiste na ruptura concreta da vida em comum. Ademais, é facultado o divórcio por mútuo consentimento;

– é eliminada a concepção da relação matrimonial como relação fundamentalmente diferenciada, proclamando-se o princípio da igualdade dos direitos e deveres dos cônjuges (artº 1670º, nº1), contrariamente ao que estava estipulado no art. 12º, 3º – 1º da Constituição da República Portuguesa de 1933 e respectivas revisões de 1958 e 1966, em vigor até 1976, que instituía o “pátrio poder”;

– é abolida a obrigação de salvaguardar o nome patronímico da família. É claro que, na prática e à semelhança do que acontecia anteriormente, os filhos continuam a receber, igualmente, o nome patronímico da mãe e do pai, por ordem sequencial, o que permite continuar a valorizar o nome patronímico do pai, ao invés, do da mãe que, continuando numa posição intermédia entre o pai e o filho, é votado a desaparecer ao fim de cada geração. Inversamente ao que se passa, por exemplo, em França, onde a mulher casada, sem que a lei a isso a obrigue, passa a ser designada pelo nome patronímico do marido, bem como a sua prole, continuando, embora, a referenciar os dois nomes patronímicos, continua a pôr em destaque o do pai, logo que se trate de qualquer assunto oficial ou similar. Correntemente, é o nome patronímico do pai que é objecto de identificação familiar, o que expressa, claramente, a importância e os efeitos simbólicos e práticos da acção denominativa;

– a concepção hierárquica entre pais e filhos é bastante esbatida, uma vez que o art.º 1874.º estipula que pais e filhos se devem mutuamente respeito, auxílio e assistência. Deste modo, ideal e praticamente, ambos são colocados num mesmo patamar, pelo

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que a hierarquia tradicional entre pais e filhos sofre um duro revés. Desta maneira, a autoridade dos pais é enfraquecida e, ao invés, a autonomia dos filhos sai bastante reforçada;

– a não descriminação entre filhos nascidos dentro ou fora do casamento, o que era impensável na legislação anterior, pois que nem sequer permitia que uma pessoa casada perfilhasse um filho nascido fora do seu casamento. Com mais razão, logo que estivessem em causa questões relacionadas com o património e, evidentemente, com a infidelidade conjugal e, por conseguinte, com a moral pública;

– a adopção passa a ser enquadrada e regulamentada pela lei;

– a maioridade , igualmente extensiva aos homens e às mulheres, como de resto já acontecia anteriormente, passa agora de 21 para 18 anos;

– a concepção do casamento também é modificada. Aparece, agora, como um contrato jurídico celebrado entre duas pessoas de sexo diferente, que pretendam constituir família, mediante uma plena comunhão de vida, das quais se exige o livre consentimento, sem o qual o casamento pode ser considerado nulo. Refira-se que este princípio, embora pouco praticado, já fora estipulado pela Igreja católica no século XII, quando elevou o casamento à dignidade de sacramento. Mas logo a seguir, surge um conjunto de restrições que lhes estão aliadas, em virtude das reclamações da nobreza e da aristocracia da época que se viam, por conseguinte, privadas do exercício da sua vontade, em ordem aos casamentos arranjados pelos familiares, o que poderia pôr em causa a reprodução do património. Deste modo, é ainda a Igreja que estipula a idade da razão: 30 anos para os homens e 25 para as mulheres. Ora, numa época em que a esperança de vida era muito curta, tal ensejo tornava-se, praticamente, irrealizável para uma grande parte dos nubentes.

As coisas são, hoje, bem diferentes, em parte devido à mudança das mentalidades em ordem à relativa desvalorização da natureza do capital económico em favor do capital cultural, principal garante do acesso ao emprego e da passagem de uma sociedade do trabalho para uma sociedade salarial, garantindo-se assim uma maior autonomia individual.

O casamento, sendo em Portugal um acto jurídico, pretende institucionalizar uma relação conjugal tendencialmente duradoira e, por isso, não se admitindo o casamento a prazo. Aliás, o estipulado nos artigos 1789º e 1792º do Código Civil de 1977 deixa bem clara esta concepção, uma vez que, considerado o casamento um acto civil, que pode ser dissolúvel pelo divórcio, explicita, claramente, que não é um contrato perpétuo. Fora das regras deste código, se duas pessoas querem constituir, entre si, uma família, estaremos perante uma união de facto que, podendo produzir efeitos em matéria de política familiar e do direito social não é casamento. Em França, segundo E. Micou, a concubinagem, gozando, actualmente, de algumas prerrogativas em matéria de políticas familiares, não está regulamentada, ao passo que o

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casamento cria entre os esposos direitos e deveres recíprocos, tanto sob o ponto de vista extrapatrimonial como patrimonial;

– Por último, muda, profundamente, a concepção legislativa no que se refere ao divórcio. Este, sendo inexistente em Portugal foi introduzido pelo Governo provisório da República, através de um decreto publicado em 3-11-1910. Doravante, o mesmo seria também aplicável aos casamentos católicos, praticamente, a quase totalidade em Portugal. O casamento passava, assim, a ser considerado como um contrato jurídico civil. O matrimónio canónico, quando existisse, poderia ser considerado uma cerimónia privada sem direitos civis, ao invés, do que se passava até então.

Estas normas estiveram em vigor até 7 de Maio de 1940, ou seja, até ao momento em que o Governo português assinou a Concordata com a Santa Sé. As disposições da Concordata relativas ao casamento estão expressas nos artigos XXII-XXV e foram regulamentadas pelo Governo português na primeira parte do Decreto Lei nº 30 615, de 25 de Julho.

Paralelamente, o casamento civil, para aqueles que quisessem formar família sem o recurso ao casamento canónico, poderia ser dissolúvel através do divórcio.

2.5. Modalidades de controlo social sobre a família

2.5.1. A família do passado e do presente sob o olhar duma panóplia de instituições

Um pouco por toda a parte, a família, enquanto grupo doméstico e instituição social, é objecto de um conjunto de normas jurídicas, religiosas e sociais que, de algum modo, procuram pautar a conduta dos seus membros. Há ainda a pressão das normas costumeiras que, apesar de nos nossos dias terem vindo a perder algum do seu impacto, nem por isso deixam de ser menos constrangedoras.

A família é objecto de legislação que emana das Constituições de cada país, de Decretos-Lei ou outras publicações oficiais, a propósito dos modos de a constituir, dos direitos e dos deveres dos vários membros, da organização do trabalho e do emprego e das consequentes medidas que afectam os homens e as mulheres, na vida familiar, da maternidade, da educação dos filhos e do seu futuro, logo também da escolarização, da protecção da infância, do trabalho de menores, das medidas profilácticas e de saúde pública, visando, sobretudo, as crianças e os adolescentes, dos direitos e deveres perante o sistema de saúde e até do respectivo controlo médico sobre a família.

Uma coisa é certa: todos estes organismos têm em vista fornecer um certo número de orientações, umas com carácter mais coercitivo do que outras, e mecanismos de protecção para que a família se possa enquadrar dentro de determinados parâmetros e objectivos, seguir mais este ou aquele modelo familiar, assegurando, assim, as funções que lhes são atribuídas. Estas, sendo hoje algo diferentes do passado, não deixam de se impor: a procriação, a educação e protecção dos filhos, a subsistência do grupo doméstico, o apoio psico-afectivo, tanto às

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crianças como aos adultos, a formação da personalidade dos jovens e a elaboração e expressão da identidade individual, ainda que partilhe, cada vez mais, com o Estado e as suas instituições ou outras similares, grande parte destas tarefas.

2.5.2. Do Estado para a famíliaNos nossos dias, a família é mais independente da parentela, resiste melhor à intromissão da vizinhança, investe mais na vida privada e parece, em muitos casos, fazer tábua rasa das leis e das normas sociais vigentes. Poder-se-á pensar, por um lado, que o controlo externo é menos eficaz e, por outro, que cada grupo doméstico reinventa a sua própria maneira de ser e viver em família.

Parafraseando E. Durkheim, poderá continuar a dizer-se que a família é cada vez mais privada e cada vez mais pública, exactamente porque a primeira condição é extremamente tributária da segunda, ou seja, só o incremento das políticas estatais e sociais em prol da família, têm, de facto, permitido à família investir, insistentemente, na sua privatização.

Um conjunto de situações onde a intervenção normativa do Estado e das suas instituições é frequente: idade das vacinações, do percurso de escolarização, da entrada no mercado de trabalho, da maioridade, do serviço militar, da possibilidade de poder ou não contrair casamento, nesta ou naquela condição. Por exemplo, perante as leis portuguesas, este não poderá ter lugar antes dos 16 anos e depois dos 60 anos os nubentes são obrigados a contrair casamento sob regime de separação de bens. Mas podemos, também, falar do caso dos divórcios e separações que, parecendo ser uma decisão do foro pessoal do casal é extremamente enquadrada pelas leis estatais, quer se trate do “divórcio sanção”, no caso de violação culposa de um dos cônjuges, quer do “divórcio falência”, isto é, a ruptura objectiva da vida em comum.

2.5.3. Da normatividade social à família normalAludindo, depois disto, à preocupação social normativa em prol da família, o que se nos afigura dizer é que ela não é nova, como já o vimos anteriormente. Foi assim em tempos de antanho nas sociedades antigas, com a implementação do cristianismo após o seu reconhecimento enquanto religião oficial por Constantino no princípio do século IV, com a burguesia e as revoluções liberais nas sociedades modernas e assim por diante. Neste sentido, será oportuno sublinhar que em França, segundo J. Donzelot (1977), I. Joseph, P. Fritsch (1977) e P. Mayer (1977), ao longo do século XIX, havia uma grande preocupação de várias entidades e grupos filantrópicos em fazer sair a família popular, sobretudo a operária, duma infinidade de desvios sociais: concubinagem, separações, mortalidade infantil, abandono de crianças, promiscuidade, delinquência juvenil, conflitos familiares, doenças venéreas, entre outros aspectos, para adoptar a forma da família burguesa. A família era então considerado como o principal factor que poderia contribuir para banir os elementos de desordem social indesejada.

Ainda, na perspectiva de J. Donzelot (1977, 27) seria necessário estudar a história do aparecimento e desaparecimento paralelo das casas de preservação e de correcção para as jovens donzelas, das casas de reclusão para as prostitutas e a dos asilos para as crianças

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abandonadas. “É também neste período (século XVII) que aparecem os conventos, sob o impulso da Contra-Reforma, absorvendo um conjunto de mulheres que se destinam a fins missionários, educativos e assistênciais”.

Em Portugal, este tipo de acções ou outras similares eram, sobretudo, apanágio, das ordens religiosas, das casas da roda e das Misericórdias. Mas, segundo I. Sá (1997, 107), no que se refere à distribuição geográfica da roda, nenhuma resposta cabal pode ser dada sobre este assunto. “Quanto à acção das Misericórdias, antes do século XIX os hospitais portugueses eram geralmente destinados à população pobre, salvo raras excepções, como os hospitais termais e as curas de sífilis, frequentados igualmente pelos ricos”.

Convém, contudo, sublinhar que, no nosso tempo, tendo até em conta o processo de individualização, não só dos indivíduos como da própria família – que tem sido possível, graças, por um lado, à passagem de uma sociedade do trabalho a uma sociedade salarial e às medidas sociais do Estado e, por outro, na perspectiva de L. Dumont, a uma “configuração individualista” que integra a modernidade na sua fase mais avançada – o controlo estatal e social sobre a família integra alguma complexidade. Assim, há todo um conjunto de leis e até de direitos-deveres, embora estes pareçam ser menos coercitivos porque recorrem, muitas vezes, ao apelo à concertação no seio da família, logo de natureza mais discreta e, por isso mesmo, mais insidiosa. Frequentemente, faz-se apelo à intervenção de um corpo de especialistas ligados às profissões de escuta e de ajuda e intervenção directas, como sejam os que advêm das várias áreas da psicologia, da psicanálise, da psiquiatria, da psicopedagogia, do serviço social, dos educadores de rua, dos conselheiros conjugais entre outros, sem esquecer a profusão de actores desta natureza associados a vários grupos e instituições de cariz religioso, paracientífico, ciências ocultas, gurus, meditações transcendentais e assim por diante.

De facto, duma parte, esta profissionalização crescente de um corpo de especialistas da escuta, do conselho, do diálogo, da ajuda, da consciencialização e da intervenção e, da outra, uma crescente emergência de outros actores similares que, muitas vezes, sem serem credenciados para o efeito, nem por isso deixam de exercer uma intervenção importante a este respeito em simultâneo com outro conjunto de medidas emanadas do Estado e das suas instituições, acaba por ser nos nossos dias, uma nova forma de controlo familiar, perfeitamente aceite e até, largamente solicitada, tanto por parte da família, como da sociedade em geral.

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3. Teorias Sociológicas acerca da Família nas Sociedades Contemporâneas

Procuramos, em primeiro lugar, numa visão analítica, debruçar-nos sobre o contributo de F. Le Play para a compreensão da família tendo em conta que a sua teoria comporta uma grande carga ideológica de cariz essencialmente político e moral.

Passaremos, depois, a olhar o pensamento de E. Durkheim para quem a família contemporânea se caracteriza por quatro aspectos essenciais:• é relacional, isto é, investe mais na qualidade das relações no interior de um

grupo doméstico reduzido de pessoas e menos no património;• é individualista, uma vez que, enquanto grupo muito restrito e rompendo

paulatinamente com as intervenções da parentela e da vizinhança, é cada vez mais centrípeta;

• é cada vez mais privada e mais pública, porque simultaneamente mais autónoma, mas mais dependente do Estado e das duas instituições e de outros factores que lhes são exteriores;

• tem cada vez menos horizonte intergeracional na medida em que, investindo muito menos no “comunismo familiar” configurado no património material e, ao invés, investindo no individualismo, compromete as relações inter-geracionais na continuidade do tempo.

Mas outras perspectivas teóricas, de autores da segunda metade do século XX, podem ser retidas, porque também elas, de diferentes modos, constituem marcos sócio-históricos, logo que se trata de pensar sociologicamente a família. Desta maneira, seguindo a cronologia do tempo, começamos por dar enfoque ao pensamento de T. Parsons, seguido do de W. Goode, P. Ariés e dum conjunto de sociólogos da actualidade, cujos trabalhos, publicados ultimamente têm sido alvo de grande impacto. Estão neste caso L. Roussel, F. De Singly, J.-C. Kaufmann, M. Segalen, I. Théry em França e A. Torres e K. Wall, entre outros, em Portugal.

Tendo em conta o pensamento de outros autores, entre os quais se destaca para a França P. Ariés (1960) e A. Girard (1964) e W. Goode para a sociedade americana, embora este não fique aí confinado, parece razoável concluir que a dinâmica e o papel da família são muito mais profundos do que faz crer T. Parsons, dado que não se encerra apenas no ser ou não ser um subsistema capaz de corresponder aos interesses da sociedade industrializada e urbanizada e à óptica económica que a orienta (T. Parsons, R. Bales, 1955). Assim, W. Goode, contrariamente aos sociólogos do século XIX, sem procurar implicações de ordem política e moral, mas tão somente analíticas, considera que a família nas suas diversas configurações e modos de organização é tributária dos vários contextos sociais, das civilizações que lhes estão subjacentes e das pertenças sociais. Certo de maneira diferente, uma vez que nas sociedades ocidentais, ao invés das orientais e da cultura islâmica, o indivíduo e a pertença ao grupo familiar não são valorizados da mesma maneira. Isto não impede, contudo, que de modo lento a mudança progressiva ou as mutações produzidas pelas revoluções, tal o caso da China, introduzindo novos elementos de modificação, sejam uma realidade incontornável.

Continuando a não perder de vista os objectivos epistemológicos e pedagógicos que nos propomos alcançar ao longo deste trabalho, orientamos agora o nosso olhar para o pensamento de P. Ariés que pode ser considerado historiador-sociólogo. Socorrendo-se de uma pluralidade de fontes históricas, inclusivé do domínio da arte, conclui que os dados que mais contribuíram para este fenómeno foram, por um lado, a descoberta da criança enquanto tal e não mais um adulto em miniatura e, por

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outro, ainda relacionado com esta, a implementação progressiva da escola nas sociedades modernas e contemporâneas.

Assim, num turbilhão de mudanças que com o tempo se vão produzindo, a família vai-se afastando cada vez mais duma forma tradicional para ir construindo outras de cariz moderno. Formas em que a criança é entendida como objecto de afecto e de projecto e menos como recurso e onde a valorização das relações afectivas vão adquirindo uma importância fulcral. De resto, para E. Shorter é, essencialmente, este último aspecto que mais contribui para o nascimento e solidificação da família moderna.

Enfim, referindo-nos ao grupo de sociólogos franceses e portugueses mais recentes o que se nos afigura dizer é que na contemporaneidade a família, comparativamente com um passado ainda recente, em que as regras que definiam as formas de ser família pareciam claras e precisas, desde meados dos anos sessenta do século XX, tem-se tornado mais complexa, na medida em que se afasta, em parte, dum certo rigor institucional e inversamente envereda por várias modalidades de ser família logo que a pensemos, entre outros aspectos, em relação ao institucional, às estruturas, aos papéis, às relações de género, às representações e aos significados que reveste para os indivíduos numa sociedade cada vez mais atomizada. Isto significa que a família contemporânea sendo objecto de várias modificações, nem sempre estas significam uma ruptura total com o anteriormente vivido.

3.1. A família perspectivada por F. Le Play3.1.1. A obra e o pensamento de Fréderic Le

PlayProcura estabelecer um contra ponto e uma distinção entre família tronco e família instável, tal como K. Marx faz entre os contrastes e modos de produção feudal e capitalista, A. Tocqueville insiste na célebre distinção entre “aristocracia e democracia”, F. Tonnies entre a “comunidade e sociedade” e E. Durkheim entre “solidariedade mecânica e solidariedade orgânica”.

O nome de F. Le Play ficou, principalmente, associado à defesa de uma forma de família: a família tronco. Preocupado em desvendar os efeitos que decorrem da relação entre família e os imperativos económicos, sociais e culturais que a tinham moldado, pensava que era a única que continha peculiaridades que podiam fazer banir a desordem reinante.

Deste modo, para F. Le Play, a família, sendo o reflexo de certas formas de organização nos mais variados contextos sociais, não se confina às fronteiras da casa e da propriedade, mas antes numa atitude mental, numa cultura ou, como diria F. De Coulanges, seu contemporâneo, numa essência. Sendo assim, além das tradicionais funções atribuídas à família, tinha, também, uma função moral, em virtude da grande influência que exercia sobre os indivíduos e a sociedade.

Em boa verdade, como primeira instância de transmissão de valores morais que em todos os tempos e lugares são tributários das estruturas sociais e culturais, a família constitui um vínculo crucial entre estas duas vertentes. Vale a pena referir que pensadores sociais, como L. De Bonald e J. De Maistre, afirmavam a prioridade das comunidades sociais sobre o indivíduo, sendo a primeira dessas comunidades a família.

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O grande mérito de F. Le Play como homem de ciência, de política e de intervenção social, embora com objectivos que visavam preservar a ordem estabelecida, algo arreigada a um passado devoluto, foi o ter aliado a sua visão sobre a família, ainda que eivada de ideologia conservadora, à realidade concreta.

3.1.2. Perspectiva leplaysiana sobre as formas de família

A família patriarcal, de resto, mais conhecida por família alargada, inscreve-se na ordem pré-estabelecida e é solidária da propriedade colectiva e das crenças religiosas mais baseadas na lei do que na razão. Sendo assim, predispondo os indivíduos para a obediência e respeito pelas normas vigentes, não deixa de lesar o seu espírito de criatividade e iniciativa.

A segunda forma de família encontrada é a da família instável, ou seja, a que se forma com o casamento, se alarga com o nascimento dos filhos e desaparece com a morte dos esposos. Trata-se da forma de família que, correntemente, é designada de nuclear conjugal.

Esta forma de família impõe-se, cada vez mais, entre a população operária, propaga-se nas classes ricas das sociedades onde predomina o novo regime da economia industrial e onde foi suprimida a lei do Morgadio.

Enfim, a terceira forma de família detectada por F. Le Play, foi a que designou de família tronco, isto é, aquela em que um dos filhos escolhido pelo pai, e associado a ele, herda, em propriedade e usufruto, os bens produtivos, ao passo que os outros irmãos, na medida em que a poupança familiar o permite, criam os seus próprios meios de existência ou partem eles próprios à procura de outros meios de vida. Só com os grandes fluxos emigratórios dos anos sessenta-setenta, integrando, tanto a população masculina, como feminina estas práticas foram praticamente abolidas.

Mas não estamos, de modo algum, perante um decalque do passado mais longínquo ou mais recente, pois que, com as novas lógicas empreendedoras, se se procura cativar um filho para a agricultura, elaboram-se, agora, estratégias de orientação do(s) outro(s) filho(s), para outras opções profissionais, tentando evitar privilegiar um irmão em detrimento dos outros. Refira-se, aliás, que nos nossos dias, os indivíduos e as famílias estão embuídos de um maior ideal de justiça económica e social, independentemente do sexo e do lugar na fratria, uma lógica que escapava às malhas da família tronco.

Todavia, importa sublinhar que F. Le Play, estando altamente convencido da superioridade desta forma de família, imprimiu à sua análise, a este propósito, uma certa cristalização afectiva e intelectual.

Fixando a ideia de que a família tronco é a melhor, continua a atribuir-lhe um rol de atributos:

– alega que é fecunda, ao invés da família instável, porque não se põem problemas de herança distributiva por todos os descendentes assegurando, simultaneamente, a fecundidade e a unidade do património;

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– pratica uma espécie de eugenismo matrimonial, dado que a família guarda e protege os solteiros ou outros familiares debilitados;

– oferece protecção a todos os seus membros, mesmo àqueles que porventura se encontram mais ou menos incapacitados para o exercício das suas responsabilidades;

– procede a uma triagem e obtém, de um menor número de elementos, altamente seleccionados, uma população mais enérgica e mais numerosa;

– dá a cada um a possibilidade de ver satisfeitas as suas necessidades, mesmo tendo em conta a copresença de idades, dos sexos e das gerações;

– socializa os indivíduos nos valores morais vigentes, tais como a obediência, o respeito pela autoridade e a submissão aos interesses do grupo, em detrimento dos individuais;

– oferece um meio de vida promissor, porque capaz de responder a todas as necessidades dos seus membros, inclusive, escolares, hospitalares e de apoio e protecção à velhice;

– constituída em ilha mais ou menos isolada do resto do mundo, não deixa, todavia, de estar ao corrente do que aí se passa, através dos seus elementos dispersos que por força desta organização familiar, enfraquecendo não rompem os laços com a família de orientação, tal por exemplo, o caso dos e/imigrantes e dos eclesiásticos.

Nesta modalidade de família, os papéis do pai e da mãe são assimétricos: ao pai tudo o que se relaciona com o androceu e, inversamente, à mãe com o gineceu. Sendo assim, o primeiro ocupa-se, essencialmente, do exterior e a segunda do que se passa no interior do espaço doméstico, inclusive, da educação dos filhos. A casa e a mãe criam um meio interno que faz da unidade familiar uma espécie de indivíduo, na medida em que o sentir de um é o sentir dos outros. Mais ainda, no caso do operariado, considera que a família é, para este grupo social, um reduto de alegria, pois que estas regalias não são apanágio dos ricos. Deste modo, à mulher é atribuído um importante papel enquanto “anjo de lar”. Por isso, necessita ter condições sendo a primeira a sua total disponibilidade para a família, no seio do lar.

Limitando o desenvolvimento do assalariado e assegurando, na grande indústria, o exercício dos valores tradicionais de protecção, por parte do patrão e de obediência e respeito por parte dos empregados, esta forma de família revela-se ser aquela que mais contribui para a paz social, porque os processos de evolução familiar e os de socialização, no seu todo, devem convergir no mesmo sentido.

Em suma, para F. Le Play a família tronco é a melhor porque assegura, como nenhuma outra, as três funções essenciais da família: a reprodução, a educação e a segurança económica. Ao mesmo tempo, tendo uma lógica interna e externa, pode auto-organizar-se formando uma entidade, um mundo fechado em si próprio, onde será possível desfrutar de todas as harmonias, tendo mesmo em conta as diferenciações etárias e outras condições de ordem estatutária.

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Em termos metodológicos, cabe a F. Le Play ter inventado a técnica das monografias familiares, isto é, o estudo de casos, devidamente seleccionados, de modo a serem representativos da realidade que se quer estudar, policentrados sobre os vários aspectos da vida das famílias operárias.

No caso de F. Le Play, eram recenseados todos os aspectos que a observação directa e participante e o inquérito-entrevista permitiam reter, considerando tudo o que é objecto de receita como de despesa.

Em L. De Villermé, são designadamente os intervalos de confiança que são retidos, entre as classes alta, baixa e média, enquanto que em F. Le Play são os estatutos sociais que decorrem da qualidade do trabalho.

Como bem o referem J. Comaille e F. De Singly (1997, 14), “Comparar pressupõe que o sentido do educador seja idêntico nos diferentes grupos... estudados, ou nos diferentes momentos da observação”.

3.2. O olhar de E. Durkheim sobre as metamorfoses da família

3.2.1. As particularidades da família num processo democrático

Na sua obra La division du travail social, publicada em 1893, ao fazer a distinção entre solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, sendo a primeira tributária da organização social comunitária e a segunda da organização social societária, E. Durkheim coloca, diferentemente, os indivíduos perante a família em cada uma das referidas situações. Assim, no primeiro caso, o indivíduo é, praticamente, absorvido pelo grupo familiar que lhe confere direitos e obrigações, ao passo que, no segundo, o indivíduo, ao conquistar a sua autonomia económica e social, acede, rapidamente, a um processo de individualização, podendo passar sem a participação da família. Deste modo, adquire uma capacidade de auto-afirmação que seria impraticável noutro tipo de organização social.

Esquematicamente, nas sociedades de tipo comunitário, os vínculos eram solidificados em torno de um grupo como a família, a paróquia, a corporação ou outro similar e eram preconizadas as virtudes de índole religiosa: espírito de sacrifício, obediência, abnegação e magnanimidade. Nas sociedades modernas democráticas, sendo essencialmente utilitárias, cada um cumpre o seu dever. Nestas, o estatuto é alcançado pelo próprio indivíduo, ao passo que naquelas conseguia-o através da mediação do grupo em que estava integrado. O que se pode dizer, então, é que a relação indivíduo-família-sociedade é tributária dos modos de organização económica e social predominantes (F. Tonnies, 1977; E. Durkheim, 1978; J. Duvignaud, 1986). De resto, na esteira de E. Durkheim, poder-se-á dizer que a família dos nossos dias não é nem melhor nem pior que a de outros tempos. Apenas é diferente porque as circinstâncias sociais actuais diferem bastante das do passado.

Nestas condições, da mesma maneira que F. Tonnies partindo da célebre distinção de “Gemeinschaft” e “Gesellschaft”, E. Durkheim (1975, 35), considera ter-se passado de um tipo de organização e solidariedade sociais para outro e também a família foi, progressivamente, objecto de

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transformação, passando de um clã amorfo para uma forma perfeita da família conjugal.

Nesta definição estão contidas algumas linhas de força da sociologia durkheimiana sobre a família, ou seja, a contracção do grupo doméstico, a separação entre a família conjugal e o parentesco e, por conseguinte, a privatização e a individualização da família, bem como o carácter de duração temporária, por exemplo, contra a família tronco de F. Le Play que E. Durkheim parece, soberbamente, ignorar. É clara, ainda, a importância do relacional no interior deste grupo que investe, insistentemente, nesta dimensão em detrimento do património, o que leva E. Durkheim a dizer que a família contemporânea é relacional, ao contrário da do passado que era patrimonial.

Seguindo de perto a concepção de F. De Singly (1993, 5) pode dizer-se que esta perspectiva de E. Durkheim é extremamente actual e que, “contrariamente aos discursos ou às publicações que tentam fazer crer que a família conhece, cada mês, cada ano ou cada década uma 'revolução', os traços que a caracterizam, nos finais do século XIX, encontram-se ainda um século depois.

Podemos, então, reter da obra de Durkheim, a partir do seu curso consagrado à sociologia da família em 1892, quatro aspectos fundamentais:• a família contemporânea advém, simultaneamente, mais privada e

mais dependente do Estado e das suas instituições;• inversamente, ela advém mais autónoma em relação ao parentesco;• homens e mulheres, individualizando-se, tornam-se mais

independentes da parentela;• a família contemporânea é relacional.

Se repararmos bem, cada uma destas facetas, sendo apresentada como uma tendência e não como um facto consumado, aponta para um diagnóstico baseado numa perspectiva evolutiva da família, prefigurando-se, assim, uma sociologia das mudanças familiares.

3.2.2. A lógica do privado e do público na família contemporânea

Seguindo o pensamento durkheimiano, já se deixou entender que a família contemporânea é concebida como sendo cada vez mais privada e cada vez mais pública (F. De Singly, 1993). Denota-se, então, um certo paradoxo, porquanto as condições da privatização da esfera familiar são extremamente tributárias da capacidade de intervenção da esfera pública.

Afinal, tudo se passa como se a centralização numa entidade familiar privada, portanto, liberta das amarras do parentesco e da vizinhança exigisse uma contrapartida: a existência de uma outra entidade exterior forte que pudesse não só assumir parte das funções daquelas, como também alargá-las e oferecer-lhe protecção em caso de qualquer eventualidade menos satisfatória ou até de “falência” de um dado grupo doméstico. Ora, tal papel tem sido, cada vez mais, assumido pelo Estado-Providência e pelas suas instituições que, desde o século XIX, intensificam a sua intervenção e controlo no seio da vida familiar.

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Frise-se ainda que, com a passagem da sociedade do trabalho à sociedade do emprego que, por conseguinte, segrega a dependência do salário, a família conjugal moderna está, extremamente, subordinada às condições do mercado de emprego das quais, por sua vez, depende toda a sobrevivência do grupo doméstico e até a realização, ou não, dos seus projectos, inclusive o da sua autonomia e privatização. O caso do desemprego prolongado e a consequente pobreza, quiçá exclusão social, que lhe estão frequentemente associadas, são significativas a este propósito.

Por tudo isto, poder-se-á dizer que a privatização da família, sendo um facto inegável, acaba por conter, também, alguma complexidade.

E. Shorter (1977, 279) considera que “O espírito doméstico – a consciência que a família desenvolve de si própria, enquanto unidade afectiva preciosa que o muro da vida privada deve proteger contra toda e qualquer intrusão – foi a terceira ponta de lança da grande ofensiva sentimental dos tempos modernos. Mas o que, paralelamente, importa relevar é que, em termos práticos, sabemos que o espírito doméstico é cada vez mais acentuado, quando nós vemos pessoas, como em França, que retiram os nomes da porta de entrada, para desencorajar qualquer visita inoportuna, ou então os pais, como na Alemanha, renunciarem ao jogo de cartas ao domingo para passearem nos pinhais com a família, ou ainda, como por todo o lado, quando vemos as pessoas passarem uma parte importante do seu lazer em casa”.

Muito concretamente, a fisionomia do espaço urbano, construído para habitação, favorece também estas atitudes. Sendo, essencialmente, de tipo vertical, permite constatar, frequentemente, situações em que os vizinhos não só vivem sobrepostos, mas também como ilustres desconhecidos, o que vai ao encontro desta lógica de privacidade, individualidade e anonimato. Outro tanto se diga dos condomínios fechados, seleccionando em extremo as famílias que os habitam, mas onde, por vezes, cada uma é uma ilha no seio de outra ilha. De resto, como refere P.-H. Chombart de Lauwe (1967), a habitação não pode ser concebida fora do quadro material de vida duma sociedade no espaço. Dá a ver a imagem de uma sociedade inscrita no solo, as estruturas e os modos de pensar que lhe são peculiares.

Está-se já, aqui, perante uma consequência expressiva da problemática da modernidade que, propiciando a fragmentação das coisas, do espaço e de sentido para a existência, se faz, igualmente, sentir no mundo familiar mais restrito.

Na óptica de D. Riesman (1964) a família e os mecanismos que gerem a habitação moderna urbana participam da lógica da “multidão solitária”, isto é, vivendo lado a lado ou sobrepostas e coabitando no interior de uma mesma ilha-fortaleza que são os prédios modernos em andares, e, ainda, com mais razão as torres e os arranha-céus, as pessoas, muitas vezes, olham-se e não se vêem, cruzam-se e não se encontram, ouvem-se mas não se escutam, relacionam-se mas permanecem indiferentes, sabem-se presentes mas ignoram-se para se refugiarem na casa-família, ninho, abrigo e concha, na expressão poética de G. Bachelard. Esta perspectiva, sendo partilhada por E. Shorter (1977, 287) leva-o a afirmar que a experiência do mundo moderno mostra-nos o caminho percorrido neste sentido: “o ninho tornou-se a norma”. Segundo P. Ariés (1973) tal

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facto parece contrariar o anteriormente vivido, em que a porta da casa estava permanentemente aberta ao outro que chegava.

Por sua vez, A. Touraine (1994, 265-266) diz que “Se a nossa cultura separa tão fortemente o mundo privado do mundo público, não é apenas porque é narcísica ou porque as ideologias políticas estão mortas; é porque distingue o que foi confundido durante séculos, isto é, a racionalização e a referência ao sujeito, suprimindo progressivamente tudo o que ligava uma ordem à outra, em particular o que conferia um conteúdo social às relações interpessoais”.

Porém, entre estas duas vertentes forja-se algo de assimétrico, na medida em que do lado da esfera familiar, para ser cada vez mais privada, se permanece cada vez mais à mercê do público.

De resto, verifica-se que, a este nível, se o Estado toma medidas e cria mais condições, através de subsídios e medidas de protecção de vária ordem, para gerir os riscos a que a família contemporânea está sujeita, esse mesmo Estado, além de não querer, até em nome do respeito pela democracia e pela liberdade, não parece ter meios idênticos para gerir as fragilidades da família, hoje mais proeminentes que noutros tempos. Desta maneira, não será difícil, por exemplo, mostrar, que no caso de rupturas familiares, o Estado intervém mais para dirimir situações, por vezes mais em caso de conflito, do que para as evitar, ainda que recorra cada vez mais aos profissionais das fragilidades, ou seja, todos os que se inscrevem nas áreas do “psi”, ao invés de outros tempos bem próximos de nós, em que recorria predominantemente aos profissionais do risco.

3.2.3. A crescente autonomia familiar em relação ao parentesco

Para mostrar a pertinência desta forma peculiar de ser família, invoquemos, ainda, o pensamento de E. Durkheim para quem os laços de filiação se vão enfraquecendo na família contemporânea. Porém, em nosso entender, esta asserção não é assim tão linear, na medida em que se constata que os laços entre pais e filhos, sendo diferentes do passado em relação, por exemplo, às sociedades proto-industriais nem por isso, parecem sair totalmente enfraquecidos. Eles são, outrossim, de outra ordem que investe mais no relacional e no afectivo e menos no património material e, por conseguinte, vão sendo objecto de várias reelaborações.

Certo, a questão dos laços familiares poderá, contudo, reequacionar-se quando é pensada em termos inter-geracionais, designadamente no que se refere às que se encontram nos extremos da cadeia inter-geracional familiar.

Procurando não perder de vista a perspectiva durkheimiana, o ponto a partir do qual se desenha a complexidade desta situação é que, com a passagem das relações patrimoniais às de trabalho e às de função, a relação inter-geracional poderá ficar algo comprometida. “É que, actualmente, há valores de alta importância que, de algum modo, não podem ser transmitidos de modo hereditário (são precisamente) as funções e as dignidades. Mas é verdade, que esta regra, generalizando-se cada vez mais, torna a transmissão hereditária cada vez mais diversificada.

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As condições morais da nossa vida social são de tal ordem que as sociedades só poderão manter-se se as desigualdades 'exteriores' nas quais são colocados os indivíduos se nivelarem cada vez mais” (E. Durkheim (1975, 44).

O indivíduo, em si mesmo, não é um fim absoluto e abandonado a si próprio e sem laços familiares ou sociais sólidos, arrisca-se a cair na “anomia”. Assim, é a própria família que, por sua vez, deverá estar apta a (re)construir formas de solidariedade orgânica que a projectem para fora de si mesma. Precisamente, um dos meios de obviar a este risco de isolamento é a integração profissional, mas que, por si só, também não é suficiente. É necessário, portanto, que fora da família, se seja solidário de outro grupo, mais restrito que a sociedade política, que seja próximo de nós, nos toque de perto e seja capaz de exercer os objectivos que a família já não tem capacidade para o efeito.

Estamos, já aqui, perante uma consequência expressiva das mudanças em curso nas sociedades dos finais do século XIX que não deixavam de apontar para outro tipo de relações no interior do triângulo indivíduo-família-sociedade, designadamente, em termos de novos laços familiares e sociais. Em nosso entender, esta questão, sendo velha, continua de uma actualidade extraordinária. O problema dos laços sociais e, inversamente, da exclusão social, sendo hoje diferentes do passado, retomam outra, mas nova, equidade.

Do conjunto de trabalhos que têm sido produzidos a este respeito – e ao longo dos últimos anos, no domínio das ciências sociais, nomeadamente a sociologia, tem sido uma das áreas de grande produção em toda a Europa – prendem-se com as respostas às solicitações dos vários poderes políticos ou outros similares, em vista de programas de intervenção, embora alguns se situem no quadro de uma reflexão mais alargada.

Outro tanto se diga quanto à intervenção dos cientistas sociais que é hoje mais isenta de militantismo e, por conseguinte, mais desapaixonada sob o ponto de vista ideológico e analítico.

Em Portugal, as novas orientações governamentais em matéria de deshospitalização e de apoio aos idosos são sintomáticas. Estudos feitos sobre esta problemática, tanto nalguns países europeus como nos Estados Unidos e no Canadá, indicam que afinal de contas, ao pretender-se reactivar as solidariedades sociais, é às famílias e ainda mais sobre a égide das mulheres, que se faz apelo (Le Disert, 1985; F. Lesemann et C. Chaume, 1987; A. Monk et alii, 1989; J. Baldock and C. Ungerson, 1991). Com efeito, logo que um doente ou um idoso no domicílio exigem cuidados mais prolongados, o círculo de pessoas que se ocupam deles de forma continuada é extremamente reduzido e recrutado no seio dos familiares mais próximos e não numa comunidade local idílica em termos de solidariedades informais.

Os indivíduos e respectivas famílias que ficam em situação de grande vulnerabilidade social são levados frequentemente, a um enfraquecimento ou mesmo a uma ruptura dos laços sociais, logo a situações de exclusão social.

Claro que esta questão, embora de maneira indirecta, não deixa de estar contida no quadro da sua análise sobre a família conjugal na sociedade

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contemporânea do seu tempo, quando apela ao não isolamento da família sobre si mesma e, ao invés, a incita a integrar outras formas de grupos, associativos ou não, que congreguem as pessoas entre si destas com a sociedade.

3.2.4. A individualização familiarSendo certo que daqui decorrem vários efeitos de índole individual, familiar e social, na óptica de E. Durkheim a família contemporânea, individualizando-se e deixando de dar primazia à preservação do património económico, investe muito mais nas relações do que nas coisas, passando as primeiras a serem um factor primordial da vida doméstica e não as segundas como no passado, o que traz algumas consequências, logo que se tenha em conta o horizonte intergeracional.

A. Touraine (1994), considera que nas sociedades da modernidade ocidental, o desejo do indivíduo de se tornar actor é a própria definição de sujeito envolvido nas teias da relação amorosa. Assim, “Aquilo a que chamamos amor é a combinação do desejo, que é impessoal, e do reconhecimento do outro como sujeito ... É, portanto, na relação interpessoal, na relação amorosa ou de amizade, que o sujeito se afirma, mais do que na experiência da solidão para os românticos, porque está carregada de naturalismo, ou na experiência social à qual voltam sempre o pensamento funcionalista e o seu conformismo essencial”.

Por outro lado, E. Durkheim (1975, 45) acerca do seu tempo, interroga-se sobre as consequências que daqui possam advir, na medida em que as relações inter-geracionais, sendo enfraquecidas ou rompidas devido ao desaparecimento da herança dos bens materiais, deixam o indivíduo entregue a si próprio podendo facilmente cair na anomia ou outros males sociais. Com efeito, “Se prosseguimos, apenas, objectivos pessoais, somos muito menos incitados a trabalhar, porque o nosso trabalho só tem sentido quando serve para outras coisas que não o nosso interesse exclusivo. O indivíduo não é um fim em si mesmo. O que nos prende ao trabalho é que ele é para nós um meio de enriquecer o património doméstico, de fazer aumentar o bem estar dos nossos filhos”. Estes aspectos adquirem ainda maior relevância quando se faz depender a existência individual e o significado da mesma, da relação com os outros, sendo, neste caso, os outros mais visados a própria família conjugal.

Ora, na família do passado, ao tempo da sociedade do Antigo Regime e mais próximo de nós a família rural de economia agrária, em que se impunha a preservação do património, a identidade e a fusão do grupo familiar, tais atitudes tornavam-se, praticamente, impossíveis, na medida em que as coisas patrimoniais eram o principal garante da solidificação social dos familiares. Todavia, com a libertação dos constrangimentos económicos e o advento da modernidade que faz do indivíduo um valor fundamental, a família, participando também desta dinâmica, privilegia antes o investimento nas relações individualizadas no seio de um grupo muito restrito: os esposos e os filhos que doravante passarão a ser, ao mesmo tempo, uma individualidade e um colectivo em miniatura, mas à sua medida.

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3.2.5. O investimento nas relações intrafamiliares

“As coisas eram bem diferentes antigamente, pois que os laços que advinham das pessoas e toda a organização familiar tinham, acima de tudo, por objectivo, manter na família os bens domésticos e onde todas as considerações pessoais pareciam secundárias comparativamente com aquelas”. Com esta perspectiva, nestes tempos que são os nossos, constata-se que o relacional afectivo na esfera parental e o amoroso na esfera conjugal, ocupam um lugar primordial na família contemporânea, pelo que não é apenas uma estrutura mas também uma enseada onde se encontra abrigo, calor e carinho personalizado.

Decerto que, o indivíduo, mais liberto de um conjunto de constrangimentos anteriores, pode direccionar-se, agora, para outros objectivos que consistem mais na construção de uma entidade que não é mais o que se herda, se transmite e encerra numa entidade familiar e colectiva, mas o que se constrói em torno de um projecto orientado para o futuro em busca de uma “performance” individual. Não admira, pois, que aqui seja dada primazia à qualidade das relações interpersonalizadas, intensas e sentimentais, o que permite dizer que a família contemporânea é relacional. Sendo assim, a solidariedade doméstica personaliza-se e a família investe, intensamente, na qualidade das suas relações intrafamiliares.

Cônjuges e filhos passam a ser mais apreciados por si mesmos, em termos de satisfação relacional, do que pelo que representam ou podem fazer.

É neste quadro que A. Giddens (1996) fala de “amor confluente”, isto é, cada um se abre reciprocamente na sua relação com outro e não um ao serviço do outro. Tal é a essência do sentimento moderno no seio da família contemporânea mais recente que E. Durkheim (1975, 43) vislumbrava já, em embrião, na família conjugal do seu tempo: “Nós queremos muito à nossa família porque nos prendemos às pessoas que a compõem ... Eis o que tende a devir a família”.

Aliás, o próprio casamento é já concebido nesse sentido. “Em geral, considera-se que o casamento, por 'amor' ou por 'inclinação', no seio do qual o marido e a mulher são um para o outro companheiros e amigos, mais do que um superior e uma subordinada, é a instituição peculiar da vida familiar moderna”.

Contudo, é ao longo das últimas décadas que esta expressão se torna mais visível, um pouco por toda a parte, mesmo nas sociedades onde outrora prevaleciam os valores da família tradicional e os bens e as coisas tinham a primazia sobre as pessoas e os seus sentimentos pessoais. Ao contrário, nos nossos dias, parece ser mais sobre a qualidade das relações que do próprio capital económico e até cultural que se constroem, mantêm, modificam ou desfazem os laços familiares, designadamente de ordem conjugal e não tanto paternal e filial.

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3.2.6. Do conjugal ao filial nos novos temposHabitualmente tomada como “desgraça” ou manifestação de anomia, a designada “crise da família” está afinal mais associada à ruptura dos laços conjugais que a outras transformações de grande fôlego no seio da célula familiar.

Antes de mais, importa referir, que com a progressiva integração da classe operária através do emprego e da família, o advento e desenvolvimento do Estado-Providência e um certo emburguesamento da classe operária, até por volta dos anos setenta, a família parecia definitivamente consolidada, segundo o modelo que lhe havia sido traçado, quer pelo Cristianismo, quer pela ideologia burguesa desde o século XVIII. Todavia é, exactamente, por esta altura que se começa a desenhar um forte movimento de libertação de toda uma série de constrangimentos familiares e sociais que conduz à fluidez do seu sistema relacional, mormente da conjugalidade. De tudo isto é o casal que parece sair mais fragilizado o que, doravante, induz o Estado, as suas instituições e outras similares, como é o caso das Instituições Privadas de Solidariedade Social em Portugal, a terem que deixar de se preocupar apenas com a problemática dos riscos para terem que entrar numa problemática das fragilidades ((R. Castel, 1991).

No entanto, se a política dos riscos em relação à família tem conseguido alguns efeitos benéficos, o mesmo parece não acontecer em relação às fragilidades, na medida em que o Estado, como vimos anteriormente, propalando a democraticidade, a defesa das liberdades e garantias individuais e autonomia da família nem dispõe de muitos meios nem parece estar interessado numa intervenção eficaz neste sentido. Quando muito, a sua intervenção será a de um árbitro logo que seja necessário dirimir alguns aspectos mais ou menos conflituosos.

Perante tal situação poderia até pensar-se que, sob alguns aspectos, estamos perante uma consequência expressiva dos efeitos preversos que podem advir das políticas do Estado-Providência.

A forma de capital intelectual constrói-se, normalmente, sem o concurso do cônjuge, dado que é adquirido antes da entrada no mercado de emprego e depois a sua gestão não pode ser outorgada a outrem, embora possa haver aqui alguma dose de interacção. Assim sendo, sobre este aspecto muito concreto, cresce a importância da família de orientação e decresce a da de procriação.

Idêntica lógica se aplica a razões de ordem pedagógica que se prendem, por um lado, com valores de uma forte vaga consumista que invade toda a vida moderna, tanto sob o ponto de vista material como simbólico, a que não são alheios os “mass media” que atingem cada vez mais a vida privada (J. Habermas, 1987). Depois, as regras do saber-fazer e do saber-ser, exigindo uma actualização permanente, lançam, frequentemente, as pessoas numa sensação de incompetência e de finitude. Daí que a relação conjugal seja, agora, mais legitimada pelo amor e a sexualidade e menos por aspectos funcionais.

Em boa verdade, se, na generalidade, as políticas familiares europeias indicam ser contemporizadoras no que se refere às rupturas conjugais, o mesmo não acontece logo que se trate do laço parental-filial, mesmo em caso de ruptura conjugal.

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Por um lado, mais investimento na relação amorosa logo que se trate da conjugalidade, concede-lhe, simultaneamente, a sua força, a do “amor puro” (N. Luhmann, 1990), mas também a sua fraqueza, dado que o mesmo baseado, apenas, nos sentimentos comporta consigo o risco da instabilidade e da fragilidade; por outro, perante o recuo do conjugal, é em torno do filial e do fraternal (os irmãos biológicos) que a família, sem deixar de ser ela, procura focalizar-se.

Numa época de evaporação dos sentimentos e de enfraquecimento das crenças numa eternidade transcendental, o filho parece ser o garante de uma eternidade profana, materializada e secularizada através da continuidade inter-geracional ao longo dos tempos. Aliás, quanto à ligação com os antepassados progenitores, o recurso em voga à recomposição da memória familiar através de genealogias familiares e até da revalorização do património são, também, sintomáticos a este propósito.

3.2.7. Casamento e famíliaResta-nos olhar, agora, do lado da perspectiva de E. Durkheim sobre a relação entre a família e o casamento. Antes de mais, importa sublinhar que não concebe a segunda sem o primeiro, pois que este é, simultaneamente, o que a fundamenta e o que dela decorre. Sendo, praticamente, indissolúvel e monogâmico, apresenta duas novas características, que revelam a sua consistência, em relação às formas de casamento anterior, por exemplo no Antigo Regime, instaurado pelas revoluções liberais, isto é, o casamento civil, ainda que venha a ser seguido do casamento religioso. Por outro lado, deixa de ser um acto privado para ser um acto público-jurídico. Por sua vez, passando das condições externas do casamento para a organização das relações matrimoniais, introduz a igualdade patrimonial entre os cônjuges, o que é novo na história das famílias ocidentais.

Em oposição a este cenário e em termos de repercussões sociais, o casamento, assumindo a dimensão jurídica, faz com que os seus contraentes assumam, um perante o outro e perante a sociedade, um certo número de direitos e deveres, o que não é, de maneira alguma, o caso da união livre.

Sob o ponto de vista do exercício dos papéis masculino e feminino e da igualdade de prerrogativas dos cônjuges, sem que se tenha pronunciado, directamente, a este respeito, neste curso de sociologia da família, não deixa, no entanto, de defender a assimetria dos mesmos, bem como a hierarquia no interior da família, como está patente no seu artigo: origem do problerma das mulheres.

Enfim, se retivermos em conta, em sentido lato, a perspectiva sociológica de E. Durkheim acerca da família, podemos dizer que há elementos que continuam de uma extrema actualidade e outros que têm sido largamente contrariados pela realidade. Contudo, importa sublinhar que não se trata de uma análise circunscrita às várias relações interpessoais de género e de geração que se tecem no interior da família, como não seria de esperar do autor numa análise que tem, sobretudo, em conta as dinâmicas familiares e sociais, aliás, não isenta das influências das teorias do evolucionismo muito em voga no século XIX.

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3.3. A família nuclear americana na pluma de T. Parsons e R. Bales

3.3.1. A família como subsistema dum sistema geral

Com a saída da crise de 1929, vivia-se, então, em plena época de expansão económica. Daqui decorrem a solidificação do Estado-Providência e um certo número de medidas económicas, visando aumentar o bem estar e o poder de compra das famílias, inclusive, das de condição operária, aumentando o salário do homem, chefe de família.

A verdade, porém, é que as classes laboriosas, vendo aumentar o seu poder de compra, vão, progressivamente, acedendo à aquisição dos bens que elas próprias produzem. Estava dado o grande passo para a entrada na sociedade de consumo, o que constitui um factor importante para o reforço do processo de democraticidade e individualização. Este movimento, sendo mais tardio na Europa ocidental, com a (re)construção económica, após a segunda guerra mundial, assume, aqui, características idênticas.

Fica, assim, claro que a família é definida como um subsistema que cria relações com outros subsistemas no seio do sistema social total, sendo este concebido como um todo, integrado por várias redes interligadas entre si. Para explicitar a importância da família, no seio do sistema americano, define-a a partir de três eixos teóricos:• as funções,• as estruturas e• os papéis.

3.3.2. Uma teoria das funções sociais da família

Quanto às funções, consideram que estas, sendo bastante diferentes do passado, têm vindo a especializar-se à volta do macrossocial e do microssocial. A família deixou de ter qualquer função económica, pois que não é mais uma unidade produtiva. Contrariamente ao passado, a família deixou de ter um papel activo, em relação à política, pois que, doravante, o voto, sendo individualizado, transfere esta função para o indivíduo, enquanto tal, e não como membro de uma família.

Esta visão tem sido alvo de várias críticas. Tendo passado de uma economia de auto-subsistência, com ou sem acumulação de rendimentos, a uma outra de produção externa e de consumo interno, nem por isso deixa de contribuir para a reprodução das gerações e, por conseguinte, da renovação da força de trabalho que, independentemente, da sua diversificação no interior dos vários sectores da actividade profissional e ainda que a máquina a possa substituir em várias tarefas, continua a ser a mola real da economia. Outro tanto se diga no que se refere à circulação da cadeia de produção-consumo em sentido amplo, pois que a primeira é, extremamente, tributária da segunda e esta passa, essencialmente, pela família, principal unidade de consumo.

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Além do mais, como já anteriormente referimos, não se pode menosprezar, também, o importante contributo económico que é dado pela família, em termos da prestação de serviços domésticos, ainda que estes assumam aqui o sentido da gratuidade.

Quanto à função política, se é verdade que as regras do jogo mudaram em relação aos votantes, também se verifica uma forte influência da família sobre os seus membros no sentido da orientação de voto. Vale a pena salientar um trabalho de pequena dimensão feito, sob a nossa orientação no ano lectivo 1997-1998, por um grupo de alunos do 4º ano do Curso de Sociologia das Organizações, junto de um certo número de colegas da Universidade do Minho. Englobando vários anos e diferentes cursos, os resultados vieram a revelar que a influência da Universidade na mudança dos comportamentos políticos é, incomparavelmente menor, correlativamente à da família e até das próprias atitudes perante a religião.

Aludindo, agora, ao microssociológico, é a este nível que T. Parsons e R. Bales situam a grande importância da família, na medida em que exerce duas funções fundamentais:• a socialização primária das crianças, para que se possam tornar bons

membros da sociedade e• a estabilização da personalidade dos adultos, através do apoio

afectivo de que necessitam.

Quanto ao primeiro aspecto, segundo estes autores, a família deve actuar no sentido de favorecer a boa integração social dos seus membros, uma vez que a vida em sociedade será tanto mais harmoniosa quanto a realização do indivíduo na família seja elevada. Desta maneira, os pais devem prosseguir um tipo de educação que, não sendo autoritária, favoreça, simultaneamente, o desenvolvimento da capacidade criadora e da descoberta dos papéis que virão mais tarde a assumir, tal como o gosto pelo sucesso, a começar pela escola, primeira aliada dos pais neste empreendimento, e pelo grupo de pares. Porém, actualmente, por mais colaboradores que a família tenha nesta função educativa, o autor considera caber-lhe o principal papel na socialização, visando a formação da personalidade do indivíduo, dado que esta não é inata, mas desenvolve-se, tão somente, com um crescimento harmonioso que só uma família coerente com este modelo pode favorecer.

3.3.3. Uma teoria das estruturas familiaresPassando à sua teoria sobre as estruturas, importa sublinhar que a família americana é de tipo nuclear conjugal, ou seja, constituída por uma estrutura triangular: o pai, a mãe e os filhos. Forma uma unidade autárcica, cuja sobrevivência económica deve ser assegurada pelo salário do homem, marido, pai e ganha-pão.

Trata-se, também, de um grupo familiar onde reina um sistema bilateral simétrico de parentesco, isto é, tanto o ramo parental como o maternal estão, igualmente, presentes e os filhos, independentemente, do sexo e da ordem dos nascimentos, têm os mesmos direitos, perante a herança.

Outro elemento muito claro desta sociologia da família é a relação entre a família e o casamento, pois que é este que fundamenta aquela. Contudo, os nubentes, procurando a sua total realização, escolhem-se

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livremente, contrariamente a um passado não muito recuado, em que as escolhas matrimoniais dos jovens eram feitas pelas respectivas famílias.

Esta mudança não invalida que os casamentos continuem a ser homogâmicos, pois que cada um tende a escolher o outro no seu meio social. Assim, o homem retira o seu estatuto da profissão, enquanto a mulher o adquire através do estatuto do marido, ou seja, ficando numa total dependência do marido, é-lhe negada qualquer capacidade de autonomia individual e social.

Mais ainda, tendo em conta que na época não estávamos, ainda, perante a divulgação dos métodos anticonceptivos de cariz medicinal, as regras do jogo, em matéria de fecundidade, estavam mais na mão do homem do que da mulher.

Para T. Parsons e R. Bales, esta família, sendo a que corresponde melhor às características da sociedade industrial, orienta-se por valores racionais, isto é, insistindo na competência em vez do nepotismo, fundada na diferenciação de papéis entre sexos e gerações e sendo independente da parentela, não hesita perante a mobilidade espacial com ou sem perspectivas de mobilidade social, logo que seja necessária a mudança de emprego, inclusive, no interior da mesma empresa. Claro que estas mudanças decorrem, única e exclusivamente, da posição do homem, marido-pai, até porque, neste sentido, o papel atribuído à esposa-mãe não é o profissional, mas apenas o doméstico.

F. De Singly (1997), referindo-se à situação, em que muitos cônjuges vivem numa situação de dupla carreira profissional, considera que esta regra de ouro continua a manter-se, ou seja, logo que seja necessário mudar de residência, por razões de emprego, é quase sempre o local de emprego do marido que vai determinar a escolha da residência familiar. Aceitando esta realidade, pode dizer-se que daqui decorre, entre outros aspectos, uma consequência directa em termos de relações interfamiliares: a família nuclear, sendo mais individualizada e reagindo, apenas, em função das necessidades profissionais das sociedades industriais, fica ainda mais entregue a si própria, deixando, assim, de poder beneficiar do apoio do parentesco logo que este seja necessário.

Apesar desta individualização e privatização crescentes da família nuclear, as relações com o parentesco são privilegiadas, em termos de interajuda e de visitas mais ou menos frequentes, ainda que com matrizes diferentes. Aliás, para dar corpo a esta realidade, ambas as famílias, a de orientação e a de procriação, procuram que o local de habitação da primeira seja pouco distanciado da segunda (A. Girard, 1964; C. Go-kalp, 1987; J. Pina Cabral, 1989; M. E. Leandro, 1995). O certo é que T. Parsons e R. Bales referem, essencialmente, a participação nas tarefas domésticas e na educação dos filhos e ignoram outras dimensões. Mesmo a este nível, a realidade é bem mais complexa, sobretudo, em certas regiões e situações de famílias de condição social modesta, em que se manifesta uma intensa solidariedade, em termos de interajuda familiar. Em Portugal, se é verdade que o fenómeno das migrações internas e externas veio trazer profundas transformações neste sentido, verifica-se que continua a tender-se para esta prática, logo que a situação o permite e a optar-se por uma prática residencial uxorilocal e não virilocal, sobretudo, a nível do meio rural (J. Pina Cabral, 1989.

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Se nas sociedades contemporâneas, apesar das transformações operadas nas relações de parentesco, os seus membros continuam a forjar entre si laços privilegiados, também não é menos verdade que, tanto em termos das identidades individuais como no plano das relações, a independência e autonomia inter-geracional é extremamente valorizada e cultivada. Assim, “Objectivamente, pode mostrar-se a importância das redes de interajuda, através do número de visitas, dos serviços e dos intercâmbios, mas isto não basta, porque é preciso não ignorar a maneira como uns e outros negoceiam estas visitas, serviços e intercâmbios. Tendo em conta as novas orientações sociológicas, o sentido que os homens e as mulheres imprimem às suas actividades não pode ser ignorado, a este respeito”.

3.3.4. Uma teoria dos papéis conjugaisPensando que a família deverá ser um espaço de felicidade – aliás um aspecto em que, segundo L. Roussel (1989), a família investe cada vez mais ao longo das últimas décadas – pois que só assim poderá contribuir para o bom funcionamento de uma sociedade altamente competitiva, preconiza que esta deverá ser organizada de maneira a poder realizar estes objectivos, ou seja, de regresso a casa, o indivíduo deve encontrar um ambiente capaz de o compensar das agruras profissionais ou doutro desgaste exterior.

A existir o trabalho da mulher-mãe fora de casa, consideram ser tão somente as mulheres solteiras, viúvas e divorciadas que não podem contar com o ordenado do marido e, no máximo, as casadas que ainda não têm filhos, que poderão enveredar por esta via. De contrário, os interesses da família serão duplamente lesados. Por um lado, trabalhando no exterior, a mulher não estará tão disponível para o exercício do seu papel expressivo e, por outro, acedendo ao salário e adquirindo, por si própria, um estatuto e autonomia, em vez de dependente e submissa, torna-se concorrente e tende a tornar-se igual ao marido.

Quão longe este perfil parece estar dos ideais democráticos, de igualdade e realização individual tão propalados nos últimos tempos que, sob muitos aspectos, questionam esta teoria dos papéis sexuais diferenciados!

De resto, esta defesa acérrima dos papéis assimétricos, no interior da família, baseada no sexo, tem sido objecto de severas críticas, nomeadamente, dos movimentos feministas e algumas correntes intelectuais desencadeados, mais insistentemente, a partir dos anos sessenta-setenta e, simultaneamente, contrariada pela própria realidade dos factos.

Tudo isto não pode ser quantificado em horas fixas, como acontece com o trabalho profissionalizado do homem. Ao mesmo tempo, valorizando, sobretudo, a dimensão afectiva da mulher no lar, ocultam o valor do trabalho doméstico que lhe está atribuído e, ao invés, impõe-lhe a gratuidade.

Segundo a tradição, é normalmente a mulher quem se ocupa da administração da casa e até da orientação do salário que o marido lhe dá para o efeito. Mais ainda, com a profissionalização comum dos cônjuges, uma nova reestruturação do casal em favor da igualdade e da repartição

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das tarefas está em curso, ainda que muito lentamente, dado que as mentalidades e os hábitos sedimentados oferecem, frequentemente, muitas resistências à mudança.

3.4. A família contemporânea vista por W. Goode

3.4.1. Uma abordagem plural da questão familiar

Na cronologia lógica do tempo e dos acontecimentos que marcam a segunda metade do século XX, tanto no que se refere aos trabalhos sociológicos produzidos, como às transformações que se têm operado na família, um dos trabalhos relevantes de sociologia da família de W. Goode foi publicado cerca de uma década depois dos trabalhos de T. Parsons e R. Bales. Não sendo uma réplica a estes, apresenta uma visão da problemática familiar que se distancia da destes autores.

Estando perfeitamente convicto da realidade da intrincada relação entre os membros da família no seu seio e desta com a sociedade, tendo como pano de fundo a análise da sociedade americana e de outras sociedades ocidentais, não se deixa encerrar neste espaço sóciogeográfico, recorrendo, assim, à aproximação comparativa, extensiva a outras sociedades com estruturas, organização, sistemas de valores e religião diferentes, como, por exemplo, o caso da China e do Japão, fazendo ainda alusões às civilizações indiana e árabe, entre outras.

A família é por toda a parte, uma componente da estrutura social com a qual interage e, sendo tributária de vários modelos de socialização, os seus mais variados comportamentos não podem ser determinados e explicados, tão somente, por factores biológicos. Comparativamente com os outros animais, além da diferença de cuidados de ordem biológica, o homem é o que necessita de um processo de socialização mais prolongado, que tem, normalmente, o seu ponto de partida numa família, sendo esta, intrinsecamente, de natureza biológica e social. Desta maneira, “A variedade de padrões familiares é limitada por um conjunto de padrões que podem ser designados de 'biossociais'” (W. Goode, 1970, 35).

3.4.2. A acção socializadora familiar e social e a sua interactividade

É certo que “Esses padrões, essencialmente biológicos, limitam as formas que a família humana poderia assumir. Contudo, eles não são capazes de transformar o organismo biológico em ser humano – ou seja, num agente movido por valores e normas, capaz de comunicar e preocupado em preservar uma aliança cultural. Servem, no máximo, como uma base sobre a qual podem ser construídos os valores e as tramas de parentesco do homem” (sic) (Ibidem, 37).

No seu entender, é à família que cabe o papel primordial na socialização, pois que é, normalmente aí que os humanos começam a despertar para a vida, o mundo e a sociedade.

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Por esta razão, é na família que todos começamos por nos reconhecer quem somos, num perfeito jogo de interacção entre o Eu e o Outro, encontramos os primeiros elementos de identificação, aprendemos a comunicar com os gestos e balbuciamos as primeiras palavras, quase sempre pai e mãe, extremamente carregadas de sentido, forjamos as primeiras atitudes e comportamentos. É o que W. Goode designa de socialização, ou seja, um processo através do qual a criança adquire os hábitos e os valores do seu grupo e aprende os papéis sociais adequados à posição que ocupa.

Para E. Durkheim (1993), a quem convém fazer recuar o uso e definição teórica desta função, na qualidade de fundador da sociologia da educação, embora a mesma já se encontrasse na literatura sociológica alemã dos finais do século XIX na obra de G. Simmel, mas sem uma sistematização exaustiva, socializar é converter. Idealmente é transformar um indivíduo de um ser associal num ser social, transmitindo-lhe um sistema de pensamento, de valores, de crenças, de tradições, de códigos e valores morais, profissionais, de classe, de religião, sem que, no entanto, esse processo, ainda que mais intenso na infância e na juventude, possa ser considerado por definitivamente adquirido, nesta ou naquela fase da vida. Com efeito, a sociedade, designadamente a dos nossos dias porque é intensamente mutável, sendo dinâmica exige uma certa capacidade de (re)adaptação permanente, entre os seus concidadãos e, aliás, com o fenómeno da “globalização”, a um contexto mais vasto, de carácter internacional.

Por seu lado, em nosso entender, todo o processo de socialização familiar ou outro é dialéctico, na medida em que, forjando seres sociais, estes vêm, depois, com outros, a ser sujeitos-actores do seu próprio destino e daqueles que, por sua vez, venham a depender deles.

Em boa verdade, muitas atitudes e decisões que têm lugar na juventude e até na idade adulta, nem por isso são menos tributárias dos processos de socialização familiar. Aspectos tão variados como:

– as normas sociais de (i)legitimidade;

– os mecanismos e os rituais de namoro ou de selecção do cônjuge;

– as modalidades e rituais de casamento;

– os modos de organização da vida doméstica;

– os agrupamentos de descendência organizada;

– as relações com o parentesco;

– o sistema de estratificação e a divisão do trabalho na família e na sociedade;

– o exercício dos papéis – considerando que, para além do biológico, não há tarefas, exclusivamente, femininas e masculinas, já que estas são determinadas e decididas pelas sociedades;

– a desorganização da família , sendo esta entendida como um colapso da unidade familiar;

– a dissolução ou fractura dos papéis sociais, quando um ou mais membros da família deixaram de desempenhar, adequadamente, as suas obrigações;

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– as rupturas, as reorganizações e reajustamentos , são objecto de uma análise dinâmica. Porque em caso algum, W. Goode considera que a família é uma realidade estática ou um dado adquirido de uma vez por todas.

3.4.3. A família perante as mudanças nas sociedades da modernidade

É claro que não se trata, aqui, de uma família no singular, isto é, olhada unidimensionalmente. A realidade familiar é polissémica e não só cada forma de família como também, em parte, os vários grupos de diferentes pertenças sociais e geracionais condicionam a adesão ou, ao invés, a resistência à transformação, ainda que, no nosso tempo, ela seja muito intensa. De resto, nem a modernização das sociedades se tem feito contra a família nem a família tem permanecido uma entidade passiva perante os valores da modernidade e muito menos, se tornou um produto da modernidade, mas antes, conjuntamente com a sociedade, é produtora de modernidade.

Vale a pena lembrar, contudo, a propósito da conjugação de vários elementos em prol da mudança que, na opinião do autor, a industrialização, sendo um elemento crucial, por si só não basta para compreender o alcance deste fenómeno. Tal perspectiva, não fora os efeitos que daí decorrem para o acentuado envelhecimento das sociedades da modernidade avançada e o peso que este fenómeno pode representar para o Estado-Providência, parece integrar melhor os interesses da sociedade industrializada, onde• parte do trabalho humano, sendo substituído pela máquina, diminui o

número de braços necessários para o emprego disponível;• os familiares consomem, hoje, outros bens e serviços e procuram

outro conforto doméstico; enfim,• a família contemporânea democratiza-se, fazendo desmoronar,

paulatinamente, as barreiras de certas hierarquias ancestrais.

Nisto insiste o próprio Evangelho, segundo o qual “O sal é coisa boa; mas se o sal ficar ensosso com que o haveis de temperar?” (S. Mc. 9, 50). Metaforicamente, pode dizer-se que sendo imprescindível preservar o valor do “sal”, não significa que a natureza do mesmo permaneça inalterável ou imutável. Daqui decorrem vários efeitos, em termos da mudança das mentalidades e dos comportamentos que lhes são subsequentes.

3.4.4. A lógica conjunta da perplexidade e do discernimento no seio da família

Para quem não confunda modificação com seguidismo, nem adesão a novos valores com recusa pura e simples da estabilidade tradicional, a mudança paulatina faz parte do devir do homen e da humanidade. De contrário, todos estaríamos ainda hoje num estado primitivo. Porém, temos de aceitar que as transformações produzidas na segunda metade do século XX, sendo muito intensas, proporcionaram profundas alterações nos modos de ser homem e ser mulher, de ser mãe e ser pai, de ser família. E estas não se prendem, apenas, com a escolarização e a profissionalização massiva das mulheres, as reivindicações de igualdade e de autonomia, mas também com as reivindicações da vida pessoal,

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dos corpos, da sexualidade, da possibilidade efectiva da ruptura, do controlo da fecundidade e da escolha do número de filhos, sem que a lista seja exaustiva. Para explicitar o alcance dos efeitos que daqui decorrem, basta lembrar que ontem era a natureza que continha as chaves da fraqueza da mulher considerada como o “imbicillitas sexus”. Hoje, pelo contrário, conhecendo e possuindo os meios técnicos para a dominar, é a natureza que faz a fraqueza do homem, na medida em que este não pode engendrar. Além disso, neste último caso, a lógica religiosa do “filho dom de Deus”, graças também à biologização e medicalização das sociedades contemporâneas e ao processo de individuação feminina, passa a ser a do filho “dom da mulher”, dado que é esta e não mais o homem ou mesmo Deus, que, geralmente, detém as regras da fecundidade.

Ora se este processo tem sido fundamental, em termos de mutações biológicas e sociais mais alargadas, não é menos profícuo no que se refere à trajectória de individuação e autonomia da mulher em particular.

Por sua vez, o homem abalado com as recentes mutações das mentalidades e do papel das mulheres é, igualmente, atingido por um triplo ponto de vista:• biológico (inseminação artificial),• jurídico (patronímico),• social (transmissão de uma profissão).Em boa verdade, se a paternidade tem mudado enquanto sistema de representação das mentalidades, é, exactamente, porque está também à procura de redefinição, num tempo e num espaço onde muitas referências anteriores são anuladas sem que outras tenham vindo, de maneira mais estável, tomar-lhe o lugar.

Mas é o próprio W. Goode quem nos diz que na família contemporânea nada está adquirido de uma vez por todas. Por exemplo, acredita que a divisão do trabalho no interior da família não é estanque e que não há tarefas exclusivas de homens e de mulheres, já que estas são concebidas e determinadas pelas sociedades. Quer isto dizer que a divisão sexual do trabalho, encontrando-se em todas as sociedades e em todos os tempos conhecidos desde Heródoto, é deveras complexa, na medida em que as tarefas destinadas aos homens e as que são reservadas às mulheres mudam de um tempo e de uma sociedade para a outra. Mais ainda, o que nuns lados é atribuído a uns, noutros é atribuído a outros. Por exemplo, normalmente, as tarefas culinárias e de costura familiares são atribuídas às mulheres. No entanto, logo que se trate de situações altamente valorizadas, como a dos grandes cozinheiros e costureiros, são os homens os privilegiados, ainda que as mulheres vão conseguindo ultrapassar estas barreiras.

Mas, uma coisa continua a permanecer: o que é socialmente valorizado ainda é mais apanágio dos homens e, inversamente, para as mulheres, mesmo que estas já tenham provado serem aptas para a quase totalidade das tarefas idênticas. Mas tem sido a fazer prova, ao passo que para os homens parece tratar-se de algo inscrito na natureza das coisas. Assim, não há nenhuma razão biológica para explicar porque é que uns fazem isto e outros aquilo.

Enfim, na perspectiva sociológica que aqui nos ocupa, aquilo que mais globalmente parece caracterizar a família dos nossos dias é que se trata de uma realidade em devir, a quem se aplica a preocupação explícita de

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W. Goode, isto é, à medida que se vai procurando compreender a complexa imbricação dos factos em que se envolve o fenómeno familiar, convém ter sempre no horizonte a necessidade de desenvolver teorias adequadas à sua explicação, sem qualquer forma de apriorismo e de alarmismo.

3.5. As mutações de passagem à família moderna na lupa de P. Ariés

3.5.1. O advento da família moderna vista através da infância e da vida sentimental

Por volta dos anos sessenta, os sociólogos que se preocuparam com a sociologia da educação, atribuem cada vez mais importância à relação entre a escola e a família, tendo em conta que é, sobretudo, a partir destas duas instituições que se reconstrói mais a reprodução social do que a mobilidade social. Mas não deixa de ser significativo que estes trabalhos surjam imediatamente após a publicação do notável trabalho de P. Ariés: A Criança e a vida familiar no Antigo Regime. Fundamentalmente, se a família moderna nasceu em torno de conceitos de autonomia doméstica, de valorização da vida sentimental e de disciplina, criados por uma certa civilização (E. Shorter, 1977), portanto mais uma obra da sociedade do que um legado da natureza, uma das maneiras particulares de abordar este tema específico é, para P. Ariés, através da história da infância.

Na análise deste trabalho, aparecem duas linhas de força, algo separadas algo interdependentes, que são o aparecimento da domesticidade e o sentimento da infância, isto é, o sentimento de família e da escola.

Sob o ponto de vista das fontes, o que caracteriza e distingue a sua obra em relação à de outros autores, é o recurso que, entre outros elementos, faz da documentação de formas artísticas em transformação, para analisar as mudanças operadas na família e na hierarquia social, com o advento dos tempos modernos. De facto, “O tema da santa infância, a partir do século XIV, não deixa de se ampliar e diversificar: o seu sucesso e fecundidade são testemunhas do progresso, na consciência colectiva, deste sentimento da infância que só em atenção especial poderia ver no século XIII, o que não existia, de forma alguma, antes do século XI” (P. Ariés, 1973, 57).

Não quer isto dizer que as crianças fossem abandonadas, ou privadas de afeição, desprezadas na Idade Média ou que, à sua maneira, como vem depois a retorquir J.-L. Fandrin, esta sociedade não tivesse o seu sentido de infância. O que é novo, porém, na época posterior, é que o sentimento da infância, não se confundindo, apenas, com a afeição, corresponde a uma tomada de consciência de uma peculiaridade infantil que a distingue dos adultos. A criança começa a ser mais olhada pelo que é e não tanto e apenas, pelo que representa para os adultos. Esta profunda mudança vai implicar novas atitudes em relação às crianças que deixam de ser concebidas como adultos em miniatura, para serem, antes, consideradas em si próprias, ou seja, um ser humano e social em devir, capaz de se tornar um actor social. Não admira que, já na aurora dos tempos modernos, passem a ser objecto de outras preocupações

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familiares e até de outros educadores, designadamente, os clérigos jesuítas.

De resto, este aspecto tem tomado tal impacto que, nos nossos dias, as crianças são tomadas como fim em si mesmas. A infância, à semelhança dos outros grupos etários, vai sendo percepcionada como um grupo social e/ou uma estrutura etária da sociedade, no quadro das relações inter-geracionais. Aliás, a 16 de Novembro de 1958, precisamente há 43 anos e 10 anos depois da publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, é publicada a Carta dos Direitos da Criança, o que é bem revelador da importância que as sociedades modernas, com o decorrer do tempo, vão atribuindo à infância, ainda que muitas crianças sejam privadas de direitos e sejam vítimas de maus tratos físicos e psíquicos.

Mas, a grande transformação das mentalidades e dos comportamentos a este respeito, teve lugar por volta dos século XVI-XVIII, paralelamente ao desenvolvimento do sentimento de família que, como bem refere, igualmente, E. Shorter, emergindo durante esta época, é inseparável do sentimento da infância. Com efeito, convém ter em conta que, no passado, a família, sendo mais uma realidade moral e social do que sentimental, tinha poucas probabilidades de alimentar sentimentos mais profundos entre pais e filhos.

Tenha-se ou não consciência disso, a criança, enquanto terceiro e elemento de ligação, mesmo interpondo-se entre o pai e a mãe, é quem dá corpo à consanguinidade. Na perspectiva de L. Roussel, a criança, continuando a ser considerada em si própria e granjeando um grande investimento da família, aparece, também, como um prolongamento da felicidade conjugal dos pais, designadamente no caso da “família fusão”, isto é, aquela que requer a vontade permanente de cativar o outro e ser cativado por ele. Tratando-se de dar prioridade à relação amorosa, os filhos e o seu número são, fortemente, tributários desta dimensão. Estes são, com efeito, desejados e concebidos, desde o nascimento, como expressões vivas do casal, como afirmação permanente da realidade e da qualidade do sentimento que une os pais (A. Norvez, 1988).

Poderá, no entanto, argumentar-se, perante esta concepção algo utilitarista, que se a criança fosse, apenas, concebida como objecto de gratificação recíproca do casal, seus próprios pais, arriscar-se-ia a ser coisificada, o que significaria negar o seu estatuto de pessoa humana em toda a sua dimensão.

Tal concepção parece não se coadunar com a filosofia e objectivos dos grandes movimentos nacionais e internacionais em favor da defesa e valorização da criança, colocada acima dos interesses e vontade dos próprios pais ou outros familiares, pelo que é em si mesma e não pelo que pode ou não ser para os outros.

Seguindo este raciocínio dir-se-á que a criança, segundo os grandes princípios filosóficos e do direito nacional, como no caso português e internacional, não é mais considerada um meio mas antes um fim. De facto, denota-se que a criança passa a ser menos vista como recurso e mais como projecto no seio da família de procriação. Por exemplo, no caso da emigração portuguesa em França e na Alemanha, é interessante verificar, como por volta dos anos oitenta, a inflexão dos projectos familiares migratórios, deslocando-se mais do material para o

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cultural, coloca os filhos no centro dessa problemática (M. E. Leandro, 1995, 1998).

3.5.2. A relação entre a escola e a emergência da família moderna

P. Ariés considera que a valorização da infância enquanto tal, é tributária de dois grandes acontecimentos sociais:• o surgimento da escola como factor de educação privilegiada e• a emergência-solidificação do sentimento familiar.Com o alargamento e intensificação da escolarização a outros graus de ensino, a escola passa a ser cada vez mais difundida e valorizada por um maior número de indivíduos e famílias.

Se este movimento se desenha, sobretudo, desde finais do século XVII, é inegável que o mesmo tem tomado até aos nossos dias maior consistência. A criança em devir, adolescente e jovem vive grande parte do seu processo educativo e, provavelmente, para um certo número em crescendo, cerca de um quarto dos anos da sua existência, no interior dum espaço segregado, específico e único, como é o da escola, que está agora investida de o preparar para o acesso à vida pública nas suas várias dimensões profissional, social, política, cultural, familiar e individual.

Neste quadro, opera-se uma passagem progressiva da concepção da educação, outrora focalizada sobre o sistema de aprendizagem infantil no seio de outra família, para uma outra focagem educativa, insistentemente orientada para a importância da escola, sendo esta que permite devolver a criança à família. Assim sendo, doravante, a família usufrui de condições para se concentrar muito mais sobre a criança.

É certo que a escolarização, em virtude da falta de implantação espacial generalizada dos estabelecimentos escolares, faz persistir ainda uma certa separação entre a família e a criança, em virtude do tempo passado nos estabelecimentos escolares, por vezes, até em situações de internato ou semi-internato, tal o caso do colégio. No entanto, esta não é, de modo algum, comparável, em termos de duração e de objectivos, às características da aprendizagem, quase sempre feita com terceiros, ou seja, noutras famílias. Além do mais, esta separação, quando existe, é concebida em função dos interesses da própria criança e não tanto numa perspectiva de assegurar a reprodução material do património familiar.

Digamos que a escola, ao conceder ou ao recusar este ou aquele diploma, está a seleccionar em função do mercado de emprego, quiçá, a favorecer a integração ou, ao invés, a exclusão social destes ou daqueles indivíduos e, por conseguinte, (re)elabora para eles um estatuto social, embora este tenha sempre, como ponto de referência, a origem familiar. Não é, pois, de admirar que, muitas famílias, tomando consciência desta realidade, invistam, cada vez mais, na escolarização dos filhos, como estratégia de ascensão social.

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3.5.3. As estratégias da família contemporânea perante a escola

Uma primeira grande questão para P. Ariés e que é, aliás, das mais directamente observadas nos nossos dias na sociedade portuguesa, relaciona o escolar e o profissional, dificilmente apreensíveis pelos enredos que as envolvem e os resultados que desencadeiam.

Para P. Ariés, como acabámos de ver, um dos principais elementos que faz emergir a família moderna é precisamente o crescente interesse desta pela escola, designadamente durante os séculos XIX e XX. Desde finais do século XVIII, a implementação das novas concepções de família vai induzindo, globalmente, dois tipos de comportamento em relação à escola e à natalidade: uma família moderna que, investindo na escolarização dos filhos e no seu futuro, adopta um comportamento que tende a delimitar a natalidade e, ao invés, uma família tradicional que, valorizando o património económico, continua a ser fecunda e a não dar demasiada importância à escolarização.

Actualmente, sendo a educação escolar dos seus filhos cada vez mais impregnada de valores materiais e simbólicos, porventura, algo varinha mágica para poder encontrar resposta para muitas das aspirações políticas, familiares e até para a resolução de determinados problemas sociais, continua a imprimir novas dinâmicas aos projectos educativos familiares, tanto em vista da mobilidade como da (re)produção social, desde que esta última vise manter, valorizando, um certo grau de capital cultural pré-existente.

P. Bourdieu considera que o capital dominante não é mais o capital económico-financeiro, mas o capital cultural escolar. Mais ainda, o diploma e a qualidade do estabelecimento escolar superior onde foi obtido deixam de ser um atributo estatutário, para se tornarem “num direito de entrada”, apenas acessível aos grupos de condição social elevada.

Assim o entende P. Bourdieu, (1989, 388) ao afirmar que, “As 'estratégias educativas', conscientes ou inconscientes – portanto, as estratégias escolares das famílias e dos filhos escolarizados são um aspecto particular – do investimento a longo prazo que não é necessariamente apreendido como tal e que não se reduz, como o crê a economia do 'capital humano', à sua dimensão estritamente económica, ou mesmo monetária, pois que visa primordialmente produzir agentes sociais capazes e dignos de receber a herança do grupo, isto é, de ser herdeiros através do grupo”.

Primeiramente, seguindo a perspectiva de F. de Singly (1993, 23) e que já havia sido vislumbrada por E. Durkheim nas suas análises acerca das metamorfoses sobre a desvalorização da herança de tipo material, designadamente fundiário, no seio da família conjugal, comparativamente com a família anterior, importa ter em conta que a reprodução da componente escolar escapa, muitas vezes, à boa vontade e até aos esforços da família, uma vez que a escola, tendo a última palavra e concedendo diplomas, retira-lhe, assim, a prerrogativa do legado directo. Neste caso, o que se nos afigura dizer é que o capital cultural e estatutário, sendo incorporado, não é tão susceptível de ser legado, directamente, quanto o capital económico, sem mais mediações.

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Torna-se bem patente que, nem todos os filhos de pais que possuem elevado capital escolar, embora sejam a grande maioria, conseguem entrar, por exemplo, nas universidades públicas em Portugal ou ainda menos no curso que pretendiam.

Claro que estas lógicas não são assim tão lineares, mas a realidade está repleta de casos em que o retrocesso faz, também, parte da dinâmica da vida social. Ademais, a valorização do diploma mesmo de nível superior, até pela sua vulgarização e pela qualidade de trabalho a que, normalmente, dá acesso e está associado, que nem sempre se coaduna com o desejado e projectado, não tem o alcance de outrora. Nos nossos dias, a distinção procura-se atingir através da obtenção de diplomas superiores mais elevados, ainda que, frequentemente, seja tanto por razões utilitárias como simbólicas.

Encontramos comportamentos de famílias de condição social mais modesta, cujos pais apresentam menores índices de capital escolar e que, no entanto, conseguem ver os seus filhos enveredar por trajectórias escolares “de sucesso”, junto dos imigrantes portugueses na região parisiense e no Sul da Alemanha, sobretudo a partir da década de oitenta que, sobre este aspecto, pode ser considerada de charneira, em relação ao comportamento das famílias portuguesas perante a escolarização dos filhos. Inicialmente, os projectos e/imigratórios familiares eram preferencialmente orientados para o material. M. Ribeiro (2000) estudando a situação das mulheres em meios rurais de regiões de montanha, dá-se conta do avanço que as “... gerações mais novas (as filhas) vêm tomando no processo de abandono da agricultura, da aldeia e/ou da região, seja pela via da educação, da formação escolar progressivamente percebida como condição necessária a uma saída qualificada da agricultura”, seja, ainda, através da emigração e das estratégias matrimoniais.

Pode, também, lembrar-se que, no ano lectivo 1997/98, 40% dos alunos das universidades portuguesas eram de origem social modesta. Tal facto é bem revelador das estratégias educativas que as famílias portuguesas adoptam para que os seus filhos possam vir a romper as barreiras da reprodução social, ainda que, posteriormente, a nível de ingressão do mercado de emprego compatível com o diploma escolar, as coisas sejam bem mais complexas.

A especificidade, designadamente, nestes últimos casos, consiste na mobilização de todos os recursos possíveis:• estratégias de natalidade visando diminuir o número de filhos, pois

que, para os grupos sociais de condição social modesta, com um ou dois filhos é mais provável o seu ingresso na universidade, do que com 3 ou 4;

• estratégias de reconversão do capital económico em capital cultural, podendo até aquele servir para o pagamento de explicações, logo que tal se afigure conveniente e necessário;

• mobilização de energias de cariz voluntarista, ou seja, o desenvolvimento de uma certa ética do esforço que comprometa pais e filhos neste projecto de sucesso escolar com os primeiros possibilitando os meios, inclusive, o apoio moral, ainda que outros de índole pedagógica sejam mais escassos e os segundos aceitando corresponder perante os desafios em que se encontram (M. E. Leandro, 1992, 1995, 1998, 2001).

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Normalmente e apesar de exercer uma profissão no exterior, a mãe continua a ter a supremacia no acompanhamento escolar dos filhos, quer em casa, quer nos contactos com a escola, acabando, deste modo, por exercer, junto deles, uma influência mais eficaz do que a do pai, ainda que, por vezes, este seja mais dotado de capital escolar.

No essencial do que foi aqui dito, apesar do assunto ter já sido explorado por muitos outros autores e por nós, no âmbito de outros trabalhos, afigura-se-nos dizer que esta linha de análise da relação intrínseca entre a escola e a família e a emergência e solidificação da família moderna em função daquela, sendo muito sugestiva, não deixa de transportar, também, as marcas de determinações institucionais, familiares e sociais. De resto, vale a pena sublinhar que este processo, tendo sido muito mais intenso, a partir das revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX e, a industrial, acabou por abalar muitos dos sistemas de valores pré-estabelecidos.

3.6. A família à luz da sociologia mais recente

3.6.1. Novos olhares sobre as formas de família e de parentesco

Procurar identificar num livro sobre sociologia da família, as grandes produções recentes a este respeito, induz a dizer, na esteira de J. Kellerhals e L. Roussel (1987), que denotam “um carácter de urgência”, mas que é impossível fazê-lo no âmbito deste trabalho. A grande questão parece ser a de como repensar a ordem familiar e social num contexto de profundas e rápidas mutações.

M. Segalen, nomeadamente, com a primeira publicação do livro Sociologia da família, em 1979, e posteriormente revisto e reeditado em 1981, 1987 e 1993, foi, traduzido em várias línguas e tornou-se um clássico da sociologia da família.

Um dos resultados mais significativos do estudo de um grupo de investigadores coordenado por P. Laslett (1972), revela que em 89% dos casos o número de pessoas vivendo em cada família é de quatro ou cinco e que no período estudado este número é constante.

Uma hipótese consiste em dizer que a família alargada é anterior ao século XVI e em consequência recuada ao tempo da Idade Média e a outra que a família nuclear é característica na Europa e não tem nada a ver com o advento da modernidade. Estão, assim, postas em causa a tese da grande difusão da família alargada e numerosa nas sociedades do Antigo Regime e a de que a família conjugal não é uma invenção da sociedade moderna industrializada.

Todavia, em nosso entender, estes resultados, sendo importantissimos só por si, revelam-se insuficientes para estabelecer a comparação entre uma e outra época, porque as estruturas e a dimensão, sem outros elementos, não explicam as peculiaridades intrínsecas da família nuclear numa outra época. Dito por outras palavras, estes resultados informam sobre o que é, mas não como é que a sociedade conjugal vive num e noutro tempo histórico. Por exemplo, a família contemporânea, sendo ainda mais reduzida por razões diferentes do passado, valoriza muito

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mais a autonomia e a vida sentimental ao invés da de outros tempos, o que significa que os dados estatísticos em si fazem apelo a outros elementos de compreensão e análise deste fenómeno.

Mas o que nos parece mais importante relevar sobre o assunto é que, afinal, em termos de estruturas e menos de dimensão, as formas de família apresentadas, decerto diferentes na sua composição, dimensão e significação, não se afastam grandemente das da actualidade (M. E. Leandro, 1995).

Convém salientar que podendo ser considerado um trabalho de síntese a propósito da sociologia da família contemporânea, nem por isso M. Segalen defende menos um certo número de pontos de vista.

Quanto ao espaço do parentesco, uma das preocupações fundamentais para a compreensão deste processo é a que se refere aos factores mais determinantes das estruturas e dimensão do grupo familiar nas sociedades camponesas. Simultaneamente, procura encontrar resposta para a questão de saber como se faz a transmissão da herança familiar em diferentes contextos sociais e se a noção de parentesco é transcultural ou integra antes significações diferenciadas em sociedades distintas. Estes elementos, inscrevendo-se na linha directa do estudo da sociabilidade, permuta e transmissão, levam a autora a interrogar-se sobre a qualidade das relações de parentesco na família contemporânea, isto é, se são de cariz contratual ou instrumental; se são enquadradas por normas ou estatutos, ou os dois simultaneamente. Estão neste caso as relações entre pais e filhos. Não sendo as mesmas ao longo dos tempos, serão elas de ordem moral ou antes de filiação? Qual é o papel do conjugal neste cenário? Após análise fundamentada, a autora considera que as relações intrafamiliares e as suas singularidades, construindo-se ao longo do tempo e das gerações, continuam a ser enquadradas por normas e estatutos, mesmo se estes, no presente, são vividos diferentemente.

No entanto, considera que a família não permanece uma entidade passiva, mas é capaz de se pensar e reorganizar, inscrevendo-se numa profunda imbricação entre uma determinada tradição e a inovação em curso. De resto, é em relação à proximidade ou afastamento desta modalidade de ser família que as demais são julgadas mais ou menos “normais” ou “desviantes”. Dir-se-á, então, que a compreensão da conjugalidade e das relações filiais e parentais pode ser lida, em filigrana, através da compreensão do parentesco.

São retidos alguns aspectos fundamentais das questões da infância:• as relações entre pais e filhos,• os modos de olhar a criança e a infância e • as estratégias educativas familiares.A longevidade prolonga não só o contacto e intensifica as influências e permutas através das gerações, como faz aumentar a coabitação entre mais gerações com novos projectos de vida e de relação. Isto é particularmente notório para a geração “pivot”, ou seja, a que, situando-se no centro desta cadeia inter-geracional, numa relação algo centrífuga algo centrípeta, estabelece mais elos de ligação com os extremos (C. Attias-Donfut, M. Segalen, 1998).

Situando a família na ordem do privado e do público, retoma a ideia de que a família não é uma instância passiva, apenas moldada e

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manipulada por forças que lhes são exteriores, políticas ou outras. No entender de M. Segalen, se o Estado produz a família através de todo um arsenal de medidas jurídicas e sociais, é também verdade que estas se têm tornado mais flexíveis, mais respeitadoras das escolhas individuais e familiares e menos rígidas, em virtude das interrogações individuais e sociais que pairam a este respeito e sobre a legalidade do Estado-Providência.

Por fim a autora, através da abordagem comparativa, põe em causa as teses evolucionistas acerca da família, predominantes até cerca dos anos sessenta-setenta e segundo as quais a família conjugal era uma produção da sociedade industrial. Tal como J. Goody (1983), afirma que a família nuclear conjugal é acima de tudo consequência da acção da Igreja através dos tempos. Contudo, perante as enormes transformações que se operam na actualidade – sem qualquer forma de alarmismo – põe a questão de saber se o modelo de família ocidental, tal como nos habituámos a vê-lo, não está em vias de se modificar. Isto não significa nenhum catastrofismo, mas antes tão somente que a família é uma entidade extremamente dinâmica que é capaz de se repensar, readaptar e reelaborar, sem deixar de ser ela própria.

Segundo K. Wall, este processo é particularmente notório para a designada família de lavradores. Igualmente no que se refere aos modos de olhar a criança e o filho de uma maneira geral são cada vez menos vistos como um recurso e mais como objecto de projecto. No caso das migrações internacionais o caso é particularmente notório.

3.6.2. A família e a conjugalidadePara descobrir as razões de tão expressiva tendência, o livro de F. De Singly, Sociologie de la famille contemporaine, traz a primeiro plano a natureza intrínseca da família moderna que define a partir de quatro aspectos fundamentais, a saber:• “a família contemporânea é relacional”;• “a família contemporânea é privada/pública”;• “a família contemporânea é individualista”;• “a família contemporânea não tem horizonte inter-geracional”.

Dum outro ponto de vista, de algum modo sob a primazia do conjugal, são também retomados alguns aspectos da sociologia de T. Parsons e R. Bales mais correlacionados com a autonomia familiar e um certo declínio da influência do parentesco. O que o autor não analisa, como aliás muitos outros que tratam deste assunto, é o preço que daqui decorre, o que não foi o caso de E. Durkheim que teve presente os riscos que lhe estão associados.

Os papéis de cada um deixam de ser claros e definidos, uma vez por todas e aumentam as expectativas individuais em relação ao outro e ao grupo no seu conjunto.

Esquematicamente, pois que a realidade sendo complexa não se fecha em dicotomias, daqui decorrem duas grandes configurações comportamentais. A família formada segundo as regras institucionais, tradicionalmente aceites, e aquela que se apresenta como “desviante”, uma vez que ignora estas regras, mesmo se com o tempo envereda por outras.

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Se tivermos agora em conta os trabalhos produzidos em Portugal sobre esta matéria teremos de concluir que não são abundantes, apesar da grande produção de índole antropológica e sociológica acerca da família, desde os anos oitenta. Há, no entanto cinco trabalhos que referenciamos por serem aqueles que, mais ou menos indirectamente, tratam das questões das transformações operadas nos modos de conceber e viver a conjugalidade. Estão neste caso os trabalhos de• A. Nunes de Almeida e M. Dores Guerreiro, “A família” in FRANÇA L.,

Portugal, valores Europeus, Identidade cultural;• A. Torres, Divórcio em Portugal. Ditos e interditos e ainda outros

inscritos noutras dimensões;• N. Lourenço, Família rural e indústria;• M. Ribeiro, Estratégias de reprodução socioeconómica das unidades

familiares camponesas, em regiões de montanha;• K. Wall, Famílias camponesas. Passado e presente em duas

freguesias do Baixo Minho.

Quanto aos dois primeiros constata-se que as grandes tendências vividas em Portugal não se afastam grandemente das que acabam de ser repertoriadas por F. De Singly e até do conjunto da Europa, embora factores como a pertença social e geográfica e a posição face à religião introduzam aqui algumas variações.

Não se pode, contudo, falar de uma perfeita homogeneidade a este respeito na medida em que a pertença social, o grau de escolarização e o fenómeno migratório, tanto interno como externo, constituem factores importantes de mais mudança ou ao invés, de maior resistência à modificação, porquanta esta, até de modo mais ou menos dissimulado, seja cada vez mais consistente.

3.6.3. A família perante a instituiçãoOs primeiros casamentos são não só menos numerosos como mais tardios e os nascimentos fora do casamento aumentam. É certo que situações desta natureza não são maioritárias e que outras formas de institucionalização e de regularidades se desenvolvem.

Há, porém, outras perspectivas que consistem em perguntar se não se continua a procurar a instituição, agora ao serviço dos indivíduos e não o inverso. Tal é o caso de J.-C. Kaufmann (1993) para quem não basta atermo-nos aos dados estatísticos para compreendermos a contemporaneidade institucional familiar.

Mas, nem por isso a vida em casal deixou de continuar a ser a norma de vivência da família, de organização da vida doméstica e de referência da intimidade, quando, provavelmente, poderiam ser inventadas outras formas de vida familiar. É o calor da casa, do lar que é valorizado e ao qual, mesmo se não está associado ao casamento, se atribui uma importância sanitária e moral inegável. É este modo e sentido de formar família que prevalece por todo o lado nas sociedades ocidentais, pelo que ao desinstitucionalizarem-se uns aspectos institucionalizam-se outros, mesmo se à margem da tradição mais recente a que se opõe a coabitação, monoparentalidade e recomposição familiar em grande escala.

É neste enquadramento que os trabalhos de J.-C. Kaufmann, Sociologie du couple, como o anterior La trame conjugale. L'analyse du couple par

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son linge, mas também os de F. De Singly, Le soi, le couple et la famille, no que se refere à construção da identidade a partir da conjugalidade e da paternidade-filiação, constituem um contributo importante para a compreensão deste fenómeno.

Retenhamos tão somente os trabalhos do primeiro. Antes de mais, fazendo referência a uma menor importância atribuída aos ritos de passagem, põe-se a questão da concepção de casal e quando é que o mesmo começa, pois que na realidade se vislumbra, actualmente, uma maior tendência para a descoberta ainda antes do compromisso mais ou menos duradoiro, seguida de ajustamentos e hesitações e posteriormente, em muitos dos casos, da instalação paulatina na durabilidade, com mais segurança.

Também interessa relevar, porque isso é congruente com esta situação que, apesar de algumas hesitações, logo que se trata de repensar a situação conjugal em termos de duração, frequentemente, sem o procurarem, vai-se criando uma certa regularidade em torno da reelaboração quotidiana dos papéis sociais e familiares, dando origem a uma nova sedimentação de certos hábitos e rotinas.

Dir-se-ia até que parece instalar-se alguma ambiguidade entre aspirações e as práticas sociais e familiares, “Entre uma vida que é pensada E a única vida que temos” (F. Pessoa, 1987, 181). Fica, pois, claro que a realidade quotidiana é legitimada por gestos que se transformam em fragmentos de identidade e, por seguinte, de interacção conjugal, no seio do espaço doméstico. Tudo parece indicar que este conforto identitário, construído no dia a dia através de mundividências personalizadas e tendo como pano de fundo a procura de uma sensação de bem estar é, hoje, um elemento fundamental para a preservação da vida em comum. Em muitos casos, como o demonstra o autor, uma comparação termo a termo, permite encontrar muitas regularidades comuns sem querer abolir totalmente as dissemelhanças que nem sempre são assim tão notórias.

Por exemplo, sem se dar conta, a mulher é capaz de criticar o homem porque este não colabora ou colabora pouco nas tarefas domésticas. Porém, em virtude dum “habitus”, ela continua a fazer como se não pensasse assim e deste modo também não propicia um terreno mais favorável ao que é perfilhado idealmente. Sendo assim, a vida do casal continua estruturada, mas de uma outra maneira, comparativamente com o outro anteriormente vivido, apesar de se fazer apelo a elementos da tradição e da modernidade, dando, deste modo, origem a novas configurações de relações conjugais.

Será que cada um é de facto para o outro o “piguemalião” (F. De Singly, 1996), que abre o caminho para ele devir outro sem se negar ou, ao invés, advém um “piguemalião” que, sem o querer, deixa o outro crescer na sua fisionomia anterior ainda que ajustada a uma nova realidade?

Contudo, J.-C. Kaufmann deixa bem claro que a família não é incerta e que o casal e a família em geral têm instituído, ao longo dos últimos tempos, outro tipo de normas mais condizentes com os valores da modernidade: racionalização, distinção das instituições, individualização, procura de mais bem estar material e afectivo em busca de uma felicidade que se quer activa e permanente. Afeição e norma não são antinómicas.

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Eis aqui um campo de investigação que, até ao momento, ainda não foi directamente explorado em Portugal, embora aqui eali, em filigrana se possam encontrar algumas alusões a este propósito.

3.6.4. O laço familiar, (des)institucionalização e reelaboração

Se a análise dos dois últimos sub-capítulos é consagrada às singularidades do conjugal na contemporaneidade, o trabalho que se segue inscreve-se mais precisamente no domínio das rupturas conjugais e da recomposição familiar que, em grande parte dos casos, se lhe segue. Entre outros, dois trabalhos de envergadura, um em França, I. Théry, Le démariage e o outro em Portugal, A. Torres, O divórcio em Portugal. Ditos e interditos, tratam desta questão, ainda que este último tenha muito mais em conta os dois primeiros aspectos e menos a recomposição do laço familiar.

Quanto ao primeiro, a autora parte da asserção que a queda da nupcialidade e as elevadas taxas de rupturas conjugais são, essencialmente, um fenómeno cultural em curso que atinge todo o sistema parental e não apenas uma inflexão das curvas demográficas. Advindo uma escolha individual privada, o casamento pode ser facilmente rompido pelo divórcio se os cônjuges assim o desejam e a vida em comum não exige necessariamente o casamento. Doravante o casamento deixa de ser a trave mestra das representações da família e da filiação.

Seja como for, na cultura ocidental, por influência secular da Igreja, o casamento adveio a trave mestra de todo o sistema jurídico conjugal e familiar. É ele que atribui a paternidade, define as hierarquias e o lugar de cada um, outorgando-lhe deveres e direitos advindos da aliança e da filiação. Doravante há cada vez mais especialistas nestas matérias, cujos saberes e opiniões são tidos em conta pelos políticos, juristas e legisladores em geral.

Fica assim claro que o direito familiar deixa de ser exclusivamente prescritivo. De resto, veja-se como neste ou noutros domínios, as decisões judiciais são pura e simplesmente ignoradas ou dificilmente acatadas e cumpridas.

O divórcio é para os cônjuges, mas não para os pais, o que indica que a família deverá sobreviver para lá das dissidências.

No sentido jurídico, o descasamento é tão somente o divórcio, pois que este consiste em anular o casamento; no sentido social e cultural é a subverção da ordem simbólica que traz consigo a privatização do laço matrimonial. Mas o casamento tem também um sentido ideológico: é um certo ideal do que deve ser, fora do direito, da negociação de uma ruptura amorosa.

Para a generalidade dos entrevistados são factores como a fatalidade, a culpa do outro e o desencontro que são apontados como caminho para o descasamento. São intrincadas as relações jurídicas, sociais e familiares em torno desta problemática e as consequências que daí decorrem.

Neste quadro, em que o divórcio é jurídica e socialmente aceite e objecto de negociação entre parceiros individualizados e, ao invés, o laço

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parental é reforçado, mesmo juridicamente, em nome do interesse da criança, sobrepondo-se ao dos pais, é uma nova forma de conceber a paternidade que se apresenta. Desta maneira, tendo em conta a situação jurídica, social e cultural perante o divórcio e todo o arsenal de leis produzidas ao nível nacional e internacional em favor dos direitos da criança, dir-se-á que se assiste a uma situação em que o acento tónico é posto sobre o laço de filiação em detrimento do laço de aliança.

Doravante, é em torno da criança que a família se define e se perpetua. Como o afirma J.-H. Déchaux (1995, 539), “Através de uma singular ironia da história, o descasamento anuncia o advento do familialismo biológico”. Porém, é o próprio autor que relativiza esta afirmação ao considerar que se, ao nível jurídico as coisas se podem ler por este prisma, ao nível da realidade antropológica as coisas são bem diferentes.

Está-se já perante uma consequência expressiva das mudanças familiares e sociais produzidas ao longo dos últimos decénios. Mas é possível e desejável, ir mais longe na exploração da natureza e alcance de uma tal problemática. Se é verdade que há um certo número de famílias que, após o descasamento, permanecem nesta situação e em termos parentais, no quotidiano, parecem reduzidas à monoparentalidade, muitas outras enveredam por um processo de recomposição familiar após divórcio, podendo esta assumir várias configurações, como o faz notar D. Le Gall (1997).

Mas é também I. Théry que continua a dar grande importância à investigação neste domínio, ao longo de outros trabalhos. Fazendo também apelo aos trabalhos de outros cientistas sociais mais ligados à demografia, como H. Leridon, G. Desplaques e C. Villeneuve-Gokalp, pode concluir-se, quanto aos primeiros, que a recomposição familiar em França, contrariamente a ideias correntes, é mais elevada nos grupos sociais de condição modesta.

Mas também no domínio das relações que se estabelecem entre os enteados e as madrastas ou padrastos, se verificam novas atitudes e comportamentos em relação àquelas de antigamente cujo protótipo é prefigurado na história da Branca de Neve.

A avaliar pelos casos veículados pelos mass media sobre violência doméstica e abuso sexual de menores, que não se inscrevem tão somente neste campo social, a situação é ainda complexa e preocupante. Os novos laços familiares de filiação adoptiva e electiva são sempre revogáveis, ao passo que o laço de filiação biológica sendo eterno e indelével porque inscrito nas genealogias familiares biológicas, permanece para lá de todas as vicissitudes.

Mas o que, paralelamente, mais importa relevar, tanto em termos jurídicos como sociais, é que o laço de filiação é doravante concebido como um conteúdo simbólico peculiar que resiste e se reforça graças ao processo de individualização, autonomização e privatização em curso nas sociedades contemporâneas.

FIM

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