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DOUTRINA OS TRIBUTOS NO QUADRO DO DIREITO JosÉ AFONSO DA SILVA * Sumário: I. O ESTADO E A TRIBUTAÇÃO. 1. As atividades es- tatais e seus custos. 2. O poder do Estado para exigir contribuições. 3. Conceito jurídico de tributo. lI. LEGALIDADE DO FENOME- NO TRIBUT ARIO. 4. Os tributos como objeto do direito. 5. O princípio da legalidade tributária. 6. O Estado legislador e o Estado fisco. 7. Relação jurídica tributária. 8. Direito tributário e sua na- tureza. III. RELAÇÕES DO DIREITO TRIBUT ARIO COM AS DEMAIS DISCIPLINAS JURIDICAS. 9. Autonomia do direito tributário. 10. Relações do direito tributário com outros ramos do direito público. 11. Relações do direito tributário com os ramos do direito privado. 12. Normas do direito positivo sobre as relações do direito tributário com outras disciplinas jurídicas. IV. CON- CLUSÕES. I. O ESTADO E A TRIBUTAÇÃO 1. As atividades estatais e seus custos O Estado surgiu e se firmou historicamente para executar atividades destina- das a satisfazer necessidades públicas. Para cumprir esses e outros fins fun- damentais, ele fornece serviços públicos gerais, tais como os de defesa na- cional, justiça e segurança, e serviços públicos especiais, como instrução pú- blica, serviços de correio, previdência social, etc. Professor titular na Faculdade de Direito da USP. R. Dir. adm., Rio de 1 aneiro, 124:1-14 abr./jun. 1976

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  • DOUTRINA

    OS TRIBUTOS NO QUADRO DO DIREITO Jos AFONSO DA SILVA *

    Sumrio: I. O ESTADO E A TRIBUTAO. 1. As atividades es-tatais e seus custos. 2. O poder do Estado para exigir contribuies. 3. Conceito jurdico de tributo. lI. LEGALIDADE DO FENOME-NO TRIBUT ARIO. 4. Os tributos como objeto do direito. 5. O princpio da legalidade tributria. 6. O Estado legislador e o Estado fisco. 7. Relao jurdica tributria. 8. Direito tributrio e sua na-tureza. III. RELAES DO DIREITO TRIBUT ARIO COM AS DEMAIS DISCIPLINAS JURIDICAS. 9. Autonomia do direito tributrio. 10. Relaes do direito tributrio com outros ramos do direito pblico. 11. Relaes do direito tributrio com os ramos do direito privado. 12. Normas do direito positivo sobre as relaes do direito tributrio com outras disciplinas jurdicas. IV. CON-CLUSES.

    I. O ESTADO E A TRIBUTAO

    1. As atividades estatais e seus custos

    O Estado surgiu e se firmou historicamente para executar atividades destina-das a satisfazer necessidades pblicas. Para cumprir esses e outros fins fun-damentais, ele fornece servios pblicos gerais, tais como os de defesa na-cional, justia e segurana, e servios pblicos especiais, como instruo p-blica, servios de correio, previdncia social, etc.

    Professor titular na Faculdade de Direito da USP.

    R. Dir. adm., Rio de 1 aneiro, 124:1-14 abr./jun. 1976

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  • Essas atividades importam em despesas, que requerem recursos finan-ceiros para sua cobertura, da ter-se desenvolvido uma atividade estatal es-pecialmente destinada obteno de recursos monetrios e sua aplicao no pagamento de indivduos e coisas utilizadas na criao e manuteno dos vrios servios pblicos.} Essa atividade, denominada financeira, decorre da prpria supremacia do Estado, para constranger, direta ou indiretamente, as pessoas submetidas sua soberania, a fim de fornecer-lhe as somas ne-cessrias.

    Tais somas provm basicamente de contribuies compulsrias impostas aos indivduos ou grupos sociais, nos termos da lei, constituindo os tributos, cuja origem, como nota Schmolders, to antiga como a sociedade humana, pois "sempre que existam comunidades que hajam de satisfazer necessidades prprias, existiro tambm mtodos para fazer com que seus membros pres-tem sua contribuio material para a satisfao dessas necessidades comuns".2

    2. O poder do Estado para exigir contribuies

    o Estado, pois, desde os primrdios de sua formao, arrecada contribuies de seus sditos. certo que no se configurava ainda um sistema coordenado destinado obteno de recursos financeiros para atender suas finalidades b-sicas. Muitas vezes esses recursos provinham de doaes ou contribuies voluntrias, ou do patrimnio privado do monarca. Mas j nas monarquias absolutas do antigo Oriente, premidas pelas necessidades de guerra, come-ara a desenvolver-se uma atividade financeira estatal destinada a arrecadar e gerir contribuies forosas.

    Roma, especialmente, mas tambm outros povos da antigidade clssica, adotaram uma poltica f.inanceira de explorao fiscal dos territrios con-quistados e dos povos submetidos, oferecendo exemplo tpico de uma econo-mia fundada em contribuies estveis sobre os povos vencidos. Forma-se, ento, um sistema de receitas parasitrias, como reparao de guerra que, muitas vezes, era feita exatamente para arrecadar o tributum, que era justi-ficado moralmente pelos danos que o vencedor sofrera. O tributum, no en-tanto, era contribuio espordica para os cidados romanos. Mas, aos pou-

    1 Baleeiro, Aliomar. Uma introduo li cincia das finanas. 8. ed. Rio, Forense, 1972. p. 18. 2 Schmlders, Gnter. Teora general deI impuesto. Madri, Editorial de Derecho Finan-ciero, 1962. p. 3. trad. Luis A. Martn Merino.

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  • cos, ele vai se tomando norma de arrecadao de contribuies, j que o Imprio Romano fora perdendo os territrios conquistados. Com Diocleciano, que imperou entre os anos 284 e 305, realiza-se uma reforma tributria com a qual surgira um imposto sobre produtos da terra, com alquotas gra-duadas segundo as diferentes espcies de cultivo. 3

    Sobrevindo a Idade Mdia, com o feudalismo inicial, baseado numa economia natural, as receitas dos senhores provinham do sistema de vassala-gem e da servido, que deveria fornecer todos os recursos necessrios, para que aqueles provessem defesa do feudo.

    Foi, no entanto, durante a Idade Mdia que o tributo principiara a deixar de ser contribuio arbitrria e parasitria, para transformar-se num elemen-to importante da luta pela democratizao do Estado. A surge o primeiro imposto em sentido estrito, denominado pedido, e grava a propriedade de terras e edifcios. "Seu nome - observa Schmolders - devido petio do rei aos senhores e cidades, pedindo a concesso de impostos; sem embar-go, no consegue que lhe outorguem o pedido seno os domnios e cidades imperiais, no os prncipes territoriais." So as cidades que arrecadam os impostos, no funcionrios imperiais, e elas que entregam a soma outor-gada ao rei. ~

    :e importante sublinhar esse aspecto da evoluo tributria, porque a se observa fundamental transformao: o tributo j no mais uma mera requisio, mas decorre de uma petio real que atendida ou no. Ver-dade, porm, que as cidades arrecadadoras o impe aos contribuintes ainda por formas nem sempre juridicamente aceitveis, segundo os padres atuais. Mas, de qualquer forma, no mais uma mera contribuio parasitria, por-que a petio do rei traz a justificativa para o pedido de tributos. Um passo adiante nessa evoluo, e o tributo se transformar em objeto de relaes jurdicas entre Estado e contribuinte. Houve, certamente, muita luta para que isso acontecesse. No preciso recordar, a esse propsito, que a Revoluo Americana teve origem na oposio das colnias inglesas contra a tributao arbitrria da metrpole, nem que a Inconfidncia Mineira se instaurou com base no arbtrio confiscatrio do fisco portugus.

    8 Id. ibid. p. 11. , Op. cito p. 13. 1\ Id. ibid. p. 13.

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  • 3. Conceito jurdico de tributo

    Essa evoluo insere o tributo nos quadros do direito, passando a ser ele no apenas um elemento de repercusso econmica, pelo qual se subtrai parte da economia privada para as despesas pblicas, mas um elemento sub-metido aos limites e conceituaes jurdicas, considerado, na doutrina em geral, como uma prestao obrigatria, comumente em dinheiro, exigida pelo Estado em virtude de seu poder de imprio, e que d lugar a relaes de direito pblico. 6 Nesse sentido jurdico, como se nota, o conceito de tributo no leva em conta nem sua finalidade nem sua repercusso econmica, temas que so da economia financeira, e no do direito tributrio. Tal , alis, o sentido da definio legal de tributo, nos termos do art. 39 do Cdigo Tributrio Nacional: "Tributo toda prestao pecuniria compulsria, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que no constitua sano de ato ilcito, instituda em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. "

    A evoluo importou tambm no surgimento de modalidades tribu-trias, de sorte que o termo tributo passou a ser gnero compreensvel de impostos, taxas e contribuies de melhoria, especiais e parafiscais, segun-do a Constituio Federal e o Cdigo Tributrio Nacional.

    Imposto, segundo definio do art. 16 do CTN, o tributo cuja obri-gao tem por fato gerador uma situao independente de qualquer ativi-dade estatal especfica, relativa ao contribuinte.

    Taxa, no sistema brasileiro, tributo cobrado em razo do exerccio do poder de polcia, ou pela utilizao efetiva ou potencial de servios pblicos especficos e divisveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposio. Portanto, o tributo cuja obrigao tem por fato gerador uma situao dependente de atividade estatal especfica para com o con-tribuinte.

    Contribuio de melhoria tributo arrecadado de proprietrio de imveis valorizados por obras pblicas, e ter por limite total a despesa realizada e por limite individual o acrscimo de valor que da obra resultar para cada imvel beneficiado. , por conseguinte, o tributo cuja obrigao

    6 Fonrouge, Giuliani. Derecho financiero. 2. ed. Buenos Aires, Depalma, 1970. p. 267. v. 1; Nogueira, Ruy Barbosa. Direito fiTUlnceiro. 3. ed. So Paulo, Jos Bushatsky Editor, 1971. p. 123; Ribeiro de Moraes, Bernardo. Sistema tributrio da constituio de 1969. So Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1973. p. 228, v. 1; Ataliba, Geraldo. Hiptese de incidncia tributria. So Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1973. p. 25, 48, 125.

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  • tem por fato gerador uma situao dependente da atividade estatal em relao ao contribuinte; fato gerador, que , precisamente, a valorizao do imvel em decorrncia da obra executada.

    As demais contribuies, previstas no art. 21, 29 , inciso I, da Constituio Federal, inserem-se no conceito de contribuies parafiscais, tributos institudos em favor de entidades diversas do Estado, e contri-buies especiais, destinadas ao custeio de servio e encargos provenientes da interveno no domnio econmico (Constituio Federal, art. 163, pargrafo nico). Como espcie tributria, a Constituio (art. 28, 39 , e art. 21, 29, inciso 11) incluiu o emprstimo compulsrio, que s pode ser institudo pela Unio, nos casos especiais definidos em lei com-plementar (CTN, art. 15).

    11. LEGALIDADE DO FENMENO TRIBUTRIO

    4. Os tributos como objeto do direito

    Cumpre notar que o enquadramento jurdico do tributo decorreu da trans-formao do Estado absoluto em Estado de pireito, cujo poder se exerce dentro de parmetros estabelecidos pelas normas jurdicas. A instituciona-lizao do poder-, para usarmos uma terminologia de George Burdeau, e sua adaptao progressiva aos quadros jurdicos, segundo as aspiraes da coletividade,1 haveria de implicar correlativamente o enquadramento jurdico da atividade financeiro-tributria do Estado, como corolrio de que toda atividade do Estado de Direito deve ser exercida segundo nor-mas de direito.

    Caracterstica fundamental do Estado de Direito , assim, sua sujeio ao imprio da lei, como expresso da vontade geral, e submisso dos atos no estritamente polticos ao Poder Judicirio independente.8 Esse fenmeno, que deflui de vrios mecanismos constitucionais modernos, o que, em doutrina, se chama princpio da legalidade, princpio esse que, em sentido genrico, constitui uma garantia constitucional prevista no art. 153, 29, da Constituio Federal, segundo o qual ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei.

    7 Droit constitutionnel et institutions politiques, 12. ed. Paris, Librairie Gnrale de Droit et de Jurisprudence, 1966. p. 15. S Daz, Elas. Estado de derecho y sociedad democrtica. Madri, Editorial Cuademos para el Dilogo, 1973. p. 29.

  • 5. O princpio da legalidade tributria

    o fenmeno tributrio, portanto, como atividade estatal, obedece aos prin-cpio da legalidade, mas no simples legalidade genrica que rege todos os atos e atividades da administrao. Subordina-se a uma legalidade especfica, que se traduz no princpio da reserva de lei, como notam Nar-ciso Amoros9 e Gerd Willi Rotmann.10 O princpio da reserva de lei uma manifestao concreta do princpio da legalidade, como "corolrio da administrao vinculada, condicionando as intervenes onerosas na esfera jurdica do indivduo existncia de uma lei formal, isto , emanada do Poder Legislativo".l1 Essa legalidade especfica constitui, entre ns, como entre outros povos, uma garantia constitucional do contribuinte. Constitura mesmo uma ds primeiras manifestaes do Estado democrtico moderno, se considerarmos suas razes mais remotas na Carta Magna inglesa de 1215, com o triunfo ulterior do Parlamento, que avocou a si, entre outras, as atribuies de conceder tributos.

    No Brasil, segundo o texto constitucional vigente, ele redundantemente estabelecido. Primeiro, aparece como uma limitao ao poder de tributar no art. 19, inciso I, da Constituio Federal; depois, surge no art. 153, 29, como garantia constitucional do indivduo, os quais vedam instituir ou aumentar tributos sem que a lei o estabelea, ressalvados os casos previstos na Constituio, mas o segundo desses dispositivos acrescenta ainda que ne-nhum tributo ser cobrado, em cada exerccio, sem que a lei que o houver institudo ou aumentado esteja em vigor antes do incio do exerccio finan-ceiro, ressalvadas as tarifas alfandegrias e a de transporte, o imposto sobre produtos industrializados, e o imposto lanado por motivo de guerra. Assim, o princpio da estrita legalidade tributria composto de dois princpios que se completam: o da reserva de lei e o da anterioridade da lei tributria material, que veio substituir o princpio ainda mais exigente que as cons-tituies anteriores consagravam, qual seja o da prvia autorizao oramen-tria do tributo, para que pudesse ser cobrado em cada exerccio.

    Coube ao Cdigo Tributrio Nacional, como lei complementar, definir o contedo do princpio da reserva de lei em matria tributria, ao declarar em seu art. 97, que somente a lei poder estabelecer:

    11 Derecho tributrio. Madri, Editorial de Derecho Financiero, 1963. p. 123. 10 O princpio da legalidade tributria. Direito tributrio. 5. Coletnea. p. 153 e segs. 11 Willi Rotmann, Gerd. Id. ibid. p. 154.

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  • I - a instituio de tributos, ou a sua extino; 11 - a majorao de tributos ou a sua reduo, com ressalvas a enumeradas para possibilitar alterao, por decreto, nos limites estabelecidos em lei, das alquotas dos impostos de importao, exportao e produtos industrializados, por autorizao da Constituio (art. 21, I, 11 e V); lU - a definio do fato gerador da obrigao tributria principal e do seu sujeito passivo; IV - a cominao de penalidades para as aes ou omisses contrrias a seus dispositivos, ou para outras infraes nelas definidas; VI - as hipteses de excluso, suspenso e extino de crditos tributrios, ou de dispensa ou reduo de penalidades.

    Nesses termos, a idia bsica do princpio da legalidade tributria signi-fica que no h tributo sem lei: nullum tributum sine lege, fundamento do direito tributrio, por analogia com o nullum crimine sine lege, fundamento do direito penal.

    Mas, o significado do princpio depende do conceito de lei, e para que ele se realize em sua inteireza, a lei h de ser tomada em seu sentido formal, como ato que emane do Poder Legislativo, e elaborado na conformidade do processo estabelecido na Constituio, para a formao das leis. a lei como expresso da vontade geral, no sentido do art. 69 da Declarao dos Direitos de 1789, lei emanada dos representantes do povo.

    Todavia, a Constituio vigente, abrindo exceo a essa concepo, autoriza o Presidente da Repblica, em casos de urgncia ou de interesse pblico relevante, a expedir decretos-leis, inclusive sobre normas tributrias. Contudo, a doutrina nacional vem sustentando a tese de que o decreto-lei no meio idneo para instituir ou aumentar tributos, como diz o Min. Aliomar Baleeiro,12 ou, conforme a lio do Prof. Manoel Gonalves Ferrei-ra Filho, aquele dispositivo daria ao presidente da Repblica o poder de alterar a regulamentao de um tributo por meio de um decreto-lei, mas no o autoriza a cri-lo ex-nmio, ou aumentar-lhe a alquota.13 Embora haja tam-bm abalizadas opinies em contrrio, cumpre dizer que a interpretao restritiva do campo do decreto-lei, como regra excepcional, parece ser a mais condizente com o princpio da estrita legalidade tributria. Mas certo que o Poder Executivo tem-se valido dele para instituio e aumento de tributos, com freqncia, o que importa esvaziar o princpio da legalidade.

    12 Direito tributrio brasileiro. 6. 00. Rio e So Paulo, Forense, 1974. p. 359. 13 Curso de direito constitucio1llJI. 4. 00. So Paulo, Saraiva, 1973. p. 210.

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  • 6. O Estado-legislador e o Estado-fisco

    vista do princpio da legalidade tributria, o poder tributrio deixou de ser uma fora, para tornar-se num conceito submetido ao direito, com as restries e limitaes impostas pelo sistema constitucional. O Estado, como fisco - o Estado-fisco -, subordina-se ao Estado, como legislador - o Estado-legislador -, limitado por via da Constituio. Primeiro atua o Poder Legislativo, instituindo o tributo e dando-lhe configurao jurdica, nos ter-mos das normas constitucionais e complementares, com o que nasce o direito do fisco sua arrecadao, se ocorrerem os pressupostos de fato previstos na lei material tributria. De tudo isso, decorrem direitos e deveres de contri-buinte, que lhe constitu: um estatuto preestabelecido.

    7. Relao jurdica tributria

    Como se v dessas idias, a transformao do tributo em objeto do direito fez aparecer um complexo de normas jurdicas, reguladores da atividade do poder tributrio relativamente as pessoas a ele abrigadas. Dessas normas, nascem, reciprocamente, entre o fisco e o contribuinte, direitos e deveres, que formam o contedo de uma relao jurdica, que a relao jurdica tributria. Mas esta, como nota Giannini, no se esgota somente na obrigao de pagar e no correspondente direito de exigir determinada soma, quando se verificam os pressupostos de fato estabelecidos na lei tributria, mas ma-nifesta-se numa srie de outras obrigaes e direitos da entidade pblica como dos sujeitos a ela submetidos, tal como o lanamento e sua notificao, a obrigao de prestar declaraes tributrias, etc;H enfim, prestaes positivas ou negativas previstas na lei, conforme dispe o art. 113 do Cdigo Tri-butrio Nacional, onde define a obrigao tributria principal e as obriga-es acessrias.

    8. Direito tributrio e sua natureza

    Com a evoluo do tributo, foram-se constituindo normas especficas de di-reito, destinadas a regular, como vimos, as relaes entre o poder fiscal e as pessoas a ele submetidas. O complexo dessas normas, destacadas por

    14 lstituzioni di diritto tributario. 9. 00. Milo, Dott. A. Giuffre-Editore, 1965. p. 80.

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  • ltimo do direito financeiro geral, veio a formar um campo jurdico com objeto e princpio peculiares, que a doutrina passou a denominar direito tributrio, de preferncia, ou direito fiscal.

    Hoje, j no se questiona sobre a natureza desse ramo do direito. pacfica a doutrina em conceb-Io como direito pblico, comum e obriga-cional. pblico, quer pela sua formao histrica, destacado que fora do direito financeiro que, por sua vez, se desmembrara do direito administrativo, quer porque regula a atividade do .poder poltico referente arrecadao de tributos, ou ainda pela natureza pblica do interesse juridicamente pro-tegido. comum porque nada tem de excepcional, como j se sustentara, visto que regula atividade normal do Estado. obrigacional, porque tem por objeto obter o pagamento de tributos, vinculando dois sujeitos, o fisco e o con-tribuinte, numa relao de direito tributrio.15

    lU. RELAES DO DIREITO TRIBUTARIO COM AS DEMAIS DISCIPLINAS JURIDICAS

    9. Autonomia do direito tributrio

    O direito tributrio, assim concebido, forma um ramo autnomo do direito, por elaborar princpios e conceitos prprios que do origem a institutos a ele peculiares. Essa autonomia geralmente admitida pela doutrina.

    Trata-se, claro, de autonomia relativa, pois no ele algo destacado e independente de outros ramos do direito, considerado como cincia. O direito, como tal, uma unidade, ou um conhecimento unificado sobre uma realidade cultural com mtodos e princpios independentes de outros conheci-mentos que estudem o mesmo material. Por conseguinte, como acentua Berliri, o direito tributrio, exatamente porque direito, faz parte daquele unicum que constitui a ordem jurdica, pelo que, em relao aos outros ra-mos, s cabvel falar em autonomia didtica e cientfica, quando justificada pela oportunidade de circunscrever o estudo de um grupo de normas que apresentem uma particular homogeneidade, seja relativo a seu objeto, seja

    15 Souza, Rubens Gomes de. Compndio de legislao tributria. 3. ed. Rio, Edies Financeiras, 1960. p. 31 e segs.

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  • a alguns princq>lOS fundamentais em que se inspiram.16 Tais pressupostos da autonomia, sem sombra de dvida, manifestam-se no direito tributrio.

    Sendo apenas um ramo da cincia jurdica, ~ompreende-se que h de manter com os demais relaes mais ou menos estreitas, consoante se trate de direito pblico ou de direito privado.

    O estudo das relaes do direito tributrio com as demais disciplinas jurdicas reveste-se de grande importncia, porque, sendo um ramo do di-reito de formao recente, j encontrara noutros certos princpios gerais e conceitos que pde aceitar. Muitos institutos de outras disciplinas jurdicas so tomados pelo direito tributrio, que os acolhe segundo elaborao j sedimentada. Tal fenmeno deve ser sempre lembrado pelo jurista tributrio, especialmente para orient-lo na interpretao e aplicao das normas tri-butrias, no sem certas cautelas que recordaremos depois.

    10. Relaes de direito tributrio com outros ramos do direito pblico

    Verificamos que o direito tributrio um ramo do direito pblico, inserin-do-se, pois, nessa grande diviso do direito que, na evoluo, fora dando origem a vrios outros, que se foram desmembrando uns dos demais. Por isso mesmo, mantm entre si relaes ntimas.

    Vejamos, em sntese, quais so as relaes fundamentais do direito tributrio com as disciplinas jurdicas do direito pblico:

    a) em primeiro lugar, cabe destacar suas relaes com o direito constitucio-nal. Este que informa e confere validade a todas as normas da ordem ju-rdica. Por isso, o direito tributrio tambm encontra nele seu fundamento de validade. Alm disso, na Constituio que vamos encontrar a disciplina do poder de tributar e os princpios fundamentais da tributao, como o da legalidade, o da anterioridade da lei tributria, e demais princpios limita-dores do poder de tributar. Basta lembrar que a Constituio que outorga competncia para a instituio de tributos, restringindo-os a impostos, taxas e contribuies de melhoria parafiscais e especiais. Enfim, ela que dis-ciplina o sistema tributrio nacional (arts. 18 a 26);

    b) com o direito administrativo, o direito tributrio mantm relaes nti-mas. Aquele que regula as atividades dos rgos da administrao, in-

    16 Corso istituzionale di diritto tributario. Milo, Dott. A. Giuffre-Editore, 1955. p. 4.

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  • cluindo-se os da administrao tributria. Os funcionrios do fisco tm sua conduta disciplinada pelo direito administrativo, mas certos aspectos so regulamentados pela legislao tributria. Assim que o Cdigo Tributrio Nacional traz um ttulo dedicado administrao tributria, cuidando de assuntos tpicos de direito administrativo, como a disciplina da competncia e poderes das autoridades administrativas em matria de fiscalizao tribu-tria, a inscrio da dvida ativa, e a expedio de certides negativas. Cabe, alis, recordar que o lanamento, que um dos institutos mais relevantes em matria fiscal, concebido como procedimento administrativo, sujeito, portanto, a regras de direito administrativo;

    c) com o direito financeiro, o direito tributrio est em relao como a parte o est para com todo de que se vai desmembrando. De fato, foi daquele ramo do direito que se destacara este. Ambos cuidam de regular a atividade financeira do Estado, embora j se delineie com relativa preciso o campo de cada um;

    d) com o direito internacional pblico, o direito tributrio tem vrios contatos, sendo suficiente lembrar que o direito internacional regula tambm relaes de comrcio entre as naes, e esse comrcio objeto de tributao. As tarifas aduaneiras so sempre objeto de tratados e convenes interna-cionais. Problemas dos mais agitados hoje, relativos s relaes do direito tributrio com o direito internacional, o da dupla imposio, que se ve-rifica no campo internacional, quando o objeto da tributao, especialmente a renda ou o capital, cai sob a jurisdio de mais de uma autoridade tribu-tria de Estados diferentes. Assim, por exemplo, quando uma renda auferi-da no estrangeiro por um residente no pas pode estar sujeita ao imposto de renda do pas estrangeiro, de onde a renda se origina, e do pas da resi-dncia, onde ela ingressa. Situaes como essas formam objeto dos Acordos de Dupla Imposio, celebrados entre cerca de 70 pases, em 1945;17

    e) com o direito penal, O direito tributrio relaciona-se no sentido de que, primeiramente, aquele pode ter como objeto de proteo normas deste. H um conjunto de sanes penais que decorrem de crimes praticados com infringncias de normas tributrias, como o caso dos crimes de sonegao fiscal. O direito tributrio contm tambm a previso de sano e penali-

    11 Prest, A. R. Hacienda publica. Madri, 1967. p. 342 e sega.

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  • dades que vm a constituir o chamado direito tributrio penal, enquanto o direito penal tributrio dispe sobre delitos fiscais e sanes que so previstas no Cdigo Penal e em leis da natureza penal.18 Isso sem falar no disposto no art. 316, 19 , do Cdigo Penal, que configura o delito de excesso de exao fiscal, cominando pena ao funcionrio que exige imposto, taxa ou emolumento que sabe indevido, norma essa que se integra com conceitos de imposto e taxa fornecidos pelo direito tributrio;19

    f) com o direito processual, o direito tributrio tem relaes instrumentais, pois aquele que regula as aes judiciais destinadas a compor lides com fundamento no direito tributrio. As aes de cobrana da dvida fiscal ativa so regidas por princpios do direito processual civil,20 havendo mesmo quem afirme existir um direito tributrio processual, cujo contedo seria exata-mente regular os processos tendentes a solucionar os conflitos de interesses surgidos entre o fisco e os contribuintes.

    11. Relaes do direito tributrio com os ramos do direito privado

    o direito privado compe-se basicamente do direito civil e do direito comer-cial. Esses ramos do direito disciplinam as relaes da economja privada, definindo vrios fenmenos e institutos que servem de base para a incidncia de tributos. Assim, a propriedade, o domnio til, a posse, a transmisso da propriedade, a noo de mercadorias, etc. Tais fatos, fenmenos ou atos j so regulados pelo direito civil ou pelo direito comercial, de modo que o direito tributrio, quando quer adotar um deles como base da tributao, far simples referncia ao nome ou conceito que tm no respectivo ramo do direito privado, de sorte que necessrio ao intrprete recorrer a esses conceitos jurdicos, para a configurao jurdico-tributria de tais fatos, atos ou fenmenos. No entanto, s na busca do sentido jurdico deles que o tributarista se serve dos conceitos fornecidos pelo direito privado, j que

    18 A propsito do conceito, contedo e natureza do direito penal tributrio, cf. Villegas, Hector. Direito penal tributrio, So Paulo, Editora Resenha Tributria, EDUC, 1974. trad. Elizabeth Naza e outros. 19 Nogueira, Ruy Barbosa. Direito financeiro. 3. ed. So Paulo, Jos Bushatsky Editor, 1971. p. 67. 20 Sobre o sistema processual vigente de cobrana da dvida ativa, confere nosso Execuo fiscal, So Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1975.

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  • este, ao referir-se a eles, se preocupa em regular seus efeitos jurdicos, en-quanto ao direito tributrio interessam mais seus efeitos econmicos, como indcio de capacidade contributiva.

    12. Normas do direito positivo sobre as relaes do direito tributrio com outras disciplinas jurdicas

    A propsito das relaes do direito tributrio com as demais disciplinas jurdicas, o Cdigo Tributrio Nacional traz regras que importam ter em mente sobre a interpretao, a integrao e aplicao da legislao tributria.

    Assim, nos termos do art. 108, na ausncia de disposio expressa~ a autoridade competente para aplicar a legislao tributria poder utilizar-se dos princpios gerais do direito pblico, na situao ali prevista.

    Por outro lado, o art. 109 declara que os princpios gerais de direito privado utilizam-se para a pesquisa da definio, do contedo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas no para a definio dos res-pectivos efeitos tributrios.

    Finalmente, o art. 110 diz que a lei tributria no pode alterar a de-finio, o contedo e o alcance de institutos, conceitos e formas do direito privado, utilizados expressa ou implicitamente pela Constituio Federal, pelas constituies dos estados, ou pelas leis orgnicas do Distrito Federal ou dos municpios, para definir ou limitar competncias tributrias.

    Combinado com o art. 109, segundo lio de Aliomar Baleeiro, o art. 110 faz prevalecer o imprio do direito privado - civil ou comercial -quanto definio, ao contedo e alcance dos institutos, conceitos e formas daquele direito, sem prejuzo de o direito tributrio modificar-lhes os efeitos fiscais. Por exemplo, a solidariedade, a compensao, o pagamento, a mora, a quitao, a consignao, a remisso, etc., podem ter efeitos tributrios diversos. 21

    IV. CONCLUSOES

    Podemos, ao final dessas consideraes, extrair as seguintes concluses fun-damentais:

    1. O tributo transformara-se, com o correr dos tempos, de instrumento de atuao do poder arbitrrio, em objeto do direito.

    21 Direito tributrio brasileiro. 6. ed. Rio e So Paulo, Forense, 1974. p. 394.

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  • 2. O significado dessa transformao altamente relevante, porque marca um momento evolutivo do Estado que passa de absoluto a Estado de Di-reito, e o tributo fica sujeito ao princpio da legalidade, no da simples lega-lidade genrica, mas de uma legalidade especfica, traduzida na regra da reserva legal e entre ns tambm da regra da anterioridade da lei tributria em relao ao exerccio financeiro em que o tributo deva ser cobrado.

    3. O estudo das relaes do direito tributrio com outros ramos do direito reveste-se de grande importncia, porque contribui para melhor conhec-Io e conceitu-lo e porque, sendo ramo de direito de formao recente, busca nos demais conceitos e institutos configuradores de base da tributao e de-nunciadores de capacidade contributiva em relao a contribuinte neles envolvidos.

    4. Em verdade, o tributo se revelara instrumento de democratizao do Estado e ainda , como objeto do direito, elemento fundamental de configu-rao do Estado democrtico.

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