45077371 STENGERS Isabelle a Invencao Das Ciencias Modernas

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  • I s a b e l l eS t e n g e r s

    A I N V E N O D A S

    C I N C I A S

    MODERNAS

    editora 34coleo TRANS

  • Isabelle Stengers

    A INVENO DAS CINCIAS MODERNAS

    Traduo Max Altman

    editora 34EDITORA 34

    Editora 34 Ltda.Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000So Paulo-SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 [email protected]

    Copyright Editora 34 Ltda. {edio brasileira), 2002L'invention des sciences modernes ditions La Dcouverte, Paris, 1993

    Cet ouvrage, publi dans le cadre du programme de participation la publication, bnficie du soutien du Ministre franais des Affaires Etrangres, de l'Ambassade de France au Brsil et de la Maison

  • Franaise de Rio de Janeiro.Este livro, publicado no mbito do programa de participao publicao, contou com o apoio do Ministrio francs das Relaes Exteriores, da Embaixada da Frana no Brasil e da Maison Franaise do Rio de Janeiro.

    A FOTOCPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO ILEGAL, E CONFIGURA UMA

    APROPRIAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnica: Bracher & Malta Produo GrficaReviso tcnica: Bento Prado NetoReviso:Adrienne de Oliveira Firmo Alexandre Barbosa de Souza Isabella Marcatti

    1 Edio - 2002

    Catalogao na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)

    Stengers, Isabelle, 1949- S668 A inveno das cincias modernas / Isabelle

    Stengers; traduo de Max Altman. So Paulo: Ed. 34, 2002. 208 p. (Coleo TRANSIISBN 85-7326-249-4

    Traduo de: L'invention des sciences modernes

    1. Filosofia da cincia. I. Altman, Max. II. Ttulo. III. Srie.

    CDD - 501A INVENO DAS

    CINCIAS MODERNAS

    1.EXPLORANDO2.As cincias e seus intrpretes............................. ..... 113.Cincia e no-cincia................................................. 304.A fora da histria.......................... .......................... 51

    II.CONSTRUINDO4.Ironia ou humor?..... ................................................ 735.A cincia sob o signo do acontecimento................... 89

  • 6.Fazer histria.........................-.................................. 108

    III. PROPONDO7.Um mundo disponvel? ................................ ............

    1358.O sujeito e o objeto. .-.................................. ............ 1589.Devires...................................................................... 182

    ndice onomstico....................... ................................ 203Para Flix Guattari e Bruno Latour, como

    recordao de um encontro que no aconteceu.I.

    EXPLORANDOAS CINCIAS E SEUS INTRPRETES

    ESCNDALOS

    Um rumor inquietante se espalha pelo mundo dos cientistas. Exis- tem, ao que parece, pesquisadores, ainda por cima especialistas em cincias humanas, que investem contra o ideal de uma cincia pura. Um campo est em formao, nascido na Inglaterra h cerca de vinte anos1, evoluindo em pases anglo-saxnicos, e doravante presente tam- bm na Frana2. Este campo, batizado com

    1Ver a antologia La science telle qu'elle se fait (sob a direo de Michel Callon e Bruno Latour), col. Textes l'Appui, Paris, La Dcouverte, 1991.

    2Principalmente no Centro de Sociologia da Inovao da Escola das Minas, dirigido por Michel Callon. Ver Michel Callon (sob a direo de), La science et ses rseaux, Paris, La Dcouverte, 1989, e, de Bruno Latour: Les microbes, guerre et paix, seguido de Irrductions, Paris, A.-M. Mtaili, 1984; La vie de laboratoire (com Steve Woolgar), Paris, La Dcouverte, 1988; La science en action, Paris, La Dcouverte, 1989; Nous n'avons jamais t modernes, Paris, La Dcouverte, 1991 [ed.

  • nomes diversos, "social studies in science", "antropologia das cincias", questionaria toda se- parao entre as cincias e a sociedade. Os pesquisadores agrupados nesse campo ousariam pretender estudar a cincia maneira de um projeto social como outro qualquer, nem mais descolado das preocupaes do mundo, nem mais universal ou racional do que qualquer outro. Eles no mais denunciariam as numerosas infidelidades que os cientistas cometem contra as normas de autonomia e objetividade, mas as considerariam vazias, como se toda cincia fosse "impura" por natureza e no por estar distante do ideal.

    Os pensadores da cincia afiam suas armas e vo em defesa de uma causa ameaada. Alguns se fiam no argumento bastante clssico da retorso. Ele j foi bastante til, e continua sendo. Afirmar que a cincia um projeto social, no seria submet-la s categorias da sociologia? Ora, a sociologia uma cincia e, no caso, uma cincia que ambiciona tornar-se super-cincia, aquela que explica todas as demais, Mas como escaparia da desqualificao que lana sobre as outras? Ela se desqualifica portanto a si prpria e no pode pretender impor o seu prprio plano de leitura. Outros jogam o jogo do realismo: como, se tudo no passa de vnculo social, ou seja, convencional e arbitrrio, pudemos enviar homens Lua (e, poderamos acrescentar, fazer explodir bombas atmicas)? Os socilogos das cincias no correm, como todo mundo, em caso de necessidade, para o mdico, que lhes prescrever esses produtos das cincias que so as vacinas e os antibiticos? Outros ainda propem identificar o questionamento da objetivi-dade cientfica com a justificativa de uma brutal lei do mais forte. A civilizao est em perigo!

    O que essa inquietao do mundo cientfico tem de estranho que repete, deslocada no tempo, o desassossego que tinha se apoderado do pequeno mundo dos filsofos das cincias quando o historiador Thomas

    bras.: Jamais fomos modernos, So Paulo, Editora 34,1994].

  • Kuhn props, em 1962, a categoria "cincia normal". No, afirmava Kuhn, o cientista praticante de uma tal cincia no a ilustrao gloriosa do esprito crtico e da racionalidade lcida que os filsofos tentavam caracterizar por seu intermdio. O cientista faz o que aprendeu a fazer. Ele trata os fenmenos que parecem cair sob o mbito de sua disciplina segundo um "paradigma", um modelo prtico e terico a um s tempo, que se impe a ele pela fora da evidncia, em relao ao qual a sua possibilidade de recuo mnima. Pior, j que cada paradigma define as questes legtimas e os critrios pelos quais so identificadas as respostas aceitveis, impossvel construir uma terceira posio, "fora de paradigma", a partir da qual o filsofo poderia avaliar os mritos respectivos de interpretaes conflitantes (tese da no-comensurabilidade). Pior ainda, a submisso do cientista ao paradigma da sua comunidade no um defeito. Segundo Kuhn, a ela que devemos o que chamamos de "progresso cientfico", o modo cumulativo de avanar, graas ao qual cada vez mais fenmenos tornam-se inteligveis, tecnicamente controlveis e teoricamente interpretveis. E Kuhn descreve de forma cruel a lucidez dos cientistas que pertencem a uma disciplina sem paradigma: brigam entre si, se entredevoram, acusam-se mutuamente de desvios ideolgicos ou coexistem na indiferena de escolas apoiadas na autoridade de seus fundadores. Fala-se de psicologia "piagetiana", de lingstica "saussu- reana", de etnologia "lvi-straussiana" e o prprio adjetivo assinala aos seus felizes colegas que nesse caso a cincia no tem o poder de pr os cientistas de acordo. No falamos nem de biologia "crickiana" nem de mecnica quntica "heisenberguiana", no mesmo?

    Os filsofos das cincias manifestaram um considervel descontentamento. Eles recorrem, claro, ao argumento da retorso: Kuhn prope um paradigma ao historiador e ao filsofo das cincias, e portanto ele no tem, de acordo com os seus prprios termos, o direito de

  • pretender descrever as cincias "tais como so". Os filsofos das cincias lembraram a impossibilidade de pr num mesmo plano uma cincia ultrapassada, como aquela que identificava a gua como um elemento, e a cincia atual, que a gua confirma ao se deixar sintetizar e decompor vontade. Eles denunciaram o drama que seria para a civilizao a reduo da cincia a uma mob psychology, uma psicologia de massas irracionais, submetidas aos efeitos da moda e da imitao.

    Entretanto, a maioria dos cientistas no teve, em absoluto, a mesma reao. Eles gostam bastante dos "paradigmas" de Kuhn. At reconhecem neles uma descrio afinal pertinente de sua atividade. A noo de "revoluo paradigmtica", em conseqncia da qual um paradigma substitui outro, lhes serve para contar a histria de sua disciplina. E muitas das cincias humanas se puseram a sonhar com o paradigma que lhes conferisse um dia o modo de progresso de seus felizes colegas. Vimos florescer um pouco por todo lado "novos paradigmas", da sistmica antropologia ou sociologia.

    Por que aquilo que escandalizou os filsofos satisfez tanto os cientistas? E por que se escandalizam agora? Kuhn j no havia salientado a dimenso social das cincias, mostrando que o cientista deve ser descrito como membro de uma comunidade e no como indivduo racional e lcido? a questo deste curioso descompasso que ser o meu ponto de partida.

    AUTONOMIA

    Pode-se afirmar, acredito, que do ponto de vista dos cientistas a descrio de Kuhn preserva o essencial: a autonomia de uma comunidade cientfica em relao ao seu ambiente poltico e social. A descrio faz mais do que preserv-la, ela a institui como norma e condio de possibilidade do exerccio fecundo duma cincia, quer se trate da prtica de uma cincia normal ou das revolues paradigmticas que a renovam. No somente deixaremos

  • de pedir explicaes ao cientista quanto a sua escolha e suas prioridades de pesquisa, como justo e normal que no as possa dar. Pois o carter amplamente tcito do paradigma, transmitido pelo artifcio pedaggico de problemas a resolver e de exemplos tratados nos manuais, que lhe confere esta sua fecundidade. pelo fato de o paradigma no ser objeto de um recuo crtico que os cientistas abordam com confiana os fenmenos mais desconcertantes, desvendam-nos sem vertigem pelo modo da semelhana com o seu objeto paradigmtico. Ademais, esta confiana explica igualmente o escndalo fecundo associado por Kuhn noo de anomalia, ponto de bscula em que uma diferena tida como significa-tiva, pondo em cheque o paradigma e no a competncia do cientista.

    De acordo com Kuhn, o paradigma explica portanto no somente a conquista cumulativa, mas tambm a inveno do novo. A anomalia, a um s tempo agente provocador e ponto de fixao, "submete tenso" o cientista, transformado em vetor de uma criatividade que talvez no teria inspirado uma atitude lcida, ou seja, ctica, quanto ao poder das teorias. De modo correlato, justifica-se a indiferena de uma comunidade em relao s dificuldades ou aos resultados pouco compreensveis. Nenhum "fato" bruto anormal tem em si mesmo o poder de ser reconhecido como anomalia. E nenhuma anomaJia confere quele que a identifica o poder de exigir a ateno da coletividade. A "crise paradigmtica" torna-se coletiva quando o cientista tiver conquistado o poder de contra-interpretar os resultados de seus colegas, quando um novo paradigma, portador de um novo tipo de in-teligibilidade, impuser uma escolha. A lucidez um produto de crise, deve ser conquistada e no pode ser considerada normal.

    A leitura proposta por Thomas Kuhn justifica portanto uma diferenciao radical entre uma comunidade cientfica, criada por sua prpria histria, dotada de instrumentos que incluem indissociavel- mente a

  • produo (pesquisa) e a reproduo (formao daqueles que esto autorizados a participar dessa pesquisa) e um meio que, se pretende beneficiar-se dos subprodutos dessa atividade, deve limitar-se a falar sem pedir-lhe explicaes. Ningum deve, com relao ao cientista em atividade, beneficiar-se de uma relao de fora que lhe permita impor questes que no so as "boas" questes de sua comunidade. Todo ataque autonomia de uma comunidade trabalhando sob paradigma redunda, com efeito, em "matar a galinha dos ovos de ouro", em profligar a condio de possibilidade do progresso cientfico.

    Thomas Kuhn no inventou, na verdade, o argumento que impede que se peam explicaes aos cientistas de suas escolhas e suas prioridades. Em 1958, o fsico Michael Polanyi j havia vinculado a fecundidade da pesquisa cientfica a um "conhecimento tcito", bastante distinto de um conhecimento que levaria aos contedos explcitos ou explicitveis da cincia. O cientista de Polanyi est prximo de um "expert", no sentido ingls de connoisseur (conhecedor, perito), e sua competncia inseparvel de um compromisso (commitment) que implica a inteligncia, mas tambm as atitudes, a percepo, a paixo, a crena3.

    Polanyi punha nfase na descrio "fenomenolgica" do cientista em atividade bem mais do que sobre a maneira como as comunidades cientficas asseguram a transmisso de seu modo de compromisso. Mas sua posio nem por isso estava despida de qualquer preocupao scio-poltica. Muito pelo contrrio. Sua obra se inscrevia no centro de um debate que se travou na Inglaterra quando do II Congresso Internacional de Histria da Cincia e da Tecnologia (Londres, 1931). Por ocasio desse congresso, Nicolai Bukhrin, frente da delegao russa, tinha valorizado as "perspectivas absolutamente novas" abertas em seu pas pelo funcionamento racional da produo cientfica nos

  • quadros de uma economia planificada3. Jovens cientistas marxistas, tais como John D. Bernal e Joseph Needham, tinham ficado entusiasmados com essa perspectiva, e, em 1939, Bernal publicava o seu The social function of science4, em que a produo cientfica e os interesses sociais e econmicos so mostrados como solidrios de fato e de direito. Bernal conclua pela necessidade de uma profunda reorganizao da cincia que a tornasse capaz de responder s verdadeiras necessidades sociais. contra o "bernalismo" que Michael Polanyi criou, no comeo da guerra, uma Society for Freedom in Science.

    3Michael Polanyi, Personal knowledge: towards a post-critical philosophy, Londres, Routledge and Kegan Paul, 1958. Em La structure des rvolutions scientifiques {Paris, Flammarion, 1983 [ed. bras.: Estrutura das revolues cientficas, So Paulo, Perspectiva, 1982]), Kuhn ressalta a similaridade entre a descrio de Polanyi e a sua.Aps a guerra, o debate retorna ainda mais vigoroso,

    mas o perigo no provinha, desta feita, dos intelectuais marxistas. Tratava-se de protestar contra os projetos de planificao de escolhas cientficas pelos governos ocidentais. Em 1962, Polanyi publicava um artigo dou-trinrio, "The Republic of Science"6, em que estavam explicitamente vinculadas a reivindicao de "extraterritorialidade" da cincia e a figura do cientista "competente", o nico capaz de avaliar uma pesquisa num terreno que o seu, sem poder, apesar disso, prestar contas de seus critrios de avaliao. Mais precisamente, Polanyi sustentava que as comunidades cientficas realizam, "em seu sentido mais elevado", um princpio que reduzido ao mecanismo de mercado quando aplicado s atividades econmicas. Todo cientista se insere numa rede de avaliaes mtuas que se estende

    3 As atas do congresso foram reeditadas sob o ttulo Science at the cross roads, Londres, Frank Cass, 1971.

    4 John D. Bernal, The social function of science, Londres, Routledge and Kegan Paul, 1939.

  • bem alm de seu prprio horizonte de competncia. "A repblica da cincia nos mostra uma associao de iniciativas independentes, dispostas em vista de uma con-cretizao indeterminada. Sua disciplina e motivao advm-lhe de sua obedincia a uma autoridade tradicional, porm esta autoridade dinmica; sua existncia continuada depende da auto-renovao cont-nua pela originalidade daqueles que a ela obedecem."5

    No se trata aqui de recuperar o conjunto dessa histria, que remete, de um lado, questo da concepo marxista, mais tarde sta- linista, da cincia (basta lembrar as teses sobre a cincia burguesa e a cincia proletria na Frana do ps-guerra), e, de outro, discusso dos historiadores sobre a histria "interna" ou "externa" das cincias, qual esto associados nomes como os de Alexandre Koyr e de Charles Gillispie. Eu me limitarei a ressaltar que a defesa da histria "interna", para a qual o conhecimento cientfico se desenvolve segundo os seus prprios critrios, e os fatores "externos" desempenham apenas um papel subalterno, no deve ser confundida com a defesa de uma cincia "racional", no sentido em que a compreendia a maioria dos filsofos das cincias da poca. o que afirmava a filosofia "ps-cr- tica" de Polanyi. E o que ser explicitado em A estrutura das revolues cientficas, de Kuhn.

    A novidade da obra de Thomas Kuhn portanto bem relativa. Reside antes de mais nada na explicitao da divergncia entre os interesses dos cientistas e os dos filsofos das cincias. Os primeiros no tm qualquer necessidade de passar pela defesa e esclarecimento da racionalidade das cincias para reivindicar a iniciativa nas questes e a exclusividade nos julgamentos de valor e de prioridade. Os outros perdem por conseguinte todo status privilegiado: no so nem rbitros nem testemunhas, no so sequer aqueles que saberiam deslindar as normas que funcionam implicitamente no interior das cincias e que permitem distinguir a cincia da no-cincia.

    5Idem, p. 72.

  • O que dizer ento da nova "antropologia", ou "histria social" das cincias, que escandaliza os cientistas? Ela se inscreve explicitamente na esteira aberta por Kuhn, mas no manifesta o mesmo respeito que ele pela produtividade cientfica. Um novo discurso foi construdo, que distingue explicitamente o que interessa aos cientistas e o que deve interessar queles que estudam os cientistas. Estes ltimos, se quiserem ser reconhecidos como partcipes legtimos do novo campo, devem se submeter a uma disciplina que tem o nome de "princpio de simetria". Trata-se de tirar conseqncias do fato de que nenhuma norma metodolgica geral pode justificar a diferena entre vencedores e vencidos criada pelo encerramento de uma controvrsia. Kuhn, nesse ponto, fiava-se numa certa racionalidade dos cientistas, que avaliam a fecundidade, o poder dos paradigmas competindo entre si. A diferena, para ele, nada tinha de arbitrria. O princpio da simetria exige que no nos fiemos na hiptese desta racionalidade, que conduz o historiador a tomar emprestado o vocabulrio do vencedor para contar a histria de uma controvrsia. necessrio, ao contrrio, tornar explcita a situao de profunda indeciso, ou seja, tambm o conjunto dos fatores eventualmente "no-cientficos" que participaram da criao da relao de fora final que herdamos quando imaginamos que a crise fez, efetivamente, a diferena entre vencedores e vencidos.

    O paradigma garantia a autonomia das comunidades e se limitava a interpretar de outro modo aquilo que caracteriza tradicionalmente o ideal de uma "verdadeira" cincia, o progresso cumulativo, a possibilidade de consenso, a irreversibilidade da distino entre o passado obsoleto e o futuro indito. O princpio da simetria exige do pesquisador que ele permanea atento a tudo que, tambm tradicionalmente, considerado como desvio, defeito com relao e esse ideal: as relaes de fora e os jogos de poder francamente sociais, as diferenas de recursos e de prestgio entre laboratrios concorrentes, as

  • possibilidades de aliana com interesses "impuros", ideolgicos, industriais, estatais etc. Enquanto a imagem das cincias construda por Polanyi correspondia ao mercado livre ideal, a imagem kuhniana da cincia, menos centrada no cientista individual, remete idia hegeliana da "astcia da razo": constri-se uma histria, por meios "irracionais", que corresponda ponto por ponto, da melhor maneira possvel, ao que se espera de um trabalho de cunho racional. A nova imagem associada sociologia das cincias pe em evidncia a nossa incapa-cidade de julgar desse modo a histria de que somos os herdeiros: na medida em que somos herdeiros dos vencedores que recriamos, no que diz respeito ao passado, um discurso em que os argumentos internos de uma comunidade cientfica seriam suficientes para apontar esses vencedores; visto que esses argumentos nos convencem como herdeiros que ns lhes atribumos retrospectivamente o poder de ter feito a diferena.

    De modo correlato, o tema da "grande diviso", da diferena entre os "quatro sculos europeus", quando se erigiu a moderna cincia, e todas as outras civilizaes, perde o carter de acontecimento que Kuhn e o conjunto dos historiadores "internalistas" lhe haviam conferido. Segundo Kuhn, acontece que a, e no em qualquer outra parte, que se concretizou a condio de possibilidade da cincia, a existncia de sociedades que oferecem s comunidades cientficas, sem intervir em suas discusses, os meios de existir e trabalhar. Porm, outras inovaes singulares marcaram esses quatro sculos. Indstria, Estado, exrcito, comrcio s entrariam, na verdade, na histria das comunidades cientficas sob duplo ttulo de fontes de financiamento e beneficirios dos subprodutos teis? As questes da histria "externa" das cincias ressurgem aqui, mas elas se tornam bem mais temveis. No se trata mais de uma tese geral sobre a solidariedade entre as prticas cientficas e seu ambiente. O cientista no mais o produto de uma histria social, tcnica, econmica,

  • poltica como qualquer ser humano. Ele tira partido ativo dos recursos desse ambiente para fazer prevalecer suas teses e ele esconde suas estratgias sob a mscara da objetividade. Em outros termos, o cientista, de produto de sua poca, tornou- se ator, e, se no se deve confiar, como havia afirmado Einstein, no que ele diz que faz, mas observar o que ele faz, isto no absolutamente porque a inveno cientfica excederia as palavras, mas porque as palavras tm uma funo estratgica que necessrio saber decifrar. O cientista, aqui, em vez de se privar heroicamente de todo recurso autoridade poltica ou ao pblico, aparece acompanhado de uma coorte de aliados, todos aqueles cujo interesse foi capaz de criar uma diferena nas controvrsias que o opem aos seus rivais.

    UMA CINCIA DESTRUTIVA?

    A maior parte dos socilogos "relativistas" nega qualquer disposio de "denunciar" a cincia. Eles pretendem apenas exercer o seu ofcio, que pressupe uma diferena de princpio entre a interpretao que uma prtica social prope de si prpria e aquela construda pelo socilogo. Os cientistas no deveriam, de direito, estar mais escandalizados do que qualquer outro grupo social ou profissional objeto de interesse dos socilogos, e se o esto, acabam por denunciar- se a si prprios, confessam aspirar a uma autoridade indevida e con-firmam por isso mesmo a legitimidade da investigao. nesse ponto, no entanto, que o argumento da retorso no a sociologia, ela prpria, uma cincia? pode ser aplicado. Com que direito, seno em nome da cincia, poderia o socilogo ignorar que dentre todas as interpretaes de que os cientistas so objeto as do socilogo so as que mais dolorosamente os chocam? Porque, certamente, ele no o nico a interpretar as prticas cientficas, e outros pem em causa de maneira bem mais determinada o sentido das cincias e o que

  • nelas est em jogo. Tomarei como exemplo a crtica da cincia como "tec- nocincia" e a crtica feminista radical da racionalidade cientfica, e tentarei uma primeira caracterizao das cincias a partir desse primeiro problema: por que, para os cientistas, as interpretaes que colocam em xeque a racionalidade cientfica esto longe de ser todas to inquietantes?

    Poderamos imaginar que os cientistas protestariam unanimemente contra a apresentao da relao de oposio radical entre "cincia" e "cultura humana" manifestada pela crtica das tecnocincias. Como se pode aceitar que se enxergue nas cincias a expresso de uma racionalidade em livre curso, escapando ao controle dos homens, dedicada a negar, a submeter ou a destruir tudo o que ela no pode reduzir ao calculavel e ao manipulvel? Ora, bem raros so os protestos dos cientistas, como se reconhecessem a dolorosa legitimidade de uma hiptese que consagra o divrcio entre seu projeto e os valores do Sculo das Luzes, entre o servio prestado cincia e aquele prestado humanidade.

    A crtica das "tecnocincias" identifica a "racionalidade cientfica" com uma racionalidade puramente operatria, que reduz ao clculo e ao domnio tcnico o que ela conquistou. Nega toda possibilidade de se distinguir entre produes cientficas, tcnicas, tecnolgicas, e se refere tanto aos dispositivos scio-tcnicos que efetivamente transformam as prticas humanas, como a informtica, quanto s "vises cientficas do mundo", que reduzem, por exemplo, a realidade a uma troca de informaes.

    A crtica feminista radical parte do mesmo tipo de descrio, porm identifica esta racionalidade, no destruio de todo valor, mas ao triunfo dos valores "masculinos". Um bom nmero de autoras feministas tinha, h tempos, salientado o quanto a pesquisa cien-tfica est dominada pelos ideais de competio, de rivalidade polmica, de envolvimento sacrificial por uma

  • causa abstrata, enfim, por uma forma de organizao que eu abordarei mais adiante sob o ttulo de mobilizao. Entretanto, elas no punham em causa o prprio modo de conhecimento inventado pelas cincias. No mximo tinham por objetivo os domnios medicina, histria, biologia, psicologia etc. que dizem respeito aos seres sexuados, e em que possvel mostrar que as questes podem efetivamente sofrer "desvios" pelos pressupostos conscientes ou inconscientes no que tange s mulheres. a essa crtica por vezes qualificada de "empirista"6 que se contraps um ponto de vista feminista radical, para o qual o conjunto das cincias um "produto social sexuado", fruto de uma sociedade dominada pelos homens. Neste casto, da matemtica qumica, da fsica biologia molecular, nada deve escapar crtica feminista.

    Nos dois casos, tecnocientfico e feminista, a perspectiva de resistncia, mas nos dois casos descreveu-se aquilo contra o que cabe resistir de maneira tal que o apelo resistncia assume tintas profticas. Que a racionalidade seja um "conjunto" dotado de dinmica prpria ou que ela expresse um modo sexuado de relao com o mundo e com os outros, ela tem o poder de definir os seus atores e s pode ser limitada, regulada ou transformada do exterior por um "inteira- mente outro", livre de todo comprometimento. Seria possvel uma "outra" cincia, feminina ou feminista? O nus da prova recai sobre as mulheres, e o cientista, trocista ou sincero, pode se declarar extremamente interessado na perspectiva de uma matemtica ou de uma fsica diferentes. Poderia uma nova conscincia tica fazer contrapeso potncia tecnocientfica? O nus da prova cabe sociedade ou s instncias que representam seus valores, e o cientista no far cara feia em participar das "comisses de tica" em que representar os "fins da cincia" diante de representantes diversos e frente a frente com os "fins da humanidade".

    6 Ver Sandra Harding, The science question in feminism, Ithaca/Londres, Cornell University Press, 1986.

  • De fato, o preo pago pelo carter radical da crtica, tecnocientfica ou feminista, o respeito pelo cientista na qualidade de intrprete privilegiado do que pode sua cincia. A racionalidade cientfica tal como aqui discutida no da ordem do respeito por uma norma, que poderia ser verificado. Ela remete antes a um destino e a verdade desse destino que se traduz em toda viso da realidade como manipulvel, seja qual for a distncia entre as pretenses dessa viso e as prticas que a autorizam. Nesse sentido, a crtica "radical" da cincia concede aos cientistas todas as suas pretenses. Ela reconhece as mutaes scio-tcnicas que afetam nosso mundo como os produtos da racionalidade (tecno)cientfica ou masculina e tende a aceitar pelo seu valor de face o que os cientistas "dizem", at em suas extrapolaes as mais arriscadas. Estes so portanto tratados no como suspeitos, mas como testemunhas verdicas.

    No ser surpresa portanto que a questo da tecnocincia possa, se for o caso, ser retomada pelos prprios cientistas. Ela os instala firmemente no papel doloroso porm honroso de representantes de uma mudana radicalmente nova, sem paralelo na histria humana, expresses de um imperativo talvez desumano, mas que os depura e os preserva de todo questionamento vulgar. Se a tecnocincia consagra a terrvel dinmica que cria a comunicao do racional com o irracional, o imperativo de controlar e calcular com o estabelecimento de um sistema autnomo, incontrolvel do interior, que faz coincidir potncia e ausncia de sentido, ento os cientistas, os tcnicos e os experts no esto em questo, esto espera, como todos os demais, dos limites do poder de expanso de uma dinmica que os define para alm das suas intenes e de seus mitos.

    Paralelamente, ao contrrio dos socilogos relativistas, a crtica radical das cincias preocupa-se pouco em acompanhar os detalhes das controvrsias cientficas ou fazer funcionar o "princpio da simetria"

  • entre vencedores e vencidos. Sejam quais forem as teses com que se defronta, a partir do momento em que caem sob o mbito da tecno- cincia (ou da cincia "masculina"), pouco importa saber qual vencer e como. De toda maneira, a vitria sancionar um novo avano de uma racionalidade puramente operatria, dominadora, que faz coincidir a verdade com o critrio nico de "isto funciona", em detrimento da cultura, de seus valores, de seus significados, o que traz conseqncias bastante concretas para aqueles que, hoje, sustentam, em nome do progresso ou da racionalidade, a necessidade de tal ou qual programa de pesquisa. Em especial, eles no tm que se haver, no seio das comisses bioticas por exemplo, com contestadores pouco respeitosos, persuadidos a priori de que os argumentos dos cientistas so na verdade relativos aos seus interesses, mas sim com protagonistas que aceitam, por princpio, seu estatuto de representantes de uma "lgica operatria", e discutem eventuais limites a se estabelecer para esta lgica.

    A grande diferena entre a descrio relativista das prticas cientficas e as crticas radicais da cincia prende-se, portanto, a um contraste que pode ser tomado como uma primeira abordagem da singularidade das cincias. O argumento segundo o qual o progresso cientfico serve aos fins da humanidade pode, se for o caso, ser utilizado pelos cientistas, contudo esse argumento no parece traduzir o sentido intrnseco que do sua atividade. O argumento segundo o qual a cincia uma atividade crtica e lcida utilizado em determinadas circunstncias, quando se trata de estabelecer a diferena com a astrologia ou a parapsicologia, por exemplo, mas pode igualmente ser abandonado em proveito da imagem de um sonmbulo fecundo. Em contrapartida, parece crucial o argumento segundo o qual os saberes produzidos pelas cincias no esto vinculados s situaes de relaes de fora sociais e podem prevalecer-se de uma relao privilegiada com

  • os fenmenos que lhes dizem respeito. Que essa relao no seja neutra, que ela se reduza ao calculvel e ao controlvel, v l. Mas que possa ser considerada arbitrria, que seja o simples resultado de um "acordo" entre cientistas e no prove nada mais que uma conveno humana qualquer, isto sim insustentvel. Que as cincias estejam plenas de impurezas, de situaes em que efeitos de moda, interesses sociais ou econmicos desempenharam um papel, v l. O que suscita os protestos mais veementes que seja negada toda distino entre a "verdadeira cincia", idealmente autnoma em relao a interesses no cientficos, e os desvios em relao a este ideal, previsveis e lamentveis.

    O problema especfico da abordagem sociolgica relativista das cincias portanto que ela parece dever colidir frontalmente com a concepo de cincia que os prprios cientistas alimentam. Certamente, este poderia ser motivo de glria. Ao passo que a crtica radical da racionalidade cientfica pode, ocasionalmente, estabilizar aqueles sobre os quais incide na convico ou no mito de um destino temvel porm honroso, ns teramos enfim os instrumentos de uma verdadeira contestao do poder das cincias. Mas estaramos to seguros da pertinncia desses instrumentos? Desejaramos de fato que os cientistas aceitassem parecer-se com estrategistas indiferentes "verdade", interessados unicamente em se aliar aos poderes que os possam ajudar a fazer a diferena? Gostaramos realmente que esses poderes, em paga, pudessem exigir dos cientistas que deixem de procurar plo em ovo e se alinhem com as exigncias da normalizao, do interesse e da rentabilidade9? Em nome de qu a reivindicao de autonomia deve ser ridicularizada?

    Pode-se entender como um "grito" o protesto dos cientistas contra a abordagem dos socilogos, como a expresso a um s tempo de um ferimento, de uma revolta e de uma inquietao.

  • Ferimento, porque "eles bem sabem" que sua atividade no apenas uma atividade social "como as outras", que ela implica em riscos, em exigncias e em paixes sem os quais no passaria de burocracia de nmeros ou construo obsessiva de redes metrolgicas. Eles so os primeiros a reconhecer que ela isso "tambm", mas sabem que ela no "somente isso".

    Revolta, porque se sentem trados por aqueles que tm sua disposio infinitamente mais "palavras", referncias, capacidade de argumentao o seu ofcio para pr as cincias em cena. Enquan-

    9 Hoje em dia, muitos pesquisadores, especialmente fsicos e qumicos, afirmam que exatamente isso o que est acontecendo. As instituies financiadoras s se interessariam peio que promete "aplicaes". Numerosos pesquisadores no poriam seus instrumentos a funcionar a no ser para angariar "nmeros" que pudessem ser teis indstria. Os estudiosos caoariam quando lhes falam de "questes fundamentais". Eu no levarei aqui adiante o tema da "finalidade da verdadeira pesquisa", que necessitaria de estudos de campo. S queria assinalar seu brutal desenvolvimento no curso dos ltimos anos.

  • to esses "falastres" utilizavam suas habilidades para edificar uma imagem privilegiada da cincia, a situao estava equilibrada. Um cientista podia at como Einstein no se privou de fazer criticar a imagem demasiado racional conferida sua cincia. Contudo se, como nos dias de hoje, aqueles cujo ofcio falar das cincias voltam seus recursos de argumentao "contra" os cientistas, aproveitam-se de maneira revoltante dos poderes da retrica para direcion- los contra a realidade, muda e proba, da cincia.

    Inquietao, por fim, porque os recursos retricos dos discursos sobre a cincia fazem parte dos recursos da cincia, no que diz respeito tanto s controvrsias internas quanto aos entendimentos entre as disciplinas e nas suas fronteiras. Os recentes paradigmas e tambm, h mais de um sculo, a distino epistemolgica entre cincias "puras" e "aplicadas" constam da argumentao que permite resistir, defender, proteger-se, atrair interesse, exigir ajuda. Esses argumentos, se forem entendidos como recurso estratgico, e no como expresso epistemologicamente fundada da realidade cientfica, se tornaro sem dvida inutilizveis. Se o saber cientifico no considerado a partir de ento como mais desinteressado que os outros, se ele s existe graas aos aliados que sabe recrutar, como um cientista minoritrio pode defender sua causa? Como poder resistir presso para que se conforme?

    H portanto uma grande diferena entre as posies respectivas dos filsofos e dos cientistas por mim apresentadas no incio deste captulo. Os filsofos exigiam que as cincias, que eles no praticam, fossem tais que justificassem a prtica do filsofo das cincias. Que ilustrassem ou implicassem uma definio da racionalidade cientfica que caberia aos filsofos extrair e que lhes daria o poder de saber, melhor que os prprios cientistas, o que define os cientistas como tais. Ser decepcionado por aquilo a que se esperava poder conferir o papel de fundamento faz parte dos riscos do ofcio do filsofo. Aps os protestos e as manifestaes de indignao pode advir o tempo de criao de novas questes, quem sabe mais pertinentes, talvez

    2,4 Explorando

  • capazes de transformar, para melhor ou para pior, a decepo em problema.

    Os cientistas, em contrapartida, no tm essa liberdade. So eles que descrevemos, sua atividade que tentamos caracterizar e, desde que as cincias modernas se impuseram como referncia no cenrio de nossas prticas e de nossos saberes, eles no mais deixaram de ser assim descritos e caracterizados. Certamente, na maior parte do tempo, descrio e caracterizao constituram-se para eles em recursos estratgicos, mas isso no pode ser suficiente para justificar, como castigo bem merecido, uma descrio que os escandaliza, parece-lhes negar a verdade de seu envolvimento e de sua paixo. E as boas intenes daqueles que esperam "desmitificar" tambm no so suficientes. Poderiam assegurar que outros protagonistas no estaro interessados em tom-las ao p da letra, quer dizer, utilizar suas teses para pr as cincias ainda um pouco mais a servio de seus interesses?

    A RESTRIO LEIBNIZIANA

    Enunciado algum, tenha sido ele emitido em nome da verdade, do bom senso ou pouco se importando com o que dele vo pensar, pode deixar de levar em considerao as conseqncias de sua enunciao. Quis, em todo caso, submeter minha interpretao das cincias a este princpio. Mais precisamente, esta deveria responder "restrio leib- niziana" segundo a qual a filosofia no deve ter por ideal "subverter os sentimentos estabelecidos"7.

    Poucos enunciados filosficos foram to malvistos como este. At Gilles Deleuze falou, a esse respeito, da

    7 Alfred North Whitehead, cuja audcia especulativa s tem igual na mo- nadologia leibniziana, considera tambm que "voc pode dar lustro ao senso comum, voc pode contradiz-Io aqui e ali, voc pode surpreend-lo. Mas, em ltima instncia, sua tarefa satisfaz-lo". The aims of education and other essays, Nova York, The New American Library, 1957, p. 110.

    "No existe pior perseguidor de um gro de milho que um outro gro de milho quando est totalmente identificado com uma galinha." Life and habit, Londres, A. C. Fifield, p. 137.

    2,4 Explorando

  • "vergonhosa declarao" de Leibniz. E, no entanto, to fcil "dizer a verdade" contra os sentimentos estabelecidos, e depois vangloriar-se dos efeitos de dio, de ressentimento, de rigidez aterrorizada suscitados: prova de que o "mal foi atingido", ainda que ao preo da perseguio, visto que martrio e verdade casam-se. Leibniz, o diplomata que procurava desesperadamente criar as condies para uma paz entre as religies, sabia bem disso naquela Europa vergada sob a herana de tantos mrtires. Se ele tinha por objetivo "respeitar" os sentimentos estabelecidos, parece-me que como um matemtico "respeita" as restries que conferem sentido e interesse ao seu problema. E essa restrio no ferir, no subverter os sentimentos estabelecidos no significa no ferir ningum, pr todo o mundo de acordo. Como poderia Leibniz no ter sabido que o uso que fazia das referncias da tradio ocidental iria chocar-se contra todos aqueles que se servem dos "sentimentos estabelecidos" para manter e firmar as mobilizaes cheias de dio? O problema para o qual aponta a restrio leibniziana liga verdade e devir, confere ao enunciado daquilo que se pensa como verdadeiro a respon-sabilidade de no obstruir o devir: no ferir os sentimentos estabelecidos a fim de poder tentar abri-los quilo que sua identidade estabelecida os obriga a recusar, combater, desconhecer.

    Que no se identifique rpido demais esse projeto com um otimismo ingnuo. Trata-se antes de um otimismo tcnico, que traduz o saber tcnico do diplomata a propsito dos crimes que o herosmo da verdade acarreta. Se a natureza no d saltos, nada mais temvel, como nota Samuel Butler, que o ser humano que acredita ter dado um, o convertido que se volta ferozmente ou devotamente contra aqueles que permaneceram na iluso da qual ele acaba de se afastar11.

    No matamos nem morremos, hoje em dia, para defender a objetividade cientfica ou o direito de lev-la ao tribunal. Mas as palavras que empregamos trazem em si o poder de ferir, de escandalizar, de suscitar o mal-entendido raivoso. Eu ousarei, neste livro, associar a razo cientfica razo poltica. Sei que corro o risco de ofender todos aqueles

    2,4 Explorando

  • para quem nada mais importante existencialmente, in-telectualmente, politicamente do que manter uma diferena. Porm, em nome desse sentimento estabelecido, eminentemente respeitvel, seria preciso conservar categorias que, diariamente, do prova de sua vulnerabilidade? "Em nome da cincia", "em nome da objetividade cientfica", vemos serem criadas definies e redefinies de problemas que implicam a histria humana. No seria necessrio inventar as palavras que permitam tornar discutvel esta referncia, na verdade poltica, cincia?

    O desafio deste livro portanto conseguir articular aquilo que ns entendemos por cincia e o que entendemos por poltica, sem ferir, no todos os "sentimentos", mas aquilo que eu chamarei, a exemplo de Leibniz, os sentimentos estabelecidos, aqueles que marcam, aqueles que no se pode ameaar sem acarretar a rigidez do pnico, a indignao, o mal-entendido. Tentarei, para tanto, fazer funcionar o que, de acordo com Bruno Latour, a quem este livro dedicado, eu chamarei de um "princpio de irreduo". Este princpio constitui-se ao mesmo tempo numa advertncia e numa exigncia, cujo alvo o conjunto das teses que se prestam a uma ligeira modificao, e mesmo implicitamente a reclamam: a passagem de "isto aquilo" a "isto s aquilo", ou " somente aquilo". Falar de cincia com um enfoque poltico, por exemplo, se transformaria em "a cincia no mais que poltica", um projeto cuja aposta o poder, protegido por uma ideologia mentirosa, que consegue impor suas crenas particulares como verdades universais. Protestar, ao contrrio, que a cincia transcende as divises polticas seria implicitamente identificar a poltica com as correntes arbitrrias, tumultuosas, irracionais das controvrsias humanas que vm lamber os ps da fortaleza cientfica, e, ocasionalmente, arrastam em direo a utilizaes perversas, nefastas, irresponsveis, elementos de saber que surgiram inocentes. Cada tese que anuncia uma redutibilidade ou nega uma possibilidade de reduo em nome de uma transcendncia implica que aquele que fala sabe do que fala, ou seja, est ele mesmo na posio de juiz. Sabe, no presente caso, o que "a cincia", "a poltica", e

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  • confere ou recusa a um dos termos o poder de explicar o outro. O princpio da irreduo prescreve um recuo frente a essa pretenso de saber e de julgar. E se o que ns hoje chamamos "poltica" estivesse marcado tanto pela tendncia de excluir de si as cincias quanto o que ns chamamos "cincias" pela tendncia de se apresentarem como "apolticas" ? O que feito destas "palavras"', objetividade, realidade, racionalidade, verdade, progresso, se elas no so tomadas nem como simulacro, dissimulando um projeto humano "como outro qualquer", nem como garantias de uma diferena essencial?

    A irreduo significa portanto desconfiana em relao ao conjunto das "palavras" que levam quase automaticamente tentao de explicar reduzindo, ou de estabelecer uma diferena entre dois termos que os reduz a uma relao de oposio irredutvel. Em outros termos, e sigo aqui de novo a exigncia feita por Latour em Jamais fomos modernos8, trata-se de aprender a utilizar as palavras que no do, como por vocao, o poder de revelar (a verdade por detrs das aparncias) ou de denunciar (as aparncias que ocultavam a verdade). O que no significa, preciso deixar claro, chegar a um mundo onde todos fossem belos e gentis. Espero ser detestada, mas gostaria de tentar no ser execrada por aqueles que no desejo ofender. Ou seja, o conjunto daqueles que sofrem o poder mobilizador das palavras que os recrutam em campos antagnicos, sem apesar disso tomar parte ativa ligada manuteno desse antagonismo.

    O que est em jogo em uma abordagem das cincias que respeite a "restrio leibniziana" pode igualmente ser enunciado sob a forma do riso que, a propsito das cincias, conviria "reaprender". Houve um tempo, nem to distante, em que as cincias eram discutidas nos sales. Naquela poca, Denis Diderot imaginava o matemtico d'Alem- bert em meio s vivas emoes de um sonho em que ele seria matria, e o doutor Bordeu conversando com Mlle. de Lespinasse sobre as "tentativas variadas e sucessivas" de criar, eventualmente, uma raa de "cabra-monts" inteligente, incansvel e veloz... que daria excelentes

    8 Bruno Latour, Nous n'avons jamais t modernes, op. cit.

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  • domsticos9. Que filsofo ousaria em nossos dias a fico de um matemtico conhecido habitado por um sonho delirante, e quem se atreveria a rir daquilo que juristas, moralistas, telogos e mdicos discutem e regulamentam no que chamamos "comisses de tica"? No entanto, no tenho vontade de ser mobilizada em uma coorte denunciadora antes de ter aprendido a rir, antes de ter aprendido como no me deixar redefinir como membro de um grupo com vocao majoritria que busca, ele tambm, impor seus "valores", seus "imperativos", sua "viso de mundo". Eu no quero sentar-me numa "comisso de tica", ao lado de um telogo, de um psicanalista, de um filsofo especialista em tecnocincia e de um mdico mandarim douto e moralizador. Quero tornar-me capaz e estimular outras pessoas a torna- rem-se capazes de intervir nessa histria sem ressuscitar um passado em que outras maiorias morais dominavam.

    O rei no est nu: um pouco por toda a parte, os procedimentos, os experts, as burocracias autorizadas pela cincia funcionam e no desaparecero por milagre se ns reencontrarmos a moda que se cultivava nos sales do sculo XVIII, o prazer de nos interessarmos pelas cincias e tcnicas, o que quer dizer tambm, pois os dois so indissociveis, a liberdade de rir delas. No entanto, reaprender a rir nunca insignificante. Quanto tempo e energia aqueles e aquelas que tm razes para lutar despendem hoje em dia, lanando-se na direo dos panos vermelhos agitados sob o seu nariz e que levam o nome de "racionalidade cientfica" ou "objetividade"? O riso de quem devia estar impressionado complica sempre a vida do poder. E sempre o poder que se dissimula atrs da objetividade ou da racionalidade quando elas se tornam argumento de autoridade.

    Porm interessa-me, sobretudo, a qualidade do riso. No quero um riso de troa ou um riso que seja de desprezo, da ironia que identifica sempre e sem risco o mesmo para alm

    9 Denis Diderot, Le rve de d'Alembert, e as discusses que se seguem. Ver, por exemplo, a edio lanada em Livre de Poche, Le rve de d'Alembert et autres crits philosophiques, Paris, Libraire Gnrale Franaise, 1984.

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  • das diferenas. Eu gostaria de tornar possvel o riso de humor que compreende, aprecia sem esperar a salvao e pode recusar sem se deixar aterrorizar. Queria tornar possvel um riso que no se abra s expensas dos cientistas, mas que possa, idealmente, ser compartilhado com eles.

    Eis, sucintamente esboado, a paisagem problemtica em que este livro se insere. No pretendo nem demonstrar, com a ajuda de referncias, nem descrever de maneira objetiva, completa, exaustiva. Procederei amide por estudos de caso, mas os casos tm aqui o estatuto de "caso ilustrativo", como se diz em matemtica: eles no esto a para provar e sim para explorar a maneira pela qual descrevemos as situaes. Porque minha inteno explorar as possibilidades de utilizar o registro poltico para descrever as cincias, sem me excluir deste registro, quer dizer, tendo conscincia de que o "sentimento da verdade" em caso algum desculpa para no se levar em conta as conse-qncias do que ns consideramos verdadeiro.

    2,4 Explorando

  • CINCIA E NO-CINCIA

    EM NOME DA CINCIA

    Na obra The science question in feminism, Sandra Harding ope crtica "empirista" e crtica "radical" das cincias, uma perspectiva que poderia nos remeter ao caminho do riso: "Seria possvel que o feminismo e outros comportamentos igualmente minoritrios sejam os verdadeiros herdeiros de Coprnico, Galileu e Newton? E que isto se d exatamente na medida em que o feminismo e outros movimentos minoritrios colocam em questo a epistemologia que Hume, Locke, Descartes e Kant desenvolveram para justificar, nos termos de sua cultura, o novo tipo de conhecimento produzido pelas cincias modernas?"10.

    Ns tratamos "Hume, Locke, Descartes, Kant"... e tantos outros como os tericos do conhecimento aos quais a epistemologia tradicionalmente se refere como sendo seu ponto de partida. Com eles, a prtica cientfica pretende dizer-se prtica "objetiva", extensiva, de direito, ao conjunto dos campos de saber positivo: "o mesmo cientista" poderia estender "o mesmo tipo de objetividade" a tudo aquilo a que se dirige. Contra esse "continuum metodolgico e ontolgico"

    10 Sandra Harding, op. citpp. 248-9. Nesse contexto, evidentemente preciso entender "minoria" no sentido que lhe deu Deleuze e Guattari (ver especialmente Mille plateaux: capitalisme et scbizophrnie, Paris, Minuit, 1980 [ed. bras.: Milplats: capitalismo e esquizofrenia, So Paulo, Editora 34, 1995-97, 5 vols.]}, em que a minoria no difere quantitativamente mas qualitativamente da maioria. Desse modo, "s h devir minoritrio. As mulheres, seja qual for o seu nmero, so uma minoria [...] elas s criam tornando possvel um devir, do qual no detm a propriedade, no qual elas prprias tm de entrar, um devir-mulher que diz respeito ao homem por inteiro, homens e mulheres inclusive" {p. 134).

    Sandra Harding, op. cit., p. 250.

    28 Explorando

    2.

  • que toma as prticas terico-experimentais por modelo, Sandra Harding invoca um outro continuum, aquele da lucidez tica, poltica e hist- rica exigida dos cientistas pela cincia que exercitam: "Uma cincia maximamente objetiva, seja ela natural ou social, ser aquela que inclua um exame consciente e crtico da relao entre a experincia social de seus criadores e os tipos de estruturas cognitivas privilegiadas pela sua conduta".2 Nessa perspectiva, as cincias experimentais no so absolutamente representativas da totalidade do campo cientfico. Com efeito, as "estruturas cognitivas" que nelas so privilegiadas correspondem a uma "experincia social" bastante especfica, aquela do laboratrio, e elas so a tal ponto solidrias, como veremos adiante, que a incluso de um exame "consciente e crtico" de sua relao a mais difcil do que alhures. Por isso Harding pode considerar-se des-cendente de Coprnico, Galileu e Newton,, recusando-os ao mesmo tempo como modelos, e afirmar que seus verdadeiros herdeiros so aqueles e aquelas, feministas e outros movimentos minoritrios, que se recusam a estender "para fora do laboratrio", em nome da cincia, as normas de objetividade s quais o laboratrio confere sentido.

    "Hume, Locke, Descartes, Kant" evidentemente nada explicam por si mesmos. A imagem que eles criam, em termos filosficos, de uma conduta cientfica objetiva dirigindo-se a um mundo submetido a suas exigncias, no teria qualquer pertinncia se ela no tivesse encontrado um grande nmero de protagonistas, pouco interessados na filosofia mas muito interessados nas vantagens da etiqueta de cientificidade fornecida pela semelhana com essa imagem. Quer esta se refira a Deus ou teoria do conhecimento, epistemologia ou filosofia transcendental, razo operacional ou s condies constitutivas do pro-gresso das cincias, seu desdobramento que conta: o cientista transforma-se em representante acreditado de uma conduta em relao qual toda forma de resistncia poder ser considerada obscurantista ou irracional.

    O interesse dos cientistas no entanto nada explica por si mesmo, isolado de outros interesses tambm orientados para a colocao em disponibilidade do mundo, ou seja, para a

    Cincia e no-cincia

    31

  • desqualificao de tudo o que se aparente com um

    obstculo. Voltaremos ao assunto. Detenha- mo-nos antes no problema posto peia coexistncia, no interior da cincia contempornea, de prticas que o critrio de Harding permite diferenciar, embora todas elas reivindiquem para si um mesmo modelo de objetividade: prticas experimentais criadoras pensemos na decifrao do cdigo gentico nos anos 60 , prticas centradas no poder de um instrumento seja qual for o crebro, o desenvolvimento de tcnicas instrumentais cada vez mais sofisticadas permite a acumula-o de dados que um dia havero de ser bem compreendidos e prticas que imitam nitidamente a experimentao, com a produo sistemtica de seres obrigados a "obedecer" ao dispositivo que os quantificar, como os mui famosos ratos e pombos dos laboratrios de psicologia experimental. "Em nome da cincia", incontveis animais foram viviseccionados, descerebrados, torturados, a fim de produzir dados "objetivos". "Em nome da cincia", um certo Stanley Milgram assumiu a responsabilidade de "repetir" uma experincia j realizada pela histria humana e mostrou que se podia "em nome da cincia" fabricar torturadores como outros o fizeram "em nome do Estado" ou "em nome do bem da espcie humana".

    Terei, evidentemente, de definir aquilo que entendo por "prticas experimentais criadoras". Mas posso desde j caracterizar o deslocamento de sentido que afeta o termo "objetividade" cientfica nos diferentes casos citados. J a acumulao de dados instrumentais sofisticados tem necessidade de uma experincia social especfica, que ela no capaz de criar por si s, pois esta experincia se constri sobre a crena num modelo nico de progresso: toda cincia comearia de maneira emprica, e depois, por "maturao", adquiriria o modo de produo caracterstico de suas irms mais velhas. A imagem epistemolgica garante, aqui, que um dia a inteligibilidade nascer dos dados; um paradigma ou uma teoria vir recompensar o esforo em-prico. Quando os prprios dados so relativos a um dispositivo que "cria" unilateralmente a possibilidade de

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    2.

  • submeter qualquer um ou qualquer coisa a medidas quantitativas, o prprio sentido da operao j pressupe uma definio do que a cincia: o que ela permite, o que probe, de que forma autoriza a mutilar. Enfim, quando, "em nome da cincia", um experimentador reproduz as condies sob as quais os seres humanos obedeceram instrues que criam os carrascos, demonstra a existncia de uma experincia social na qual, em nome da cincia, podem ser confundidos os diferentes significados dos termos "obedecer" ou "ser submetido". "Em nome da cincia", os pacientes de Milgram obedeceram a instrues que faziam deles torturadores. "Em nome da cincia", Milgram submeteu-os a um dispositivo que o instala, a ele prprio, no papel de Himmler ou Eichmann.

    ltimo caso ilustrativo: aquele em que as estruturas cognitivas privilegiadas pelos cientistas, longe de serem pensadas de maneira consciente e crtica, pretendem se impor a todo mundo, ou seja, em que o pblico, definido como "no-cientfico", solicitado a fazer causa comum com os interesses da racionalidade cientfica. o caso, por exemplo, do conflito que contrape a medicina oficial, dita cientfica, e as medicinas conhecidas como "alternativas" ou paralelas.

    Que a medicina seja um dos setores em que os limites so mais rigorosos, em que o pblico exortado a aderir aos valores da cincia, no um acaso. Contrariamente a outras prticas ditas cientficas, presume-se que a medicina persiga o "mesmo" fim, curar, desde a noite dos tempos, e a questo de saber quem o tem direito de exercer a medicina bem mais antiga que a referncia cincia. O conflito, indissocivel da "experincia social" do mdico, entre mdicos diplomados e aqueles que so denunciados como charlates, no foi criado "em nome da cincia", mas a referncia cincia deu-lhe novas feies. O teor dessa referncia, num campo que sempre associou diretamente praticantes e pblico, visto que a denncia de charlatanismo teve sempre por alvo o "pblico enganado", to mais inte-ressante que ningum aqui deveria ser tentado a "relativizar" a diferena entre os mdicos do sculo XVII, por exemplo, e aqueles a quem procuramos hoje em dia. A "medicina

    Cincia e no-cincia

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  • cientfica" cavou, de fato, uma diferena cujo sentido

    podemos avaliar.Em que momento a referncia cincia modifica o

    conflito entre "mdicos" e "charlates"? Arriscarei aqui a hiptese de que no tal ou qual inovao mdica que conferiu medicina os meios de reivindicar o ttulo de cincia, mas a maneira pela qual diagnosticou o poder do charlato e explicitou as razes para desqualificar esse po-der. A "medicina cientfica" comearia, segundo essa hiptese, no momento em que os mdicos "descobrem" que nem todas as curas so equivalentes. O restabelecimento como tal nada prova; um simples p de pirlimpimpim ou uns tantos fluidos magnticos11 podem ter um efei- to, embora no possam ser considerados causa. O charlato definido desde ento como aquele que considera esse efeito como prova.

    Essa definio da diferena entre medicina "racional" e charlatanismo importante. Ela deu origem ao conjunto das prticas de teste de medicamentos baseadas numa comparao com os "efeitos placebo". Entretanto, tem a particularidade de transformar uma singularidade do corpo vivo, sua capacidade de curar pelas "ms razes", em obstculo. O que implica que a prtica mdica cientfica, longe de apresentar, para tentar entend-la, a singularidade daquilo de que a medicina tem de cuidar, procura inventar como um corpo doente poderia, apesar de tudo, diferenciar o "verdadeiro remdio" do "remdio falso". Ela considera portanto efeito parasita, importuno, o que distingue um corpo vivo de um sistema experimental, a singularidade de "tornar verdadeira", ou seja, eficaz, uma fico. "Em nome da cin-cia", identificada com o modelo experimental, as "estruturas

    11 Ver Lon Chertok e Isabeile Stengers, Le coeur et la ratson, Paris, Payot, 1989 [ed. bras.: O corao e a razo, Rio de Janeiro, Zahar, 1990], em que ns apresentamos a investigao levada a efeito em 1784 por uma comisso em que figuravam os maiores cientistas da poca, entre os quais Lavoisier, sobre as prticas magnticas de Mesmer como o ato inaugural dessa definio da medicina cientfica, e examinamos o seu preo atravs do problema da hipnose e da psicoterapia.

    32 Explorando

    2.

  • cognitivas" privilegiadas pela conduta mdica, quer se trate de pesquisa ou de formao de terapeutas, so portanto determinadas pela "experincia social" de uma prtica que se define contra os charlates, isto , tambm contra o poder, que os charlates atestam, que a fico parece ter sobre os corpos.

    Quando a medicina cientfica solicita ao pblico que compartilhe de seus valores, pede que resista tentao de curar "pelas ms razes", e em especial que saiba fazer a diferena entre restabelecimentos no reproduzveis, que dependem das pessoas e das circunstncias, e restabelecimentos produzidos pelos meios j comprovados, que, pelo menos estatisticamente, so ativos e eficazes para qualquer um. Mas por que um doente, a quem s interessa sua prpria cura, aceitaria esta distino? Ele no "qualquer um", membro annimo de uma amostragem estatstica. Que lhe importa se o restabelecimento ou a melhora de que se ir beneficiar eventualmente no se constituir nem numa prova nem numa ilustrao da eficcia do tratamento a que se submeteu?

    O corpo vivo, sensvel aos magnetizadores, charlates e outros efeitos placebo, cria obstculo conduta experimental, que exige a criao de corpos com o poder de dar testemunho da diferena entre as "verdadeiras causas" e as aparncias destitudas de interesse. A medicina, que extrai sua legitimidade do modelo terico-experimen- tal, tende a remeter esse obstculo quilo que resiste "ainda", mas que um dia se submeter. O funcionamento efetivo da medicina, definido por uma rede de restries administrativas, gestionrias, industriais, profissionais, privilegia sistematicamente o investimento pesado, tcnico e farmacutico, pretenso vetor do futuro quando o obstculo estar dominado. O mdico, que no quer se assemelhar a um charlato, vive com mal-estar a dimenso taumatrgica de sua atividade. O paciente, acusado de irracionalidade, intimado a se curar pelas "boas" razes, hesita. Onde, nesse emaranhado de problemas, de interesses, de constrangimentos, de temores, de imagens, est a "objetividade"? O argumento "em nome da cincia" se encontra por toda parte, mas no pra de mudar de sentido.

    Cincia e no-cincia

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  • RUPTURA OU DEMARCAO?

    A definio da "cincia" nunca neutra, j que, desde que a cincia dita moderna existe, o ttulo de cincia confere quele que se diz "cientista" direitos e deveres. Toda definio, aqui, exclui e inclui, justifica ou questiona, cria ou probe um modelo. Deste ponto de vista, as estratgias de definio por ruptura ou por procura de um critrio de demarcao dstinguem-se de maneira muito interessante. A "ruptura" procede estabelecendo um contraste entre "antes" e "depois" que desqualifica o "antes". A busca de um critrio de demarcao procura qualificar positivamente os pretendentes legtimos ao ttulo de cincia.

    O termo "ruptura epistemolgica" deve-se a Gaston Bachelard, mas sua extraordinria carreira na epistemologia francesa mostra-se menos ligada ao contedo especfico que este autor lhe forneceu, a partir de exemplos tirados da fsica e da qumica, do que sua funo estratgica nos domnios que ele mesmo no abordou. Tornada "corte", ela permitiu a Louis Althusser confirmar o carter cientfico da teoria marxista. Permite ainda hoje estabelecer como ponto de no- retorno a instituio da "racionalidade freudiana", sejam quais forem os problemas vulgarmente empricos postos pela cura12. Desse ponto de vista estratgico, possvel afirmar cum grano salis (dadas as intenes e as distines dos autores) que a definio de cincia por sua ruptura com o que a precede entra no terreno das definies "positivistas" da cincia.

    Por que trao, nessa perspectiva, se reconhece uma definio positivista da cincia? Pelo fato de que esta age, antes de mais nada, pela desqualificao da "no-cincia" qual sucede. Essa desqualificao, para Gaston Bachelard, est associada noo de "opinio" que "pensa mal", "no

    12 Ver a esse respeito a obra "de histria" de Elisabeth Roudinesco, bem como de Lon Chertok, Isabelle Stengers e Didier Gille, Mmoires d'un hrtique (Paris, La Dcouverte, 1990), para o papel da "ruptura" ou do "corte" na questo das relaes entre hipnose e psicanlise.

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  • pensa", "traduz necessidades em conhecimento"13. A cincia constitui-se portanto sempre "contra" o obstculo constitudo pela opinio, um obstculo que Bachelard definiu como um dado quase antropolgico. A luta da cincia contra a opinio torna-se, nos momentos mais lricos, o confronto entre os "interesses da vida" (aos quais a opinio est sujeita) e os "interesses do esprito" (vetores da cincia). Neste sentido, Bachelard est mais prximo do "grande positivismo" associado a Augusto Comte do que do positivismo epistemolgico associado ao crculo de Viena. Para os "vie- nenses", tais como Moritz Schlick, Philip Frank ou Rudolf Carnap, a distino entre "cincia" e "no-cincia" no tem o ar fascinante de uma revolta criadora do esprito contra a escravizao vida. Ela se parece antes com uma depurao, com a eliminao de toda proposio desprovida de contedo emprico, ou seja, primeiro e antes de tudo as proposies "metafsicas", que no podem ser deduzidas dos fatos por um procedimento lgico legtimo.

    Minha "definio" de positivismo recobre portanto pensamentos no apenas heterogneos mas explicitamente opostos quanto aos seus objetivos. Enquanto os tericos do crculo de Viena buscavam uma definio da cincia que seja tambm uma promessa de unificao das cincias, todas submetidas a critrios vlidos independentemente de seu campo de aplicao, Gaston Bachelard celebra as mudanas conceituais associadas a obra de "gnios", ao mesmo tempo inventores e ilustraes da diferena entre cincia e opinio. Entretanto, o ponto comum que minha definio explicita, a desqualificao do que no reconhecido como cientfico, tem por interesse ressaltar no a verdade dos autores, mas os recursos estratgicos que eles oferecem queles para quem o ttulo de cincia um alvo. Desse ponto de vista, a "ruptura", seja ela da ordem da depurao ou da mutao, cria uma assime- tria radical que retira daquele contra o qual a "cincia" se constituiu toda possibilidade de contestar-lhe a legitimidade ou a pertinncia14.

    13 Gaston Bachelard, La formation de l'esprit scientifique (1938), Paris, Vrin, 1975, p. 14 [ed. bras.: Formao do esprito cientfico, Rio de Janeiro, Contraponto, 1996],

    14 Exceto, claro, nova produo de cincia. Remetamo-nos

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  • Esta assimetria, caracterstica do que eu chamo de

    positivismo, permite arriscar que, entre esse modo de caracterizao das cincias e sua denncia como "tecnocincia", a diferena no muito grande. Resulta antes de mais nada de uma inverso. Aquilo que o positivismo desqualifica pode tambm ser descrito como sendo objeto de uma perda irreparvel, vtima de uma destruio de significao e valor. Um outro trao tpico desta assimetria que a caracterizao da "no-cin- cia" bem mais clara e segura que aquela da "cincia". Bachelard realava que a histria "histrica" das cincias permeada pela opinio, ou, segundo os termos de Althusser, pela ideologia. O problema que a imagem de uma histria "lenta e hesitante", retardada continuamente pela "presso concreta da cincia popular que efetua [...] todos os erros"15, pressupe uma moralidade que a histria das cincias no manifesta, a saber, o carter separvel, porque no fecundo, do erro ou do ideolgico que, em conseqncia, se autodenunciam. Caso se imagine que, por definio, uma "pretenso ideolgica" no possa fazer histria no sentido propriamente cientfico, terminaremos rapidamente por ter de passar a faca em sees inteiras de cincia que gozam de pleno reconhecimento nos nossos dias16.

    O fato de que a denncia da no-cincia, na qualidade

    por exemplo ao argumento do psicanalista O. Mannoni a propsito da questo da hipnose, em Mmoires d'un hrtique (op. cit.): preciso "esperar o gnio", aquele que far da hipnose um objeto de cincia. Enquanto se tratar de um fenmeno "in-cmodo", sem caracterizao positiva, seu interesse no "uma causa a ser defendida", ele no tem autoridade para questionar as categorias de prticas que, elas sim, conquistaram o poder de definir seu objeto.

    15 Gaston Bachelard, La formation de l'esprit scientifique, op. cit., p. 251.168 Ver Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, Entre le temps et

    l'ternit, Paris, Fayard, 1988 [ed. bras.; Entre o tempo e a eternidade, So Paulo, Companhia das Letras, 1992]: a reduo da entropia termodinmica a uma interpretao dinmica dificilmente pode ser julgada de outra maneira seno como uma "pretenso ideolgica", mas ela est na origem de uma histria sem a qual a fsica do sculo XX no poderia ser contada.

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  • de opinio, seja mais segura, no texto de Bachelard, que a definio de cincia, tem conseqncias bastante srias: a desqualificao da opinio impede que se oponha definio que uma cincia d de seu "objeto" tudo aqui- lo a que o objeto assim definido no confere sentido ou nega. Pois seria ento a "opinio", interessada naquilo que o objeto nega, que seria chamada a testemunhar contra a cincia. No limite, essa negativa pode, em si mesma, "ser prova da cincia": esta demonstra sua ruptura ousando menosprezar aquilo que "antes" interessava a todo mundo. Quanto mais o trabalho do luto com relao ao passado exigido parea penoso e mutilador, mais o tema da ruptura se mostra eficaz.

    O interesse da tradio demarcacionista, cuja origem est associada ao nome de Karl Popper, ter como ponto de partida uma crtica do positivismo (em sua forma lgica desenvolvida em Viena). E isto em dois aspectos. De um lado Popper no aceita a identificao entre proposies no-cientficas e proposies destitudas de sentido. Para ele, as questes "metafsicas" no pertencem a um passado des-qualificado, mas refletem uma procura de sentido que as cincias no podem substituir. Por outro lado, a definio vienense das proposies cientficas muito ampla. Ela admite na condio de cincia pretendentes que Popper tem por ilegtimos. No caso em questo, os pretendentes eram, antes de mais nada, para Popper, o marxismo e a psicanlise. Mas, para certos epistemlogos contemporneos, como Alan Chal- mers17, trata-se antes da populao proliferante dos projetos acadmicos, desde as cincias da comunicao at as cincias administrativas, desde a economia at as cincias pedaggicas, que procuram nos fatos, na medida, na lgica ou nas correlaes estatsticas a garantia de que so sem qualquer dvida cincias. nessa perspectiva que eu me debruarei aqui sobre a tradio demarcacionista. No me deterei portanto nas teses "polticas" de Popper sobre a "sociedade aberta", nem tampouco sobre suas opinies em matria de cincias sociais. Vou ater-me ao imperativo que

    17 Ver Alan Chalmers, Ques-ce que la scienceParis, La Dcouverte, 1987.

    Cincia e no-cincia

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  • nele habita desde A lgica da descoberta cientfica (1934):

    preciso fazer vir tona a diferena entre "Einstein" e um candidato ilegtimo ao ttulo de cientista.

    Que Popper tenha tomado Einstein como "cientista tipo" no se deve somente ao sucesso da relatividade que apaixona o jovem filsofo. Einstein expressa igualmente o fracasso do positivismo vienense. Este havia atribudo para si duas figuras tutelares, Ernst Mach e Albert Einstein: o segundo, pela supresso da teoria do espao e tempo absolutos, parecendo confirmar as teses do primeiro sobre a ne- cessidade de depurar a cincia de todo pressuposto metafsico. Ora, nos anos 1920, Einstein rompeu a aliana que lhe havia sido proposta. Qualificou Mach de "filsofo deplorvel", negou toda influncia, no sentido fecundo desse termo: a filosofia de Mach rigorosamente boa para "matar a canalha". E confessou um motivo verdadeiramente metafsico, a busca apaixonada de um acesso verdadeiro realidade18. Einstein, que para Popper ser sempre o "verdadeiro cientista", questiona portanto explicitamente a leitura positivista da cincia.

    O interesse da busca de um critrio de demarcao entre cincia e no-cincia reside, portanto, para mim na tentativa de dar uma definio "positiva" da "verdadeira" cincia. Que essa tentativa tenha desembocado, como veremos, num malogro, revela no a falta de pertinncia da questo, essencial para resistir ao que sustentado "em nome da cincia", mas sim o problema dos meios empregados. Nesse sentido, o malogro, ao contrrio das estratgias de desqualificao daquilo que uma cincia, para se impor, j superou, ser em si mesmo instrutivo.

    A QUESTO DE POPPER

    Da obra A lgica da descoberta cientifica, conservamos

    18 Ver Gerald Holton, "Mach, Einstein and the Search for Reality", in Thematic origins of scientific thought: Kepler to Einstein. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1973.

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  • na memria com excessiva freqncia a posio "falsificacionista" de Popper: ao passo que nenhum acmulo de fatos, seja qual for, basta para confirmar uma proposio universal, um nico fato basta para refutar (falsear) tal proposio. a ambio de fundar uma metodologia das cincias sobre esta posio que lhe ser atribuda pelos seus adversrios. Seu discpulo Imre Lakatos19 props de resto distinguir "trs"Poppers: Popper0, o falsificacionista "dogmtico" ou "naturalista", que teria tido esta ambio porm jamais escreveu uma linha sequer, Popper1, o falsificacionista "ingnuo" de 1920, e Popper2, o falsificacionista "sofisticado" que o verdadeiro Popper de fato jamais foi, mas de quem Lakatos precisa para chegar sua prpria soluo.

    O "triplo Popper", oriundo da reconstruo racional de Lakatos, assinala no a complexidade do pensamento de Popper, que sempre foi perfeitamente explcito, mas uma tenso prpria a essa posio quanto ao alcance e ao poder do "critrio de demarcao" buscado. Deveria, certamente, tornar visvel uma diferena, mas deveria ele, por causa disso, garantir a possibilidade de que toda cincia respeite essa diferena? Se fosse este o caso, a definio da diferena entre cincia e no-cincia poderia engendrar uma definio "metodolgica" da conduta produtora da cincia. Esta a posio atribuda ao Poppero, e ela conduz a uma variante do positivismo, uma vez que toda conduta que transgride o critrio se encontraria por isso mesmo desqualificada. Contudo, se no for esse o caso, de que depende a possibilidade de um campo de pesquisa tornar-se "cientfico"? A posio qual o filsofo poder almejar em relao s cincias depende dessa questo: deve ele abandonar qualquer pretenso de julgar, de produzir normas que lhe permitam dizer ao cientista "voc deveria ter...", para se

    19 Ver "Falsification and the Methodology of Research Programmes", in Imre Lakatos e Alan Musgrave {orgs.), Criticism and the growth of knowledge, Cambridge, Cambridge University Press, 1970. Esse livro, no traduzido em francs, pode ser considerado como o ponto de "acabamento", no duplo sentido do termo, da tradio demarcacionista. fruto de um colquio realizado em 1965 para confrontar as posies de Popper e de seus principais discpulos com aquelas de Thomas Kuhn,.

    Cincia e no-cincia

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  • assemelhar ao "crtico de arte", que sabe que no tem como

    dar lies aos artistas, mas dedica-se a comentar, para os no-artistas, a singularidade da obra artstica?

    Popper adotou sempre uma posio prxima daquela do "crtico de arte", pois, antes de mais nada, ele "amou" a cincia tal como Einstein lhe parecia simbolizar. A constante de sua carreira sempre foi: seja qual for o critrio, ele deve permitir compreender por que Einstein um cientista e por que os marxistas e os psicanalistas no o so. Seus discpulos, de outro lado, buscaram criar normas que pudessem, seno explicar a cincia, pelo menos demonstrar que o cientista deve se submeter a certas restries que permitam verificar sua racionalidade. Em todo caso, o ponto de partida dessa tradio, A lgica da descoberta cientfica, publicada em 1934, decididamente "antinatu- ralista": a cincia no se prende a uma definio "natural" da racio-nalidade. Popper, aps ter estabelecido a diferena lgica entre confirmao e refutao, mostra, com efeito, que ela insuficiente a partir do momento em que nos afastamos do universo lgico em que as proposies so definidas de maneira unvoca. A lgica jamais ser suficiente para impor a concluso segundo a qual uma proposio foi refutada por uma observao, o que Pierre Duhem j havia explicado em La thorie physique. Nenhuma observao, com efeito, pode ser enunciada sem recorrer a uma linguagem que lhe confira significao e que permita sua confrontao com a teoria diz-se hoje que todo fato est "impregnado" de teoria. O cientista est portanto perfeitamente livre para invalidar uma eventual contradio entre observao e teoria: pode redefinir os termos tericos ou introduzir novas condies de aplicao quer desta teoria quer do instrumento que produz o "fato" embaraoso. Ele pode, segundo o vocabulrio popperiano, "imunizar sua teoria" graas a um "estratagema convencionalista". Este termo carrega em si mesmo o juzo que Popper faz da interpretao "convencionalista" da cincia, que associada a Henri Poincar, o adversrio de Einstein. Se todas as nossas definies cientficas no passassem de convenes, que portanto poderamos

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  • modificar a nosso talante, Einstein no poderia jamais ter triunfado contra a interpretao rival de Lorentz, sustentada por Poincar. A demarcao resulta desde ento na recusa da liberdade que a lgica deixa ao cientista: s cientista de verdade aquele que sabe renunciar livre redefinio dos "enunciados de base" (que tornam possvel o enunciado da observao) e aceita expor deliberadamente sua teoria prova dos fatos assim estabilizados.

    A assimetria entre confirmao e falsificao no d origem portanto a nenhuma regra lgica. Para Popper, ela tem antes o estatuto de oportunidade para uma tica: porque ele explora esta assimetria, o que a lgica no o obriga a fazer mas que ele pode decidir-se a fazer, que o cientista cientista. Esta deciso encontra seu sentido na "finalidade" da cincia: a produo de novidade, novas experincias, novos argumentos, novas teorias. Aquele que, como o marxista ou o psicanalista, segundo Popper, aproveita-se da relao de fora que lhe permitir interpretar sempre um fato de maneira a deixar a sua teoria intacta, permanecer logicamente irrepreensvel, mas nunca criar uma idia nova. Aquele que, como o Einstein popperiano, escolhe expor-se refutao tomar a nica via aberta na busca da verdade, que Popper conjuga portanto com uma esttica de risco e de audcia. Com relao "finalidade" da cincia, nossas convices subjetivas, nossa procura de certezas so definidas como dolos venerados, como obstculos.

    No h, portanto, em 1934, teoria popperiana da cincia, mas uma caracterizao do cientista que se poderia bem dizer tica, estti- ca e etolgica. A questo no "como ser cientista?", mas "como se reconhece um cientista?". Que paixes o distinguem? Que compromisso, que ningum lhe imps racionalmente, confere valor sua busca? Que expectativas caracterizam a maneira como ele aborda os fatos? Em suma, qual a sua "prtica", no sentido em que esse termo une o que Kant pretendia distinguir com a Crtica da razo pura e aquela da razo prtica20? O que faz existir o cientista popperiano no uma verdade que seria possvel

    20Cbaosmose, Paris, Galile, 1992 [ed. bras.: Caosmose, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992]}.

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  • possuir, por meio do respeito a certas regras, e sim a verdade

    como "objetivo" (aim), autenticada por uma maneira de se relacionar com o mundo, de se expor aos seus desafios, de aceitar a possibilidade de que nossas previses sejam contrariadas.

    Muitas questes podem ser levantadas a partir dessa caracterizao popperiana. A primeira, que no ser formulada nem por Popper nem pela tradio demarcacionista, a questo de saber o que essa caracterizao tem por objetivo de fato: o cientista em geral ou o especialista em cincias experimentais? Porque, como o reconhece por exemplo Alan Chalmers21, o conjunto dos exemplos discutidos pela escola demarcacionista remete fsica e qumica, e o prprio Popper interessa-se pela histria e pelas cincias sociais antes de mais nada para criticar as teorias historicistas, dialticas, hermenuticas e outras, mas ele jamais encontrou neste campo o equivalente a um "Einstein"22. Entretanto, mesmo nas cincias cujo carter experimental incontestvel, pode-se perguntar qual o sentido ao qual o critrio de demarcao pode aspirar. Trata-se de um critrio "realista", que ambicionaria caracterizar normas s quais, de fato, os verdadeiros cientistas se conformam? Esse critrio suficiente para

    21 Alan Chalmers, Qu'est-ce que la scienceop. cit.22 O que permite a Raymond Boudon, em L'art de se

    persuader (col. Essais, Paris, Fayard, 1990), definir o critrio de demarcao como subsidirio de uma "teoria hiperblica", ou seja, uma teoria que desemboca em concluses cuja ge-neralidade dissimula os a priori implcitos discutveis. Boudon, de sua parte, se satisfaz com uma caracterizao tranqila ("polittica") das cincias, que lhe permite acolher na qualidade de "teorias", e mesmo "leis", o conjunto dos enunciados gerais aceitos pelas cincias sociais e econmicas. A questo da singularidade das cincias, questo que compartilho com Popper, se esvazia ento em proveito de uma viso ecumnica: poderamos dizer que em cada domnio, "faz-se o melhor possvel", e o bom senso suficiente para reconhecer a multiplicidade dos significados de que so revestidos os termos que servem de critrio para esse "melhor": progresso, verdade, teoria, racionalidade etc.

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  • definir a atividade do cientista? Permite compreender a histria das cincias que estamos inclinados a reconhecer como "verdadeiramente cientficas"? a questo que o principal discpulo de Popper, Imre Lakatos, ir examinar.

    O prprio Popper reconheceu bem rapidamente que, se no houvesse o fato que constitui o "progresso", o fato de que os cientistas conseguem produzir teorias que resistem durante um certo tempo falsificao e substituir teorias falseadas por teorias "melhores", que prevem com sucesso efeitos novos, a prtica da falsificao faria da histria das cincias um cemitrio de teorias muito pouco divertido. Estas, como escreveu Popper, teriam tido xito em provar seu carter cientfico fazendo-se refutar, todavia a tediosa repetio desta prova no constitui uma perspectiva muito grandiosa. O herosmo do cientista que aceita "expor" sua teoria implica certamente a aceitao de um risco, mas nunca a resignao refutao permanente. Para ser um "verdadeiro" cientista, segundo Popper, necessrio portanto pertencer a um campo que d ao cientista razes para ter esperanas que sua teoria resistir, um campo em que a possibilidade de "progresso" seja considerada estabelecida. Contudo, a anlise torna-se ento tautolgica. Se a condio que permite aos cientistas conduzirem-se como tais apenas o progresso, no se pode explicar pela conduta dos cientistas o carter "progressivo" das cincias, a possibilidade que elas encarnam de aprender e produzir o novo. Ora, exatamente isso que se tratava de compreender.

    Como veremos mais adiante, o prprio Popper chegou a adotar, a propsito das cincias, uma perspectiva que afirma do modo mais radical essa tautologia e lhe confere um sentido "cosmolgico". A singularidade das cincias em relao busca psicolgica de certezas e de confirmaes no deve ser explicada por uma psicologia prpria do sbio. Ela deve ser constatada, como surgimento da vida a partir dos processos materiais, e ela que explica a diferena subjetiva entre Einstein e o marxista ou o psicanalista. Em contrapartida, a escola demarcacionista procurou construir um "critrio melhor", que possa pretender descrever de maneira normativa as restries s quais, mesmo na fsica, a

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  • racionalidade cientfica est subordinada "fora da tautologia".

    O CRITRIO IMPOSSVEL DE ACHAR

    A singularidade da tradio demarcacionista que tem sua origem em Popper o uso que ela fez da histria das cincias: essa histria desempenha um importante papel de "campo de provas" para os distintos critrios de demarcao propostos. Esses critrios, segundo La- katos, que tomo aqui por guia, devem permitir uma reconstruo racional dessa histria que estabelea a diferena entre a dimenso aned-tica e o progresso. Um critrio que desqualifica uma posio que julgamos til e necessria ao progresso cientfico no passa portanto pela prova da histria. E a primeira vtima dessa prova o "falsificacio- nismo herico" de Popper.

    Que aconteceria se Coprnico tivesse sido um falsificacionista herico? Um desastre, pois iria abandonar heroicamente sua teoria heliocntrica, refutada notadamente pelo fato de que esta teoria prescreve que Vnus tenha, como a Lua, fases, o que os astrnomos jamais haviam observado. Como diz Lakatos, toda teoria "nasce refutada", e ela precisa, para ter a sua chance, ser protegida e acarinhada pelos seus promotores. Pode-se ento tentar definir um "falsificacio- nismo sofisticado", orientado pela noo de progresso. O que deve nortear as avaliaes dos cientistas sobre as teorias doravante a possibilidade de confirmar conjeturas audaciosas, como a teoria heliocntrica, ou de falsear as conjeturas prudentes, aquelas que decorrem de um saber que se pode considerar como estabelecido. A primeira conseqncia dessa posio que se deve proceder avaliao da racionalidade segundo os referenciais da poca, que define tanto a audcia quanto o saber estabelecido.

    Entretanto, o falsificacionismo, ingnuo ou sofisticado, permanece centrado numa "cena" tpica, a confrontao entre uma proposio terica e uma observao. Esta cena diretamente inspirada no positivismo do tipo logicista, que reduz a cincia a uma dupla fonte de conhecimento, que so os fatos, observveis, particulares, e o raciocnio, que constri uma proposio terica geral a partir dos fatos, seja este raciocnio do tipo indutivista ou falsificacionista. Porm,

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  • protesta Lakatos, a histria das cincias s oferece tais cenas por reconstruo artificial a posteriori. A "experincia crucial", na qual o cientista expe deliberadamente sua teoria prova da experincia, provavelmente a cena mais retrica e artificial da histria: o mais freqente que seja apresentada como crucial aps a experincia, quando bem- sucedida; e ela constitui, na verdade, uma execuo pblica e altamente ritualizada de uma hiptese rival.

    Em outros termos, no suficiente dizer que os fatos esto "impregnados de teoria" e podem portanto ser reinterpretados vontade. Essa maneira de apresentar as coisas tende a transformar em dificuldade, em obstculo "cena primordial", aquela da confrontao entre fato e teoria, aquilo que, segundo Lakatos,