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Fórum Nacional de Crítica Cultural 2 Educação básica e cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos 18 a 21 de novembro de 2010 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL Anais Eletrônicos | 406 A VOZ CRIA O ATO Graciela Nieves Pellegrino 1 Osvaldo Fernandez (orientador) 2 Esta comunicação aborda as lacunas existentes na estrutura curricular do curso de Pedagogia, relacionada à ausência de disciplinas que contemplem gênero e sexualidade. Citada nos PCN como tema transversal e invisibilizada no fazer pedagógico, a Orientação Sexual nas escolas ainda não ocupou seu verdadeiro lugar, contrapondo-se em grau de importância na formação biopsicossocial de crianças e jovens que ocupam por muitas horas e por muitos anos o espaço privilegiado da escola. Deixando de lado pueris conceituações, busco sedimentação nos relatos de professoras, cujas limitações internas interferem na naturalização do olhar sobre a temática. A prática de instituir dias e espaços para essa abordagem proporcionaria a esses alunos um canal de comunicação aberto para discussão de questões importantes, servindo inclusive como suporte e prevenção a diversos episódios que na atualidade causam sérios transtornos à infância e juventude, tais como a pedofilia, gravidez indesejada na adolescência, aborto em adolescentes e iniciação precoce da vida sexual ativa. Os relatos utilizados fazem parte da pesquisa de campo que fundamentará a dissertação que versa sobre o mesmo tema: representações sociais de professoras (es) do ensino fundamental sobre gênero e sexualidade. Incluída nos 16 dias de Ativismo pelo fim da violência contra a mulher, esta comunicação tem a proposta de além de falar às professoras (es), abranger outros atores sociais, considerando que direitos sexuais são direitos humanos. Sob o pressuposto de que a escola dará a seus filhos todas as respostas, muitas vezes os pais se eximen de papéis importantes que deveriam ser representados por eles e atribuem à escola essa função. Embora também seja papel da escola, mas não só dela, algumas faltas são percebidas quando nos detemos na análise de ações organizadas pela escola tais como a orientação sexual amplamente incentivada pelos PCN e que, no entanto, deixa ainda muito a desejar na maioria dos espaços escolares onde deveria ser implementada. 1 Pedagoga e mestranda em Crítica Cultural - Campus II Alagoinhas - Pesquisadora do Gepe(rs) - Grupo de Estudos de Psicanálise, Educação e Representação Social - Pesquisadora do Nugsex - Diadorim - Nucleo de Genero e Sexualidade (Uneb) [email protected] 2 Pós - Doutor em Ciências Sociais pela Columbia University, New York (EUA). Professor da Universidade do Estado da Bahia

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A VOZ CRIA O ATO

Graciela Nieves Pellegrino1

Osvaldo Fernandez (orientador) 2

Esta comunicação aborda as lacunas existentes na estrutura curricular do curso de

Pedagogia, relacionada à ausência de disciplinas que contemplem gênero e sexualidade.

Citada nos PCN como tema transversal e invisibilizada no fazer pedagógico, a Orientação

Sexual nas escolas ainda não ocupou seu verdadeiro lugar, contrapondo-se em grau de

importância na formação biopsicossocial de crianças e jovens que ocupam por muitas horas e

por muitos anos o espaço privilegiado da escola. Deixando de lado pueris conceituações,

busco sedimentação nos relatos de professoras, cujas limitações internas interferem na

naturalização do olhar sobre a temática.

A prática de instituir dias e espaços para essa abordagem proporcionaria a esses alunos

um canal de comunicação aberto para discussão de questões importantes, servindo inclusive

como suporte e prevenção a diversos episódios que na atualidade causam sérios transtornos à

infância e juventude, tais como a pedofilia, gravidez indesejada na adolescência, aborto em

adolescentes e iniciação precoce da vida sexual ativa.

Os relatos utilizados fazem parte da pesquisa de campo que fundamentará a

dissertação que versa sobre o mesmo tema: representações sociais de professoras (es) do

ensino fundamental sobre gênero e sexualidade. Incluída nos 16 dias de Ativismo pelo fim da

violência contra a mulher, esta comunicação tem a proposta de além de falar às professoras

(es), abranger outros atores sociais, considerando que direitos sexuais são direitos humanos.

Sob o pressuposto de que a escola dará a seus filhos todas as respostas, muitas vezes

os pais se eximen de papéis importantes que deveriam ser representados por eles e atribuem à

escola essa função. Embora também seja papel da escola, mas não só dela, algumas faltas são

percebidas quando nos detemos na análise de ações organizadas pela escola tais como a

orientação sexual amplamente incentivada pelos PCN e que, no entanto, deixa ainda muito a

desejar na maioria dos espaços escolares onde deveria ser implementada.

1 Pedagoga e mestranda em Crítica Cultural - Campus II – Alagoinhas - Pesquisadora do Gepe(rs) - Grupo de

Estudos de Psicanálise, Educação e Representação Social - Pesquisadora do Nugsex - Diadorim - Nucleo de

Genero e Sexualidade (Uneb) [email protected] 2 Pós - Doutor em Ciências Sociais pela Columbia University, New York (EUA). Professor da Universidade do

Estado da Bahia

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Há argumentos suficientes para escrever outro artigo, embora elegêssemos neste, os

relatos que são a parte viva da questão. Relatos dão veracidade a qualquer pesquisa, desde que

respeitadas as devidas proporções e pedidos dos que forneceram material para que isso fosse

possível. São relatos de professoras de uma escola pública do município de Salvador

devidamente autorizados, sendo usados nomes fictícios onde deixam claramente transparecer

suas dificuldades e limitações e inabilidades de lidar com essas questões. Motivos vários

conduzem a esse entendimento, desde uma má organização da escola para disponibilizar esse

tempo, a negação da sexualidade dos docentes que ali se encontram, e a forma de cada

docente lidar com a sua própria sexualidade.

Num desses relatos a professora conta que percebeu na classe em que lecionava, no 4º

ano do ensino fundamental, durante as aulas, um menino, de 11 anos, aluno exemplar,

segundo ela, sentado no fundo da sala, mostrava-se disperso a maior parte do tempo. Fazia as

tarefas solicitadas, mas não participava das aulas ativamente. Não se expressava. Havia nele

um olhar perdido, um devaneio, uma ausência. Passando a observá-lo com mais cuidado,

segundo ela, teve receio de que seu aluno tivesse um distúrbio mental, mas não lhe ocorria

nomeá-lo, por desconhecer essas etimologias.

Depois de alguns meses, com esse comportamento recorrente, a professora finalmente

pôde dizer de que se tratava que nome daria a esse comportamento que tanto a incomodava.

Certo dia, em uma aula de matemática, em meio a tantos cálculos, observa seu aluno, de novo

distraído, só então resolve aproximar-se e qual não foi o seu ‘espanto’ ao ver que seu aluno,

aquela criança que ela considerava assexuada, estava se masturbando dentro da sua sala de

aula.

O que fazer? Essa foi a sua questão. Não hesitou em colocá-lo para fora da sala, levá-

lo à coordenação, espalhar o acontecido e naturalmente comunicar aos pais que detectara um

problema. Um problema? Diríamos que não só um problema, mas vários problemas, desde a

posição da escola, a posição da professora, associado ao desconhecimento da sexualidade de

seus alunos, e arriscaria dizer do negar a si mesmo a possibilidade de ser alguém com desejos.

Tentar invisibilizar a sexualidade de seus alunos é uma forma comum e equivocada de

encarar essas questões. Pensam que se há dificuldade em lidar com ela melhor ignorá-la. No

entanto essa atitude redimensiona curiosidades e falsos conceitos. Muitos professores/as

pensam que [...] se deixarem de tratar desses ‘problemas’ a sexualidade ficará fora da escola.

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É indispensável que reconheçamos que a escola não apenas reproduz ou reflete as concepções

de gênero e sexualidade que circulam na sociedade, mas que ela própria as produz3

Essa recusa à sexualidade é histórica e não por acaso. Dentro de um contexto

sociopolítico, muitas vezes a orientação sexual passa a ser uma espécie de lei cujos ditames

devem ser obedecidos. Devemos ver a orientação sexual como um espaço e canal de

comunicação com a proposta de minimizar possíveis seqüelas de uma vida sexual precoce.

Ignorar a sexualidade de crianças e jovens ajuda a reforçar o que Bernardi chama de

sociedade sexofóbica quando diz que

Há quem sustente que o peso maior nesta operação repressiva coube à religião, e há

quem atribua o grosso da responsabilidade à burguesia, e em particular à burguesia

industrial que surgiu no final do século passado. É sem duvida difícil separar

nitidamente a obra moralizadora eclesiática daquela dos seus colegas laicos. É

provável que o poder econômico e sociopolítico tenha se unido ao religioso no

esforço de realizar uma sociedade sexofóbica – a nossa sociedade de hoje - que

arregimentando-se para a chamada educação sexual procura conservar-se a todo

custo.4

Outro relato é o da professora de Ciências da 7ª e 8ª séries do fundamental,

graduada em biologia. Depois da aula, preparando-se para ir embora percebeu que havia

esquecido a caderneta na sala de aula e voltou. Aproximando-se da porta da sala ouviu vozes,

sussurros e risos. Resolveu ouvir e esperar. Eram dois jovens, alunos seus que estavam

namorando. Percebendo nitidamente isso, decidiu esperar, dar um tempo, para que isso fosse

concluído e só depois bateu na porta e entrou. Conversou com seus alunos enfatizando que ali

não era o local indicado para fazer isso e ainda sinalizou da importância do preservativo

perguntando se haviam usado. Os jovens alunos ficaram bastante embaraçados desculparam-

se até e saíram da sala.

Na aula seguinte, como costuma fazer uma vez por mês, abriu espaço para perguntas

que poderiam ser feitas oralmente ou escritas e entregues sem identificação. Nesse momento

algumas dúvidas são tiradas, propostas algumas leituras, indicação de filmes e pedido um

resumo da reunião com aspectos considerados relevantes e acréscimos que porventura possam

ter contribuído para eles.

Essa forma de lidar com a temática em sala de aula é o que sugere o PCN, como

forma simplista de abordagem, desconhecendo ou ignorando como se sentem essas/es

professoras/es com sua própria sexualidade. Os dois exemplos acima citados mostram bem

3 LOURO, G. L.; FELIPE, J. ; GOELLNER, S. V. (org). Corpo Gênero e Sexualidade: um debate

contemporâneo na educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. 4 BERNARDI, Marcello. A Deseducação sexual. (tradução de Antonio Negrini). Novas buscas em educação;

v.21. São Paulo: Summus, 1985.

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essa diferença de atitude diante de situações envolvendo a sexualidade dos alunos em que é

fundante o respeito à individualidade, à subjetividade desses professores e até onde são

capazes de ir, já que nos cursos de formação de professores, aprenderam que a sexualidade

está circunscrita a um espaço biomédico e que prazer e bem estar relacionado ao sexo não é

assunto de sala de aula, no máximo nos espaços das suas intimidades.

Quando pensamos em mudanças pensamos também na estrutura curricular do curso de

formação de professores, que esboça nos últimos tempos uma tímida tentativa de acrescer a

outras disciplinas, também aquelas que tratem de gênero e sexualidade. Esse contato desde a

graduação facilitaria a naturalização dessas questões. Para que de fato ocorram essas

mudanças pensamos no que representa o currículo e que força transformadora tem como

ferramenta sociopolítica.

Poderíamos pensar na teoria queer5, e a partir dela algumas autoras propõem uma

pedagogia queer, que não somente introduziria questões de sexualidade ao currículo, e sim

estimularia que a sexualidade fosse tratada com seriedade como fonte de conhecimento e

formação identitária.

O currículo tem sido tradicionalmente concebido como um espaço onde se ensina a

pensar, onde se transmite o pensamento, onde se aprende o raciocínio e a

racionalidade. Essa ênfase no pensamento é fortemente inspirada nas diversas

formas de psicologia e, mais recentemente, na psicologia construtivista. Num

currículo inspirado na teoria e na pedagogia queer, essa ênfase sofre um importante

deslocamento. Para citar novamente Debora Britzman, a questão não é mais

simplesmente “como pensar”?, mas: “o que torna algo pensável?”. Examinar o que

torna algo pensável estimula, por sua vez, pensar o impensável. Um currículo

inspirado na teoria queer é um currículo que força os limites das epistemes

dominantes: um currículo que não se limita a questionar o conhecimento como

socialmente construído, mas que se aventura a explorar aquilo que ainda não foi

construído. A teoria queer - esta coisa estranha - é a diferença que pode fazer

diferença no currículo6

No ultimo relato a professora foi surpreendida pelo diálogo entre duas crianças com

idade entre 4 e 5 anos. Cada uma delas mostrava, abaixando o short, suas genitálias e

questionavam porque uma tinha o que faltava na outra, já que se tratava de um menino e uma

menina. Ela teve uma reação exagerada, segurando cada uma delas pela mão, deixou-as em

um cantinho da sala para pensar e a partir desse dia não foram mais sozinhas ao banheiro.

Sem falar nos bilhetinhos para os pais, conversa com a psicopedagoga e a noticia espalhada

pela escola inteira, com interpretações as mais variadas. Essa professora admitiu sentir-se

5 Uma atitude epistemológica que não se restringe à identidade e ao conhecimento sexuais, mas que se

estende para o conhecimento e a identidade de modo geral. Pensar queer significa questionar, problematizar, contestar, todas as formas bem-comportadas de conhecimento e identidade. 6 Silva, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade : uma introdução às teorias do currículo. 3ed. Belo

Horizonte: Autêntica, 2010.

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despreparada para lidar com esse tipo de situação e que foi muito constrangedor para ela

relatar isso à coordenação e aos pais, pois não sabia que nomes usar para nomear pênis e

vagina.

A partir dos estudos de Freud tomamos conhecimento que cada período tem sua

peculiaridade quanto à evolução psicossexual do ser humano. Para ele “a sexualidade é uma

manifestação da vida psíquica que se desenvolve por fases sucessivas.”. Logo, a sexualidade

não é um fato isolado, sendo moldada desde a mais tenra idade nas relações que o sujeito

estabelece consigo mesmo e com os outros, advindo daí a importância da orientação sexual

nas escolas, permitindo uma formação biopsicossocial, a partir do potencial biológico, do

processo de socialização e da capacidade psicoemocional.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M. G.; SILVA, L. B da. Juventudes e Sexualidade.

Brasília: UNESCO Brasil, 2004.

BERNARDI, Marcello. A Deseducação sexual. (tradução de Antonio Negrini). Novas buscas

em educação; v.21. São Paulo: Summus, 1985.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:

pluralidade cultural, orientação sexual. Secretaria de Educação Fundamental – Brasília:

MEC/SEF, 1997.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I – a vontade de saber. Rio de Janeiro:

Edições Graal, 1988.

FREUD, Sigmund. Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (parte III) (1915-1916). Rio

de Janeiro: Imago, 1996.

LOURO, G. L.; FELIPE, J. ; GOELLNER, S. V. (org). Corpo Gênero e Sexualidade: um

debate contemporâneo na educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade : uma introdução às teorias do

currículo. 3ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.