24
Asa Larsson Sangue Derramado º 4as Sangue Derramado.indd 3 11/09/17 12:58:20

4as Sangue Derramado

  • Upload
    others

  • View
    4

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 4as Sangue Derramado

Asa Larsson

Sangue Derramado

º

4as Sangue Derramado.indd 3 11/09/17 12:58:20

Page 2: 4as Sangue Derramado

Asa Larsson

Sangue Derramado

António Carlos CarvalhoTradução

º

4as Sangue Derramado.indd 5 11/09/17 12:58:22

Page 3: 4as Sangue Derramado

Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 ‑242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor

© 2004, åsa Larsson Publicado originalmente por Albert Bonniers Förlag, Estocolmo, Suécia

Publicado com autorização de Bonnier Group Agency, Estocolmo, Suécia © 2011, Planeta Manuscrito

Título original: Det Blod Som Spillts

Revisão: Fernanda Fonseca

Paginação: Lígia Pinto

1.ª edição: Setembro de 2011

Depósito legal n.º 333 318/11

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas

ISBn: 978 ‑989 ‑657 ‑224‑2

www.planeta.pt

4as Sangue Derramado.indd 6 11/09/17 12:58:23

Page 4: 4as Sangue Derramado

Pois eis que o Senhor sai da sua morada para castigar a iniquidade dos habitantes da terra; a terra descobrirá o sangue derramado e já não encobrirá aqueles que foram mortos.

Isaías, 26, 21

A vossa aliança com a morte será anulada e o vosso acordo com a sepultura não subsisti-rá; e, quando o dilúvio do açoite passar, sereis esmagados por ele. Todas as vezes que passar vos arrebatará, porque passará manhã após manhã, e todos os dias e todas as noites; e será puro terror o só ouvir tal notícia.

Isaías, 28, 18-19

4as Sangue Derramado.indd 7 11/09/17 12:58:23

Page 5: 4as Sangue Derramado

Sexta-feira

4as Sangue Derramado.indd 9 11/09/17 12:58:24

Page 6: 4as Sangue Derramado

11

21 de Junho

Estou no sofá da cozinha. É-me impossível dormir. Agora que estamos a meio do Verão as noites são claras e não há maneira de nos descontrairmos. Daqui a pouco o relógio de parede que tenho por cima de mim dará a uma hora. O tiquetaque do pêndulo vai avançando no silêncio. Faz em fanicos cada frase, cada intenção de elaborar um pensamento razoável. Sobre a mesa está a carta daquela mulher.

Não te mexas, digo a mim próprio. Não te mexas e adormece.Traya vem-me à cabeça, uma pointer que tínhamos na minha

infância. Nunca estava quieta, andava sempre às voltas na cozinha como uma alma penada, com as patas batendo no chão enverniza-do. Nos primeiros meses tivemo-la numa casota dentro de casa para a obrigar a descontrair-se. Os «cala-te», «quieta» ou «deita-te» da família ouviam-se constantemente lá em casa.

Agora é o mesmo. Tenho um cachorro metido no peito que quer sair num salto a cada tiquetaque do relógio que se ouve. Sempre que respiro. Mas não é a Traya que se move no meu peito. A Traya só queria andar de um lado para o outro. Acabar com a sua inquietação à custa de correr. A cadela a que me refiro vira a cabeça cada vez que tento olhá-la. Está cheia de más intenções.

Vou tentar dormir um pouco. Alguém deveria prender-me. Devia ter uma casota na cozinha.

4as Sangue Derramado.indd 11 11/09/17 12:58:24

Page 7: 4as Sangue Derramado

12

ºAsa Larsson

Estou de pé olhando pela janela. É uma e um quarto. A claridade vinda de fora faz pensar que é dia. As sombras dos velhos pinheiros alinhados na orla do jardim aumentam em direcção à casa. Penso que são como braços, mãos que lutam para sair dos seus túmulos e se estendem para me agarrarem. A carta continua ali, sobre a mesa da cozinha.

e

Estou na cave. São duas e cinco. A cadela que não é a Traya come- çou a andar. Está a correr pelas margens da minha consciência. Chamo-a. Não quero segui-la, não quero meter-me por esse terreno nunca antes pisado. Tenho a mente em branco. A mão vai colhendo coisas da parede. Diferentes objectos. Para que os quero? A maça, o pé-de-cabra, a corda, o martelo.

As minhas mãos metem tudo no porta-bagagens. É como um puzzle. Não consigo ver o que representa. Sento-me no carro à es-pera. Penso na mulher e na carta. A culpa é dela. Foi ela quem me tirou dos eixos.

Conduzo o carro. Há um relógio no painel. São traços sem qualquer sentido. O caminho alheia-me do tempo. As mãos seguram o volante com tanta força que me doem os dedos. Se me matar agora terão de serrar o volante e enterrar-me com ele. Mas não me vou matar.

e

Paro o carro a cem metros do cais onde ela tem o seu barco. Desço até ao rio. Reluz brilhante e calmo, à espera. A água bate levemente contra o barco. O Sol move-se nas ondulações provocadas por uma truta que subiu à superfície para comer uma crisálida. Os mosqui-tos acumulam-se à minha volta. Dão voltas junto às minhas orelhas. Aterram ao redor dos meus olhos e na minha nuca e chupam-me o sangue. Não me incomodam. Um ruído faz-me reagir e voltar-me. É ela. Está apenas a dez metros de mim.

4as Sangue Derramado.indd 12 11/09/17 12:58:24

Page 8: 4as Sangue Derramado

13

Sangue Derramado

A sua boca abre-se e molda-se de acordo com as palavras que diz. Mas nada ouço. Tenho os ouvidos bloqueados. Os olhos dela semicerram-se. Sinto-me irritado por dentro. Experimento dar dois passos em frente. Ainda não sei o que quero. Encontro-me num lugar onde não há bom senso nem razão.

Acaba de se dar conta de que tenho o pé-de-cabra na mão. A sua boca fica quieta. Os olhos abrem-se de novo. Há um instante de sur-presa. Depois, medo.

Reparo que seguro o pé-de-cabra. A minha mão pálida rodeia o ferro. E de repente a cadela aparece outra vez. Enorme. As patas são como cascos. Tem o lombo todo eriçado, do pescoço até à cauda. Está a mostrar os dentes. Vai engolir-me dos pés à cabeça. E depois vai engolir a mulher.

e

Cheguei junto dela. Observa como que enfeitiçada o pé-de-cabra e, por isso, o primeiro golpe acerta-lhe mesmo acima da têmpora. Agacho-me a seu lado e encosto a face à sua boca. Sinto um bafo quente na minha pele. Ainda não acabei com ela. A cadela foge como uma louca, arremetendo contra tudo o que se encontra no seu caminho. As unhas abrem feridas grandes no chão. Entusiasmo-me. Corro pelos confins da demência.

E agora alargo as passadas.

4as Sangue Derramado.indd 13 11/09/17 12:58:24

Page 9: 4as Sangue Derramado

14

A zeladora da paróquia, Pia Svonni, está a fumar no jardim da sua casa geminada. Normalmente segura o cigarro como o fazem as senhoras, entre o indicador e o dedo médio, mas neste momento tem-no seguro com o indicador, o médio e o polegar. Há uma dife-rença considerável. É porque se aproxima o solstício de Verão. Uma pessoa torna-se mais selvagem. Sem vontade de dormir. Também não precisa. A noite sussurra-te, ilude-te, corteja-te e, por fim, aca-bas por sair.

As ninfas dos bosques atam os atacadores dos seus sapatos novos feitos com casca de bétula, da mais fofa. É uma autêntica competição de princesas. Esquecem-se de tudo, dançam e saem para os prados embora possa passar algum carro. Gastam o calçado enquanto os pequenos duendes, escondidos entre as árvores, observam com os olhos muito abertos.

Pia Svonni esmaga o cigarro na base do vaso colocado ao contrá-rio de modo a fazer de cinzeiro e deixa cair a beata através do orifí-cio. Apetece-lhe ir de bicicleta até à igreja de Jukkasjärvi. Amanhã será celebrado um casamento. Já limpou e arrumou tudo, mas quer arranjar um grande ramo de flores para colocar no altar. Dará uma volta pelo prado que se estende por detrás do cemitério. Ali crescem globos-de-ouro e botões-de-ouro e outras flores de Verão de cor púrpura entre um mar de cerefólios brancos. Os miosótis sussurram

4as Sangue Derramado.indd 14 11/09/17 12:58:24

Page 10: 4as Sangue Derramado

15

Sangue Derramado

nas margens dos regos. Pia Svonni enfia o telemóvel no bolso e ata os ténis.

O Sol da meia-noite ilumina o jardim. A luz suave atravessa a cerca de madeira e as grandes sombras das ripas fazem que a relva pareça uma alcatifa tecida em casa, com tiras de trapos amarelo- -esverdeados e verde-escuros. Um bando de tordos faz algazarra numa das bétulas.

e

O caminho até Jukkasjärvi é todo a descer. Pia pedala e mete as mudanças. A velocidade a que vai é perigosa. E não leva capacete. O cabelo ondula ao vento. É como quando tinha quatro anos e estava de pé no baloiço do jardim feito com um pneu e sentia que quase dava a volta inteira.

Passa por Kauppinen, onde alguns cavalos ficam a olhá-la da sua cerca. Quando atravessa a ponte sobre o rio Torneälven vê dois miú-dos a pescar com iscos de moscas, um pouco mais abaixo.

O caminho é paralelo ao rio. O povoado dorme. Passa diante da zona turística e da pousada, do antigo supermercado Konsum e da feia Casa do Povo. A seguir passa pelas prateadas paredes de madeira do museu local e pelos véus de bruma do prado dentro das cercas.

Fora do povoado, onde termina o caminho, ergue-se a igreja pin-tada de vermelho. Sente-se o cheiro do alcatrão novo posto no telhado.

O campanário está colado à cerca. Para entrar na igreja é preciso passar pelo campanário e seguir por um caminho de pedra que con-duz às escadas.

Uma das portas azuis do campanário está aberta de par em par. Pia desce da bicicleta e deixa-a encostada à cerca.

Devia estar fechada, pensa, e aproxima-se sem pressas da porta.Ouve um ruído proveniente das pequenas bétulas que ficam à

direita do caminho que conduz à residência paroquial. Sente um aperto no coração e fica à escuta, muito atenta. Era apenas um ran-gido. Provavelmente um esquilo ou uma ratazana.

4as Sangue Derramado.indd 15 11/09/17 12:58:25

Page 11: 4as Sangue Derramado

Asa Larsson

16

º

Até mesmo a porta das traseiras do campanário está aberta. Con-segue ver através da torre. A porta da igreja também está aberta.

O coração bate-lhe agora com força. Sune pode esquecer-se de fechar a porta do campanário se parte de férias três dias antes do solstício de Verão, mas não a porta da igreja. Vem-lhe à memória a notícia daqueles jovens que partiram os vitrais de uma igreja na cidade e atiraram lá para dentro trapos a arder. Já se passaram uns dois anos. Que aconteceu agora? Vêm-lhe imagens à cabeça. O retá-bulo pintado com sprays e mijado. Navalhadas dadas nos bancos pintados há pouco tempo. O mais provável é que tenham entrado pela janela e depois aberto a porta por dentro.

Avança para o portão da igreja. Caminha devagar. Aguça o ouvido e escuta atentamente para todos os lados. Como se chegou a isto? Rapazes que deviam estar ocupados a pensar em miúdas e a mexer em motocicletas. Como acabam a incendiar igrejas ou a matar homos- sexuais?

Depois de passar o pórtico fica quieta. Está debaixo do coro, onde o tecto é tão baixo que as pessoas um pouco altas têm de baixar a cabeça. Há um silêncio incómodo dentro da igreja, mas parece estar tudo em ordem. Cristo, Laestadius e Maria resplandecem impecá-veis no retábulo. E ainda assim há algo que a faz hesitar. Ali dentro alguma coisa não se enquadra.

Debaixo do chão da igreja paroquial repousam oitenta e seis cadá- veres. Nunca pensa neles. Descansam em paz dentro dos seus túmu-los. Mas agora consegue sentir a perturbação deles aflorando do chão e cravando-se como agulhas nas plantas dos pés.

Que se passa convosco?, pensa.O corredor central está coberto com um tapete vermelho. Preci-

samente onde termina o coro e o tecto se abre para cima há algo no tapete. Agacha-se.

Uma pedra, pensa inicialmente. Um pedacinho de pedra branca.Apanha-a com o polegar e o indicador e dirige-se para a sacristia.Mas a porta da sacristia está fechada à chave e ela vira-se para

voltar a descer pelo corredor do altar.

4as Sangue Derramado.indd 16 11/09/17 12:58:25

Page 12: 4as Sangue Derramado

17

Sangue Derramado

Quando está diante do altar pode ver a parte inferior do órgão. Está quase completamente tapado por uma espécie de viga, uma separação feita com um tabique de madeira que atravessa o salão central de lado a lado e que desce do tecto a um terço da altura total. Mas do ponto onde se encontra consegue ver a parte de baixo do órgão. E vê dois pés suspensos diante do coro.

A primeira coisa em que pensa por um instante é que alguém entrou na igreja paroquial e se enforcou, e nesse preciso instante sente fúria. Fazer uma coisa dessas parece-lhe totalmente incorrecto. Depois deixa a mente em branco, sem pensar em nada. Desce a cor-rer pelo corredor central que sai do altar, passa por debaixo do tabi-que que parte do tecto e então vê o corpo suspenso diante dos tubos do órgão e dos raios de Sol lapão.

O corpo está suspenso de uma corda. Não, não é uma corda, é uma corrente. Uma comprida corrente de ferro.

Vê as marcas escuras do tapete onde tinha encontrado a lasca de pedra.

Sangue. Será sangue? Agacha-se.Então percebe. A pedrinha que segura entre o polegar e o indica-

dor não é nenhuma pedra. É um pedacinho de dente. Põe-se de pé num salto. Os dedos largam a lasca branca, quase

a atiram para longe.Mete a mão no bolso, tira o telemóvel e marca o 112.Do outro lado da linha responde um rapaz que parece dema-

siado jovem. Enquanto vai respondendo às perguntas dele, Pia tenta abrir a porta do coro. Está fechada à chave.

– Está fechada – diz ao rapaz. – Não posso subir.Volta rapidamente à sacristia. Não há chave para a porta do coro.

Arrombá-la? Com quê?O rapaz do outro lado da linha tenta captar a sua atenção. Diz-

-lhe para esperar lá fora. Assegura-lhe que a ajuda vem a caminho.– É a Mildred! – grita. – É a Mildred Nilsson que está aqui pendu-

rada. É a pastora da aldeia. Meu Deus, que aspecto ela tem!– Já está lá fora? – pergunta-lhe o rapaz. – Vê alguém?

4as Sangue Derramado.indd 17 11/09/17 12:58:25

Page 13: 4as Sangue Derramado

Asa Larsson

18

º

O rapaz do telefone consegue tirá-la dali e levá-la para as escadas da igreja. Ela diz-lhe que não há ninguém por ali.

– Não desligue – diz-lhe ele. – Continue a falar comigo. A ajuda vai a caminho. Não volte a entrar na igreja.

– Posso acender um cigarro?Ele autoriza-a. Não há problema em largar o telefone.Pia senta-se nos degraus com o telemóvel ao lado. Inala o fumo

e nota que se sente muito descontraída e lúcida. Mas o cigarro arde muito mal. Por fim apercebe-se de que o acendeu do lado do filtro. Sete minutos depois ouve sirenes ao longe.

Deram cabo dela, pensa.E agora começam-lhe a tremer as mãos. Atira o cigarro para

longe.Grandes cabrões. Deram cabo dela.

4as Sangue Derramado.indd 18 11/09/17 12:58:25

Page 14: 4as Sangue Derramado

Sexta-feira

4as Sangue Derramado.indd 19 11/09/17 12:58:25

Page 15: 4as Sangue Derramado

21

1 de Setembro

Rebecka Martinsson desceu do barco-táxi e olhou para a Månsão de Lidö. O sol do meio-dia iluminava a fachada cor de limão-esbran- quiçado e os pormenores e ornamentos de carpintaria. O imenso pátio estava cheio de gente. Umas gaivotas saídas do nada piavam por cima da cabeça dela. Pertinazes e irritantes.

Não sei como conseguem, pensou.Deu uma gorjeta exagerada ao taxista. Era a compensação por ter

sido monossilábica quando ele tentou entabular conversa.– Então vão mesmo fazer uma grande festa – disse ele, apontando

para o hotel com a cabeça.O escritório inteiro dos advogados estava já ali. Quase duzentas

pessoas pululavam de um lado ao outro. Falavam em grupinhos. Sepa- ravam-se e continuavam a andar. Mãos que se apertavam e beijos dados nas faces. Tinham preparado uma fila de grandes grelhadores. Umas quantas pessoas vestidas de branco serviam um bufete de carne assada numa comprida mesa coberta com uma toalha de linho. Andavam, apressadas entre a cozinha e a mesa, como ratinhos bran-cos com chapéus de cozinheiro ridiculamente altos.

– Sim – respondeu Rebecka, pendurando ao ombro a bolsa com estampado de pele de crocodilo. – Mas consegui sobreviver a coisas piores.

4as Sangue Derramado.indd 21 11/09/17 12:58:25

Page 16: 4as Sangue Derramado

Asa Larsson

22

º

Ele soltou uma gargalhada e partiu com tal velocidade que fez que a proa se erguesse acima da água. Um gato preto deu um salto silencioso do cais e desapareceu no meio das ervas altas.

Rebecka começou a andar. A ilha estava extenuada depois do Verão. Pisada, ressequida e desgastada.

Por aqui passeou muita gente, pensou. Famílias com crianças e mantas de piquenique, marinheiros de água doce bêbados e bem-ves-tidos.

A relva estava enfraquecida e tinha ficado amarela, e as árvores, cobertas de poeira, pareciam sedentas. Podia imaginar o aspecto que teria o bosque. Por baixo das matas de mirtilos e dos fetos devia haver garrafas, latas, preservativos usados e fezes humanas aos mon-tões.

O caminho que subia para o hotel era duro como cimento. Como a coluna vertebral gretada de um lagarto pré-histórico. Ela própria era um lagarto. Acabado de aterrar numa nave espacial. Vestido com o seu traje de pessoa prestes a passar pela prova de fogo: imitar o comportamento humano. Olhar os que estavam à sua volta e fazer mais ou menos o mesmo, fazendo também figas para que o seu dis-farce não fosse descoberto.

Estava quase a chegar à esplanada do jardim.Vamos, mulher, disse para si mesma. Isto é canja.Depois de ter assassinado aqueles homens em Kiruna continuou

a trabalhar no escritório de advogados Meijer & Ditzinger como de costume. Parecia-lhe que tudo estava a correr bem. Mas na realidade tudo fora uma merda. Não pensava no sangue nem nos corpos. Ago-ra, olhando para trás, até à época anterior a terem-lhe dado baixa, tinha dificuldade em dizer se na realidade chegou a pensar algo em algum momento. Julgava que trabalhava mas, afinal, não fazia mais do que passar papéis de uma pilha para outra. Obviamente, dor-mia mal. E estava como que ausente. Podia passar uma eternidade a arranjar-se de manhã para ir trabalhar. A catástrofe chegou de sur-presa. Não deu por ela até lhe cair em cima. Foi por um simples caso de arrendamento. O cliente queria saber qual o prazo de pré-aviso

4as Sangue Derramado.indd 22 11/09/17 12:58:26

Page 17: 4as Sangue Derramado

23

Sangue Derramado

para concluir o contrato de arrendamento de um estabelecimento. Ela respondeu-lhe com manifesto exagero. Tinha o dossiê com todos os contratos diante do nariz, mas não conseguiu entender o que ali estava escrito. O cliente, uma empresa francesa de vendas pelo correio, exigira ao escritório de advogados uma indemnização por perdas e danos.

Recordou Måns Wenngren, o seu chefe, e a cara com que olhara para ela. Rubro de cólera atrás da secretária. Ela tentou pedir a demissão mas ele não lho permitiu.

– Prejudicaria seriamente a imagem do escritório – disse-lhe. – Todos iriam crer que te tínhamos incitado a deixar o lugar. Que tínhamos posto de lado uma colega com problemas psí… que não se encontra bem.

Naquela mesma tarde saiu a cambalear do escritório. E quando estava na Birger Jarlsgatan, na obscuridade do Outono, ilumi- nada pelos faróis dos carros de luxo que passavam por ela a grande velocidade, pelas montras das lojas decoradas com estilo e pelos bares de Stureplan, invadiu-a uma forte sensação de que já não podia voltar à Meijer & Ditzinger. Sentiu que a única coisa que queria era partir para o mais longe possível. Mas não foi isso que acon-teceu.

Deram-lhe baixa. Primeiro semanalmente e depois mês a mês. O médico disse-lhe para fazer coisas que lhe parecessem divertidas. Se havia alguma coisa que gostasse no seu trabalho, era bom que continuasse a fazê-la.

Depois do que aconteceu em Kiruna, o escritório começou a ter muitos casos de processos judiciais. O nome e a cara de Rebecka não tinham aparecido nos jornais; em troca, o nome do escritório surgira com frequência na comunicação social. Os clientes ligavam para o escritório dizendo que queriam ser representados por «aquela rapariga que esteve em Kiruna». Obtinham sempre a resposta- -padrão, a de que o escritório lhes podia atribuir um advogado penal com mais experiência, mas que ela podia também estar presente. Dessa maneira marcaram presença nos grandes julgamentos cobertos

4as Sangue Derramado.indd 23 11/09/17 12:58:26

Page 18: 4as Sangue Derramado

Asa Larsson

24

º

pelos meios de informação. Durante essa época houve duas viola-ções em grupo, um homicídio com roubo e um caso de corrupção.

Os sócios propuseram-lhe que continuasse a assistir aos julga-mentos mesmo estando de baixa. Também não eram assim tão fre-quentes. E era uma boa maneira de continuar em contacto com o trabalho. Além disso, não tinha de preparar nada. Bastava-lhe estar presente, apenas isso. Mas só se ela quisesse, claro.

Aceitou a proposta porque não tinha outra opção. Deixara o escri- tório exposto, tinha-os feito perder um cliente e, além disso, pagar uma indemnização. Era impossível negar-se a fazer isso. Estava em dívida para com eles e assentiu com um sorriso.

De qualquer modo, nos dias em que tinha de assistir a um jul-gamento, pelo menos levantava-se da cama. Em regra, os primeiros olhares do júri e do juiz eram sempre dirigidos para os acusados, mas agora era ela a grande atracção do circo. Cravava os olhos na mesa que tinha diante de si e deixava-os olhar. Malfeitores, juízes, procuradores, advogados. Quase podia ouvir o que estavam a pen-sar: Então é ela…

Chegou à esplanada que havia diante da Månsão. Aqui apare-cia de repente a relva verde e sã. Deviam ter usado os aspersores de forma descontrolada, de tal modo o Verão tinha sido longo e seco. O perfume das últimas rosas silvestres do ano estendia-se como uma capa que a brisa da tarde levava terra adentro. O ar era quente e agradável. As mulheres mais jovens traziam vestidos brancos sem mangas. As que tinham mais alguns anos escondiam os braços debaixo de jaquetas de algodão de IBlues e Max Mara. Os homens haviam deixado as gravatas em casa. Andavam de um lado para o outro de calças Gant, levando copos às mulheres. Controlavam as acendalhas dos grelhadores e falavam com o pessoal da cozinha como se fossem camponeses.

Rebecka passou os olhos pela multidão. Não via Maria Taube nem Måns Wenngren em parte alguma.

De repente apareceu um dos sócios que vinha ter com ela, Erik Rydén. Toca a sorrir.

4as Sangue Derramado.indd 24 11/09/17 12:58:26

Page 19: 4as Sangue Derramado

25

Sangue Derramado

e

– É ela?Petra Wilhelmsson viu Rebecka a subir pelo caminho que vinha

até à Månsão. Petra acabava de ser contratada pela empresa. Estava apoiada no corrimão da ponte junto à entrada. De um lado tinha Johan Grill, também novo na empresa, e do outro estava Krister Ahl-berg, criminalista que rondava os trinta anos.

– Sim, é ela – confirmou Krister Ahlberg. – A Modesty Blaise da empresa.

Esvaziou o copo e deixou-o no corrimão com uma pancadinha. Petra abanou a cabeça devagar.

– E pensar que matou uma pessoa – disse.– Na realidade foram três – corrigiu Krister.– Meu Deus, estou a ficar toda arrepiada! Vejam! – e Petra mos-

trou o braço aos dois homens que a acompanhavam.Krister Ahlberg e Johan Grill observaram com atenção o braço

da sua colega. Era magro e moreno. Uns raros pêlos delicados tinham ficado quase brancos com o sol do Verão.

– Ou seja, não é por ser rapariga – continuou Petra –, mas não tem ar de ser do género que…

– É que também não o era. Acabou por se ir abaixo psicologica-mente. E não conseguiu fazer o seu trabalho. Às vezes vai aos julga-mentos de pouca monta. E depois calha a alguém fazer o trabalho e ficar no escritório com o telemóvel ligado no caso de acontecer alguma coisa. E entretanto ela vai-se tornando famosa.

– É famosa? – perguntou Johan Grill. – Nunca chegaram a escre-ver sobre ela, pois não?

– Não, mas no círculo dos advogados todos sabem quem ela é. Esse círculo na Suécia é muito pequeno, em breve te darás conta disso.

Krister Ahlberg afastou um centímetro o polegar do dedo indi-cador da mão direita. Viu que o copo de Petra estava vazio e pensou

4as Sangue Derramado.indd 25 11/09/17 12:58:26

Page 20: 4as Sangue Derramado

Asa Larsson

26

º

em oferecer-se para o encher. Claro que nesse caso iria deixá-la sozi-nha com Johan.

– Meu Deus – exclamou Petra –, pergunto-me como será matar uma pessoa.

– Vou apresentar-ta – disse Krister. – Não estamos no mesmo departamento, mas fizemos juntos o curso de Direito Comercial. Aguardemos uns minutos que Erik Rydén a liberte.

e

Erik Rydén abraçou Rebecka e deu-lhe as boas-vindas. Era um homem rechonchudo e imediatamente ficava acalorado com os deve- res de anfitrião. Do seu corpo saía vapor como um pleno Agosto, emanando aromas de Chanel pour Monsieur e de álcool. Rebecka deu-lhe umas palmadinhas nas costas, dessas que se dão para que os bebés arrotem.

– Que bom é teres vindo – disse ele com o maior sorriso do mundo.

Pegou-lhe no saco de viagem e trocou-o por um copo de cham-panhe e uma chave de quarto. Rebecka olhou para o chaveiro. Era um pedaço de madeira pintado de vermelho e branco, preso à chave com um pequeno nó de marinheiro.

Para quando os hóspedes ficam bêbedos e caem à água, pensou.Trocaram algumas palavras. Que bom tempo este. Encomendei-

-o para ti, Rebecka. Ela soltou uma gargalhada e perguntou-lhe como iam as coisas. Porreiras, precisamente na semana passada acabava de conseguir um grande cliente do mundo da biotecnologia. Iam ini-ciar uma fusão com uma empresa norte-americana, portanto agora estavam no máximo. Rebecka ouvia e sorria o tempo todo. Então chegou um novo retardatário e Erik teve de prosseguir com as suas obrigações de anfitrião.

Aproximou-se dela um advogado do departamento de Direi- to Penal. Cumprimentou-a como se fossem velhos conhecidos. Rebecka procurou febrilmente o nome dele na memória, mas tinha

4as Sangue Derramado.indd 26 11/09/17 12:58:26

Page 21: 4as Sangue Derramado

27

Sangue Derramado

desaparecido como que por artes mágicas. Trazia com ele dois empregados novos, uma rapariga e um rapaz. Ele tinha umas guede-lhas louras que contrastavam com o tom moreno da pele, um tom desses que só se conseguem fazendo navegação à vela. Era um pouco curto de pernas e largo de ombros. Queixo quadrado e saliente, e da camisola cara que trazia vestida com as mangas arregaçadas saíam dois antebraços fortes.

Como um Popeye com estilo, pensou ela.A rapariga também era loura. Prendia o cabelo com uns óculos

de sol caros. O sorriso formava-lhe duas covinhas nas bochechas. Um casaco de malha curto que condizia com a camisola sem mangas estava pendurada no antebraço de Popeye. Cumprimentaram-na. A rapariga tinha uma voz estridente, como um melro. Chamava- -se Petra. O Popeye chamava-se Johan e tinha um apelido bonitinho mas Rebecka não conseguiu fixá-lo. Nos últimos anos acontecia-lhe sempre isso. Antes tinha dossiês na cabeça, nos quais podia orga-nizar a informação. Agora já não era assim. Estava tudo de pernas para o ar e a maioria das coisas não lhe entrava na cabeça. Rebecka sorriu e apertou-lhes a mão com a força justa. Perguntou-lhes para quem trabalhavam no departamento. Se estavam à vontade. Sobre que tema tinham escrito a tese e em que tribunais haviam estado. A ela nada perguntaram.

Rebecka continuou a cruzar-se com os grupos. Toda a gente andava com a fita métrica a postos no bolso. Mediam-se uns aos outros. Comparavam-se a si mesmos. Ordenado. Casa. Nome. Quem conheciam. O que tinham feito no Verão. Um estava a construir uma casa no município de Nacka. Outro andava à procura de um andar maior, agora que tivera o segundo filho, de preferência no lado bom do bairro de Östermalm.

– Estou completamente esgotado – exclamou com um sorriso feliz o que estava a construir casa.

Um homem recém-divorciado voltou-se para Rebecka.– A verdade é que em Maio estive lá em cima, pela tua terra – dis-

se. – Fui fazer esqui, entre Abisko e Kebnekaise. Tínhamos que nos

4as Sangue Derramado.indd 27 11/09/17 12:58:27

Page 22: 4as Sangue Derramado

Asa Larsson

28

º

levantar às três da manhã e deslocarmo-nos sobre uma camada de gelo. No entanto, durante o dia a neve derretia tanto que nos afun-dávamos, por isso não se podia fazer outra coisa senão estendermo--nos a desfrutar do sol da Primavera.

De repente o ambiente ficou tenso. Tinha forçosamente de lhe falar da sua terra? Kiruna intrometeu-se na conversa como um fan-tasma. Um a um, todos se puseram a referir nomes de mil lugares em que tinham estado. Itália, a Toscana, pais em Jönköping e Legoland, mas Kiruna não queria desaparecer. Rebecka retomou o seu passeio e todos soltaram um suspiro de alívio.

Os advogados um pouco mais velhos tinham passado as férias nas suas casas de Verão da costa oeste, em Escânia ou no arquipélago de Estocolmo. Arne Eklöf perdera a mãe e contou despudorada-mente a Rebecka como passara o Verão a debater-se com a questão do testamento.

– É uma chatice – disse. – Quando Nosso Senhor chega com a morte, aparece o diabo com os herdeiros. Queres mais?

Apontou com a cabeça para o copo de Rebecka, que rejeitou a sugestão, ao que ele respondeu com um olhar algo furioso. Como se ela tivesse rejeitado novas possíveis confidências. Provavelmente era o que acabava de fazer. Ele encaminhou-se para a mesa das bebidas e Rebecka ficou onde estava, a observá-lo. Falar com as pessoas exigia um esforço da sua parte, mas estar ali sozinha com o copo vazio aca-bava por ser um pesadelo. Como uma pobre planta de interior que nem sequer pode pedir água.

Podia ir à casa de banho, pensou enquanto olhava para o relógio. E posso ficar lá sete minutos se não houver fila. Três se houver alguém à espera.

Olhou em volta procurando um lugar onde pudesse deixar o copo. Nesse mesmo momento apareceu Maria Taube a seu lado. Ofereceu-lhe uma pequena tigela com salada Waldorf.

– Come – disse-lhe. – Faz aflição ver-te.Rebecka aceitou a salada. Ao olhar para Maria veio-lhe à memó-

ria a Primavera passada. Um Sol mordaz brilhando do outro lado

4as Sangue Derramado.indd 28 11/09/17 12:58:27

Page 23: 4as Sangue Derramado

29

Sangue Derramado

das janelas sujíssimas de Rebecka. Mas tem as persianas baixadas. Uma manhã, a meio da semana, Maria faz-lhe uma visita. Mais tar-de, Rebecka perguntar-se-á como foi possível ter-lhe aberto a porta. Devia ter ficado escondida debaixo do edredão.

Mas não. Aproxima-se da porta de entrada. Mal tem consciência de que tocaram à campainha. Como que distraidamente abre o fecho de segurança. Depois roda o trinco com a mão esquerda enquanto com a direita aperta a maçaneta para baixo. Tem a cabeça totalmente desligada. Tal como quando dás contigo diante do frigorífico aberto e te perguntas o que estás a fazer na cozi-nha.

Depois pensará que talvez haja uma pessoazinha inteligente den-tro dela. Uma rapariga com botas de borracha vermelhas e colete de salvação. Uma sobrevivente. E que essa menina reconheceu aquele som de saltos altos batendo apressados no chão.

A menina diz às mãos e aos pés de Rebecka: «Chiu, é a Maria. Não lhe digam nada. Basta que a tirem da cama e tentem que abra a porta.»

Maria e Rebecka estão sentadas na cozinha. Tomam café sem nada para comer. Rebecka não diz grande coisa. Por outro lado, a montanha de frigideiras que cheiram a azedo em cima da bancada, a pilha de correio, publicidade e jornais na entrada e a roupa amar-rotada e suada que tem vestida dizem tudo.

E sem motivo aparente começam a tremer-lhe as mãos. Tem de pousar a chávena em cima da mesa. Agitam-se sem sentido como duas galinhas decapitadas.

– Para mim o café acabou – tenta gracejar.Solta uma gargalhada, mas o que lhe sai é antes um estrépito

inexpressivo.Maria olha-a nos olhos. Rebecka tem a sensação de que ela sabe:

que às vezes vai para a varanda e fica a olhar para o asfalto duro que está lá em baixo. E que às vezes nem sequer consegue descer até à loja. Que tem de viver com o que houver em casa. Tomar chá e comer pepinos directamente do frasco.

4as Sangue Derramado.indd 29 11/09/17 12:58:27

Page 24: 4as Sangue Derramado

Asa Larsson

30

º

– Não sou psicóloga – diz Maria –, mas sei que a coisa piora se não comes nem dormes. E tens de te vestir de manhã e sair de casa.

Rebecka esconde as mãos debaixo da mesa.– Vais achar que enlouqueci.– Por favor, a minha família é um fervedouro de mulheres que

sofrem dos nervos. Desmaiam e perdem a consciência, têm ataques de pânico e hipocondria constantemente. E a minha tia, falei-te dela? Num dia está internada e têm de a ajudar a vestir as calças e na sema-na seguinte abre uma creche com pedagogia Montessori. Estou mais do que acostumada a coisas dessas.

No dia seguinte, um dos sócios, Torsten Karlsson, oferece a sua casa de campo a Rebecka. Maria tinha trabalhado para Torsten em Direito Comercial antes de mudar de departamento e começar a tra-balhar com Rebecka sob as ordens de Måns Wenngren.

– Estarias a fazer-me um favor – disse Torsten. – Assim não tenho de me preocupar se entraram para roubar nem tenho de ir lá só para regar as plantas. Na realidade devia vendê-la. Mas isso também é uma ideia insuportável.

Claro que devia ter rejeitado a proposta. Era evidente. Mas a menina das botas de borracha vermelhas disse que sim antes que ela pudesse abrir a boca.

4as Sangue Derramado.indd 30 11/09/17 12:58:27