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5 Azul ou Criadores de mundos paralelos, críticos do próprio mundo E como sou filósofa continuou Emília (...)” 185 Monteiro Lobato, Memórias da Emília Mas, quando você usa óculos verdes, tudo o que você vê parece verde. 186 Lyman Frank Baum, O mágico de Oz É tudo fantasia dela: não tem problema nenhum. Vamos! 187 Lewis Carroll, Aventuras de Alice no País das Maravilhas “(...) a tratara mal por causa desse país imaginário, que de imaginário nada tinha. C.S. Lewis, O leão, a feiticeira e o guarda-roupa 188 Conforme já mencionado anteriormente em capítulo introdutório, ao proceder a eleição dos quatro autores que norteiam qual pontos cardeais o corpus literário analisado nesta tese, tentei aliar predileção pessoal minha leitura, ou contato com o universo dos autores via outro suporte, p.ex., versão televisiva predominantemente no período da infância, com a relevância de cada título na obra de cada um dos autores em questão, além de aferir qual apresentava, de forma mais emblemática e bem-sucedida, a problemática abordada. Todos os quatro autores de livros voltados para crianças aqui escolhidos começaram suas produções literárias mirando a audiência adulta. Alguns optaram por seguir na vereda da infância e outros administraram a luta vã com as palavras conciliando os dois públicos ao longo da vida (por exemplo, o reverendo Dodgson em convívio com o escritor Carroll; o pastor Lewis com o criador de Nárnia). Por vezes, foi a frustração e o desencanto que os jogou para um campo anteriormente inexplorado por eles. O fato é que, à parte da discussão sobre a dupla audiência e as razões históricas que ampliaram o alvo consumidor da literatura infantil, Lewis Carroll, Lyman Frank Baum, José Bento Monteiro Lobato e Clive Staples Lewis foram motivados por crianças a criarem suas histórias. Ainda que a intenção inicial tenha sido de entretenimento, considero que o desejo de superação do 185 LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. São Paulo: Brasiliense, 1982. 186 BAUM, Lyman Frank. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996 . p. 109. 187 CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. p.110. 188 LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. In: As Crônicas de Nárnia. Edição em cores, com os sete títulos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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5 Azul ou Criadores de mundos paralelos, críticos do próprio mundo

“E como sou filósofa — continuou Emília (...)” 185

Monteiro Lobato, Memórias da Emília

“Mas, quando você usa óculos verdes, tudo o que você vê parece verde. ” 186

Lyman Frank Baum, O mágico de Oz

“É tudo fantasia dela: não tem problema nenhum. Vamos!” 187

Lewis Carroll, Aventuras de Alice no País das Maravilhas

“(...) a tratara mal por causa desse país imaginário, que de imaginário nada tinha.”

C.S. Lewis, O leão, a feiticeira e o guarda-roupa 188

Conforme já mencionado anteriormente em capítulo introdutório, ao

proceder a eleição dos quatro autores que norteiam qual pontos cardeais o corpus

literário analisado nesta tese, tentei aliar predileção pessoal – minha leitura, ou

contato com o universo dos autores via outro suporte, p.ex., versão televisiva –

predominantemente no período da infância, com a relevância de cada título na

obra de cada um dos autores em questão, além de aferir qual apresentava, de

forma mais emblemática e bem-sucedida, a problemática abordada.

Todos os quatro autores de livros voltados para crianças aqui escolhidos

começaram suas produções literárias mirando a audiência adulta. Alguns optaram

por seguir na vereda da infância e outros administraram a luta vã com as palavras

conciliando os dois públicos ao longo da vida (por exemplo, o reverendo Dodgson

em convívio com o escritor Carroll; o pastor Lewis com o criador de Nárnia). Por

vezes, foi a frustração e o desencanto que os jogou para um campo anteriormente

inexplorado por eles. O fato é que, à parte da discussão sobre a dupla audiência e

as razões históricas que ampliaram o alvo consumidor da literatura infantil, Lewis

Carroll, Lyman Frank Baum, José Bento Monteiro Lobato e Clive Staples Lewis

foram motivados por crianças a criarem suas histórias. Ainda que a intenção

inicial tenha sido de entretenimento, considero que o desejo de superação do

185

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. São Paulo: Brasiliense, 1982. 186

BAUM, Lyman Frank. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996 . p. 109. 187

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas. p.110. 188

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. In: As Crônicas de Nárnia. Edição em cores,

com os sete títulos. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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material existente à época aliado ao olhar transformador / transgressor tenha

sempre pautado a escritura dos quatro pensadores. Reitero, sob pena de incorrer

em repetição e desgaste, a classificação dos criadores de fantasia / críticos da

realidade enquanto pensadores. Pensadores no sentido de intensa radicalidade,

possuidores de um lastro maior do que o termo filósofo. Note estando para além

da universidade, descomprometidos com o foco limitante do moto “publish or

perish”, retirando a poiésis verdadeiramente da práxis.

Os “wonderlanders” tinham como alvo principal crianças e crianças

próximas, queridas. Ainda que fosse só entretenimento – e penso que não era

apenas isso, ou melhor, se fosse para entreter, considerando a coerência, a

seriedade e o pensamento dos quatro, seria entretenimento crítico, estético e

educativo) –, foi elaborado com o melhor que os autores poderiam oferecer, pois é

certo que não ofereceriam nada que não fosse o melhor para seus filhos, afilhados

ou afeiçoados. O inglês Lewis Carroll (reverendo Charles Dodgson) focando nas

(depois famosas) meninas Alice Liddell e irmãs em passeios de bote na Inglaterra

vitoriana, o brasileiro José Bento Monteiro Lobato preocupado em fornecer à sua

prole uma dieta intelectual palatável que evitasse as traduções galegais, o

estadunidense Lyman Frank Baum para divertir seus quatro filhos e o irlandês

Clive Staples Lewis presenteando sua afilhada. Todos, ao se voltarem para as

crianças, talvez já estivessem cientes daquele modo diferenciado de perceber a

realidade que, muito mais do que ser algo exclusivo das crianças, se afina ao um

modo de ver a realidade que, percebe-se hoje, é prisma comum aos quatro grandes

autores.

Destaquei nos textos as passagens que remetam às críticas à Razão, à

Tradição, bem como trechos que subvertem o esperado ou que problematizam

questões importantes, caras à infância ou mesmo, pelo seu revés, que nunca ou

quase nunca são (ou não eram à época que os textos foram lançados), como a

morte, a arbitrariedade do signo, a crítica ferrenha ao antropocentrismo, o

questionamento do valor intrínseco do que está em registro escrito, dentre outros

temas. Excertos que explicitam ou que estimulam não só o pensar, mas que

também tenham a reflexão, o pensamento, a crítica como tópico. Que discutam a

postura dos adultos, muitas vezes de forma frontal, outras de maneira oblíqua.

Cumpre lembrar que não é um estudo de análise impressionista, com olhar de

microscópio. Os trechos literários cumprem uma função ilustrativa, pois é

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acreditando que é da relação única, individual e intransferível de cada leitor com o

texto é que se dará o insight filosófico que não pode ser aprendido ou apreendido

e muito menos transmitido.

5.1 Lyman Frank Baum e Oz

5.1.1 O Mágico de Oz

“Um conto de fadas moderno, escrito para divertir as crianças de hoje.”

Foi assim que Lyman Frank Baum definiu, em seu 1900, seu Mágico de Oz,

talvez o primeiro grande romance da literatura de fantasia americana. E depois de

tanto tempo, a história não dá sinal de ter perdido o fôlego. A primeira versão do

novo livro se chamava A cidade esmeralda de Oz 189

. Mas se dizia, à época, que

ter nome de pedra preciosa num título dava azar e, por isso, Baum o alterou para

O maravilhoso mágico de Oz. O lançamento aconteceu em maio de 1900, quando

o escritor acabava de completar 44 anos. Dez meses depois, já tinham sido

vendidos 100 mil exemplares, um número que deixou os editores exultantes.

Comenta Mario Vilela, em breve artigo introdutório à uma das edições brasileiras

do livro O Mágico de Oz.

O estilo de Baum era bastante simples, tão simples que o achavam, e ainda

acham, simplório. Só que muito do charme do livro estava exatamente aí. E as

crianças, sempre os críticos mais exigentes, nunca deixaram de se empolgar com

a história. A aventura da menina do Kansas que é levada por um ciclone para

uma terra mágica, onde vivem personagens como o Espantalho, o Homem de

Lata e o Leão Covarde, acabou se incorporando ao folclore do século XX, e não

apenas nos Estados Unidos. 190

189

Assim como o lobatiano Reinações de Narizinho possuiu uma versão anterior (“A menina do

narizinho arrebitado”). 190

VILELA, Mário. “O Mágico de Oz”. in: BAUM, L. Frank Baum. O Mágico de Oz: texto

integral. São Paulo: Ática, 1997. Trad. Luciano Machado. Il. Marcelo Pacheco. p. 7-8.

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Apresentei no capítulo inicial da presente tese minha tomada de posição

relativamente à imbricação vida-obra, que, para mim, assume um lugar de

destaque crítico. Não poderia ser diferente nos autores abordados. Neste sentido,

Baum e Lobato, ambos do Novo Mundo e homens do início do século XX,

possuem semelhanças em suas trajetórias. Ambos nutriam uma preocupação

aguda com a cultura mas não deixavam de fomentar certo afeto pelo comércio; e

ambos tinham em mente a comunicação com as massas, desde que para tanto,

apresentassem seus biscoitos finos, é claro. A ambientação rural, a paixão pela

indústria (não apenas a cultural, como o nascente cinema), a posição de que o

escritor não deveria nem precisava viver em torres de marfim são aspectos

curiosos que aproximam a vida e a obra do nova-iorquino com a do taubateense.

Moderno era um adjetivo muito bem aplicado bem ao criador de Dorothy.

Caixeiro-viajante, jornalista, músico, ator, produtor teatral, romancista, cineasta,

Lyman Frank Baum foi uma combinação muito americana de criador e

empresário, precursor (malsucedido, é verdade) de figuras como Disney e

Spielberg. Nasceu, em 1856, no estado de Nova York. Aos quinze anos, em 1871,

começou a imprimir um jornal mensal, com histórias e poemas que ele mesmo

escrevia. Em 1873, ele e um amigo lançaram outro jornal mensal, modestamente

intitulado O Império. Isso durou dois anos, até Baum virar criador de galinhas e

ator. O mais extraordinário é que ele tenha conciliado avicultura e dramaturgia.

Suas galinhas foram papando prêmios em exposições (anos depois, Baum até

escreveria uma monografia, bastante conceituada, em que ensinava como criar

esses bichos, o que o aproxima de um Lobato fazendeiro que enveredou, dentre

vários negócios como, por exemplo, a fabricação de compotas). E, de quebra, ele

percorria o estado de Nova York com uma trupe mambembe, que representava

peças de Shakespeare em teatros iluminados a vela e a lamparina.

Para divertir os quatro filhos, contava histórias que ele mesmo adaptava de

rimas infantis tradicionais. As crianças adoravam e Baum percebeu o potencial

disso. Em 1897, publicou um livro com tais histórias, Mamãe Ganso em prosa. O

último capítulo, a propósito, introduziria a personagem Dorothy, que voltaria em

O mágico de Oz. Pouco depois, Baum conheceu um ilustrador de muito talento,

W. W. Denslow. Da parceria entre os dois, surgiu em 1899, O livro do Papai

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Ganso, uma coletânea de rimas ilustradas que logo se tornou best-seller. Em

1900, Baum lançou mais dois livros nessa linha, sempre com desenhos de

Denslow.

Animado, escreveu e publicou no mesmo seu primeiro romance, partindo

de uma história de ninar que inventara para os filhos. Nascia então O mágico de

Oz, uma das narrativas mais famosas da literatura infantil. Denslow, de novo, era

quem assinava as ilustrações. As vendas foram enormes, e já em 1902, Baum

produzia, em Chicago, um musical inspirado no livro. A peça estreiou com tanto

êxito que rapidamente foi para a Broadway, o centro teatral de Nova York,

viajando pelo país durante vários anos. Baum se animou a escrever outros livros

sobre Oz, começando como A terra maravilhosa, em 1905, e incluindo mais doze

títulos até sua morte.

Era um otimista incorrigível e, como a Dorothy de O mágico de Oz,

sempre acreditou em sua própria estrada de tijolos amarelos. Logo depois de ter

lançado Mamãe Ganso em prosa, anotou algo que bem poderia resumir sua

carreira de autor: “Quando eu era moço, queria muito escrever um romance que

me tornasse famoso. Mas, agora que estou ficando velho, meu primeiro livro é

escrito para divertir as crianças. Pois, afora minha óbvia incapacidade para

escrever ‘grande literatura’, descobri que a fama é ilusória e, quando alcançada,

não vale a pena; já agradar uma criança é uma coisa adorável, que nos alegra e

tem suas próprias recompensas.” Parece bem irônica, para este estudo, a inclusão

da declaração de um dos autores para os quais defendo o estabelecimento do

estatuto de pensador, uma postura tão servil em relação à “grande literatura”. Mas

tanto a filosofia quanto a fantasia lidam com a complexidade, não com os

maniqueísmos.

Assim como Alice, todo o imaginário de Oz atingiu um patamar alto na

construção do inconsciente coletivo. E não apenas no Ocidente, como atesta o

escritor indiano Salman Rushdie. Em sua coletânea de ensaios, Cruze este linha

(ensaios e artigos 1992-2002), há o artigo intitulado “Lá em Kansas”, que analisa

o impacto cultural e a influência literária que O mágico de Oz tiveram nele. Chega

a afirmar que a primeira que ele assistiu ao filme, fez dele um escritor. Menino

ainda. Seu foco é mais direcionado à clássica adaptação cinematográfica, mas

existem insights que não devem ser descartados:

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A jornada de Kansas a Oz é um rito de passagem de um mundo em que os pais

substitutos de Dorothy, tia Em e tio Henry, não têm a capacidade de ajudá-la a

salvar seu cachorro, Totó, da saqueadora Miss Gulch para um mundo onde as

pessoas são do seu tamanho e no qual ela nunca é tratada como criança, mas

sempre como heroína. Ela conquista esse status por acaso, é verdade, não tendo

desempenhado papel algum na determinação com que sua casa esmaga a Bruxa

Má do Leste; porém, ao final da aventura, ela, sem dúvida, cresceu o suficiente

para calçar aqueles sapatos – aqueles famosos sapatos de rubi. “Quem haveria de

dizer que uma menina como você iria destruir a minha bela perversidade?”,

lamenta a Bruxa Má do Oeste enquanto derrete – um adulto que se torna menor

que uma criança e deixa seu lugar para ela. Enquanto a Bruxa Má do Oeste

“diminui”, vê-se Dorothy crescer. A meu ver, é muito mais satisfatória essa

explicação do poder recém-conquistado de Dorothy sobre os sapatos de rubi do

que as razões sentimentais fornecidas pela inefavelmente chocha Bruxa Boa

Glinda, e depois pela própria Dorothy, naquele final enjoativo que considero

pouco fiel ao espírito anárquico do filme.

Rushdie nos lembra bem, em trecho que optei por suprimir, por não julgar

pertinente ao nosso estudo, que os sapatos de rubi, os famosos e icônicos

sapatinhos vermelhos não constam do texto original de Baum, sendo uma licença

poética libérrima da passagem transmídia.

Dorothy tem um sobrenome, Gale [Vendaval]. E, de muitas formas, Dorothy é o

vendaval que sopra por esse cantinho de lugar nenhum. Ela exige justiça para seu

cachorrinho, enquanto os adultos cedem resignadamente à poderosa Miss Gulch.

Ao fugir, ela está pronta para interromper a inevitabilidade cinzenta de sua vida,

mas tem o coração tão bom que volta correndo quando o professor Marvel lhe diz

que tia Em está aflita por causa de sua fuga. Dorothy é a força vital desse Kansas,

assim como Miss Gulch é a força da morte; e talvez seja o torvelinho de Dorothy,

o ciclone de sentimento desencadeado pelo conflito entre ela e Miss Gulch, que

se torna realidade na grande cobra escura de nuvens que serpenteia pela pradaria,

devorando o mundo.

Lembro (ou imagino lembrar) que, quando assisti ao filme pela primeira vez, a

casa de Dorothy me pareceu mais uma pocilga. Eu tinha a sorte de ter uma casa

boa, confortável e, portanto, pensava comigo mesmo: se eu tivesse ido parar em

Oz, certamente ia querer voltar para casa. Mas Dorothy? Talvez devêssemos

convidá-la para morar conosco. Qualquer lugar parece melhor que aquilo.

O maduro Rushdie recupera o espanto de um Rushdie menino (ou como

ele próprio aventa, um Rushdie romantizado, transmutado pela própria memória),

que é exatamente o mesmo espanto do Espantalho, que não compreende o desejo

de Dorothy de largar uma exuberante e esmeralda cidade em Oz para retorna à

uma cinzenta e entediante fazenda no Kansas. Ela explica, com sua notória frase,

que “there’s no place like home”. O Espantalho aceita, mas fica patente que não

foi verdadeiramente convencido. Bem como Rushdie, que cogitou até hospedar a

dona de Totó.

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A primeira vez que assisti a O Mágico de Oz fez de mim um escritor. Muitos

anos depois, comecei a delinear a trama que acabou se transformando em Haroun

e o mar de histórias. Sentia com muita força que, se conseguisse tocar a nota

certa, devia ser possível escrever a história de maneira a ficar interessante tanto

para adultos quanto para crianças. O mundo dos livros é hoje uma área

seriamente categorizada e demarcada, na qual a ficção infantil é não apenas uma

espécie de gueto, como um gênero subdividido em escrituras para uma série de

diferentes grupos etários. 191

A Dorothy de O mágico de Oz, certamente por conta da atuação de Judy

Garland no clássico filme musical, se tornou altamente emblemática para nossa

história cultural. Contudo, para os objetivos do meu estudo, há uma outra

personagem muito mais rico, que oferece um manancial de meandros de

características e se encaixa perfeitamente para a discussão dos temas que ora

abordo: o Espantalho, que já evoquei como contraponto à defesa do Kansas

realizada por Dorothy. Todavia, por uma questão de método (ainda que queira

escapar do tradicionalismo, uma tese doutoral não tem como prescindir de certas

amarras) e padronização, sigamos com a abertura do texto, antes de desfolhar as

características da personagem e sua jornada por um cérebro:

Dorothy vivia num lugar em meio às grandes campinas do Kansas, com o tio

Henrique, que era fazendeiro, e com a tia Ema, sua mulher. A casa deles era

pequena, porque os toros de madeira com que foi construída tiveram que ser

carregados em carroças, por muitas milhas. A casa tinha quatro paredes, assoalho

e telhado, que formavam um cômodo. Nesse cômodo havia um fogão

enferrujado, um armário para os pratos, uma mesa, três ou quatro cadeiras e as

camas. Num canto ficava a cama do tio Henrique e da tia Ema, no outro, a cama

de Dorothy. 192

A ambientação do Kansas cinzento traz também uma nostalgia. A lida

cotidiana de uma rotina rural de pobreza sequestrou o viço de Tia Ema, outrora

jovem e bonita e agora, desprovida de riso, sorriso e de sanidade, pois fica

sobressaltada com algo tão normal e saudável quanto a expressão da alegria de

uma criança, conforme atesta o trecho:

Quando tia Ema chegou para morar ali, era uma mulher jovem e bonita. O sol e o

vento também a transformaram. Eles tiraram o brilho de seus olhos, que ficaram

de um cinza suave; tiraram ainda o vermelho de suas faces e lábios, que também

ficaram cinzentos. Ela era magrinha e fraca, e agora nunca ria. Quando Dorothy,

191

RUSHDIE, Salman. Cruze este linha (ensaios e artigos 1992-2002). São Paulo: Companhia das

Letras, 192

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 9 (Coleção Eu Leio).

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que era órfa, veio ficar com ela, tia Ema ficou tão assustada com o riso da criança

que tinha vontade de gritar e pôr a mão no coração toda vez que a voz alegre da

menina chegava aos seus ouvidos; e ainda hoje ela se espantava de que a menina

pudesse encontrar alguma coisa de que achar graça.193

O tédio é alterado pela inserção do fenômeno natural comum à região, um

ciclone é o elemento de transformação da realidade. Espécie de portal

interdimensional ou transporte, já que leva a própria casa que será transformada,

inadvertidamente, em arma que trará o desfecho fatal para a Bruxa Malvada do

Leste. Todos se preparam para o ciclone, mas apenas a Dorothy é permitido

desfrutar de um lindo lugar como Oz. Ela se espanta com as pessoas esquisitas, o

que não causa admiração, considerando que ela nunca deixou o monótono estado

do Kansas.

– Está vindo um ciclone, Ema. – gritou para a mulher. – Vou cuidar dos animais.

– Correu em direção aos estábulos dos bois e dos cavalos. 194

O ciclone tinha colocado a casa, de forma muito suave pra um ciclone, numa

região de maravilhosa beleza. Havia encantadores gramados verdes por toda a

parte, com árvores imponentes carregadas de frutas suculentas e deliciosas.195

Enquanto ela observava com grande interesse a estranha e maravilhosa paisagem,

perebeu que vinha em sua direção um grupo de pessoas muito esquisitas, as mais

esquisitas que vira em sua vida. Elas não eram muito grandes como os adultos

que conhecia, mas também não eram muito pequenos. Pareciam ser da mesma

altura de Dorothy, que era uma menina bem crescida para sua idade, embora

fossem, pelo que aparentavam muito mais velhas.196

A narrativa segue e o leitor chega a um dos primeiros trechos importantes

do texto para nossa questão. Dorothy é chamada de feiticeira por ter matado a

bruxa. Logicamente, apenas alguém com poder no mínimo equivalente ao da

artífice de sortilégios recém aniquilada. Os munchkins conferem à Dorothy uma

identidade que não é a dela. Ou será que é? A responsabilidade do ato está

relacionada à culpabilidade do ato? Se não há dolo, não há crime? Poderia ser

uma discussão deslocada, mas que adquire relevância pois é a partir do fato (o

crime que salva o povo da opressão) que Dorothy tem nova identidade. Ou será

que a menina nunca teve a sua identidade construída no árido Kansas?

193

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 10 (Coleção Eu Leio). 194

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 10 (Coleção Eu Leio). 195

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 14 (Coleção Eu Leio). 196

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 15 (Coleção Eu Leio).

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– Seja bem-vinda, nobre feiticeira, à terra dos Munchkins. Estamos muito

gradecidos a você por ter matado a Bruxa Malvada do Leste e por ter libertado

este povo do seu jugo.

Dorothy ouviu isto espantada. Por que a mulherzinha a estaria chamando de

feiticeira e por que dizia que matara a Bruxa Malvada do Leste? Dorothy era uma

menina inocente e pacífica, que fora carregada para milhas e milhas de distância

de sua casa; e que em toda a sua vida nunca matara nenhum ser vivo.

Mas a mulherzinha estava esperando que ela respondesse. Então Dorothy falou,

hesitante:

– Você é muito gentil. Mas deve haver um engano. Não matei ninguém.

– Mas de qualquer forma sua casa matou – respondeu a velhinha com um sorriso.

– O que vem a dar no mesmo. – Veja! – continuou ela, apontando para um canto

da casa. – Ali estão as pontas dos pés aparecendo embaixo daquele toro de

madeira.197

E o enredo segue discutindo identidade (eu sou o que eu sei que sou ou

sera que eu sou o que penso que sou ou ainda, eu sou o que acham que sou?),

alteridade e diversidade (o estranhamento por verem o que é diferente do seu

horizonte de expectativas e a proposta de ser diferente, já que o que é tão comum

para uns, é tão bizarro para outros).

Dorothy não sabia o que responder, porque todos pensavam que ela era uma

bruxa e ela sabia muito bem que era apenas uma menininha que por acaso tinha

sido levada a uma terra estranha por um ciclone. 198

Totó despertava a maior curiosidade em todo mundo porque eles nunca tinham

visto um cachorro antes. 199

Entra em cena, o personagem fulcral, para nosso estudo, de O mágico de

Oz. Muito mais do que a jornada em busca do lar, da coragem ou de um coração,

o que ressalta para o meu viés, é a procura pelo cérebro, promovida pelo

Espantalho. Não obstante ser Dorothy a personagem principal e o ponto de partida

para o foco narrativo, é o Espantalho quem lidera as ações e as tomadas de

decisão do grupo, a partir de suas ideias. O que é aparentemente paradoxal ou, no

mínimo, irônico, já que é exatamente quem tem a cabeça cheia de palha que

apontará os caminhos.

Olhando de forma mais detida, tem-se que é algo mais profundo do que

mera blague ou algo fortuito. De maneira leve (uma provocação minha, para

lembrar do rótulo de estilo simplório a ele dado), Baum aponta o dedo em uma

197

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 16 (Coleção Eu Leio). 198

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 23 (Coleção Eu Leio). 199

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 23 (Coleção Eu Leio).

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ferida profundíssima da filosofia tradicional ocidental, a saber: como considerar

que a Razão, a Racionalidade, a Reflexão, as Ideias estão presentes, se o seu

invólucro, ou melhor, se sua fonte, seu objeto, seu substrato, sua materialidade

(estejamos considerando a mente, ou mais anatômica, o cérebro e suas sinapses),

por definição, está ausente? Como o riso é também material de crítica e como o

livre-pensador não descarta nenhuma possibilidade a priori, eximo-me de culpa e

indago, provocativamente: depois da educação pela pedra, a filosofia da palha?

– Bom dia – disse o Espantalho com uma voz um tanto áspera.

– Você fala? – perguntou a menina admirada.

– Claro – respondeu o Espantalho. – Como vai você?

– Estou bem, obrigada. – respondeu Dorothy educadamente. – Como vai você?

– Não estou me sentindo muito bem. – disse o Espantalho sorrindo. – É

muito chato ficar espetado aqui em cima para espantar os corvos.

– Você não pode descer daí? – perguntou Dorothy.

– Não por causa dessa estaca espetada nas minhas costas. Se você fizer o favor de

tirar-me daqui, vou ficar muito grato.

Dorothy levantou os dois braços e tirou o Espantalho da estaca, o que foi fácil

porque, sendo cheio de palha, ele era bem leve.

– Muito obrigado – disse o Espantalho, logo que foi colocado no chão. – Estou

me sentindo um novo homem.

Dorothy ficou espantadíssima com isso porque lhe parecia muito estranho ver um

homem de palha falar, fazer mesuras e andar ao seu lado.

– Quem é você? – perguntou o Espantalho, depois de espreguiçar-se e bocejar. –

E para onde está indo?

– Meu nome é Dorothy. – disse a menina. – Estou indo para a Cidade de

Esmeralda para pedir ao Grande Oz que me faça voltar ao Kansas.

– Onde fica a Cidade de Esmeralda? – perguntou ele. E quem é Oz?

– Você não sabe? – retrucou ela surpresa.

– Não sei mesmo. Eu não sei nada. Sabe, sou empalhado, por isso não tenho

cérebro – respondeu com tristeza.

– Oh! – fez Dorothy. – Sinto muitíssimo por você.

–Será que, se eu for para a Cidade de Esmeralda com você, esse tal de Oz pode

me conseguir um cérebro?

– Não sei dizer – respondeu a menina. – Mas se você quiser, pode vir comigo.

Mesmo que Oz não lhe dê um cérebro, você não vai ficar em pior situação do que

está agora.

– Isso é verdade. – disse o Espantalho. – Sabe – continuou em tom de confidência

–, não me importo se minhas pernas, meus braços e meu tronco são empalhados,

porque não sinto dor. Se alguém pisa no meu pé ou espeta um alfinete em mim,

não tem importância, porque não sinto nada. Não gosto é que as pessoas me

chamem de bobo. Mas se minha cabeça é cheia de palha e não tem um cérebro

como a sua, como é que eu vou saber alguma coisa?200

Cumpre lembrar que não obstante a questão da identidade de Dorothy

tenha sido trazida à tona anteriormente em meio aos Munchkins, o que ocorreu foi

200 BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 27 (Coleção Eu Leio).

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uma atribuição. Assumiu-se que Dorothy era uma feiticeira, bruxa poderosa. Em

nenhum momento houve o instante do fundamento, isto é, a pergunta essencial: –

Quem é você? Apesar de ser desprovido de massa cinzenta, o Espantalho é,

efetivamente, o primeiro que pergunta quem é Dorothy. Na passagem seguinte,

retirada dos momentos iniciais da narrativa, há a defesa do primado da Razão,

afirmando que o cérebro como única coisa que vale a pena ter e, deslocando a

expectativa, puxando o tapete do leitor, ou por outra, estabelecendo um pacto com

ele, um armistício alicerçado na clássica “suspension of disbelief”: aceitem a

premissa “filosofantástica”: mesmo sem cérebro, o Espantalho não para de pensar.

O Espantalho, como não tinha cérebro, andava sempre em linha reta e por isso

metia o pé nos buracos e caía de comprido nos tijolos duros. Mas ele nunca se

feria e Dorothy o levantava e o punha de pé novamente, e ele voltava a

acompanhá-la rindo alegremente de si mesmo. 201

– Conte-me alguma coisa sobre você mesma e sobre sua cidade – disse o

Espantalho, quando ela terminou de comer.

Ela lhe contou tudo sobre o Kansas, como tudo era cinza e como o ciclone a

carregara para essa terra de Oz. O Espantalho, ouviu-a com atenção e comentou:

– Não entendo como você pode pensar em sair desta bela terra e voltar para esse

lugar seco e cinzento que você chama de Kansas.

– Isso é porque você não tem cérebro – respondeu a menina. – Não importa

quanto a terra da gente é triste e cinzenta. Nós, gente de carne e osso, preferimos

viver em nossa terra que em qualquer outra, por mais bonita que seja. Não há

lugar melhor que a casa da gente.”

O Espantalho suspirou e disse:

Claro que não posso entender isso. Se a cabeça de vocês fosse cheia de palha

como a minha, todos vocês iriam morar em lugares lindos. E ninguém viveria no

Kansas. Sorte do Kansas que vocês têm cérebro.202

– Se você ao menos tivesse um cérebro, seria um homem como qualquer outro e

melhor que alguns deles. O cérebro é a única que vale a pena ter nesse mundo.

Seja para um homem, seja para um corvo.

Depois que os corvos se foram, pensei muito sobre isso e decidi que ia tentar

conseguir um cérebro. Por sorte você veio e me tirou da estaca e pelo o que você

diz o Grande Oz vai me dar um cérebro logo que chegarmos à Cidade de

Esmeralda. 203

O Espantalho e Dorothy vão seguindo e encontram o Homem de Lata, que

descreve sua sina e sua saga. Com a adesão do Leão Medroso, o grupo fica

completo. Todavia, antes da trupe se caracterizar como a conhecemos, há um

201

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p.28 (Coleção Eu Leio). 202

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p.29 (Coleção Eu Leio). 203

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p.30-1 (Coleção Eu Leio).

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excerto que vale a pena recuperar, por conta da discussão que propicia.

Conversando estão Dorothy, o Homem de Lata e o Espantalho, que afirma:

– De qualquer forma, vou pedir um cérebro ao invés de um coração. Pois um

bobo, mesmo tendo coração, não sabe o que fazer com ele. Vou querer um

coração – respondeu o Homem de Lata. Um cérebro não faz uma pessoa feliz, e a

felicidade é a melhor coisa do mundo.

Dorothy não falou nada, porque não sabia qual dos dois amigos estava com a

razão. 204

Dorothy se abstém, não toma posição no dilema cérebro versus coração,

entre a Razão e a Emoção, “não sabia qual dos amigos estava com a razão”. Estar

com a razão é estar certo, mas… não é um ato falho, trazer a palavra razão não é

afirmar uma tomada de posição pela Razão? De qualquer forma, é sempre o

Espantalho que traz as soluções, não mágicas, mas pensadas. A leitura mais

aparente e fácil é a de que o que muitas vezes clamamos como ausências, como

lacunas, na verdade são presenças latentes em nós. Justo o Espantalho, que acha

que não tinha cérebro, tinha todas as ideias. A outra interpretação, mais calcada

em nossa linha de pensamento, é a seguinte: considerando que o Espantalho não

tem cérebro e assumindo que este órgão é a morada da Razão, o castelo das ideias,

isto não abria uma possibilidade de se termos soluções criativas para além do

“cérebro”, que emanassem de uma outra ordem que não à da razao? Um

pensamento advindo da fantasia? Anteriormente, no início do parágrafo, falo em

soluções não mágicas, mas pensadas. Retrato-me. Uma solução mágica de ideias

sem cérebro, oriundas da fantasia, provindas digamos… da palha? O Leão diz: a

gente quase acredita que você tem um cérebro na cabeça ao invés de palha.

Elementar, meu caro Leão. Um cérebro de palha. Que será, recordemos, a solução

do Mágico de Oz.

Eles se sentaram para pensar no que poderiam fazer e, depois de muito pensar, o

Espantalho falou:

– Há uma árvore grande bem perto do fosso. Se o Homem de Lata puder cortá-la,

ela vai cair atravessada sobre o fosso e poderemos passar facilmente.

– É uma excelente ideia – disse o Leão. – A gente quase acredita que você tem

um cérebro na cabeça em vez de palha. 205

204

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 39 (Coleção Eu Leio). 205

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 50 (Coleção Eu Leio).

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Depois das peripécias da turma para salvar a vida da rainha dos ratos,

novamente é o Espantalho que “salva a lavoura”. Ao serem perguntados o que

como os ratos poderiam manifestrar seu agradecimento, o Homem de Lata não

vislumbra nada que poderia ser aceito como retribuição e gratidão. Nesse

momento, o Leão está adormecido no Campo das Papoulas Mortais e a ajuda dos

ratos seria imprescindível. Todavia, o ex-lenhador não atina e não afirma: “que eu

saiba, nada.” Resposta que seria esperada de um “cabeça oca”… Vejamos o que o

próprio texto de Baum indica:

– Que podemos fazer para recompensá-lo por ter salvo a vida de nossa rainha?

– Que eu saiba, nada – respondeu o Homem de Lata. Mas o Espantalho,

que estava tentando pensar e não conseguia, pois sua cabeça era cheia de palha,

respondeu rápido:

– Sim, você pode salvar nosso amigo, o Leão Medroso, que está

adormecido no campo de papoulas. 206

Outra questão que faz com que se discuta a importância da personagem

Dorothy para a trama é que ela não apresenta uma posição enfática, aguerrida, de

conquista em relação aos acontecimentos. Enquanto o Espantalho propõe,

Dorothy segue o destino, veleja nas circunstâncias. Na passagem que ocorre após

primeiro encontro com Oz e no qual ele pede para que matem a Bruxa Malvada

do Oeste (já que a do Leste foi morta com a chegada de Dorothy em Oz e

recordemos que as outras duas bruxas dos pontos cardeais restantes são bruxas

boas), a solução protagonizada pela garota surge magicamente. A solução,

novamente, não é pelo conhecimento, pela ciência. É pelo Acaso. Ou pela

Fantasia. Ao chegar em Oz, a menina do Kansas assassinou uma feiticeira. A

segunda bruxa que Dorothy mata também é de forma fortuita, ou ao menos, sem

intenção que pudesse prever a consequência, um momento de desmedida.

Dorothy ficou tão furiosa com isso que pegou um balde de água que estava perto

e despejou-o sobre a Bruxa, molhando-o da cabeça aos pés. A Bruxa deu um

grande grito de pavor e então, enquanto Dorothy olhava-a assustada, começou a

tremer e caiu no chão.

– Veja o que você fez! – gritou ela. – Num minuto vou me dissolver.

– Sinto muito – disse Dorothy, que estava realmente assustada em ver a

Bruxa se dissolvendo como açuçar mascavo diante de seus olhos.

– Você não sabia que a água pode me destruir? – perguntou a Bruxa

desesperada.

– Claro que não, como eu poderia saber? – respondeu Dorothy.

206

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 61-2 (Coleção Eu Leio).

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Bem, em poucos minutos vou me dissolver inteira e o castelo sera seu. Sempre

fui má, mas nunca pensei que uma garotinha como você poderia me derreter e

acabar com minhas más ações. Veja… aqui vou eu! 207

O segundo encontro com Oz é quando numa espécie de acareação, ele é

desmascarado. Antes, Oz se apresentou para cada um dos quatro de maneira

distinta.

– Quem é você?

– Eu sou Oz, o Grande e Terrível. – disse o homenzinho com voz trêmula.

– Mas não me machuque, por favor, vou fazer tudo o que vocês desejam.

Nossos amigos olharam-no com surpresa e espanto.

– Pensei que Oz era uma cabeça – disse Dorothy.

– E eu, um animal feroz – disse o Homem de Lata.

– E eu pensei que Oz fosse uma bola de fogo – exclamou o Leão.

– Não. Todos se enganaram – respondeu o homem humildemente. Eu

estava fingindo.

– Fingindo! – gritou Dorothy. – Você não é um grande mágico?”

– Psst! Não fale tão alto – ele disse – que alguém pode ouvir e eu estaria

perdido. Todos imaginam que sou um grande mágico.

– E não é? – perguntou a menina.

– Nem um pouco, minha cara. Sou um homem comum.

– Você é mais que isso – disse o Espantalho irritado. – Você é um

impostor!

– Exatamente – declarou o homenzinho, esfregando as mãos como se isso

fosse motivo de satisfação. – Sou um impostor. 208

Cada um vê Oz (cada um vê o fenômeno) de uma forma e depois, vão se

dar conta, quando o desmascaram, no fundo não é nada daquilo (o fenômeno é o

que nos mostram nossos sentidos?). Oz é um animal feroz, uma bola de fogo, uma

cabeça? Não seria tudo ao mesmo tempo agora? Ou nada disso? Oz é fingimento,

é ficção. E orgulhosamente se mostra ciente da sua condição. O orgulho que Oz

tem em ser impostor expõe que está em curso, ao longo do enredo, em intenso

embate com o primado da Razão, uma outra linha de força, o primado da ficção, o

approach do imaginário, da elaboração ficcional! E Oz tem consciência de que

está criando para o Outro, para a sua plateia, dando ao povo, o circo ansiado. Um

a um, como se verá nos excertos abaixo que selecionei, tem seu pedido

“atendido”. É fácil fazê-los felizes. Ora, eles imaginavam que suas felicidades

viriam quando alcançassem o que estava em sua imaginação. A partir da

imaginação deles, Oz engendra, em sua imaginação, as soluções para eles.

207

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 92 (Coleção Eu Leio). 208 BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 107 (Coleção Eu Leio).

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– Você não pode me dar um cérebro? – perguntou o Espantalho.

– Você não precisa de cérebro. Cada dia você aprende alguma coisa. Um

bebê tem cérebro mas pouco sabe. A experiência é única coisa que traz

conhecimento e, quanto mais tempo você fica na terra, mais você adquire

experiência

– Isso pode ser verdade – disse o Espantalho –, mas vou ficar muito infeliz, a

menos que você me dê um cérebro. 209

– E quanto à minha coragem? – perguntou o Leão ansiosamente.

– Com certeza você tem bastante coragem. Você só precisa de confiança

em si mesmo. Não existe nenhum ser vivo que não tenha medo quando enfrenta o

perigo. A verdadeira coragem é enfrentar o perigo mesmo tendo medo, e esse

tipo de coragem você tem.

– Talvez eu tenha, mas ainda assim tenho muito medo – disse o Leão. – Vou ficar

muito infeliz, a menos que você me dê um aquele tipo de coragem que faz

esquecer que se tem medo. 210

– E meu coração? – perguntou o Homem de Lata.

– Acho que você está errado em querer um coração. – respondeu Oz. – Ele

faz a gente infeliz. Se você soubesse… Você tem sorte em não ter coração.

– Isso é uma questão de opinião – disse o Homem de Lata. – De minha parte, vou

suportar toda a infelicidade, sem um lamento, se você me der um coração. 211

– E como vou voltar para o Kansas? – perguntou Dorothy.

–Vamos ter que pensar sobre isso. – respondeu o homenzinho. 212

Com exceção de Dorothy – “vamos ter que pensar sobre isso” – , que

deseja a coisa mais material de todos, a sua casa, o retorno ao Kansas – diferente

de inteligência, coragem e amor – e que está fora de Oz. Mas ela é estrangeira,

forasteira. Como o próprio Oz, que é de Omaha. Os três amigos são criaturas

fantásticas, de Oz, então guardam uma lógica própria. Oz, posteriormente, traz

uma solução que não poderia ser ser chamada de deus ex machina no sentido

estrito, mas que guarda até uma proximidade, caso recordemos a origem da

expressão. Um balão os levará. Mas Totó faz com que Dorothy ainda permaneça

um pouco mais em Oz. E o mágico parte do mundo que tem o seu nome. Ao final,

como sabemos, a bruxa Glinda desvenda o enigma e mostra que a solução para a

demanda de Dorothy estava, assim no caso de seus companheiros, com ela

mesma. No caso, literalmente, debaixo de seus pés.

209 BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. 110 (Coleção Eu Leio). 210

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. p.110 (Coleção Eu Leio). 211

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. p.110 (Coleção Eu Leio). 212

BAUM, L.F. O mágico de Oz. São Paulo: Ática, 1996. p. .111 (Coleção Eu Leio).

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5.2 C.S. Lewis e Nárnia

5.2.1 O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa

As Crônicas de Nárnia são compostas de sete títulos e o mais destacado

deles, o mais emblemático, o que foi escrito e publicado em primeiro lugar é O

leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Escrito após durante a Segunda Guerra

Mundial mas ambientado ainda durante o conturbado período, a obra, não é,

contudo, como dominam os especialistas e fãs da série, o primeiro da cronologia

narniana. Para o universo de Nárnia, Lewis escreveu livros que se passam antes e

depois dos acontecimentos, mas o abre-alas, o mais representativo da jornada ao

mundo no qual animais falam e reis e rainhas convivem com magias profundas e

ainda mais profundas é mesmo o título que ora abordo. As primeiras linhas do

texto – hoje canônico – da literatura de fantasia anglo-saxã o apresentam de

maneira bem tradicional, já indiciando ao leitor que o mesmo estabeleça uma

relação específica para o seu processo de fruição / apreensão, trazendo a

conhecida expressão Era uma vez... "duas meninas e dois meninos. Susana, Lúcia,

Pedro e Edmundo. Esta história nos conta algo que lhes aconteceu durante a

Guerra, quando tiveram que sair de Londres, por causa dos ataques aéreos. (…)".

213

A dura realidade da guerra em um livro para crianças é, a meu ver, sempre

muito interessante, pois mostra que não é por ter as crianças como público

primordial – mas não exclusivo – que as questões polêmicas e difíceis da

humanidade precisam ser pasteurizadas ou edulcoradas. É bem familiar para nós,

brasileiros, tal enfoque literário, pois A Chave do Tamanho e as traquinagens de

Emília com o intuito de pacificar o mundo em Guerra, foi escrito e lançado

anteriormente a opus magna de Lewis. A realidade aqui, aparece como

preparatória da realidade imaginária, da fantasia, desta outra dimensão paralela

que há de surgir. É essa realidade imaginária que tece uma ponte com a questão da

busca, mediada pela curiosidade que é a postura considerada como sendo

213

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.76

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característica tanto da criança quanto o filósofo. A curiosidade é fundamntal para

o olhar inaugural que ainda se re-encanta com o cotidiano, que vê o fantástico

para além da frívola e tediosa rotina. O nome do segundo capítulo é “O que Lúcia

encontrou”, que vai reforçar o caráter de busca, de procura, que é exatamente a

postura filosófica. Também Alice (Através do espelho e o que Alice encontrou lá

é o título que muitas vezes é eclipsado), também Dorothy (ou talvez mais até o

Espantalho, mas de qualquer forma, é dos personagens dos universos destes

autores, deste topoi que falo), também a outra Lúcia (Narizinho), são

exploradoras.

Pouco depois, espiavam uma sala onde só existia existia um imenso guarda-

roupa, daqueles que têm um espelho na porta. Nada mais na sala, a não ser uma

mosca morta no peitoril da janela.

– Aqui não tem nada! – disse Pedro, e saíram todos da sala.

Todos menos Lúcia. Para ela, valia a pena tentar abrir a porta do guarda-roupa,

mesmo tendo quase certeza de que estava fechada à chave.” (…)

“Sentiu-se um pouco assustada, mas, ao mesmo tempo, excitada e cheia de

curiosidade? 214

No seu caminho exploratório, Lúcia Pevensie tem sua identidade posta em

xeque, como, por exemplo, no clássico momento que Alice encontra a Lagarta.

Agora é um fauno que fica desconcertado com a aparição:

Mas você é, desculpe, o que chamam de menina?

Claro que sou uma menina – respondeu Lúcia.

– Então é de fato uma humana?

– Evidente que sou humana! – disse Lúcia, bastante admirada. (…)

Era um fauno. Quando viu Lúcia, ficou tão espantado que deixou cair os

embrulhos. – Ora bolas!, exclamou o fauno. 215

Pude pontuar várias questões da ordem da filosofia que mereceriam um

estudo independente. Todavia, trata-se de um capítulo que possui como viés a

ilustração do desenvolvimento crítico, realizado pelos textos literários, na

discussão dos primados e dos paradigmas da filosofia e de sua relação como

outros modos possíveis de fazer filosofia. Um outro tema possível é a questão da

arbitrariedade do signo linguístico, conforme o trecho que nomeia e situa: “Filha

214

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.77 215

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.78

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de Eva das terras longínquas de Sala Vazia, onde reina o verão eterno da bela

cidade de Guarda-Roupa”216

Também em Nárnia, os livros são considerados como algo valioso,

conforme se percebe ao adentrarmos, com Lúcia, o quarto do Sr. Tumnus. A

ironia dos títulos reforça o deslocamento do antropocentrismo tradicional (no

capítulo Era um fauno). Ainda assim, é uma reflexão que não deixa de ser

tributária da tradição, na referência clássica ao deuses Sileno e Baco, do panteão

helênico.

Num canto, uma porta. "O quarto do Sr. Tumnus", pensou Lúcia. Encostada à

parede, uma estante cheia de livros, que ela ficou examinando enquanto ele

preparava o chá. Os títulos eram esquisitos: A vida e as cartas de Sileno; As

ninfas e suas artes; Homens, monges e guardas do bosque; Estudo da lenda

popular; É o homem um mito? 217

Quando Lúcia já não podia comer mais, o fauno começou a falar. Sabia histórias

maravilhosas da vida na floresta. Falou das danças da meia-noite; contou como as

ninfas, que vivem nas fontes, e as dríades, que vivem nos bosques, aparecem para

dançar com os faunos. Falou das intermináveis caçadas ao Veado Branco, branco

como leite, que, se for apanhado, permite que a pessoa realize todos os desejos. E

dos banquetes, e dos bravos Anões Vermelhos procurando tesouros nas minas

profundas e nas grutas. Depois falou do verão, quando os bosques eram verdes e

o velho Sileno vinha visitá-los num jumento enorme, e, algumas vezes, até o

próprio Baco.” (…)

A melodia dava a Lúcia vontade de rir e chorar, de dançar e dormir, tudo ao

mesmo tempo. 218

Lúcia, em êxtase, tomada pela hybris, algo rotineiro para um fauno, mas

verdadeiramente incomum para uma menina do século XX e, mais ainda, para o

leitor que entra em contato com a história. Um êxtase que tira a criança de seu

“juízo” e que discute a hegemonia da Razão. “– E agora, Filha de Eva, já sabe o

caminho?” – Sei, estou vendo o guarda-roupa.” 219

Lúcia agora já está

independente em seu caminho. Ela sabe o caminho. Precisa, é certo, de uma tábua

de salvação, de uma imagem da realidade conhecida (Não há lugar como o lar,

diria Dorothy), mas ao mesmo tempo, foi afetada pela fantasia e não será jamais a

mesma depois de seu encontro com o Sr. Tumnus e Nárnia.

Lúcia saiu correndo da sala vazia e achou os três no corredor.

– Tudo bem; já voltei.

216

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.79. 217

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.79. 218

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.80. 219

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.82.

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– Do que você está falando, Lúcia? – perguntou Susana.

– O quê! – disse Lúcia, admirada. – Mas vocês não ficaram preocupados?

– Então, você andou escondida, hein? – disse Pedro. – Coitada da Lúcia! Ficou

escondida e ninguém reparou! Você tem de ficar escondida mais tempo, se quiser

que alguém se lembre de ir procurá-la.

– Mas eu estive fora muitas horas – disse Lúcia.

Os outros se entreolharam.

– Sua boba! – disse Edmundo, batendo de leve na cabeça. –Completamente boba!

– O que você está querendo dizer, Lu? – perguntou Pedro.

– Exatamente o que eu disse. Entrei no guarda-roupa logo depois do café. Fiquei

fora muito tempo, tomei chá… Aconteceram muitas outras coisas.

– Não fique bancando a boboca, disse Susana. Saímos da sala agora mesmo e

você ainda estava lá.

– Ela não está bancando a boboca – disse Pedro. – Está imaginando uma história

para se divertir, não é, Lúcia?

– Não é não, Pedro. É… um guarda-roupa mágico. Lá dentro tem use quiserem,

vamos ver.

Os outros não sabiam o que pensar, mas Lúcia estava tão agitada que todos a

acompanharam à sala. (…) – Vamos, entrem, vejam com seus próprios olhos. 220

Lúcia agora tem um confronto com a realidade. A realidade só é realidade

para aquele que o observa? Os irmãos não vivenciaram a experiência, e é claro,

que pela sua condição de mais nova dos irmãos, sua visão de mundo é facil e

rapidamente desqualificada, como ignorância das regras do mundo (“não é assim

que se brinca, é necessário deixar que sintam falta de você”), como limitação

intelectual (Susana e Edmundo a chamam de boboca). Pedro com uma postura

que é ainda mais profundamente discriminatória, diz que não é que esteja sendo

boboca, mas está tão somente imaginando uma história para se divertir. Assim,

imaginação é equivalente a diversão, mediada pela efabulação. E nada além. Ao

final, a frase que fecha e equaciona: os outros não sabiam o que pensar. Saber e

pensar estão frontalmente abalados, pois o que eles possuem não é suficiente.

Lúcia convoca a seguirem para verificarem através da percepção o que ela

experimentou. Mas como se sabe, Lúcia terá que esperar um pouco mais antes de

ter seus irmãos comungando da vivência de Nárnia. E antes disso, o descrédito, já

que o guarda-roupa negaceia e mostra apenas um fundo comum e sólido. Mais à

frente, é Edmundo, o garoto que mais provocava e tripudiava de Lúcia que vai ver

que tudo o que é sólido se desmancha no ar. Será o segundo a adentrar nos

domínios da Feiticeira Branca. Os irmãos mais novos, talvez os que ainda não

totalmente comprometidos. Pedro e Susana, ainda “embarcam” na ação que ocorre

em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Contudo, já em Príncipe Caspian, o

220

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.82

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mais velho dos irmãos Pevensie, ao conversar com a caçula sobre o seu destino e

o de Susana, afirma que não retornará à Nárnia pois “Aslam diz que já estamos

grandes demais” 221

“Lúcia saiu correndo da sala vazia e achou os três no corredor. – Mas não

é mentira coisa nenhuma. Palavra de honra! Há um minuto tudo estava diferente.

Palavra que estava.” 222

Verdade e mentira. O que é verdade, o que é mentira?

Mentira para um, verdade para outros? A verdade se altera de acordo com a

subjetividade? Ou trata-se de uma causa sui? Lúcia lida com tal dilema filosófico

e mais ainda com a discussão da dinâmica do real. Será que o real se desvela e se

revela ao seu bel-prazer? Tudo estava diferente. Palavra que estava. Lúcia se

aferra na palavra (na linguagem) como âncora para referendar sua experiência.

Ledo engano. Outro excerto: “Mas queria pelo menos dar uma espiada, porque,

naquela altura, ela própria já começava a se perguntar se Nárnia e o fauno não

passavam de um sonho.” 223

Lúcia foge do dilema ético per se. E se aproxima da

seara metafísica, ao aventar a possibilidade onírica. Pois o sonho é uma fantasia já

aceita, legitimada pela Razão. Uma realidade transfigurada que tem a chancela do

mundo real. Nem os outros estavam errados, nem Lúcia propriamente certa. Uma

saída de consenso. Lewis vai construindo seu topos gradualmente e um a um, os

irmãos vão aceitando o portal para o mundo paralelo. Edmundo, que, talvez muito

mais por uma postura de implicância com a pequena irmã do que porque

desacreditar de Nárnia, é o segundo a penetrar, solitário, no guarda-roupa mágico.

E faz um interessante mea culpa, que, além de tudo reforça a posição de Lewis

sobre a questão dos mundos paralelos. Já dentro no guarda-roupa, já situado em

Nárnia, “Edmundo tiritava de frio. Lembrou-se então de que andava à procura de

Lúcia. Lembrou-se também de que a tratara mal por causa desse país imaginário,

que de imaginário nada tinha.”224

Outra discussão importante é posta em questão logo no início do livro,

quando Edmundo encontra a Feiticeira Branca e ela, investiga sua natureza,

indagando não “quem é ele”, mas sim “o que é ele?”. Uma radical diferença de

posicionamento e uma profunda problemática filosófica aparece, para além

daquela que está configurada como pulsão narrativa mais explicita que é o

221

LEWIS, C.S. Príncipe Caspian, in: As crônicas de Nárnia. p.285 222

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.82. 223

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.83 224

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.84

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surgimento do mal, na figura da antagonista (antes mesmo do surgimento do herói

supremo do universo narniano: o leão Aslam). Não é casual o fato da ordem de

entrada em cena das personagens que são os motores narrativos do enredo – pois

as personagens principais, até por identificação com os leitores são as quatro

crianças – (o guarda-roupa, a feiticeira e o leão) é inversa à do título do livro. Mas

retomando a questão posta por Jadis, que abre para a criança (na verdade, para

qualquer leitor), a possibilidade da diversidade, ao questionar a condição humana

como única, hegemônica e tácita. Não pergunta “Quem é você?”, mas sim, o que é

você? E três vezes.

– Ei, você! O que é você? – perguntou a dama, cravando os olhos em Edmundo.

– Eu… eu… meu nome é Edmundo – respondeu ele, meio atrapalhado. Não

estava gostando nada do jeito dela. A dama franziu as sobrancelhas.

– É assim que você fala a uma rainha?

– Perdão, Majestade, mas eu não sabia.

– Não conhece a rainha de Nárnia? – exclamou ela, mais severa. – Pois vai passar

a me conhecer, daqui por diante. Repito: o que é você?

– Queira desculpar, Majestade. Não estou sabendo o que a senhora quer dizer. Eu

ainda estou na escola… pelo menos estava… agora estou de férias.

– Mas o que é você? – tornou a rainha. – Por acaso um anão que cresceu demais e

resolveu cortar a barba?

– Não, Majestade; eu nunca tive barba, sou ainda um menino. Um menino! Quer

dizer, um Filho de Adão?

Edmundo ficou parado sem dizer nada. Já se sentia todo confuso.

– Seja lá o que for, acho que se trata também de um débil mental. Responda logo,

se não quer que eu perca paciência. Você é humano? 225

As crianças têm destaque nas narrativas selecionadas como

questionadoras, argutas, não conformistas, curiosas, com pendores filosóficos.

Mas ocasionalmente há adultos que também possuem o tal olhar diferenciado, de

encantamento, que “embarcam na onda” das crianças e se lançam tanto no

imaginário pelo prazer da fruição ou instigados por um mood reflexivo. Não nos

livros de Alice nem em O Mágico de Oz, mas Dona Benta e Tia Nastácia são as

representantes brasileiras. Na obra de C. S. Lewis, poderíamos citar o Tio André

que tem destaque em O sobrinho do mago e participação especial em O leão, a

feiticeira e o guarda-roupa. Tio André, inclusive, demonstra uma postura que

surpreende as crianças mais velhas – Pedro e Susana – que já esperavam que ele

desacreditassem tanto da história quanto da própria Lúcia, quando foram lhe pedir

auxílio e amparo:

225

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.85

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Na manhã seguinte, resolveram contar tudo ao professor. Depois escreveremos a

papai, se o professor achar que Lúcia não está boa da cabeça (…)

Escutou-os com toda a atenção, dedos cruzados, sem interrompê-los até o fim da

história. Ficou calado durante muito tempo. Tossiu para limpar a garganta. E

disse a coisa que eles menos podiam esperar:

– E quem disse que a história não é verdadeira? 226

– Lógica! – disse o professor para si mesmo. – Por que não ensinam, mais lógica

nas escolas? – E dirigindo-se aos meninos, declarou: – Só há três possibilidades:

ou Lúcia está mentindo; ou está louca; ou está falando a verdade. Ora, vocês

sabem que ela não costuma mentir, e é evidente que não está louca. Por isso,

enquanto não houver provas em contrário, temos que admitir que está falando a

verdade.

Susana olhou para ela muito séria: o professor não estava brincando.

– Mas como é que pode ser verdade, professor?

– E por que você duvida?

– Bem – disse Pedro –, então, se é verdade, por que não encontramos sempre o

tal país fantástico ao abrir a porta do guarda-roupa? Não havia nada lá quando

olhamos; nem Lúcia teve coragem de fingir que havia.

– E isso prova o quê? – perguntou o professor.

– Ora, ora, se as coisas são verdadeiras, estão sempre onde devem estar.

– Tem certeza, Pedro?

Ele não foi capaz de responder.

– Mas ela não teve tempo! – disse Susana – mesmo que esse país existisse, Lúcia

não teve tempo de ir lá. Veio correndo atrás de nós, logo que saímos da sala.

Demorou menos de um minuto, e ela diz que passou horas lá.

– Pois é exatamente isso que me faz acreditar na história. – disse o professor. –

Se, de fato, existe nesta casa uma porta aberta para um outro mundo (e devo dizer

que esta casa é muito estranha, e eu mesmo mal a conheço), e se Lúcia conseguiu

chegar a esse mundo, não ficaria nada admirado se ela houvesse encontrado lá

um tempo diferente; assim, podia muito bem acontecer que, embora ela ficasse

muito tempo lá, a gente não percebesse isso no tempo do nosso mundo. Lúcia, na

idade dela, não deve saber disso. Logo, se estivesse fingindo, deveria ficar

escondida durante mais tempo, para depois contar a mentira.

– Mas, professor, acha mesmo que pode existir outro mundo, em qualquer lugar,

tão pertinho? Será possível?

– É muito possível – disse o professor, tirando os óculos para limpá-los. – Eu

gostaria de saber o que estas crianças aprendem na escola! – murmurou para si

mesmo. 227

E este seria o fim da história se as crianças não se sentissem na obrigação de

explicar ao professor por que quatro casacos tinham desaparecido do guarda-

roupa. E o professor (um sujeito de fato fora do comum) não lhes disse que

deixassem de ser bobos ou inventar histórias. Acreditou.

– Não! – disse ele. – Realmente. Não creio que valha a pena entrar pelo guarda-

roupa para procurar os casacos. Por esse caminho, nunca mais irão a Nárnia.

Nem os casacos serviriam muita coisa agora. Hein? Que tem isso? É claro que

um dia vocês voltarão a Nárnia. Quem é coroado rei em Nárnia, sera sempre rei

em Nárnia. Mas não tentem seguir o mesmo caminho duas vezes. Na verdade,

vocês nem devem fazer coisa alguma para voltar a Nárnia. Nárnia acontece.

Quendo menos esperarem, pode acontecer. E não falem muito sobre o que

aconteceu, mesmo entre vocês. Sobretudo, não digam nada aos outros. A não ser

226

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.89 227

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.90

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se descobrirem que eles próprios visitaram países do mesmo gênero. O quê?

Como irão saber? Ora, ora, não é nada difícil, não se incomodem. Coisas que as

pessoas dizem… Até pelo olhar… e lá se foi o segredo. Abram bem os olhos!

Céus! O que é que estão ensinando às crianças na escola? 228

Como tal tipo de pensamento em adultos não é convencional, mas é

exatamente o que defendo como sendo necessário para a construção de uma nova

crítica de fantasia bem como para um diferenciado modo do fazer filosófica – vale

notar que concebo como via de mão dupla, tanto como crítica de literatura

fantástica quanto como epistemologia – cumpre ressaltar alguns elementos

interessantes nos trechos acima incluídos. Trata-se de uma passagem que explicita

sua postura que me faz recordar a doutrina sensacionista: Nárnia acontece.

Quando menos esperarem, pode acontecer. O tio das crianças insiste na

necessidade de se aprender lógica nas escolas – o que louvável por ser um ramo

da filosofia – mas parece mais afinado com um tipo de filosofia ancestral,

originário, que para muitos, ainda não pode se chamada de filosofia por não se

caracterizar como tal. O enfoque do pensadores originários, também chamados de

pré-socráticos, mais abertos a soluções mais “fantásticas” para a compreensão do

mundo que os cercava. Ele, ao dizer “Não tentem seguir o mesmo caminho duas

vezes”, parece-me bem sintonizado com Heráclito de Éfeso no aforismo que a

contemporaneidade quase transformou em um clichê filosófico: um homem não

toma banho duas vezes no mesmo rio. O rio muda, muda o homem. Adiciona um

conselho muito interessante, de fina ironia, especialmente para as crianças que

estavam abaladas por estarem lidando como uma possibilidade que,

diferentemente da irmã, elas não conseguiam ver: “abram bem os olhos!”

Lewis continua escancarando a porta do armário filosófico quando

explicita a indignação do adulto, que, exasperado, diz: “O que estão ensinando às

crianças na escola? Lógica e filosofia!! É o que se deve ensinar!!” É digno de

nota, para dizer o mínimo, que uma narrativa de fantasia da Grã-Bretanha do

século XX toque em questões que já eram um incômodo para os adultos da época,

naquelas condições sócio-econômicas: se o que as crianças estavam aprendendo

iria lhes servir para exercerem plenamente sua condição humana! Ou seja, como

sempre rotulam a fantasia: uma temática alienante, em nada relacionada com a

nossa realidade brasileira da segunda década do século XXI.

228

LEWIS, C.S. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. p.133-4.

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5.3 Lewis Carroll Através do Espelho e no País das Maravilhas

A história de Alice, ou as suas histórias, já que por vezes são tomadas

como um mix coeso, e por outras, considera-se apenas as aventuras ocorridas

situadas no País das Maravilhas (descartando as peripécias acontecidas através do

espelho) e ainda as recriações, gerando algo inteiramente distinto, com

personagens dos dois livros ambientados em um dos mundos, como é o exemplo

recente da adaptação cinematográfica produzida, se plasmaram de tal maneira na

cultura globalizada e no inconsciente coletivo que qualquer análise sobre o

canônico texto incorre no risco de contribuir com platitudes ou com falas inócuas.

Infelizmente (ou felizmente), para o meu estudo, a personagem carolliano de

maior destaque se constituiu como fundamental para Alice ao subverter a lógica

com seu nonsense e o questionamento radical de problematizações tanto

ontológicas quanto de filosofia de linguagem.

Reitero minha justificativa pela extensão das citações literárias ora aqui

apresentadas. A ideia da perspectiva de análise (não utilizo o termo método não

apenas por não se configurar como tal, mas também por ser contrário) do que

denominarei no próximo capítulo como Encanto Crítico aposta na força do

literário, na pulsão filosófica que emana do próprio texto, o que faz com que seja

necessária a fruição em intensidade pela que por vees um diminuto excerto não

seja capaz de transmitir.

Optei por manter um semi-amálgama dos canônicos textos carollianos,

apresentando “as duas Alices” quase que fusionadas, já que utilizei um volume

único que agrupou ambos livros, a saber, Aventuras de Alice no País das

Maravilhas e Através do Espelho e o que Alice encontrou lá.

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5.3.1 Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho e o que Alice encontrou lá

“De que serve um livro sem figuras nem diálogos” é um dos trechos mais

citados na literatura infantil universal, bem como em oficinas de leitura e contação

de histórias e até mesmo em cursos de produção editorial ou design gráfico

voltado para livros, dada seu teor de inovação e ousadia ao trazer a autoreferência

e a metalingaguem para um produto artístico-cultural para a criança, inicialmente,

do século XIX.

Seguindo com a leitura do texto, logo no início, verifica-se que há o

estabelecimento de um pacto com o leitor e que, a partir deste acordo, nada há de

tão extraordinário em ouvir um coelho dizer: “Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado

demais”. Há uma lembrança de que deveria ter havido estranhamento crítico, mas

não houve para o momento. Ou seja, já no início do texto, fica patente que a

subversão da lógica, do pensamento tradicional e esperado, o questionamento

constante e recorrente reflexão pautará os livros. De certa forma, “Através do

espelho…” é um prolongamento das problematizações que já emergem nas

passagens iniciais de País das Maravilhas.

Alice estava começando a ficar muito cansada de estar sentada ao lado da irmã na

ribanceira, e de não ter nada que fazer; espiara uma ou duas vezes o livro que

estava lendo, mas não tinha figuras ou diálogos, e “de que serve um livro",

pensou Alice, “sem figuras nem diálogos?". 229

Não havia nada de tão extraordinário nisso; nem Alice achou assim tão esquisito

ouvir o Coelho dizer consigo mesmo: “Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais

(quando pensou sobre isso mais tarde, ocorreu-lhe que deveria ter ficado

espantada, mas na hora tudo pareceu muito natural). 230

tão de repente que Alice não teve um segundo para pensar em parar antes de se

ver despencando num poço muito fundo. 231

229

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.13 230

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.13 231

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.14.

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Alice começa a pensar que coisas realmente impossíveis são raridade, o

que é uma outra forma de dizer que o impossível, o estranho, o insólito, das

unheimliche, é muito comum e frequente. Tal assunção é o início de caminho

reflexivo, de uma jornada de fazer filosófico que considera como natural o que

está fora dos padrões, o que não é simplesmente o que o mundo apresenta de

saída. Há que se ver o diferente, o que está fora da norma, do convencional, ou

como está presente em uma expressão do próprio texto de Carroll, aquilo que está

para além da “insípida realidade”.

Então, ocorre o esgarçamento identitário como complemento ao processo

de se indagar o entorno, o mundo das coisas e dos fenômenos. Por vários trechos,

Alice é questionada e, ao longo do processo, ela percebe que sua suma certeza,

isto é, “quem sou eu”, não pode ser tida como um dogma ou um axioma. A chave

se esconde no texto, quando Alice diz: “Ah, este é o grande enigma.” É

interessante acompanhar o crescente movimento de reflexão que culminará com a

afirmação de que ela sabe que está tudo errado e o momento que ela assume e

aceita que é Mabel, que sua identidade foi trocada por uma menina que,

anteriormente, Alice julgava saber muito menos do que ela, mas que agora, parece

ser uma persona bem mais adequada aos seus anseios e inquietações:

E aqui Alice começou a ficar com muito sono, e continuou a dizer para si mesma,

como num sonho: "Gatos comem morcegos? Gatos comem morcegos?" e às

vezes "Morcegos comem gatos?", pois, como não sabia responder a nenhuma das

perguntas, o jeito como as fazia não tinha muita importância. 232

Pois, vejam bem, havia acontecido tanta coisa esquisita ultimamente que Alice

tinha começado a pensar que raríssimas coisas eram realmente impossíveis. 233

Ai, ai! Como tudo está esquisito hoje! E ontem as coisas aconteciam exatamente

como de costume. Será que fui trocada durante a noite? Deixe-me pensar: eu era

a mesma quando me levantei esta manhã? Tenho uma ligeira lembrança de que

me senti um bocadinho diferente. Mas, se não sou a mesma, a próxima pergunta

é: "Afinal de contas quem sou eu?" "Ah, este é o grande enigma!" E começou a

pensar em todas as crianças da sua idade que conhecia, para ver se poderia ter

sido trocada por alguma delas.

"Ada com certeza não sou", disse, "porque o cabelo dela tem cachos bem longos,

o meu não tem cacho nenhum; é claro que não posso ser Mabel, pois sei todo tipo

de coisas e ela, oh! sabe tão pouquinho! Além disso, ela é ela, e eu sou eu, e… ai,

ai, que confusão é isto tudo! Vou experimentar para ver se sei tudo que sabia

232

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.16. 233

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.18.

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antes. Deixe-me ver: quatro vezes cinco é doze, e quatro vezes seis é treze, e

quatro vezes sete é… ai, ai, deste jeito não vou chegar a vinte! Mas a tabuada de

multiplicar não conta; vamos tentar Geografia. Londres é capital de Paris, e Paris

é capital de Roma, e Roma… não, está tudo errado, eu sei! Devo ter sido trocada

pela Mabel!" 234

Nas narrativas infantis existem personagens coadjuvantes que adquirem tal

destaque que por vezes chegam mesmo a eclipsar a personagem principal. No País

das Maravilhas, não se poderia afirmar que há tamanha obnubilação, mas a

Lagarta Azul, como o Chapeleiro Louco, possui seu lugar cativo no imaginário

carrolliano. A primeiríssima fala pronunciada pelo lepidóptero larvar é uma das

mais clássicas indagações filosóficas da humanidade: “– Quem é você?”,

perguntou Lagarta. E a resposta que se segue é uma das mais pujantes cenas da

literatura: “Eu… mal sei, Sir, neste exato momento…” Anti-heroína por

excelência, Alice expõe seus predicados de humilde pensadora, ou seja, ao

escancarar suas certezas, é quando deixa transparecer toda sua potência

intelectual. Ainda que o apanhado de citações seja extenso, vale acompanhar a

verve de Carroll, no melhor do estilo, abusando do típico wit inglês:

Havia perto dela um cogumelo grande, quase da sua altura; quase da sua altura;

depois de olhar embaixo dele, e dos dois lados, e atrás, ocorreu-lhe que não seria

má idéia espiar o que havia em cima dele.

Esticou-se na ponta dos pés e espiou sobre a borda do cogumelo e seu olhar

encontrou imediatamente o de uma grande lagarta azul, sentada no topo, de

braços cruzados, fumando tranquilamente um comprido narguilé, sem dar a

minima atenção a ela ou a qualquer outra coisa. 235

A Lagarta e Alice ficaram olhando uma para a outra algum tempo em silêncio.

Finalmente a Lagarta tirou o narguilé da boca e se dirigiu a ela numa voz

lânguida, sonolenta.

"Quem é você?", perguntou Lagarta.

Não era um começo de conversa muito animador. Alice respondeu, meio

encabulada: "Eu… mal sei, Sir, neste exato momento… pelo menos sei quem eu

era quando me levantei esta manhã, mas acho que já passei por várias mudanças

desde então."

"Que quer dizer com isso?" esbravejou a Lagarta. "Explique-se!"

"Receio não poder me explicar’, respondeu Alice, porque não sou eu mesma,

entende?

"Não entendo", disse a Lagarta.

234

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.26. 235

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.53-4.

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"Receio não poder ser mais clara, Alice respondeu com muita polidez, pois eu

mesma não consigo entender, para começar; e ser de tantos tamanhos diferentes é

muito perturbador."

"Não é’, disse a Lagarta.

"Bem, talvez ainda não tenha descoberto isso", disse Alice; "mas quando tiver de

virar uma crisálida… vai acontecer um dia, sabe… e mais tarde uma borboleta,

diria que vai achar isso um pouco esquisito, não vai?"

"Nem um pouquinho", disse a Lagarta.

"Bem, talvez seus sentimentos sejam diferentes", concordou Alice; "tudo que sei

é que para mim isso pareceria muito esquisito."

"Você!’ desdenhou a Lagarta.‘Quem é você?"

O que as levou de novo para o início da conversa. Alice, um pouco irritada com

os comentários tão breves da Lagarta, empertigou-se e disse, muito gravemente:

‘Acho que primeiro você deveria me dizer quem é.’

"Por quê?" indagou a Lagarta.

Aqui estava outra pergunta desconcertante; e como não pudesse atinar com

nenhuma boa razão, e a Lagarta parecesse estar numa disposição de ânimo muito

desagradável, Alice deu meia-volta.

"Volte!" chamou a Lagarta. "Tenho uma coisa importante para dizer!"

Isso parecia promissor, sem dúvida; Alice se virou e voltou.

"Controle-se", disse a Lagarta.

"Isso é tudo?" quis saber Alice, engolindo a raiva o melhor que podia.

"Não", respondeu a Lagarta.

Alice pensou que podia muito bem esperar, já que não tinham mais nada a fazer e

talvez, afinal, ela dissesse alguma coisa que valesse a pena ouvir. Por alguns

minutos a Lagarta soltou baforadas sem falar, mas por fim descruzou os braços,

tirou o narguilá da boca de novo e disse: "Então acha que está mudada, não é?"

"Receio que sim, Sir", disse Alice. "Não consigo me lembrar das coisas como

antes… e não fico do mesmo tamanho poe dez minutos seguidos!"

"Não consegue se lembrar de que coisas?" perguntou a Lagarta.236

"Eu não sei", disse a Lagarta.

Alice não disse nada: nunca fora tão contestada em sua vida e sentiu que estava

perdendo a paciência.237

De extrema importância, apesar de ser uma passagem curta e discreta, é o

excerto acima, que apresenta o mutismo de Alice ao encarar o ápice da

contestação sofrida. Ao se sentir afrontada, nota que está perdendo a paciência. E

a narrativa segue, reiteradamente pondo a subjetividade de Alice em encruzilhada

de suspeita. A desconfiança da Pomba de que Alice é, na verdade, uma cobra, é de

uma mordacidade sofista à toda prova. E para reforçar o caráter de construção do

conhecimento por intermédio da aceitação da ignorância e da necessidade da

abertura às possibilidades trazidas pela fantasia, o diagnóstico da Duquesa

dirigido à menina: “Você não sabe grande coisa. E isto é um fato.”

236

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.58. 237

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.60.

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"E justamente quando escolhi a árvore mais alta do bosque", continuou a Pomba,

elevando a voz a um guincho, "justamente quando estava pensando que

finalmente que me veria livre delas, elas têm de descer do céu se retorcendo!

Arre, Cobra!"

"Mas não sou uma cobra, estou lhe dizendo!’ insistiu a Alice. Sou uma…

uma…"

"Ora essa! Você é o quê?" perguntou a Pomba. "Aposto que está tentando

inventar alguma coisa!"

"Eu… eu sou uma menininha", respondeu Alice, bastante insegura, lembrando-se

do número de mudanças que sofrera aquele dia.

"Realmente uma história muito plausível!" disse a Pomba num tom do mais

profundo desprezo. Vi muitas menininhas com um pescoço desse! Não, não!

Você é uma cobra; e não adianta negar. Suponho que agora vai me dizer que

nunca provou um ovo!

"Provei ovos, sem dúvida!", disse Alice, que era uma criança muit sincera; ‘mas

Meninas comem quase tantos ovos quanto as cobras, sabe.’

"Não acredito nisso", declarou a Pomba; "mas, se comem, então são uma espécie

de cobra, é só o que posso dizer".

Era uma ideia tão nova para ela que Alice ficou em silêncio absoluto por um ou

dois minutos, o que deu à Pomba oportunidade para acrescentar: "Você está

procurando ovos, isso eu sei muito bem; o que me importa se é uma menininha

ou uma cobra?"

"Pois a mim, importa muito", Alice retrucou rápido (…) 238

"Por favor, poderia me dizer" perguntou Alice um pouco tímida, pois não sabia

se era de bom-tom falar em primeiro lugar, "por que seu gato tanto sorri?"

"É um gato de Cheshire", disse a Duquesa, "é por isso. Porco!"

Disse a última palavra com tão súbita violência que Alice deu um pulo; mas num

instante viu que era dirigida ao bebê, não a si. Diante disso, tomou coragem e

continuou:

"Não sabia que os gatos de Cheshire sempre sorriem; na verdade, não sabia que

gatos podiam sorrir."

"Todos podem", disse a Duquesa, e a maioria o faz."

"Não conheço nenhum que sorria", declarou Alice, com muita polidez, sentindo-

se muito contente por ter entabulado uma conversa.

"Você não sabe grande coisa", observou a Duquesa; "e isto é um fato." 239

Para encerrar o passeio pelo País das Maravilhas, três momentos que

abordam uma triangulação para o estudo: a desrazão (que tomada pela dicção do

senso comum pode ser visualizada em moldura mais chã, ou seja, a loucura), a

fantasia e a (insípida) realidade. No colóquio com o Gato de Cheshire, ele a alerta

para o fato de serem todos loucos ali e que Alice, ciente ou não, também comunga

desta condição, caso contrário, a menina lá não estaria. Depois, com o Grifo, ao

trocarem ideias a respeito da Rainha, afirma que é tudo fantasia dela. Dela, ada

Rainha, mas é possível uma leitura mais abrangente que tome a frase como um

238

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.64-5 239

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.70-1.

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indicativo de que tudo é fantasia, propondo uma realidade fundada na fantasia. E,

ao final, uma aguda espetada no primado da Razão como nutriz da Realidade, ao

classificar a realidade como uma dimensão insípida, em oposição às exuberantes

maravilhas de “Wonderland”.

Alice tentou uma outra pergunta. "Que espécie de gente vive por aqui?" "Naquela

direção", explicou o Gato, acenando com a pata direita, "vive um Chapeleiro; e

naquela direção", acenando com a outra pata, "vive uma Lebre de Março. Visite

qual delas quiser: os dois são loucos." "Mas não quero me meter com gente

louca", Alice observou.

"Oh! É inevitável", disse o Gato; "somos todos loucos aqui". "Eu sou louco. Você

é louca."

Como sabe que sou louca?, perguntou Alice.

"Só pode ser", respondeu o Gato, ou não teria vindo parar aqui. 240

“O Grifo se sentou e esfregou os olhos; depois fitou a Rainha até que ela sumiu

de vista; em seguida disse com um risinho satisfeito, meio para si mesmo, meio

para Alice:

"Que engraçado!"

"Onde está a graça?" perguntou Alice.

"Ora, nela", disse o Grifo. "É tudo fantasia dela: nunca executam ninguém.

Vamos!" (…) "Qual é o problema dela? perguntou. O Grifo respondeu, quase

com as mesmas palavras de antes: "É tudo fantasia dela: não tem problema

nenhum. Vamos!" 241

“Ficou ali sentada, os olhos fechados, e quase acreditou estar no País das

Maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e tudo se transformaria em

insípida realidade…” 242

Através do Espelho e que Alice encontrou lá é um texto que foca bastante

na vereda da filosofia da linguagem e um frutífero estudo, que, infelizmente, não

foi possível encetar, seria uma leitura crítica com o viés de Wittgenstein. Por

outro lado, em termos metodológicos, seria uma contribuição tradicional, de uso

de uma clave filosófica para analisar um texto literário. O que tenciono

desenvolver é uma perspectiva filosófica que emerja da própria fantasia e não uma

instrumentalização externa para retirar pontos de contato, pontes entre a fantasia e

a filosofia.

De qualquer maneira, é patente que aqui e ali, é possível passagens que

impelem o leitor, no diálogo com o texto, a refletir, questionar e mesmo, por

240

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.76-8. 241

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.109-10 242

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.148.

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abaixo, conceitos e concepções que farão sua mundividência ser alterada radical e

definitivamente. Humpty Dumpty confronta Alice que parecia estar conformada

com a estreita e sólida relação entre linguagem (nome) e ontologia (ser). Ao

repensar sua visão de mundo, acerca da arbitrariedade do signo linguístico e da

necessidade de significação para o ente, bem como da relação de poder imiscuída

do binômio ente-signo, Alice trafega em uma via filosófica de fluxo intenso.

"Não fique aí falando sozinha desse jeito", Humpty Dumpty disse, olhando para

ela pela primeira vez, "melhor me dizer seu nome e atividade…"

"Meu nome é Alice, mas…"

"Um nome bem bobo!" Humpty Dumpty a interrompeu com impaciência. O que

significa?’

"Um nome deve significar alguma coisa?" Alice perguntou ambiguamente.

"Claro que deve", Humpty Dumpty respondeu com uma risada curta. "Meu nome

significa meu formato… Aliás um belo formato. Com um nome como o seu, você

poderia ter praticamente qualquer formato."

"Por que fica sentado aqui sozinho?", disse Alice, não querendo iniciar uma

discussão.

"Ora, porque não há ninguém aqui comigo!"exclamou Humpty Dumpty. "Pensou

que não teria resposta para isso? Pergunte outra."243

"Quando eu uso uma palavra", disse Humpty Dumpty num tom bastante

desdenhoso, "ela significa exatamente o que eu quero que signifique: nem mais

nem menos."

"A questão é", disse Alice: "se pode fazer as palavras significarem tantas coisas

diferentes."

"A questão", disse Humpty Dumpty, "é saber quem vai mandar – só isto." 244

A ironia e o humor carrolliniano são dignos de nota, em especial no trecho

quando o Unicórnio se espanta e se encanta com a presença de uma criança

(Alice), que ele antes achava se tratar de mais um monstro fabuloso. E no instante

em que Alice confessa estar em situação análoga, é definido um pacto entre os

personagens no qual um passa a acreditar no outro, já que houve a comprovação –

por intermédio dos sentidos – da existência. E para finalizar, comprovando que

Carroll, assim como Baum, Lobato e Lewis, estava preocupado com a fruição

estética, com o entretenimento, mas que tinha como piso da sua produção literária

a crítica ácida e revolucionária, como deve ser a filosofia de boa cepa, vale um

detido olhar na última frase da narrativa que, definitivamente, convoca o leitor ao

243

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.239. 244

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e

o que Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.245.

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exercício filosófico, conjugando os movimentos complementares de se fechar o

livro e de se abrir para o pensamento.

"O que… é… isso?" disse finalmente.

"Isto é uma criança!" Haigha respondeu animadamente, passando à frente de

Alice para apresentá-la e esticando as duas mãos bem abertas em direção a ela

com suas maneiras anglo-saxãs. "Nós só a encontramos hoje: tamanho real e duas

vezes mais natural."

"Sempre achei que elas eram monstros fabulosos!" disse o Unicórnio.

"É viva?"

"Sabe falar", disse Haigha solenemente.

O Unicórnio lançou para Alice um olhar sonhador e disse: "Fale, criança."

Alice não conseguiu conter um sorriso ao começar:

"Sabe, sempre pensei que os Unicórnios eram monstros fabulosos também!

Nunca vi um vivo antes."

"Bem, agora que nos vimos um ao outro", disse o Unicórnio, "se acreditar em

mim, vou acreditar em você. Feito?"

"Feito, se lhe agrada’, disse Alice."245

"Agora, Kitty, vamos pensar bem quem foi que sonhou tudo isso. É uma questão

séria, minha querida, e você não devia ficar lambendo a pata desse jeito… Como

se a Dinah não tivesse lhe dado banho esta manhã! Veja bem, Kitty, ou fui eu ou

foi o Rei Vermelho. Ele fez parte do meu sonho, é claro… mas nesse caso eu fiz

parte do sonho dele também! Terá sido o Rei Vermelho, Kitty? Você era a

mulher dele, minha cara, portanto deveria saber… Oh, Kitty, me ajude a resolver

isto! Tenho certeza de que sua pata pode esperar!" Mas a implicante gatinha só

fez começar com a outra pata, fingindo não ter ouvido a pergunta.

Quem você pensa que sonhou? 246

5.4 José Bento Monteiro Lobato e Sítio do Picapau Amarelo

Depois das estações Oz, Nárnia, País das Maravilhas e Através do

Espelho, chego ao Sítio do Picapau Amarelo. A vida e a obra de Monteiro Lobato

– em especial, para o interesse presente, a denominada obra infantil – já recebeu

todo tipo de ataque, bem como um sem-número de análises. Entre os estudos

laudatórios e os equívocos rastaqueras (e suas alternâncias, isto é, equívocos

245

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e

o que Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.263-4. 246

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que

Alice encontrou lá. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p.315.

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laudatórios e estudos rastaqueras), apenas uma certeza: ainda há muito o que

pesquisar. Uma recente e premiada antologia de investigações em teoria literária

que tem como viga mestra a formação de novos pesquisadores de estudos

lobatianos foi organizada por Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini 247

.

Naturalmente, como toda antologia e seu caráter de feixe em torno de um eixo, há

de haver ensaios mais filiados ao núcleo da questão e outros tantos mais afastados

do seu cerne. Todavia, vale pinçar trechos de dois artigos que, ao abordar livros

geralmente menos incensados dentro da crítica lobatiana (Geografia de Dona

Benta e Aritmética de Emília, pertencentes ao conjuntos dos denominados mais

didáticos da obra infantil de Lobato), trazem boas contribuções para a presente

discussão, sobre a construção do conhecimento e os tênues limites entre real e

irreal, história e ficção, vida e obra, pessoa e personagem, narrador e autor,

fantasia e realidade. Esta tese é, tão somente, mera ampliação de um comentário

no qual acrescentaria: fantasia e filosofia…

Na voz das personagens do Sítio, há o espaço para o conhecimento erudito e para

o popular, para a ciência e a crendice, para o real e o irreal. Embora pareça

contraditório, é a presença das diferenças que caracteriza tão bem a estrutura da

obra infantil de Lobato, marcada por estratégias de comunicação que prevêem a

interação entre leitor e obra, bem como a identificação dos leitores com

personagens e com comportamentos adotados por estas, nas obras. As crianças

podem questionar, tomar decisões, apresentar conclusões, tendo sempre o aval do

adulto, que abre espaço para o diálogo, a crítica, a fim de que todos possam

alcançar a maturidade por meio do conhecimento adquirido. 248

Segundo Lajolo (apud Prado, 2006), quando os personagens discutem seu

estatuto de ficção, o espaço ficcional pode ganhar foros de realidade, e o leitor é

convidado a pisar cuidadosamente nos estreitos limites entre a fantasia e a

realidade, o narrador e o autor, a ficção e a história, o personagem e a pessoa. 249

247

LAJOLO, Marisa & CECCANTINI, João Luís. (Orgs.). Monteiro Lobato, livro a livro: obra

infantil. Imprensa Oficial / Editora UNESP, 2008.) 248

CARDOSO, Rosimeire Darc. “Geografia de Dona Benta: o mundo pelos olhos da imaginação”.

in: LAJOLO, Marisa & CECCANTINI, João Luís. (Orgs.). Monteiro Lobato, livro a livro: obra

infantil. Imprensa Oficial / Editora UNESP, 2008.) p. 301. 249

(p.284 - LUIZ, Fernando Teixeira. “Aritmética da Emília (1935): matemática para não

matemáticos?”. in: LAJOLO, Marisa & CECCANTINI, João Luís. (Orgs.). Monteiro Lobato,

livro a livro: obra infantil. Imprensa Oficial / Editora UNESP, 2008.)

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5.4.1 O Saci

Oriundo da extensa pesquisa etnográfica e antropológica que resultou na

publicação O Sacy-Perêrê, resultado de um inquérito, de 1918, e embalado pelo

sucesso de receptividade de público e de vendas tanto de A menina do narizinho

arrebitado quanto de Narizinho Arrebitado (ambos de 1920), o multitalentoso e

plurifacetado José Bento Monteiro Lobato lançou um novo livro voltado para

crianças: O Saci, de 1921, que traz o menino de cidade grande às voltas com uma

criatura que demolirá suas certezas de forma definitiva.

A empáfia antropocêntrica do garoto letrado e urbano sofre um talho

vigoroso dado pelo duende genuinamente nacional. Discordo veementemente de

Evandro do Carmo Camargo (que faz questão de dizer que não acredita em sacis,

em tom de pilhéria regionalista, como espetada na SOSACI – Sociedade de

Observadores de Saci, criada no mesmo estado natal do pesquisador), em seu

artigo “Algumas notas sobre a trajetória editorial de "O Saci-Pererê", de Monteiro

Lobato”. Não apenas por acreditar em sacis, mas por frontalmente considerar que

O Saci não deve ser reduzido ao mero caráter utilitarista que Evandro do Carmo

Camargo quer impingir ao livro. A cartilha acadêmica indica que não deve

incorrer em postura de doxa, mas assumo que, em minha opinião, Camargo

incorreu em leitura ligeira.

O Saci é um livro curto, que não possui muita ação ou dramaticidade,

como, por exemplo, Caçadas de Pedrinho, Reinações de Narizinho ou O Picapau

Amarelo. É um livro de diálogos. Pedrinho troca ideias com Dona Benta, conversa

com Tia Nastácia, inquire Tio Barnabé e, principalmente, “duela” com o Saci.

Vários são os temas e os diálogos são tão elucidativos que fui tentado a (1) incluí-

los em sua extensão quase total; (2) pouco tergiversar, por receio de incorrer em

rala paráfrase do já exposto e, adicionalmente, por conta da posição metodológica

de discutir o quanto a ficção pode, ela própria, emanar suas saídas em um contato

menos intermediado pela teorização e pelo racionalismo.

Começando com Dona Benta, Pedrinho reflete criticamente para que a

inteligência não é exclusivamente humana, viés que perpassará todo o livro, isto é,

a crítica frontal e contundente ao antropocentrismo e a razão humana como única

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forma de saber. “É uma coisa que o branco da cidade nega, diz que não há. Mas

há.”

– Mas então esses passarinhos raciocinam, vovó – têm inteligência...

– Está claro que têm, meu filho. A inteligência é uma faculdade que que aparece

em todos os seres, não só no homem. Até as plantas revelam inteligência. O que

há é que a inteligência varia muito de grau. É pequeniníssima nas galinhas e nos

perus, mas já bem desenvolvida no joão-de-barro. E é um colosso num homem

como Isaac Newton, aquele que descobriu a Lei da Gravitação Universal.250

– E também há sacis. – rematou Dona Benta.

Pedrinho calou-se. Embora nunca houvesse confessado a ninguém, percebia-se

que tinha medo de saci. Nesse ponto não havia nenhuma diferença entre ele, que

era da cidade, e os demais meninos nascidos e crescidos na roça. Todos tinham

medo de saci, tais eram as estórias correntes a respeito do endiabrado moleque

duma perna só.

Desde esse dia ficou Pedrinho com o saci na cabeça. Vivia falando em saci e

tomando informações a respeito. Quando consultou Tia Nastácia, a resposta da

negra foi, depois de fazer o pelo-sinal e dizer: “Credo!”:

– Pois saci, Pedrinho, é uma coisa que o branco da cidade nega, diz que não há –

mas há. Não existe negro velho por aí, desses que nascem e morrem no meio do

mato naquela tarde, que não jure ter visto saci. Nunca vi nenhum, mas sei quem

viu.

– Quem?

– O tio Barnabé. Fale com ele. Negro sabido está ali.Entende de todas as

feitiçarias, e de saci, de mula-sem-cabeça, de lobisomem – de tudo.

Pedrinho ficou pensativo.251

– Tio Barnabé, eu vivo querendo saber duma coisa e ninguém me conta direito.

Sobre o saci. Será mesmo que que existe saci?

(…) Pois, seu Pedrinho, saci é uma coisa que eu juro que “exéste”. Gente da

cidade não acredita – mas “exéste”. 252

Pedrinho soltou o saci e durante o resto da aventura tratou-o mais como um velho

camarada do que como um escravo. Assim que se viu fora da garrafa, o capeta

pôs-se a dançar e a fazer cabriolas com tanto prazer que o menino ficou com

arrependido por tantos dias ter conservado presa uma criaturinha tão irrequieta e

amiga da liberdade. 253

O garoto investiga, aprende, captura e liberta o saci. E aí começam os

diálogos, entre mestre e discípulo. O primeiro e primoroso diálogo filosófico do

saci com Pedrinho é longo, mas vale cada vírgula, cada ponto e vírgula, cada

ponto final.

E cutucou-a para ver se mexia. A folha, porém, não se mexeu.

250

LOBATO, Monteiro. O Saci. p.232. 251

LOBATO, Monteiro. O Saci. p.204. 252

LOBATO, Monteiro. O Saci. p.206. 253

LOBATO, Monteiro. O Saci. p.211.

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– É folha mesmo, bobinho! – disse o saci dando uma risada. – Inda é muito cedo

para você “ler” a mata. Isto é livro que só nós, que aqui nascemos e vivemos toda

vida, somos capaz de interpretar. Um menino da cidade, como você, entende

tanto da natureza quanto eu de grego.

– Realmente, saci! Estou vendo que aqui na mata sou um perfeito bobinho. Mas

deixe estar que ainda ficarei tão sabido como você.

– Sim, como o tempo e muita observação. Quem observa e estuda acaba sabendo.

Aqui, porém, nós não precisamos estudar. Nascemos sabendo. Temos o instinto

de tudo. Qualquer desses bichinhos que você vê, mal sai dos casulos e já se

mostra espertíssimo, não precisando dos conselhos dos pais. Bem consideradas as

coisas, Pedrinho, parece que não há animal mais estúpido e mais lerdo para

aprender do que o homem, não acha?

O orgulho do menino ofendeu-se com aquela observação. Um miserável saci a

fazer pouco caso do rei dos animais! Era só o que faltava…

– O que você está dizendo – replicou Pedrinho – é tolice pura sem mistura.

O homem é o rei dos animais. Só o homem tem inteligência. Só ele sabe construir

casas de todo jeito, e máquinas, e pontes, e aeroplanos, tudo quanto há. Ah, o

homem! Você não sabe o que é o homem, saci! Era preciso que tivesse lido todos

os livros que li em casa da vovó…

O saci deu uma gargalhada.

– Que gabolice! – exclamou. – Casas? Qual é o bichinho que não constrói

sua casa na perfeição? Veja a das abelhas ou das formigas, ou os casulos.

Poderão existir habitações mais perfeitas? Todos aqui na mata moram. Cada um

inventa o seu jeito de morar. Todos moram. Todos, portanto, têm suas casinhas,

onde ficam muito mais abrigados do que os homens lá nas casas deles. O

caramujo, esse então inventou o sistema de carregar a casa às costas. É o mais

esperto. Vai andando. Assim que o perigo se aproxima, arreia a casa e mete-se

dentro.

– Casa, vá lá. – disse Pedrinho meio convencido. – Mas aeroplano? Que

bichinho daqui seria capaz de construir aviões como nós, homens, os

construímos?

Outra risada do saci.

– Olhe, Pedrinho, você está me saindo tão bobo que até me causa dó. Pois não vê

que o avião é máquina de voar mais atrasada que existe? Aqui os bichinhos de

asas estão de tal modo adiantados que nenhum precisa de mostrengos como o tal

avião. Todos possuem no corpo um aparelho de voar aperfeiçoadíssimo. Não vê

que voam, bobo? Outro dia assisti a uma cena muito interessante: Eu estava perto

duma lagoa cheia de patos quando passou um avião voando por cima de nossas

cabeças. Os patos entreolharam-se e riram-se. Você sabe, Pedrinho, que bicho

estúpido é o pato. Pos mesmo assim um deles disse com muita sabedoria: “Parece

incrível que os homens se gabem de ter inventado uma coisa que nós já usamos

há tantos milhares de anos…”

– Sim, mas nós sabemos ler e vocês não sabem.

– Ler! E para que serve ler? Se o homem é a mais boba de todas as criaturas, de

que adianta saber ler? Ler é um jeito de saber o que os outros pensaram. Mas que

adianta a um bobo saber o que outro bobo pensou?

Era demais aquilo. Pedrinho encheu-se de cólera.

– Não continue, saci! Você está me ofendendo. O homem não é nada do que você

diz. O homem é a glória da natureza.

– Glória da natureza! – exclamou o capetinha com ironia. – Ou está repetindo

como papagaio o que ouviu alguém falar ou então você não raciocina. Inda ontem

ouvi Dona Benta ler, num jornal os horrores da Guerra na Europa. Basta que

entre os homens haja isso que eles chamam Guerra, para que sejam classificados

como as criaturas mais estúpidas que existem. Para que guerra?

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– E vocês aqui não usam guerras também? Não vivem a perseguir e comer uns

aos outros?

– Sim: um comer o outro é a lei da vida. Cada criatura tem o direito de viver e

para isso está autorizada a matar e comer o mais fraco. Mas vocês homens fazem

guerra sem serem movidos pela fome. Matam o inimigo e não o comem. Está

errado. A lei da vida manda que só se mate para comer. Matar por matar é crime.

E só entre os homens existe isso de matar por matar – por esporte, por glória,

com eles dizem. Qual, Pedrinho, não se meta a defender o bicho homem que você

se estrepa. E trate de fazer como o Peter Pan, que embirrou de não crescer para

ficar sempre menino, porque não há nada mais sem graça do que gente grande. Se

todos os meninos fizessem greve como Peter Pan, e nenhum crescesse, a

humanidade endireitaria. A vida lá entre os homens só vale enquanto vocês se

conservam Meninos. Depois que crescem, os homens viram uma calamidade, não

acha? Só os homens grandes fazem guerra. Basta isso. Os meninos apenas

brincam de guerra.

Pedrinho nada respondeu. Estava um tanto abalado pelas estranhas idéias do saci.

Quando voltasse para casa iria consultar Dona Benta para saber se era assim ou

não. 254

A longuíssima citação se justifica, é que vale a inclusão do livro em meu

estudo, pois trata-se do supra sumo da postura radicalmente contraria ao

antropocentrismo. É incrível como o garoto contesta, como o saci,

sucessivamente, vai demolindo cada questionamento seu, com o menino se sente

afrontado, triste, colérico, melancólico, em permanente dúvida.

Para matar o tempo, o saci começou a explicar a Pedrinho o que era a vida na

natureza.

– Você nunca poderá fazer idéia da vida encantada que temos por aqui. – disse

ele.

– Ora, ora! – exclamou o menino. – Não há nada o que os homens não saibam. 255

O duelo das posições no qual cada um quer desmerecer o outro é muito

empolgante, pois remete aos embates dos sofistas e dos demais filósofos nas

ágoras. Cumpre também, destacar o ideia de Pedrinho sobre o cognoscível

estruturado sobre a condição humana. Não há que o homem não saiba é dizer que

só o que existe é o que o homem conhece. O confronto acende uma fagulha tanto

no leitor que talvez nunca tenha se dado conta de tal problemática quanto gera

uma identificação com aquele que já se encontrou sozinho elocubrando acerca do

sentido da vida e quetais. A obra de Lobato, como um todo, valoriza o

conhecimento. E, naturalmente, o conhecimento adquirido pelo suporte livro. É

exemplar, em qualquer artigo, que aborda a importância da leitura em sua obra, o

254

LOBATO, Monteiro. O Saci. p.214-5. 255

LOBATO, Monteiro. O Saci. p.202.

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episódio do livro comestível em A reforma da natureza. Eis porque o trecho

possui uma relevância e uma potência sem par. Escreve Lobato:

Vovó tem lá uma História Natural que conta tudo.

– O saci riu-se e tirou uma baforada do pitinho.

– Tudo? Ah, ah, ah!... Livros como esse não contam nem isca do que é, e estão

cheios de invenções ou erros. Basta dizer que para cada inseto seria preciso um

livro inteiro só para contar alguma coisa da vidinha deles. E quantos insetos

existem? Milhões…

– Em todo o caso – volveu Pedrinho – nós, homens, pomos o que sabemos nos

livros e vocês, sacis, não escrevem coisa nenhuma. Nunca houve livros entre

vocês, e quem não escreve obras não pode ensinar aos filhos o que sabe.

– Não temos livros – disse o saci – porque não precisamos de livros. Nosso

sistema de saber as coisas é diferente. Nós adivinhamos as coisas. Herdamos a

sabedoria de nossos pais, como vocês, homens, herdam propriedade ou dinheiro

Nascer sabendo! Isso é que é bom. Um pernilongo, por exemplo. Sabe como é a

vidinha dele? Nasce na água, saído de um ovinho. Logo que sai do ovinho ainda

não é um pernilongo – é o que vocês chamam de larva – uma espécie de peixinho

que nada e mergulha muito bem. Um dia essa larva cria asas, pernas compridas e

voa. E o que faz quando voa?

– Vai cantar a música do fiun e picar as pessoas que estão dormindo em suas

camas. É isso o que esses malvadinhos fazem.

– Muito bem! – tornou o saci. – E quem ensina o pernilongo a fazer isso?

Os pais? Não, porque depois de soltar os ovos na água os pais dos

pernilonguinhos morrem. Os livros? Não, porque eles não têm livros. Pois apesar

disso sabem tudo quanto precisam saber. Sabem que no corpo das gentes há

sangue, e que o sangue é o alimento deles. Sabem que as gentes moram em casas.

Sabem que a melhor hora de sugar o sangue das gentes é de noite, porque estão

dormindo. E sem que os pais lhes ensinem coisa nenhuma, ou que as aprendam

nos livros, os pernilonguinhos logo que saem da água vão em busca de casas,

entram, escondem-se nos escuros, esperam que todos durmam e sossegadamente

picam as pessoas e enchem de sangue as suas barriguinhas. 256

Note-se a postura do saci, bem mais que condescendente com os

pernilonguinhos do que com o bicho homem, o que, obviamente, é demonstração

do estilo ao reforçar a posição ideológica e filosófica do saci. Do saci, “duende

genuinamente brasileiro”, ou do saci das sobrancelhas em til, do saci de Taubaté?

– Depois escapam pelas janelas e voltam à mata ou outros sítios, em

procura de agüinhas paradas onde porem os ovos. E assim eternamente. Sabem

tudo direitinho. E ninguém os ensina. Logo, eles têm a ciência de tudo dentro de

si mesmos, como vocês têm tripas e estômago e pacuera.

Pedrinho teve de concordar que era assim mesmo. O saci continuou:

– E como fazem os pernilongos, assim também fazem todas as outras

vidinhas aqui da floresta. Cada qual nasce sabendo fazer o certo – e não erram.

Os grilos nascem sabendo abrir buracos. Há um inseto chamado bombardeiro. Se

outro maior o ataca, vira-se de costas e lança-lhe no foinho um líquido que se

256

LOBATO, Monteiro. O Saci. p.202.

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evapora imediatamente e tonteia o inimigo. Quando este volta a si, o bombardeiro

já está longe. Quem o ensina a fazer isso? Ninguém. Nasce sabendo. Certos

besouros, quando querem pôr ovos, fazem o seguinte: pegam uma pequena

quantidade de esterco e a vão rolando pelo chão com as patas de trás. Para quê?

Para formar uma bola. Quando o esterco está uma bola bem redondinha, eles a

furam e botam lá dentro os ovos. Quem ensina esses besouros a fazer essas bolas

tão redondinhas? Os pais? Não! Algum livro? Não! Eles nascem sabendo.

– Sim. – disse Pedrinho. – Nascem sabendo e nós temos de aprender com

os nossos pais ou nos livros. Isso só prova o nosso valor. Que mérito há em

nascer sabendo? Nenhum. Mas há muito mérito em não saber e aprender pelo

estudo.

– Perfeitamente – concordou o saci. – Não nego o mérito do esforço dos

homens. O que digo é que eles são seres atrasadíssimos – tão atrasados que ainda

precisam por si mesmos. E nós somos seres aperfeiçoadíssimos porque já não

precisamos aprender coisa nenhuma. Já nascemos sabidos. Que é que você

preferia: ter nascido já comcom a ciência da vida lá dentro ou ter de ir

aprendendo tudo com o maior esforço e à custa de muitos erros?

O menino foi obrigado a concordar que o mais cômodo seria nascer sabendo.

– Sim, nesse ponto você tem razão, saci. Mas que é que faz todas essas

vidinhas viverem? Está aí uma coisa que minha cabeça não compreende.

– Ah, isso é o segredo dos segredos! – respondeu o saci. – Nem nós

sabemos. Mas o que acontece é o seguinte: dentro de cada criatura, bichinho ou

plantinha, há uma força que empurra para a frente. Esta força é a Vida. Empurra e

diz no ouvido das criaturinhas o que elas devem fazer. A vida é uma fada

invisível. É ela que faz o pernilongo ir picar as pessoas nas casas de noite; e que

manda o grilo abrir buraco; e que ensina o bombardeiro a bombardear seus

atacantes.

– Mas é invisível até para vocês, sacis, que enxergam mais coisas do que

nós homens?

– Sim. Eu que enxergo tudo nunca pude ver a fada Vida. Só vejo os efeitos

dela. Quando um passarinho voa, eu vejo o vôo do passarinho, mas não vejo a

fada dentro dele a empurrá-lo. 257

Comentário quase que desnecessário, resultado das minhas cicatrizes do

passado de bacharel em genética: obviamente que os defensores da taxonomia

evolutiva estrilarão e pedirão a palavra, justificando que o bombadeiro nem

possui a consciência de que precisa fazer isso e ademais que a propria posição do

saci (que antropomorfiza a etologia) é contraditória para quem está criticando a

espécie humana. Mas o que sei e o que quero é focar exatamente no desvio do que

está estabelecido. Puxar o fio que mostra que o que está em discussão é o excerto

ao expor uma questão, fazendo com que o leitor passe refletir sobre tudo aquilo o

que antes poderia pensar que estava definitivamente estabelecido desde sempre.

Tácito e atávico.

257

LOBATO, Monteiro. O Saci. p.202.

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Em sequência, dois momentos do enredo que trazem à baila a

problemática existencial. Vida e Morte. A mordacidade do saci em chamar o

menino de nove anos de futuro “caco velho” é, para mim, um clássico.

– Então ela deve ser como a gasolina dos automóveis. Sem gasolina os

carros não andam.

– Perfeitamente – concordou o saci – mas com uma diferença: nos

automóveis a gente vê e cheira a gasolina, mas a Gasolina-Vida ninguém ainda

conseguiu ver nem cheirar.

– E morrer? Que é morrer? A Vida então acaba, como a gasolina do

automóvel?

– A Vida muda-se de um ser para outro. Quando o ser já está muito velho e

escangalhado, a Vida acha que não vale mais a pena continuar lidando com ele e

abandona-o. Vai movimentar um novo ser. A fada invisível diverte-se com isso.

Pedrinho ficou muito impressionado. A fada invisível também morava dentro

dele, e o empurrava para a frente. Era quem o fazia ter fome, ter sede e beber, ter

sono e dormir, querer coisas e procurá-las. Mas um dia essa boa fada enjoar-se-ia

dele. Por quê? Porque ele já estaria de cabelos brancos e sem os dentes naturais, e

com reumatismo nas juntas, e catacego e com a pele toda enrugada, e com o

coração tão fraco que até subir a escadinha da varanda seria uma proeza. E então

a fada torceria o nariz e enjoar-se-ia dele: – “Sabe que mais, Senhor Pedrinho?

Você está um caco velho e eu não gosto disso. Vou procurar outro ente. – e

abandoná-lo-ia e ele então morreria.

Essa idéia entristeceu Pedrinho, porque a idéia que não entristece ninguém é bem

outra: é a idéia de não morrer nunca, nunca…

Conversou a respeito com o saci.

– Ora, ora! disse este. – O que morre é o corpo só, a parte que em nós tem menos

importância. A grande coisa que há em nós, e nos diferencia das pedras e dos

paus podres, que é? A Vida. E essa não morre nunca – muda-se de um ser para

outro. Tal qual a eletricidade. Quando a pequena bateria daquela lâmpada elétrica

que você tem descarrega, a bateria morre – mas morreu a eletricidade? Não.

Apenas mudou-se. Saiu daquela bateria e foi para outra, ou foi para as nuvens, ou

foi para onde quis. Assim como a eletricidade não morre, a Vida também não

morre.

– Mas eu não queria que fosse assim – lamentou Pedrinho. – Tenho dó do meu

corpo. Estas mãos, por exemplo, disse ele abrindo-as. Estou tão acostumado com

elas… Desde pequinininho (sic) que estas mãos fazem tudo o que eu quero, e fico

triste de lembrar que um dia vão ficar paradas, mortas…

– Pior do que perder as mãos é perder os olhos – disse o saci. – Já reparou

como é triste não ter olhos, ou tê-los e não ver nada? Feche os olhos bem

fechados.

Pedrinho fechou-os bem fechados. O saci disse:

– Pois quando a fada invisível abandonar seu corpo, Pedrinho, seus olhos vão

ficar assim, cegos – como se não existissem. E nunca mais esses olhos, que hoje

vêem tanta coisa, verão coisa nenhuma. Nunca mais, nunca mais.

Pedrinho sentiu uma tristeza tão grande que quase chorou – mas o saci deu uma

grande risada.

– Bobo! O que nesses seus olhos enxerga, não são os olhos: é a fada invisível que

há dentro de você. A fada é como o astrônomo no telescópio; e os olhos são

como o telescópio do astrônomo. Qual é o mais importante: o telescópio ou o

astrônomo?

– É o astrônomo – disse Pedrinho.

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– Pois então alegre-se, porque o astrônomo não morre nunca. O telescópio

é que se desarranja e quebra…

Longamente filosofaram os dois, lá debaixo da grande peroba que os abrigava do

sereno da noite. 258

Não obstante a discussão entre narrador e autor, é impossivel dissociar

certos modos e posturas no estilo do autor que se espelham no grid da narrativa. A

coragem de Lobato em colocar a morte assim, para as crianças, é de um teor

inovativo (recordando que o livro é de 1921, caminha para seu centenário). Em

Reinações de Narizinho, o Visconde morre. Mas o Visconde é “morrível”, pode

ser recosntruído infindas vezes. Não é uma morte definitiva. Agora em O Saci, é

uma discussão teórica de uma questão filosófica, com Pedrinho tendo consciência

da morte, da inexorabilidade do tempo, da finitude do corpo (com o qual, apesar

de jovem, já estabeleceu uma relação de afeto e posse, vide a passagem das mãos)

e em A Chave do Tamanho, ele explicita, com o gato que come e não há deus ex

machina para salvar ninguem, para edulcorar nada, apenas por se tratar de

narrativa para crianças. As crianças que morrem, morrem. Sem possibilidade para

a fantasia ressuscitar ninguém.

5.4.2 Memórias da Emília

Lobato foi, muitas vezes e por vários motivos, um inovador. Memórias de

Emília tem como tema, um assunto até então inédito na literatura para crianças: o

processo literário de um romance memorialista de uma personagem. O recurso

metalingüístico é usado com primor, não descartando nunca o humor e a fantasia

que beira o nonsense. Crítico e criativo, como costumava ser o estilo de Lobato, é

também o encaminhamento de Emília, repetidamente chamada de seu alter-ego. O

texto é de alto valor literário, por certo, já que muitas vezes reescreve os

acontecimentos ocorridos nos demais textos do universo do Picapau Amarelo.

Convoca o leitor a ter um posicionamento crítico, mesmo aquele que não conhece

258

LOBATO, Monteiro. O Saci. p.202.

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o “ocorrido”. Ou seja, a construção do texto é hábil de tal forma que, mesmo

aqueles que leram as narrativas anteriores às quais a boneca faz alusão em suas

recreações de recriação, serão instados a raciocinar em profundidade.

Comecemos com um trecho de elevada octanagem filosófica. Emília e

Dona Benta entabulam uma discussão sobre a verdade, no momento em que

Emília anuncia que vai escrever suas memórias. Em outros textos como em A

Reforma da Natureza, ou A Chave do Tamanho, Emília chega a apresentar

características mais científicas, e agora, traços mais filosóficos. Dona Benta

estranha a postura de Emília, mas posteriormente admite que a boneca possui

laivos de filósofa.

— [Emília] Será a única mentira das minhas Memórias. Tudo mais verdade pura,

da dura — ali na batata, como diz Pedrinho.

Dona Benta sorriu.

— Verdade pura! Nada mais difícil do que verdade, Emília.

— Bem sei — disse a boneca. Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e

sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve

memórias arrumas as coisas do jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéia do

escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor

fica vendo um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha,

para dar idéia de que está falando a verdade pura.

Dona Benta espantou-se de que uma simples bonequinha de pano andasse com

idéias tão filosóficas.

— Acho graça nisso de você falar em verdade e mentira como se realmente

soubesse o que é uma coisa e outra. Até Jesus Cristo não teve ânimo de dizer o

que era a verdade. Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou: ‘Que é a verdade?’

ele, que era Cristo, achou melhor calar-se. Não deu resposta.

— Pois eu sei! — gritou Emília. Verdade é uma espécie de mentira bem pregada,

das que ninguém desconfia. Só isso. 259

Como observamos, a Condessa das Três Estrelinhas discute com Dona

Benta uma questão filosófica de alto nível, pertencente à área da Ética: O que é a

verdade? A mentira seria tão-somente a ausência de verdade ou seria o seu

reverso, a não-verdade? Assunto que poderia ser alongado e que é levado aos

leitores de forma agradável e estimulante. O trecho citado acima, intensamente

filosófico, logo de início já mostra qual será a faceta de Emília que pautará este

livro da Saga do Picapau Amarelo. Visconde, por sua vez, faz sua primeira

aparição de forma característica.

259

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.

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— Minha idéia — disse o Visconde — é que comece como quase todos os livros

de memórias começam — contando quem está escrevendo, quando esse quem

nasceu, em que cidade etc. As aventuras de Robinson Crusoe, por exemplo,

começam assim: "Nasci no ano de 1632, na cidade de Iorque, filho de gente

arranjada etc."

— Ótimo! — exclamou Emília. Serve. Escreva: Nasci no ano... (três estrelinhas),

na cidade de (três estrelinhas), filha de gente desarranjada. 260

A idéia de Visconde é seguir a tradição literária, de maneira ortodoxa e

canônica, informando ao leitor dados relevantes do autor (ou personagem) que

está sendo lido. E o milho exemplifica com um clássico. Emília subverte o estilo

memorialista, distorcendo o discurso, carnavalizando-o, ocultando local e data de

nascimento.

Na passagem imediatamente anterior à citação abaixo, temos Emília

contando o episódio em que começou a falar e afirma que ficou um pouco acima

do nível. A boneca segue por uma digressão que define, de maneira emiliana, o

que é ser filósofo, o que é a vida... O ineditismo do trecho (em uma perspectiva

historiográfica da literatura infantil brasileria, quiçá mundial) certamente justifica

a sua inclusão integral.

— Tenha paciência, Emília — disse o Visconde. Ficou muito acima do nível,

porque a verdade é que você ainda hoje fala mais do que qualquer mulherzinha.

— Mas não falo pelos cotovelos, como elas. Só pela boca. E falo bem. Sei dizer

coisas engraçadas e até filosóficas. Inda há pouco Dona Benta declarou que eu

tenho coisas de verdadeiro filósofo. Sabe o que é filósofo, Visconde?

O Visconde sabia, mas fingiu não saber. A boneca explicou:

— É um bicho sujinho, caspento, que diz coisas elevadas que os outros julgam

que

entendem e ficam de olho parado, pensando, pensando. Cada vez que digo uma

coisa filosófica, o olho de Dona Benta e ela pensa, pensa...

— Ficam pensando o quê, Emília?

— Pensando que entenderam.

O Visconde enrugou a testinha e quedou-se uns instantes de olho parado,

pensando, pensando. Aquela explicação era positivamente filosófica.

— E como sou filósofa — continuou Emília — quero que minhas memórias

comecem com a minha filosofia de vida.

— Cuidado, Marquesa! Mil sábios já tentaram explicar a vida e se estreparam.

— Pois eu não me estreparei. A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A

gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu.

Piscar é abrir e fechar os olhos — viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-

acorda, até que dorme e não acorda mais. É portanto um pisca-pisca.

O Visconde ficou novamente pensativo, de olhos no teto.

Emília riu-se.

260

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.

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— Está vendo como é filosófica a minha idéia? O Senhor Visconde já está de

olhos parados, erguidos para o forro. Quer dizer que pensa que entendeu... A vida

das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada

pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e

ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última

vez e morre.

— E depois que morre? — perguntou o Visconde.

— Depois que morre vira hipótese. É ou não é?

O Visconde teve de concordar que era.261

Reafirmamos que a extensão do trecho citado é incomum, entretanto,

possuímos nossas razões. Em toda a obra infantil de Lobato, não há outro

momento em que a fala de Emília seja tão complexa. Como vimos, o livro O Saci

também possui passagem de intenso e marcante calibre reflexivo. O lado

filosófico nunca eclodiu com tamanha força. Seria de se esperar que toda esta

digressão filosófica estivesse na boca do senhor sabugo, eminente sábio do sítio.

Porém não é o que ocorre. É a desmesurada boneca que assume uma postura

filosófica, que curiosamente não podem ser classificadas como oriundas da

célebre “torneira de asneiras”, por serem muito concatenadas e dignas de reflexão

“de olho parado”. Emília se autodefine como filósofa

— Escute, Visconde — disse ela. Tenho coisas muito importantes a conversar

com Quindim. Fique escrevendo. Vá escrevendo. Faça de conta que estou

ditando. Conte as cosas que aconteceram no sítio e ainda não estão nos livros.

— A história do anjinho de asa quebrada serve? — indagou o Visconde.262

Muitas vezes, não apenas Visconde ou Emília apresentam uma inclinação

para o racionalismo. A curiosidade natural da infância assume ares de protocolo,

denotando a presença do método científico no Sítio. “— Ninguém queria saber de

outra coisa senão ver, cheirar, apalpar, conversar com o anjinho.”263

[grifos

nossos]. Investigação cientifica ou a doutrina das sensações. Reflexão a partir do

sensível para atingir o cognoscível. Todos no Sítio estão extasiados com a

novidade que é o anjinho. A curiosidade intensa faz com que o Sítio de Dona

Benta seja uma autêntica comunidade de investigação, usando o método

científico, como se estivessem avaliando um mero fenômeno físico, químico ou

biológico.

261

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 262

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.

263 LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.

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Observemos no trecho, a boneca:

Uma criatura do céu não pode saber nada das coisas da terra, de modo que o

anjinho se mostrou duma ignorância absoluta de tudo quanto aqui por baixo a

gente sabe até de cor. Teve de ir aprendendo com Emília, a professora. 264

— (...) [Emília] Sabem que a professora do anjinho sou eu? Eu, sim!... Tenho-lhe

ensinado mil coisas. Pergunte-lhe, por exemplo, o que é flor.”

— Flor — respondeu ele — é um sonho colorido e cheiroso, que com as raízes as

plantas tiram do escuro da terra e abrem no ar. Foi como Emília me ensinou.

Todos se admiraram da poesia daquela definição (...)

Voltando no texto e a uma descrição da relação entre o Anjinho e a

boneca. Discípulo e mestra que não se entendiam tão bem assim...

Quem ficava atrapalhado era o Anjinho. Emília tinha um modo desnorteante de

pensar. Assim, por exemplo, as suas célebres ‘asneirinhas’. Muitas vezes não

eram asneiras — eram modos diferente de encarar as coisas, como quando

explicou ao anjinho o caso das frutas do pomar.

Emília possui um modo desnorteante de pensar. Ao ser diferenciada, suas

opiniões traduzem uma forma distinta de ver, de perceber as coisas. A consciência

está presente todo o tempo, ainda que aparentemente ela fale os maiores

disparates. O modo desnorteante de pensar é o que dá uma outra significação para

o ente “flor”. Todos se admiram com a poesia da definição. O espanto é um sinal

de que a fantasia não é o que se espera, mas o filósofo é aquele que se espanta

com o impacto cotidiano.

— Ela está monopolizando o anjo, vovó! — queixava-se a menina. Não o larga,

atropela o dia inteiro o coitadinho com as tais filosofias da vida. Eu, se fosse a

senhora, tomava o anjinho dela.

Mas Dona Benta achava graça naquilo e ia deixando. 265

É mais uma passagem que salienta o lado filosófico da espevitada boneca,

as tais filosofias de vida. Mesmo que Emília apresente tons inspirados por Apolo,

seu comportamento é sempre distinto do sabugo. Ainda que Visconde ofereça

uma certa resistência a ser transformado em anjo, as crianças terminam por

conseguir seu objetivo. Ele sempre aceita as peripécias da menina, da boneca e do

garoto, é obedientíssimo! Não é da natureza do sabugo se indispor com quem quer

264

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.

265 LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.

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que seja, ele está sempre a agir de acordo com a ordem estabelecida. No caso, a

ordem é bem bizarra — passar por anjo para uma multidão de crianças ansiosas e

convencê-las — e daí o seu estranhamento. Quase sempre, Visconde segue a

corrente, não transgride, não ultrapassa obstáculos. Fosse Emília, teria enfrentado

e não arredaria o pé, fazendo algo com o que não concorda. É ele quem comenta.

— Depressa, Emília! — gritou o menino.

— Ele está resistindo — respondeu de longe a boneca. Diz que não tem vocação

para ser anjo...

— Traga-o à força! Depressa! Não há tempo a perder.

Emília puxou-me pelo braço e eles me agarraram, me enfiaram na camisola, me

pregaram as asas e polvilharam tudo com uma nuvem de farinha de trigo. Fiquei

um anjo esquisitíssimo — mas anjo.266

Dando prosseguimento ao episódio do anjo de araque, a fim de marcar

mais uma passagem de inspiração da boneca, diz-nos Lobato

— Quê? — berrou de repente uma menina. Anjo de cartola? Onde já se viu isso?

De fato. Na pressa da arrumação os meninos esqueceram-se de tirar da minha

cabeça a célebre cartolinha, de modo que lá estava o anjo de cartola na cabeça,

muito branca, porque também fôra polvilhada de farinha de trigo.

Emília salvou a situação. Trepando no caixãozinho, pediu silêncio e disse:

— Vou explicar o motivo da cartola. Dona Benta nos contou que a cartola é uma

invenção inglesa; daí a nossa idéia de botar uma cartolinha na cabeça dele como

homenagem às crianças inglesas que o vinham visitar.

Os inglesinhos entreolharam-se. A explicação era boa. Mas continuaram a

estranhar o anjo.

— Os que conheço dos livros de figura — disse um — são muito mais bonitos.

São gordinhos. Esse é magro como um bacalhau.

Emília explicou:

— É que andou doente. O pobrezinho quebrou a asa num tombo que deu lá nas

estrelas. Está sarando; logo fica gorducho como antes. Não notam que está com a

asa esquerda caída? Quebrou-a bem no encontro. Tia Nastácia já botou cola-tudo.

— Mas a cara dele não é de anjo — observou outra criança. Parece cara feita com

faca. Verdadeira cara de pau.

— É da doença — insistiu Emília. Vocês que não tem asas não imaginam como

quebradura de asa esquerda desfigura um pobre anjo...

Apesar das belas explicações as crianças inglesas continuavam de nariz torcido.

Não conseguiam engolir aquele anjo tão feio.267

Com muita perspicácia e seu raciocínio rápido, Emília tenta ocultar que o

anjo não passa de um engodo. Levando-se se em conta a distância entre o

266

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 267

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.

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esperado (o verdadeiro anjinho) e o obtido (o Visconde travestido de anjo), até

que a marquesa saiu-se muito bem. Rainha da argumentação lógica, quando

possui para tudo uma resposta (desculpa?), Emília deixa transparecer todo o seu

racionalismo. Deixa transparecer seu poder de fogo criativo, simultaneamente.

Emília é um primoroso exemplo de modo de compreensão filosofantástico.

Encanto crítico. Atender às demandas da compreensão bebendo da fonte do

inconcebível para, com sensibilidade estética (encanto = fantasia), perscrutar com

lâmina teórica (crítico = filosofia). Atentemos para um trecho mais adiante, ainda

no episódio do pseudo-anjo, quando a falcatrua é desvelada e Emília vai de

racional a passional em pouquíssimo tempo, saindo em defesa do sabugo:

— Sim, sou Peter Pan, e já sei de tudo. Esse é anjo é falso — é o tal Visconde

disfarçado em anjo. O anjinho verdadeiro está escondido em qualquer parte.

(...)

— [Peter Pan] (...) Fizemos uma viagem longuíssima, por ordem do Rei, para

visitar o anjinho, e ao chegarmos vocês nos impingem um macaco de sabugo!

(...)

— Macaco de sabugo dobre a língua! — gritou Emília. O Visconde é um

verdadeiro sábio, estimadíssimo de todos daqui, até de Dona Benta. Retire o

macaco!... 268

Aqui, temos o reverso do que usualmente acontece nas aventuras do

Picapau Amarelo. Emília vive menosprezando e desmerecendo o sabugo,

destratando-o repetidamente. Não admite, contudo, que o façam, ou melhor, que o

façam em seu lugar. Quando Peter Pan desacata o Visconde, a boneca parece

acometida da mannia (mannia = loucura divina sagrada) de Dioniso, que irrompe

do inconsciente, agindo de forma desenfreadamente passional.

Como já dito anteriormente, o Sítio do Picapau Amarelo é uma espécie de

comunidade de investigação, conceito do filósofo americano Matthew Lipman. É

uma espécie de ágora tupiniquim, onde todos se reúnem para conversar, aprender

e travar discussões filosóficas. Os serões de Dona Benta — não apenas o livro

com este título, mas os encontros desse tipo que permeiam toda a obra lobatiana

— explicitam isso. De maneira natural, o texto de Lobato estimula o pensamento

crítico-filosófico no leitor. E, além disso, aqui e ali, instiga o leitor a ser

independente e verificar se as dicas fornecidas nas pílulas de referências

filosóficas lhe apetecem. Em nosso estudo, podemos citar como exemplo o

268

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.

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episódio narrado no qual Dona Benta e o Almirante Brown — inglês que veio

trazer as crianças para verem o anjo —, conversam sobre o Burro Falante.

— Dona Benta gozou o atrapalhamento do inglês.

— Foi o que sucedeu no começo, Almirante. Fiquei também atrapalhada, sem

saber o que pensar. Depois fui me acostumando. Hoje acho tão natural que esse

burro fale, como acho natural que uma laranjeira produza laranjas. Todas as

tardes chego até aqui para dois dedos de prosa. Além de falante o nosso

Conselheiro é um puro filósofo.

— De que escola?

— Um filósofo estóico. Costumo ler-lhe trechos das "Meditações" de Marco

Aurélio. Os comentários que ela faz mereciam ser escritos e publicados. 269

Lançando de uma intensa intertextualidade que mescla linguagens (p.ex.,

literatura e cinema), presente em toda a sua obra (alguns exemplos de maior

destaque são aqui analisados Reinações de Narizinho, Memórias da Emília e O

Picapau Amarelo), Lobato traz o Capitão Gancho e Popeye para o Sítio. Ambos

querem capturar o anjinho. As crianças decidem enfrentar Popeye — que já havia

derrotado o Capitão Gancho —, mesmo sabendo que é uma loucura. Emília, após

desvendar o segredo de Popeye (quanto tempo dura o efeito do espinafre que lhe

confere a força), sugere a Pedrinho que ele e Peter Pan ataquem Popeye. A

princípio, Pedrinho, ignorando o trunfo da boneca, acha uma loucura, uma idéia

absurda. Mas depois rende-se ao brilhantismo da Marquesa de Rabicó:

Emília agarrou Pedrinho, fê-lo abaixar e cochichou-lhe qualquer coisa ao ouvido.

A cara do menino expandiu-se.

— Ahn! — exclamou. Se é assim, então já não está mais aqui quem falou. Tudo

muda de figura. Que idéia excelente, Emília! A melhor idéia que você teve em

toda a sua vida... 270

A passagem enfatiza a sagacidade de Emília, verdadeira usina de idéias.

Curioso notar que a Razão é valorizada como uma qualidade extremamente

desejável. O excerto seguinte vai na mesma linha, enaltecendo a astúcia de

Emília. O objetivo da boneca é a lata de espinafre que está dentro da figueira,

árvore na qual Popeye está encostado. Engendra, então, um truque.

269

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 270

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.

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Mas para subir à figueira era preciso empregar a astúcia e Emília empregou a

astúcia.

— Senhor Popeye — disse ela com um arzinho de santa que sabia fazer nas

ocasiões graves, sabe que esta figueira dá uns figuinhos muito gostosos? Os

sanhaços e morcegos regalam-se... 271

No décimo capítulo de Memórias de Emília, o momento intitulado

“Diálogo entre a boneca e o milho. A esperteza de Emília e a resignação do

Milho” é luminar, dispensando comentários adicionais:

Está bem — disse ela. Minhas Memórias vão a galope. Quero provar ao mundo

que faço de tudo — que sei brincar, que sei aritmética, que escrever memórias...

— Sabe escrever memórias, Emília? — respondeu o Visconde ironicamente.

Então isso de escrever memórias com a mão e a cabeça dos outros é saber

escrever memórias?

— Perfeitamente, Visconde! Isso é que é o importante. Fazer coisas com a mão

dos outros, ganhar dinheiro com o trabalho dos outros, pegar nome e fama com a

cabeça dos outros: isso é que saber fazer as coisas. Ganhar dinheiro com o

trabalho da gente, ganhar nome e fama com o nome da gente é não saber fazer as

coisas. Olhe, Visconde, eu estou no mundo há pouco tempo, mas já aprendi a

viver. Aprendi o grande segredo da vida dos homens na terra: a esperteza! Ser

esperto é tudo. O mundo é dos espertos. Se eu tivesse um filhinho, dava-lhe um

só conselho: "Seja esperto, meu filho!"

— E como lhe explicava o que é ser esperto? — indagou o Visconde.

— Muito simplesmente. — respondeu a boneca. Citando o meu exemplo e o

seu, Visconde. Quem é que fez a “Aritmética”? Você. Quem ganhou nome e

fama? Eu. Quem é que está escrevendo as Memórias? Você. Quem vai ganhar

nome e fama? Eu...

O Visconde achou que aquilo estava certo mas era um grande desaforo.

— E se eu me recusar a escrever? Se eu deixar as Memórias neste ponto, que é

que acontece?

Emília deu uma grande risada.

— Bôbo! Se fizer isso, pensa que me aperto? Corro lá com Quindim e êle me

acaba o livro. Bem sabe que Quindim me obedece em tudo, cegamente. É inútil,

Visconde, lutar contra os espertos. Êles acabam vencendo sempre. Por isso

abaixe a crista e continue... 272

271

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 272

LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília.

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5.4.3 O Picapau Amarelo

O leitor indubitavelmente notará que, pela extensão e pela abrangência, e também

pelo fato de se tratar de material recente, Monteiro Lobato, livro a livro: obra infantil 273

vem se configurando como uma referência bibliográfica recorrente no presente texto. À

luz dos estudos lobatianos, vem se aproximando de se tornar uma obra de referência, a

despeito de alguns poucos artigos erráticos ou excessivamente contidos. No artigo da

pesquisadora Mariana Baldo Gênova sobre o livro O Picapau Amarelo, ela – felizmente –

enfatiza o real e o fantástico presentes no livro. O subtítulo – Um mundo de verdade e de

mentira – é a pista oculta que ela explora. Concordo com Gênova, em parte. Quando

afirma que Lobato consegue a perfeita articulação entre conteúdo crítico e fantasia, a

pesquisadora é percuciente e sagaz, vai ao cerne do problema. Apenas complementaria

afirmando que, para mim, a fantasia é o conteúdo critico, é o próprio conteúdo crítico.

Sim, o radar Lobato tratava das suas causas ideológicas, políticas e éticas, dentre outras,

em seus livros. E o fazia de forma militante? Não. E muito menos comprometeu a

literariedade dos seus textos. Trafega no gume sutil da faca que possui como uma das

faces da lâmina de leitura de mundo, a crítica, e como outra, a criação.

Mesclando realidade e fantasia, Lobato tematiza, nas suas obras para crianças,

seus pensamentos sobre diferentes questões políticas, seus ideais, suas causas,

seu inconformismo. Enquanto o militante Lobato lutava por causas que

objetivavam o desenvolvimento do Brasil, o escritor apostava nos textos infantis

como meio para formar crianças críticas, independentes e conscientes de seu

papel na sociedade. 274

Filosoficamente, Dona Benta e seus netos tergiversam aproximando certos

temas como Justiça, Bondade das criaturas fabulosas como gigantes, anões, fadas

e sacis. O Mundo da Fábula existe, com todos os seus personagens (que são

elencados de forma aparentemente exaustiva, mas demonstra uma posição

abrangente que pode inclusive ter a função de ampliar o repertório ao apresentar

personagens de várias épocas da literatura, não apenas de contos de fadas, mas até

mesmo Dom Quixote, figura pela qual Lobato, obviamente, tinha imenso apreço,

273

LAJOLO, Marisa & CECCANTINI, João Luís. (Orgs.). Monteiro Lobato, livro a livro: obra

infantil. Imprensa Oficial / Editora UNESP, 2008.) 274

GÊNOVA, Mariana Baldo de. “O picapau amarelo: o espaço ideal e a obra-prima”. in:

LAJOLO, Marisa & CECCANTINI, João Luís. (Orgs.). Monteiro Lobato, livro a livro: obra

infantil. Imprensa Oficial / Editora UNESP, 2008.) p .410

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como se pode verificar em Dom Quixote das Crianças). Tal existência é

demonstrada e aceita, de forma cabal, materializada, palpável. Dona Benta diz:

tanto existe que tenho uma carta.

O Sítio de Dona Benta foi se tornando famoso tanto no mundo de verdade como

no chamado no Mundo de Mentira. O Mundo de Mentira, ou Mundo da Fábula, é

como gente grande costuma chamar a terra e as coisas do País das Maravilhas, lá

onde moram os anões e os gigantes, as fadas e os sacis, os piratas como o Capitão

Gancho e os anjinhos como Flor das Alturas. Mas o Mundo da Fábula não é

realmente nenhum mundo de mentira, pois o que existe na imaginação de

milhões e milhões de crianças é tão real como as páginas deste livro. O que se dá

é que as crianças logo que se transformam em gente grande fingem não mais

acreditar no que acreditavam.

Só acredito no que vejo com meus olhos, cheiro com o meu nariz, pego com

minhas mãos ou provo com a ponta da minha língua, dizem os adultos –mas não

é verdade. Eles acreditam em mil coisas que seus olhos não vêem, nem o nariz

cheira, nem os ouvidos ouvem, nem as mãos pegam.

– Deus, por exemplo – disse Narizinho. – Todos crêem em Deus e ninguém

anda a pegá-lo, cheirá-lo, apalpá-lo.

– Exatamente. E ainda acreditam na Justiça, na Civilização, na Bondade –

em mil coisas invisíveis, incheiráveis, impegáveis, sem som e sem gosto. De

modo que se as coisas do Mundo da Fábula não existem, então também não

existem nem Deus, nem a Justiça, nem a Bondade, nem a Civilização – nem

todas as coisas abstratas.

– Eu sei o que quer dizer “abstrato – É tudo quanto a gente não vê, nem

cheira, nem ouve, nem prova, nem pega – mas sente que há.

– Muito bem. Logo, o Mundo da Fábula existe, com todos os seus

maravilhosos personagens.

– E tanto existe – declarou Dona Benta – que tenho aqui uma carta muito

interessante, recebida hoje.”

– É de mamãe, já sei! – murmurou Pedrinho, aborrecido, com medo que

fosse carta de Dona Antonica chamando-o para a cidade.

– Errou, meu filho. A cartinha que recebi foi do Pequeno Polegar. 275

As condições foram aceitas e passada uma semana começou a mudança dos

personagens do Mundo da Fábula para as Terras Novas de Dona Benta. O

Pequeno Polegar veio puxando a fila. Logo depois, Branca de Neve com seus

sete anões. E as Princesas Rosa Branca e Rosa Vermelha. E o Príncipe Codadade,

com Aladino, Xarazada, os gênios e o pessoal todo das “Mil e Uma Noites.” E

veio a Menina da Capinha Vermelha. E veio a Gata Borralheira. E vieram Peter

Pan com os Meninos perdidos do “País do Nunca”, mais o crocodilo atrás e todos

os piratas; e a famosa Alice do “País das Maravilhas”; e o Senhor de La Fontaine

em companhia de Esopo, acompanhados de todas as suas fábulas; e Barba Azul

com o facão de matar mulher; e o Barão de Munchausen com as suas famosas

espingardas de pederneira; e os personagens todos dos contos de Andersen e

Grimm. Também veio D. Quixote, acompanhado de Rocinante e do gordo

escudeiro Sancho Pança.276

275

LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 787. 276

LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 792.

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Na primeira das citações abaixo, com sua pena ferina, Lobato põe na fala

da iconoclasta Emília sua ácida crítica à tradição literária em contraponto à

produção cultural para crianças que despontava na forma dos primeiros filmes de

longa-metragem dos estúdios de Walt Disney. Para muitos, o trecho seguinte se

caracteriza como contraditório ou no mínimo, paradoxal. Não no meu entender.

Lobato, ao elogiar Disney e também a Grécia, com uma das mais criativas

definições da cultura helênica – a Grécia foi a verdadeira juventude da

Imaginação Humana – se afina com o modernismo e, vai mais ainda longe,

trazendo para a contemporaneidade, a reflexão do que é cânone e da possibilidade

da convivência de posições estéticas contrárias. Ante o estigma de conservador,

Lobato se encanta com o cinema, que teria uma força e um impacto equivalentes à

discussão do livro eletrônico como trampolim ou cadafalso para a leitura e a

literatura.

– Quem é esse Disney?

– Oh, um gênio! – berrou Emília. – O maior gênio moderno – maior que

Shakespeare, que Dante, que Homero todos estes cacetões que a humanidade

tanto admira. Faz desenhos animados, mas com uma graça de a gente chorar de

gosto. A fita de você, Branca, é o suco dos sucos!277

Ah, a Grécia foi a verdadeira juventude da Imaginação Humana. Depois da

Grécia essa imaginação foi ficando adulta e graça – lerda. Nunca mais teve o

poder de criar maravilhas verdadeiramente maravilhosas 278

Dona Benta respondeu:

– Os gregos, minha filha, sabiam por palpite todas as coisas que os modernos

sabem por experiência; isto é, sabiam sem certeza – adivinhavam. Foram os

adivinhadores do mundo. As nossas certezas modernas baseiam-se na

experiência. As certezas dos gregos baseavam-se na intuição, isto é, numa

espécie de adivinhação. Não há teoria moderna que não esteja esboçada na obra

dum antigo sábio grego.279

Cabe ressalvar também, o fundamental resgate da intuição, filiada nos

pensadores originários, tipo de pensamento contrário à tradição judaico-cristã,

que, por sua vez, vai se agigantar, após a clivagem platônica-aristotélica.

Obviamente tal posição de valorização – “não há teoria moderna que não esteja

esboçada” – denota a grecofilia, um dos pontos de convergência entre a filosofia

277

LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 804. 278

LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 809. 279

LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 813.

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de Lobato e o pensamento nietzschiano, conforme discuti em minha dissertação

de mestrado, anteriormente citada.

O livro O Picapau Amarelo é a explicitação de um libelo à imaginação, à

intuição, à fantasia. Se O Saci é a cunha que vai trincar o antropocentrismo e,

consequentemente, a Razão humana, O Picapau Amarelo é um quase manifesto

em defesa do lugar da imaginação no rol das atividades humanas, é a sua

valorização como meio de obtenção de conhecimento. Lobato intercala,

habilmente, momentos nos quais discorre sobre tal reflexão com passagens que

trazem esteticamente trabalhadas. É o faz de conta emiliano que traz as soluções.

É a imaginação apontando caminhos, a fantasia fornecendo a fagulha quando nem

mesmo a força para extrair ideias consegue ser exitosa, conforme se lê abaixo:

A atrapalhação foi tanta que Emília teve de largar do binóculo para assumir o

comando. Idéias! Venham idéias! Emília dava murrinhos na cachola, a ver se saía

alguma idéia boa. No começo não saiu nada; depois um sorriso de triunfo

brilhou-lhe nos olhos.

– Acalmem-se! Ainda há “o supremo recurso” – disse a diabinha.

Todos se voltaram para ela, suspensos.

– Fale, Emília, fale! – implorou Dona Benta.

– Há o “faz-de-conta”! Quando tudo parece perdido, eu recorro ao “faz de-conta”

e salvo a situação”. 280

- Pois muito bem – declarou Dona Benta. - Nossa próxima viagem de aventuras

sera pela Grécia – e dará um livro.

- Que lindo livro vai ser! – exclamou Emília - VIAGEM DO SÍTIO PELO

OCEANO DA IMAGINAÇÃO GREGA.

- Comprido demais, Emília. Os títulos devem ser curtos, se não ninguém decora.

Veja: OS LUSÍADAS, A ILÍADA, A ODISSÉIA, O INFERNO, A ENEIDA…

- Então fica sendo a A EMILEIDA, propôs a diabinha – mas ninguém concordou

por ser desaforo: a viagem não era só dela, era de todos.

- Pois que seja A SITIEIDA…

- E por que não A ASNEIREIDA? – lembrou Narizinho.

Emília pôs-lhe a língua.281

Pensou, pensou e nada. Pela primeira vez na vida não encontrava solução para

um caso. Súbito, riu-se.

- Ah, meu Deus, que boa eu sou! Pois basta aplicar o faz-de-conta, esse

meu remédio que não falha nunca.

- E aplicou o faz-de-conta.

Erguendo os olhinhos para o céu, murmurou: “- Faz de conta que aquela flecha

não estava envenenada! Faz de conta que eu não espetei o coração de tia

Nastácia! Faz de conta que nao estive com o deus do Amor, nem lhe pedi o arco

emprestado. Faz de conta que ele só me deu duas flechas e não três!”

Nem bem fez Emília essa invocação e já tia Nastácia melhorou. Deu uma

risadinha e parou com os suspiros. 282

280

LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 819. 281

LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 832.

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5.4.4 Reinações de Narizinho

Reinações de Narizinho é o livro-síntese do universo do Sítio do Picapau

Amarelo. E como tal, é narrativa de inclusão recorrente nas análises da obra

infantil lobatiana. Para os objetivos do presente estudo, contudo, lancei mão,

diferentemente dos demais títulos, de poucas citações. Reitero que a inclusão do

livro no corpus literário da tese se justificou tão-somente pelo fato de ser enredo

emblemático dentro da história da literatura para crianças no Brasil, e em especial,

como já explicitado, dentro da obra lobatiana. Trata-se do abre-alas que apresenta

os personagens. Além disso, também se justifica pela ambientação do fantástico

no Reino das Águas Claras e na festa para os amigos dos País das Maravilhas. É

uma espécie de teaser do que será magistralmente explorado em O minotauro

(que foi analisado na minha dissertação de mestrado) e em O Picapau amarelo,

livros que guardam um diálogo intenso, por conta da sequência dos

acontecimentos.

O trecho de abertura do texto é bem descritivo, apresentando por

intermédio da ambientação, todo um mundo e um ritmo que convida o leitor. E o

convida a fruir a história com redobrada atenção, já que engana-se quem acha que

a velha de sessenta anos vive triste e sozinha naquele deserto. Já é clássico, até

pela comparação que se costuma fazer com “A menina do narizinho arrebitado”,

texto publicado em 1921 e que sofreu sensíveis modificações até se tornar o

primeiro capítulo das Reinações de Narizinho (1931). Uma das mais conhecidas

para os especialistas é o fato de que, na primeira versão, as aventuras de Narizinho

no Reino das Águas Claras não passarem de um sonho e na segunda versão, tudo

o que acontece debaixo da água possui o mesmo estatuto de tudo o que acontece

na vigília. Lobato abole as fronteiras do onírico e, no espaço do Sítio do Picapau

Amarelo (para o qual o acesso não se dá nem por intermédio de ciclone, nem de

buraco e nem mesmo pela passagem por uma mágico guarda-roupa, o que salienta

a radicalidade do escritor brasileiro em relação aos demais), tudo é possível.

Numa casinha branca, lá no sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha de mais

de sessenta anos. Chama-se dona Benta. Quem passa pela estrada e a vê na

282

LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo. p. 837.

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varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de ouro na ponta do nariz…

segue seu caminho pensando:

– Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto…

Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia

da mais encantadora das netas – Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou

Narizinho, como todos dizem. Narizinho tem sete anos, é morena como jambo,

gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos.”283

“Uma vez, depois de dar comida aos peixinhos, Lúcia sentiu os olhos pesados de

sono. Deitou-se na grama com a boneca no braço e ficou seguindo as nuvens que

passeavam no céu, formando ora castelos, ora camelos. E já ia dormindo,

embalada pelo mexerico das águas, quando sentiu cócegas no seu rosto.

Arregalou os olhos: um peixinho vestido de gente estava de pé na ponta do seu

nariz.

Vestido de gente, sim! Trazia casaco vermelho, cartolinha na cabeça e guarda-

chuva na mão – a maior das galantezas! O peixinho olhava para o nariz de

Narizinho com rugas na testa, como quem não está entendendo nada do que vê.284

Como se sabe, o texto segue na descrição do Reino das Águas Claras,

apresentando as personagens aquáticas como o Príncipe Escamado (óbvio jogo de

palavras com a tradição das “traduções galegais” e seus Príncipes Encantados), o

Doutor Caramujo, o Mestre Cascudo, o Major Agarra-e-não-larga-mais,

moluscos, bernardos eremitas, até que a entrada em cena de uma baratinha de

mantilha subverte o esperado, de forma radical.

A senhora por aqui? – exclamou este, admirado. Que deseja?

– Ando atrás do Pequeno Polegar – respondeu a velha. Há duas semanas que

fugiu do livro onde mora e não o encontro em parte nenhuma. Já percorri todos

os reinos encantados sem descobrir o menor sinal dele.

– Quem é esta velha? – perguntou a menina ao ouvido do príncipe. Parece que a

conheço...

– Com certeza, pois não há menina que não conheça a célebre dona Carochinha

das histórias, a baratinha mais famosa do mundo.”

E voltando-se para a velha:

– Ignoro se o Pequeno Polegar anda pelo meu reino. Não o vi, nem tive notícias

dele, mas a senhora pode procurá-lo. Não faça cerimônia…

– Por que ele fugiu? – indagou a menina.

Não sei – respondeu dona Carochinha – mas tenho notado que muitos dos

personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda a vida

presos dentro delas. Querem novidade. Falam em correr mundo a fim de se

meterem em novas aventuras. Aladino queixa-se de que sua lâmpada maravilhosa

está enferrujando. A Bela Adormecida tem vontade de espetar o dedo noutra roca

para dormir outros cem anos. O Gato de Botas brigou com o marquês de Carabás

e quer ir para os Estados Unidos visitar o Gato Félix. (…). Andam todos

revoltados, dando-me um trabalhão para contê-los. Mas o pior é que ameaçam

fugir, e o Pequeno Polegar já deu o exemplo.

283

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 3. 284

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 3.

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Narizinho gostou tanto daquela revolta que chegou a bater palmas de alegria, na

esperança de ainda encontrar pelo seu caminho algum daqueles queridos

personagens.

– Tudo isso – continuou dona Carochinha – por causa do Pinóquio, do Gato Félix

e sobretudo por causa de uma tal menina do narizinho arrebitado que todos

desejam muito conhecer. Ando até desconfiada que foi essa diabinha que

desencaminhou Polegar, aconselhando-o a fugir.

O coração de Narizinho bateu apressado.

– Mas a senhora conhece essa tal menina? – perguntou, tapando o nariz com

medo de ser reconhecida.

– Não a conheço – respondeu a velha. – mas sei que mora numa casinha branca

na companhia de duas velhas corocas.

Ah, por que foi dizer aquilo? Ouvindo chamar dona Benta de velha coroca,

Narizinho perdeu as estribeiras.

– Dobre a língua! – gritou vermelha de cólera. Velha coroca é vosmecê, e tão

implicante que ninguém mais quer saber das suas histórias emboloradas. A

menina do narizinho arrebitado sou eu, mas fique sabendo que é mentira que eu

haja desencaminhado o Pequeno Polegar, aconselhando-o a fugir. Nunca tive essa

“bela idéia”, mas agora vou aconselhá-lo, a ele e a todos os mais, a fugirem dos

seus livros bolorentos, sabe? 285

Hoje em dia, qualquer desenho animado para consumo incessante na

televisão toca no ponto da autoreferencialidade, da metalinguagem. Mas nas

primeiras décadas do século passado, em uma narrativa voltada para crianças,

trata-se de algo realmente revolucionário a revigorar os cânones da literatura para

crianças e pavimentar o caminho para um gênero genuinamente brasileiro. Era

fazer a criança pensar que (1) aqueles personagens possuíam a consciência de que

eram personagens e (2) se assim era, dentro do texto, por que não seríamos nós,

leitores, talvez os personagens de alguma trama superior, de um Escritor-Mor?

Narizinho, como Emília ainda está na condição de “muda de nascença”, assume

postura emilíssima, de rebeldia, iconoclasta e transgressora, ao criticar o cânone

da literatura tradicional que era oferecida às crianças da época.

(…) Viu que a fala da Emília ainda não estava bem ajustada, coisa que só o

tempo poderia conseguir. Viu também que era de gênio teimoso e asneirenta por

natureza, pensando a respeito de tudo de um modo especial todo seu. Melhor que

seja assim, filosofou Narizinho. As idéias de vovó e Tia Nastácia a respeito de

tudo são tão sabidas que a gente já as adivinha antes que elas abram a boca. As

idéias de Emília hão de ser sempre novidades. 286

Era este o assunto predileto das conversas da menina com a boneca. Faziam

planos de toda sorte, cada qual mais amalucado. Emília tinha idéias de verdadeira

louca. 287

285

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 7. 286

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 16. 287

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 17.

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Dona Benta, de fato, nunca tinha dado crédito às histórias maravilhosas de

Narizinho. Dizia sempre: “Isso são sonhos de criança. 288

Repetindo algumas frases do texto para puxar um fio de meada. “As ideias

de Emílias são sempre novidade.” “Emília tinha ideias de verdadeira louca.” E

complemento, como diria o Gato de Cheshire, somos todos loucos. Interessante

que, por vezes, salta aos olhos o descrédito tipicamente adulto por parte de Dona

Benta. As histórias maravilhosas entram na equação como equivalente a sonho de

criança. Dupla desqualificação. O sonho é desqualificado e a criança,

tradicionalmente, também. Mas é o fantástico (corporificado como uma boneca

falante, como borboeletograma, como o tecido do vestido preparado pelas

costureiras do Reino das Águas Claras ou ainda, como a visita e a hospedagem

dos amigos do País das Maravilhas289

) que fará a avó rever seus posicionamentos.

Mas depois que a menina fez a boneca falar, dona Benta ficou tão impressionada

que disse para a boa negra:

– Isto é um prodígio tamanho que estou quase crendo que as outras coisas

fantásticas que Narizinho nos contou não são simples sonhos, como sempre

pensei.290

Narizinho respondeu ao convite por meio dum borboletograma. Não sabem o que

é? Invenção de Emília. Como não houvesse telégrafo para lá, a boneca teve a

idéia de mandar a resposta escrita em asas de uma borboleta. Agarrou uma

borboleta azul que ia passando e rabiscou-lhe na asa, com um espinho (…) 291

Emília tem a mania de ser franca. Nunca viveu em sociedade e ainda não sabe

mentir. Não é aqui como o nosso visconde de Sabugosa, que fala, fala e ninguém

sabe nunca o que realmente está pensando, não é verdade?

O visconde fez um gesto que tanto podia ser sim como não. 292

– Mas quem é que fabrica esta fazenda, dona Aranha? – perguntou ela, apalpando

o tecido sem que Narizinho visse.

– Este tecido é feito pela fada Miragem. – respondeu a costureira.

– E com que a senhora o corta?

– Com a tesoura da Imaginação.

– E com que agulha o cose?

– Com a agulha da Fantasia.

– E com que linha?

– Com a linha do Sonho.

– E… por quanto vende o metro?

288

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 18. 289

Breve ressalva: o País das Maravilhas lobatiano, conforme já se nota, é muito mais abrangente

do que o narrado por Carroll nos livros de Alice. 290

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 18. 291

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 28. 292

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 46.

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Narizinho, já mais senhora de si, deu-lhe uma cotovelada.

– Cale-se, Emília. Os peixinhos podem assustar-se com as suas asneiras e fugir

do vestido. 293

– Que arrumação é essa, Pedrinho?

– Não é nada, vovó. Uma simples festinha que vamos dar aos nossos amigos do

País das Maravilhas.

Que dizer que vamos ter novamente aqui o príncipe e aqueles bichinhos do

mar?...

Pedrinho riu-se.

– A senhora não entende disto… Eu disse amigos do País das Maravilhas, e não

do Reino das Águas Claras. Há muita diferença. 294

O Sítio do Picapau Amarelo se destacam por várias ousadias estéticas para

a época e mesmo hoje em dia, guarda em si, inovações que eternizam a obra

lobatiana como paradigma dinâmico que se constantemente se atualiza à medida

que novos olhares podem surgir a partir de uma leitura, sem amarras, do próprio

texto. Para encerrar o capítulo, um trecho literário, que acentua a nossa fruição,

nosso encanto; e em dueto com um excerto analítico, que aguça a nossa

tenacidade, nosso lado crítico. Escreve Lobato, ainda em Reinações de Narizinho:

“Estavam todos à janela, regalando os olhos naquele espetáculo nunca visto no

mundo, quando Emília se pôs a filosofar.” 295

Se pôs a filosofar… Me pergunto

quantos personagens de literatura infantil universar se puseram a filosofar?

Pensar, claro. Refletir, é possível que outros tantos. Mas… filosofar?! Excelente

forma de seduzir a criança (ou o leitor, de modo mais abrangente) para uma

aventura que está ao seu alcance e que a levará para mundos insuspeitos! E para

arar o terreno para o capítulo seguinte, que apresenta de forma mais detalhada a

proposta que ainda está se configurando, está tentando alçar voo, a frase de

Richard Kearney, atando as pontas da ciência, da arte, da imaginação e da

realidade numa invejável costura e que resume o que Baum, Carroll, Lobato e

Lewis desenvolveram em seus mundos de fantasia: “Tanto a criação científica

quanto a poética derivam de uma poiesis mais profunda na qual a imaginação e a

realidade constroem e reconstroem uma a outra.” 296

293

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 59. 294

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 88. 295

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. p. 46. 296

KEARNEY, R. (1991). p. 89. “Scientific and poetic creation both derive from a deeper

poiesis wherein imagination and reality make and remake each other.”

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