50550124 Resumos de Livros Uem

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Contos NovosObra-sntese que rene as conquistas modernistas de 22 e os elementos responsveis pela maturidade literria de Mrio de Andrade. A maturidade artstica de Mrio de Andrade, no campo da fico literria, culmina com os Contos novos, obra publicada postumamente em 1947, como o autor fez questo de anotar no final de cada narrativa, o livro fruto de um minucioso processo de elaborao artesanal que compreende vrias verses de um mesmo texto e se estende por perodos de tempo que vo de quatro at dezoito anos de preparao... Este o caso de Frederico Pacincia, cuja gestao criativa evoluiu de 1924 at 1942. 1. Narrador A paixo por pensar, em consonncia com a paixo pela vida redescoberta atravs da memria e da imaginao, constituem os traos mais marcantes da vida e da obra de Mrio de Andrade, exemplarmente encontrados nestes Contos novos. Escritos a partir de 1924, reescritos ao longo de at dezoito anos de depurao artstica, os Contos dividem-se, do ponto de vista de seu foco narrativo, em dois tipos: os narrados em primeira pessoa, de carter memorialistas, e os narrados em terceira pessoa, nos quais a voz do narrador onisciente confunde-se com a voz dos personagens. Em ambos os tipos, h uma aproximao entre narrador e personagem, tanto pela adeso do adulto aos momentos do passado recriados atravs do personagem-narrador, protagonista dos contos em primeira pessoa, quanto pela adeso do narrador aos protagonistas dos contos em terceira pessoa. Tal aproximao e/ou adeso do narrados aos personagens percebida, nos dois tipos de contos, por um recurso narrativo extremamente moderno a que chamamos de discurse indireto livre, discurso em que no h as convenes que distinguem a voz do narrador da voz dos personagens: no discurso direto, pelos dois pontos e pelo travesso com os quais o narrador deixa os personagens falarem: no discurso indireto, pelas conjunes integrantes [ que, se] e pelos verbos declarativos com os quais o narrador incorpora em seu prprio falar a fala dos personagens. Os trs tipos existem mas predomina o discurso indireto livre nos contos novos, o que lhes d uma liberdade sinttica que preserva a afetividade e a expansividade do discurso direto ao mesmo tempo que mantm alguns elementos tpicos do discurso indireto. Vamos exemplificar este procedimento, a fim de compreend-lo melhor: Se esperavam grandes motins em Paris, deu uma raiva tal no 35. e ele ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando motins [devia ser turumbamba] na sua desmesurada fora fsica, ah, as fuas de algum... polcia? Policia. Pelo menos os safados dos policias. [Primeiro de Maio] Sem censura aparente, perguntou aos camaradas se ainda no tinham ido trabalhar. Os camaradas responderam que j tinham sim, mas que com aquele tempo quem agentava permanecer dentro do poo continuando a perfurao! [O Poo] Observe no primeiro exemplo a transposio direta da fala interior, isto , dos pensamentos do 35 protagonista do conto Primeiro de Maio que se confunde com a fala inicial do narrador. no segundo exemplo, as caractersticas do discurso indireto se preservam os camaradas respondiam que j tinham [verbo declarativo + conjuno integrante] embora a elas se acrescentem as expresses

de oralidade j tinham sim; quem agentava permanecer ... normalmente presentes no discurso direto. Assim, h um enriquecimento expressivo que vem do tom de naturalidade conseguido, dentre outros recursos, pelo discurso indireto livre. Nos contos em primeira pessoa o mesmo enriquecimento pode ser percebido alm do discurso indireto livre pela interseco entre presente e passado: a voz do adulto que conta e reflete sobre a histria e a voz do menino, do adolescente, do jovem que a vive, como veremos no exemplo abaixo: Frederico Pacincia estava maravilhoso, sujo do futebol, suado, corado, derramando vida. Me olhou com uma ternura sorridente. Talvez houvesse, havia um pouco de piedade. [Frederico Pacincia]. Fui abraando os livros de mansinho, acariciei-os junto ao rosto, pousei a minha boca numa capa, suja de p suado, retirei a boca sem desgosto.naquele instante no sabia, hoje se: era o segundo beijo que eu dava em Maria, ltimo beijo, beijo de despedida, que o cheiro desagradvel do papelo confirmou. Estava tudo acabado entre ns dois. [Vestida de preto]. No trecho de Frederico Pacincia, fica extremamente clara a interpretao entre o passado da histria vivida Talvez houvesse e o presente da histria contada havia um pouco de piedade. A emoo da experincia afetiva conjuga-se assim como a compreenso racional de seu segmento, como tambm ocorre no fragmento de Vestida de preto, em que descrio sensual, sensorial, do beijo, sucede a revelao madura de que fora o ltimo... O narrador, assim, revive a emoo, a enorme sensibilidade de momentos profundamente especiais e marcantes, e ao mesmo tempo capaz de refletir sobre eles, de perceb-los de forma lcida e nem por isso menos apaixonada. Em suma, o raro equilbrio entre a emoo e a razo, entre fruio da memria e lucidez no seu desvendamento, um dos principais motivos da preciosidade literria e humana dos Contos novos, obra que representa tanto o experimentalismo da fase herica de nossa primeira gerao modernista quanto o amadurecimento, o adensamento crtico da Gerao de 30. Exemplos de monlogo interior Antes de passarmos ao estudo do enredo destes contos, vamos ver mais um exemplo de adeso do narrador aos personagens atravs do discurso indireto livre, ressaltando, agora, o fluxo de conscincia ou monlogo interior dos personagens, com o qual, Mrio de Andrade consegue os momentos de maior intensidade dramtica e lrica da obra: L estavam as trs estrelinhas, brilhando no ar do sol, cheias de uma boa sorte imensa. E eu tinha de me desligar de uma delas, da menorzinha estragada, to linda! Justamente a que eu gostava mais, todas valiam igual, por que a mulher do operrio no tomava banhos de mar? mas sempre, ah meu Deus que sofrimento! eu bem no queria pensar mas pensava sem querer, deslumbrado mas a boa mesmo era a grandona perfeita, que havia de dar mais boa sorte para aquele malvado do operrio que viera, cachorro! dizer que estava com m sorte. Agora eu tinha que dar para ele a minha grande, a minha sublime estrelona do mar![...] eu estava tonto, operrio de m-sorte, a estrela, a paraltica, a minha sublime estrelona do mar [...]. Fui correndo, fui morrendo, fui chorando, carregando com fria e carcia a minha maiorzinha estrelinha-do-mar.

[Tempo da camisolinha]. 2. Enredo H um total de nove contos no livro, quatro em primeira pessoa, de carter memorialista, com fortes elementos autobiogrficos, e cinco em terceira pessoa. Para facilitar o nosso trabalho, vamos reuni-los em dois grupos, de acordo com a diferena do foco narrativo mencionada, e, apresentando o sumrio de seu enredo. Contos em primeira pessoa Tempo da camisolinha [infncia]. Aos Trs anos de idade, quando ainda vestia camisolinha como as meninas, o personagem-narrador tem os cabelos cortados por ordem paterna. Sofre com esta violncia um trauma que no entanto compensado pelas trs estrelas-do-mar - estrelas da boa sorte que ganha de pescadores em Santos, onde passava frias com a famlia. Um velho operrio sofrido e sem sorte, a quem se sente obrigado a dar a maior das estrelas, vem de novo frustra-lo numa descoberta dolorida e difcil da existncia da dor e da necessidade de solidariedade humana. Vestido de preto [infncia adolescncia juventude]. Aos dez anos, Juca vive um momento de grande pureza, emoo e pavor. Este momento ocorre durante grande pureza, emoo e pavor. Este momento ocorre durante uma brincadeira de famlia, quando beija o primeiro grande amor de sua vida a prima Maria sendo ambos interrompidos pela malcia da tia velha, que destri a ingenuidade da cena. Aps tal acontecimento, Maria afasta-se de Juca, j adolescente e mau estudante, insultado por este motivo pela menina, dando por encerrado o amor entre eles. Na juventude, o destino de ambos se inverte: Maria torna-se namoradeira e irresponsvel, e acaba por se casar com um diplomata. Juca passa de caso perdido a intelectual, poeta e conferencista. A revelao acidental da me de Maria de que esta sempre o amara causa-lhe a terceira grande emoo deste conto: ele ento a procura e a encontra vestida de preto, sem conseguir, entretanto, dizerlhe o quanto a queria bem e a desejava. Frederico Pacincia [ adolescncia]. Este conto narra a histria de uma amizade ambgua, misto de pureza e de impureza, entre o personagemnarrador e Frederico Pacincia, companheiro de ginsio, que lhe desperta sucessivamente simpatia, admirao, inveja, vontade de imitar e sensualidade. Atravs do desenvolvimento do enredo, vamos percebendo que a perfeio moral e fsica de Frederico Pacincia, a sua infncia, deixam de servir como modelo ao protagonista. Este, aps episdios de proximidade fsica e espiritual com Frederico Pacincia, opta pela prpria imperfeio, pela prpria impureza, individualizando-se e acabando por se distanciar do amigo. O peru de Natal [juventude]. O pai, em todos os contos memorialistas, descrito como uma personalidade autoritria, incapaz de manifestar carinho e escravizado pelo trabalho. Neste conto, que ocorre alguns

meses aps a sua morte, o pai aparece como um desmancha-prazeres. O protagonista, taxado de louco pela famlia, resolve aproveitar-se da fama e promover uma grande ceia de Natal, com peru e cerveja, apesar da recente morte do pai. Durante a ceia, quando especialmente a me e a tia solteirona comem numa abundncia desconhecida por ambas, e tambm pelos filhos sempre reprimidos nas manifestaes de alegria, o momento de plenitude familiar posto em risco atravs da lembrana do defunto. O protagonista, ento, enfrenta e vence a luta entre o peru e o fantasma do pai, hipocritamente referindo-se ao prazer que este sentiria se pudesse testemunhar a felicidade de todos naquele Natal...Consegue, assim, recuperar o clima benfico e de comunho que minuciosamente preparara, por amor me, tia, e irm: seus trs anjos da guarda. Comentrio Os temas desenvolvidos nestes contos percorrem a existncia de Juca, o personagem-narrador, que em muitos momentos se confundem com a existncia de Mrio de Andrade, o que percebemos por informaes que temos de sua vida, de suas relaes familiares, seus amores etc. So temas autobiogrficos, portanto, cuja densidade e cujo significado procuraremos analisar. A perda da ingenuidade infantil [Tempo da camisolinha], a descoberta e a sublimao da sensualidade e do erotismo [Vestida de preto e Frederico Pacincia], e a resistncia contra a imagem paterna castradora e autoritria [O peru de Natal] constituem, resumidamente, alguns destes temas. Embora diferentes e especficos no universo de cada conto, eles esto ligados entre si por constiturem momentos marcantes da trajetria humana, momentos mgicos como o do presente das trs estrelas-do-mar, que, por algum tempo, recupera a ingenuidade infantil [Tempo da camisolinha], o do primeiro beijo [Vestida de preto], o da descoberta da amizade [Frederico Pacincia] e o da sensao de uma vitria numa luta contra a opresso [O peru de natal]. Esse momentos mgicos, podemos dizer fundadores e fecundadores da poesia da autodescoberta e da descoberta do outro e do mundo, esto presentes em todos os contos, sendo, portanto, um elo que os une. A eles se atrelam, entretanto, momentos de decepo e de dor, de profunda solido e de duro amadurecimento, como o corte dos cabelos [Tempo de camisolinha], a interrupo do primeiro beijo [Vestida de preto] e a revelao da impureza no desenrolar de uma amizade suspeita [Frederico Pacincia]. Temos aqui o contraponto da plenitude encontrada nos primeiros momentos analisados. Somados todos podemos perceber a alternncia de amor e de dor, de comunho e de solido, de ingenuidade e de malcia, que vo delineando o indivduo, cujo processo de formao e de dilogo conflituoso com a sociedade parece ser a grande temtica dos contos em primeira pessoa. Contos em terceira pessoa O ladro. A perseguio de um suposto ladro, que ningum consegue enxergar, desperta um bairro suburbano cujos tipos vo sendo revelados ao leitor, num momento extraordinrio de quebra de rotina e de encontro entre as pessoas. Esse momento culmina com a valsa triste tocada pelo violinista, que assim estria a sua nica msica perante a platia improvisada. Esta o palude de forma efusiva antes de dissolver-se na calada da noite.

Primeiro de maio. O 35, um operrio carregador de malas, passeia pela cidade de So Paulo para confusa e apaixonadamente comemorar o Dia do Trabalho,primeiro de maio. Cercado de policiais e de colegas indiferentes, o conto narra a intensidade ingnua mas lrica dos sentimentos do 35, cuja euforia transforma-se em angstia e medo, at conseguir,carregando as malas pesadas para um companheiro, o 22, manifestar a piedade, o amor, a fraternidade desamparada que sentira ao longo do dia...

Atrs da Catedral de Ruo. Mademoiselle uma professora de francs, quarentona e virgem, tomada por um vendaval do mal do sexo. Preceptora de duas adolescentes, Alba e Lcia abandonadas pelo pai e de certo modo pela me, infeliz e distante Mademoiselle conversa imoralidades e malcias com elas,fixando-se em suas fantasias erticas no cenrio de uma antiga histria picante: atrs da Catedral de Ruo. Intensificam-se tais fantasias at o momento em que Mademoiselle, ao sair de uma festa, imaginariamente perseguida por dois homens, correndo deles e ao mesmo tempo entregando-se volpia de faze-lo, atrs da Catedral. Quando chega penso onde mora, d um nquel a cada um dos supostos perseguidores, agradecendo, em francs, a boa companhi9a que lhe fizeram...

O Poo. Joaquim Prestes, fazendeiro rico, dono de trs automveis, de dez chapus, criador de mel e inventor da moda dos pesqueiros de beira de rio, uma personalidade estranha, obcecada pela idolatria da autoridade. Num dia frio, chuvoso e escuro, leva uma visita ao pesqueiro de que proprietrio, e onde quatro operrios constroem um poo. Neste contexto, pressiona os homens a prosseguirem com o trabalho, praticamente impossvel pelas condies atmosfricas. Deixa cair a caneta-tinteiro no poo, uma caneta de our5o, exigindo que os operrios a resgatem. Maltrata-os ento de forma cruel e desumana, at o momento em que um dos operrios Jos desafia sua autoridade e impede que o irmo, fraco e doente Albino volte a descer ao poo. Contrariado mas impotente, o velho cede firmeza de Jos, embora se vingue alguns dias depois, xingando os operrios, que reencontraram a caneta, por ela no escrever. Abre, ento, a gaveta da escrivaninha onde h vrias lapiseiras e trs canetas-tinteiro, uma de ouro...

Nelson. Neste misterioso conto, um homem no nomeado, com um ar esquisito, ar antigo, que talvez lhe viesse da roupa mal talhada, entra num bar. Enquanto toma seis chopes, sua presena desperta a ateno de trs pessoas, sentadas em outra mesa, que passam a contar histrias estranhas a respeito dele. Uma, do amor que teve por uma paraguaia, a quem entregou toda a fortuna, vinda das fazendas que possua em Mato Grosso, e outra, da sua participao herica na Coluna Prestes, no se sabe de que lado, em que uma piranha comera-lhe um pedao da mo...

Ambas as histrias intercalam-se, acentuando, com o seu desfecho, a curiosidade dos personagens. A paraguaia o abandona, conta Alfredo, o narrador exageradamente preocupado em criar suspense, o que irrita os companheiros. Diva, a garonete do bar que tambm prostituta, protege o homem da curiosidade alheia, demonstrando-lhe respeito e admirao. O homem se levanta, sai do bar, anda seis quarteires e, aps esperar que se dissolva um pequeno grupo que bebe num outro bar, certifica-se de que ningum o segue, entra em casa, e fecha a porta por trs de si com trs voltas chave. Comentrio Nestes cinco contos, continuam aparecendo momentos iluminadores, especiais, como a quebra da rotina e as manifestaes de solidariedade entre as pessoas, em O ladro; a ousadia e a firmeza do operrio Jos ao enfrentar Joaquim Prestes para proteger o irmo, Albino, em O Poo; o impulso de amor e de fraternidade do 35, em Primeiro de Maio; a humanidade com que a garonete priva os curiosos de informaes que poderiam violentar um homem que ela mal conhece mas por quem sente respeito, em Nelson. Por outro lado, continuam tambm os contrapontos desses momentos: em O ladro, h uma italiana que marginaliza uma portuguesa, cuja suposta vida fcil, devido s viagens do marido, a transforma em vtima da maldade alheia, o que faz com que ela ironicamente v dormir sozinha, tendo sete homens a seus ps....Em Primeiro de Maio, os colegas de 35 ridicularizam a comemorao, trabalhando indiferentes e alheios ao policiamento ostensivo na cidade. Em O Poo, a obsesso pela autoridade, o sadismo e a violncia de Joaquim Prestes retomam a imagem castradora do pai, agora o patro, desenvolvida nos contos em primeira pessoa. Em Atrs da Catedral de Ruo, a temtica da sexualidade reprimida, sublimada, presente em Frederico Pacincia e em Vestida de preto, reaparece, atravs das fantasias sexuais de uma mulher envelhecida, puritana, extremamente solitria, que por um instante mergulha na fantasia e se liberta da solido. Dentre os contos que tematizam a solido, entretanto, destaca-se Nelson, uma histria cujo enigma no se explica, mas que mostra claramente, apenas pelo comportamento do protagonista, o isolamento em que vive. Em geral, tanto nestes ltimos contos comentados quanto nos primeiros, h uma fixao de momentos, de breves lapsos de vida, que ora revelam a beleza, a grandeza da suspenso da mediocridade cotidiana [Vestida de preto, O ladro, O peru de Natal especialmente], ora revelam o desamparo, a prepotncia, que fazem parte desta mesma mediocridade [Nelson, O poo]. Em Primeiro de Maio, Atrs da Catedral de Ruo Frederico Pacincia e Tempo de Camisolinha tais momentos, eufricos e vazios, plenos e impotentes, solitrios e solidrios, so simultneos, na alegria e na angstia do 35, na solido e no delrio de Mademoiselle, na pureza e na impureza do Juca, na infelicidade e na dolorosa descoberta, por uma criana, de que as pessoas sofrem e precisam de ajuda.

Dom CasmurroMachado de Assis 1. Enredo Vivendo no Engenho Novo, um subrbio da cidade do RJ, quase recluso em sua casa, construda segundo o molde da que fora a de sua infncia, na Rua de Matacavalos, Bento de Albuquerque Santiago, ,com cerca de 54 anos e conhecido pela alcunha de Dom Casmurro por seu gosto pelo isolamento , decide escrever sua vida. Alternando a narrao dos fatos passados com a reflexo sobre os mesmos, no presente, o protagonista/narrador informa ter nascido em 1842 e ser filho de Pedro de Albuquerque Santiago e de D. Maria da Glria Fernandes Santiago. O pai, dono de uma fazenda em Itagua, mudara-se para a cidade do RJ por volta de l844, ao ser eleito deputado. Alguns anos depois falece e a viva, preferindo ficar na cidade a retornar a Itagua, vende a fazendola e os escravos, aplica o dinheiro em imveis e aplices e passa a viver de rendas, permanecendo na casa de Matacavalos, onde vivera com o marido desde as mudana para o RJ. A vida do protagonista/narrador transcorre sem maiores incidentes at a 'clebre tarde de novembro' de 1857, quando, ao entrar em casa, ouve pronunciarem seu nome e esconde-se rapidamente atrs da porta. Na conversa entre sua me e o agregado Jos Dias, que morava com a famlia desde os tempos de Itagua, Bentinho, como era ento chamado, fica sabendo que sua me se mantm firme na inteno de coloc-lo no seminrio a fim de seguir a carreira eclesistica, segunda promessa que fizera a Deus caso tivesse um segundo filho varo, j que o primeiro morrera ao nascer. Bentinho, que h muito tinha conhecimento das intenes de sua me, sofre violento abalo pois fica sabendo que a reativao da promessa, que parecia esquecida, devia-se ao fato de Jos Dias ter informado D. Glria a respeito de seu incipiente namoro com Capitolina Pdua, que morava na casa ao lado. Capitu, como era chamada, tinha ento catorze anos e era filha de um tal de Pdua, burocrata de uma repartio do Ministrio da Guerra. A proximidade, a convivncia e a idade

haviam feito com que os dois adolescentes criassem afeio um pelo outro. D. Glria, ao saber disto, fica alarmada e decide apressar o cumprimento da promessa. Os planos de Capitu, informada do assunto, e Bentinho para, com a ajuda de Jos Dias, impedir que D. Glria cumprisse a deciso ou, pelo menos, a adiasse, fracassam. Como ltimo recurso, o prprio Bentinho revela me no ter vocao, o que tambm no a faz voltar atrs. Tio Cosme, um vivo, irmo de D. Glria e advogado aposentado, que vivia na casa desde que seu cunhado falecera, e a prima Justina, tambm viva, que, h muitos anos, morava com a me de Bentinho, procuram no se envolver no problema. Assim, a ltima palavra fica com D.Glria, que, com o apoio do padre Cabral, um amigo de tio Cosme, decide finalmente cumprir a promessa e o envia ao seminrio, prometendo, contudo, que se dentro de dois anos no revelasse vocao para o sacerdcio estaria livre para seguir outra carreira. Antes da partida de Bentinho, este e Capitu juram casar-se. No seminrio, Bentinho conhece Ezequiel de Souza Escobar, filho de um advogado de Curitiba. Os dois tornam-se amigos e confidentes. Em um fim de semana em que Bentinho visita D. Glria, Escobar o acompanha e apresentado a todos, inclusive a Capitu. Esta, depois da partida de Bentinho, comeara a freqentar assiduamente a casa de D.Glria, do que nascera aos poucos grande afeio recproca, a ponto de D.Glria comear a pensar que se Bentinho se apaixonasse por Capitu e casasse com ela a questo da promessa estaria resolvida a contento de todos, pois Bentinho, que a quebraria, no a fizera, e ela, que a fizera, no a quebraria. Enquanto isto, Bentinho continuava seus esforos junto a Jos Dias, que, tendo fracassado em seu plano de faz-lo estudar medicina na Europa, sugeria agora que ambos fossem a Roma pedir ao Papa a revogao da promessa. A soluo definitiva, contudo, partiu de Escobar. Segundo este, D. Glria prometera a Deus dar-lhe um sacerdote, mas isto no queria dizer que o mesmo deveria ser necessariamente seu filho. Sugeriu ento que ela adotasse algum rfo e lhe custeasse os estudos. D. Glria consultou o padre Cabral, este foi consultar o bispo e a soluo foi considerada satisfatria. Livre do problema, Bentinho deixa o seminrio com cerca de 17 anos e vai para So Paulo estudar, tornando-se cinco anos depois, o advogado Bento de Albuquerque Santiago. Por sua parte, Escobar, que tambm sara do seminrio, tornara-se um comerciante bem-sucedido, vindo a casar com Sancha, amiga e colega de escola de Capitu. Em l865, Bento e Capitu finalmente casam-se, passando a morar no bairro da Glria. O escritrio de advocacia progride e a felicidade do casal seria completa no fosse a demora em nascer um filho. Isto faz com que ambos sintam inveja de Escobar e Sancha, que tinham tido uma filha, batizada com o nome de Capitolina. Depois de alguns anos, nasce Ezequiel, assim chamado para retribuir a gentileza do casal de amigos, que dera filha o nome da amiga de Sancha. Ezequiel revela-se muito cedo uma criana inquieta e curiosa, tornando-se a alegria dos pais e servindo para estreitar ainda mais as relaes de amizade entre os dois casais. A partir do momento em que Escobar e a Sancha, que moravam em Andara, resolvem fixar residncia no Flamengo, a convivncia entre as duas famlias tornase completa e os pais chegam a falar na possibilidade de Ezequiel e Capitulazinha, como era chamada a pequena Capitolina, virem a se casar. Em 1871 Escobar, que gostava de nadar, morre afogado. No enterro, Capitu, que amparava Sancha, olha to fixamente e com tal expresso para Escobar morto que Bento fica abalado e quase no consegue pronunciar o discurso fnebre. A perturbao, contudo, desaparece rapidamente. Sancha retira-se em seguida para a

casa dos parentes no Paran, o escritrio de Bento continua a progredir e a unio entre o casal segue crescendo. At o momento em que, cerca de um ano depois, advertido pela prpria Capitu, Bento comea a perceber as semelhanas de Ezequiel com Escobar. medida que o menino cresce, estas semelhanas aumentam a tal ponto que em Ezequiel parece ressurgir fisicamente o velho companheiro de seminrio. As relaes entre Bento e Capitu deterioram-se rapidamente. A soluo de colocar Ezequiel num internato no se revela eficaz, j que Bento no suportar mais ver o filho, o qual por sua vez, se apega a ele cada vez mais, tornando a situao ainda mais crtica. Num gesto extremo, Bento decide suicidar-se com veneno, colocado numa xcara de caf. Interrompido pela chegada de Ezequiel, altera intempestivamente seu plano e decide dar o caf envenenado ao filho mas, no ltimo instante, recua e em seguida desabafa, dizendo a Ezequiel que no seu pai. Nesse momento Capitu entra na sala e quer saber o que est acontecendo. Bento repete que no pai de Ezequiel e Capitu exige que diga por que pensa assim. Apesar de Bento no conseguir expor claramente suas idias, Capitu diz saber que a origem de tudo a casualidade da semelhana, argumentando em seguida que tudo se deve vontade de Deus. Capitu retira-se e vai missa com o filho. Bento desiste do suicdio. Durante a discusso fica decidido que a separao seria o melhor caminho. Para manter as aparncias, o casal parte pouco depois rumo Europa, acompanhado do filho. Bento retorna a seguir, sozinho. Trocam algumas cartas e Bento viaja outras vezes Europa, sempre com o objetivo de manter as aparncias, mas nunca mais chega a encontrar-se com Capitu. Tempos depois morrem D.Glria e Jos Dias. Bento retira-se para o Engenho Novo. Ali, certo dia, recebe a visita de Ezequiel de Albuquerque Santiago, que era ento a imagem perfeita de seu velho colega de seminrio. Capitu morrera e fora enterrada na Europa. Ezequiel permanece alguns meses no RJ e depois parte para uma viagem de estudos cientficos no Oriente Mdio, j que era apaixonado da arqueologia. Onze meses depois morre de uma febre tifide em Jerusalm e ali enterrado. Mortos todos, familiares e velhos conhecidos, Bento/Dom Casmurro fecha-se em si prprio, mas no se isola e encontra muitas amigas que o consolam. Jamais, porm, alguma delas o faz esquecer a primeira amada de seu corao, que o trara com seu melhor amigo. Assim quisera o destino. E para esquecer tudo, nada melhor que escrever, segundo decide, uma Histria dos subrbios do Rio de Janeiro. 2. Personagens principais Bentinho/Dom Casmurro Dividido entre a saudade da juventude irrecupervel e a meditao sobre seu caminho existencial, Bento Santiago ora manifesta certa condescendncia diante do espetculo do mundo, apreciando certos prazeres da vida, ora demonstra seu desencanto em reflexes melanclicas sobre a realidade. Este ltimo sentimento, que domina a fase de maturidade do protagonista/narrador, acaba dando o tom a todo o romance. Consciente de sua ingenuidade no passado, no exacerba seu pessimismo e se mantm num equilbrio filosfico que lhe permite assimilar as lies da vida e viver com certa paz interior. Em termos estritamente pessoais, Bento Santiago um homem que pagou o preo de sua existncia e aparou o suficiente os golpes do destino para poder ordenar a realidade e manter sua

identidade. Em termos sociais, o membro de uma classe superior para quem tudo se resume, na vida, em saber salvar as posses e as aparncias, o que, em ltima instncia, a mesma coisa. Capitu Mudando de classe social atravs das armas da inteligncia e da sensualidade, Capitu, com seus 'olhos de cigana oblqua e dissimulada', se perde - para o protagonista/narrador - em virtude de um autocontrole pouco desenvolvido, isto , em virtude de no submeter-se aos limites impostos pela condio social a que ascendera. Mostra-se capaz de envolver Bentinho mas incapaz de dominar o mundo em que passa a integrar-se aps seu casamento. Seu destino ser 'expurgada' do grupo. Escobar Com um perfil pouco desenvolvido no romance, Escobar , em sntese, um homem de ao, pouco dado a especulaes sobre o mundo. Sua carreira de comerciante e seu gosto pelo esporte - que o leva morte - o contrapem a Bento Santiago. um personagem simples e linear, o que o configura como um perfeito parceiro de traio. Sancha Mais limitada e menos vital que Capitu, Sancha seu oposto, como fica claro no fugaz incidente com Bento Santiago, quando ela recusa a dar o passo que levaria alm dos limites impostos sua condio de mulher casada. D. Glria Uma boa criatura, descendente de famlias tradicionais da aristocracia mineira e paulista, D. Glria se atm rigidamente s normas do grupo social e, apesar de ser ainda bela e jovem ao tornar-se viva, recusa qualquer outro tipo de ligao com homens, dedicando-se s tarefas de administrar os bens, cuidar do lar e educar o filho. Como diz o protagonista/narrador, 'teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preserv-la da ao do tempo'. a figura clssica da matrona ilibada e inatacvel. Jos Dias Amante dos superlativos e da bajulao, as convices de Jos Dias oscilam de acordo com os interesses dos membros da famlia a que se agregara. Neste personagem, Machado de Assis traa um perfil magistral de um grupo social tpico da sociedade escravocrata brasileira do sc. XIX: o homem livre, mas sem posses, que, tanto por seu prprio interesse quanto por interesse da classe proprietria, integra-se em um cl e perde a prpria identidade em troca dos favores que o mantm vivo, livre e desfrutando de certo status social. Padre Cabral Apesar de ocupar um lugar discreto na obra, o padre Cabral encarna, claramente, a Igreja como instituio, como um ncleo de poder que, em plano secundrio mas com certa importncia, caracterizava a sociedade brasileira do sc. XIX, particularmente antes da Repblica, a partir da qual separaram-se Igreja e Estado.

3. Estrutura narrativa Em 218 captulos, geralmente bastante curtos, Dom Casmurro a narrao, feita em primeira pessoa pelo prprio protagonista, da vida de Bento de Albuquerque Santiago, o Bentinho. A trajetria existencial recomposta vai do ano de 1857 at meados da dcada de 1890, quando o narrador, j qinquagenrio, se debrua sobre o passado, apresentando-o e, ao mesmo tempo, analisando-o distncia, do que resulta uma estrutura narrativa em que se alternam a narrao da ao e a reflexo sobre a mesma, ambas tendo por palco o RJ da segunda de do sc. XIX. 4. Comentrio crtico Unanimemente considerada como uma das obras-primas da fico brasileira e colocada em destaque entre as cinco principais obras de Machado de Assis - ao lado de Quincas Borba, Memrias Pstumas de Brs Cubas, Esa e Jac e O Alienista Dom Casmurro nunca deixou de estar em evidncia ao longo de quase um sculo de sua publicao, enfrentando, assim, as vicissitudes crticas comuns obra machadiana. Diante da inegvel importncia da fico de MA e de sua fluidez, que recusa qualificativos e teorias, e no raro monta armadilhas para anlises que pretendam ser totalizantes, a crtica, ao longo do tempo, reagiu das mais variadas formas. Alguns censuram em MA a falta de um compromisso mais direto com a realidade, posio que, de pernas para o ar, acabou na viso, muito em voga at recentemente, segundo a qual sua obra possua tal universalidade que tornava impossvel referi-la a um contexto histrico determinado. Outros, numa posio que tambm fez fortuna, destacaram na obra machadiana a atmosfera de humour, nascido de uma fuso de tristeza e enfado diante da vida. Este seria o Machado de Assis 'filsofo'. A viso biografista, aplicada a outros romancistas de sua poca, tambm atingiu o autor de Quincas Borba. Ao tentar explicar a obra a partir da vida do autor, o biografismo, no caso de MA, chegou ao extremo de considerar seu humour, o desencanto diante da vida que transparece em suas obras, como resultado de sua recusa em assumir a condio de mulato. Neste sentido, a viso de mundo presente na obra machadiana seria o produto de um desejo intenso, frustrado em virtude da barreira representada pela conscincia da prpria cor, de arianizao social e branqueamento ideolgico. Como em todos os casos, tal interpretao biografista no vai alm de uma observao sobre o autor - que pode at ser verdadeira mas que sempre dispensvel - e nada diz especificamente sobre a obra. Nas ltimas dcadas, a crtica machadiana tendeu a tomar outra direo, orientando-se decididamente no sentido de uma anlise profunda da obra em si e dando especial ateno aos elementos histricos nela contidos. E ento no foi difcil perceber que, ao contrrio do que faziam supor muitas posies crticas at ali sustentadas, MA apresenta com extrema profundidade e de maneira bastante explcita a sociedade carioca e brasileira das ltimas dcadas do sc. XIX, expondo claramente sua estrutura de classes e seus mecanismos de poder. Nos ltimos anos, esta viso histrica da obra machadiana acentuou-se ainda mais. Assim, nesta perspectiva, a incapacidade de ao, o pessimismo existencial, a crise de identidade e mesmo a loucura que caracterizam os personagens mais importantes do mundo ficcional de MA seriam o smbolo de um pas econmica e

culturalmente dependente e dominado por uma elite colonizada e sem perspectivas histricas diante da mar montante do liberalismo industrial/capitalista europeu, que minara, ao longo da segunda de do sculo, a ltima das grandes formaes sociais escravistas do planeta. Como se pode observar, a prpria diversidade das interpretaes d bem a medida daquela que talvez possa ser considerada a mais importante das caractersticas do mundo ficcional de MA e da galeria de seus grandes personagens: o carter esquivo e ambguo que parece exigir e, ao mesmo tempo, repelir todos os enquadramentos tericos. Se o exposto pode ser considerado verdadeiro no que se refere obra de MA como um todo, o muito mais ainda em relao a Dom Casmurro. De todos os romances do autor, este , com certeza, o mais popular, seja no sentido de ser, possivelmente, o mais lido, seja no sentido de abordar um tema popular, do que deve resultar, alis, sua capacidade de atingir um universo mais amplo de leitores. De fato, Dom Casmurro a histria de uma traio. evidente que a obra bem mais complexa do que pode fazer supor tal afirmao, mas inegvel tambm que o ncleo essencial do enredo, isto , dos fatos narrados, formado pela existncia de um tringulo amoroso e pelas conseqncias da resultantes. Como era natural, alm de cair no agrado do grande pblico leitor, o casal de protagonistas, Bentinho e Capitu, tornou-se, ao longo do tempo, um dos centros de ateno das anlises feitas pela crtica a respeito de Dom Casmurro, a tal ponto que, em alguns casos, o romance ficou reduzido a nica questo: Capitu traiu ou no traiu? Sob este ponto de vista, Dom Casmurro passou a ser no a histria de uma traio - afirmao sem dvida abonada pelo texto - mas a histria da dvida sobre uma traio, o que, a partir de uma leitura honesta, uma evidente e injustificada extrapolao. Para Bento Santiago, o narrador, no h a mnima dvida do valor das provas circunstanciais de que dispe: Ezequiel filho de Escobar. E o texto no coloca, em momento algum, em questo o valor destas provas circunstanciais, nem do ponto de vista objetivo - o valor em si das mesmas - nem de um ponto de vista subjetivo - a capacidade de discernimento do protagonista. No texto, Bento Santiago antes um ingnuo - por perceber tarde demais o problema do que um manomanaco ou um obsessivo. Ele apresentado, alis, como um exemplo perfeito de normalidade, segundo se pode deduzir de sua vida posterior morte dos que o rodeavam. Afirmaes como 'o texto uma viso distorcida, pois a viso de Bentinho' ou 'a narrativa de Capitu seria diferente' so hipotticos absurdos, a no ser que se queira ver Dom Casmurro como uma grande armadilha montada por este mestre da narrativa que MA com o objetivo de divertir-se s custas de seus leitores de todas as pocas. Seja como for, esta discusso acabou sendo muito justamente relegada a um plano sem importncia e a crtica prefere hoje salientar elementos cuja presena no texto inegavelmente slida. Em primeiro lugar, retomando o velho tema, nunca abandonado nos estudos sobre Dom Casmurro, do humour machadiano, procura analis-lo em outro plano, localizando-o historicamente. Nesta perspectiva, a mistura de serenidade e desencanto perante a vida - encarnada por Bento Santiago mais do que por qualquer outro personagem de Machado de Assis - deixa de ser apenas um genrico olhar de tristeza lanado sobre a condio humana e passa a smbolo da falta de perspectivas e da decadncia de uma elite que, sobre uma estrutura escravista, montara uma pardia aristocrtica nos trpicos dominados pelo empuxo avassalador do capitalismo industrial anglo-francs. Sereno mas incapaz de ao, conformado mas pessimista, Bento Santiago carrega em si o fim

de um tempo e, em sua lucidez, vinga-se de todos, a todos sobrevivendo e de todos fazendo o necrolgio. Um necrolgio, contudo - e este o segundo ponto em que insistem mais recentes que um registro minucioso da sociedade do RJ e, por extenso, do Brasil litorneo da segunda de do sculo passado. Do prosaico dia-a-dia da cidade aos valores culturais ento dominantes, das formas de namoro s relaes de classe, da estrutura do casamento estrutura econmica e aos caminhos de ascenso social dentro dela - um dos quais a carreira eclesistica -, tudo a est fixado para a posteridade com o rigor de um gravurista. Com o rigor de um mestre da narrativa realista/naturalista do Ocidente, na qual sem dvida, Dom Casmurro tem um lugar reservado.

Os Melhores Poemas - Gonalves Dias Gonalves Dias foi um dos poucos poetas que soube dar um toque realmente brasileiro na sua poesia romntica, mesmo escrevendo sobre todos os temas mais caros ao Romantismo europeu, como o amor impossvel, a religio, a tristeza e a melancolia. Suas paixes so reveladas muitas vezes num tom ingnuo e melanclico, mas muito menos tempestuosas e depressivas que as dos poetas da segunda gerao romntica. A morte e a fuga do real no lhe so to atraentes, principalmente quando esse real inclui as belezas naturais de sua terra to amada. Suas musas parecem se fundir s belas imagens e fragrncias da natureza, lembrando vrias vezes a prpria ptria, que cantada com toda a sua exuberncia e saudade, revigorada pelo seu sentimento nacionalista.

A saudade, alis, a grande mola propulsora que leva o poeta a escrever em Coimbra o poema que considerado por muitos a mais bela obra-prima de nossa literatura: A Cano do Exlio. O nome de Gonalves Dias est mais ligado, porm, com a poesia indianista. Isso se deve ao fato de ningum ter conseguido criar versos to lricos, belos e magnficos quantos os que o poeta maranhense dedicou aos costumes, crenas, tradies dos ndios brasileiros, por ele considerados como verdadeiros representantes de nossa cultura nacional. A figura do indgena ganha tons mticos e picos dentro da poesia, capazes de colocar tona toda a sua harmonia com a natureza, sua honra, virtude, coragem e sentimentos amorosos, mesmo que isso muitas vezes signifique uma imagem idealizada e exacerbada de sua vida quotidiana. , apesar de todo esforo nacionalista, o resqucio da viso que os povos da Europa tinham do selvagem da Amrica, aliada a uma tentativa de conciliao entre a sua imagem e os ideais e honras do cavaleiro medieval europeu, fartamente cantado no Romantismo. Mais do que uma vigorosa exaltao nacionalista, alguns dos versos que Gonalves Dias dedicou aos ndios servem e muito para denunciar os trs sculos de destruio que os colonizadores impuseram s suas culturas.

Melhores Poemas- Joo Cabral de Melo Neto Catar Feijo Catar feijo se limita com escrever: Jogam-se os gros na gua do alguidar E as palavras na da folha de papel; e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiar no papel, gua congelada, por chumbo seu verbo; pois catar esse feijo, soprar nele, e jogar fora o leve e oco, palha e eco. Ora, nesse catar feijo entra um, risco o de que entre os gro pesados entre um gro imastigvel, de quebrar dente. Certo no, quando ao catar palavras:

a pedra d frase seu gro mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, aula a ateno, isca-a com risco. Joo Cabral de Melo Neto Ao nos depararmos com o poema sentimos certa dificuldade em interpretlo, no mesmo? Mas natural que isso ocorra, pois trata-se de uma poesia introspectiva, baseada na reflexo, no desvendar da essncia camuflada pela linguagem. Mas primeiramente iremos conhecer quem foi este engenhoso poeta, para somente assim podermos nos inteirar de suas caractersticas pessoais. Joo Cabral de Melo Neto (1920 - 1999) o mais importante poeta da gerao de 45. Nasceu em Recife e passou a infncia em engenhos de acar em So Loureno da Mata e Moreno. Desde cedo demonstrava interesse pela palavra, pela literatura de cordel nordestina e desejava ser crtico literrio. Em 1946 ingressou na carreira diplomtica e, a partir de ento, serviu em vrias cidades do mundo: Barcelona, Londres, Sevilha, Madri, Porto, Rio de Janeiro, aposentando-se em 1990. Sua obra apresenta duas linhas-mestras: a metapotica e a participante. A linha metapotica abrange os poemas de investigao do prprio fazer potico. E a participante aquela que tem como tema o Nordeste, com todos os problemas voltados para a questo social, tais como a misria, a indigncia, a fome, entre outros. Uma das celebridades que retrata bem esta temtica foi a obra Morte e Vida Severina, a qual revela a histria de um retirante de 20 anos que sai em buscas de melhores condies de vida. Dando prioridade anlise da poesia mencionada, percebemos que o artista parece no dialogar com um leitor comum, mas com os outros poetas. Podemos chamar isto de Mtrica do Intelecto, no qual o fazer potico tem o seu sublime destaque. Podemos perceber que ele utiliza um simples ato do cotidiano, que o de catar feijo, e compara-o com a prtica da escrita, ou seja, assim como os gros devem ser minuciosamente escolhidos, as palavras devem ser muito bem articuladas para que haja clareza, no que se refere ao exerccio da linguagem. A afirmativa torna-se verdica ao analisarmos os seguintes versos: Joga-se os gros na gua do alguidar E as palavras na folha de papel E depois, joga-se fora o que boiar. Por Vnia Duarte Graduada em Letras Equipe Brasil Escola JOO CABRAL DE MELO NETO (1920-1999).

POETA-ENGENHEIRO. DIPLOMATA-SERVIU EM VRIOS PASES EUROPEUS E SUL-AMERICANOS. ESPANHA BRASIL (ANALOGIA)

CARACTERSTICAS GERAO DE 45 FORMAS REGULARES DE ESTROFAO E AO VERSO METRIIFCADO

ESTILO Criou um estilo seco, antilrico, de musicalidade dissonante. Textos de configurao concreta: EX: O LPIS, O ESQUADRO, O PAPEL: O DESENHO, O PROJETO, O NMERO; O ENGENHEIRO PENSA O MUNDO JUSTO. MUNDO QUE NENHUM VU ENCOBRE. (...)

Melhores Poemas - Manuel BandeiraObra organizada em 1984 rene os poemas mais expressivos de Manuel Bandeira. Em toda a sua trajetria potica Manuel Bandeira nos mostra a preocupao com a constante busca por novas formas de expresso. A principal caracterstica da obra de Bandeira , sem sobra de dvidas, o emprego do verso livre. No entanto, isso no significa que Bandeira no fizesse uso das formas fixas. Nas suas ltimas obras ele utilizou-se muito da forma mais clssica de todas: o soneto. Os versos livres de Bandeira sempre foram escritos sem preocupaes. Ele no gostava de modificar nada. At mesmo, segundo o prprio poeta, o poema "Vou me embora para Pasrgada" foi escrito dessa forma. Os principais temas de seus poemas foram: solido, dor e o medo da morte. O

cotidiano de Santa Tereza, local onde morava, era constantemente transformado em crnicas. Explorava os elementos sensoriais (viso, audio, tato, olfato, gustao) de forma que se ressaltava em seus poemas. Herdeiro da musicalidade simbolista, sempre se preocupou com a sonoridade, harmnica ou dissonante, dando um efeito mais agressivo a quaisquer temas. Nos textos eminentemente sensuais, nota-se a linguagem coloquial, anti-retrica, despojada, a grandiloqncia, as metforas arrojadas, muito usadas por poetas como Castro Alves e Olavo Bilac. Poemas escolhidos INGNUO ENLEIO Ingnuo enleio de surpresa, Sutil afago em meus sentidos, Foi para mim tua beleza, A tua voz nos meus ouvidos. Ao p de ti, do mal antigo Meu triste ser convalesceu. Ento me fiz teu grande amigo, E teu afeto se me deu. Mas o teu corpo tinha a graa Das aves...Musical adejo... Vela no mar que freme e passa... E assim nasceu o meu desejo. Depois, momento por momento, Eu conheci teu corao. E se mudou meu sentimento Em doce e grave adorao. O IMPOSSVEL CARINHO Escuta, eu no quero contar-te o meu desejo Quero apenas contar-te a minha ternura Ah se em troca de tanta felicidade que me ds Eu te pudesse repor - Eu soubesse repor No corao despedaado As mais puras alegrias de tua infncia! TEMA E VOLTAS Mas para qu tanto sofrimento, se nos cus h o lento deslizar da noite? Mas para qu

tanto sofrimento, se l fora o vento um canto na noite? Mas para qu tanto sofrimento, se agora, ao relento, cheira a flor da noite? Mas para qu tanto sofrimento, se o meu pensamento livre na noite?

O Calor das Coisas Nlida Pinon A obra O calor das coisas, de Nlida Pion, um livro de contos que tratam de circunstncias presentes no cotidiano das pessoas. So treze histrias nas quais fcil perceber as mesmas preocupaes da autora: a importncia da palavra e a manipulao poltica da linguagem. Desta vez, porm, h uma grande carga de humor. De fina ironia e construo complexa para desvendar os mais recnditos cantes da alma de seus personagens. Nlida utiliza imagens belas e delicadas para tratar das paixes humanas. Seus enredos, sempre originais, muitas vezes confundem-se com o discurso. Nlida alterna poesia e crtica, racionalidade e erotismo em pginas de leitura voraz e provocadora. A obra de Pion instigante e envolvente. Ela traz em sua estrutura temtica o desdobrar e o atualizar em cada publicao, seja de romances, de contos ou de ensaios. Reflete em sua obra a preocupao constante com questes referentes criao do texto, linguagem, religio (pantesta ou crist), ao mito, ao amor associado aos questionamentos do cristianismo, paixo, solido humana e, entre outras, realizao feminina

Nesta obra tm-se personagens do mundo contemporneo vivendo momentos significativos mas no necessariamente excepcionais e historicamente marcados. A multiplicidade das histrias deixa ver um certo nmero de temas recorrentes, que se espelham entre si e se desenvolvem uns aos outros. Tem-se assim, por exemplo, o tema fantstico da unio (im)possvel de espcies diferentes e o da mutao humana, o do incesto e o da homossexualidade. Em todos os casos tem-se o homem infrator, ora por sua ao, ora pela inao que, nesses contos, no significa jamais fraqueza mas escolha e assuno de fora. Esse homem infrator exige, limpa, ordena, organiza, que tais so os verbos recorrentes na gramtica nelidiana. Nas histrias que nesse livro se conta, no h reorganizao (construo) do mundo destrudo pelos personagens, pelas circunstncias, pela narrao. Quando ocorre, a auto-organizao do protagonista implica a desvalorizao de seu contexto, que s lhe interessa como cenrio, palco de experincias prprias e no partilhveis. De fato, tem-se nesses contos, em vrios nveis e em vrios matizes, a mesma narrativa de solido, em que toda relao interpessoal vista como radicalmente impossvel e na qual lesiva toda tentativa nesse sentido. por isso que no se pode, a rigor, falar da existncia de dilogos nesses textos. Entre os personagens s h monlogos e o preenchimento do silncio pelo pastiche do lugar-comum, falas que apontam o vazio de que so feitas. Os contos O calor das coisase A sombra da caa destacam-se na composio do livro de que participa. O primeiro por dar nome coletnea de que faz parte, o outro por ocupar o significativo lugar de ltimo conto do livro, como a indicar que nele se poderia buscar (como nos romances policiais) a chave para o(s) mistrio(s) de sentido que se teriam enovelado at ento. Se, quando apreciados tematicamente, v-se atravessar tais textos o sentimento de eroso, este tambm se exprime na linguagem. Assim, j primeira abordagem, a dico destes contos se mostra provocadora, elaborando uma narrativa densa, que exige toda a ateno do leitor para a percepo do seu sentido. Pode-se mesmo dizer que o discurso nelidiano revela-se uma experincia sobre as possibilidades de expresso da tenso pensamento/linguagem fora da norma lingstica e que da advm a dificuldade que oferece a seu leitor. Nesse discurso pode-se tambm identificar a presena de alguns aspectos da retrica do carnaval, tais como o estilo grotesco como em O calor das coisas e O sorvete um palcio. a presena do mecanismo da pardia que melhor caracteriza a estruturao dos mais significativos textos do livro em questo. Atravs de tal procedimento perpassam os mais bem sucedidos nesses contos, narrativas advindas de lugares to variados quanto a Bblia em O jardim das oliveiras; o repertrio artstico popular brasileiro em Disse um campnio a sua amada; um determinado corpus de valores e padres de comportamento em I love my husband (leia abaixo na ntegra) ou Tarzan e Beijinho. Esses textos bsicos (e considera-se como texto tambm o conjunto de valores e padres de comportamento vigentes a partir dos anos 60 do sculo XX) constituem o indispensvel pano de fundo do conto nelidiano, que os relativiza sem jamais os anular.

Esto, assim, sempre presentes, indicando o quanto o discurso da autora deles se serviu e o quanto deles se afastou e assinalando, dessa maneira, a tonalidade irnica desse discurso. Assim, por exemplo, a agonia de Cristo convocada na expresso da angstia daquele que renega seus antigos valores, em O jardim das oliveiras, primeiro conto da obra. Este conto narra, em primeira pessoa, a histria de um preso que no suporta ser torturado, que examina os horrores da ditadura e a covardia moral dos seres humanos. Assim como Pedro nega Cristo, o protagonista desta histria pretende negar a si mesmo. CONTO ESCOLHIDO: I love my husband Eu amo meu marido. De manh noite. Mal acordo, ofereo-lhe caf. Ele suspira exausto da noite sempre maldormida e comea a barbear-se. Bato-lhe porta trs vezes, antes que o caf esfrie. Ele grunhe com raiva e eu vocifero com aflio. No quero meu esforo confundido com um lquido frio que ele tragar como me traga duas vezes por semana, especialmente no sbado. Depois, arrumo-lhe o n da gravata e ele protesta por consertar-lhe unicamente a parte menor de sua vida. Rio para que ele saia mais tranqilo, capaz de enfrentar a vida l fora e trazer de volta para a sala de visita um po sempre quentinho e farto. Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a loua, fazendo compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constri o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao cho, os amigos o cumprimentam pelo esforo de criar olarias de barro, todas slidas e visveis. A mim tambm me sadam por alimentar um homem que sonha com casasgrandes, senzalas e mocambos, e assim faz o pas progredir. E por isto que sou a sombra do homem que todos dizem eu amar. Deixo que o sol entre pela casa, para dourar os objetos comprados com esforo comum. Embora ele no me cumprimente pelos objetos fluorescentes. Ao contrrio, atravs da certeza do meu amor, proclama que no fao outra coisa seno consumir o dinheiro que ele arrecada no vero. Eu peo ento que compreenda minha nostalgia por uma terra antigamente trabalhada pela mulher, ele franze o rosto como se eu lhe estivesse propondo uma teoria que envergonha a famlia e a escritura definitiva do nosso apartamento. O que mais quer, mulher, no lhe basta termos casado em comunho de bens? E dizendo que eu era parte do seu futuro, que s ele porm tinha o direito de construir, percebi que a generosidade do homem habilitava-me a ser apenas dona de um passado com regras ditadas no convvio comum. Comecei a ambicionar que maravilha no seria viver apenas no passado, antes que este tempo pretrito nos tenha sido ditado pelo homem que dizemos amar. Ele aplaudiu o meu projeto. Dentro de casa, no forno que era o lar, seria fcil alimentar o passado com ervas e mingau de aveia, para que ele, tranqilo, gerisse o futuro. Decididamente, no podia ele preocupar-se com a matriz do meu ventre, que devia pertencer-lhe de modo a no precisar cheirar o meu sexo para descobrir quem mais, alm dele, ali estivera, batera-lhe porta, arranhara suas paredes com inscries e datas. Filho meu tem que ser s meu, confessou aos amigos no sbado do ms que

recebamos. E mulher tem que ser s minha e nem mesmo dela. A idia de que eu no podia pertencer-me, tocar no meu sexo para expurgar-lhe os excessos, provocou-me o primeiro sobressalto na fantasia do passado em que at ento estivera imersa. Ento o homem, alm de me haver naufragado no passado, quando se sentia livre para viver a vida a que ele apenas tinha acesso, precisava tambm atar minhas mos, para minhas mos no sentirem a doura da prpria pele, pois talvez esta doura me ditasse em voz baixa que havia outras peles igualmente doces e privadas, cobertas de plo felpudo, e com a ajuda da lngua podia lamber-se o seu sal? Olhei meus dedos revoltada com as unhas longas pintadas de roxo. Unhas de tigre que reforavam a minha identidade, grunhiam quanto verdade do meu sexo. Alisei meu corpo, pensei, acaso sou mulher unicamente pelas garras longas e por revestilas de ouro, prata, o mpeto do sangue de um animal abatido no bosque? Ou porque o homem adorna-me de modo a que quando tire estas tintas de guerreira do rosto surpreende-se com uma face que lhe estranha, que ele cobriu de mistrio para no me ter inteira? De repente, o espelho pareceu-me o smbolo de uma derrota que o homem trazia para casa e tornava-me bonita. No verdade que te amo, marido? perguntei-lhe enquanto lia os jornais, para instruir-se, e eu varria as letras de imprensa cuspidas no cho logo aps ele assimilar a notcia. Pediu, deixe-me progredir, mulher. Como quer que eu fale de amor quando se discutem as alternativas econmicas de um pas em que os homens para sustentarem as mulheres precisam desdobrar um trabalho de escravo. Eu lhe disse ento, se no quer discutir o amor, que afinal bem pode estar longe daqui, ou atrs dos mveis para onde s vezes escondo a poeira depois de varrer a casa, que tal se aps tantos anos eu mencionasse o futuro como se fosse uma sobremesa? Ele deixou o jornal de lado, insistiu que eu repetisse. Falei na palavra futuro com cautela, no queria feri-lo, mas j no mais desistia de uma aventura africana recm-iniciada naquele momento. Seguida por um cortejo untado de suor e ansiedade, eu abatia os javalis, mergulhava meus caninos nas suas jugulares aquecidas, enquanto Clark Gable, atrado pelo meu cheiro e do animal em convulso, ia pedindo de joelhos o meu amor. Sfrega pelo esforo, eu sorvia gua do rio, quem sabe em busca da febre que estava em minhas entranhas e eu no sabia como despertar. A pele ardente, o delrio, e as palavras que manchavam os meus lbios pela primeira vez, eu ruborizada de prazer e pudor, enquanto o paj salvava-me a vida com seu ritual e seus plos fartos no peito. Com a sade nos dedos, da minha boca parecia sair o sopro da vida e eu deixava ento o Clark Gable amarrado numa rvore, lentamente comido pelas formigas. Imitando a Nayoka, eu descia o rio que quase me assaltara as foras, evitando as quedas d'gua, aos gritos proclamando liberdade, a mais antiga e mirade das heranas. O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal cado no cho, pediame, o que significa este repdio a um ninho de amor, segurana, tranqilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha voc, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, s porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que voc comea a chorar discreto, porque o teu orgulho no lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado minha condio de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para no v-lo sofrer. Ser que apagando o futuro agora ainda h tempo de salvar-te?

Suas crateras brilhantes sorveram depressa as lgrimas, tragou a fumaa do cigarro com volpia e retomou a leitura. Dificilmente se encontraria homem como ele no nosso edifcio de dezoito andares e trs portarias. Nas reunies de condomnio, a que estive presente, era ele o nico a superar os obstculos e perdoar aos que o haviam magoado. Recriminei meu egosmo, ter assim perturbado a noite de quem merecia recuperar-se para a jornada seguinte. Para esconder minha vergonha, trouxe-lhe caf fresco e bolo de chocolate. Ele aceitou que eu me redimisse. Falou-me das despesas mensais. Do balano da firma ligeiramente descompensado, havia que cuidar dos gastos. Se contasse com a minha colaborao, dispensaria o scio em menos de um ano. Senti-me feliz em participar de um ato que nos faria progredir em doze meses. Sem o meu empenho, jamais ele teria sonhado to alto. Encarregava-me eu distncia da sua capacidade de sonhar. Cada sonho do meu marido era mantido por mim. E, por tal direito, eu pagava a vida com cheque que no se poderia contabilizar. Ele no precisava agradecer. De tal modo atingira a perfeio dos sentimentos, que lhe bastava continuar em minha companhia para querer significar que me amava, eu era o mais delicado fruto da terra, uma rvore no centro do terreno de nossa sala, ele subia na rvore, ganhava-lhe os frutos, acariciava a casca, podando seus excessos. Durante uma semana bati-lhe porta do banheiro com apenas um toque matutino. Disposta a fazer-lhe novo caf, se o primeiro esfriasse, se esquecido ficasse a olharse no espelho com a mesma vaidade que me foi instilada desde a infncia, logo que se confirmou no nascimento tratar-se de mais uma mulher. Ser mulher perder-se no tempo, foi a regra de minha me. Queria dizer, quem mais vence o tempo que a condio feminina? O pai a aplaudia completando, o tempo no o envelhecimento da mulher, mas sim o seu mistrio jamais revelado ao mundo. J viu, filha, que coisa mais bonita, uma vida nunca revelada, que ningum colheu seno o marido, o pai dos seus filhos? Os ensinamentos paternos sempre foram graves, ele dava brilho de prata palavra envelhecimento. Vinha-me a certeza de que ao no se cumprir a histria da mulher, no lhe sendo permitida a sua prpria biografia, era-lhe assegurada em troca a juventude. S envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque vivers a vida do teu marido, ns te garantimos, atravs deste ato, que sers jovem para sempre. Eu no sabia como contornar o jbilo que me envolvia com o peso de um escudo, e ir ao seu corao, surpreender-lhe a limpidez. Ou agradecer-lhe um estado que eu no ambicionara antes, por distrao talvez. E todo este trofu logo na noite em que ia converter-me em mulher. Pois at ento sussurravam-me que eu era uma bela expectativa. Diferente do irmo que j na pia batismal cravaram-lhe o glorioso estigma de homem, antes de ter dormido com mulher. Sempre me disseram que a alma da mulher surgia unicamente no leito, ungido seu sexo pelo homem. Antes dele a me insinuou que o nosso sexo mais parecia uma ostra nutrida de gua salgada, e por isso vago e escorregadio, longe da realidade cativa da terra. A me gostava de poesia, suas imagens sempre frescas e quentes. Meu corao ardia na noite do casamento. Eu ansiava pelo corpo novo que me haviam prometido, abandonar a casca que me revestira no cotidiano acomodado. As mos do marido me modelariam at os meus ltimos dias e como agradecer-lhe tal

generosidade? Por isso talvez sejamos to felizes como podem ser duas criaturas em que uma delas a nica a transportar para o lar alimento, esperana, a f, a histria de uma famlia. Ele nico a trazer-me a vida, ainda que s vezes eu a viva com uma semana de atraso. O que no faz diferena. Levo at vantagens, porque ele sempre a trouxe traduzida. No preciso interpretar os fatos, incorrer em erros, apelar para as palavras inquietantes que terminam por amordaar a liberdade. As palavras do homem so aquelas de que deverei precisar ao longo da vida. No tenho que assimilar um vocabulrio incompatvel com o meu destino, capaz de arruinar meu casamento. Assim fui aprendendo que a minha conscincia que est a servio da minha felicidade ao mesmo tempo est a servio do meu marido. seu encargo podar meus excessos, a natureza dotou-me com o desejo de naufragar s vezes, ir ao fundo do mar em busca das esponjas. E para que me serviriam elas seno para absorver meus sonhos, multiplic-los no silncio borbulhante dos seus labirintos cheios de gua do mar? Quero um sonho que se alcance com a luva forte e que se transforme algumas vezes numa torta de chocolate, para ele comer com os olhos brilhantes, e sorriremos juntos. Ah, quando me sinto guerreira, prestes a tomar das armas e ganhar um rosto que no o meu, mergulho numa exaltao dourada, caminho pelas ruas sem endereo, como se a partir de mim, e atravs do meu esforo, eu devesse conquistar outra ptria, nova lngua, um corpo que sugasse a vida sem medo e pudor. E tudo me treme dentro, olho os que passam com um apetite de que no me envergonharei mais tarde. Felizmente, uma sensao fugaz, logo busco o socorro das caladas familiares, nelas a minha vida est estampada. As vitrines, os objetos, os seres amigos, tudo enfim orgulho da minha casa. Estes meus atos de pssaro so bem indignos, feririam a honra do meu marido. Contrita, peo-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentaes. Ele parece perdoar-me distncia, aplaude minha submisso ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. Confesso que esta nsia me envergonha, no sei como abrand-la. No a menciono seno para mim mesma. Nem os votos conjugais impedem que em escassos minutos eu naufrague no sonho. Estes votos que ruborizam o corpo mas no marcaram minha vida de modo a que eu possa indicar as rugas que me vieram atravs do seu arrebato. Nunca mencionei ao marido estes galopes perigosos e breves. Ele no suportaria o peso dessa confisso. Ou que lhe dissesse que nessas tardes penso em trabalhar fora, pagar as miudezas com meu prprio dinheiro. Claro que estes desatinos me colhem justamente pelo tempo que me sobra. Sou uma princesa da casa, ele me disse algumas vezes e com razo. Nada pois deve afastar-me da felicidade em que estou para sempre mergulhada. No posso reclamar. Todos os dias o marido contraria a verso do espelho. Olho-me ali e ele exige que eu me enxergue errado. No sou em verdade as sombras, as rugas com que me vejo. Como o pai, tambm ele responde pela minha eterna juventude. gentil de sentimentos. Jamais comemorou ruidosamente meu aniversrio, para eu esquecer de contabilizar os anos. Ele pensa que no percebo. Mas, a verdade que no fim do dia j no sei quantos anos tenho. E tambm evita falar do meu corpo, que se alargou com os anos, j no visto os

modelos de antes. Tenho os vestidos guardados no armrio, para serem discretamente apreciados. s sete da noite, todos os dias, ele abre a porta sabendo que do outro lado estou sua espera. E quando a televiso exibe uns corpos em florao, mergulha a cara no jornal, no mundo s ns existimos. Sou grata pelo esforo que faz em amar-me. Empenho-me em agrad-lo, ainda que sem vontade s vezes, ou me perturbe algum rosto estranho, que no o dele, de um desconhecido sim, cuja imagem nunca mais quero rever. Sinto ento a boca seca, seca por um cotidiano que confirma o gosto do po comido s vsperas, e que me alimentar amanh tambm. Um po que ele e eu comemos h tantos anos sem reclamar, ungidos pelo amor, atados pela cerimnia de um casamento que nos declarou marido e mulher. Ah, sim, eu amo meu marido..

O Cobrador - Rubem Fonseca O O Cobrador um livro de contos publicado em 1979, que rene contos de Rubem Fonseca. Constituda por dez contos, a coletnea est centrada no tema da violncia: a pedofilia e o aborto em Pierr da Caverna; assassinato por encomenda em Encontro no Amazonas; as lutas armadas em Caminho de Assuno; trfico de drogas, extorso e assassinato em Mandrake; violncia familiar e no trnsito, alm de suicdio em Livro de Ocorrncias; estupro em Almoo na Serra no Domingo de Carnaval; doenas infecto-contagiosas e escravismo em H. M. S. Cormorant em Paranagu; grupos de extermnio em O Jogo do Morto. Alm da discriminao social em Onze de Maio e a violncia generalizada em O

Cobrador. O escritor usa uma narrativa agressiva, com forte realismo, para retratar o submundo do crime e da violncia urbana no Rio de Janeiro da dcada de 70. Nos contos o autor passa pela Guerra do Paraguai, pelo Amazonas, passando pelo Rio de Janeiro, sempre focando figuras banais mas, que olhadas com um pouco mais de ateno, de banais no tem nada. O Cobrador um livro de contos bem distintos entre si, mas que tm em comum o fato de manterem sempre o seu foco no homem sofrido. Sofrido no pela guerra ou pelas doenas, mas pelo dia a dia, que s vezes exige muito dele prprio, se alimenta de seu sangue e de sua energia psquica sem que se d conta, a no ser quando entra em colapso. E para representar isso, escolher as palavras certas dentro do mundo coloquial uma arte, uma grande arte, que Rubem Fonseca exerce com maestria. No livro Rubem Fonseca continua a dar preferncia ao espao conflitante da cidade grande, retratando a o universo da clandestinidade social. A linguagem do escritor, como nas obras anteriores, articula-se equilibradamente entre uma arte de texto e de contexto, valendo tanto pelo seu contedo semntico quanto pela sua elaborao esttico-formal. Passagens de obras de Machado de Assis, Haroldo de Campos, Maiakovski, Velimir Khlbnikov e Isaak Babel percorrem o tecido narrativo dos contos, fazendo parte da urdidura do texto que as engloba para com e sobre elas dialogar, valorizando-as, parodiando-as ou distorcendo-as. O trabalho com citaes eruditas provenientes de obras da literatura nacional e ocidental se constitui como uma as principais marcas da fico de Rubem Fonseca. Vejamos alguns contos da obra. O COBRADOR O primeiro conto, que d nome ao livro, sobre um homem que sai pelas ruas cobrando o que lhe devem. O que lhe devem? Dignidade. Quem lhe deve? A sociedade. Na primeira cena, ele est em um consultrio de dentista e se recusa a pagar a conta. Por que ele pagaria alguma coisa se ningum lhe pagava a dignidade que ele merecia? E naquele momento ele declara que no faz mais parte daqueles que so cobrados, mas dos cobradores. Mesmo que se precise de uma arma para isso porque esse preo custa muita violncia e radicalismo. PIERR DA CAVERNA No conto "Pierr na caverna", um escritor monologa com a maquineta, isto , um gravador. Ele busca assim uma liberdade de expresso que a palavra escrita no lhe permitia. Quando escrevia, precisava buscar o estilo requintado que os crticos tanto elogiavam e que era apenas um trabalho paciente de ourivesaria. Por exemplo, ele jamais escreveria inconciliabilidade. Sua vida corriqueira era o oposto da alegoria sobre a ambio, a soberba e a impiedade que seu prestgio de escritor impelia a incluir numa novela. Apesar da correspondncia entre o registro oral e o verbal que percebe, o uso do gravador era para ele uma libertao. Mas uma libertao com uso imoderado do literrio que acumulara na memria. Surgiu ento uma sarabanda de aluses a textos, a tal ponto que ele chega a usar uma frase em grego. Tem-se a

uma inverso curiosa: a oralidade que permite uma exploso mais livre do literrio verdadeiro, freado no cotidiano pelas convenes mesquinhas da vida literria. "Pierr na caverna" ironiza a metfora platnica a fim de enredar o tema da paixo numa corrente de sarcasmos. Tudo isso est mesclado com uma histria do dia-a-dia, mas, tambm a, o literrio penetra soberano. A menininha de doze anos que ele, um cinqento, acaba possuindo, chama-se Sofia como a herona de Quincas Borba. Em meio do monlogo aloucado do cinqento repontam ecos machadianos. Aps contemplarmos certas coisas, ou uma determinada coisa, h que mudar de vida. Parece que ele insiste em usar, ao lado de formas bem coloquiais, outras que s o acervo de elementos literrios de sua memria poderia sugerir. Toda a histria lembra algo da Grcia, freqentemente da Grcia contaminada pela luxria oriental, a Grcia da decadncia. O prprio nome do pai da menina reboa a princpio com a grandiosidade clssica: Milcades. Mas, ameaador inicialmente em relao ao sedutor de sua filha (parece mais certo: seduzido por ela), amolece e acaba tomando um usque no apartamento deste (com voz mais suave e conciliadora: com gelo). Evidentemente, Grcia e mundo moderno se misturam, os planos do literrio e do real acabam embaralhados. Mas, apesar de toda essa liberdade que o escritor assume diante do gravador, acaba aparecendo a dificuldade de comunicar: No sei, estou muito confuso, sinto que estou escondendo coisas de mim, eu sempre fao isso quando escrevo mas nunca pensei que o fizesse falando em segredo com esta fria maquineta. E, ao mesmo tempo, toda esta dificuldade de comunicao, to angustiosa, no o impede de contar de modo excelente uma histria construda, com incio, meio e fim, entre os episdios soltos e a literatura de seu monlogo oral. Em outros contos, igualmente, percebe-se a repercusso de textos dos escritores mais diversos. ENCONTRO NO AMAZONAS Em "Encontro no Amazonas" h uma descrio minuciosa de uma extica viagem de balsa pelos rios amaznicos. Neste conto o narrador e seu scio, Carlos Alberto, perseguem uma pessoa durante anos. "Soubemos que ele havia se deslocado de Corumb a Belm, via Braslia, de nibus", comea o conto. O perseguido vinha do Sul, da fronteira com a Argentina, e de repente desaparece no se sabe em que direo: talvez rumo a Macap ou Manaus, ou quem sabe mais a oeste, para Porto Velho e depois Rio Branco. Nem sequer as feies do homem (deduz-se que um homem) so claras para os perseguidores. "Sonhei com ele", diz o narrador. "No era a primeira vez. Eu nunca o tinha visto mas sonhava com ele. Com a descrio que me haviam feito dele." sempre assim. Nunca se sabe quando se pisa em terreno seguro, nunca se sabe por que acontece o que est acontecendo, nem para qu. A arte dos contos de Fonseca retesar a corda das palavras para que expressem o vazio do mundo, a antipatia dos indivduos pela espcie: neles se mata e se destri por inrcia, se trepa por inrcia. O amor pode destruir tudo. CAMINHO DE ASSUNO

O conto "Caminho de Assuno" parece retomar, como parte de um sistema literrio pessoal, certos procedimentos caros a Isaac Bbel (a frase curta e fustigante; os pormenores de cor e de cheiro que se destacam; a guerra em seu horror, dada incisivamente em primeiros planos eisensteinianos, pode-se dizer - uma sucesso de metonmias que se gravam na memria; tudo isso numa verdadeira montagem de episdio, em quatro pginas escassas, mas altamente significativas) teramos assim histrias da Guerra Russo-Polonesa de 1920 repercutindo numa narrativa sobre a Guerra do Paraguai! Neste conto um soldado experimenta o sangue durante a Guerra do Paraguai. LIVRO DE OCORRNCIAS Fazendo jus a seu ttulo, "Livro de ocorrncias" conta, em detalhes, trs ocorrncias policiais. Narrado em primeira pessoa por um delegado, "Livro de ocorrncias" consegue posicionar-se num interessante nterim entre o frio e seco registro criminal e a narrativa literria. ALMOO NA SERRA NO DOMINGO DE CARNAVAL Neste conto de Rubem Fonseca, o narrador brinca com o dilogo e se angustia com um estupro amoroso. Zeca odeia sua ex-namorada e a famlia dela. Quando ele os v numa festa em sua antiga casa, adquirida pela famlia da moa depois da pressuposta runa econmica da famlia do rapaz, ele executa um plano de vingana contra a moa. O JOGO MORTO Neste conto temos a impresso de que o escritor est apresentando um tipo de histria com que j nos acostumou e na qual adquiriu um domnio invejvel: o conto de violncia e banditismo, descritos freqentemente com simplicidade, num tom cotidiano e isento de pattico, como se a morte nestas circunstncias fosse algo normal e aceitvel. No caso, esta impresso se refora pelo fato de a ao se passar na Baixada Fluminense, numa das zonas de domnio do Esquadro da Morte. Eventualmente, algum pode especular sobre a figura misteriosa de Falso Perptua atribuir a tudo um tom metafsico. Tem-se, pelo menos, esta possibilidade em suspenso. "O jogo do morto", narrado em terceira pessoa e os protagonistas quase sempre so homens perturbados que se relacionam sexualmente com pelo menos uma mulher, mas dentro dessas aparentes restrices, Fonseca experimenta vrios estilos e temticas. H. M. S. CORMORANT EM PARANAGU Neste conto, atravs de um episdio da vida de lvares de Azevedo, o autor trata de questes como dependncia econmica e cultural, escravido, posio incmoda do intelectual etc.

"H.M.S. Cormorant em Paranagu" trata do perodo, no nosso Segundo Imprio, em que a hostilidade aos ingleses explodiu violentamente, culminando na Questo Christie. Aparecem a, em profuso, clichs do romantismo, episdios que repetem a biografia de Byron, o prprio Byron tambm surge no texto, aluses shakespeareanas transmudam-se no kitsch romntico to comum nos nossos poetas da poca, e o personagem, em meio do seu delrio, chega a falar em versos to pfios que se tornam tocantes. ONZE DE MAIO "Onze de Maio" o ttulo de um dos contos de O cobrador. Passa-se numa espcie de casa de repouso para velhos e todos vivem em cubculos. O autor pe em ao um personagem-narrador que, internado num asilo, relata os sofrimentos e humilhaes dentro daquele estabelecimento. Asilo este, que mais parece uma das prises descritas por Foucault. Narrado em primeira pessoa, este conto est fortemente ligados com a realidade social da poca. Em Onze de Maio, o jogo de apoderao , em princpio, apenas intelectual. O narrador, Jos, um professor de histria aposentado, est internado em um asilo e passa a relatar o seu dia-a-dia. Ele sente imperar naquele lugar o abandono, a degradao, o desrespeito , a humilhao e a privao. Jos, num primeiro momento, parece conformado com a situao em que se encontra: "um velho inerte, preguioso e entediado s pode abrir a boca para bocejar"(FONSECA, 1997, p. 118); entretanto, ele percebe as coisas sua volta, v que esto completamente isolados da sociedade, presos em um ambiente que mais parece presdio do que lar de idosos. Acrescentando-se que nem mesmo entre os idosos permitido o dilogo, devem ficar o tempo todo em seus cubculos esperando pela morte. Os idosos so condicionados a aceitar o tratamento humilhante que lhes dado, ficam cada vez mais dbeis e assim, no oferecem resistncia. Jos, vtima do sistema: "Aquele ser velho me foi imposto por uma sociedade corrupta e feroz, por um sistema inquo que fora milhes de seres humanos a uma vida parasitria, marginal e miservel" (FONSECA, 1997, p. 134), percebe que seus pensamentos no podem ser vigiados e que continua sendo o mesmo homem inteligente e astuto que sempre fora. Une-se, ento, aos seus companheiros, Pharoux e Cortines, para realizar um motim em busca da liberdade. A luta passa a ser no s intelectual mas tambm fsica, pois invadem a casa do diretor do asilo e tomam o poder pela fora: "A idia me agrada. A histria ensina que todos os direitos foram conquistados pela fora. A fraqueza gera opresso" (FONSECA, 1997, p. 135); ou seja, a afirmao de que os oprimidos devem fortalecer-se e usar a fora contra os opressores. Para o narrador, a nica forma de ganhar o complexo jogo da sobrevivncia. Neste conto, a perda da liberdade individual est em cada idoso internado, pois so vigiados diuturnamente pelos funcionrios. No parecendo um cerceamento da liberdade, mas sim um excesso de cuidados. O narrador, todavia, revela que no est sendo bem cuidado, ao contrrio, a alimentao pssima, no tem atendimento mdico, no tem boas condies de higiene, os internos no podem conversar entre si e devem apenas assistir televiso e dormir. Esses acontecimentos

levam o homem a um sentimento de desencanto da vida e a uma sensao de vazio existencial que Jos busca suprir com a tentativa de incitar uma revoluo, uma luta para que o ser humano venha a ter um pouco mais de dignidade ou, pelo menos, seja respeitado em sua diferena. Em Onze de Maio, a narrativa passa-se em ambiente restrito e fechado, um asilo de idosos. Porm, a distino social se d em trs nveis. A classe mdia-alta, com seus privilgios, est na figura do diretor do Lar Onze de Maio, que tem o escritrio e a casa em uma torre, smbolo da altivez e superioridade, vista tambm em sua postura. O Proletariado so os funcionrios do asilo, chamados de Irmos, lembram uma instituio religiosa; so apresentados como pessoas que se deixam manipular pelo sistema e obedecem s ordens como mquinas programadas. O marginalizado representado pelos internos, que, ao se rebelarem, desencadeiam a luta entre os estratos sociais. Nesse conto, a presso exercida de cima para baixo, eclode com a reao violenta do narrador e seus amigos, que invadem a casa do diretor na tentativa de se sobrepor quele que os dominava. O que ocorre com maior freqncia na narrativa de Onze de Maio, o "descentramento". Segundo ele, Foucault fala em poder disciplinar, Em Onze de Maio o asilo uma instituio de controle criada pelo governo da espcie humana. A vigilncia e o controle so exercidos no sentido de transformar os internos em seres apticos e de fcil manipulao. Os funcionrios so controlados pela disciplina que aprenderam a ter para manuteno de seus empregos. O diretor o representante, junto com os funcionrios, desse controle das massas no sentido de evitar uma reao ao poder constitudo. O narrador e seus amigos, ao reagirem, formam um grupo com o mesmo interesse, buscar a liberdade ou melhores condies, para assim, viver com mais dignidade o resto de suas vidas. Contudo, ao conquistarem a primeira etapa: fazer de refns o diretor e sua mulher, os interesses se diversificam quando o narrador pensa na seqncia da ao, os outros dois vo satisfazer a fome com alimentos que h muito no comiam. Enquanto no narrador afloram instintos sexuais, quando deseja passar a mo no corpo nu da mulher, em Pharoux so os instintos destrutivos que afloram, quando faz pequenas perfuraes no pescoo do diretor. Este conto, na realidade, tambm baseado na diferena e na excluso de pessoas da convivncia social. Os excludos ento desafiam e questionam a autoridade constituda e as instituies em geral e, mesmo no apresentando solues para os problemas, so valores positivos pelo simples fato de exporem o conhecimento de tal excluso. Por estarem calcados na diferena, onde o narrador sente-se vtima do sistema social elitista e preconceituoso, o conto apresenta as alteridades da violncia, que esto em torno de um eu que se sente totalmente atacado, vitimado. Esse "eu" de estrutura violenta est em Jos, narrador de Onze de Maio, que o possui com fora permanente no ser. Ele se sente humilhado e excludo da vida social por ser velho, mas consegue transpor obstculos aparentemente intransponveis para um homem de sua idade. O narrador justifica sua violncia, pela sofrida diante da sociedade que o excluiu e pelo tratamento recebido do diretor e funcionrios do asilo, que supostamente, estariam tentando mat-lo. Em Onze de Maio, a instituio representante do poder constitudo enquanto os internos so a fora que enfrenta este poder, ambos com um fim superior. A primeira, justifica a violncia contra os velhos pela crise financeira do pas e por eles no estarem mais produzindo; os internos justificam a sua reao violenta pela

busca da liberdade e da dignidade humana. Neste conto o veculo de comunicao de massa que aparece com mais evidncia a televiso. Ela est presente em toda a narrativa, utilizada como meio de alienao dos internos do asilo: "Vamos, vamos, veja a televiso, divirta-se, no fique a imaginando coisas tristes, preocupando-se toa" (FONSECA, 1997, p. 125); mas esta alienao se d, preponderantemente, pelo fato de ser um circuito interno de televiso, que passa a mesma programao o tempo todo: "A TV fica ligada o dia inteiro. Deve haver, tambm, alguma razo para isso. Os programas so transmitidos em circuito fechado de algum lugar do Lar. Velhas novelas, transmitidas sem interrupo." (FONSECA, 1997, p. 117); o narrador abre a possibilidade da televiso ser algo bom, porm, ela deve ser assistida sempre com um olhar crtico: Os Irmos [...] tambm tm televiso no quarto e assistem a outros programas que no so transmitidos para ns. Sei, por perguntas que fao inocentemente, que eles tambm dormem em frente ao vdeo. Televiso muito interessante, descontando o sono e o esquecimento.(FONSECA, 1997, p. 126) Este conto, bem como o conto "O Cobrador", levanta vrias questes sobre a sociedade ps-moderna, mas neste trabalho o objetivo foi buscar um entendimento da crise existencial vivida pelas personagens e o porqu de suas aes violentas. "Onze de Maio" comea com a questo da crise de identidade coletiva e termina com a crise de identidade individual; as trs personagens descobrem que esto sendo dopados e tm em comum o objetivo de libertar-se da situao humilhante, mas quando vencida a primeira etapa, perdem completamente o sentido da revoluo e cada um passa a resolver o seu desejo imediato.

Poemas Escolhidos Claudio Manuel da Costa O autor de Poemas Escolhidos, Cludio Manuel da Costa, um poeta do Arcadismo, gnero literrio do clssico e do til, da vida simples. Tem, tambm, caractersticas do momento barroco, gnero do exagero e do excesso. No soneto VIII deixa-nos perceber, ainda, algo do Romantismo, pois retrata nos versos seu estado da alma. Percebe-se que esse inconfidente viajou pelo mundo das letras, deixando sua vida nas pginas da Histria. Poemas Escolhidos faz parte do livro Obras, publicado em 1768 e considerado o marco inicial do Arcadismo. O autor retrata sua melancolia, tristeza e sofrimento, pela rejeio da mulher amada e pelos constantes conflitos internos vivenciados. A poesia de Cludio Manuel da Costa revela a fidelidade cultural metrpole (civilizao) e a fidelidade afetiva terra natal (vida rstica). Os poemas mostram a vida do escritor, natural de Mariana, ex-Ribeiro do Carmo, encantado com as novidades renascentistas da Europa. O escritor lamenta no poder vivenciar de perto a nova cultura europia, o centro do saber cultural. No entanto, no consegue se distanciar das suas origens. Entre os temas apresentados, o poeta fala da paisagem, relacionando pedras e suas variantes. H em seus versos penhas, penedos, penhascos, rochedos, paisagem sombria e crepuscular. Isto nos faz lembrar de sua difcil luta pelos ideais de liberdade e da perda da mulher amada. Da a simbologia da pedra, sugerindo a dureza de uma vida. A decepo amorosa domina os seus sonetos. Volta, ainda, a falar em pedra, comparando-a rudeza feminina. Comenta sobre uma pastora e um penhasco, indicando que a frieza da mulher superior da rocha. Sentimos, ao ler seus versos, que nenhuma mulher o acolheu, que vivia em uma eterna e constante decepo amorosa. A paisagem no livro o retrato do seu estado de esprito. A linguagem dos sonetos rebuscada, cheia de recursos estilsticos e figuras de linguagem definindo o que vivencia. Sonetos com imensa riqueza vocabular que retratam uma vida de tristezas, lutas, decepes. Vida que se acaba quando ele se enforca durante o processo movido pela coroa portuguesa. Nome que fica para sempre escrito na Histria e na Literatura Brasileira.

Senhora Jos de Alencar Anlise Senhora foi publicado em 1875. O romance pode ser considerado uma das obrasprimas de seu autor e uma das principais da literatura brasileira. Uma vez que trata do tema do casamento burgus, ou seja, baseado no interesse financeiro, pode ser considerada precursora do Realismo ou pr-realista. Alencar classifica a obra dentro de seus perfis de mulher, j que concentra na mulher o papel mais importante dentro da sociedade de seu tempo. Aurlia a protagonista do romance, uma jovem mulher dividida entre o amor e o dio, o desejo e o desprezo pelo homem que ama. Essa personalidade dividida apresenta um desvio psquico ocasionado a partir do rompimento do noivo, Fernando Seixas, e que causou um certo caso de esquizofrenia na personagem. A personagem Aurlia Camargo idealizada como uma rainha, como uma herona romntica, pelo narrador. De "rgia fronte, coroada de diadema de cabelos castanhos, de formosas espduas", essa personagem, no entanto, ao mesmo tempo "fada encantada" e "ninfa das chamas, lasciva salamandra". Ao esteretipo da "mulher-anjo" romntica, o narrador acrescenta, assim, um elemento demonaco, elemento que, em vez de explicitar, deixa sugerido, "sob as pregas do roupo de cambraia que a luz do sol no ilumina", e tambm "sob a voz bramida, o gesto sublime, escondendo o frmito que lembrava silvo de serpente" ou quando "o brao mimoso e torneado faz um movimento hirto para vibrar o supremo desprezo". Tal maneira de caracterizar a personagem - pelos elementos exteriores - tpica do narrador observador. Tal caracterizao, por sua vez, humaniza a personagem, afastando-a do maniquesmo romntico e acrescentando-lhe traos realistas. O conflito entre os protagonistas gera momentos de grande emoo e sofrimento. desse embate entre o desejo de vingana e o desejo de amar em plenitude que nasce a ao psquica que se transforma em enredo. Se a temtica e o psiquismo da obra representam antecipaes realistas, ambos fortemente consolidados pela evidente critica de uma sociedade que valoriza mais a aparncia e o dinheiro que os sentimentos humanos, a idealizao das personagens reflete o universo romntico presente na obra. O desenlace configura, por si s, a vitria do Romantismo em Alencar sobre a possibilidade realista. Para melhor entendermos a obra, devemos perceber as interaes do artista que a criou. Alencar acreditava sinceramente na vitria do homem na reforma de si mesmo e da sociedade. No havia nele ainda o trao de pessimismo profundo e de ceticismo que tantaspginas maravilhosas fizeram nascer em Machado de Assis. dessa crena nos sentimentos humanitrios que bruta o Romantismo alencariano, do qual bruta a fora vital de suas personagens. Divididos entre o dio e o perdo, a necessidade financeira e os apelos do corao, vencem sempre os segundos. O mesmo caso pode ser observado na construo do romance Lucola, mas com um final trgico. Em ambos os romances a premente necessidade do dinheiro, veculo

central de uma sociedade aristocrtica e burguesa, obriga personagens a trocarem seus sentimentos por dinheiro. O grande vilo, o antagonista, sempre a sociedade e seus hbitos doentios e seus costumes imorais. Se essa a pretenso do autor, o seu recado para a sociedade de seu tempo, devemos classificar Senhora com um romance de costumes. Se o cenrio das personagens o Rio de Janeiro da segunda metade do sculo XIX, podemos tambm consider-lo como um romance urbano com traos de psicologismo e critica social. Estrutura da obra Senhora um romance dividido em quatro partes e no obedece uma ordem cronolgica, isto , a primeira parte (O Preo), narra os episdios atuais, enquanto que a segunda parte (Quitao), fala-nos do passado de Aurlia, seguem os captulos: Posse e Resgate. A narrativa feita por um narrador que parece penetrar na alma de Aurlia Camargo para transmitir suas confidncias mais intimas. Esses ttulos contrariam ostensivamente o esprito de uma histria de amor, como efetivamente o romance Senhora. Mas, como se trata de um amor contrariado pelos hbitos sociais, fica clara a idia de que os ttulos foram assim escolhidos para hipertrofiar a metfora contida no livro. Eles explicitam, em tom caricatural e hiperblico, a idia de que a compra efetuada por Aurlia uma metfora do casamento por interesse, muito corrente na poca, mas sempre disfarado por elegantes e frgeis encenaes sociais. Enredo Na primeira parte, O Preo, Aurlia Camargo d a conhecer para o leitor: jovem de 18 anos, linda e debutando nos bailes. A principal ao desta primeira parte do romance comea quando Aurlia pede ao tio que oferea ao jovem Fernando Seixas, recm-chegado na corte aps uma longa viagem ao Nordeste, a sua mo em casamento. Entretanto, uma aura de mistrio cobre o pedido, pois Fernando no deve saber a identidade da pretendente e alm disso a quantia do dote proposto deve ser irrecusvel: cem contos de ris ou mais, se necessrio. A habilidade mercantil de Lemos, que chega a ser caricata, e a pssima situao financeira de Fernando - moo elegante mas pobre, que gastou o esplio deixado pelo pai e que precisava restitu-lo famlia para a compra do enxoval da irm fazem com que dem certo os planos de Aurlia. Na noite de npcias, Fernando se surpreende ao ver nas mos de Aurlia, um recibo assinado por ele aceitando um adiantamento do dote. Aurlia se enfurece, acusa-o de mercenrio e venal. E ela comea a contar a vida e os motivos que a levaram a compr-lo. Na segunda parte, Quitao, conhecemos a vida de ambos os protagonistas. Aqui h um retorno aos acontecimentos em suas vidas, o que explica ao leitor o procedimento cruel de Aurlia em relao a Fernando. Na terceira parte, Posse, a histria retorna ao quarto do casal. Vemos Fernando arrasado de vergonha, mas Aurlia toma o seu silncio como cinismo. o incio da fase de hipocrisia conjugal. Na quarta parte, Resgate, temos o desenrolar da trama. Intensificam-se os

caprichos e as contradies do comportamento de Aurlia, ora ferina, mordaz, insacivel na sua sede de vingana, ora ciumenta, doce, apaixonada. Intensifica-se tambm a transformao de Fernando, que no usufrui da riqueza de Aurlia, tornando-se modesto nos trajes, assduo na repartio onde trabalhava, e assim adquirindo, sem perder a elegncia, uma dignidade de carter que nunca tivera. No final, Fernando, um ano aps o casamento, negocia com Aurlia o seu resgate. Devolve-lhe os vinte contos de ris, que correspondiam ao adiantamento do montante total do dote com o qual possibilitava o casamento da irm, e mais o cheque que Aurlia lhe dera, de oitenta contos de ris, na noite de npcias. Separam-se, ento, a esposa trada e o marido comprado, para se reencontrarem os amantes, a ltima recusa de Seixas sendo debelada quando Aurlia lhe mostra o testamento que fizera, quando casaram, revelando-lhe o seu amor e destinando-lhe toda a sua fortuna. O enredo deste romance mostra claramente a mistura de elementos romanescos e da realidade. Foco narrativo - O romance narrado em ter