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LUCIANO de Samósata DIÁLOGOS DOS DEUSES Trad. Doutora Reina Marisol Troca Pereira (Professora Auxiliar, Universidade da Beira Interior, Departamento de Letras) Diálogos dos Deuses INTRODUÇÃO Luciano (c.120 - c.200) foi um escritor de língua grega, da Idade da Prata, natural de Samósata, na Síria. De família humilde, cedo se iniciou nas artes de moldagem e estatuária, mas sem sucesso. Hábil escritor, distinguiu-se sobretudo na sátira, versando múltiplos temas em diversos domínios, tais como na mitologia e na filosofia. Segui-se a vultos tão famosos como Menipo, Porfírio, Libânio. Vivia-se uma época na qual a mitologia tradicional não reunia cultos fervorosos e extremistas, face à influência crescente de práticas religiosas Orientais. Servindo-se de uma exposição dialogada, o que tornava a mensagem de leitura mais apelativa, Luciano coloca variadas personagens, sobretudo deuses, em discurso directo, avançando assim até ao limite da crítica religiosa. Os Diálogos dos Deuses compreendem 26 pequenas conversas, geralmente com dois interlocutores, às quais poderiam acrescentar-se, numa perfeita unidade temática e estrutural, os 15 Diálogos Marinhos, protagonizados por divindades do universo aquático. As histórias evidenciadas demonstram continuidade face às versões seguidas na produção literária anterior. Com manifesta comicidade, estes diálogos evidenciam faltas, inseguranças, sentimentos de revolta e de insegurança dos deuses, aproximando-os, nesse sentido, de uma esfera mais humana, não obstante a sua inegável superioridade. Os diálogos são independentes entre si, embora alguns dêem seguimento a factos ou a episódios anteriormente aludidos. No que respeita às personagens, algumas possuem várias intervenções, como Zeus, Apolo, Afrodite, Hera, entre outras, o que confere alguma unidade e coesão à obra. O estilo fluente e o carácter bem humorado revelam grandes potencialidades inclusivamente para um aproveitamento teatral.

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LUCIANO de Samósata

DIÁLOGOS DOS DEUSES

Trad. Doutora Reina Marisol Troca Pereira

(Professora Auxiliar, Universidade da Beira Interior, Departamento de Letras)

Diálogos dos Deuses

INTRODUÇÃO

Luciano (c.120 - c.200) foi um escritor de língua grega, da Idade da Prata, natural de

Samósata, na Síria. De família humilde, cedo se iniciou nas artes de moldagem e estatuária, mas

sem sucesso.

Hábil escritor, distinguiu-se sobretudo na sátira, versando múltiplos temas em diversos

domínios, tais como na mitologia e na filosofia. Segui-se a vultos tão famosos como Menipo,

Porfírio, Libânio.

Vivia-se uma época na qual a mitologia tradicional não reunia cultos fervorosos e

extremistas, face à influência crescente de práticas religiosas Orientais. Servindo-se de uma

exposição dialogada, o que tornava a mensagem de leitura mais apelativa, Luciano coloca

variadas personagens, sobretudo deuses, em discurso directo, avançando assim até ao limite da

crítica religiosa.

Os Diálogos dos Deuses compreendem 26 pequenas conversas, geralmente com dois

interlocutores, às quais poderiam acrescentar-se, numa perfeita unidade temática e estrutural, os

15 Diálogos Marinhos, protagonizados por divindades do universo aquático. As histórias

evidenciadas demonstram continuidade face às versões seguidas na produção literária anterior.

Com manifesta comicidade, estes diálogos evidenciam faltas, inseguranças, sentimentos de

revolta e de insegurança dos deuses, aproximando-os, nesse sentido, de uma esfera mais

humana, não obstante a sua inegável superioridade.

Os diálogos são independentes entre si, embora alguns dêem seguimento a factos ou a

episódios anteriormente aludidos. No que respeita às personagens, algumas possuem várias

intervenções, como Zeus, Apolo, Afrodite, Hera, entre outras, o que confere alguma unidade e

coesão à obra.

O estilo fluente e o carácter bem humorado revelam grandes potencialidades inclusivamente

para um aproveitamento teatral.

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De Prometeu e Zeus1

(Prometeu encontra-se amarrado ao monte Cáucaso e suplica a Zeus que o liberte do seu

suplício.)

PROMETEU

(Com ar sofredor) Liberta-me, ó Zeus, pois já aguentei sofrimentos terríveis!

ZEUS

(Com ar de admiração e superioridade) Que te liberte, dizes tu, a ti, que devias estar

preso grilhões ainda mais fortes; ter o Cáucaso inteiro sobre a cabeça e não apenas o fígado a ser

devorado por dezasseis abutres, mas também os olhos a serem-te vazados, como paga por nos

teres forjado essas criaturas – os homens, roubado o fogo e criado as mulheres?!

E o que dizer então daquilo que me enganaste na partilha da carne, ao servires-me ossos

revestidos de gordura, enquanto guardavas a melhor parte para ti?!

PROMETEU

De certo já sofri um castigo suficiente, ao ter estado amarrado durante todo este tempo,

cravado ao Cáucaso e a alimentar, com o meu fígado, uma águia, a pior de todas as aves.

ZEUS

Não é nem uma pequena parte do que devias sofrer.

PROMETEU

Já que não vais libertar-me sem algo em troca, então, ó Zeus, revelar-te-ei uma coisa

muito importante.

ZEUS

1 Prometeu era filho do Titã Jápeto e neto de Urano e de Geia, o que o tornava primo de Zeus, o senhor

dos deuses e dos homens. Moldou os homens a partir do barro e desde então tentou beneficiá-los. Conta-

se que a certa altura ludibriou Zeus: aproveitando a celebração de sacrifícios em Mecone, pegou num boi

e dividiu-o em dois montes, aparentemente iguais - num colocou a carne e as entranhas do animal,

cobertas com a sua pele e, noutro, apenas os ossos revestidos com gordura. De seguida, dirigiu-se a Zeus,

para que este escolhesse uma das porções e deixasse a restante para os humanos. Zeus decidiu-se pelo lote

que continha os ossos. Sentindo-se logrado, Zeus, senhor dos raios e dos trovões, retirou o fogo aos

homens. Prometeu, todavia, conseguiu roubá-lo e devolvê-lo aos mortais. Furioso, desta feita Zeus enviou

Pandora, a primeira mulher, como castigo para os humanos. No que respeita a Prometeu, agrilhoou-o ao

monte Cáucaso, e condenou-o a um suplício - o de ter o seu fígado devorado diariamente por uma águia, a

ave de Zeus.

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(Desconfiado) Estás a tentar enganar-me, Prometeu.

PROMETEU

E o que é que eu ganharia com isso? De certeza que não vais esquecer-te de onde fica o

Cáucaso, nem hás-de ficar sem grilhões, se eu for apanhado a tramar alguma.

ZEUS

Em primeiro lugar, diz-me lá qual é a recompensa de monta que tens para me dar em

troca.

PROMETEU

Se eu conseguir dizer para onde é que tencionas ir agora, acreditarás em mim e nas

minhas profecias acerca do futuro?

ZEUS

E porque não?!

PROMETEU

Vais encontrar-te com Tétis e unir-te a ela.

ZEUS

Adivinhaste perfeitamente. Mas e então, o que é que tem isso? Parece-me que irá

concretizar-se o que estás a dizer.

PROMETEU

(Com ar de preocupação) Ó Zeus, não mantenhas relações com a Nereida! Pois se ela

engravidar de ti, esse filho far-te-á o mesmo que tu ...

ZEUS

(Lembrando-se de como destronou o seu pai, assusta-se2) Estás a dizer que eu hei-de ser

derrubado do poder?

2 Crono, o pai de Zeus, temendo vir a ser destronado por um dos seus filhos, devorava-os assim que

nasciam. Contudo, Reia substituiu um dos recém-nascidos (Zeus) por uma pedra envolta em panos, que

Crono prontamente devorou. Escondido até uma idade mais madura, Zeus resolveu dar a beber ao seu pai

uma substância que Métis (a Prudência) lhe entregara. O líquido provocou o vómito de todos os filhos

que Crono engolira até então. Unindo-se aos irmãos, Zeus consegue então destronar o pai, substituindo o

seu reinado pelo dos Olímpicos.

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4

PROMETEU

Que isso não aconteça, Zeus, todavia a união com ela constitui uma ameaça.

ZEUS

(Aliviado) Pois então, adeusinho ó Tétis! Quanto a ti, Hefesto que te liberte como paga

por esta informação.

2

De Eros e Zeus3

EROS

(Em atitude de suplicante) Ora, se cometi alguma falta, perdoa-me, Zeus! É que não

passo de uma criança pequena, ainda inconsequente!

ZEUS

(Sorrindo, com ar de troça) Tu, Eros, uma criancinha, tu que és muito mais velho do que

Jápeto4?! Só porque não tens barba crescida nem cabelos brancos, julgas que podes passar por

criança, sendo tu um velho astuto?

EROS

E que mal é que te fez este velho, como tu dizes, a ponto de tu o quereres prender?

ZEUS

(Visivelmente irritado) Ó maldito, vê lá se foi pouco aquilo que me arranjaste!

Andas a gozar-me de uma tal maneira, que não há nada em que tu não me tenhas feito

transformar: sátiro, touro, ouro, cisne, águia! E no entanto nunca fizeste com que alguém se

apaixonasse por mim, nem nunca fui considerado atraente por nenhuma mulher, por causa de ti!

Antes pelo contrário, tenho de recorrer a sortilégios para com elas e ainda utilizar disfarces.

Consequentemente, elas apaixonam-se pelo touro ou pelo cisne, mas se me vêem em pessoa,

morrem de medo.

3 Eros distinguiu-se como deus do Amor. Zeus era também notório pelos seus diversos relacionamentos

amorosos, não obstante o seu casamento com Hera. 4 Jápeto era um dos Titãs. A referência corresponde a um provérbio, equivalente, por exemplo, a ‘mais

velho do que os dinossauros’.

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EROS

(Tentando justificar-se) Justamente! Ó Zeus, então elas, sendo mortais, não conseguem

suportar contemplação da tua imagem5.

ZEUS

Então e como é que Branco e Jacinto amam Apolo6?

EROS

Ah, mas Dafne7 fugiu dele, apesar da sua longa cabeleira e do seu ar jovial.

Se pretendes ser desejado, não agites a égide, nem lances o raio. Apresenta-te sim o mais

atraente possível, escovando os caracóis de ambos os lados e apanhando-os com um diadema.

Veste-te de púrpura e calça umas sandálias, movimenta-te ao ritmo do som da flauta e de

tamboris e verás como te seguirão em maior número do que as Ménades8 de Dionísio.

ZEUS

(Irritado com os conselhos de Eros, afastando-o) Livra!... Nunca aceitaria um tal

subterfúgio para conseguir tornar-me desejável!

EROS

(Encolhendo os ombros) Então, Zeus, não penses em amar! Pois assim é mais fácil.

ZEUS

(Desesperado, agarrando Eros) Não! Amar, sim, mas consegui-lo sem tanto esforço! Só

nessas condições é que vou largar-te!

3

De Zeus e Hermes9

5 Na Antiguidade existia a ideia de que ‘a vista de um deus era difícil de suportar’.

6 Os relacionamentos de teor homossexual não constituíam propriamente uma excepção nem provocavam

o assombro nas civilizações da Antiguidade. Branco e Jacinto eram dois jovens, que cativaram os amores

do garboso deus Apolo. 7 Amada por Apolo, Dafne (em Grego, loureiro) sempre tentou evitar o deus. Temendo ser alcançada por

ele, pediu para ser transformada em loureiro. 8 Estas mulheres, imbuídas do espírito dionisíaco, formavam um cortejo, seguindo nuas ou seminuas e

dançando ao som de flautas e tamboris. 9 O diálogo ocorre entre Zeus, legítimo esposo de Hera e Hefesto, o mensageiro dos deuses, a propósito

de uma das muitas infidelidades do deus supremo. Desta feita, Zeus tomou-se de amores por uma bela

jovem de Argos, filha de Ínaco, de nome Ío. O relacionamento, todavia, não passou totalmente

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ZEUS

(Com ar casual) Conheces a formosa filha de Ínaco, Hermes?

HERMES

Sim, se é que estás a referir-te a Ío.

ZEUS

Ela agora já não é uma rapariga, mas sim uma vitela.

HERMES

(Admirado) Que prodígio! Então ela mudou de forma?

ZEUS

Foi Hera, que tomada pela inveja, a metamorfoseou. E fez ainda algo mais de

extraordinário e de terrível contra essa desgraçada. Colocou junto dela um pastor chamado

Argos, com muitos olhos, que apascenta a vitela e que nunca dorme.

HERMES

E o que é que agora pode fazer-se?

ZEUS

Vai até Nemeia – pois é aí que Argos pastoreia – mata-o, leva Ío para o Egipto, pelo mar,

e transforma-a em Ísis. E que ela se torne numa divindade dessa região, que faça subir o Nilo,

que envie os ventos e proteja os marinheiros.

4

despercebido à enciumada esposa de Zeus, Hera. Para evitar possíveis desacatos, Zeus transformou Ío

numa vitela e mantinha os seus encontros com a jovem, assumindo a forma de um touro. Ainda assim,

movida pela desconfiança, Hera confiou ao pastor Argo a guarda da pretensa vitelinha.

Argo possuía cem olhos. Enquanto dormia com cinquenta, com a outra metade vigiava Ío. Zeus

enviou, por isso, o seu mensageiro Hermes, que conseguiu adormecer totalmente Argo e de seguida matá-

lo. Furiosa, Hera colocou os cem olhos de Argo na cauda da sua ave favorita, o pavão, onde ainda hoje

podem ver-se. Colocou também um moscardo para incomodar Ío. Sem um momento de sossego,

transformada em vitela, Ío vagueou pela Grécia e pela Ásia, até chegar ao Egipto, onde passou a ser

venerada como Ísis.

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De Zeus e Ganimedes10

(Zeus acaba de chegar ao Olimpo, vindo da Terra, trazendo Ganimedes, raptado)

ZEUS

(Correndo atrás de Ganimedes, puxando-o e suplicando-lhe) Vá lá, Ganimedes, agora

que chegámos, dá-me um beijo, para que saibas que já não tenho um bico recurvado, nem garras

afiadas, nem asas, como poderia parecer-te, encontrando-me eu sob a forma de uma ave11

.

GANIMEDES

(Desconfiado e já farto da insistência de Zeus) Ó homem, ainda há pouco não eras uma

águia e não te lançaste sobre mim e me retiraste do meio do rebanho? Como é que te livraste

daqueles asas e assumiste em seguida uma outra forma?

ZEUS

Não é um homem que estás a ver, rapaz, nem uma águia, mas sou eu, o rei de todos os

deuses, que me metamorfoseei temporariamente.

GANIMEDES

(Confuso) O que é que tu estás a dizer? Tu és o nosso Pã12

? Então e como é que não tens

uma siringe, nem chifres, nem pernas peludas?

ZEUS

Acaso julgas que aquele é o único deus?

GANIMEDES

Com certeza! E nós sacrificamos-lhe um cabrito macho, que levamos para uma caverna

onde está a sua estátua. Mas quanto a ti, pareces-me ser um raptor de crianças13

.

ZEUS

10

Porque se tornava difícil para os homens conseguirem olhar os deuses frente a frente, eles assumiam,

frequentemente outras formas, através de um processo conhecido como metamorfose. Ora, tendo-se

apaixonado por um jovem, chamado Ganimedes, Zeus resolveu raptá-lo. Para tal, tomou a forma da sua

ave predilecta, a águia. No Olimpo, Ganimedes irá servir as refeições aos deuses. 11

Note-se Ganimedes foi raptado por Zeus, sob a forma de uma águia. 12

Divindade campestre, com a aparência de uma cabra. Vd. Diálogo 22. 13

Ressalve-se o entendimento diferente que a Antiguidade tinha a respeito do que actualmente

designamos de pederastia.

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8

Diz-me, nunca ouviste o nome de Zeus, nem viste, no Gárgaro, o altar do deus que manda

a chuva, o trovão e faz os raios?

GANIMEDES

(Reconhecendo-o) Ó excelência, tu dizes ser aquele que há bocado fez desabar sobre nós

aquela forte chuvada de granizo, aquele que dizem que habita nas alturas, aquele que produz um

estrondo, a quem o meu pai sacrificou um carneiro?

Então que faltas é que eu cometi, ó rei dos deuses? (Preocupado com a sua demora,

longe do rebanho) E entretanto os lobos, investindo pelos flancos, provavelmente vão atacar

logo as ovelhas abandonadas.

ZEUS

Então tu preocupas-te com as ovelhas que ficaram sós, no preciso momento em que

alcançaste a imortalidade na nossa companhia?

GANIMEDES

(Assustado) O que é que estás a dizer?! Então não vais mandar-me de volta ainda hoje

para o Ida?

ZEUS

De forma nenhuma! Se assim fosse, teria sido em vão a minha transformação de deus em

águia!

GANIMEDES

Mas de certeza que o meu pai irá à minha procura e ficará preocupado ao não encontrar-

me e depois levarei mais pancadas por ter abandonado o rebanho.

ZEUS

(Sorrindo) Mas como é que ele conseguirá ver-te?

GANIMEDES

(Desesperado) Chega! Já começo a ter saudades!

(Tentando demover Zeus) Se me devolveres, eu prometo sacrificar-te outro carneiro como

tributo pelo que fizeste por mim. Temos um de três anos, o maioral, que serve de guia ao

rebanho pelo pasto.

ZEUS

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9

(À parte) Como é ingénua esta criança ... e pura ... e ainda assim, que criança!

(De novo para Ganimedes) Pois, Ganimedes, diz adeus a todas essas coisas e esquece-te

delas – do rebanho e do Ida. Tu, visto que agora já és um ser celestial, poderás favorecer o teu

pai e a tua pátria, a partir daqui, e em vez de queijo e de leite, vais comer ambrósia e beber

néctar! Isto é exactamente o que tu hás-de oferecer-nos, ao servir-nos. Mas o mais importante é

que já não serás um homem, mas um ser imortal e farei com que o teu astro brilhe com

resplendor e, numa palavra, serás feliz.

GANIMEDES

Mas se quiser brincar, quem brincará comigo? É que no Ida éramos muitas as crianças

com a mesma idade.

ZEUS

Aqui terás Eros que brincará contigo e principalmente terás muitos astrágalos. Só tens

que confiar e ficar alegre, e não desejes as coisas terrenas.

GANIMEDES

Pois então, como é que eu poderia ser-vos útil? Ou aqui também é necessário guardar

rebanhos?

ZEUS

Não, mas servirás a bebida, distribuirás o néctar e encarregar-te-ás do banquete.

GANIMEDES

Nada disso é difícil, pois sei como deve servir-se o leite e estender a taça.

ZEUS

(À parte) E lá estás ele outra vez a lembrar-se do leite e a julgar que vai servir homens!

(Para Ganimedes) Mas aqui é o Céu e bebemos, como te disse, néctar.

GANIMEDES

É mais saboroso do que o leite, Zeus?

ZEUS

Dentro em pouco saberás e depois de teres provado, não hás-de querer mais o leite.

GANIMEDES

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E onde é que eu vou dormir à noite? Porventura com o meu companheiro Eros?

ZEUS

(Com ar desesperado) Não, então eu raptei-te precisamente para podermos dormir juntos.

GANIMEDES

(Inocentemente) Acaso não és capaz de dormir sozinho e é mais agradável para ti

deitares-te comigo?

ZEUS

Sim, e muito mais se for com alguém tão belo como tu, Ganimedes!

GANIMEDES

Mas em que é que a minha beleza vai ajudar o teu sono?

ZEUS

Proporciona uma sensação agradável e torna-o mais leve.

GANIMEDES

Mas o meu pai sofria quando dormia comigo e de manhã dizia que não o tinha deixado

dormir, a rebolar, a dar pontapés e a falar enquanto dormia! Por conseguinte, mandava-me

dormir muitas vezes com a minha mãe.

Agora que é a tua vez, se me raptaste, como dizes, por causa disso, devolve-me

novamente à terra, ou terás problemas, não conseguindo dormir! Pois eu vou incomodar-te

continuamente, a dar voltas.

ZEUS

Dar-me-ás o maior prazer, se eu puder ficar acordado contigo, a beijar-te e a abraçar-te

frequentemente.

GANIMEDES

(Num tom de aviso) Tu vê lá! Eu cá hei-de dormir enquanto tu beijas.

ZEUS

Veremos então o que há-de fazer-se. (Para Hermes) Por agora, Hermes, leva-o e quando

tiver tomado o soro da imortalidade, trá-lo para nos servir, mas antes ensina-lhe como deve

apresentar-se a taça!

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5

De Hera e Zeus14

HERA

(Irritada e ciumenta) Ó Zeus, desde que trouxeste para aqui esse rapaz frígio que raptaste

do Ida15

, que andas a aproximar-te menos de mim!

ZEUS

Ó Hera, porventura estás com inveja de alguém tão simples e inofensivo? (Com ironia)

Eu cá pensava que tu só ficavas aborrecida com a grande quantidade de mulheres que teriam

relações comigo.

HERA

Não estás a proceder bem, nem de forma conveniente! Tu, senhor de todos os deuses,

abandonas-me a mim, a tua legítima esposa, e desces à Terra para me traíres, transformado em

ouro, ou em sátiro, ou em touro.

(Lamentando-se) Mas elas ao menos ficam na Terra. Contudo, o rapaz do Ida que tu

raptaste e trouxeste para aqui, ó mais nobre dos deuses, vive connosco, com uma importância

superior a mim, sob o pretexto de servir a bebida.Tinhas assim tanta falta de criados para servir

a bebida? Acaso Hebe16

e Hefesto17

se negaram a servir?

E ainda por cima, tu não recebes a taça dele, sem antes o beijares à vista de todos, e o

beijo é mais agradável para ti do que o néctar, e por isso mesmo, muitas vezes, não tendo sede,

pedes de beber. Ainda por cima, em certas alturas apenas provas e entregas-lhe a taça. Depois

de ele a tomar, tu bebes o que resta nela e colocas os lábios no sítio por onde o rapaz bebeu,

para estares a sorver e ao mesmo tempo a beijar.

Ainda recentemente, tu, rei e pai de todos, depuseste a égide e o raio e sentaste-te a jogar

com ele, não obstante a longa barba que pendia do teu queixo.

14

Neste diálogo, Hera manifesta ciúmes face ao jovem Ganimedes, que Zeus raptara do monte Ida. Cf.

Diálogo 4. 15

Ganimedes. 16

Hebe personificava a juventude e descendia de Hera e de Zeus. No Olimpo auxiliava os deuses de

diversas formas. Era Hebe que servia o néctar que as divindades bebiam, antes de Zeus ter raptado

Ganimedes. 17

Hefesto, deus do fogo e artes metalúrgicas, filho de Zeus e de Hera, possuía uma particularidade física:

era coxo. Uma acesa discussão com Zeus levara a que este o atirasse do alto do Olimpo. Tendo rebolado

durante um dia inteiro até alcançar a terra, ficou com uma lesão permanente. Conta-se que também servia

nos banquetes dos deuses.

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12

(Com ar ameaçador) Pois eu presenciei tudo isto, por conseguinte, não penses que passas

despercebido!

ZEUS

Ó Hera, mas que mal há em beijar um rapaz tão belo enquanto se está a beber, e em

usufruir ambas as coisas, não só o beijo, mas também o néctar?

Se eu permitir que ele te beije, nem que seja uma única vez, não voltarás a repreender-me

por eu achar que o beijo é preferível ao néctar.

HERA

Isso são argumentos de pederasta18

! (Irritada) Que eu nunca enlouqueça a ponto de

aproximar os lábios desse frígio débil e tão efeminado!

ZEUS

Ó tu, criatura de raça mais nobre, não injuries os mais simples! Pois esse efeminado, esse

bárbaro, esse fracote é-me mais agradável e mais desejável do que ... nem quero dizer, para não

te irritar ainda mais.

HERA

Por mim, em boa hora te cases com ele! Mas lembra-te da maneira como te portas

comigo, apenas por causa desse copeiro!

ZEUS

(Com ironia) Não, mas então é o teu filho Hefesto, a coxear, que deve servir-nos a

bebida, vindo dos infernos, ainda repleto de chispa, após ter largado ainda há pouco as tenazes!

E nós devemos receber os cálices dos seus dedos, atraí-lo até nós e em seguida beijá-lo, quando

nem tu, que és a mãe, o beijarias com agrado, devido à sua cara coberta de fuligem! Isso seria

melhor, não é verdade?! Esse criado é muito mais indicado para servir o banquete dos deuses!

Quanto a Ganimedes, há que mandá-lo novamente para o Ida, uma vez que é limpo, de dedos

rosados, serve a taça estendendo-a e, o que mais te incomoda, também tem um beijo mais doce

do que o néctar!

HERA

18

Note-se que a pederastia na Antiguidade Clássica não era invulgar, nem possuía as conotações

negativas que lhe são atribuídas na actualidade.

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13

(Irritada) Agora, Zeus, Hefesto é coxo, os seus dedos indignos do teu cálice, está cheio

de fuligem e enjoas-te ao vê-lo, desde que o Ida criou aquele belo rapaz de longa cabeleira. Pois

dantes vias isso e nem a chispa nem a fuligem te impediam de receber a bebida das suas mãos.

ZEUS

(Com um tom de voz doce) Estás a atormentar-te a ti própria, Hera, e todavia aumentas o

meu amor, assim ciumenta!

Mas se te pesa receber o cálice das mãos de um rapaz na flor da idade, então o teu filho

que te sirva, (para Ganimedes) e tu, Ganimedes, serve-me a taça só a mim, e de cada vez dá-me

dois beijos: na altura em que ma entregues cheia e quando a receberes novamente das minhas

mãos. (Ganimedes começa a chorar) – Mas o que é? Estás a chorar? Não tenhas medo! (Para

Ganimedes, mas com um olhar ameaçador para Hera) Pois se alguém quiser atormentar-te, há-

de lamentar-se!

6

De Hera e Zeus19

HERA

Ó Zeus, que espécie de pessoa é que julgas que Ixíon é?

ZEUS

Que é um homem digno, Hera, e um comensal agradável! Na verdade, não o teríamos

connosco se ele fosse indigno do nosso banquete.

HERA

(Ofendida) Mas ele é indigno, pois é um insolente! Por conseguinte, ele que não fique

mais aqui connosco!

ZEUS

19

Hera conversa com Zeus a propósito de um curioso episódio que envolvia Ixíon. Este rei dos Lápitas

conseguiu casar-se com a jovem Dia, sob promessas de grandiosos presentes ao seu pai, o rei Dioneu.

Quando o sogro os foi reclamar, Ixíon matou-o, atirando-o sobre um monte de brasas. Nenhum deus

anuiu purificar Ixíon de tão hediondo crime. Zeus, todavia, apiedou-se e purificou-o. Contudo, o insolente

e ingrato Ixíon, apaixonou-se por Hera. Para evitar futuros problemas e aquietar Hera, Zeus moldou uma

nuvem com a forma da sua esposa.

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14

(Preocupado) Como é que ele foi insolente? É que é preciso que eu também saiba – acho

eu!

HERA

O que é que havia de ser?! (Com ar de envergonhada) – Mas tenho vergonha de dize-lo,

tal o ponto a que chegou o seu atrevimento!

ZEUS

Por isso mesmo, mais uma razão para o dizeres, se ele cometeu actos assim tão

vergonhosos. Acaso tentou violar alguém? É que eu penso numa vergonha desse género, já que

tu estás a temer revelá-la.

HERA

(Nervosa) A mim mesma, e não a uma qualquer, Zeus, já há algum tempo! Primeiramente

eu desconhecia as razões por que ele olhava fixamente para mim. Lamentava-se, chorava, e se

alguma vez, depois de ter bebido eu entregasse a taça a Ganimedes, ele pedia-lha para beber por

ela, e tomando-a nas suas mãos, ía-a beijando, aproximava-a dos seus olhos e tornava a olhar

para mim! Então percebi que era amor. Mas durante muito tempo tive vergonha de te contar e

pensava que o homem iria acabar com essa loucura! Mas quando se atreveu a fazer-me

propostas, eu deixei-o, e ainda que ele tivesse ficado a chorar, prostrado aos meus pés, eu, tendo

tapado os ouvidos para não escutar as insolências que me suplicava, afastei-me para te contar.

Agora, tu próprio vê lá como vais castigar o homem!

ZEUS

(Em tom de desabafo, furioso, mas irónico) Bonito!... O maldito agora até quer casar-se

com Hera?! Está assim tão embriagado de néctar?

(Tentando desculpabilizar Ixion) Mas os culpados disto tudo somos nós, que, tomados

por um amor para além dos limites, os integramos no nosso convívio. De facto, é compreensível

que, ao beberem o mesmo que nós e contemplando as belas realidades celestes que jamais viram

na Terra, queiram tirar partido delas, vencidos pelo amor. Pois o amor é algo arrebatador e não

apenas domina os mortais, como também se entranha em nós próprios.

HERA

(Num tom de censura) De ti, sem dúvida que é senhor e dono. Leva-te e puxa-te,

conduzindo-te, segundo dizem, pelo nariz, e tu segue-lo para qualquer lado aonde te leve e de

bom grado metamorfoseias-te no que quer que ele mande – numa palavra, tu és na realidade

escravo e joguete do amor!

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15

Mas agora eu sei porque queres dar o perdão a Ixíon – é que tu mesmo, outrora, já

seduziste a mulher dele, que te concebeu Pirítoo20

.

ZEUS

Então tu ainda estás a lembrar-te do que eu fazia para divertir-me quando descia à Terra?

Pois sabes o que decidi a respeito de Ixíon? Castigá-lo, nem pensar, e nem afastá-lo da

sala de banquetes, já que seria grosseiro! Mas uma vez que ele está apaixonado, anda a chorar,

segundo tu dizes, e está a sofrer males insuportáveis ...

HERA

(Furiosíssima, interrompe Zeus) O quê, Zeus?! Eu até tenho medo que também tu vás

propor-me alguma coisa ultrajante!

ZEUS

De maneira nenhuma! Modelamos, a partir de uma nuvem, uma figura parecida contigo e

quando o banquete tiver acabado e ele não conseguir dormir por causa do amor, como é natural,

levamo-lha e colocamo-la ao seu lado! Assim ele parará de atormentar-se, pensando ter

concretizado o seu desejo.

HERA

Livra! Que morra, por ter desejado o que está para além da sua condição!

ZEUS

Ao menos não ponhas isso totalmente de parte, Hera! Que mal é que podes vir a sofrer à

conta dessa imagem, se Ixíon irá deitar-se com uma nuvem?

HERA

Mas essa nuvem parecerá ser eu própria e a vergonha irá recair sobre mim, devido à

semelhança.

ZEUS

Não digas isso! Nunca uma nuvem poderia ser Hera, nem tu uma nuvem! Servirá apenas

para enganar Ixíon.

HERA

20

Segundo algumas versões, Pirítoo era filho de Zeus e de Día.

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16

Certo, mas os homens são todos muito pouco elevados! Quando descer à Terra,

provavelmente vai vangloriar-se e há-de contar pormenorizadamente a toda a gente sem

excepção, dizendo que tem afinidades com Hera e que compartilha o leito de Zeus e talvez até

diga que eu lhe correspondia e eles vão acreditar, não sabendo que ele se uniu a uma nuvem!

ZEUS

(Num tom ameaçador) Pois se ele disser algo assim, mando-o para o Hades21

e, atado a

uma roda, o infeliz há-de girar ininterruptamente com ela e terá um suplício infinito, não por

causa do seu amor – uma vez que não é uma coisa condenável – mas pela sua gabarolice!22

7

De Hefesto e Apolo23

HEFESTO

Ó Apolo, tu já viste o filho de Maia24

, nascido há pouco? Como é belo, sorri para todos e

já revela que há-de sair dali algo magnífico.

APOLO

Ó Hefesto, um recém-nascido ou uma coisa magnífica, ele que é mais experiente do que

Jápeto25

em artifícios?!

HEFESTO

(Admirado) Mas que mal é que um recém-nascido poderia ter feito?

APOLO

Pergunta a Poseídon26

, de quem ele roubou o tridente, ou a Ares27

, a quem ele tirou, às

escondidas, a espada da bainha, isto para já não falar de mim, que ele desarmou do arco e das

flechas.

21

Inferno. 22

Como punição, Zeus atou Ixíon a uma roda em chamas. Atirou-o pelo ar, fazendo-o rodopiar sem

cessar. O castigo prolongar-se-ia pela eternidade, uma vez que Ixíon, tendo convivido com os deuses e

ingerido da mesma alimentação, se tornara imortal. 23

A divindade de quem se fala neste diálogo é Hermes, filho de Zeus e de Maia e senhor do comércio e

do roubo. São muitos e variados os episódios em que Hermes revela os seus atributos, desde a infância. 24

Hermes. 25

Filho de Urano e de Geia, i.e., do Céu e da Terra. 26

Deus do mar. 27

Deus da guerra.

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17

HEFESTO

(Espantado) Esse recém-nascido, que mal se aguenta em pé nos seus cueiros, fez isso?!

APOLO

Já vais saber, Hefesto, basta ele aproximar-se de ti.

HEFESTO

Mas ele já se aproximou.

APOLO

E então? Tens todas as tuas ferramentas e nenhuma delas se extraviou?

HEFESTO

(Depois de conferir rapidamente) Todas, Apolo.

APOLO

Ora vê bem.

HEFESTO

(Verificando novamente e ficando aflito, de repente) Por Zeus, não estou a ver as

tenazes!

APOLO

Mas hás-de vê-las nos cueiros do miúdo.

HEFESTO

(Ainda incrédulo) Mas ele é assim tão ágil, como se tivesse exercitado a arte do roubo no

ventre da mãe?

APOLO

De certeza que ainda não o viste a falar com desenvoltura e agilidade! E ele também quer

ser nosso criado. Ontem desafiou Eros e venceu-o imediatamente na palestra, ainda não sei

como. Depois, enquanto recebia os elogios de Afrodite28

, que o abraçava pela vitória, roubou-

28

Deusa do amor.

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18

lhe o bordado e também o ceptro de Zeus, enquanto ele se ria! E se o raio não fosse tão pesado,

nem tivesse tanto fogo, provavelmente tê-lo-ia igualmente roubado.

HEFESTO

Por essas coisas que dizes, é uma criança terrível.

APOLO

E não fica por aí – também é músico.

HEFESTO

O que é que te faz pensar isso?

APOLO

Encontrou algures uma tartaruga morta e a partir dela construiu um instrumento musical.

Adaptou e colocou braços, em seguida fixou as cravelhas e dispô-las por baixo do cavalete,

esticou sete cordas e tocou tão graciosa e harmoniosamente, Hefesto, que até a mim, que toco

cítara há tanto tempo, me causava inveja.

E Maia dizia que à noite ele não fica no Céu, mas completamente tomado pela

curiosidade, desce do Hades, certamente para roubar algo dali. Além disso é alado e inventou

um bastão com um poder assombroso, com o qual guia as almas para os Infernos e faz descer os

mortos.

HEFESTO

Eu é que lho dei, para brincar.

APOLO

Pois ele deu-te a recompensa, as tenazes ...

HEFESTO

Fazes mesmo bem em lembrar! Ora então, vou buscá-las! Pode ser que estejam, como

dizes, nos cueiros dele.

8

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19

De Hefesto e Zeus29

(Zeus encontra-se cheio de dores na cabeça, quando chega Hefesto, que mandara

chamar)

HEFESTO

(Ofegante, de machado em punho) O que é que eu tenho de fazer, Zeus? Já vim, como

mandaste, trazendo um machado tão afiado que, se necessário fosse, talharia uma pedra com um

só golpe.

ZEUS

(Com ar de sofrimento) Muito bem, Hefesto! Agora lança-o sobre a minha cabeça,

rachando-a em duas partes.

HEFESTO

(Incrédulo) Estás a pôr-me à prova, a ver se enlouqueci?!

Agora a sério - ordena lá o que queres que se te faça.

ZEUS

(Com as mãos na cabeça, cheio de dores) É isso mesmo – que se me rache a cabeça! E se

me desobedeceres, não será agora a primeira vez que vais provar a minha ira.

Mas é preciso que golpeies com toda a tua força e sem demora! Não aguento estas

contracções, que estão a massacrar-me o cérebro!

HEFESTO

Olha lá, Zeus, que não vamos nós fazer nada de mal! É que o machado está afiado e não

te fará o parto como Ilítia30

, sem derramar muito sangue.

ZEUS

29

O nascimento dos deuses não se processava somente através de um ventre materno. Nesta conversação,

Zeus pede ao seu filho Hefesto que utilize um machado para golpear a sua cabeça, onde gerara Atena.

Esta era fruto da sua relação com Métis, Zeus fora impelido a engolir a sua consorte, por força de uma

revelação que previa que, se Métis desse à luz uma filha, de seguida nasceria um filho, que destronaria

Zeus. Terminada a gestação, nasceu Atena, da cabeça de Zeus, já donzela e completamente armada. A

deusa permaneceria virgem, não obstante a pretensão e a perseguição de Hefesto, que ajudara no seu

nascimento.

30

Filha de Zeus e de Hera, preside aos partos.

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20

(Desesperado) Lança-o simplesmente, Hefesto, com convicção, que eu sei o que me

convém!

HEFESTO

(Preparando o machado) Ainda que contra a vontade, vou rachar-te! Então o que é que se

pode fazer, quando és tu que estás a mandar?!...

(Hefesto racha a cabeça de Zeus e dela sai Atena, já donzela e armada) O que é isto?!

Uma rapariga armada?! Ó Zeus, que grande mal tinhas tu na cabeça! Era com razão que estavas

irascível, a conceber no teu cérebro uma rapariga desse tamanho e armada dessa maneira! Sem

que se soubesse, tinhas um exército na cabeça. Mas ela salta e faz danças de guerreira, sacode o

escudo e agita a lança, enche-se de furor divino e o que é mais espantoso, em pouco tempo

tornou-se bela e crescida!

(Fascinado com a beleza de Atena) Tem olhos cinzentos, mas juntamente com o

capacete, embeleza-a de tal maneira que te peço, ó Zeus, para ma concederes em casamento,

como retribuição pelos meus serviços de parteiro.

ZEUS

Pedes-me o impossível, Hefesto! É que ela quer ficar donzela para sempre. Mas eu por

mim não tenho nada contra o que tu estás a pedir-me.

HEFESTO

(Visivelmente animado) Era isso que eu queria! Do resto cuido eu, e vou já raptá-la.

ZEUS

(Encolhendo os ombros) Se achas que é fácil, então fá-lo! Só tenho a certeza de que

desejas o impossível.

9

De Poseídon e Hermes31

31

Ao pretender falar com o seu irmão Zeus, Poseídon é impedido de entrar por Hermes, explicando-lhe

que o senhor dos deuses acabara de dar novamente à luz, desta feita não pela cabeça, como no diálogo

anterior, mas pela coxa. Porque Zeus se apaixonara por uma jovem tebana, de nome Sémele, Hera,

enciumada pretendeu vingar-se, convencendo-a a pedir a Zeus que se mostrasse perante ela com toda a

sua magnificência. Ao fazê-lo dentro de casa, o senhor dos raios e dos trovões provocou um incêndio que

mataria Sémele. Zeus pegou então no feto que ela carregava e colocou-o na sua coxa, donde, finda a

gestação, nasceu Dionísio.

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21

(Poseídon pretende falar com Zeus, mas depara-se com Hermes a impedir a sua

passagem)

POSEÍDON

Ó Hermes, é possível encontrar-me agora com Zeus?

HERMES

(Impedindo-o de entrar) Nem pensar, Poseídon!

POSEÍDON

(Insistindo) De qualquer modo, anuncia-me a ele.

HERMES

Não perturbes, estou a dizer-te! Na realidade, agora não é oportuno, por isso não poderás

ir ao seu encontro.

POSEÍDON

Acaso está com Hera?

HERMES

Não, é algo diferente.

POSEÍDON

Estou a entender! Ganimedes está com ele.

HERMES

Nada disso! É que ele está debilitado.

POSEÍDON

Por que motivo, Hermes? O que estás a dizer é estranho ....

HERMES

Estou com vergonha de falar, é isso.

POSEÍDON

Mas não é preciso ficares assim comigo, que sou teu tio.

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22

HERMES

Ele deu à luz há pouco tempo, Poseídon.

POSEÍDON

(Incrédulo) Não!... Ele deu à luz? [De que forma?] Acaso nos escondeu que era

hermafrodita? Mas o seu ventre não apresentava nenhum volume.

HERMES

Dizes bem! Não era ali que ele tinha o embrião.

POSEÍDON

Estou a ver! Deu novamente à luz pela cabeça, à semelhança de Atena! Tem uma cabeça

fecunda.

HERMES

Não. Era na coxa que carregava o filho de Sémele.

POSEÍDON

Que boa raça a dele, que consegue carregar os filhos em qualquer parte e dar à luz por

todo o segmento do seu corpo. Mas quem é Sémele?

HERMES

Uma tebana, uma das filhas de Cadmo. Ao unir-se a ela, engravidou-a.

POSEÍDON

(Curioso) E depois, Hermes, deu à luz na vez dela?

HERMES

Exactamente, ainda que possa parecer-te incrível!

É que Hera – tu sabes como ela é invejosa – foi ter com Sémele para convencê-la a pedir

a Zeus que ele fosse ter com ela, juntamente com os raios e os trovões! Mas quando ele,

persuadido, chegou, trazendo o raio, o tecto incendiou-se, Sémele estava a ser consumida pelo

fogo e ele ordenou-me que rasgasse o ventre da mulher para lhe retirar o embrião de sete meses,

ainda não totalmente formado. Depois de ter feito isso, abrindo a sua coxa, depositou-o para que

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23

acabasse de formar-se ali, e agora, três meses depois32

, deu à luz e encontra-se num estado

debilitado por causa das dores de parto.

POSEÍDON

Onde é que a criança está agora?

HERMES

Levei-o para Nysa e confiei-o às Nereides para o educarem, com o nome de Dionísio.

POSEÍDON

(Algo confuso) Por conseguinte, o meu irmão é simultaneamente mãe e pai de Dionísio?

HERMES

É o que parece.

Mas deixa-me ir buscar-lhe água para a ferida e fazer-lhe o que é costume fazer-se com as

parturientes. (Sai)

10

De Hermes e Hélios33

(Hermes sai para dar um recado de Zeus para Hélios)

HERMES

Ó Hélios, Zeus está a dizer para não apareceres hoje, nem amanhã, nem durante três dias,

mas que fiques em casa e que entretanto seja uma noite prolongada! Assim, quando as Horas34

desatrelarem os teus cavalos, apaga o fogo e dá um pouco de descanso a ti próprio.

32

A gestação compreendia um período de dez meses lunares. 33

Hermes, o mensageiro dos deuses, traz a Hélios, o deus do Sol, um recado de Zeus. Segundo a

mitologia da Antiguidade Grega, o Sol conduzia o seu fogo num carro puxado a cavalos, com o qual

voava pelos Céus, trazendo a luz do dia aos mortais. No final do seu curso, ía descansar no Oceano, onde

os seus cavalos matavam a sede. No seu lugar aparecia Selene (a Lua), no seu carro prateado.

Apaixonado por uma mortal, Alcmena, Zeus aproveitou a ausência do marido, Anfitrião, que

participava numa guerra, para tomar a sua forma e assim aproximar-se da jovem. Zeus, todavia, pretendia

prolongar a sua união nocturna com Alcmena, pelo que pedia a Hefesto para que permitisse que a noite se

estendesse. Desse relacionamento nasceria Hércules. 34

As Horas eram três divindades, filhas de Zeus e de Témis: Dice, Eunomia e Irene. Tinham diversas

funções, entre as quais desatrelarem os cavalos do Sol (Hélios).

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24

HÉLIOS

Que coisas extraordinárias e prodigiosas que vens dizer-me, Hermes! Porventura ele

julgou que me enganei no caminho, que avancei para além dos limites e que isso me perturba a

ponto de ter decidido fazer com que a noite dure o triplo do dia?

HERMES

Nada disso, e nem isso é para sempre! Mas neste momento ele está a precisar que a noite

seja mais comprida.

HÉLIOS

(Olhando para todos os lados) Mas onde é que ele está e donde é que ele te enviou para

me anunciares isto?

HERMES

Da Beócia, ó Hélios, a ocupar o lugar de Anfitrião, com cuja esposa se uniu, apaixonado.

HÉLIOS

Então uma noite não chega?

HERMES

De modo nenhum! É que dessa reunião tem que nascer um deus grande e vencedor de

muitos combates! Mas é impossível concebê-lo numa noite.

HÉLIOS

Então boa sorte para concebê-lo!

(Aproximando-se mais de Hermes) Mas convenhamos, ó Hermes, isto não se passava no

tempo de Cronos35

, nem ele esteve dormir alguma vez longe de Reia, nem, abandonando o Céu,

foi dormir a Tebas, mas pelo contrário, o dia era dia e a noite tinha a sua duração de acordo com

as estações. Não se passava nada de estranho nem de anormal, nem ele em alguma ocasião se

deitou com uma mulher mortal! Porém agora, por causa da desgraçada de uma mulher, é preciso

pôr tudo de pernas para o ar, que os cavalos fiquem sem agilidade, devido à falta de trabalho,

que o caminho, depois de três dias sem ser usado, se torne intransitável e que os homens vivam

miseravelmente na escuridão. É isto que eles vão receber dos amores de Zeus: - suportar

35

Pai de Zeus, casado com Reia, sua irmã.

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25

sentados, envolvidos por umas enormes trevas, até que ele acabe de conceber o atleta que

referiste.

HERMES

(Olhando para todos os lados e tentando desesperadamente fazer com que Hélios se

cale) Cala-te, Hélios! Não queiras, com as tuas palavras, receber um castigo.

(Afastando-se) Eu cá vou ter com Selene36

e Hipnos37

para lhes comunicar o que Zeus

ordenou: a ela, que avance com calma; a ele, que não abandone os homens, para que não se

apercebam de quão comprida ficou a noite.

11

De Afrodite e Selene38

AFRODITE

Então, Selene, o que é isso que dizem que tu andas a fazer? - Quando desces até ao Cairo

páras a tua carruagem para observar Endímion a dormir ao ar livre, pois é um caçador, e por

vezes, a meio do teu caminho, chegas a descer até junto dele?

SELENE

Pergunta ao teu filho39

, Afrodite, que me parece ser ele o culpado disso.

AFRODITE

Ah! Ele é um insolente! Até a mim, a sua própria mãe, ele faz coisas inimagináveis! Ora

me faz descer ao Ida, por causa do troiano Anquises40

, ora ao Líbano, devido àquele rapaz

assírio41

, que ele fez com que fosse digno de ser amado por Perséfone42

, apoderando-se de

36

A Lua. 37

O Sono. 38

O diálogo travado entre Afrodite e Selene alude à figura de Endímion. Este jovem e esbelto pastor

despertou a atenção de Selene, a qual, por seu turno, terá intercedido junto de Zeus para que este lhe

concedesse a realização de um desejo. Ora Endímion escolheu ter um sono eterno. 39

Selene refere-se a Eros, o deus do amor. 40

Dos amores de Afrodite e de Anquises nasceu Eneias. 41

Afrodite refere-se a Adónis. A cólera de Afrodite fizera com que a sua mãe, Mirra mantivesse uma

relação incestuosa com o seu pai, Tiante, por doze noites. Ao acordar do transe em que se encontrara e

reconhecendo a relação que mantivera, Tiante perseguiu a filha, no intuito de matá-la, pondo assim termo

à sua vergonha. Contudo, os deuses apiedaram-se dela e transformaram-na numa árvore, a mirna, de cuja

casca fendida nascera o garboso Adónis. Cativando as paixões de Afrodite e de Perséfone, por decisão de

Zeus, Adónis passaria um terço do ano com Afrodite, outra com Perséfone e a restante com aquela que

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26

metade do meu amor! A tal ponto de muitas vezes o ter ameaçado de, se não parasse de fazer

essas coisas, lhe quebrar o arco e as flechas e despojá-lo da aljava e das asas43

! E ainda lhe dei

umas palmadas nas nádegas com a sandália. Mas não sei de que maneira, nesse preciso instante

ele mostra-se receoso e suplicante e, em pouco tempo, esquece tudo.

Mas diz-me, Endímion é belo? É que assim os males são mais fáceis de suportar.

SELENE

A mim parece-me muito belo, Afrodite, principalmente quando, depois de colocar a

clâmide debaixo de si, sobre uma pedra, se deita, segurando, com a mão esquerda, os dardos a

deslizarem-lhe da mão, e envolvendo, com a direita dobrada por cima da cabeça, a face. Deste

modo, estando mergulhado no sono, inala uma lufada de ambrósia. E então eu desço, sem fazer

barulho, caminhando nas pontas dos pés, para que, se despertar, não fique perturbado

(lançando um olhar de cumplicidade para Afrodite) - tu sabes! Para que é que vou dizer-te o

resto? (Com um longo suspiro) – Somente que estou a morrer de amor!...

12

De Afrodite e Eros44

AFRODITE

(Num tom repreensivo) Ó Eros, meu filho! Olha para aquilo que estás a fazer! Não estou

só a falar daquilo que fazes na Terra - persuadires os homens a fazerem muitas coisas contra ele

próprios e contra os outros - mas também do que fazes no Céu – apresentas-nos Zeus sob muitas

formas, transformando-o no que te apetecer na altura; a Selene, faze-la descer do Céu; a Hélios,

obriga-lo algumas vezes a retardar-se com Clímene45

, esquecendo-se de conduzir o seu carro!

Até a mim, a tua mãe, tratas com insolência e cometes atrevimentos ...

Então tu, ó malvado sem comparação, até a própria Reia46

, já velha e na qualidade de mãe

de todos os deuses, tu induziste a nutrir um amor juvenil e a desejar aquele rapaz frígio47

e agora

ela, enlouquecida por ti, atrelou os leões e, na companhia das Coribantes (elas também

mais lhe aprouvesse. A escolha recairia sobre a deusa do amor. 42

Esposa de Hades, o deus dos Infernos. 43

Eros era vulgarmente representado como uma criança alada, carregando uma aljava cheia de setas, com

as quais inflamava as paixões. 44

Este diálogo consiste sobretudo numa admoestação que Afrodite faz ao seu filho Eros, pelos

comportamentos daqueles que são acometidos pelas paixões que ele suscita. 45

Filha de Oceano e de Tétis, casou-se com Hélios. 46

Afrodite recorda os amores de Reia, a esposa de Cronos, por o jovem frígio, Átis. 47

Átis.

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27

enlouquecidas), dão voltas ao Ida, para cima e para baixo e, enquanto ela grita por Átis, no que

respeita às Coribantes, por seu turno, - uma delas trespassa o cotovelo com uma espada, outra

solta a cabeleira e precipita-se, enlouquecida, pelos montes; outra toca o corno; outra ainda

ribomba o tímbale, outra faz ressoar o címbale e, em suma, no Ida, tudo é ruído e loucura.

Agora eu, que concebi uma tamanha peste, temo que Reia, num acesso de loucura, ou ao

libertar-se da insanidade e voltando a ser novamente ela própria, mande as Coribantes

agarrarem-te para te despedaçarem ou te lançarem aos leões! Receio estas coisas, ao ver-te

aventurares-te desta forma.

EROS

(Num tom calmo) Sossega, mãe, que eu já estou familiarizado com os leões! Algumas

vezes, montado nas sua costas e segurando as suas jubas, conduzo-os. Eles acariciam-me,

deixam-me passar a mão pelo focinho e restituem-ma intacta depois de ma terem lambido.

E acaso Reia vai ter tempo livre para mim, quando está ocupada por inteiro com Átis? E

além disso, que falta é que eu cometi ao mostrar-vos onde estão as coisas belas? Não cedam

vocês à beleza! Nem venham agora culpar-me disso. Ou tu não queres mais, ó mãe, continuar a

amar Ares, nem que ele continue a amar-te?

AFRODITE

Como és hábil e consegues sempre sair a ganhar de todas as situações! Mas ainda um dia

hás-de lembrar-te das minhas palavras!

13

De Zeus, Asclépio e Héracles48

ZEUS

(Num tom repreensivo) Chega de lutar um com o outro como os humanos, Asclépio e

Héracles! São atitudes indecorosas e indignas do festim dos deuses!

HÉRACLES

48

Héracles, o célebre herói dos doze trabalhos, filho de Zeus, e Asclépio, filho de Apolo, de quem

herdara a sua habilidade na Medicina, discutem sobre a ocupação de um lugar de maior honra à mesa dos

banquetes dos deuses. A conversa é interrompida por Zeus, que ameaça banir ambos do convívio.

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28

(Visivelmente irritado) Então tu queres, ó Zeus, que esse curandeiro ocupe um lugar de

maior destaque à mesa?

ASCLÉPIO

Com certeza, por Zeus! Já que sou superior.

HÉRACLES

(Irritado e irónico) Em que aspecto, ó seu estúpido? Acaso Zeus te acertou com um raio

por teres feito algo que não devias, e agora por compaixão recebeste de novo a imortalidade?

ASCLÉPIO

Então tu estás a esquecer-te, Héracles - já que estás para aí a injuriar-me com a questão

do fogo49

- que tu estiveste a arder no Eta50

?!

HÉRACLES

A tua vida em nada pode assemelhar-se à minha, pois eu sou filho de Zeus e sofri muitas

provações, a purificar o mundo, a lutar com feras e a castigar os homens insolentes!

Tu, no entanto, não passas de um apanhador de raízes e de um charlatão - ou porventura

teve alguma utilidade teres aplicado aquelas mezinhas nos homens enfermos? E nunca mostraste

valentia.

ASCLÉPIO

Dizes bem, porque fui eu que te curei as queimaduras, quando recentemente chegaste

meio queimado, com o corpo destruído por estes dois: pela túnica e ao mesmo tempo pelo fogo!

Eu cá, ao menos, nunca fui escravo como tu, nem fiei lã na Lídia, vestido com trajes cor

de púrpura, nem apanhei da sandália dourada de Ônfale, nem matei os meus filhos e a minha

mulher num acesso de fúria51

!

HÉRACLES

49

O fogo assume-se como um elemento de relevo na vida de Asclépio. Na realidade, Apolo apaixonara-se

pela mãe de Asclépio, Corónis, uma princesa da Tessália. Ela ficou grávida, mas não se manteve fiel ao

deus, ao apaixonar-se por Ísquis. Furioso, Apolo matou-a. quando o seu corpo estava prestes a arder na

pira, a divindade retirou Asclépio do seu ventre. 50

Héracles desposara Dejanira. Ainda assim, a certa altura, tomou Íole como concubina. Movida pelo

ciúme, Dejanira embebeu uma túnica no sangue do Centauro Nesso e ofertou-a a Héracles. Ao vesti-la, o

seu corpo começou a arder. Héracles subiu ao monte Eta e ordenou que se erguesse uma pira, onde

acabou de ser consumido pelo fogo. 51

Alusão a um episódio segundo o qual, para se purificar, Héracles foi adquirido como escravo por

Ônfale, a rainha da Lídia.

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29

(Gesticulando, num tom ameaçador) Se não paras de insultar-me, vais ver como não irá

valer-te de muito a imortalidade, já que vou pegar em ti e lançar-te de cabeça do Céu, de forma

que nem Péan será capaz de consertar-te o crânio esborrachado.

ZEUS

(Separando-os) Parem, estou a dizer-vos, e não perturbem ainda mais o nosso convívio,

ou vou expulsar-vos a ambos do festim!

(Para Héracles) De qualquer modo, Héracles, é justo que Asclépio se sente num lugar

cimeiro a ti, uma vez que morreu antes!

14

De Hermes e Apolo52

HERMES

Porque é que estás com um ar tão pesaroso, Apolo?

APOLO

(Triste e cabisbaixo) Ó Hermes, porque sou um infeliz nos amores!

HERMES

Ora aí está um motivo digno de infelicidade! Mas qual é o motivo do teu pesar? Acaso

ainda andas a sofrer por Dafne?

APOLO

De modo nenhum! Mas sofro pelo meu amado, o lacónio filho de Ébalo.

HERMES

Diz-me - acaso Jacinto já morreu?

52

Ao encontrar Apolo bastante triste, Hermes indaga qual o motivo. Apolo conta de que forma, num

fatídico dia, ao lançar o disco na companhia do belo jovem Jacinto, pelo qual se apaixonara, num

descuido, o disco acertou-o de forma fatal. Na realidade, Zéfiro, um dos deuses dos ventos, também

apaixonado por Jacinto, levado pelos ciúmes, desviou o disco da sua trajectória normal. Apolo ergueu-lhe

um túmulo e fez nascer do sangue que jorrara para a terra uma flor, com o seu nome. Ainda assim,

continuava a sentir-se pesaroso e culpado pelo sucedido.

Page 30: 50816510 LUCIANO de Samosata Dialogos Dos Deuses

30

APOLO

Sim, de facto já.

HERMES

Quem é que fez isso, Apolo? Quem poderia ser tão cruel a ponto de matar aquele belo

rapaz?

APOLO

O serviço foi mesmo meu.

HERMES

Porventura enlouqueceste, Apolo?

APOLO

Não, na realidade foi uma desgraça involuntária.

HERMES

Como assim?! Ora eu gostaria de ouvir o sucedido.

APOLO

Ele estava a aprender a lançar o disco e eu estava a lançá-lo com ele. Eis senão quando

Zéfiro, o pior de todos os ventos, que já estava apaixonado há muito tempo por Jacinto, mas não

era correspondido, não suportando o desprezo, quando eu lancei o disco, como era nosso hábito,

ele soprou o disco para cima, desde o Targeto53

, na direcção do rapaz, e arremessou-o contra a

cabeça dele de tal forma, que jorrou muito sangue da ferida e ele morreu instantaneamente. E

eu, vingando-me de imediato, comecei a atirar setas, perseguindo-o em fuga até à montanha.

Quanto ao rapaz, erigi-lhe um túmulo em Amiclas, no local onde o disco o atingiu e fiz com que

da terra, a partir do sangue derramado nascesse uma flor muito singela, ó Hermes, e também a

mais florida de todas as flores, contendo a inscrição das letras que testemunham o meu lamento

pelo falecido54

.

Então, ainda achas que estou atormentado sem motivo?

HERMES

53

Monte. 54

As pétalas da flor recordam o pesar de Apolo. Contêm a inscrição AI ou Y, a inicial do nome do jovem -

não nos esqueçamos de que a letra J não fazia parte dos alfabetos.

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31

Com certeza, Apolo! Já sabias que tinhas elegido um mortal por amante! Por conseguinte,

não sofras pela sua morte.

15

De Hermes e Apolo55

HERMES

Ó Apolo, então não é que este coxo, este ferreiro, se casou com as mais belas: Afrodite e

Cáris?!

APOLO

Que tipo com sorte, Hermes! Só me admiro como é que elas suportam estar com ele,

principalmente quando o vêem a escorrer suor, inclinado sobre a forma, com o rosto todo

coberto de fuligem! E apesar disso, abraçam-no, beijam-no e dormem com ele.

HERMES

É isso que me admira e que invejo em Hefesto!

Tu até podes cuidar da cabeleira, Apolo, tanger a cítara e sentires um grande orgulho da

tua beleza, e eu da minha boa compleição física e da minha lira! Ainda assim, quando chega a

hora de dormir, deitamo-nos sozinhos.

APOLO

Eu cá sou um infeliz no que diz respeito ao amor. No que respeita a pelo menos dois dos

que eu mais amei, Dafne e Jacinto, Dafne, por um lado, odiou-me tanto, que preferiu

transformar-se em árvore a unir-se a mim, enquanto que Jacinto, matei-o com o disco, e agora,

em vez deles, tenho coroas de flores.

HERMES

Eu já uma vez, com Afrodite ... – mas não devemos vangloriar-nos.

55

Hermes e Apolo dialogam a respeito da sorte invejável de Hefesto, no que respeita aos amores. Não

obstante ser coxo, conseguiu unir-se às mais belas: Cáris e Afrodite. Por mais estranho que parecesse,

estes relacionamentos eram compatíveis, na medida em que Cáris se encontrava em Lemnos e Afrodite no

Céu. Contudo, Afrodite mantinha um relacionamento com o belo e musculoso Ares. Hefesto descobrira a

traição e preparava-se para construir uma rede, a fim de apanhar os dois amantes em flagrante e de expor

publicamente a situação.

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32

APOLO

Sei, contudo diz-se que gerou de ti Hermafrodito56

.

(Em tom de confidência) Mas diz-me, se é que sabes de alguma coisa, como é que

Afrodite não tem ciúmes de Cáris, nem Cáris dela?

HERMES

Ó Apolo, porque aquela está a viver com ele em Lemnos e Afrodite está no Céu! Por

outro lado, esta passa a maior parte do tempo junto de Ares, de quem ela gosta, e

consequentemente pouco lhe importa o ferreiro.

APOLO

E achas que Hefesto sabe disso?

HERMES

Sabe! Mas o que é que ele poderia fazer, ao deparar-se com um rapaz forte e ainda por

cima soldado! Assim, suporta em silêncio! Só ameaça conceber uma rede, lançá-la sobre eles e

envolvê-los com ela na cama.

APOLO

Não sei! Mas gostava de ser eu a ser apanhado na sua companhia.

16

De Hera e Leto57

HERA

(Comentando com ironia) Mas que belos filhos tu deste a Zeus, ó Leto!

LETO

(Respondendo com ironia) É que nem todas nós, Hera, podemos gerá-los à semelhança de

Hefesto.

56

Filho de Hermes e de Afrodite. O seu nome serviria para identificar os seres de natureza sexual dupla. 57

Neste diálogo assiste-se a uma conversa entre duas das muitas que se relacionaram com Zeus: a sua

esposa Hera e Leto. Os objectos de ataque são os seus filhos. Hera, por um lado, gerara Hefesto, o deus

que se distingue pelo facto de se ter tornado coxo. Leto deu à luz gémeos: Apolo e Ártemis.

Page 33: 50816510 LUCIANO de Samosata Dialogos Dos Deuses

33

HERA

Mas esse, ainda que coxo, é útil, revelando ser um excelente artífice, tendo-nos adornado

o Céu, e além disso casou-se com Afrodite e é amado por ela, enquanto que os teus filhos, pelo

contrário ... deles, ela é viril e agressiva para além do normal, e quando ela vai a Cítia, todos

sabem como ela se alimenta, matando estrangeiros e imitando os Cítios, que são antropófagos!

E Apolo pretende saber todas as coisas: disparar o arco, tocar cítara, ser médico, adivinhar e,

tendo estabelecido locais de adivinhação, não apenas em Delfos, mas também em Claros e em

Dédima, engana os que lhe pedem oráculos, é dúbio e dá respostas ambíguas às perguntas, para

não ser acusado de dolo. E enriquece às custas deles! De facto, muitos são os insensatos que

recorrem a ele para se enganarem a si próprios! Só os mais inteligentes é que não desconhecem

que ele está a mentir na maioria das vezes! Por exemplo, Porque é que ele não adivinhou que

iria matar o seu amado com o disco, nem previu que Dafne iria escapar-lhe, mesmo sendo ele

tão belo, com aquela cabeleira frondosa. Por conseguinte, não vejo porque julgas que os teus

filhos são melhores do que os de Níobe58

.

LETO

Todavia eu sei que os meus filhos, a matadora de estrangeiros e o falso profeta te

incomodam, ao vê-los entre os deuses, e principalmente quando ela é elogiada pela sua beleza, e

ele toca cítara no simpósio, tornando-se alvo da admiração de todos.

HERA

Fazes-me rir, Leto! É admirável aquele que, se as Musas tivessem querido julgar com

justiça, Mársias teria arrasado, ao vencê-lo na música! Mas consequentemente aquele miserável,

vencido pelos seus sofismas, morreu, injustamente vencido59

!

E a tua bela rapariga é de tal modo bela, que, quando compreendeu que estava a ser

observada por Actéon60

, temendo que o rapaz revelasse a sua fealdade, lançou-lhe os cães! Para

já não falar também da promessa de que, se fosse donzela, não iria auxiliar as mulheres que se

encontrassem em trabalho de parto!

LETO

58

A tradição recorda Níobe como a filha do primeiro homem e também como a primeira mortal com

quem Zeus se relacionou. Dessa união nasceram Argo e Pelasgo. 59

O Sileno Mársias teria inventado a flauta de dois tubos, que tocava eximiamente, ao ponto de desafiar

Apolo, com a sua lira, para um concurso musical. O vencedor poderia aplicar o destino que quizesse ao

oponente. Numa primeira volta, registou-se um empate. Então Apolo convidou Mársias a tocar o seu

instrumento virado ao contrário. Ao vencer, Apolo matou o adversário. 60

Actéon era um caçador, que percorria os campos na companhia dos seus cinquenta cães. Um dia

avistou a deusa Ártemis a banhar-se no rio. Esta, desagradavelmente surpreendida, transformou-o num

veado, que a matilha prontamente devorou.

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34

Orgulhas-te muito, Hera, de te deitares com Zeus e de reinares juntamente com ele. Por

causa disso estás a ser insolente para comigo, sem qualquer receio! Só que dentro em breve, hei-

de ver-te chorar, quando ele te abandonar para descer à terra, transformado num touro61

ou num

cisne62

.

17

De Hermes e Apolo63

APOLO

De que é que estás a rir-te, Hermes?

HERMES

É que vi umas coisas muito engraçadas, Apolo.

APOLO

Então conta, para que depois de ouvir, eu possa rir-me contigo.

HERMES

Afrodite foi apanhada na cama com Ares e Hefesto agarrou-a, prendendo-os.

APOLO

Como?! Ora, parece que vais contar algo interessante.

HERMES

Desde há muito, suponho eu, que ele, sabendo dessas coisas, estava a tentar apanhá-los, e,

tendo colocado uma rede invisível à volta da cama, foi-se embora trabalhar para a fornalha!

Seguidamente, chegou Ares, sem ser visto, ao que julgava, mas Hélios vê-o e vai contar a

Hefesto. Na altura em que chegam ao leito e estavam no acto, encontrando-se já dentro da rede,

a armadilha enlaçou-os e Hefesto surge-lhes em frente. Então ela, envergonhada – pois

61

Alusão ao relacionamento de Zeus e de Ío. 62

Referência à união de Zeus com Leda, sob a forma de um cisne. 63

Esta conversa coloca frente a frente Hermes, extremamente bem disposto e Apolo, a quem conta o

motivo de tanto riso. A cena referida dá continuidade ao previsto no diálogo 15: Hefesto elaborara uma

rede invisível, com a qual apanhara a sua esposa Afrodite em pleno acto de adultério com Ares, o deus da

Guerra.

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35

encontrava-se nua – não tinha como cobrir-se e Ares, por seu turno, primeiramente, esforçava-se

por fugir e esperava conseguir romper a rede, mas quando compreendeu que estava preso sem

saída, começou a suplicar-lhe.

APOLO

(Curioso) E então? Hefesto libertou-os?

HERMES

De modo nenhum! Pelo contrário, chamou os deuses e mostrou-lhes o adultério! Os dois,

nus, de cabisbaixo, atados um ao outro, coraram de vergonha, mas a mim pareceu-me

interessante o espectáculo e o facto de quase ter sido concretizado o acto amoroso.

APOLO

Mas aquele ferreiro não se envergonha de ele próprio expor a desonra do seu casamento?

HERMES

Não, por Zeus! Ele até está lá a rir-se como os outros! Eu cá, para dizer a verdade, invejo

Ares, não só por ter cometido adultério com a mais bela das deusas, mas também por estar preso

com ela.

APOLO

Então tu suportarias estar preso mediante essa condição?

HERMES

E tu não, Apolo? Então vem e observa! Louvar-te-ei se, depois de vê-los, não tiveres o

mesmo desejo.

18

De Hera e Zeus64

64

Hera critica, neste diálogo, o filho que Zeus tivera com Sémele, Diónisos. Em questão estava o facto de

andar muitas vezes ébrio e de inspirar a actos tresloucados na realização dos seus cultos. Zeus, todavia,

realça os seus feitos heróicos.

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36

HERA

Eu tinha vergonha, Zeus, se tivesse um filho como esse, assim efeminado e corrompido

pela bebida, que prende o cabelo com uma mitra e que passa a maior parte do tempo com

mulheres loucas, sendo ele o mais efeminado de entre elas, que dança ao som dos tímbales,

aulos e címbales e que, resumindo, se parece mais a todos do que a ti, o seu pai.

ZEUS

Ora esse de toucado de mulher, mais efeminado do que as próprias mulheres, ó Hera, não

só subjugou a Lídia, como também tomou os habitantes de Tmolo, subjugou os Trácios e ainda

fez avançar sobre os Índios o seu exército feminino, perseguiu os elefantes, tornou-se senhor da

região e tomou como prisioneiro o rei que conseguiu resistir por pouco tempo. Executou todos

esses feitos a dançar, a dirigir os coros, servindo-se de tirsos de hera, bêbado, como tu dizes, e

inspirado de furor divino. Se alguém porventura ousou insultá-lo, sendo insolente para com os

seus mistérios, ele castigou-o, atando-o com sarmentos, ou fazendo com que a sua mãe o

despedaçasse como um veado. Estás a ver como estas façanhas são viris e nada indignas do seu

pai?

Mas se os divertimentos e a arrogância se lhe sobrepõem, que ninguém julgue isso como

uma falta, sobretudo ao considerar-se o que ele seria capaz de fazer estando sóbrio, quando

estando bêbado faz isso tudo.

HERA

Parece-me que tu também vais elogiar a descoberta dele - a vinha e o vinho - embora

vejas o que fazem os bêbados, que tropeçam e dizem insolências, em suma, enlouquecem por

causa da bebida. Ícaro, o primeiro a quem ele deu uma cepa é exemplo disso. Os próprios

companheiros da bebida destruíram-no, a baterem-lhe com alviões.

ZEUS

Isso não quer dizer nada, pois nem o vinho nem Dionísio fizeram isso, mas o facto de se

terem enchido de bebida para além da conta e de terem abusado do vinho puro! Todavia, aquele

que beber com moderação, tornar-se-á mais alegre e agradável e não seria capaz de fazer nada

contra os seus companheiros de bebida, semelhante ao que Ícaro padeceu.

Mas tu, Hera, parece que continuas a estar com inveja e ainda reténs na memória Sémele,

embora estejas a atacar o que Dionísio tem de melhor!

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37

19

De Afrodite e Eros65

AFRODITE

Ó Eros, porque é que, tendo tu já vencido todos os deuses - Zeus, Poseídon, Reia, a mim,

a tua mãe, só te mantiveste afastado de Atena. Diante dela, ou apagas o teu fogo ou a tua aljava

fica sem flechas, e tu ficas sem saber lançar o dardo nem acertar o alvo?

EROS

Tenho medo dela, mãe! É aterradora, de olhar cintilante e terrivelmente máscula! De cada

vez que me acerco dela, quando estou a retesar o arco, afugenta-me, sacudindo o penacho. Fico

a tremer e os dardos escapam-se-me das mãos.

AFRODITE

Então mas Ares não é mais aterrador?! E mesmo assim tu desarmaste-lo e venceste-lo.

EROS

Mas ele aproxima-se de mim por vontade própria e chama-me, enquanto que Atena olha-

me sempre com maus olhos e certa vez eu estava simplesmente a voar nas proximidades,

segurando a tocha, e ela disse: «se te aproximas, juro pelo meu pai, trespasso-te com a lança ou

agarro-te pelo pé e lanço-te para o Tártaro, ou então eu mesma desfaço-te em pedaços!» E fez-

me muitas ameaças desse género! Tem um olhar penetrante e à volta do peito possui uma

imagem aterradora, com uma farta cabeleira de víboras66

, que é o que eu mais temo! (Tremendo

só com a lembrança) Fico aterrado e fujo, quando a vejo.

AFRODITE

Ora tu tens medo de Atena, segundo dizes, e da Górgona mas, apesar disso, não temes o

raio de Zeus.

Então e as Musas, porque é que elas nunca são atingidas por ti e ficam sempre fora do

alcance das tuas setas? Ou elas também sacodem os penachos e ostentam Górgonas?

EROS

65

Afrodite questiona o seu jovem filho Eros, o deus do Amor, por que razão já atingiu por diversas vezes,

com as suas flechas, divindades tão grandiosas como Zeus, Poseídon, Reia, Ares, e até a ela própria, mas

nunca feriu outras, como Atena, as Górgonas ou Ártemis. 66

Figura de Medusa ou Górgona, que Atena ostentava no seu escudo.

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38

Eu respeito-as, mãe! Com efeito, elas são veneradas, estão sempre a meditar nalguma

coisa, ocupam-se com o canto e eu fico muitas vezes parado junto a elas, encantado com as suas

melodias.

AFRODITE

Então deixa-as também a elas em paz, já são venerandas!

Mas e Ártemis, porque é que não a feres?

EROS

Em suma, porque não consigo apanhá-la, pois está sempre a fugir pelos bosques! E além

disso, já tem um amor muito peculiar.

AFRODITE

Por quem, meu filho?

EROS

Pela caça de feras, corças e veados, que procura capturar e trespassar com dardos ...

resumindo, está sempre a pensar nisso! Já no que toca ao seu irmão, não obstante também ser

um arqueiro e um atirador certeiro ...

AFRODITE

Estou a ver, filho, feriste-lo já muitas vezes.

20

O juizo dos deuses67

67

Este diálogo retrata, em discurso directo, um episódio a que muitos autores aludem ou sintetizam nas

suas obras. Trata-se do relato de um concurso de beleza que, de certo modo, estaria na origem da Guerra

de Tróia, que opôs, durante dez anos, Gregos e Troianos.

Quando Tétis e Peleu se casaram, convidaram para o banquete todos os deuses, à excepção de Éris, a

Discórdia. Sentida pelo facto, enviou uma maçã de ouro, que deveria ser entregue à mais bela. Desde

logo, se apresentaram Hera, Afrodite e Atena. Ninguém melhor para decidir a contenda do que Zeus.

Este, todavia, encontrava-se numa situação delicada - a de escolher entre a esposa e duas das suas filhas.

Como tal, decide enviar Hermes a um jovem pastor, abandonado pelos pais, o rei de Tróia (Príamo) e

Hécuba, e que se encontrava no monte Ida. As três deusas apresentaram-se então perante ele e

evidenciaram os seus melhores atributos. Nenhuns, porém, conseguiram ultrapassar os da bela Afrodite

que prometeu a bela Helena, casada com o grego Menelau, ao troiano Páris.

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39

ZEUS

Hermes, toma lá esta maçã e parte para a Frígia para junto do rapaz filho de Príamo, o

boieiro que apascenta o gado perto do Gárgaro, no monte Ida, e diz-lhe: « Ó Páris, Zeus ordena

que, já que és formoso e entendido nos assuntos amorosos, julgues qual destas deusas é a mais

bela! Que a vencedora do certame receba como prémio esta maçã.»

(Dirigindo-se às deusas) E quanto a vocês, já é tempo de partirem para junto do vosso

juiz! Eu cá recuso-me a julgar, porque gosto de vós de igual forma e, se fosse possível, gostaria

de ver-vos a todas vencedoras. Além disso, necessariamente, ao atribuir o prémio a uma, por

certo seria odiado pelas restantes outras, por isso não é conveniente que eu seja o vosso juiz,

mas sim o jovem frígio, para junto de quem vocês vão - é de estirpe real, da família de

Ganimedes, e também simples e rústico! Ninguém poderia considerá-lo indigno de julgar-vos.

AFRODITE

Ainda que Momo68

tivesse sido designado para arbitrar a questão, eu cá não teria receio

de mostrar-me, Zeus. Que defeito poderia ele encontrar em mim? Mas é preciso que as outras

também concordem.

HERA

Nós também não temos nada a recear, Afrodite, nem que o teu querido Ares fosse

encarregado do arbítrio. Mas aceitamos esse Páris, seja lá quem for.

ZEUS

(Para Atena) E tu, minha filha, concordas com isso?

(Atena mostra-se envergonhada, mas ainda assim acena em sinal de consentimento) O

que dizes? Estás a abanar a cabeça e a corar? É próprio de vós, donzelas, envergonharem-se

com estas coisas! Mas ainda assim, estás a acenar afirmativamente.

(Para as restantes deusas) Agora ide, e que as vencidas não se mostrem desagradáveis

para com o juiz, nem façam mal ao rapaz, pois não é possível que sejam todas igualmente belas!

HERMES

(Para as deusas) Vamos imediatamente para a Frígia! Eu vou à frente e vocês, sigam-me,

sem hesitações e com confiança! Eu conheço Páris. É um belo jovem, galante e o mais capaz

para julgar este tipo de assuntos! Ele não emitirá um mau juízo.

AFRODITE

68

Personificação do Sarcasmo.

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40

(Em segredo, para Hermes) Isso está tudo bem e estás a falar a meu favor, quando dizes

que o juiz será justo para connosco! Mas ele é solteiro ou vive alguma mulher com ele?

HERMES

Não completamente solteiro, Afrodite.

AFRODITE

Como dizes?

HERMES

Parece que uma mulher do Ida vive com ele, bastante simples, por um lado, mas por

outro, também terrivelmente agreste – de qualquer forma, parece que não se importa muito com

ela.

Mas porque é que estás a fazer estas perguntas?

AFRODITE

Perguntei por nada em especial.

ATENA

(Em tom de censura) Então?! Tu, não estás a desempenhar bem a tua função, ao estares

ainda há pouco a falar em particular com esta (apontando Afrodite).

HERMES

Não estávamos a falar nada de mal, nem contra vocês, Atena, ela só estava a perguntar-

me se Páris é solteiro.

ATENA

Para que é que ela queria saber isso?

HERMES

Não sei! Diz que lhe ocorreu simplesmente e que não fez a pergunta com um propósito.

ATENA

E então? Ele é solteiro?

HERMES

Não me parece.

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41

ATENA

(Julgando por si própria) Ele tem paixão pelos assuntos da guerra, gosta da glória, ou é

simplesmente um boieiro?

HERMES

Não posso dizer ao certo, mas sendo jovem, é de imaginar que tenda a alcançar essas

coisas e a querer ser o primeiro na luta.

AFRODITE

(Para Hermes) Vês? Não estou a repreender-te, nem a acusar-te de falares em particular

com ela! Isso são coisas de quem tem por costume queixar-se, não de Afrodite.

HERMES

Ela estava a perguntar-me praticamente o mesmo que tu! Assim não tens que preocupar-

te, nem que considerar-te menos favorecida, se eu lhe responder com mesma sinceridade do que

a ti.

Mas enquanto estávamos aqui à conversa, já nos afastámos muito dos astros e estamos

quase na Frígia. Ora eu estou a ver perfeitamente, se não me engano, o Ida e o Gárgaro por

inteiro e também o vosso juiz em pessoa, Páris.

HERA

(Tentando a todo o custo visualizar) Onde está? Não estou a vê-lo.

HERMES

Olha aqui do lado esquerdo, Hera, não para cima do monte, mas na encosta, onde está a

caverna, ali onde se encontra a manada.

HERA

Mas eu não estou a ver a manada.

HERMES

O que é que estás a dizer? (Apontando) Não vês uns boizinhos aqui na direcção do meu

dedo, a saírem de entre as rochas e um indivíduo a descer do cimo de uma rocha, a segurar um

cajado e a impedir que a manada se disperse para longe?

HERA

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42

Agora já estou a ver, se é que é mesmo ele.

HERMES

É ele, sim. Uma vez que já estamos perto, se acharem bem, descemos à terra e vamos a

caminhar, para não o assustarmos ao descer subitamente do céu.

HERA

Tensa razão. Assim faremos.

(Ironicamente, para Afrodite) Agora que já chegámos, está na hora de tu, Afrodite, ires à

frente e de nos indicares o caminho. Naturalmente, tu estás uma perita, já que, segundo se diz,

desces muitas vezes à Terra, para encontrares Anquises.

AFRODITE

Não me incomodas muito com os teus sarcasmos, Hera.

HERMES

(Continuando a caminhada) Pois eu é que vou guiar-vos! Na verdades, também eu já

estive no Ida, na época em que Zeus se apaixonou pelo rapaz frígio. Vim aqui muitas vezes

enviado por ele para vigiar o rapaz, e quando se transformou em águia, voei juntamente com

ele, e ajudei-o a transportar o garboso rapaz. (Apontando para um rochedo) Se bem me lembro,

foi a partir daqui, desta pedra, que o levou para cima! Ele encontrava-se então a tocar flauta

junto do rebanho! Zeus aproximou-se dele pela retaguarda, com facilidade rodeou-o

completamente com as garras e segurando-o com o bico pela tiara da cabeça, ergueu o rapaz

que, espantado e com o pescoço revirado, olhava para ele. Então eu, segurando a flauta – pois

ele tinha-a perdido com o medo – mas ... (Chegando junto de Páris) ora eis-nos aqui perto do

vosso juiz! Pois então acerquemo-nos dele.

(Dirigindo-se a Páris) Saudinha, pastor!

PÁRIS

(Admirado) Para ti também, jovem. Mas por que motivo é que vieste até aqui, a estes

domínios? E quem são essas mulheres que estás a conduzir? Elas não devem ter o costume de

percorrer as montanhas, de tal maneira são belas.

HERMES

Todavia não são mulheres, Páris! Estás a ver Hera, Atena, Afrodite e a mim, Hermes,

enviado por Zeus.

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43

(Páris fica estupefacto) Mas porque é que estás a tremer e a ficar pálido? Não tenhas

receio! Não é nada de mal. Ele ordena que tu sejas o árbitro da beleza delas. Já que é belo, diz

ele, e entendido no amor, lego em ti a decisão e darás a conhecer o prémio da contenda através

da inscrição na maçã.

PÁRIS

(Pede a maçã a Hermes, que lha entrega) Deixa cá ver o que é que ele quer. Diz «Para a

mais formosa.».

Mas agora, ó senhor Hermes, como poderei eu, um mortal e um rústico ser juiz de um

espectáculo tão incrível e superior a um boieiro? É que tomar essas decisões é algo mais próprio

de efeminados e de indivíduos da cidade. Eu cá, de acordo com o meu ofício, poderia

rapidamente decidir entre uma cabra e outra cabra, uma bezerra e outra, qual a mais bela,.

(Apontando para as deusas) Porém elas são todas igualmente belas e não sei como poderia

retirar a vista de uma e transferi-la para outra! Ela não quer afastar-se com facilidade. Fixa-se na

primeira, renuncia a tudo e aprova o que está à sua frente! E se transita para outra, acha-a bela,

encanta-se e fica também cativada pelas outras que estão próximas e, em suma, a beleza delas

espalhou-se à minha volta, tomou-me por inteiro e sofro por, tal como Argos, conseguir ver por

todas as partes do corpo.

Parece-me que efectuarei um bom julgamento se der a maçã a todas. Ainda por cima,

acontece que aquela é irmã e esposa de Zeus, e as outras, filhas! Então assim como é que não

há-de ser difícil a decisão?

HERMES

Não sei, mas não é possível fugir ao que Zeus ordena.

PÁRIS

Ó Hermes, ao menos convence-as disto: que as duas que forem vencidas não fiquem com

ressentimentos contra mim, mas que julguem que a culpa é apenas dos meus olhos.

HERMES

(Depois de lhes lançar um olhar inquisidor e de obter uma resposta positiva) Dizem que

assim farão!

Mas já é tempo de chegares a um juízo.

PÁRIS

(Com resignação) Hei-de chegar! O que é que me resta?

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44

Mas antes quero saber uma coisa: acaso será suficiente olhar para elas, tal como estão, ou

será conveniente despirem-se para uma análise mais minuciosa?

HERMES

Isso pode ficar dependente do teu critério. Ordena como te aprouver.

PÁRIS

(Visivelmente satisfeito) Ordeno como me aprouver?

Quero vê-las nuas.

HERMES

(Para as deusas) Vocês, dispam-se!

(Para Páris) E tu, observa!

Eu cá vou desviar olhar.

HERA

Com certeza, Páris! E eu vou ser a primeira a despir-me, para que te apercebas que não

tenho apenas os braços alvos e que não me orgulho apenas em ser a dos olhos grandes, porque

em cada um dos meus membros, eu sou igualmente bela.

PÁRIS

Despe-te também, Afrodite.

ATENA

Páris, ela não que não se dispa antes de largar o bordado, pois é uma feiticeira! Não vá ela

ludibriar-te com ele. Para além do mais, não devia apresentar-se assim toda adornada, nem

enfeitada com essas pinturas, como uma cortesã qualquer, mas sim mostrar a sua beleza natural.

PÁRIS

(Para Afrodite) Elas têm razão no que toca ao bordado, por isso, larga-o!

AFRODITE

Ó Atena, então e porque é que tu não largas o capacete e mostras a cabeça sem nada, em

vez de agitares o penacho e aterrorizares o juiz? Ou temes envergonhar-te por a cor dos teus

olhos poder ser notada sem o aparatoso capacete?

ATENA

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45

Então olha, já tirei o capacete.

AFRODITE

Olha, e eu o bordado.

HERA

Então dispamo-nos!

PÁRIS

(Absolutamente maravilhado com o espectáculo) Ó Zeus prodigioso, que espectáculo,

que beleza, que satisfação! Que donzela esta ... como resplandece aquela de nobreza e

magnificência, verdadeiramente digna de Zeus ... e o doce olhar, o sorriso elegante e atraente

daquela!

Mas chega de felicidade! Pois se acharem bem, gostaria de examinar cada uma em

particular, já que agora estou confuso e não sei para o que olhar, distraída que está a atenção da

vista em todas as direcções.

AFRODITE

Façamos assim.

PÁRIS

Agora saiam vocês as duas! E tu, Hera, fica.

HERA

Fico, e quando tiveres acabado de me apreciar com rigor, terá chegado a hora de tu veres

se te parecem belos os presentes em troca do teu voto em mim! Pois se me considerares a mais

bela, Páris, serás senhor de toda a Ásia.

PÁRIS

(Irritado) Os meus juízos não dependem de presentes. Agora sai! Eu decidirei como

achar justo.

(Para Atena) E tu, Atena, aproxima-te!

ATENA

Já aqui estou na tua presença, Páris, e, se me considerares a mais bela, nunca sairás

vencido de uma luta, mas sempre vencedor! Tornar-te-ei um guerreiro e um conquistador.

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PÁRIS

(Irritado) Não preciso de guerra nem de luta, Atena! Como vês, a paz impera agora na

Frígia e na Lídia e além disso, o reino do meu pai é pacífico. Mas tem confiança, pois não serás

prejudicada, uma vez que não tomarei a minha decisão baseado nos presentes! Podes vestir-te e

colocar o capacete! Já vi o suficiente. Chegou a vez de Afrodite se apresentar.

AFRODITE

Aqui estou, perto de ti, vê pormenorizadamente e não tenhas pressa. Detém-te em cada

um dos membros. E se quiseres, bonito rapaz, escuta o que vou dizer-te. Tendo-te eu visto já há

muito tempo, jovem e belo, de um tipo que não sei se a Frígia criou outro igual, acho-te feliz

com a tua beleza, mas repreendo-te por não abandonares os rochedos e essas pedras aí, para

viver na cidade, em vez de desperdiçares a beleza na solidão. Que partido é que tu podes tirar

das montanhas? E que proveito poderão tirar as vacas da tua beleza? Já devias ter-te casado,

certamente não com alguém rude e campestre, como as mulheres das redondezas, mas com uma

rapariga da Hélade, de Argos ou de Corinto ou de Esparta, como Helena, uma jovem, bela,

semelhante a mim, e sobretudo apaixonada! Só de ver-te, eu estou certa de que largaria tudo,

entregar-se-ia a ti, seguir-te-ia e iria viver contigo. Mas certamente tu já terás ouvido algo

acerca dela.

PÁRIS

Absolutamente nada, Afrodite! Mas agora gostaria de ouvir-te.

AFRODITE

Ela é filha de Leda, aquela mulher bela, para junto de quem Zeus voou, transformado em

cisne.

PÁRIS

E como é que é de aparência?

AFRODITE

Por um lado, é branca, como seria de esperar ao ter nascido de um cisne, por outro,

delicada, já que foi gerada dentro de um ovo, expedita em muitas coisas, hábil na palestra e de

tal modo admirada, que se travou uma guerra por causa dela, quando roubada em criança por

Teseu. Quando atingiu a flor da idade, todos os mais valorosos dos Aqueus pretendiam a sua

mão em casamento, mas o escolhido foi Menelau, da família dos Pelópidas! Se quiseres, eu

farei com que se ela seja a tua esposa.

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47

PÁRIS

O que é que estás a dizer? Uma mulher casada?!

AFRODITE

Tu és jovem e ingénuo, mas eu sei o que é preciso fazer nessas circunstâncias.

PÁRIS

O quê? Eu também quero saber.

AFRODITE

Tu vais fazer uma viagem como se fosse para contemplar o ambiente da Grécia, e quando

chegares à Lacedemónia, Helena ver-te-á, e depois o trabalho difícil - como ficar apaixonada e

deixar-se levar por ti, será meu.

PÁRIS

É isto que me parece inverosímil, abandonar o marido, e querer embarcar com um

bárbaro, um estrangeiro.

AFRODITE

Tem confiança! Eu tenho dois belos filhos, Hímero69

e Eros, esses eu quero confiar-tos

para que sejam teus guias no caminho! Por um lado, Eros apoderar-se-á dela por completo e

obrigará a mulher a apaixonar-se por ti. Hímero, por outro lado, envolvendo-te, conseguirá

tornar-te semelhante a ele, atraente e gracioso. Eu própria ajudar-te-ei, estando presente e

pedirei às Graças70

que me acompanhem, para que todos consigamos persuadi-la.

PÁRIS

Como isto vai acabar não sei, Afrodite! O que sei é que estou apaixonado por Helena.

Sem como nem porquê, já me imagino a vê-la, a navegar para a Grécia, a chegar a Esparta, a

regressar na companhia dessa mulher. Sofro por não estar já a concretizar tudo isso.

AFRODITE

Páris, não comeces por apaixonar-te, antes de recompensares a casamenteira e madrinha

de casamento com a tua decisão favorável! Convém que eu vos acompanhe vitoriosa e que

festejemos simultaneamente os esponsais e a vitória! E tudo isto está ao teu alcance – o amor, a

beleza, o casamento, todas estas coisas em troca de uma maçã.

69

O desejo amoroso. 70

As Graças ou Cárites eram divindades da Beleza.

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48

PÁRIS

Temo que te esqueças de mim depois da decisão.

AFRODITE

Acaso pretendes que jure?

PÁRIS

De modo nenhum, mas faz de novo a promessa!

AFRODITE

Prometo-te, neste momento, entregar-te Helena como esposa e que ela irá acompanhar-te,

irá para a tua casa em Ílion e eu própria estarei junto e prestarei a minha ajuda em tudo.

PÁRIS

E trarás Eros, Hímero e as Graças?

AFRODITE

Sossega, e hei-de trazer também Póto71

e Himeneu72

.

PÁRIS

Assim sendo, por esse motivo, dou-te a maçã – toma-a.

21

De Ares e Hermes73

ARES

Ó Hermes, tu ouviste as ameaças que Zeus nos atirou à cara, quão arrogantes e incríveis?

«Se quisesse, diz ele, eu lançaria uma corda do Céu e ainda que vocês se pendurassem, fazendo

força para me arrastar para baixo, estariam a esforçar-se em vão! Pois não conseguiriam

71

Desejo amoroso. 72

Deus que preside os cortejos nupciais. 73

Este diálogo é sobretudo um desabafo em privado de Ares para Hermes. A gabarolice e a ostentação de

poder por parte de Zeus revoltaram Ares, que chegou a pensar em destituir Zeus do poder, à semelhança

do que outros deuses já haviam noutras ocasiões, pensado fazer.

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49

arrastar-me para baixo! Já eu, se quisesse erguer-vos, levantar-vos-ia no ar, agarrando-vos

juntamente, não só a vós, mas também simultaneamente a terra e o mar!» e tudo o resto que tens

ouvido.

Eu não poderia negar que ele é mais poderoso e mais forte que cada um de nós, mas que

seja superior a todos nós juntos, a ponto de não conseguirmos puxá-lo, nem que juntemos a terra

e o mar, não posso acreditar.

HERMES

(Olhando para todos os lados, com receio, e tentando calar Ares) Ares, toma cuidado

com o que dizes! Não é prudente falar essas coisas! Não venhamos nós a sofrer nenhum mal por

conta dessa indiscrição!

ARES

Acaso achas que eu seria capaz de fazer essas afirmações perante todos e não apenas a ti,

que consegues ser discreto? É sobretudo o riso que me provoca ao ouvi-lo proferir estas

ameaças, que não consigo silenciar diante de ti! Lembrei-me de quando, não há muito tempo,

Poseídon, Hera e Atena, revoltados, planeavam agarrá-lo e amarrá-lo. Ele estava cheio de medo

e nessa altura eram apenas três deuses! E se Tétis não tivesse sentido compaixão, não tivesse

pedido o auxílio de Briareu, que tem cem mãos, eles tê-lo-iam aprisionado juntamente com o

raio e o trovão. Ao pensar nessas coisas, deu-me vontade de rir por causa da gabarolice dele.

HERMES

(Receoso, continuando a olhar para todos es lados, para se certificar de que Zeus não

estava a ouvir) Cála-te, estou a dizer-te! Olha que não é prudente nem para ti estar a falar assim,

nem para mim estar a escutar isso!

22

De Pã e Hermes74

74

Neste curioso diálogo, constata-se que os deuses são superiores, podem assumir diferentes formas, mas

também cometer acções menos dignas, como a violação e não são dotados de omnisciência. Pã, uma

divindade rústica e astuciosa, protectora dos pastores, com chifres e corpo de cabra, apresenta-se diante

de Hermes, que desconhecia a sua paternidade. Este deus teria resultado da união de Hermes, sob a forma

de uma cabra, com Penélope, a esposa de Ulisses.

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50

Saudinha, ó Hermes, meu pai!

HERMES

Para ti também!

(Reflectindo nas palavras de Pã) Mas que história é essa de eu ser teu pai?!

Acaso não és Hermes Cileno?

HERMES

Exactamente. Mas que história é essa de tu seres meu filho?

Sou ilegítimo, nascido dos teus arrebatamentos.

HERMES

(Olhando para Pã) Por Zeus, provavelmente de uma relação extraconjugal entre uma

cabra e um bode! Pois como podes ser meu, tendo esses chifres, um nariz desses, uma barba

espessa, pernas com pés de cabra bifurcados e uma cauda em vez de nádegas?!

Ao zombares assim de mim, do teu próprio filho, meu pai, só estás a dizer algo

vergonhoso, sobretudo para ti próprio, que és capaz de gerar esse tipo de criança! Eu cá, em

contrapartida, não tenho culpa!

HERMES

E quem dizes ser a tua mãe? Ou acaso terei eu, sem saber, mantido uma relação com uma

cabra?!

Não, não tiveste um caso com uma cabra! Mas estás lembrado se alguma vez, na Arcádia,

violaste uma rapariga livre?

(Hermes assume uma postura pensativa) Porque é que estás a morder o dedo, com um ar

inquisitório e tão perplexo? Refiro-me a Penélope, filha de Ícaro.

HERMES

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51

Então porque é que ela acabou por ter um filho como tu, mais parecido a uma cabra do

que a mim?!

Vou narrar-te a história que ela me contou. Quando me enviou para a Arcádia, disse:

«Meu filho, a tua mãe sou eu, a espartana Penélope! Fica a saber que tens por pai o deus

Hermes, filho de Maia e de Zeus. Mas não te aflijas por teres chifres e patas de bode! É que,

quando o teu pai se uniu a mim, assumiu a forma de um bode, para não ser reconhecido, e por

isso vieste com a aparência de uma cabra.»

HERMES

(Lembrando-se) Por Zeus, já me tinha esquecido de ter feio isso! Então eu, que me

orgulho da minha grande beleza e que ainda por cima sou um jovem imberbe, hei-de ser

chamado de teu pai e tenho de ser objecto de riso entre todos, devido à minha bela

descendência?!

Mas eu não hei-de desonrar-te, pai! Com efeito, sou músico e toco flauta com muita

mestria. Dionísio não conseguiria fazer nada sem mim, daí que me tenha tornado seu

companheiro e discípulo e conduzo-lhe os seus coros! Se visses a quantidade de rebanhos que

eu tenho junto a Tegeia e no sopé do Parténio, ficarias encantado! Também sou senhor de toda a

Arcádia! E ainda há pouco lutei ao lado dos atenienses em Maratona e distingui-me de tal

maneira, que me foi concedida, como prémio pela valentia, a caverna por baixo da Acrópole. E

se fores, por exemplo, a Atenas, verás quão grande é ali o nome de Pã.

HERMES

Diz-me, já te casaste, Pã? – acho que é assim te chamas.

Nem pensar, pai! Na verdade, sou namoradeiro e não conseguiria amar e viver só com

uma.

HERMES

Então de certeza que atacas as cabras ...

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52

Tu estás a gozar-me, mas eu deito-me com Eco75

, Pítis76

, também com todas as Ménades

de Dionísio e sou muito estimado por elas.

HERMES

Agora, filho, sabes o que é que eu queria pedir-te que me concedesses em primeiro lugar?

Ordena-me, pai! Vejamos aquilo que pretendes.

HERMES

Aproxima-te de mim e sê meu amigo, mas vê se não me chamas de pai quando outros

estiverem a ouvir!

23

De Apolo e Dionísio77

APOLO

O que é que hei-de dizer-te, Dionísio, relativamente a Eros, Hermafrodito, e Príapo que,

sendo irmãos por parte de mãe, são muito diferentes quanto à aparência e às suas ocupações?

Um é inteiramente belo, maneja bem o arco e, dotado de uma não pequena força,

superioriza-se aos demais. Outro, por seu turno, é efeminado, um misto de homem e de mulher

e de aspecto ambíguo! Não conseguirias distinguir se é rapaz ou rapariga! E o outro, Priapo, é

másculo para além do normal.

DIONÍSIO

Não te admires, Apolo! Na verdade, Afrodite não é culpada disso, mas sim os pais, que

eram diferentes. Porém muitas vezes, até os nascidos do mesmo pai e de um mesmo ventre - um

é rapaz e o outro rapariga, como é o teu caso e o da tua irmã.

75

Ninfa dos bosques e das fontes qsue, depois de morta se transformou numa ténua voz - o eco. 76

Ninfa, convertida em pinheiro depois de morta. 77

A propósito da admiração de Apolo de como irmãos nascidos do mesmo ventre, como Eros,

Hermafrodito e Príapo podem ser tão diferentes, Dionísio revela um episódio passado com Príapo. Este

último era representado com a forma de um falo, simbolizando a fecundidade. Certa vez, segundo relata

Diónisos, tê-lo-á abordado.

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53

APOLO

Certamente! Mas nós somos parecidos e temos os mesmos gostos. Ambos manejamos o

arco.

DIONÍSIO

Mas isso não vai para além do arco, Apolo, porque Ártemis mata os estrangeiros na Cítia

enquanto que tu proferes oráculos e confortas os que sofrem!

APOLO

Acaso julgas que a minha irmã gosta dos Cítios, ela que está sempre preparada, quando

algum grego se aproxima a Táuride, para embarcar com ele, tal o horror que senta pelas

imolações?

DIONÍSIO

Pois ela faz bem.

Quanto a Príapo, vou contar-te uma coisa engraçada que me aconteceu recentemente em

Lampsaco: ora eu estava a passar pela cidade, ele acolheu-me e eu fui tratado como hóspede em

casa dele. Quando fomos dormir, depois de termos bebido a mais da conta no banquete, por

volta da meia noite o robusto rapaz levantou-se – envergonho-me de dizer o resto.

APOLO

Abordou-te, Dionísio?

DIONÍSIO

Foi isso mesmo.

APOLO

Então e tu, o que fizeste perante isso?

DIONÍSIO

Então o quê, a não ser rir-me?

APOLO

Ainda bem que não te zangaste, nem o trataste de uma maneira cruel! Na verdade, é

compreensível que, sendo tu tão belo, ele te aborde.

DIONÍSIO

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54

Lá por causa disso, também poderia abordar-te a ti, Apolo, e tentar seduzir-te! Tu és

jeitoso e tens uma bela cabeleira, pelo que Príapo também em estado sóbrio poderia pôr-te a

mão.

APOLO

Mas não há-de pôr, Dionísio! Porque por detrás da cabeleira, eu tenho as flechas.

24

De Hermes e Maia78

HERMES

Ó mãe, existe no Céu algum deus mais infeliz do que eu?

MAIA

Não fales assim, Hermes.

HERMES

Que não fale assim, eu que tenho tantas obrigações, a trabalhar sozinho e a dividir-me

para todos os tipos de serviços? Desde o nascer do sol, assim que me levanto, tenho que varrer a

sala de banquetes, preparar os aposentos, colocar cada coisa em ordem, comparecer diante de

Zeus e levar a mensagens da parte dele, correndo para cima e para baixo e no regresso, ainda

coberto de pó, servir a ambrósia! E antes da chegada desse jovem copeiro79

, eu também servia o

néctar. Mas o mais terrível de tudo, é que sou o único de entre todos que não durmo de noite,

pois tenho que conduzir as almas a Plutão, ser o acompanhante dos mortos e comparecer no

tribunal! Porém não me bastam as tarefas do dia, estar na palestra, ser arauto nas assembleias e

ensinar os oradores. Ainda tenho ao meu cuidado tratar simultaneamente dos assuntos

respeitantes aos mortos.

Ao passo que os filhos de Leda passem cada um, um dia no Céu, outro no Hades, eu

tenho que fazer cada uma destas coisas todos os dias, e enquanto que os filhos de Alcmena e de

Sémele, nascidos de miserandas mulheres, passam tranquilamente o tempo nos festins, eu, filho

de Maia, a filha de Atlas, sirvo-os. E ainda há pouco, ao chegar de Sidon, da casa da filha de

78

Hermes queixa-se à sua mãe do muito trabalho que tem de efectuar enquanto serviçal dos deuses. Maia

aconselha-o a resignar-se. 79

Alusão ao rapto de Ganimedes.

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55

Cadmo, para onde Zeus me tinha enviado para ver o que fazia a jovem, sem me ter deixado

respirar, mandou-me novamente a Argos, para ir ver Dánae80

. «A seguir, disse ele, seguindo

para a Beócia, dá uma olhada a Antíope81

no caminho». Resumindo, já estou cansado. Se fosse

possível, de bom grado que preferia ser vendido, como aqueles que levam uma penosa vida de

escravo, na Terra.

MAIA

Deixa isso, filho! Sendo jovem, é preciso obedecer ao pai em tudo! Agora, tal como te foi

mandado, vai rapidamente a Argos e depois à Beócia, não vás tu receber uns castigos por seres

lento, já que os apaixonados são irascíveis!

25

De Zeus e Hélios82

ZEUS

Que espécie de coisas é que andaste a fazer, ó mais malvado dos Titãs? Destruíste tudo na

Terra, ao teres confiado o carro de cavalos a um rapaz insensato que ao chegar-se próximo da

Terra queimou uma parte e na outra matou tudo com o frio, ao ter afastado demasiado o calor!

Em suma, não há nada que não tenha sido perturbado, nem que tenha ficado imune! Se eu não

me tivesse apercebido do que estava a acontecer e não o tivesse impedido com o raio, de futuro

não restariam nem vestígios dos homens! Que bonito cocheiro e que belo condutor tu nos

enviaste!

HÉLIOS

Errei, Zeus, mas não fiques mal disposto, se me deixei persuadir pelos muitos pedidos do

meu filho! Como poderia eu esperar que sucedesse uma desgraça tão grande?

ZEUS

80

Filha do rei de Argos. 81

Uma das belas filhas de Asopo. 82

Hélios, o Sol, tivera um filho com Clímene, chamado Faetonte. Até à adolescência desconhecera a

identidade do seu pai. Quando a mãe lha revelou, Faetonte exigiu como prova que Hélios o deixasse

conduzir o carro do Sol. Após alguma hesitação, Hélios cedeu ao seu pedido. Assustado com a altura,

Faetonte descontrolou-se, ora quase tocando nos astros mais altos, ora praticamente queimando a Terra.

Zeus resolveu então, como castigo e para evitar males maiores, fulminá-lo. Neste diálogo que trava com

Hélios, dá conta do feito e exprime a sua reprovação pelo acto de Hélios.

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56

Não imaginavas quão grande precisão exigia a tarefa e como, se alguém se desviar um

pouco do caminho, pões tudo a perder? E porventura desconhecias a vitalidade dos cavalos, e

como é preciso suster o freio com força? Se alguém ceder as rédeas, imediatamente eles ficam

fora de controlo! Como ele se descuidou, puxaram-no de imediato para a direita, logo de

seguida para a direita, depois na direcção oposta do caminho, para cima e para baixo, em suma,

para onde eles queriam! E ele não sabia o que era preciso fazer para sustê-los!

HÉLIOS

Eu sabia tudo isso e por essa razão resisti durante muito tempo e ele não me convenceu a

deixá-lo conduzir! Mas quando me suplicou a chorar, juntamente com a sua mãe Clímene,

coloquei-o em cima do carro. Mostrei-lhe como ele devia manter-se, até que ponto devia puxar

as rédeas para subir, e largar para descer, como ser firme com as rédeas e suster o ímpeto dos

cavalos! E disse-lhe quão grande era o perigo se não conduzisse em linha recta! Mas ele, que em

boa verdade é uma criança, ao ver-se montado sobre o carro de fogo e inclinado sobre um

imenso precipício, assustou-se, como é natural! Então os cavalos, sentindo que não era eu que

estava a conduzi-los, tomaram o pulso ao rapaz, desviaram-se do caminho e provocaram todas

essas atrocidades! Largando as rédeas - com medo de cair, penso eu - ele largou as rédeas e

agarrou-se às bordas do carro. Mas ele já sofreu o castigo e quanto a mim, já basta a minha dor,

Zeus!

ZEUS

Dizes que é suficiente, depois dessas audácias?! No entanto, agora concedo-te o perdão!

Mas de futuro, se cometeres uma semelhante transgressão, ou se nos enviares um substituto teu

como esse, imediatamente saberás o quão mais ardente do que o teu fogo é o meu raio! Por

conseguinte, as irmãs que o sepultem junto ao Erídano, onde foi parar ao ser lançado do carro.

Que derramem lágrimas de âmbar por cima dele, e se transformem em choupos, em memória

pelo infortúnio. Quanto a ti, repara o carro – pois a direcção dele partiu-se e uma das rodas está

aos pedaços –, atrela os cavalos e vai-te embora fazer o teu percurso. Mas que isto te sirva de

lição!

26

De Apolo e Hermes83

83

O último diálogo apresenta Apolo, indignado face a Castor e a Pólux. Hermes esclarece, porém, que

eles não são completamente iguais, nem desocupados, tendo por missão auxiliar Poseídon.

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APOLO

Conseguirias dizer-me, Hermes, qual dos dois é Castor e qual é Pólux? Pois eu cá não

poderia distingui-los.

HERMES

Aquele que esteve ontem connosco era Castor, o outro que está aqui, Pólux.

APOLO

Como os distingues? É que eles são iguais!

HERMES

Ó Apolo, então este aqui tem no rosto as marcas das feridas com que ficou ao andar a

lutar aos murros com os adversários, e sobretudo da ferida provocada por Bébrico, filho de

Amico, ao acompanhar Jasão na expedição. No outro, todavia, não se evidenciava nenhuma:

tem a cara sem manchas e intacta.

APOLO

Agradeço-te por me teres dado essa maneira de reconhecê-los, já que eles são

completamente iguais. Ambos metade de um ovo84

, com a mesma estrela ao cimo, um dardo na

mão e um cavalo branco para cada um ... de tal forma, que muitas vezes eu chamo Castor, sendo

Pólux, e Pólux ao que é Castor. E já agora, diz-me porque é que os dois nunca estão juntos ao pé

de nós, mas a meias, têm de ser alternadamente, um, uma sobra, e o outro um deus?

HERMES

Fazem isso por fraternidade! Porque um dos filhos de Leda devia morrer e o outro devia

ser imortal, e assim eles dividiram a imortalidade entre si.

APOLO

Não é uma divisão inteligente, Hermes! Desse modo eles nunca se vêem um ao outro, o

que é, imagino, o que mais desejavam! E como fazê-lo, encontrando-se um entre os deuses e o

outro entre os mortos? Entretanto, assim como eu profiro oráculos, Asclépio cura, tu ensinas a

lutar, sendo o melhor mestre de ginástica, Ártemis faz o trabalho de parteira e cada um dos

84

Leda, na mesma noite, relacionou-se com Zeus, transformado em cisne, e com o marido, Tíndaro.

Como resultado dessas uniões, pôs dois ovos. De um nasceram Clitemnestra e Pólux. Do outro emergiram

Castor e Helena. Só Pólux e Helena eram filhos de Zeus. Como tal, apenas um dos dois irmãos Castor e

Pólux era imortal.

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58

outros tem uma arte útil para os deuses ou para os homens, eles, todavia, o que é fazem? Ou vão

ficar à boa vida, a preguiçar, já com essa idade?!

HERMES

De maneira nenhuma! Foi-lhes ordenado que devem ajudar Poseídon, percorrer o mar a

cavalo e que, se avistassem marinheiros assolados por tempestades, subissem para o navio e

salvassem os marinheiros.

APOLO

Ó Hermes, é uma ocupação bela e de salutar, a de que me falas!