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5. As professoras das Classes de Aceleração
da Escola I
A Escola I situa-se em um bairro populoso da periferia do
município e foi implantada, inicialmente, dentro do programa de instalações
de CAIC’s (Centro de Atendimento Integral à Criança) do Governo Collor,
em 1990. Não foi alvo do processo de reorganização da rede de ensino até o
segundo semestre de 1999, pois era a única escola existente no bairro. Após
essa reorganização tardia, passou a atender as quatro primeiras séries do
Ensino Fundamental.
O prédio é grande, com dois andares, muito colorido, o que o
destaca a distância. Junto ao prédio principal onde funciona a escola, existe
um pequeno prédio anexo, onde funciona uma Escola Municipal de
Educação Infantil, destinada a crianças de quatro à seis anos.
No primeiro andar do edifício existem as salas de aula, o
refeitório dos alunos, o pátio e a quadra coberta. No segundo andar, existe
uma biblioteca ampla, uma sala de vídeo e um laboratório de ciências que é
utilizado pelas professoras como uma espécie de refeitório, durante o
intervalo das aulas. Ainda no segundo andar há a sala do diretor, da
coordenadora pedagógica e a secretaria escolar.
As Classes de Aceleração também estão localizadas no segundo
andar do prédio, longe das salas de aulas regulares. A Classe de Aceleração
I, da professora Bianca, fica ao lado da sala da coordenação e a Classe de
Aceleração II, da professora Ana, fica no extremo oposto do segundo andar,
ao lado da biblioteca e defronte à sala de vídeo.
As salas destinadas às Classes de Aceleração são pequenas, mas
conseguem acomodar vinte e cinco cadeiras e mesas, que são agrupadas de
quatro em quatro, permitindo o trabalho em grupo, apesar de haver pouco
espaço para a circulação de alunos e da professora. Um armário de ferro
com portas contém o material utilizado pelas professoras e alunos: Ensinar
99
para Valer! (Livro do Professor) e Aprender para Valer! (Livro do Aluno),
artigos de papelaria e fitas de vídeo. Nas paredes, cartazes: numerais de
zero a nove, meses do ano, dias da semana, calendário anual, folhetos de
supermercado, fases da Lua e trabalhos temáticos (Dia das Mães, bandeiras
de festa junina).
Há um sistema de som com alto - falantes presentes em todos os
espaços da escola e que é utilizado continuamente para tocar músicas
evangélicas e enviar comunicados do diretor ou da coordenadora
pedagógica.
5.1. As Classes de Aceleração na ótica das professoras
Os dados que serão descritos e analisados abaixo referem-se às
respostas obtidas por meio da entrevista em grupo realizada com as duas
professoras em exercício da Escola I, Ana e Bianca e da entrevista
individual realizada com a ex - professora Célia, de Classe de Aceleração
da mesma escola.
5.1.1. Trajetória acadêmica e profissional das professoras
A professora Ana possui formação em nível superior em
História, realizada em uma instituição privada de ensino superior, além da
Habilitação Específica para o Magistério. Docente há mais de dez anos,
possui experiência em Educação Infantil, terceiras e quartas séries, além de
uma passagem pela segunda série do Ensino Fundamental.
A professora Bianca possui a Habilitação Específica para o
Magistério e leciona há mais de quinze anos. Tem experiência no ensino de
adultos (MOBRAL e Supletivo) e no Ensino Fundamental, especificamente
em quartas séries.
A professora Célia é formada em Pedagogia por uma
universidade pública estadual e leciona há mais de dez anos; já atuou nas
primeiras séries do Ensino Fundamental e em salas de reforço, no Programa
100
de Formação Integral da Criança (PROFIC) onde, segundo ela, teve contato
com vários alunos com histórico de fracasso escolar. Na época da entrevista
ambicionava ingressar em um programa de pós - graduação strito sensu,
com o objetivo de obter o título de Mestre em Educação.
5.1.2. Ingresso e atuação nas Classes de Aceleração
Com relação à opção pelas Classes de Aceleração, as três
professoras da Escola I optaram por fatores como a atração que sentiram
pela possibilidade de enfrentar de novos desafios profissionais, como
também a necessidade de um maior aperfeiçoamento profissional, através
do processo de formação continuada proporcionado aos professores
integrantes do projeto Classes de Aceleração e pelo efetivo exercício
docente frente a uma clientela comumente rejeitada e rotulada pela maioria
dos professores: os alunos multirrepententes.
Este parece ser o caso da professora Ana:
“Ninguém na escola queria pegar, todo mundo achava que era
uma coisa muito difícil, muito complicada, aí me ofereci para o
seu A. (diretor da escola), falei que se ele não se importasse
(porque ele já tinha escolhido pessoas) assumiria, para ver o
que era, como era, para crescer, para aprender mais. Em 1997,
também escolhi porque quis e esse ano não... eles eram
defasados de idade, de atraso no estudo mesmo, não entendiam
matemática, português muito, sem coerência nenhuma, esse
ano foi bem mais difícil...”
E, principalmente, da professora Célia:
“Houve uma rejeição na escola por parte dos professores, por
que acham que é o “entulho”, o “lixão”. O diretor veio me
oferecer e aceitei. Quis essa sala porque ninguém queria, sou
atraída pelo fracasso, me questiono por que algumas crianças
aprendem e outras não. Me preocupo muito com as que ficam.
Quando foi falado na escola, os efetivos não quiseram pegar e
foi passado para os ACT. Me entusiasmei por causa disso e
também pela aprendizagem que os professores têm, aprendem
101
muito, porque são estas crianças que precisam de um
atendimento especial; achava que, se ia ser professora desse
atendimento, ia me melhorar, sair em busca de uma melhor
aula, uma melhor forma de trabalho.”
A professora Bianca, por sua vez, admite que optou pelas
Classes de Aceleração por não ter conseguido outra classe no ensino regular
mas, mesmo assim, coloca que sentiu um certo “interesse” pelo projeto:
“Me interessei pela Classe de Aceleração, porque todo mundo falava que
era “gostoso”, uma amiga que lecionou comigo na Aceleração no ano
passado falava “pega Bianca, é gostoso.”
Solicitou-se a cada professora que fizesse uma avaliação de sua
turma atual. Essa solicitação deu-se pela crença de que conteúdos
importantes como por exemplo, as suas concepções sobre as dificuldades
dos alunos e a atribuição de causas às mesmas, a identificação de suas
próprias dificuldades em trabalhar com turma, o tipo de relação que
estabelece com o grupo de alunos e dos alunos enquanto grupo, dentre
outros temas relevantes, são revelados no momento em que o professor
avalia sua classe como um todo.
A professora Ana colocou que seus alunos, apesar de
apresentarem dificuldades graves no processo de aquisição da leitura e
escrita, desenvolveram habilidades que lhes permitem uma melhor
expressão oral e escrita.
Destacou a situação em que os alunos se encontravam no início
do ano letivo, especialmente o medo face ao desconhecido de uma nova
sala de aula e de uma nova “vida” escolar. Comentou sobre a dificuldade de
se trabalhar com a auto - estima dos alunos, um conceito que ela acredita
que eles não compreendem e que nem mesmo ela, às vezes, conseguia
compreender.
Considerou que os seus alunos possuíam muito potencial para o
aprendizado e que havia tentado desenvolver, junto aos alunos, uma postura
102
crítica frente aos conteúdos, postura essa que ela acreditava que poderia ser
retomada pelos alunos, posteriormente, em suas vidas acadêmicas:
“.... quando eu peguei a classe alguns alunos estavam terríveis
na escrita, indecifráveis... agora eles já fazem frases mais
completas, a oralidade foi mais trabalhada, começaram a se
expressar melhor. O aluno não precisa deixar de apresentar os
erros ortográficos na sua escrita, mas na hora de colocar no
papel já se lê uma frase que se compreende. Em relação ao
autoconceito, eles chegaram bem medrosos: no início, não
estavam entendendo o negócio de sair da terceira e ir para a
quinta. Fizemos todo um trabalho de levantar a auto - estima.
Achei que eles saíram melhores preparados, menos briguentos,
já estavam mais acomodados. Eles não sabem agora, tenho a
impressão de que eles armazenam isso e que na hora em que
for solicitado eles vão saber, acho que eles viraram alunos
críticos, mesmo que eles ainda não saibam o que é criticidade,
a hora em que for acionado eles vão ser críticos.” (professora
Ana)
A professora Bianca iniciou a avaliação de sua turma atual com
uma frase que pode ser considerada muito significativa: “Recebi a classe
com bastante problema, eram crianças carentes, que não sabiam nada,
nada, nada, nada, nada e nada e têm alguns que não estão sabendo ainda.”
Ao dizer que seus alunos não sabiam “nada”, repetiu essa
palavra inúmeras vezes, enfatizando-a com bastante veemência.
Bianca não parecia acreditar na capacidade de aprendizagem de
seus alunos. Não parecia, igualmente, compartilhar de idéias essenciais para
a atuação no projeto de Aceleração, como que é necessário valorizar os
conhecimentos prévios do aluno (SÃO PAULO - Estado, 1997a).
Isentou-se de responsabilidade no processo de aprendizagem (ou
melhor, de não aprendizagem) de seus alunos, com o argumento de que
havia feito por eles “o possível e o impossível”:
103
“Me esforcei bastante, acho que fiz o possível e o impossível
para eles. Acho que eles trazem muitos problemas de casa. Eles
chutam, xingam. No final, acho que tentei e que recuperei um
pouquinho. De 18 alunos da classe, um vai para a 5a, quatro
vão para a 4a e 13 vão fazer recuperação nas férias. Se tiverem
possibilidades vão para a 4a, senão vão ficar na Aceleração II.”
(professora Bianca)
Apesar de ter, anteriormente, depreciado a situação acadêmica de
seus alunos, afirmou que eles eram “uns alunos rebeldes, alunos bravos,
uns alunos teimosos...”
Encerrou a avaliação de sua turma, complementando a sua idéia
de que o professor está isento de responsabilidade no processo de
aprendizagem dos alunos, ao colocar que o “bom desempenho é mais um
esforço dos alunos que da professora”, pois quando eles não querem, não
fazem: “Acho que o bom desempenho é mais um esforço dos alunos do que
da professora, porque quando eles falam “eu não vou fazer, eu não faço, eu
não faço e eu vou fazer o quê?”
Deve-se considerar que a professora Bianca foi a que apresentou
um dos argumentos mais frágeis para sua opção pela Classe de Aceleração
já que, segundo ela, apesar de um certo interesse por essas classes, o
principal motivo de sua escolha foi a falta de outras oportunidades no
processo da atribuição de aulas.
Já a professora Célia, bastante detalhista em sua avaliação da
classe pela qual foi responsável no período em que lecionou na Escola I
(Classe de Aceleração I, ano de 1997), considerou que percebeu avanços na
turma, não somente em termos de aprendizagem, mas também na conduta e
socialização; não usou de rótulos com relação a eles e demonstrou
compreensão para com as suas atitudes:
“No começo do ano, eles eram muito revoltados; não queriam
aprender, tinham vergonha de ler, tinha que fazer o diagnóstico
inicial e isso foi muito difícil porque eles mesmos não
104
acreditavam que sabiam alguma coisa; eles eram fechados,
muita agressividade, cada um “chapava” mais o outro para se
sobressair como melhor, então foi um trabalho muito difícil,
em termos de auto - estima. No final do ano (1997), eu senti
que eles já tinham superado, já não brigavam tanto, escreviam
espontaneamente, não tinha mais aquela dificuldade de
comunicação, de atendimento; formavam grupos, trabalhavam
juntos e não eram mais tão agressivos.”
A professora Ana relatou que, no ano letivo em que trabalhou
com a professora Célia, elas adquiriram o hábito de “trocar” os alunos entre
as Classes de Aceleração I e II:
“Tinha uma colega que tinha pego Aceleração I, a Célia, e nós
trocávamos os alunos. Ela também estava estudando, então
trocávamos; eu mandei um grupo de alunos para a Aceleração
II, que tinham condições de ir para uma 5a série e ela tinha
crianças que não sabiam e estavam na alfabetização inicial.”
(professora Ana)
O procedimento descrito pela professora Ana não é previsto pela
Proposta Pedagógica Curricular. Entretanto, mesmo não recomendado ou
previsto oficialmente, essa não pareceu ser uma atitude de caráter
discriminatório ou sabotadora por parte das professoras, mas uma
alternativa utilizada pelas mesmas para contornar problemas na composição
das classes, guiada pela avaliação diagnóstica inicial da turma. Não foi
possível analisar os resultados das trocas de alunos entre as salas, pois essa
prática limitou-se ao período em que a professora Célia estava atuando na
Escola I.
No tocante às relações entre professoras e alunos, foram
relatadas dificuldades circunstanciais e regulares.
Segundo a professora Ana, no início de sua participação no
projeto de Aceleração, chegou ao limite de agredir fisicamente um dos
alunos, considerado por ela como um “bandido”; posteriormente comunicou
à coordenadora pedagógica que não mais o aceitaria na sala de aula:
105
“No começo do ano, cheguei a me agarrar com um aluno. Fui
na coordenadora e falei que não queria o aluno na sala, era um
aluno assim tipo bandido mesmo. Agora passaram ele para a
suplência, porque a escola não agüentou o menino...”
A dificuldade da professora Bianca em interagir e, até mesmo,
aceitar a sua classe atual foi novamente manifestada. O descontentamento e
a interação negativa, aparentemente, existiam desde o começo do ano
letivo:
“Esse ano eu estou arrasada, mas arrasada mesmo, com o tipo
de alunos que são... Eu acho que eu nunca peguei uma classe
desse jeito; é a idade deles porque o mais velho está com
quinze anos, então é dez, onze, doze, quinze, então é tudo
assim. Então, esse ano para mim...”
O choque de realidade apresentado pela professora Bianca diante
da idade de alguns de seus alunos é incompreensível quando se parte da
hipótese que, desde o processo de atribuição de aulas, ela já deveria estar
ciente do perfil dos alunos selecionados (onde a idade avançada é uma das
principais características) para comporem as Classes de Aceleração.
Pediu-se a cada professora que destacasse casos de sucesso ou
fracasso de alunos de sua classe.
A professora Ana destacou três alunos (S., R. e E.) como os que
mais haviam marcado a sua experiência na Classe de Aceleração até aquele
momento:
“S.: é um caso espantoso, foi um aluno que eu achei que fosse
ficar enroscado e agora os textinhos dele têm certa coerência.
Sempre vai para a lousa, vem sentar perto, “dona, eu não
entendi, ajuda a fazer essa frase aqui”. Fica mais próximo...
R.: Não conseguiu atingir nada, se pegar a pasta dele não tem
nada. Se recusou a fazer. ele virou um dia e disse “olha, eu não
quero nem aprender a ler, nem aprender a escrever”... A mãe
conta que é porque ele viu o pai morrer quando estava na fase
de alfabetização...
106
E.: Dezesseis anos, teve um desentendimento com a professora
da tarde e passou para minha sala. Sinto que ele tem uma
deficiência, a mãe já foi chamada, desde que ele estava na 3a, 4a
série e a mãe não aceita. Quando falei com a mãe, ela pediu
que o aprovasse e eu disse “eu, por mim, está aprovado”. Aí a
turma da Diretoria não aprovou e a mãe não mandou mais o
aluno na sala, porque ela não aceita que o filho dela é uma
criança especial. Falei que ela tinha que procurar uma escola
especial, aí ela queria que falasse APAE, mas não existe só a
APAE de escola especial. Falei pra ela “a senhora tem que
primeiro levar ele no médico, o médico vai diagnosticar,
porque eu não sou uma pessoa especializada, eu sei que ele é
uma criança especial, que merece um tratamento especial,
agora, a senhora tem que ir ao médico para ele indicar o que a
senhora tem que fazer”... Ela disse: “eu vou colocar na
professora particular”. Eu falei: “ele não precisa de professora
particular, ele é um aluno hiper ativo aqui, ele gosta de ler, dá
coisas para ele ler”. Então eu falei para ela “compra a revista
Superinteressante, quem sabe vai despertando, coloca ele numa
aula de computação”. Ele já tem dezesseis anos e quer ser
mecânico, é uma coisa que vai exigir precisão e a mãe não
ficou muito satisfeita...”
O caso do aluno E. mereceu maior destaque da professora, talvez
por ele ser um adolescente, estar muito defasado em termos pedagógicos,
apresentar indícios de um déficit cognitivo e, apesar de tudo, ainda não ter
desistido da escola e ou de suas ambições profissionais.
Apesar de sua preocupação com este aluno, a professor Ana
aparentemente não considerou as dificuldades da família do rapaz seja para
comprar revistas, como para matriculá-lo em um curso de computação, pois
como ela mesmo situou, a maioria de seus alunos, inclusive este, eram
oriundos de classes sociais com poucos recursos financeiros.
A vivência adquirida pela pesquisadora no atendimento
psicológico de escolares, mostra que muitos outros adolescentes com
histórico de fracasso escolar possuem uma história semelhante a de E., ou
107
seja, histórias onde a dúvida sobre a possível existência de necessidades
especiais é persistente e onde são feitas insistentes recomendações para que
esses jovens freqüentem uma escola especial ou para que sejam
encaminhados a profissionais de saúde.
Nas Classes de Aceleração e nas classes do ensino regular,
quando o professor se detém sobre situações particulares de alunos com
histórico de fracasso escolar, o seu discurso parece, freqüentemente,
apontar para causas de caráter orgânico, seja pela presença de lesões
neurológicas ou de uma suposta deficiência mental.
A professora Bianca selecionou dois casos alunos com história
de fracasso. Elogiou o discurso da mãe de um desses alunos, a qual
aconselhou as outras mães a levarem os seus filhos para a APAE. Além
disso, a professora recriminou a atitude de um pai que reagiu contra o
encaminhamento de seu filho para a mesma instituição:
“P.: A avó levou ele para a APAE. A avó esteve aqui, falou
“dona Bianca, eu acho que a senhora deveria falar com as
mães. Olha o P., a senhora falou para mim do P., eu levei, fez o
exame, passou pela psicóloga. Olha, e ele adorou”.
N.: Tem um aluno que eu encaminhei pra APAE, mas não
adiantou, o pai não aceitou. E eu vou fazer o que? Não vou
falar com a mãe de ninguém e eu acho que a mãe está vendo o
filho, né? Eu sou apenas professora, eu oriento, mas a mãe não
quer, então eu não faço nada. ”
A professora Célia analisou um caso de sucesso de um aluno,
que aparentemente resgatou sua auto - estima. Mas, ao mesmo tempo, a
professora parece ter se desculpado sobre a maneira como o aluno em
questão foi promovido para a 5a série:
“D.: Falava assim: “professora, eu precisei ficar quatro anos na
escola para esse ano aprender com a senhora”. Foi para a 5a
série; no começo não sabia ler, depois foi se aperfeiçoando e
acabou indo, com alguns erros ortográficos, mais foi a
instrução que a gente recebeu, a orientação recebida.”
108
Outro fato marcante na convivência com os alunos que
compõem as Classes de Aceleração foram as histórias relacionadas aos
medos que eles possuíam.
A professora Célia se emocionou ao relatar uma dinâmica
relacionada aos medos, que foi realizada como atividade do conteúdo
curricular de Língua Portuguesa:
“Uma vez eu perguntei sobre os medos, então chegou a vez de
um aluno e ele falou “eu tenho medo de perder a minha
família, medo que alguém mate os meus irmãos”... depois eu
fiquei sabendo que ele tinha irmãos com problemas de drogas,
já haviam sido presos, ele já tinha fugido de casa, foi parar no
Rio de Janeiro, a polícia foi buscar, é por isso que ele tinha
medo de perder a família.”
5.1.3. Avaliação do processo de capacitação docente
Na avaliação sobre o processo de capacitação docente, algumas
professoras fizeram críticas específicas quanto à falta de discussão existente
nesse processo sobre a realidade do professor e de suas dificuldades,
principalmente, no tocante à resistência de alguns alunos em participar das
atividades propostas.
Para elas, durante as capacitações, não houve maior articulação
ou entrosamento entre a teoria e a prática:
“As capacitações são muito boas, porque levam as professoras
a crescer muito, refletir bastante, mas acho que é pouco o
tempo e que deveria ser discutida a realidade das professoras,
por exemplo: na hora de discutir textos, as professoras
deveriam discutir os textos produzidos pelos alunos.... Então, a
gente estaria trocando experiências da nossa realidade e lá
ficou muito longe. As capacitações que tivemos com o pessoal
do CENPEC foram melhores e as que foram feitas aqui mesmo
parece que não tinham novidade, que a pessoa estudou para
falar para você, a mesma coisa que se estivesse lendo um livro
e estivesse passando para você. Não tem experiência de sala de
aula, que é o que as professoras precisam, de experiência de
sala de aula, porque chegar e falar é muito bonitinho, é fácil
109
falar. As capacitadoras falam assim: “você pega as fichinhas,
põe na mesa, faz um joguinho”. E não é como as capacitadoras
falam... os alunos falam que eles não querem fazer e não
fazem...” (professora Ana)
“Elas falam que é para colocar um textinho e a reescrita do
texto, agora como é que você vai fazer com todos os alunos a
reescrita de um texto?” (professora Bianca)
À primeira vista, pode parecer que as colocações das professoras
se relacionam a já conhecida reclamação dos docentes em relação a cursos
de capacitação: a falta ou a pouca prescrição de “receitas” metodológicas.
No entanto, também pode-se ponderar que a reclamação das
professoras se relacione menos à prescrição de receitas de uso prático e
mais à necessidade de uma aprendizagem situacional ou em contexto, um
tipo de capacitação onde o professor possa aprender as técnicas inserido em
um contexto o mais próximo possível da situação real, vivenciando a
prática de modo mais seguro e, se possível, acompanhado de tutores que
façam observações construtivas e que subsidiem as mudanças ou ajustes
necessários em sua maneira de atuar.
Nas falas das professora Célia e Ana, há uma crítica à
capacitação pelo acúmulo de informações e a necessidade de aplicação
imediata, pelo professor, do conteúdo trabalhado, sem que fosse possível
uma reflexão posterior por parte do professor sobre aquilo que estava sendo
discutido.
Para elas, como para qualquer estudante, é necessário um tempo
para que sejam processadas as informações recebidas no processo de
formação, assim como para a tradução dos conhecimentos teóricos e
metodológicos para a prática escolar:
“As capacitações eram atropeladas, tinha que ser tudo rápido,
porque o projeto estava sendo implantado, então aquilo tudo na
cabeça da professora, aí quando eu parei nas férias e comecei a
refletir, eu falei “ah, se eu for com calma parece que vai dar
certo.” (professora Ana)
110
“Eu acho que a capacitação foi válida, só que eu penso assim:
que a gente tem que ter um tempo para refletir sobre o
aprendizado, então, de repente, era um monte de informações,
não dava tempo de trocar experiências, a gente não tinha tempo
de comentar nada, já voltava para sala sem essa pausa. Não sei,
eu, como estudante preciso de uma pausa para refletir sobre o
que foi aprendido para poder passar para frente e não foi isso
que aconteceu. Agora as capacitadoras eram muito boas, foi
muito bom. Eu só acho que houve pouco aproveitamento
devido às muitas horas seguidas e não ter tempo para
discussão.” (professora Célia)
As reclamações das professoras encontram respaldo na
afirmação de McDIARMID (1995) quanto à importância de que os
professores tenham tempo e condições mentais propícias para que seus
pensamentos sobre o ensino fiquem distantes das exigências físicas e
psicológicas da sala de aula.
Como as próprias professoras da Escola I afirmaram, não havia
tempo hábil para que elas pudessem “digerir” as informações recebidas nas
capacitações, muito menos possibilidade para refletirem sobre a nova
postura que deveriam assumir ao se comprometerem com o sucesso de seus
alunos.
5.1.4. Avaliação do projeto Classes de Aceleração
Houve consenso entre as professoras da Escola I sobre a
altíssima qualidade do projeto Classes de Aceleração.
Dentre os elogios feitos com relação ao projeto, a professora Ana
destaca a organização curricular, a qual facilitou o seu trabalho e direcionou
sua atuação. Acredita que o conteúdo e a proposta de trabalho por projetos,
que partem da realidade dos alunos, os torna mais críticos:
“... eu gostei muito da proposta, porque ela é muito boa... tem o
limite até onde vai a Aceleração I, tem os pontos de chegada,
que a gente encontra assim nos parâmetros: “a Aceleração I é
até aqui, a Aceleração II é daqui pra cá”. Eu achei ótimo, já
111
vem tudo divididinho, você não tem que ficar perdida... e para
os alunos, é boa... resolve, faz eles se tornarem críticos. A
proposta em si é tornar os alunos críticos: quando ele vai
estudar História, Geografia e Ciências ele não vai estudar sobre
um lugar que eles não conhecem, parte da realidade deles, o eu,
minha família, meu bairro, minha cidade, meu estado, meu país
e vai abrangendo tudo.”
A professora Bianca, apesar de apreciar a proposta, tornou a
condicionar o sucesso das Classes de Aceleração ao desempenho do aluno,
ao seu interesse e vontade de aprender. Elogiou a qualidade do material
didático, especialmente os jogos pedagógicos.
No entanto, fez uma crítica sutil à coordenadora pedagógica, por
achar que ela estava “perdida” e não que solucionava as suas dúvidas:
“Em termos de proposta é rica, eu adorei, eu adorei os
livros, adorei tudo... é muito bom mesmo. Se você pegar
aluno que tenha vontade, mas vontade mesmo, sabe
aqueles alunos que mostram interesse, a gente cresce,
mas cresce mesmo... É a vida do aluno inteirinha,
começa do comecinho, da identidade dele, desde de
quando ele nasceu, da certidão de nascimento dele,
começa do começo até o fim... Os jogos são ricos, mas se
você dá os joguinhos pra eles, eles não se interessam... e
os jogos são ótimos, eu mesma adorei, eu me apaixonei
pelos joguinhos. Eu gostei da coordenação, mesmo por
que até, é nova, nova, ficou perdida igualzinha a nós...
quando eu ia pedir “como que faz isso?”, “não sei”,
“como que é pra fazer aquilo?”, “ah...” Perguntava, como
agora, a gente tem que encaminhar os alunos, não é pegar
essa fichinha e mandar os alunos fracos para
recuperação, nós temos que ver porquê o aluno não
conseguiu aquilo, tem que sentar o professor mais o
coordenador, mas ela não tem tempo.” (professora
Bianca)
Célia considerou o projeto muito moderno e avançado, não só
em termos metodológicos, como também em relação ao material.
112
Colocou que a vivência como professora de uma Classe de
Aceleração modificou a sua visão sobre a movimentação física e a
manifestação verbal dos alunos, anteriormente percebida como uma ameaça
à disciplina ou ao silêncio dentro de sala de aula, passou a encará-la como
uma característica do processo de ensino - aprendizagem, em uma
abordagem que valoriza a participação dos alunos:
“Eu acho muito boa, eu acho que os livros são muito bons, a
forma de trabalhar também, que tudo se modernizou e a escola
tem também de se modernizar. Eu acho que é muito válido
porque o que eu usei para esse ano, foi minha sorte. A gente,
quando está dando aula, é importante para a gente parecer para
os outros que estão lá fora, aquele silêncio das crianças, aquela
classe bem comportada, todo mundo sentadinho, e na classe de
Aceleração você não conseguia isso porque eles eram alunos
que não tinham essa quietude, eram alunos que andavam
muito, falavam muito, interrompiam. Então, eu aprendi
também, além dessas coisas que já falei, se eles estão
participando da aula não é importante o silêncio, se a discussão
for feita de acordo, naqueles moldes que a gente está propondo,
eles tem mais que se manifestar.” (professora Célia)
A fala da professora Célia aponta duas questões importantes, que
se encontram relacionadas. Ao colocar que “é importante para a gente
parecer para os outros que estão lá fora aquele silêncio das crianças,
aquela classe bem comportada, todo mundo sentadinho”, pode estar
apontando a existência de uma cultura escolar onde o trabalho do professor
e do aluno é visto dentro de perspectiva bastante rigorosa mas que, ao
mesmo tempo, existiria, por parte do professor, uma necessidade de
valorização de sua atuação por essa mesma cultura.
Diante do questionamento sobre possíveis dificuldades para
atuar de acordo com o projeto Classes de Aceleração, a professora Ana
novamente enfatizou o trabalho de resgate da auto - estima dos alunos, os
quais, segundo ela, já haviam introjetado em si o rótulo de “burro”:
113
“... o difícil mesmo é lidar com as crianças, é recuperar a auto -
estima delas; hoje eu falei “você acha que você vai para a 5 a
série?”, “não, eu não vou para a 5a”. “Por que você não vai?”
“É porque eu sou burro”. É porque isso ainda não saiu da
cabeça dele, acho que escutou tanto, “você é burro, você é
burro, você é burro”, que incorporou... Eu acho que o mais
difícil mesmo é lidar com as crianças, tentar levantar a auto -
estima e fazer com que eles colaborem, é muito difícil a
participação deles...”
A fala da professora pode ser melhor compreendida se for
reportada à análise das aulas observadas, nas quais a professora procurava,
ainda que de maneira irregular, resgatar a auto - estima de seus alunos e
incentivar a sua participação nas atividades realizadas.
Para a professora Bianca, as dificuldades para atuar de acordo
com a Proposta Pedagógica Curricular das Classe de Aceleração foram
gerais.
Atribuiu como causa para essas dificuldades as características de
seus alunos, principalmente, à falta de interesse. Fez uma avaliação bastante
negativa em relação à classe, apresentando, na maioria dos seus
comentários sobre a turma, idéias bastante preconceituosas e
discriminatórias. Isto fica evidente quando diz que se estivesse em uma
classe do ensino regular, com certeza os alunos teriam um bom
aproveitamento.
Em vários momentos, a professora utilizou expressões a levaram
a crer na existência que ela possuía uma percepção e um vínculo afetivo
bastante negativo em relação aos seus alunos, além de uma excessiva
idealização do processo de ensino - aprendizagem, expresso pela última
frase do depoimento abaixo:
“Eu senti muita dificuldade mesmo, eu acho que os alunos não
têm interesse por nada, você pode trazer cartaz, falar, eles não
tem auto - estima, não tem vontade, falta de interesse, não
adianta você fazer ... o material é rico, se eu pegar uma classe
114
de 3a ou 4a série com uns livros desses ali, um material rico
assim, eu acho que eu caminho bem, até uma 2a, mas olha esses
alunos eles vêm já analfabetos, não sabem nada e são alunos de
idade avançada, eles não têm interesse por nada. Agora, se
pegar um aluno, uma classe boa...” (professora Bianca)
Ao se referir à ausência de auto - estima dos alunos, a professora
Bianca, aparentemente, ignorou que com relação à auto - estima, sua
ausência ou rebaixamento não é uma questão de caráter ou personalidade,
de se querer ou de não se querer ter, mas sim relacionada às vivências dos
alunos, marcadas geralmente por uma história acadêmica desgastante.
A afirmação abaixo parece evidenciar que a professora Bianca
atribui o fracasso escolar não só ao aluno como à sua família, assim como
parece compartilhar da idéia de que as classes populares não valorizam o
ensino formal:
“Os pais não têm interesse por nada, eles não motivam a
criança em nada. Eu acho que os pais não dão continuação para
as crianças em casa, “como foi hoje?” A criança chega em
casa, joga a bolsa e vai brincar, não estão nem aí. A mãe
deveria vir, ela não vem saber se o filho está bem, se não está
bem, o que está precisando...” (professora Bianca)
A professora Célia, por sua vez, levantou uma questão
importante em sua avaliação sobre as dificuldades para atuar de acordo com
o projeto de Aceleração: o conflito do professor diante da necessidade de
mudar o paradigma teórico - metodológico de sua prática. No seu caso
específico, a mudança de uma prática educacional enraizada no ensino
tradicional e na visão do professor como transmissor do conhecimento, para
uma prática fundamentada no construtivismo, com ênfase na atividade do
aluno, no trabalho por projetos e na concepção do professor como mediador
do processo de apropriação do conhecimento por parte dos alunos.
As professoras Ana e Bianca também se referiram,
especificamente, a dificuldades em trabalhar com o construtivismo sócio -
115
histórico, o fundamento teórico - metodológico da Proposta Pedagógica
Curricular das Classes de Aceleração.
A professora Bianca deixou claro que não aceitava muito bem as
recomendações construtivistas, chegando a propôr a retomada do ensino
tradicional em sua classe, pelo menos até que os livros didáticos do projeto
de Aceleração chegassem:
“No comecinho, antes de chegar os livros por que não pode
alfabetizar como nós fomos alfabetizadas? Fala pra mim,
Juliana? Eu não entendo isso, agora não pode xerocar mais
nada... mimeografar mais nada... a supervisora pegou a minha
pasta e disse: “nossa senhora, isso não está certo, isso não, isso
não, isso não, isso não”. Eu não sei qual é, eu não sei como,
porque primeiro que você passa no mimeógrafo e dá, ali você
vai explicando eles vão até fazendo, mas não fazer mais nada
no mimeógrafo, mais nada, nada...”
Acredita-se que a proibição para a confecção do material
didático via xerox e mimeógrafo não diz respeito ao material em si, mas a
um desvirtuamento de seu uso por parte do professor pois, em nossa
opinião, o problema central não parece estar no tipo de material utilizado
mas, sim, em como o professor o utiliza. Dessa forma, é possível utilizar-se
um texto xerocopiado como material didático, desde que se oriente a
criança para que ela, a partir deste material, seja capaz de construir o seu
próprio conhecimento. Por outro lado, a atitude da professora Bianca em
fazer uso do texto xerocopiado, poderia ser decorrente de sua insegurança
diante da atividade proposta, da sensação de estar “sem chão” para fazer o
seu trabalho e, principalmente, sem a possibilidade de apelar para o uso de
estratégias conhecidas e, sobretudo, testadas por ela.
A professora Ana fez uma crítica já conhecida nos meios
educacionais sobre a aplicação do construtivismo nas escolas, ou seja, que
na verdade não existe a prática de um construtivismo “puro” nas salas de
aula:
116
“É o construtivismo, só que é muito difícil de entender o
construtivismo... porque eu acho que ainda não existe aquele
construtivismo puro, é uma mistura e a gente ainda está
perdido nisso daí. O referencial para trabalhar com
construtivismo são os livros mesmo, o material todinho, os
joguinhos são construtivistas... é que na cabeça dá um
choque...”
As colocações das professora quanto às dificuldades para se
adaptar ao Construtivismo parecem refletir a dificuldade de adaptação a um
outro método de ensino, bastante diferente do ensino tradicional, o qual é
conhecido pelos professores e fácil de ser realizado. Segundo a O.C.D.E.
(1992: 161):
Ensinar as matérias tradicionais e aplicar os bons velhos métodos de avaliação era relativamente simples: o docente possuía uma certa soma de conhecimentos (a maioria das vezes, informações concretas) que deviam ser assimilados e reproduzidos pelos alunos. A tarefa do mestre consistia em apresentar este saber sob uma forma assimilável, memorizando os alunos a informação e, ao fim de um certo tempo, o mestre controlava a sua memória. Era fácil desempatar as respostas correctas das falsas e classificar os alunos.
Outra dificuldade importante, colocada pela professora Célia, foi
a aparente falta de infra - estrutura da Escola I para a realização de algumas
atividades previstas no planejamento das Classes de Aceleração:
“Os livros da Classe de Aceleração são trabalhados como
projetos, diversos projetos e eu vim ainda daquela forma
tradicional de se trabalhar, então, às vezes, eu sentia
dificuldade de poder “bolar” a aula do jeito que estava no livro
e tinha também algumas atividades que não eram adequadas à
escola, por exemplo, um ambiente escuro (teria que usar
lanterna) era uma atividade que tinha no livro e a dificuldade
que a gente tinha de arrumar um ambiente escuro na escola.
Certas atividades que precisava ter certos materiais que na
escola não tinha. Nesse tipo de coisa que a gente sentiu
dificuldade.”
117
O que as professoras faziam para tentar superar as dificuldades
encontradas na prática das Classes de Aceleração?
Dentre os recursos elencados por elas, havia o registro por
escrito de suas dificuldades num diário, a leitura de textos técnicos e,
principalmente, a troca de idéias e de soluções entre as próprias professoras.
A professora Ana afirmou, veementemente, que não existia a
quem recorrer em caso de dificuldades:
“Não tem ninguém. Quando nós fizemos a capacitação o ano
passado, com a supervisora, ela falou para a gente assim
“quando vocês quiserem desabafar vocês escrevam, porque vai
ser muito difícil”. Não tem a quem recorrer e, então, a gente
escrevia muito o ano passado, acabava de dar a atividade,
aquele dia foi assim. Aí você pegava o papel, escrevia,
escrevia, escrevia, escrevia, e pronto, desabafava o que tinha
acontecido na sala, fazia um desabafo, e no dia seguinte, bola
pra frente...”
A prática de elaborar registros é altamente recomendada pelos
idealizadores do projeto de Aceleração, como uma ferramenta de grande
auxílio para a avaliação não só da evolução dos alunos, como também do
professor.
Segundo as “Orientações para a Capacitação de Professores”
(SÃO PAULO - Estado, 1999: 40):
(...) os registros permitem acompanhar a aprendizagem, analisar o aproveitamento dos alunos e redirecionar o planejamento de ensino. Com essa prática, aliada à discussão freqüente com os alunos dos dados colhidos, eles poderão acompanhar a própria evolução, tornando-se conscientes e autônomos em seu percurso escolar.
Apesar da importância de se registrar as dificuldades da prática
docente, é necessário ressaltar que somente o uso do registro não garante
que os problemas do professor sejam solucionados.
Ainda sobre o suporte para a superação das dificuldades, a
professora Ana complementou:
118
“Não tem ninguém para recorrer, porque todo mundo tem só a
teoria, não tem a prática, então é fácil falar para você “sai por
aqui, faz assim, assim”. Se eu não conheço os seus alunos,
então, não tem a quem recorrer. Eu acho que precisaria de mais
apoio, união; a gente recebe uma boa capacitação, mas
precisaria discutir “olha, não está dando isso, como que eu
tenho que fazer”, “eu não estou conseguindo, o que eu tenho
que fazer com esse aluno?” e elas respondem “como? você
pega a fichinha e faz com ele, pega o textinho e faz a
reescrita”... não é isso que eu quero saber.”
A reclamação da professora Ana parece remeter ao clássico mal -
entendido onde aqueles que agem consideram os especialistas como
idealistas que não conhecem nada da realidade prática e, em contrapartida,
os que refletem acreditam que os que agem são ignorantes (HUTMACHER
in NÓVOA, 1995).
Todavia, a professor Ana identifica dois pontos de apoio muito
importante para superar as dificuldades do dia - a - dia e para responder as
suas inquietações: a interação com as colegas de profissão e as leituras
realizadas por ela. Em suas próprias palavras:
“O que eu faço?, me ajuda, me dá uma luz”, nessa parte
que eu não encontrei (a capacitação), eu encontro assim
conversando muito com as minhas colegas e lendo. Li
tanto que eu estou até...”
A posição da professora Ana também é reforçada pela professora
Célia: “Não tinha assessoria nenhuma para isso, então eu e a Ana, a gente
dividia muito isso, a gente sentava e via como é que poderia estar
trabalhando.”
Diante da ausência de assessoria e de apoio externo, é
interessante ressaltar como as próprias professoras acabaram estabelecendo
um ambiente de trocas e de apoio mútuo.
Solicitou-se às professoras que fizessem suas críticas sobre o
projeto e que dessem sugestões para o seu aperfeiçoamento.
119
Ana fez aponta uma contradição de ordem metodológica,
referente ao formato do material didático pois, de acordo com as
orientações recebidas, os professores sempre deveriam escrever com letras
bastão maiúsculas, apesar do fato de que o material com que trabalhavam
apresentasse outros tipos de fonte, inclusive a letra cursiva:
“Sugeri que os livros que devem ser trabalhados no primeiro
semestre com os alunos sejam em letra bastão, que é o alfabeto
maiúsculo, já que o livro é todo em minúsculo e as atividades
são todas diferentes...”
A professora Célia, por sua vez, fez críticas relevantes acerca do
sistema de atribuição de aulas, o qual, segundo ela, não possibilitou a
permanência de professores não efetivos nas Classes de Aceleração:
“O ano retrasado eu estive com as salas de aceleração, no final
do ano praticamente é que eu fui entender muitas coisas, e no
ano seguinte foi dado para outras professoras começarem tudo
de novo... agora, o ano que vem serão outras... você acaba não
tendo o começo e o fim bem determinado... a partir do
momento em que eu estava apta a fazer uma aplicação, não
sobrou classe, não fizeram nenhuma diferenciação, que
podiam, de repente, terem feito: quem deu aula na classe de
aceleração esse ano vai ser atribuído. Eu acho que seria uma
coisa justa porque foi um “abacaxi” que ninguém quis pegar e
de repente a gente pego, suou, como a gente estava mais seguro
do que a gente ia fazer, foi podado.”
O paradoxo dessa situação parece estar claro: investe-se muito
na capacitação do professor, discursa-se sobre a importância de seu trabalho
no projeto de Aceleração mas, apesar de todo o investimento feito, não há
um esforço da direção escolar (que tem a prerrogativa na atribuição das
classes) ou, até mesmo, a mudança dos mecanismos burocrático -
administrativos, de forma a mantê-lo por mais tempo junto aos
alunos das Classes de Aceleração.
120
5.1.5. Reações da equipe escolar, alunos e pais em relação ao
projeto, sob a ótica das professoras
Das duas professoras de Classes de Aceleração da Escola I,
somente a professora Ana fez considerações sobre as reações da equipe
escolar, dos próprios alunos e de seus familiares quanto ao projeto de
Aceleração:
“Eu acho que o ano passado as outras professoras acolheram
melhor. Esse ano eu já achei meio no esquecimento; eu achei
que os funcionários e professores não fazem diferença, por ser
Classe de Aceleração, os funcionários nem perceberam... Eles
acharam que as crianças eram diferentes, mas não sabiam no
quê elas eram diferentes... Ás vezes falavam que eu sou
baixinha e tenho alunos altos, “ah, a professora fica escondida
no meio dos alunos”, então eles não perceberam o que era a
Aceleração, mas eles sabiam que os meus alunos eram uma
classe diferente...”
Na análise realizada por ela, discorreu sobre o envolvimento do
diretor da Escola I na implementação das Classes de Aceleração, e o
desapontamento da professora diante de seu posterior afastamento:
“O diretor esse ano se afastou um pouco porque o ano passado
ele foi muito criticado pelas outras professoras, porque
participava muito da Classe de Aceleração e recebeu críticas
por causa disso, ele se afastou... Então nós ficamos soltas, eu
acho que no ano passado ele tinha mais pulso com a gente, eu
acho que ele entendia mais a parte pedagógica da Classe de
Aceleração, ele tem uma cabeça muito boa para a parte
pedagógica. Eu vou sentir a falta dele porque ele me leva a
refletir muito, leva muito à reflexão. O ano passado ele fez a
gente entender o que era um aluno silábico, que lá estava tudo
muito confuso, silábico, pré - silábico, alfabético, ortográfico;
ele fez a gente ler livros, trouxe apostilas e deu pra gente ler... e
eu acho que foi o ano passado que eu cresci mais... Esse ano
pouca coisa foi acrescentado, e eu acho que ele fez muita
falta...”
121
Pode-se perceber, pelas colocações acima, que o diretor da
Escola I agiu como uma espécie de tutor para a professora Ana,
estimulando um processo de reflexão - sobre - a - prática, seja por meio de
aconselhamentos ou quando deu a ela literatura de apoio. Em sua fala, a
professora vem reforçar a importância de uma direção escolar atuante no
contexto de um projeto educacional de superação do fracasso escolar.
O afastamento do diretor, devido aos ciúmes dos outros
professores, parece ser um dos fatores explicativos para o desinvestimento
da professora com o seu trabalho nas Classe de Aceleração.
Nessa perspectiva, é interessante colocar outra questão surgida
em relação ao vínculo entre as professoras das Classes de Aceleração e as
das classes regulares da Escola I.
De acordo com o depoimento das professoras, num primeiro
momento, parece ter havido, de fato, um clima de descontentamento dos
professores das classes regulares quanto à atenção e aos “privilégios” que
os professores das Classes de Aceleração receberam, em relação ao número
de alunos por sala, à capacitação bimestral e ao material específico (jogos
pedagógicos, assinaturas de jornais e livros). Num segundo momento,
parece ter existido um movimento de aproximação desses mesmos
professores em relação aos das Classes de Aceleração, mediante o pedido
de empréstimo de material e a busca de orientações teórico - metodológicas:
“Os outros professores? O ano passado tinham ciúmes... agora,
esse ano não, esse ano inclusive elas queriam material, “a hora
que sobrar você vai passando pra mim”. Eu recebi colegas
minhas que quiseram os livros pra ler, eu emprestei os livros,
porque eu não tenho tempo pra ler, vieram uns 10 livros. Então,
a gente está lendo um, às vezes nem dá pra ler, e já pediram,
distribui livros... Mas, o ano passado o ciúme era grande...
vinha assinatura de revista, “ah, mas só pra elas, por que a
gente não tem? Por que só para elas, o que acontece com a
gente?”, todo livro quando viam as caixas chegando... “por que
para elas?”, era assim, esse ano não...” (professora Ana)
122
5.2. A prática pedagógica em uma Classe de Aceleração
No quarto capítulo foi dito que apenas a professora Ana, da
Classes de Aceleração da Escola II, havia permitido a realização de análises
sobre a sua prática pedagógica, mediante a observação de aulas. Esta seção
é dedicada à descrição e análise da prática dessa professora.
Em primeiro lugar, é necessário caracterizar-se a turma de alunos
da professora Ana: vinte e quatro alunos, sendo treze meninos e onze
meninas, com a faixa etária variando de dez a dezesseis anos e média de
idade de doze anos. A média de retenções dos alunos era de quatro vezes,
com exceção de um rapaz de dezesseis anos que estava fora da escola e, ao
retornar, ingressou na Classe de Aceleração da referida professora.
Segundo a professora, os alunos eram oriundos de classes sociais
desfavorecidas e a maioria dos pais trabalhava na construção civil ou mão -
de - obra operária nas indústrias locais.
A rotina diária de trabalho na Classe de Aceleração consistia em:
estudar o Calendário, onde eram verificados o dia, o mês, o ano e o clima
do dia; conferir a tarefa de casa; registrar, no canto da lousa, das atividades
a serem realizadas no decorrer da aula: Português, Matemática, História,
Geografia e Educação Artística.
O estabelecimento de uma rotina de trabalho pode ser
considerado como um elemento fundamental na organização do trabalho da
Classe de Aceleração. De acordo com a análise de SOUZA, VIÉGAS &
BONADIO (1999), a rotina de trabalho possibilita o estabelecimento, entre
os alunos, de um domínio mais amplo do funcionamento da sala de aula,
possibilitando o conhecimento da natureza e do tempo destinado a uma
dada atividade do dia, dentre outros aspectos.
Outros rituais específicos faziam parte da rotina da Escola I, por
orientação da direção. Todas às segundas - feiras, através do sistema de
som, a coordenadora pedagógica avisava que era o momento da entonação
do Hino Nacional. No primeiro dia da semana, também havia o
123
“relaxamento”, com duração de trinta minutos, realizado pela coordenadora.
Os alunos sentavam-se nas cadeiras e deitavam as cabeças nas mesas,
seguindo as orientações para “soltarem o corpo”, “relaxarem a mente” e
“pensarem em coisas boas”. No entanto, as músicas vindas dos alto -
falantes pareciam ser muito altas e inadequadas a um trabalho dessa
natureza.
Enquanto a coordenadora ia dando as instruções para a atividade,
algumas crianças escreviam, mexiam em seus materiais ou conversavam
entre si e com a professora. Durante a sessão de relaxamento, a professora
praticamente não interferia no que os alunos faziam.
A rotina parecia ser muito valorizada na Classe de Aceleração da
professora Ana, em detrimento de certos momentos de descontração que, na
análise da pesquisadora, também mereciam ser aproveitados e trabalhados
como oportunidades para os alunos expressarem as suas idéias, contarem as
suas histórias e de se abordarem conteúdos tão importantes como aqueles
listados na lousa todo início da manhã.
A metodologia de ensino e a abordagem dos conteúdos
curriculares serão tratados a seguir.
A Proposta Pedagógica Curricular das Classes de Aceleração
afirma que se deve considerar como conteúdo curricular mais do que os
temas, assuntos e informações a respeito de um determinado objeto do
conhecimento, mas também os conceitos, habilidades, hábitos, valores e
atitudes a serem trabalhados pelo professor, com a finalidade de formar
alunos democráticos, criativos, participantes e autoconfiantes (SÃO
PAULO - Estado, 1997a).
O conteúdo abordado, após a análise do calendário e a
verificação da tarefa de casa, era a Língua Portuguesa. Quanto a esse
conteúdo específico, a Proposta Pedagógica Curricular (SÃO PAULO -
Estado, 1997a: 26) recomenda que o mesmo seja desenvolvido
124
(...) através da leitura e produção de textos variados e da vivência de atos de leitura e escrita significativos, sempre numa relação de diálogo: ler e escrever para quem?, para quê?, o quê?, por quê?
Na maioria das aulas observadas, a estratégia de ensino utilizada
pela professora para mediar a apropriação do conteúdo pelo aluno foi a aula
expositiva dialogada.
Em geral, a professora reproduzia o conteúdo do Livro do Aluno
na lousa e realizava a atividade junto com eles, destacando os pontos
principais do conteúdo no decorrer do processo.
Como ilustração desse tipo de prática da professora, tem-se a
análise de uma carta comercial:
A professora avisa que irão fazer a tarefa da carta comercial e
solicita aos alunos que, diante do documento:
- encontrem e circulem o local e a data da carta;
- encontrem o destinatário;
- definam o que é a evocação;
- definam o que é a despedida;
- encontrem o remetente.
- definam qual o conteúdo da carta.
A professora pergunta aos alunos qual o conteúdo da carta e
eles não respondem. Ela pede que todos leiam a carta. Pinça a
expressão: “exercer a função”. Exemplifica: “eu sei exercer a
função de ...”
Pergunta à turma, mas não respondem. A professora faz uma
expressão de insatisfação.
Pinça: “venho pela presente”. “O que significa a palavra
presente aqui?”
Vai lendo a carta e dando explicações para os termos que vão
aparecendo: anexo, apreciação, apto. Volta à questão do
conteúdo: “O que está falando nessa carta?” Os alunos
respondem coisas como “emprego”, “quer trabalhar”, “não tem
experiência.” Pergunta: “O que é auxiliar de escritório?”
Respondem: “Secretária, caixa.” Finalmente, a professora
escreve na lousa o conteúdo da carta:
fazendo um pedido de emprego
125
A descrição da atividade acima torna-se significativa na medida
em que a maioria das questões levantadas pela professora foram
respondidas pelos alunos com grandes dificuldades.
Mas, mesmo diante das dificuldades de entendimento e de
expressão oral dos alunos, a professora sempre procurou valorizar a fala dos
alunos, através da formulação de perguntas, da leitura e da interpretação dos
textos, partindo de suas próprias idéias e conceitos, como na seguinte
situação:
A professora vai à lousa e escreve:
Fui a uma festa de aniversário e lá tinha: .....
Pede que as crianças relacionem por escrito tudo aquilo que
acham que há em uma festa de aniversário. Estimula, dá
dicas... Atende individualmente alguns alunos. Senta junto ao
aluno mais velho da classe, que apresenta dificuldades na
escrita e faz algumas correções na sua tarefa, procurando fazer
com que ele mesmo compreenda o que escreveu nas palavras
erradas e que encontre os próprios erros.
A professora volta à lousa e escreve as palavras encontradas
pelos alunos: Bolo, vela, presente, balão, suco
O próximo assunto a ser tratado, na seqüência curricular, era a
Matemática e, para esse conteúdo específico, os objetivos a serem
alcançados eram norteados pelas seguintes concepções: a Matemática deve
capacitar o ser humano a lidar com situações do cotidiano e desenvolver o
seu raciocínio lógico, além de servir como instrumento de comunicação e
leitura do mundo.
A metodologia de ensino sugerida pela Proposta Pedagógica
Curricular para o ensino de Matemática era o trabalho com situações -
problema, a partir da proposição de questões, da resolução das questões
propostas, do questionamento das respostas obtidas e da própria questão
original.
Portanto,
126
resolver um problema significa não apenas compreender o que é exigido, aplicar as técnicas ou fórmulas adequadas e obter a resposta correta, mas também assumir uma atitude de “investigação científica” em relação àquilo que está pronto. (SÃO PAULO - Estado, 1997a: 47)
Seguindo tal recomendação, a professora trabalhava o conteúdo
de Matemática através da resolução de situações - problema ligadas aos
temas de cada módulo. Estimulava constantemente a participação dos
alunos, por meio de questionamentos:
A professora diz que vão iniciar agora a resolução da situação -
problema. Pega no armário as folhas, rodadas em mimeógrafo,
com a atividade. Vai à lousa e reproduz o conteúdo da folha:
Números do Paulista
1995 1996
média de público média de gols
6742 5853 2,42 3,06
A seguir, pede que respondam as seguintes questões:
a) De que trata o gráfico? b) Qual é o título do gráfico?
c) A pesquisa para fazer o gráfico usou dados de que anos?
d) Em que ano houve maior público nos estádios (ver gráfico)?
e) Quanto diminuiu o público nos estádios entre 1995 e 1996?
f) O que quer dizer média de gols?
g) Qual a média de gols no campeonato de 1996? E no ano de
1995?
Enquanto a professora lê as questões vai esclarecendo os
detalhes, como a nomenclatura e reforça aqueles que
respondem corretamente.
Os alunos apresentam maior dificuldade para compreenderem a
questão e). A professora explica que para se saber a diferença
127
de pessoas entre 1995 e 1996, é necessário fazer uma
determinada operação matemática e estimula os alunos a
responderem qual é a operação em questão. Alguns alunos
respondem corretamente.
A seguir, ela passa a resolver todas as questões na lousa, junto
com os alunos.
A professora também recorria freqüentemente a esquemas
explicativos para abordar o conteúdo em determinadas atividades. Em uma
aula de Ciências, sobre o Ciclo da Água, após a leitura coletiva e a
interpretação do texto, a professora foi à lousa e desenhou um esquema
explicativo daquilo que tinha sido lido até então:
Nuvem carregada de gotas de chuva
vapor chuva
terra
Um aluno pergunta como chama quando “tem chuva forte com
pedrinhas” e a professora responde: “granizo”. Pergunta à
classe: “como se chama então isso que eu expliquei aqui na
lousa?” Alguns alunos respondem: “ciclo da água.”
Apesar de muitas vezes apresentar dificuldades para sair do
padrão “leitura, interpretação, perguntas e respostas”, a professora Ana
demonstrava, em determinadas ocasiões, capacidade de improvisação para
exemplificar, o que facilitava a compreensão dos alunos e também
surpreendia e divertia a turma:
A professora pede para que os alunos abram o Livro do Aluno
na página 63, item “Figuras e Propriedades”. Desenha na lousa
1 retângulo, 1 quadrado e 1 triângulo. Pede para os alunos
128
nomearem as figuras e eles o fazem corretamente. Pede que
observem as propriedade de cada figura, seguindo as instruções
do livro.
Lados: pede para que escrevam quantos lados têm cada figura
da lousa e depois, coloca no quadro os dados apontados pelos
alunos.
Pede para que procurem as outras propriedades no texto:
conceito de par. “O que é um par?”, pergunta. Os alunos
permanecem em silêncio. Depois de uma pausa, a professora
prossegue e pede para que as crianças identifiquem os lados
iguais no retângulo.
2 cm
4 cm
Pergunta quantos lados tem um par. Pergunta quantos lados
têm dois pares. Os alunos mostram dúvidas e debatem entre si.
Pergunta: “quantos pares de lados iguais a figura tem?”
Na hora de aplicar o conceito de par à figura, os alunos
apresentam respostas diferentes e se dividem entre si, pois um
grupo acha que é um par, o outro que são dois pares. A
professora pede para que as crianças que acertaram expliquem
o seu raciocínio, mas essas têm dificuldade. A professora
retoma o conceito de par na figura geométrica de outra
maneira: 1 par - 2 lados iguais 2 pares - 4 lados iguais
Volta à figura. A professora desafia e anima a classe: quer que
cheguem a resposta correta. Só alguns participam. A professora
dá exemplos das figuras geométricas existentes na sala de aula:
lousa, porta, janela, armário, mas os alunos continuam em
dúvida. Então, depois de alguns segundos, a professora tira o
próprio par de sapatos para explicar o conceito! Todos se
surpreendem com a atitude inesperada da professora e dão
muitas risadas...
Ao tirar os sapatos para exemplificar o conceito de “par”, a
professora estava recorrendo ao conhecimento prévio dos alunos, para
129
aquilo que faz sentido e tem um significado em suas vidas cotidianas, assim
como se utilizasse a idéia de um par de olhos, um par de orelhas ou um par
de luvas.
Também parece possível que a professora tenha elaborado essa
solução exatamente porque a maneira pela qual ela estava ensinando o
conceito de par não parecia estar dando resultados.
O que intriga é que a estratégia da professora poderia ter sido
utilizada como o ponto de partida para a explicação do conceito de par e
então, aplicada ao estudo da figura geométrica. Essa inversão, na opinião da
pesquisadora, poderia facilitar muito mais a compreensão dos alunos sobre
o conceito em questão.
A Proposta Pedagógica Curricular das Classes de Aceleração
(SÃO PAULO - Estado, 1997a) afirma que a avaliação da aprendizagem
dos alunos deve ser considerada como um processo contínuo para
estabelecer diagnósticos e para realizar o acompanhamento da
aprendizagem da classe, sempre a favor do aluno e respeitando o seu ritmo
de aprendizagem.
Dessa maneira, partindo da concepção de que a aprendizagem
não é uma fato repentino mas um processo que requer tempo,
(...) a avaliação não pode se deter em resultados ocasionais, mas deve acompanhar a aprendizagem, o que leva à necessidade de se observarem o caminho, as dúvidas e os progressos, assim como os resultados alcançados (SÃO PAULO - Estado, 1997a: 18).
Para cada conteúdo curricular são estabelecidos marcos de
aprendizagem, os quais pautam a conduta avaliativa do professor em
relação a cada aluno. O registro do trabalho torna-se um instrumento
indispensável e o professor o organizará reunindo observações regulares
sobre cada um dos alunos, tanto em relação às suas produções, quanto ao
resultado de avaliações individuais.
Um outro recurso importante é aquele que diz respeito ao
percurso do trabalho do professor, onde são registrados os caminhos bem -
130
sucedidos ou inadequados, subsidiando melhor adequação do processo
pedagógico.
Assim, a professora procedia o registro periódico do avanço dos
alunos, a partir de todas as suas produções, dos trabalhos realizados dentro
da sala aula ou fora da escola, através da conferência da tarefa de casa.
Era freqüente observar a professora registrando por escrito o
aproveitamento da turma, ao término de cada etapa da aula ou antes do
intervalo. Ela também revelou que escrevia muito em casa, mas não foi
possível ter acesso a esses registros, apesar de ter sido solicitado algumas
vezes.
Quanto ao incentivo à participação da turma, a professora
tentava garantir que todos os alunos participassem da aula limitando,
algumas vezes, a participação de uma mesma criança, considerada pela
turma como boa aluna em determinada matéria. Isso acontecia muitas vezes
nas resoluções de problemas de Matemática, quando os alunos pediam para
a professora que chamasse sempre uma determinada aluna e, diante desse
pedido dos alunos, ela dizia que não chamaria a aluna porque ela era tímida
e que outro aluno deveria ir à lousa.
Durante o período de observação, percebeu-se que a professora
procurava, em várias oportunidades, incentivar a participação dos alunos na
realização das atividades mas, mesmo diante de seu esforço, poucos alunos
participavam das atividades. No entanto, a ausência de participação dos
alunos não parecia incomodar tanto a professora quanto o fato de que os
alunos que efetivamente participavam não emitiam as respostas corretas, o
que chegou a provocar manifestações explícitas de frustração por parte da
professora:
Diante de um aluno que montara na lousa uma conta de
subtração com os valores invertidos, a professora coloca que há
algo errado e pede para que ele e os outros alunos verifiquem
onde está o erro. Todos permanecem em silêncio. Depois de
um breve intervalo, Ana coloca para a classe, em tom de
131
desânimo: “eu não sei qual é o problema com vocês porque lá
no curso eles dizem para passar o problema e ficar discutindo
com os alunos que eles dão a resposta. Cadê a resposta?!”
Todos permanecem em silêncio.
Com relação à reação de frustração e impaciência da professora,
a Proposta Pedagógica Curricular das Classes de Aceleração (SÃO PAULO
- Estado, 1997a: 47) coloca que
Deve ficar claro que trabalhar com resolução de problemas requer paciência, pois essa atividade demanda muitas idas e vindas, cabendo ao professor orientar os alunos sem atropelar o processo de criação. Cada nova colocação sobre um problema requer tempo para que os alunos compreendam e se decidam por condutas de ação, nem sempre as mais eficientes e às vezes até incorretas.
No entanto, era freqüente perceber-se que diante da ausência de
respostas dos alunos para os seus questionamentos, a professora parecia
desanimar e, algumas vezes, chegava a se irritar com a turma.
Diante das negativas de participação por parte de certos alunos, a
professora não insistia e, por vezes, acabava reforçando a atitude deles:
Um dos alunos que durante praticamente toda a aula não
realizou nenhuma atividade, diz que está com calor (a sala é
muito mal ventilada e a porta está fechada, realmente está
quente) e a professora, um pouco irritada, diz para ele deitar na
carteira e dormir.
A atitude da professora em relação à participação dos alunos no
processo de ensino - aprendizagem mostrou-se instável pois, várias vezes,
ela aparentemente se esforçou muito para que eles se expressassem e, em
outros momentos, nem chegou a insistir na sua participação, passando
rapidamente para outra atividade. No entanto, a instabilidade pode ser
considerado como parte da natureza da atividade docente.
O clima de trabalho entre alunos e professora era, em geral,
descontraído e, em alguns momentos, conflituoso, como se viu
anteriormente.
132
Os alunos conversavam entre si num tom de voz adequado,
movimentavam-se bastante pela sala para buscar objetos com outros
colegas e com a professora, faziam brincadeiras entre si, sem maiores
conseqüências.
A professora estimulava esse clima de descontração, fazendo
brincadeiras com os alunos, mesmo durante as atividades:
A professora pede para que os alunos abram os livros numa
página onde há uma história em quadrinhos com reproduções
de obras de arte (Mona Lisa de Michelangelo e uma obra de
Anita Malfatti). Ela prende na lousa duas fotos de jornal, uma
figura feminina e outra masculina. Apresenta o trabalho
realizado no dia anterior, cujo objetivo era a reproduzir a foto a
partir de um desenho. Coloca na lousa a sua reprodução das
fotos. Há um momento de descontração com a apresentação
dos desenhos dos alunos e da professora, pois todos se
divertem fazendo comparações entre os desenhos e as fotos e
tecem comentários críticos, mas sem ofensas ou rudezas.
Não foram presenciadas, no decorrer das observações, situações
mais graves de confronto entre a professora e os alunos, nem momentos de
indisciplina severa.
Era possível perceber quando as regras e limites haviam sido
violados, por meio das verbalizações da professora: “não gritem”, “não
falem muito alto”, “cada um espera a sua vez para falar”, “não
desperdicem material”, dentre outras.
Mesmo quando dava “broncas” na turma, a professora procurava
manter-se bem - humorada, não desrespeitava os alunos e detinha-se apenas
no comportamento provocador da repreensão. Não se presenciou qualquer
situação onde a professora tentasse atacar o caráter ou a moral de qualquer
aluno que estivesse sendo repreendido por ela.
Uma das situações em que a professora interferia com mais
energia era em relação ao mal uso do material escolar, como quando
133
advertiu severamente algumas alunas que estavam utilizando cola branca
para fazer tatuagens.
A professora também era enérgica quando um grupo de alunos
conversava mais alto enquanto ela atendia individualmente a outros alunos:
Enquanto os alunos fazem a tarefa, a professora passa pelas
carteiras e tira as dúvidas individuais. Detém-se sobre uma
aluna que apresenta dificuldade em identificar a medida do
perímetro de uma figura geométrica (centímetro). Diante da
agitação e do barulho de alguns alunos que não estão fazendo
tarefa, a professora adverte: “desse jeito eu não posso ver a
tarefa dos que estão interessados, porque tem gente aqui que
fica destruindo a sala.”
No entanto, em várias ocasiões, foram presenciadas situações em
que um ou mais alunos se recusavam a fazer alguma tarefa ou desistiam da
atividade que começavam a realizar, mediante o argumento de que “não
sabiam fazer” ou que “não queriam fazer” a atividade proposta, como na
seguinte situação:
A professora chama uma das alunas para resolver uma das contas
de divisão na lousa. A aluna resolve a primeira conta sem
dificuldade, com a professora sempre ao seu lado, orientando-a.
Na segunda conta, a aluna apresenta dificuldades em uma
determinada etapa da operação de divisão. A professora
interrompe a resolução da operação e parte para a explicação do
conceito de divisão através de um esquema simples que desenha
a lousa:
1 1 1
Pede para que a aluna imagine que cada bolinha desenhada é
uma bala e que cada número 1 é um menino. Faz a distribuição
das “balas” para os “meninos” e pergunta à aluna: “quantas balas
você acha que cada menino ganhou?”
A aluna fica em silêncio e logo responde que não sabe. A
professora pede para que ela tente, que não desista tão
134
facilmente. Com a ajuda e a insistência da professora a aluna
consegue resolver o problema e, então, a professora o aplica na
resolução da operação de divisão. A professora diz que vai
escrever mais uma conta para a aluna, que diz, enfaticamente:
“não vou fazer!”
Diante da recusa da aluna, o aluno E. diz: “é isso aí, não faz
não!” A professora permanece em silêncio e chama um outro
aluno à lousa.
As duas situações relatadas acima, remetem à análise de
PERRENOUD (1995) sobre as cinco estratégias dos alunos face ao trabalho
escolar, estratégias essas apresentadas principalmente diante de uma prática
pedagógica mais tradicional, mas ainda presentes no que o autor denomina
como “novas didáticas”:
a) Beber o cálice da amargura: o aluno aceita realizar a tarefa,
renuncia à revolta e executa docilmente aquilo que lhe é solicitado e da
maneira como é solicitado; não discute, nem questiona. Realiza a atividade
com o menor investimento de si mas, pelo menos, não pode ser acusado
pelo professor de ter má vontade, garantindo assim a confiança do mesmo e
uma certa autonomia nas correções das tarefas;
b) Depressa! depressa! depressa!, ou como rapidamente se
livrar da tarefa: o aluno realiza a tarefa o mais rapidamente possível para se
ocupar de outras coisas; copia do vizinho mais adiantado, utiliza o menor
tempo possível para refletir, verificar o seu raciocínio ou reler o que
escreveu. Seu maior objetivo é acabar antes para poder usufruir de alguns
momentos de descanso até que seja solicitada a realização de uma nova
tarefa;
c) Despacha-te lentamente: sem recusar a atividade proposta, o
aluno tenta gastar o maior tempo possível para realizá-la; aponta o lápis,
procura material ou solicita explicações, fazendo o que for possível para
ganhar tempo; aparenta um ar ocupado, mas não se esforça muito, apesar de
parecer interessado pelos exercícios;
135
d) “Não percebo nada disto”: o aluno mostra-se incompetente
frente à tarefa para poder se esquivar dela; utiliza a incompetência, a
incapacidade de compreender as instruções ou de visualizar a solução para
justificar longos períodos de ociosidade, principalmente quando o professor
está ocupado com outros alunos. Caso o professor esteja disponível, essa
estratégia permite que o docente faça uma parte da tarefa para o aluno, ao
oferecer-lhe pistas e subsídios para a resolução da atividade;
e) Contestação aberta: é a mais perigosa das estratégias,
consistindo no fato do aluno negar abertamente a utilidade da tarefa ou
recusar-se a fazê-la de forma explícita e, para isso, alega falta de interesse,
de vontade, cansaço ou indisposição. Poucos são os alunos que adotam
regularmente essa atitude sem sofrerem medidas disciplinares mais
rigorosas e, portanto, essa estratégia é mais ocasional que as anteriores; os
alunos que a utilizam geralmente são aqueles que não tem mais nada a
perder e estão vivendo uma relação de desgaste com a instituição escolar.
Pode-se observar que as três últimas estratégias e, em especial, a
última, foram as mais utilizadas pelos alunos diante das tarefas propostas.
As atitudes dos alunos face às atividades propostas pela
professora podem ser mais facilmente compreendidas se for considerado
que as suas trajetórias escolares foram, muito possivelmente, marcadas por
constantes frustrações, esforços mal - sucedidos, avaliações depreciativas e,
especificamente, a realização de tarefas escolares sem significado para as
suas vidas cotidianas.
O resgate da auto - estima dos alunos, por parte da professora,
ocorria principalmente através da valorização de seus avanços acadêmicos.
A professora, durante a realização conjunta das atividades,
principalmente nos momentos de leitura de textos, fazia constantemente
elogios públicos aos alunos:
136
Iniciam a leitura de uma poesia de Ruth Rocha, “Quem tem
medo de quê?”. A professora coloca um trecho do texto na
lousa:
Lagartixa? Vejam só!
Isso parece piada...
Nem ligo pra lagartixa!
Acho ela uma coitada!
Sabe do que eu tenho medo?
Que me dói o coração?
Até me arrepia a espinha?
Tenho medo ... de injeção!
Todos lêem em voz alta junto com a professora. Somente os
meninos; depois as meninas, que parecem ler com mais
entusiasmo. Então o S. lê., com certa hesitação, mas
corretamente.
A professora comenta animada: “Palmas gente, ele não lia
nada e agora está lendo!” Depois a J.: “Palmas para ela
também!”
Um outro comportamento freqüentemente apresentado pela
professora era encorajar o aluno a não desistir diante dos erros cometidos.
Assim, frente a um aluno que diz não saber resolver uma conta de divisão, a
professora aconselha: “não diga que você não sabe fazer, diga que não
consegue, mas que vai tentar.”
Para crianças com histórico de múltiplos fracassos na escola
esses momentos de valorização pública de seus pequenos (mas
significativos) avanços parecem ser muito importantes para resgatar a auto -
estima e o desejo de aprender.
No entanto, mesmo mostrando-se consciente da necessidade de
empreender o resgate da auto - estima de seus alunos, a professora nem
sempre o fazia quando surgiam situações inesperadas, como no dia em que
um aluno chamou o outro de “burro”, após o primeiro ter dado uma
resposta incorreta na resolução de um exercício de matemática. Diante
dessa situação, inesperada frente aos padrões de intervenção da professora,
137
ela não interviu e continuou realizando a atividade, simplesmente ignorando
o comentário ofensivo do aluno em relação ao outro.
Não houve oportunidade de se conversar com a professora sobre
a situação descrita já que, logo após o término da aula, ela estava com
pressa para ir para a outra escola onde lecionava no período da tarde.
Sua atitude faz refletir sobre a necessidade de que a professora
Ana procedesse a problematização do fato ocorrido para além da sala de
aula, partindo das idéias dos alunos, de modo que eles próprios
apresentassem suas análises, versões, hipóteses e posições a respeito do
ocorrido (SOUZA, VIÉGAS & BONADIO, 1999: 11).
Em uma Classe de Aceleração acredita-se ser vital para o resgate
da auto - estima e de valores éticos e sociais que sejam aproveitadas as
situações e experiências ocorridas na sala de aula. O uso dessas situações
parece ser essencial para a abordagem de assuntos como o preconceito16 e a
rotulação dos alunos que fracassam, a postura adequada diante do erro e do
acerto e outros temas emergentes relacionados ao dia - a - dia dos alunos
com história de multirrepetências, o que não se configurou na prática
pedagógica da professora Ana, pelo menos no período observado.
Houve momentos que a professora compartilhou com a
pesquisadora análises mais amplas sobre o projeto de Aceleração, como
quando afirmou que, na sua opinião, apesar das Classes de Aceleração não
continuarem acreditava que a mentalidade das professoras participantes
mudara, pois haviam se tornado mais críticas e melhores preparadas em
termos metodológicos ou quando comentou que, mesmo com a existência
de módulos e de uma rotina norteadora do trabalho em sala de aula,
acreditava que era possível que o professor improvisasse e criasse as suas
16 Segundo HELLER (1989: 47) preconceitos são os juízos provisórios refutados pela ciência e por uma experiência cuidadosamente analisada, mas que se conservam inabalados contra todos os argumentos da razão.
138
próprias atividades dentro de um determinado conteúdo, sempre seguindo
os parâmetros do Livro do Professor.
As professoras substitutas, encarregadas das aulas quando as
professoras titulares estavam sendo capacitadas, não participavam de um
processo de capacitação paralela e não usavam o Livro do Professor e,
segundo ela, os alunos consideravam que os dias de aulas com as
professoras substitutas eram “dias perdidos”.
De acordo com a professora, o conteúdo e os objetivos das
Classes de Aceleração I e II eram o mesmo, mas a maneira de se trabalhar o
conteúdo era diferencial. Desse modo, na Classe de Aceleração I a ênfase
seria na alfabetização enquanto que, na Classe de Aceleração II, seria
enfatizado a compreensão de idéias e a estimulação da expressão oral do
aluno.
A professora Ana achava ser necessário a implantação de um
projeto de Aceleração de 5a à 8a séries pois, para ela, os alunos continuariam
a ter dificuldades nessas séries.
Segundo Ana, somente naquele período existia um bom clima
entre ela e os alunos da turma atual pois, no começo do ano, a indisciplina
era muito severa e a conquista da disciplina havia sido realizada com muito
diálogo e “pulso firme” por parte da professora.
Naquele momento específico Ana estava desanimada e
ponderava se deveria continuar na Classe de Aceleração no próximo ano
letivo, por sentir-se cansada e solitária sem a presença do diretor e de sua
antiga colega Célia, com quem havia vivenciado o processo de
implementação do projeto naquela escola.
Em uma das conversas sobre as dificuldades dos alunos, a
professora pediu à pesquisadora a sua opinião sobre o caso de um
determinado o aluno (E., de dezesseis anos): “o que você acha que pode ser
uma criança que não lê, mas escreve?” Perguntou-se a ela qual era a sua
139
hipótese sobre o problema. Ela, então, respondeu: “acho que é uma coisa
da cabeça, não consigo entender...”
Diante de sua impotência para compreender as dificuldades de
aprendizagem específicas do aluno E., a professora parece expressar uma
representação de fracasso escolar centrado no aluno, o que contraria, a
princípio, a posição defendida pelo referencial teórico do projeto de
Aceleração, mas que parece indicar aquilo que a professora Ana é capaz de
ensinar, face ao momento de desenvolvimento e de aprendizagem
profissional que estava vivendo e ao contexto educacional em estava
inserida.
Portanto, pode-se perceber que as alterações previstas pelas
políticas educacionais para assegurar o sucesso de alunos com histórico de
fracasso escolar não garantem, de imediato e na sua totalidade, as
necessárias mudanças nas mentalidades e nas práticas dos atores
(professores, coordenadores, diretores), cotidianamente envolvidos no
atendimento desses alunos. Em outras palavras, mesmo diante de uma
professora atuando no contexto de uma política de superação do fracasso
escolar, não é surpresa deparar-se com a sua concepção de fracasso escolar
que atribui o fracasso ao aluno.
Essa suposta contradição pode ser explicada por PERRENOUD
(1997: 29) quando afirma que no estado de ambigüidade endêmica dos
discursos sobre o insucesso escolar a favor da diferenciação, mas sem
colidir com os bastiões do conservadorismo , as opções individuais dos
professores tornam-se determinantes.
A partir de agora serão tecidas algumas considerações sobre a
prática pedagógica da professora Ana.
Em primeiro lugar, questiona-se: a prática docente da professora
Ana, da Classe de Aceleração II da Escola I, pode ser considerada uma
prática bem - sucedida?
140
A fim de se responder a essa questão recorreu-se, inicialmente, à
Proposta Pedagógica Curricular das Classes de Aceleração, a qual afirma
que:
(...) o trabalho deverá desenvolver-se de maneira flexível, mas sem desvios de rumo, dentro de um padrão metodológico que se sustente em princípios norteadores claros. Assim, mobilizar interesses, ativar a participação, desafiar o pensamento, instalar o entusiasmo e a confiança, possibilitar acertos, valorizar os avanços e melhorar a auto - estima passam a ser diretrizes da atuação do professor, numa busca de tornar significativo o processo de ensino - aprendizagem (SÃO PAULO - Estado, 1997a: 10).
Deve ser levado em consideração que a professora Ana é uma
professora experiente, preocupada com a qualidade de seu trabalho e com o
desenvolvimento de seus alunos. Possui uma excelente compreensão dos
fundamentos da Proposta Pedagógica Curricular das Classes de Aceleração,
como pôde-se observar pela maneira como desenvolve as aulas e nas
ocasiões onde se tratou desse assunto (conversas informais e entrevista).
Os dados obtidos realmente revelam que o trabalho desenvolvido
pela professora converge com a maioria dos princípios contidos na Proposta
Pedagógica Curricular, especificamente no tocante ao seu empenho em
criar um clima de entusiasmo e estimular a auto - confiança dos alunos,
como também na valorização dos avanços e acertos apresentados por eles
no processo de aprendizagem.
Porém, quanto à flexibilidade metodológica, à mobilização da
participação e o desafio ao pensamento do aluno, sua atuação parece um
tanto instável, quando comparada com os mesmos princípios. Pelo menos
no período de observação de aulas verificou-se que a metodologia de ensino
dominante foi a aula expositiva dialogada. Quanto a isso, deve-se esclarecer
que o uso da aula expositiva dialogada não deve ser considerado sinônimo
de um ensino convencional ou obsoleto, pois é uma técnica extremamente
útil, mesmo que o projeto de Aceleração seja baseado no referencial
construtivista.
141
Nas várias oportunidades em que utilizou a aula expositiva
dialogada, a professora buscou criar situações desafiadoras e estimulantes
para a apropriação do conhecimento por parte dos alunos, mas nem sempre
obteve sucesso. Acredita-se que outras estratégias, como atividades em
grupo ou atividades individuais diferenciadas, poderiam ter sido utilizadas
de forma mais significativa e produtiva.
Além disso, notou-se que do “kit” de material destinado às
Classes de Aceleração (quatro volumes destinados ao professor - Ensinar
pra Valer! - e aos alunos - Aprender pra Valer!, fichas, cartazetes e jogos
pedagógicos), os três últimos itens foram muito pouco utilizados, pelo
menos nas aulas observadas.
Quanto à participação da turma e o desafio ao pensamento do
aluno, a professora poderia ter sido melhor sucedida se procurasse explorar
um pouco mais o conhecimento prévio e as vivências dos alunos sobre os
conteúdos trabalhados, mesmo diante de uma rotina de trabalho exigente
como a que caracteriza as Classes de Aceleração.
Mas, em que medida essa avaliação da prática pedagógica da
professora Ana se diferencia da prática docente nas salas de aulas do ensino
regular?
A grande diferença parece residir na capacidade da professora
Ana em compreender o perfil de seu alunado e, principalmente, em refletir
sobre as suas concepções sobre as causas dos fracassos desses alunos.
Aparentemente, aos olhos da professora Ana, o fracasso escolar ainda
parece estar mais relacionado ao fracasso individual do que propriamente a
fatores relacionados ao sistema educacional e à função social da escola.
A diferença, mais ainda, parece residir na capacidade da
professora Ana em acreditar no sucesso desses alunos e de si mesma,
enquanto uma das principais responsáveis por esse sucesso.
Partindo desse princípio, avalia-se que a prática docente da
professora Ana é caracterizada pela presença de “altos e baixos”: nem
142
sempre tão bem - sucedida como potencialmente poderia ser, os seus pontos
fracos se manifestam principalmente nas situações de ensino -
aprendizagem nas quais os alunos acabam por não lhe fornecer o feedback
esperado por ela, o que poderia estar acentuando o seu sentimento de
fracasso e frustração, muitas vezes manifestado pelas suas atitudes e
desabafos.
5.3. Análise da tradução do projeto Classes de Aceleração
pelas professoras da Escola I
A análise dos dados coletados na Escola I, através das entrevistas
com as professoras e da observação da prática da professora Ana, da Classe
de Aceleração II, parece levar à conclusão de que a tradução do projeto de
Aceleração nessa escola, quando defrontado com os pressupostos teórico -
metodológicos da proposta de aceleração, não pode ser considerado
satisfatório.
Foi possível constatar que, pelo menos, dois fatores considerados
essenciais ao sucesso da tradução do projeto para a prática docente não
estiveram presentes nessa escola: a presença de uma direção escolar e de
uma coordenação pedagógica atuante e comprometida com o projeto e o
testemunho da crença dos agentes educacionais no projeto e entusiasmo
quanto aos resultados obtidos (PLACCO, ANDRÉ & ALMEIDA, 1999).
Quanto ao envolvimento da direção escolar e coordenação
pedagógica com o projeto de Aceleração, pelo que foi percebido, a partir
dos dados coletados, o envolvimento de ambos deu-se, aparentemente,
apenas no primeiro ano de funcionamento das Classes de Aceleração na
Escola I.
O diretor, devido às cobranças dos professores das séries
regulares, acabou por se distanciar do projeto, o que trouxe conseqüências
danosas, principalmente em relação ao envolvimento da professora Ana.
Quanto à coordenadora pedagógica, foi mencionada uma única vez por uma
143
das professoras, de forma crítica, supostamente por não ter atuado como
uma fonte de apoio para as dificuldades do cotidiano.
No que diz respeito à crença dos agentes escolares no projeto e o
seu entusiasmo quanto aos resultados, pode-se afirmar que a professora
Ana, apesar de muitas vezes demonstrar cansaço e frustração em relação ao
aprendizado dos alunos, sempre os incentivou a participar das atividades e
estimulou o desenvolvimento de um melhor autoconceito dos mesmos.
A professora Bianca, por outro lado, mostrou-se desanimada e
descrente em relação ao seu trabalho e à capacidade de aprendizagem de
seus alunos.
Nessa perspectiva, a professora Bianca sempre se referiu aos
alunos de sua Classe de Aceleração de forma preconceituosa e hostil, como
quando se referiu aos seus alunos como rebeldes, bravos e teimosos ou
quando afirmou, de forma categórica, que eles não tinham interesse em
aprender, afirmações essas que explicitam as suas concepções tradicionais
sobre o fracasso escolar. Não manifestou crédito quanto ao potencial de
aprendizagem de seus alunos e, além disso, os recriminava por serem
velhos demais ou por não realizarem as tarefas propostas.
Ao comentar sobre o desempenho de seus alunos, a professora
Bianca, na maior parte das vezes, expressou uma concepção totalmente
contrária à premissa básica do projeto de Aceleração: a idéia de que todo
aluno é capaz de aprender e que todo professor é capaz de ensinar. Durante
as ocasiões em que conversou com a pesquisadora, Bianca fez várias
reclamações sobre os alunos e sobre o projeto e se manteve resistente a
qualquer tipo de aproximação, não aceitando conceder uma entrevista
individual, nem permitindo a observação de aulas em sua sala.
A participação da professora Bianca como docente de Classes de
Aceleração denuncia dois grandes obstáculos ao sucesso do projeto: a falta
de um processo de seleção de professores, por parte da direção escolar,
144
mais adequado a projetos dessa natureza e a falta de adesão do professor
aos princípios básicos da proposta de aceleração da aprendizagem.
Ao não privilegiar a permanência dos docentes que estariam
atuando em Classes de Aceleração, o processo de seleção de professores e
de atribuição de classes, pode ser considerado como um dos fatores
responsáveis pela saída da professora Célia da Escola I.
Segundo MARIN (1997), boa parte dos professores das Classes
de Aceleração foi selecionada entre os professores ACT’s (Admitidos em
Caráter Temporário) e não entre os professores efetivos, o que fez com as
que essas classes fossem, em alguns casos, a sua única condição de
trabalho.
Analisando-se a prática pedagógica da professora Ana, da Classe
de Aceleração II, pôde-se perceber ela procurava ensinar os seus alunos de
uma nova maneira, mas encontrava muitas obstáculos nesse processo,
especialmente quando se via diante das dificuldades dos alunos em
compreender os conteúdos escolares.
Dessa maneira, apesar de ter apresentado um bom domínio dos
pressupostos teóricos e das diretrizes metodológicas do projeto de
Aceleração, quando Ana se defrontava com as variações do desempenho de
seus alunos e com a heterogeneidade de sua classe, acabava comportando-
se de maneira instável, pois ora os aceitava e procurava entender as suas
dificuldades, ora os acusava de não estarem atuando de acordo com as suas
expectativas.
Sua prática pedagógica, pouco flexível em relação a um
determinado tipo de padrão de atuação, a levava a utilizar o Livro do
Professor e do Aluno como um manual didático, não explorando outras
possibilidades de construção do processo de aprendizagem dos alunos e não
valorizando os debates espontâneos que emergiam como pontes para a
problematização de conteúdos.
145
Como foi dito anteriormente, um dos fatores que poderiam ter
prejudicado o desempenho da professora Ana, no decorrer de sua
experiência nas Classes de Aceleração da Escola I nesse ano, seria a perda
de dois parceiros e interlocutores: o diretor da escola e a professora Célia,
que se ausentou da escola e com quem a professora Ana relatou, em
conversas com a pesquisadora, ter tido uma grande afinidade. Com o
afastamento do diretor, a professora Ana não parece ter encontrado outros
pares para trocar experiências e buscar soluções para as dúvidas pois, além
de nunca ter se referido à coordenadora pedagógica, ainda criticou a falta de
apoio da Diretoria Regional de Ensino e as capacitações oferecidas, por não
articularem a teoria com a prática.
Quanto à sua colega da Classe de Aceleração I, professora
Bianca, durante o período em que se permaneceu na Escola I, não foi
percebida a existência de muita afinidade entre elas.
Analisou-se a situação das professoras de Classes de Aceleração
da Escola I, mas não se pode perder de vista o fato de que elas estavam
inseridas em um contexto mais amplo, a instituição escolar, a qual possui
características próprias, assim como uma cultura específica.
146