81
5. As professoras das Classes de Aceleração da Escola I A Escola I situa-se em um bairro populoso da periferia do município e foi implantada, inicialmente, dentro do programa de instalações de CAIC’s (Centro de Atendimento Integral à Criança) do Governo Collor, em 1990. Não foi alvo do processo de reorganização da rede de ensino até o segundo semestre de 1999, pois era a única escola existente no bairro. Após essa reorganização tardia, passou a atender as quatro primeiras séries do Ensino Fundamental. O prédio é grande, com dois andares, muito colorido, o que o destaca a distância. Junto ao prédio principal onde funciona a escola, existe um pequeno prédio anexo, onde funciona uma Escola Municipal de Educação Infantil, destinada a crianças de quatro à seis anos. No primeiro andar do edifício existem as salas de aula, o refeitório dos alunos, o pátio e a quadra coberta. No segundo andar, existe uma biblioteca ampla, uma sala de vídeo e um laboratório de ciências que é utilizado pelas professoras como uma espécie de refeitório, 99

Document5

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Citation preview

Page 1: Document5

5. As professoras das Classes de Aceleração

da Escola I

A Escola I situa-se em um bairro populoso da periferia do

município e foi implantada, inicialmente, dentro do programa de instalações

de CAIC’s (Centro de Atendimento Integral à Criança) do Governo Collor,

em 1990. Não foi alvo do processo de reorganização da rede de ensino até o

segundo semestre de 1999, pois era a única escola existente no bairro. Após

essa reorganização tardia, passou a atender as quatro primeiras séries do

Ensino Fundamental.

O prédio é grande, com dois andares, muito colorido, o que o

destaca a distância. Junto ao prédio principal onde funciona a escola, existe

um pequeno prédio anexo, onde funciona uma Escola Municipal de

Educação Infantil, destinada a crianças de quatro à seis anos.

No primeiro andar do edifício existem as salas de aula, o

refeitório dos alunos, o pátio e a quadra coberta. No segundo andar, existe

uma biblioteca ampla, uma sala de vídeo e um laboratório de ciências que é

utilizado pelas professoras como uma espécie de refeitório, durante o

intervalo das aulas. Ainda no segundo andar há a sala do diretor, da

coordenadora pedagógica e a secretaria escolar.

As Classes de Aceleração também estão localizadas no segundo

andar do prédio, longe das salas de aulas regulares. A Classe de Aceleração

I, da professora Bianca, fica ao lado da sala da coordenação e a Classe de

Aceleração II, da professora Ana, fica no extremo oposto do segundo andar,

ao lado da biblioteca e defronte à sala de vídeo.

As salas destinadas às Classes de Aceleração são pequenas, mas

conseguem acomodar vinte e cinco cadeiras e mesas, que são agrupadas de

quatro em quatro, permitindo o trabalho em grupo, apesar de haver pouco

espaço para a circulação de alunos e da professora. Um armário de ferro

com portas contém o material utilizado pelas professoras e alunos: Ensinar

99

Page 2: Document5

para Valer! (Livro do Professor) e Aprender para Valer! (Livro do Aluno),

artigos de papelaria e fitas de vídeo. Nas paredes, cartazes: numerais de

zero a nove, meses do ano, dias da semana, calendário anual, folhetos de

supermercado, fases da Lua e trabalhos temáticos (Dia das Mães, bandeiras

de festa junina).

Há um sistema de som com alto - falantes presentes em todos os

espaços da escola e que é utilizado continuamente para tocar músicas

evangélicas e enviar comunicados do diretor ou da coordenadora

pedagógica.

5.1. As Classes de Aceleração na ótica das professoras

Os dados que serão descritos e analisados abaixo referem-se às

respostas obtidas por meio da entrevista em grupo realizada com as duas

professoras em exercício da Escola I, Ana e Bianca e da entrevista

individual realizada com a ex - professora Célia, de Classe de Aceleração

da mesma escola.

5.1.1. Trajetória acadêmica e profissional das professoras

A professora Ana possui formação em nível superior em

História, realizada em uma instituição privada de ensino superior, além da

Habilitação Específica para o Magistério. Docente há mais de dez anos,

possui experiência em Educação Infantil, terceiras e quartas séries, além de

uma passagem pela segunda série do Ensino Fundamental.

A professora Bianca possui a Habilitação Específica para o

Magistério e leciona há mais de quinze anos. Tem experiência no ensino de

adultos (MOBRAL e Supletivo) e no Ensino Fundamental, especificamente

em quartas séries.

A professora Célia é formada em Pedagogia por uma

universidade pública estadual e leciona há mais de dez anos; já atuou nas

primeiras séries do Ensino Fundamental e em salas de reforço, no Programa

100

Page 3: Document5

de Formação Integral da Criança (PROFIC) onde, segundo ela, teve contato

com vários alunos com histórico de fracasso escolar. Na época da entrevista

ambicionava ingressar em um programa de pós - graduação strito sensu,

com o objetivo de obter o título de Mestre em Educação.

5.1.2. Ingresso e atuação nas Classes de Aceleração

Com relação à opção pelas Classes de Aceleração, as três

professoras da Escola I optaram por fatores como a atração que sentiram

pela possibilidade de enfrentar de novos desafios profissionais, como

também a necessidade de um maior aperfeiçoamento profissional, através

do processo de formação continuada proporcionado aos professores

integrantes do projeto Classes de Aceleração e pelo efetivo exercício

docente frente a uma clientela comumente rejeitada e rotulada pela maioria

dos professores: os alunos multirrepententes.

Este parece ser o caso da professora Ana:

“Ninguém na escola queria pegar, todo mundo achava que era

uma coisa muito difícil, muito complicada, aí me ofereci para o

seu A. (diretor da escola), falei que se ele não se importasse

(porque ele já tinha escolhido pessoas) assumiria, para ver o

que era, como era, para crescer, para aprender mais. Em 1997,

também escolhi porque quis e esse ano não... eles eram

defasados de idade, de atraso no estudo mesmo, não entendiam

matemática, português muito, sem coerência nenhuma, esse

ano foi bem mais difícil...”

E, principalmente, da professora Célia:

“Houve uma rejeição na escola por parte dos professores, por

que acham que é o “entulho”, o “lixão”. O diretor veio me

oferecer e aceitei. Quis essa sala porque ninguém queria, sou

atraída pelo fracasso, me questiono por que algumas crianças

aprendem e outras não. Me preocupo muito com as que ficam.

Quando foi falado na escola, os efetivos não quiseram pegar e

foi passado para os ACT. Me entusiasmei por causa disso e

também pela aprendizagem que os professores têm, aprendem

101

Page 4: Document5

muito, porque são estas crianças que precisam de um

atendimento especial; achava que, se ia ser professora desse

atendimento, ia me melhorar, sair em busca de uma melhor

aula, uma melhor forma de trabalho.”

A professora Bianca, por sua vez, admite que optou pelas

Classes de Aceleração por não ter conseguido outra classe no ensino regular

mas, mesmo assim, coloca que sentiu um certo “interesse” pelo projeto:

“Me interessei pela Classe de Aceleração, porque todo mundo falava que

era “gostoso”, uma amiga que lecionou comigo na Aceleração no ano

passado falava “pega Bianca, é gostoso.”

Solicitou-se a cada professora que fizesse uma avaliação de sua

turma atual. Essa solicitação deu-se pela crença de que conteúdos

importantes como por exemplo, as suas concepções sobre as dificuldades

dos alunos e a atribuição de causas às mesmas, a identificação de suas

próprias dificuldades em trabalhar com turma, o tipo de relação que

estabelece com o grupo de alunos e dos alunos enquanto grupo, dentre

outros temas relevantes, são revelados no momento em que o professor

avalia sua classe como um todo.

A professora Ana colocou que seus alunos, apesar de

apresentarem dificuldades graves no processo de aquisição da leitura e

escrita, desenvolveram habilidades que lhes permitem uma melhor

expressão oral e escrita.

Destacou a situação em que os alunos se encontravam no início

do ano letivo, especialmente o medo face ao desconhecido de uma nova

sala de aula e de uma nova “vida” escolar. Comentou sobre a dificuldade de

se trabalhar com a auto - estima dos alunos, um conceito que ela acredita

que eles não compreendem e que nem mesmo ela, às vezes, conseguia

compreender.

Considerou que os seus alunos possuíam muito potencial para o

aprendizado e que havia tentado desenvolver, junto aos alunos, uma postura

102

Page 5: Document5

crítica frente aos conteúdos, postura essa que ela acreditava que poderia ser

retomada pelos alunos, posteriormente, em suas vidas acadêmicas:

“.... quando eu peguei a classe alguns alunos estavam terríveis

na escrita, indecifráveis... agora eles já fazem frases mais

completas, a oralidade foi mais trabalhada, começaram a se

expressar melhor. O aluno não precisa deixar de apresentar os

erros ortográficos na sua escrita, mas na hora de colocar no

papel já se lê uma frase que se compreende. Em relação ao

autoconceito, eles chegaram bem medrosos: no início, não

estavam entendendo o negócio de sair da terceira e ir para a

quinta. Fizemos todo um trabalho de levantar a auto - estima.

Achei que eles saíram melhores preparados, menos briguentos,

já estavam mais acomodados. Eles não sabem agora, tenho a

impressão de que eles armazenam isso e que na hora em que

for solicitado eles vão saber, acho que eles viraram alunos

críticos, mesmo que eles ainda não saibam o que é criticidade,

a hora em que for acionado eles vão ser críticos.” (professora

Ana)

A professora Bianca iniciou a avaliação de sua turma atual com

uma frase que pode ser considerada muito significativa: “Recebi a classe

com bastante problema, eram crianças carentes, que não sabiam nada,

nada, nada, nada, nada e nada e têm alguns que não estão sabendo ainda.”

Ao dizer que seus alunos não sabiam “nada”, repetiu essa

palavra inúmeras vezes, enfatizando-a com bastante veemência.

Bianca não parecia acreditar na capacidade de aprendizagem de

seus alunos. Não parecia, igualmente, compartilhar de idéias essenciais para

a atuação no projeto de Aceleração, como que é necessário valorizar os

conhecimentos prévios do aluno (SÃO PAULO - Estado, 1997a).

Isentou-se de responsabilidade no processo de aprendizagem (ou

melhor, de não aprendizagem) de seus alunos, com o argumento de que

havia feito por eles “o possível e o impossível”:

103

Page 6: Document5

“Me esforcei bastante, acho que fiz o possível e o impossível

para eles. Acho que eles trazem muitos problemas de casa. Eles

chutam, xingam. No final, acho que tentei e que recuperei um

pouquinho. De 18 alunos da classe, um vai para a 5a, quatro

vão para a 4a e 13 vão fazer recuperação nas férias. Se tiverem

possibilidades vão para a 4a, senão vão ficar na Aceleração II.”

(professora Bianca)

Apesar de ter, anteriormente, depreciado a situação acadêmica de

seus alunos, afirmou que eles eram “uns alunos rebeldes, alunos bravos,

uns alunos teimosos...”

Encerrou a avaliação de sua turma, complementando a sua idéia

de que o professor está isento de responsabilidade no processo de

aprendizagem dos alunos, ao colocar que o “bom desempenho é mais um

esforço dos alunos que da professora”, pois quando eles não querem, não

fazem: “Acho que o bom desempenho é mais um esforço dos alunos do que

da professora, porque quando eles falam “eu não vou fazer, eu não faço, eu

não faço e eu vou fazer o quê?”

Deve-se considerar que a professora Bianca foi a que apresentou

um dos argumentos mais frágeis para sua opção pela Classe de Aceleração

já que, segundo ela, apesar de um certo interesse por essas classes, o

principal motivo de sua escolha foi a falta de outras oportunidades no

processo da atribuição de aulas.

Já a professora Célia, bastante detalhista em sua avaliação da

classe pela qual foi responsável no período em que lecionou na Escola I

(Classe de Aceleração I, ano de 1997), considerou que percebeu avanços na

turma, não somente em termos de aprendizagem, mas também na conduta e

socialização; não usou de rótulos com relação a eles e demonstrou

compreensão para com as suas atitudes:

“No começo do ano, eles eram muito revoltados; não queriam

aprender, tinham vergonha de ler, tinha que fazer o diagnóstico

inicial e isso foi muito difícil porque eles mesmos não

104

Page 7: Document5

acreditavam que sabiam alguma coisa; eles eram fechados,

muita agressividade, cada um “chapava” mais o outro para se

sobressair como melhor, então foi um trabalho muito difícil,

em termos de auto - estima. No final do ano (1997), eu senti

que eles já tinham superado, já não brigavam tanto, escreviam

espontaneamente, não tinha mais aquela dificuldade de

comunicação, de atendimento; formavam grupos, trabalhavam

juntos e não eram mais tão agressivos.”

A professora Ana relatou que, no ano letivo em que trabalhou

com a professora Célia, elas adquiriram o hábito de “trocar” os alunos entre

as Classes de Aceleração I e II:

“Tinha uma colega que tinha pego Aceleração I, a Célia, e nós

trocávamos os alunos. Ela também estava estudando, então

trocávamos; eu mandei um grupo de alunos para a Aceleração

II, que tinham condições de ir para uma 5a série e ela tinha

crianças que não sabiam e estavam na alfabetização inicial.”

(professora Ana)

O procedimento descrito pela professora Ana não é previsto pela

Proposta Pedagógica Curricular. Entretanto, mesmo não recomendado ou

previsto oficialmente, essa não pareceu ser uma atitude de caráter

discriminatório ou sabotadora por parte das professoras, mas uma

alternativa utilizada pelas mesmas para contornar problemas na composição

das classes, guiada pela avaliação diagnóstica inicial da turma. Não foi

possível analisar os resultados das trocas de alunos entre as salas, pois essa

prática limitou-se ao período em que a professora Célia estava atuando na

Escola I.

No tocante às relações entre professoras e alunos, foram

relatadas dificuldades circunstanciais e regulares.

Segundo a professora Ana, no início de sua participação no

projeto de Aceleração, chegou ao limite de agredir fisicamente um dos

alunos, considerado por ela como um “bandido”; posteriormente comunicou

à coordenadora pedagógica que não mais o aceitaria na sala de aula:

105

Page 8: Document5

“No começo do ano, cheguei a me agarrar com um aluno. Fui

na coordenadora e falei que não queria o aluno na sala, era um

aluno assim tipo bandido mesmo. Agora passaram ele para a

suplência, porque a escola não agüentou o menino...”

A dificuldade da professora Bianca em interagir e, até mesmo,

aceitar a sua classe atual foi novamente manifestada. O descontentamento e

a interação negativa, aparentemente, existiam desde o começo do ano

letivo:

“Esse ano eu estou arrasada, mas arrasada mesmo, com o tipo

de alunos que são... Eu acho que eu nunca peguei uma classe

desse jeito; é a idade deles porque o mais velho está com

quinze anos, então é dez, onze, doze, quinze, então é tudo

assim. Então, esse ano para mim...”

O choque de realidade apresentado pela professora Bianca diante

da idade de alguns de seus alunos é incompreensível quando se parte da

hipótese que, desde o processo de atribuição de aulas, ela já deveria estar

ciente do perfil dos alunos selecionados (onde a idade avançada é uma das

principais características) para comporem as Classes de Aceleração.

Pediu-se a cada professora que destacasse casos de sucesso ou

fracasso de alunos de sua classe.

A professora Ana destacou três alunos (S., R. e E.) como os que

mais haviam marcado a sua experiência na Classe de Aceleração até aquele

momento:

“S.: é um caso espantoso, foi um aluno que eu achei que fosse

ficar enroscado e agora os textinhos dele têm certa coerência.

Sempre vai para a lousa, vem sentar perto, “dona, eu não

entendi, ajuda a fazer essa frase aqui”. Fica mais próximo...

R.: Não conseguiu atingir nada, se pegar a pasta dele não tem

nada. Se recusou a fazer. ele virou um dia e disse “olha, eu não

quero nem aprender a ler, nem aprender a escrever”... A mãe

conta que é porque ele viu o pai morrer quando estava na fase

de alfabetização...

106

Page 9: Document5

E.: Dezesseis anos, teve um desentendimento com a professora

da tarde e passou para minha sala. Sinto que ele tem uma

deficiência, a mãe já foi chamada, desde que ele estava na 3a, 4a

série e a mãe não aceita. Quando falei com a mãe, ela pediu

que o aprovasse e eu disse “eu, por mim, está aprovado”. Aí a

turma da Diretoria não aprovou e a mãe não mandou mais o

aluno na sala, porque ela não aceita que o filho dela é uma

criança especial. Falei que ela tinha que procurar uma escola

especial, aí ela queria que falasse APAE, mas não existe só a

APAE de escola especial. Falei pra ela “a senhora tem que

primeiro levar ele no médico, o médico vai diagnosticar,

porque eu não sou uma pessoa especializada, eu sei que ele é

uma criança especial, que merece um tratamento especial,

agora, a senhora tem que ir ao médico para ele indicar o que a

senhora tem que fazer”... Ela disse: “eu vou colocar na

professora particular”. Eu falei: “ele não precisa de professora

particular, ele é um aluno hiper ativo aqui, ele gosta de ler, dá

coisas para ele ler”. Então eu falei para ela “compra a revista

Superinteressante, quem sabe vai despertando, coloca ele numa

aula de computação”. Ele já tem dezesseis anos e quer ser

mecânico, é uma coisa que vai exigir precisão e a mãe não

ficou muito satisfeita...”

O caso do aluno E. mereceu maior destaque da professora, talvez

por ele ser um adolescente, estar muito defasado em termos pedagógicos,

apresentar indícios de um déficit cognitivo e, apesar de tudo, ainda não ter

desistido da escola e ou de suas ambições profissionais.

Apesar de sua preocupação com este aluno, a professor Ana

aparentemente não considerou as dificuldades da família do rapaz seja para

comprar revistas, como para matriculá-lo em um curso de computação, pois

como ela mesmo situou, a maioria de seus alunos, inclusive este, eram

oriundos de classes sociais com poucos recursos financeiros.

A vivência adquirida pela pesquisadora no atendimento

psicológico de escolares, mostra que muitos outros adolescentes com

histórico de fracasso escolar possuem uma história semelhante a de E., ou

107

Page 10: Document5

seja, histórias onde a dúvida sobre a possível existência de necessidades

especiais é persistente e onde são feitas insistentes recomendações para que

esses jovens freqüentem uma escola especial ou para que sejam

encaminhados a profissionais de saúde.

Nas Classes de Aceleração e nas classes do ensino regular,

quando o professor se detém sobre situações particulares de alunos com

histórico de fracasso escolar, o seu discurso parece, freqüentemente,

apontar para causas de caráter orgânico, seja pela presença de lesões

neurológicas ou de uma suposta deficiência mental.

A professora Bianca selecionou dois casos alunos com história

de fracasso. Elogiou o discurso da mãe de um desses alunos, a qual

aconselhou as outras mães a levarem os seus filhos para a APAE. Além

disso, a professora recriminou a atitude de um pai que reagiu contra o

encaminhamento de seu filho para a mesma instituição:

“P.: A avó levou ele para a APAE. A avó esteve aqui, falou

“dona Bianca, eu acho que a senhora deveria falar com as

mães. Olha o P., a senhora falou para mim do P., eu levei, fez o

exame, passou pela psicóloga. Olha, e ele adorou”.

N.: Tem um aluno que eu encaminhei pra APAE, mas não

adiantou, o pai não aceitou. E eu vou fazer o que? Não vou

falar com a mãe de ninguém e eu acho que a mãe está vendo o

filho, né? Eu sou apenas professora, eu oriento, mas a mãe não

quer, então eu não faço nada. ”

A professora Célia analisou um caso de sucesso de um aluno,

que aparentemente resgatou sua auto - estima. Mas, ao mesmo tempo, a

professora parece ter se desculpado sobre a maneira como o aluno em

questão foi promovido para a 5a série:

“D.: Falava assim: “professora, eu precisei ficar quatro anos na

escola para esse ano aprender com a senhora”. Foi para a 5a

série; no começo não sabia ler, depois foi se aperfeiçoando e

acabou indo, com alguns erros ortográficos, mais foi a

instrução que a gente recebeu, a orientação recebida.”

108

Page 11: Document5

Outro fato marcante na convivência com os alunos que

compõem as Classes de Aceleração foram as histórias relacionadas aos

medos que eles possuíam.

A professora Célia se emocionou ao relatar uma dinâmica

relacionada aos medos, que foi realizada como atividade do conteúdo

curricular de Língua Portuguesa:

“Uma vez eu perguntei sobre os medos, então chegou a vez de

um aluno e ele falou “eu tenho medo de perder a minha

família, medo que alguém mate os meus irmãos”... depois eu

fiquei sabendo que ele tinha irmãos com problemas de drogas,

já haviam sido presos, ele já tinha fugido de casa, foi parar no

Rio de Janeiro, a polícia foi buscar, é por isso que ele tinha

medo de perder a família.”

5.1.3. Avaliação do processo de capacitação docente

Na avaliação sobre o processo de capacitação docente, algumas

professoras fizeram críticas específicas quanto à falta de discussão existente

nesse processo sobre a realidade do professor e de suas dificuldades,

principalmente, no tocante à resistência de alguns alunos em participar das

atividades propostas.

Para elas, durante as capacitações, não houve maior articulação

ou entrosamento entre a teoria e a prática:

“As capacitações são muito boas, porque levam as professoras

a crescer muito, refletir bastante, mas acho que é pouco o

tempo e que deveria ser discutida a realidade das professoras,

por exemplo: na hora de discutir textos, as professoras

deveriam discutir os textos produzidos pelos alunos.... Então, a

gente estaria trocando experiências da nossa realidade e lá

ficou muito longe. As capacitações que tivemos com o pessoal

do CENPEC foram melhores e as que foram feitas aqui mesmo

parece que não tinham novidade, que a pessoa estudou para

falar para você, a mesma coisa que se estivesse lendo um livro

e estivesse passando para você. Não tem experiência de sala de

aula, que é o que as professoras precisam, de experiência de

sala de aula, porque chegar e falar é muito bonitinho, é fácil

109

Page 12: Document5

falar. As capacitadoras falam assim: “você pega as fichinhas,

põe na mesa, faz um joguinho”. E não é como as capacitadoras

falam... os alunos falam que eles não querem fazer e não

fazem...” (professora Ana)

“Elas falam que é para colocar um textinho e a reescrita do

texto, agora como é que você vai fazer com todos os alunos a

reescrita de um texto?” (professora Bianca)

À primeira vista, pode parecer que as colocações das professoras

se relacionam a já conhecida reclamação dos docentes em relação a cursos

de capacitação: a falta ou a pouca prescrição de “receitas” metodológicas.

No entanto, também pode-se ponderar que a reclamação das

professoras se relacione menos à prescrição de receitas de uso prático e

mais à necessidade de uma aprendizagem situacional ou em contexto, um

tipo de capacitação onde o professor possa aprender as técnicas inserido em

um contexto o mais próximo possível da situação real, vivenciando a

prática de modo mais seguro e, se possível, acompanhado de tutores que

façam observações construtivas e que subsidiem as mudanças ou ajustes

necessários em sua maneira de atuar.

Nas falas das professora Célia e Ana, há uma crítica à

capacitação pelo acúmulo de informações e a necessidade de aplicação

imediata, pelo professor, do conteúdo trabalhado, sem que fosse possível

uma reflexão posterior por parte do professor sobre aquilo que estava sendo

discutido.

Para elas, como para qualquer estudante, é necessário um tempo

para que sejam processadas as informações recebidas no processo de

formação, assim como para a tradução dos conhecimentos teóricos e

metodológicos para a prática escolar:

“As capacitações eram atropeladas, tinha que ser tudo rápido,

porque o projeto estava sendo implantado, então aquilo tudo na

cabeça da professora, aí quando eu parei nas férias e comecei a

refletir, eu falei “ah, se eu for com calma parece que vai dar

certo.” (professora Ana)

110

Page 13: Document5

“Eu acho que a capacitação foi válida, só que eu penso assim:

que a gente tem que ter um tempo para refletir sobre o

aprendizado, então, de repente, era um monte de informações,

não dava tempo de trocar experiências, a gente não tinha tempo

de comentar nada, já voltava para sala sem essa pausa. Não sei,

eu, como estudante preciso de uma pausa para refletir sobre o

que foi aprendido para poder passar para frente e não foi isso

que aconteceu. Agora as capacitadoras eram muito boas, foi

muito bom. Eu só acho que houve pouco aproveitamento

devido às muitas horas seguidas e não ter tempo para

discussão.” (professora Célia)

As reclamações das professoras encontram respaldo na

afirmação de McDIARMID (1995) quanto à importância de que os

professores tenham tempo e condições mentais propícias para que seus

pensamentos sobre o ensino fiquem distantes das exigências físicas e

psicológicas da sala de aula.

Como as próprias professoras da Escola I afirmaram, não havia

tempo hábil para que elas pudessem “digerir” as informações recebidas nas

capacitações, muito menos possibilidade para refletirem sobre a nova

postura que deveriam assumir ao se comprometerem com o sucesso de seus

alunos.

5.1.4. Avaliação do projeto Classes de Aceleração

Houve consenso entre as professoras da Escola I sobre a

altíssima qualidade do projeto Classes de Aceleração.

Dentre os elogios feitos com relação ao projeto, a professora Ana

destaca a organização curricular, a qual facilitou o seu trabalho e direcionou

sua atuação. Acredita que o conteúdo e a proposta de trabalho por projetos,

que partem da realidade dos alunos, os torna mais críticos:

“... eu gostei muito da proposta, porque ela é muito boa... tem o

limite até onde vai a Aceleração I, tem os pontos de chegada,

que a gente encontra assim nos parâmetros: “a Aceleração I é

até aqui, a Aceleração II é daqui pra cá”. Eu achei ótimo, já

111

Page 14: Document5

vem tudo divididinho, você não tem que ficar perdida... e para

os alunos, é boa... resolve, faz eles se tornarem críticos. A

proposta em si é tornar os alunos críticos: quando ele vai

estudar História, Geografia e Ciências ele não vai estudar sobre

um lugar que eles não conhecem, parte da realidade deles, o eu,

minha família, meu bairro, minha cidade, meu estado, meu país

e vai abrangendo tudo.”

A professora Bianca, apesar de apreciar a proposta, tornou a

condicionar o sucesso das Classes de Aceleração ao desempenho do aluno,

ao seu interesse e vontade de aprender. Elogiou a qualidade do material

didático, especialmente os jogos pedagógicos.

No entanto, fez uma crítica sutil à coordenadora pedagógica, por

achar que ela estava “perdida” e não que solucionava as suas dúvidas:

“Em termos de proposta é rica, eu adorei, eu adorei os

livros, adorei tudo... é muito bom mesmo. Se você pegar

aluno que tenha vontade, mas vontade mesmo, sabe

aqueles alunos que mostram interesse, a gente cresce,

mas cresce mesmo... É a vida do aluno inteirinha,

começa do comecinho, da identidade dele, desde de

quando ele nasceu, da certidão de nascimento dele,

começa do começo até o fim... Os jogos são ricos, mas se

você dá os joguinhos pra eles, eles não se interessam... e

os jogos são ótimos, eu mesma adorei, eu me apaixonei

pelos joguinhos. Eu gostei da coordenação, mesmo por

que até, é nova, nova, ficou perdida igualzinha a nós...

quando eu ia pedir “como que faz isso?”, “não sei”,

“como que é pra fazer aquilo?”, “ah...” Perguntava, como

agora, a gente tem que encaminhar os alunos, não é pegar

essa fichinha e mandar os alunos fracos para

recuperação, nós temos que ver porquê o aluno não

conseguiu aquilo, tem que sentar o professor mais o

coordenador, mas ela não tem tempo.” (professora

Bianca)

Célia considerou o projeto muito moderno e avançado, não só

em termos metodológicos, como também em relação ao material.

112

Page 15: Document5

Colocou que a vivência como professora de uma Classe de

Aceleração modificou a sua visão sobre a movimentação física e a

manifestação verbal dos alunos, anteriormente percebida como uma ameaça

à disciplina ou ao silêncio dentro de sala de aula, passou a encará-la como

uma característica do processo de ensino - aprendizagem, em uma

abordagem que valoriza a participação dos alunos:

“Eu acho muito boa, eu acho que os livros são muito bons, a

forma de trabalhar também, que tudo se modernizou e a escola

tem também de se modernizar. Eu acho que é muito válido

porque o que eu usei para esse ano, foi minha sorte. A gente,

quando está dando aula, é importante para a gente parecer para

os outros que estão lá fora, aquele silêncio das crianças, aquela

classe bem comportada, todo mundo sentadinho, e na classe de

Aceleração você não conseguia isso porque eles eram alunos

que não tinham essa quietude, eram alunos que andavam

muito, falavam muito, interrompiam. Então, eu aprendi

também, além dessas coisas que já falei, se eles estão

participando da aula não é importante o silêncio, se a discussão

for feita de acordo, naqueles moldes que a gente está propondo,

eles tem mais que se manifestar.” (professora Célia)

A fala da professora Célia aponta duas questões importantes, que

se encontram relacionadas. Ao colocar que “é importante para a gente

parecer para os outros que estão lá fora aquele silêncio das crianças,

aquela classe bem comportada, todo mundo sentadinho”, pode estar

apontando a existência de uma cultura escolar onde o trabalho do professor

e do aluno é visto dentro de perspectiva bastante rigorosa mas que, ao

mesmo tempo, existiria, por parte do professor, uma necessidade de

valorização de sua atuação por essa mesma cultura.

Diante do questionamento sobre possíveis dificuldades para

atuar de acordo com o projeto Classes de Aceleração, a professora Ana

novamente enfatizou o trabalho de resgate da auto - estima dos alunos, os

quais, segundo ela, já haviam introjetado em si o rótulo de “burro”:

113

Page 16: Document5

“... o difícil mesmo é lidar com as crianças, é recuperar a auto -

estima delas; hoje eu falei “você acha que você vai para a 5 a

série?”, “não, eu não vou para a 5a”. “Por que você não vai?”

“É porque eu sou burro”. É porque isso ainda não saiu da

cabeça dele, acho que escutou tanto, “você é burro, você é

burro, você é burro”, que incorporou... Eu acho que o mais

difícil mesmo é lidar com as crianças, tentar levantar a auto -

estima e fazer com que eles colaborem, é muito difícil a

participação deles...”

A fala da professora pode ser melhor compreendida se for

reportada à análise das aulas observadas, nas quais a professora procurava,

ainda que de maneira irregular, resgatar a auto - estima de seus alunos e

incentivar a sua participação nas atividades realizadas.

Para a professora Bianca, as dificuldades para atuar de acordo

com a Proposta Pedagógica Curricular das Classe de Aceleração foram

gerais.

Atribuiu como causa para essas dificuldades as características de

seus alunos, principalmente, à falta de interesse. Fez uma avaliação bastante

negativa em relação à classe, apresentando, na maioria dos seus

comentários sobre a turma, idéias bastante preconceituosas e

discriminatórias. Isto fica evidente quando diz que se estivesse em uma

classe do ensino regular, com certeza os alunos teriam um bom

aproveitamento.

Em vários momentos, a professora utilizou expressões a levaram

a crer na existência que ela possuía uma percepção e um vínculo afetivo

bastante negativo em relação aos seus alunos, além de uma excessiva

idealização do processo de ensino - aprendizagem, expresso pela última

frase do depoimento abaixo:

“Eu senti muita dificuldade mesmo, eu acho que os alunos não

têm interesse por nada, você pode trazer cartaz, falar, eles não

tem auto - estima, não tem vontade, falta de interesse, não

adianta você fazer ... o material é rico, se eu pegar uma classe

114

Page 17: Document5

de 3a ou 4a série com uns livros desses ali, um material rico

assim, eu acho que eu caminho bem, até uma 2a, mas olha esses

alunos eles vêm já analfabetos, não sabem nada e são alunos de

idade avançada, eles não têm interesse por nada. Agora, se

pegar um aluno, uma classe boa...” (professora Bianca)

Ao se referir à ausência de auto - estima dos alunos, a professora

Bianca, aparentemente, ignorou que com relação à auto - estima, sua

ausência ou rebaixamento não é uma questão de caráter ou personalidade,

de se querer ou de não se querer ter, mas sim relacionada às vivências dos

alunos, marcadas geralmente por uma história acadêmica desgastante.

A afirmação abaixo parece evidenciar que a professora Bianca

atribui o fracasso escolar não só ao aluno como à sua família, assim como

parece compartilhar da idéia de que as classes populares não valorizam o

ensino formal:

“Os pais não têm interesse por nada, eles não motivam a

criança em nada. Eu acho que os pais não dão continuação para

as crianças em casa, “como foi hoje?” A criança chega em

casa, joga a bolsa e vai brincar, não estão nem aí. A mãe

deveria vir, ela não vem saber se o filho está bem, se não está

bem, o que está precisando...” (professora Bianca)

A professora Célia, por sua vez, levantou uma questão

importante em sua avaliação sobre as dificuldades para atuar de acordo com

o projeto de Aceleração: o conflito do professor diante da necessidade de

mudar o paradigma teórico - metodológico de sua prática. No seu caso

específico, a mudança de uma prática educacional enraizada no ensino

tradicional e na visão do professor como transmissor do conhecimento, para

uma prática fundamentada no construtivismo, com ênfase na atividade do

aluno, no trabalho por projetos e na concepção do professor como mediador

do processo de apropriação do conhecimento por parte dos alunos.

As professoras Ana e Bianca também se referiram,

especificamente, a dificuldades em trabalhar com o construtivismo sócio -

115

Page 18: Document5

histórico, o fundamento teórico - metodológico da Proposta Pedagógica

Curricular das Classes de Aceleração.

A professora Bianca deixou claro que não aceitava muito bem as

recomendações construtivistas, chegando a propôr a retomada do ensino

tradicional em sua classe, pelo menos até que os livros didáticos do projeto

de Aceleração chegassem:

“No comecinho, antes de chegar os livros por que não pode

alfabetizar como nós fomos alfabetizadas? Fala pra mim,

Juliana? Eu não entendo isso, agora não pode xerocar mais

nada... mimeografar mais nada... a supervisora pegou a minha

pasta e disse: “nossa senhora, isso não está certo, isso não, isso

não, isso não, isso não”. Eu não sei qual é, eu não sei como,

porque primeiro que você passa no mimeógrafo e dá, ali você

vai explicando eles vão até fazendo, mas não fazer mais nada

no mimeógrafo, mais nada, nada...”

Acredita-se que a proibição para a confecção do material

didático via xerox e mimeógrafo não diz respeito ao material em si, mas a

um desvirtuamento de seu uso por parte do professor pois, em nossa

opinião, o problema central não parece estar no tipo de material utilizado

mas, sim, em como o professor o utiliza. Dessa forma, é possível utilizar-se

um texto xerocopiado como material didático, desde que se oriente a

criança para que ela, a partir deste material, seja capaz de construir o seu

próprio conhecimento. Por outro lado, a atitude da professora Bianca em

fazer uso do texto xerocopiado, poderia ser decorrente de sua insegurança

diante da atividade proposta, da sensação de estar “sem chão” para fazer o

seu trabalho e, principalmente, sem a possibilidade de apelar para o uso de

estratégias conhecidas e, sobretudo, testadas por ela.

A professora Ana fez uma crítica já conhecida nos meios

educacionais sobre a aplicação do construtivismo nas escolas, ou seja, que

na verdade não existe a prática de um construtivismo “puro” nas salas de

aula:

116

Page 19: Document5

“É o construtivismo, só que é muito difícil de entender o

construtivismo... porque eu acho que ainda não existe aquele

construtivismo puro, é uma mistura e a gente ainda está

perdido nisso daí. O referencial para trabalhar com

construtivismo são os livros mesmo, o material todinho, os

joguinhos são construtivistas... é que na cabeça dá um

choque...”

As colocações das professora quanto às dificuldades para se

adaptar ao Construtivismo parecem refletir a dificuldade de adaptação a um

outro método de ensino, bastante diferente do ensino tradicional, o qual é

conhecido pelos professores e fácil de ser realizado. Segundo a O.C.D.E.

(1992: 161):

Ensinar as matérias tradicionais e aplicar os bons velhos métodos de avaliação era relativamente simples: o docente possuía uma certa soma de conhecimentos (a maioria das vezes, informações concretas) que deviam ser assimilados e reproduzidos pelos alunos. A tarefa do mestre consistia em apresentar este saber sob uma forma assimilável, memorizando os alunos a informação e, ao fim de um certo tempo, o mestre controlava a sua memória. Era fácil desempatar as respostas correctas das falsas e classificar os alunos.

Outra dificuldade importante, colocada pela professora Célia, foi

a aparente falta de infra - estrutura da Escola I para a realização de algumas

atividades previstas no planejamento das Classes de Aceleração:

“Os livros da Classe de Aceleração são trabalhados como

projetos, diversos projetos e eu vim ainda daquela forma

tradicional de se trabalhar, então, às vezes, eu sentia

dificuldade de poder “bolar” a aula do jeito que estava no livro

e tinha também algumas atividades que não eram adequadas à

escola, por exemplo, um ambiente escuro (teria que usar

lanterna) era uma atividade que tinha no livro e a dificuldade

que a gente tinha de arrumar um ambiente escuro na escola.

Certas atividades que precisava ter certos materiais que na

escola não tinha. Nesse tipo de coisa que a gente sentiu

dificuldade.”

117

Page 20: Document5

O que as professoras faziam para tentar superar as dificuldades

encontradas na prática das Classes de Aceleração?

Dentre os recursos elencados por elas, havia o registro por

escrito de suas dificuldades num diário, a leitura de textos técnicos e,

principalmente, a troca de idéias e de soluções entre as próprias professoras.

A professora Ana afirmou, veementemente, que não existia a

quem recorrer em caso de dificuldades:

“Não tem ninguém. Quando nós fizemos a capacitação o ano

passado, com a supervisora, ela falou para a gente assim

“quando vocês quiserem desabafar vocês escrevam, porque vai

ser muito difícil”. Não tem a quem recorrer e, então, a gente

escrevia muito o ano passado, acabava de dar a atividade,

aquele dia foi assim. Aí você pegava o papel, escrevia,

escrevia, escrevia, escrevia, e pronto, desabafava o que tinha

acontecido na sala, fazia um desabafo, e no dia seguinte, bola

pra frente...”

A prática de elaborar registros é altamente recomendada pelos

idealizadores do projeto de Aceleração, como uma ferramenta de grande

auxílio para a avaliação não só da evolução dos alunos, como também do

professor.

Segundo as “Orientações para a Capacitação de Professores”

(SÃO PAULO - Estado, 1999: 40):

(...) os registros permitem acompanhar a aprendizagem, analisar o aproveitamento dos alunos e redirecionar o planejamento de ensino. Com essa prática, aliada à discussão freqüente com os alunos dos dados colhidos, eles poderão acompanhar a própria evolução, tornando-se conscientes e autônomos em seu percurso escolar.

Apesar da importância de se registrar as dificuldades da prática

docente, é necessário ressaltar que somente o uso do registro não garante

que os problemas do professor sejam solucionados.

Ainda sobre o suporte para a superação das dificuldades, a

professora Ana complementou:

118

Page 21: Document5

“Não tem ninguém para recorrer, porque todo mundo tem só a

teoria, não tem a prática, então é fácil falar para você “sai por

aqui, faz assim, assim”. Se eu não conheço os seus alunos,

então, não tem a quem recorrer. Eu acho que precisaria de mais

apoio, união; a gente recebe uma boa capacitação, mas

precisaria discutir “olha, não está dando isso, como que eu

tenho que fazer”, “eu não estou conseguindo, o que eu tenho

que fazer com esse aluno?” e elas respondem “como? você

pega a fichinha e faz com ele, pega o textinho e faz a

reescrita”... não é isso que eu quero saber.”

A reclamação da professora Ana parece remeter ao clássico mal -

entendido onde aqueles que agem consideram os especialistas como

idealistas que não conhecem nada da realidade prática e, em contrapartida,

os que refletem acreditam que os que agem são ignorantes (HUTMACHER

in NÓVOA, 1995).

Todavia, a professor Ana identifica dois pontos de apoio muito

importante para superar as dificuldades do dia - a - dia e para responder as

suas inquietações: a interação com as colegas de profissão e as leituras

realizadas por ela. Em suas próprias palavras:

“O que eu faço?, me ajuda, me dá uma luz”, nessa parte

que eu não encontrei (a capacitação), eu encontro assim

conversando muito com as minhas colegas e lendo. Li

tanto que eu estou até...”

A posição da professora Ana também é reforçada pela professora

Célia: “Não tinha assessoria nenhuma para isso, então eu e a Ana, a gente

dividia muito isso, a gente sentava e via como é que poderia estar

trabalhando.”

Diante da ausência de assessoria e de apoio externo, é

interessante ressaltar como as próprias professoras acabaram estabelecendo

um ambiente de trocas e de apoio mútuo.

Solicitou-se às professoras que fizessem suas críticas sobre o

projeto e que dessem sugestões para o seu aperfeiçoamento.

119

Page 22: Document5

Ana fez aponta uma contradição de ordem metodológica,

referente ao formato do material didático pois, de acordo com as

orientações recebidas, os professores sempre deveriam escrever com letras

bastão maiúsculas, apesar do fato de que o material com que trabalhavam

apresentasse outros tipos de fonte, inclusive a letra cursiva:

“Sugeri que os livros que devem ser trabalhados no primeiro

semestre com os alunos sejam em letra bastão, que é o alfabeto

maiúsculo, já que o livro é todo em minúsculo e as atividades

são todas diferentes...”

A professora Célia, por sua vez, fez críticas relevantes acerca do

sistema de atribuição de aulas, o qual, segundo ela, não possibilitou a

permanência de professores não efetivos nas Classes de Aceleração:

“O ano retrasado eu estive com as salas de aceleração, no final

do ano praticamente é que eu fui entender muitas coisas, e no

ano seguinte foi dado para outras professoras começarem tudo

de novo... agora, o ano que vem serão outras... você acaba não

tendo o começo e o fim bem determinado... a partir do

momento em que eu estava apta a fazer uma aplicação, não

sobrou classe, não fizeram nenhuma diferenciação, que

podiam, de repente, terem feito: quem deu aula na classe de

aceleração esse ano vai ser atribuído. Eu acho que seria uma

coisa justa porque foi um “abacaxi” que ninguém quis pegar e

de repente a gente pego, suou, como a gente estava mais seguro

do que a gente ia fazer, foi podado.”

O paradoxo dessa situação parece estar claro: investe-se muito

na capacitação do professor, discursa-se sobre a importância de seu trabalho

no projeto de Aceleração mas, apesar de todo o investimento feito, não há

um esforço da direção escolar (que tem a prerrogativa na atribuição das

classes) ou, até mesmo, a mudança dos mecanismos burocrático -

administrativos, de forma a mantê-lo por mais tempo junto aos

alunos das Classes de Aceleração.

120

Page 23: Document5

5.1.5. Reações da equipe escolar, alunos e pais em relação ao

projeto, sob a ótica das professoras

Das duas professoras de Classes de Aceleração da Escola I,

somente a professora Ana fez considerações sobre as reações da equipe

escolar, dos próprios alunos e de seus familiares quanto ao projeto de

Aceleração:

“Eu acho que o ano passado as outras professoras acolheram

melhor. Esse ano eu já achei meio no esquecimento; eu achei

que os funcionários e professores não fazem diferença, por ser

Classe de Aceleração, os funcionários nem perceberam... Eles

acharam que as crianças eram diferentes, mas não sabiam no

quê elas eram diferentes... Ás vezes falavam que eu sou

baixinha e tenho alunos altos, “ah, a professora fica escondida

no meio dos alunos”, então eles não perceberam o que era a

Aceleração, mas eles sabiam que os meus alunos eram uma

classe diferente...”

Na análise realizada por ela, discorreu sobre o envolvimento do

diretor da Escola I na implementação das Classes de Aceleração, e o

desapontamento da professora diante de seu posterior afastamento:

“O diretor esse ano se afastou um pouco porque o ano passado

ele foi muito criticado pelas outras professoras, porque

participava muito da Classe de Aceleração e recebeu críticas

por causa disso, ele se afastou... Então nós ficamos soltas, eu

acho que no ano passado ele tinha mais pulso com a gente, eu

acho que ele entendia mais a parte pedagógica da Classe de

Aceleração, ele tem uma cabeça muito boa para a parte

pedagógica. Eu vou sentir a falta dele porque ele me leva a

refletir muito, leva muito à reflexão. O ano passado ele fez a

gente entender o que era um aluno silábico, que lá estava tudo

muito confuso, silábico, pré - silábico, alfabético, ortográfico;

ele fez a gente ler livros, trouxe apostilas e deu pra gente ler... e

eu acho que foi o ano passado que eu cresci mais... Esse ano

pouca coisa foi acrescentado, e eu acho que ele fez muita

falta...”

121

Page 24: Document5

Pode-se perceber, pelas colocações acima, que o diretor da

Escola I agiu como uma espécie de tutor para a professora Ana,

estimulando um processo de reflexão - sobre - a - prática, seja por meio de

aconselhamentos ou quando deu a ela literatura de apoio. Em sua fala, a

professora vem reforçar a importância de uma direção escolar atuante no

contexto de um projeto educacional de superação do fracasso escolar.

O afastamento do diretor, devido aos ciúmes dos outros

professores, parece ser um dos fatores explicativos para o desinvestimento

da professora com o seu trabalho nas Classe de Aceleração.

Nessa perspectiva, é interessante colocar outra questão surgida

em relação ao vínculo entre as professoras das Classes de Aceleração e as

das classes regulares da Escola I.

De acordo com o depoimento das professoras, num primeiro

momento, parece ter havido, de fato, um clima de descontentamento dos

professores das classes regulares quanto à atenção e aos “privilégios” que

os professores das Classes de Aceleração receberam, em relação ao número

de alunos por sala, à capacitação bimestral e ao material específico (jogos

pedagógicos, assinaturas de jornais e livros). Num segundo momento,

parece ter existido um movimento de aproximação desses mesmos

professores em relação aos das Classes de Aceleração, mediante o pedido

de empréstimo de material e a busca de orientações teórico - metodológicas:

“Os outros professores? O ano passado tinham ciúmes... agora,

esse ano não, esse ano inclusive elas queriam material, “a hora

que sobrar você vai passando pra mim”. Eu recebi colegas

minhas que quiseram os livros pra ler, eu emprestei os livros,

porque eu não tenho tempo pra ler, vieram uns 10 livros. Então,

a gente está lendo um, às vezes nem dá pra ler, e já pediram,

distribui livros... Mas, o ano passado o ciúme era grande...

vinha assinatura de revista, “ah, mas só pra elas, por que a

gente não tem? Por que só para elas, o que acontece com a

gente?”, todo livro quando viam as caixas chegando... “por que

para elas?”, era assim, esse ano não...” (professora Ana)

122

Page 25: Document5

5.2. A prática pedagógica em uma Classe de Aceleração

No quarto capítulo foi dito que apenas a professora Ana, da

Classes de Aceleração da Escola II, havia permitido a realização de análises

sobre a sua prática pedagógica, mediante a observação de aulas. Esta seção

é dedicada à descrição e análise da prática dessa professora.

Em primeiro lugar, é necessário caracterizar-se a turma de alunos

da professora Ana: vinte e quatro alunos, sendo treze meninos e onze

meninas, com a faixa etária variando de dez a dezesseis anos e média de

idade de doze anos. A média de retenções dos alunos era de quatro vezes,

com exceção de um rapaz de dezesseis anos que estava fora da escola e, ao

retornar, ingressou na Classe de Aceleração da referida professora.

Segundo a professora, os alunos eram oriundos de classes sociais

desfavorecidas e a maioria dos pais trabalhava na construção civil ou mão -

de - obra operária nas indústrias locais.

A rotina diária de trabalho na Classe de Aceleração consistia em:

estudar o Calendário, onde eram verificados o dia, o mês, o ano e o clima

do dia; conferir a tarefa de casa; registrar, no canto da lousa, das atividades

a serem realizadas no decorrer da aula: Português, Matemática, História,

Geografia e Educação Artística.

O estabelecimento de uma rotina de trabalho pode ser

considerado como um elemento fundamental na organização do trabalho da

Classe de Aceleração. De acordo com a análise de SOUZA, VIÉGAS &

BONADIO (1999), a rotina de trabalho possibilita o estabelecimento, entre

os alunos, de um domínio mais amplo do funcionamento da sala de aula,

possibilitando o conhecimento da natureza e do tempo destinado a uma

dada atividade do dia, dentre outros aspectos.

Outros rituais específicos faziam parte da rotina da Escola I, por

orientação da direção. Todas às segundas - feiras, através do sistema de

som, a coordenadora pedagógica avisava que era o momento da entonação

do Hino Nacional. No primeiro dia da semana, também havia o

123

Page 26: Document5

“relaxamento”, com duração de trinta minutos, realizado pela coordenadora.

Os alunos sentavam-se nas cadeiras e deitavam as cabeças nas mesas,

seguindo as orientações para “soltarem o corpo”, “relaxarem a mente” e

“pensarem em coisas boas”. No entanto, as músicas vindas dos alto -

falantes pareciam ser muito altas e inadequadas a um trabalho dessa

natureza.

Enquanto a coordenadora ia dando as instruções para a atividade,

algumas crianças escreviam, mexiam em seus materiais ou conversavam

entre si e com a professora. Durante a sessão de relaxamento, a professora

praticamente não interferia no que os alunos faziam.

A rotina parecia ser muito valorizada na Classe de Aceleração da

professora Ana, em detrimento de certos momentos de descontração que, na

análise da pesquisadora, também mereciam ser aproveitados e trabalhados

como oportunidades para os alunos expressarem as suas idéias, contarem as

suas histórias e de se abordarem conteúdos tão importantes como aqueles

listados na lousa todo início da manhã.

A metodologia de ensino e a abordagem dos conteúdos

curriculares serão tratados a seguir.

A Proposta Pedagógica Curricular das Classes de Aceleração

afirma que se deve considerar como conteúdo curricular mais do que os

temas, assuntos e informações a respeito de um determinado objeto do

conhecimento, mas também os conceitos, habilidades, hábitos, valores e

atitudes a serem trabalhados pelo professor, com a finalidade de formar

alunos democráticos, criativos, participantes e autoconfiantes (SÃO

PAULO - Estado, 1997a).

O conteúdo abordado, após a análise do calendário e a

verificação da tarefa de casa, era a Língua Portuguesa. Quanto a esse

conteúdo específico, a Proposta Pedagógica Curricular (SÃO PAULO -

Estado, 1997a: 26) recomenda que o mesmo seja desenvolvido

124

Page 27: Document5

(...) através da leitura e produção de textos variados e da vivência de atos de leitura e escrita significativos, sempre numa relação de diálogo: ler e escrever para quem?, para quê?, o quê?, por quê?

Na maioria das aulas observadas, a estratégia de ensino utilizada

pela professora para mediar a apropriação do conteúdo pelo aluno foi a aula

expositiva dialogada.

Em geral, a professora reproduzia o conteúdo do Livro do Aluno

na lousa e realizava a atividade junto com eles, destacando os pontos

principais do conteúdo no decorrer do processo.

Como ilustração desse tipo de prática da professora, tem-se a

análise de uma carta comercial:

A professora avisa que irão fazer a tarefa da carta comercial e

solicita aos alunos que, diante do documento:

- encontrem e circulem o local e a data da carta;

- encontrem o destinatário;

- definam o que é a evocação;

- definam o que é a despedida;

- encontrem o remetente.

- definam qual o conteúdo da carta.

A professora pergunta aos alunos qual o conteúdo da carta e

eles não respondem. Ela pede que todos leiam a carta. Pinça a

expressão: “exercer a função”. Exemplifica: “eu sei exercer a

função de ...”

Pergunta à turma, mas não respondem. A professora faz uma

expressão de insatisfação.

Pinça: “venho pela presente”. “O que significa a palavra

presente aqui?”

Vai lendo a carta e dando explicações para os termos que vão

aparecendo: anexo, apreciação, apto. Volta à questão do

conteúdo: “O que está falando nessa carta?” Os alunos

respondem coisas como “emprego”, “quer trabalhar”, “não tem

experiência.” Pergunta: “O que é auxiliar de escritório?”

Respondem: “Secretária, caixa.” Finalmente, a professora

escreve na lousa o conteúdo da carta:

fazendo um pedido de emprego

125

Page 28: Document5

A descrição da atividade acima torna-se significativa na medida

em que a maioria das questões levantadas pela professora foram

respondidas pelos alunos com grandes dificuldades.

Mas, mesmo diante das dificuldades de entendimento e de

expressão oral dos alunos, a professora sempre procurou valorizar a fala dos

alunos, através da formulação de perguntas, da leitura e da interpretação dos

textos, partindo de suas próprias idéias e conceitos, como na seguinte

situação:

A professora vai à lousa e escreve:

Fui a uma festa de aniversário e lá tinha: .....

Pede que as crianças relacionem por escrito tudo aquilo que

acham que há em uma festa de aniversário. Estimula, dá

dicas... Atende individualmente alguns alunos. Senta junto ao

aluno mais velho da classe, que apresenta dificuldades na

escrita e faz algumas correções na sua tarefa, procurando fazer

com que ele mesmo compreenda o que escreveu nas palavras

erradas e que encontre os próprios erros.

A professora volta à lousa e escreve as palavras encontradas

pelos alunos: Bolo, vela, presente, balão, suco

O próximo assunto a ser tratado, na seqüência curricular, era a

Matemática e, para esse conteúdo específico, os objetivos a serem

alcançados eram norteados pelas seguintes concepções: a Matemática deve

capacitar o ser humano a lidar com situações do cotidiano e desenvolver o

seu raciocínio lógico, além de servir como instrumento de comunicação e

leitura do mundo.

A metodologia de ensino sugerida pela Proposta Pedagógica

Curricular para o ensino de Matemática era o trabalho com situações -

problema, a partir da proposição de questões, da resolução das questões

propostas, do questionamento das respostas obtidas e da própria questão

original.

Portanto,

126

Page 29: Document5

resolver um problema significa não apenas compreender o que é exigido, aplicar as técnicas ou fórmulas adequadas e obter a resposta correta, mas também assumir uma atitude de “investigação científica” em relação àquilo que está pronto. (SÃO PAULO - Estado, 1997a: 47)

Seguindo tal recomendação, a professora trabalhava o conteúdo

de Matemática através da resolução de situações - problema ligadas aos

temas de cada módulo. Estimulava constantemente a participação dos

alunos, por meio de questionamentos:

A professora diz que vão iniciar agora a resolução da situação -

problema. Pega no armário as folhas, rodadas em mimeógrafo,

com a atividade. Vai à lousa e reproduz o conteúdo da folha:

Números do Paulista

1995 1996

média de público média de gols

6742 5853 2,42 3,06

A seguir, pede que respondam as seguintes questões:

a) De que trata o gráfico? b) Qual é o título do gráfico?

c) A pesquisa para fazer o gráfico usou dados de que anos?

d) Em que ano houve maior público nos estádios (ver gráfico)?

e) Quanto diminuiu o público nos estádios entre 1995 e 1996?

f) O que quer dizer média de gols?

g) Qual a média de gols no campeonato de 1996? E no ano de

1995?

Enquanto a professora lê as questões vai esclarecendo os

detalhes, como a nomenclatura e reforça aqueles que

respondem corretamente.

Os alunos apresentam maior dificuldade para compreenderem a

questão e). A professora explica que para se saber a diferença

127

Page 30: Document5

de pessoas entre 1995 e 1996, é necessário fazer uma

determinada operação matemática e estimula os alunos a

responderem qual é a operação em questão. Alguns alunos

respondem corretamente.

A seguir, ela passa a resolver todas as questões na lousa, junto

com os alunos.

A professora também recorria freqüentemente a esquemas

explicativos para abordar o conteúdo em determinadas atividades. Em uma

aula de Ciências, sobre o Ciclo da Água, após a leitura coletiva e a

interpretação do texto, a professora foi à lousa e desenhou um esquema

explicativo daquilo que tinha sido lido até então:

Nuvem carregada de gotas de chuva

vapor chuva

terra

Um aluno pergunta como chama quando “tem chuva forte com

pedrinhas” e a professora responde: “granizo”. Pergunta à

classe: “como se chama então isso que eu expliquei aqui na

lousa?” Alguns alunos respondem: “ciclo da água.”

Apesar de muitas vezes apresentar dificuldades para sair do

padrão “leitura, interpretação, perguntas e respostas”, a professora Ana

demonstrava, em determinadas ocasiões, capacidade de improvisação para

exemplificar, o que facilitava a compreensão dos alunos e também

surpreendia e divertia a turma:

A professora pede para que os alunos abram o Livro do Aluno

na página 63, item “Figuras e Propriedades”. Desenha na lousa

1 retângulo, 1 quadrado e 1 triângulo. Pede para os alunos

128

Page 31: Document5

nomearem as figuras e eles o fazem corretamente. Pede que

observem as propriedade de cada figura, seguindo as instruções

do livro.

Lados: pede para que escrevam quantos lados têm cada figura

da lousa e depois, coloca no quadro os dados apontados pelos

alunos.

Pede para que procurem as outras propriedades no texto:

conceito de par. “O que é um par?”, pergunta. Os alunos

permanecem em silêncio. Depois de uma pausa, a professora

prossegue e pede para que as crianças identifiquem os lados

iguais no retângulo.

2 cm

4 cm

Pergunta quantos lados tem um par. Pergunta quantos lados

têm dois pares. Os alunos mostram dúvidas e debatem entre si.

Pergunta: “quantos pares de lados iguais a figura tem?”

Na hora de aplicar o conceito de par à figura, os alunos

apresentam respostas diferentes e se dividem entre si, pois um

grupo acha que é um par, o outro que são dois pares. A

professora pede para que as crianças que acertaram expliquem

o seu raciocínio, mas essas têm dificuldade. A professora

retoma o conceito de par na figura geométrica de outra

maneira: 1 par - 2 lados iguais 2 pares - 4 lados iguais

Volta à figura. A professora desafia e anima a classe: quer que

cheguem a resposta correta. Só alguns participam. A professora

dá exemplos das figuras geométricas existentes na sala de aula:

lousa, porta, janela, armário, mas os alunos continuam em

dúvida. Então, depois de alguns segundos, a professora tira o

próprio par de sapatos para explicar o conceito! Todos se

surpreendem com a atitude inesperada da professora e dão

muitas risadas...

Ao tirar os sapatos para exemplificar o conceito de “par”, a

professora estava recorrendo ao conhecimento prévio dos alunos, para

129

Page 32: Document5

aquilo que faz sentido e tem um significado em suas vidas cotidianas, assim

como se utilizasse a idéia de um par de olhos, um par de orelhas ou um par

de luvas.

Também parece possível que a professora tenha elaborado essa

solução exatamente porque a maneira pela qual ela estava ensinando o

conceito de par não parecia estar dando resultados.

O que intriga é que a estratégia da professora poderia ter sido

utilizada como o ponto de partida para a explicação do conceito de par e

então, aplicada ao estudo da figura geométrica. Essa inversão, na opinião da

pesquisadora, poderia facilitar muito mais a compreensão dos alunos sobre

o conceito em questão.

A Proposta Pedagógica Curricular das Classes de Aceleração

(SÃO PAULO - Estado, 1997a) afirma que a avaliação da aprendizagem

dos alunos deve ser considerada como um processo contínuo para

estabelecer diagnósticos e para realizar o acompanhamento da

aprendizagem da classe, sempre a favor do aluno e respeitando o seu ritmo

de aprendizagem.

Dessa maneira, partindo da concepção de que a aprendizagem

não é uma fato repentino mas um processo que requer tempo,

(...) a avaliação não pode se deter em resultados ocasionais, mas deve acompanhar a aprendizagem, o que leva à necessidade de se observarem o caminho, as dúvidas e os progressos, assim como os resultados alcançados (SÃO PAULO - Estado, 1997a: 18).

Para cada conteúdo curricular são estabelecidos marcos de

aprendizagem, os quais pautam a conduta avaliativa do professor em

relação a cada aluno. O registro do trabalho torna-se um instrumento

indispensável e o professor o organizará reunindo observações regulares

sobre cada um dos alunos, tanto em relação às suas produções, quanto ao

resultado de avaliações individuais.

Um outro recurso importante é aquele que diz respeito ao

percurso do trabalho do professor, onde são registrados os caminhos bem -

130

Page 33: Document5

sucedidos ou inadequados, subsidiando melhor adequação do processo

pedagógico.

Assim, a professora procedia o registro periódico do avanço dos

alunos, a partir de todas as suas produções, dos trabalhos realizados dentro

da sala aula ou fora da escola, através da conferência da tarefa de casa.

Era freqüente observar a professora registrando por escrito o

aproveitamento da turma, ao término de cada etapa da aula ou antes do

intervalo. Ela também revelou que escrevia muito em casa, mas não foi

possível ter acesso a esses registros, apesar de ter sido solicitado algumas

vezes.

Quanto ao incentivo à participação da turma, a professora

tentava garantir que todos os alunos participassem da aula limitando,

algumas vezes, a participação de uma mesma criança, considerada pela

turma como boa aluna em determinada matéria. Isso acontecia muitas vezes

nas resoluções de problemas de Matemática, quando os alunos pediam para

a professora que chamasse sempre uma determinada aluna e, diante desse

pedido dos alunos, ela dizia que não chamaria a aluna porque ela era tímida

e que outro aluno deveria ir à lousa.

Durante o período de observação, percebeu-se que a professora

procurava, em várias oportunidades, incentivar a participação dos alunos na

realização das atividades mas, mesmo diante de seu esforço, poucos alunos

participavam das atividades. No entanto, a ausência de participação dos

alunos não parecia incomodar tanto a professora quanto o fato de que os

alunos que efetivamente participavam não emitiam as respostas corretas, o

que chegou a provocar manifestações explícitas de frustração por parte da

professora:

Diante de um aluno que montara na lousa uma conta de

subtração com os valores invertidos, a professora coloca que há

algo errado e pede para que ele e os outros alunos verifiquem

onde está o erro. Todos permanecem em silêncio. Depois de

um breve intervalo, Ana coloca para a classe, em tom de

131

Page 34: Document5

desânimo: “eu não sei qual é o problema com vocês porque lá

no curso eles dizem para passar o problema e ficar discutindo

com os alunos que eles dão a resposta. Cadê a resposta?!”

Todos permanecem em silêncio.

Com relação à reação de frustração e impaciência da professora,

a Proposta Pedagógica Curricular das Classes de Aceleração (SÃO PAULO

- Estado, 1997a: 47) coloca que

Deve ficar claro que trabalhar com resolução de problemas requer paciência, pois essa atividade demanda muitas idas e vindas, cabendo ao professor orientar os alunos sem atropelar o processo de criação. Cada nova colocação sobre um problema requer tempo para que os alunos compreendam e se decidam por condutas de ação, nem sempre as mais eficientes e às vezes até incorretas.

No entanto, era freqüente perceber-se que diante da ausência de

respostas dos alunos para os seus questionamentos, a professora parecia

desanimar e, algumas vezes, chegava a se irritar com a turma.

Diante das negativas de participação por parte de certos alunos, a

professora não insistia e, por vezes, acabava reforçando a atitude deles:

Um dos alunos que durante praticamente toda a aula não

realizou nenhuma atividade, diz que está com calor (a sala é

muito mal ventilada e a porta está fechada, realmente está

quente) e a professora, um pouco irritada, diz para ele deitar na

carteira e dormir.

A atitude da professora em relação à participação dos alunos no

processo de ensino - aprendizagem mostrou-se instável pois, várias vezes,

ela aparentemente se esforçou muito para que eles se expressassem e, em

outros momentos, nem chegou a insistir na sua participação, passando

rapidamente para outra atividade. No entanto, a instabilidade pode ser

considerado como parte da natureza da atividade docente.

O clima de trabalho entre alunos e professora era, em geral,

descontraído e, em alguns momentos, conflituoso, como se viu

anteriormente.

132

Page 35: Document5

Os alunos conversavam entre si num tom de voz adequado,

movimentavam-se bastante pela sala para buscar objetos com outros

colegas e com a professora, faziam brincadeiras entre si, sem maiores

conseqüências.

A professora estimulava esse clima de descontração, fazendo

brincadeiras com os alunos, mesmo durante as atividades:

A professora pede para que os alunos abram os livros numa

página onde há uma história em quadrinhos com reproduções

de obras de arte (Mona Lisa de Michelangelo e uma obra de

Anita Malfatti). Ela prende na lousa duas fotos de jornal, uma

figura feminina e outra masculina. Apresenta o trabalho

realizado no dia anterior, cujo objetivo era a reproduzir a foto a

partir de um desenho. Coloca na lousa a sua reprodução das

fotos. Há um momento de descontração com a apresentação

dos desenhos dos alunos e da professora, pois todos se

divertem fazendo comparações entre os desenhos e as fotos e

tecem comentários críticos, mas sem ofensas ou rudezas.

Não foram presenciadas, no decorrer das observações, situações

mais graves de confronto entre a professora e os alunos, nem momentos de

indisciplina severa.

Era possível perceber quando as regras e limites haviam sido

violados, por meio das verbalizações da professora: “não gritem”, “não

falem muito alto”, “cada um espera a sua vez para falar”, “não

desperdicem material”, dentre outras.

Mesmo quando dava “broncas” na turma, a professora procurava

manter-se bem - humorada, não desrespeitava os alunos e detinha-se apenas

no comportamento provocador da repreensão. Não se presenciou qualquer

situação onde a professora tentasse atacar o caráter ou a moral de qualquer

aluno que estivesse sendo repreendido por ela.

Uma das situações em que a professora interferia com mais

energia era em relação ao mal uso do material escolar, como quando

133

Page 36: Document5

advertiu severamente algumas alunas que estavam utilizando cola branca

para fazer tatuagens.

A professora também era enérgica quando um grupo de alunos

conversava mais alto enquanto ela atendia individualmente a outros alunos:

Enquanto os alunos fazem a tarefa, a professora passa pelas

carteiras e tira as dúvidas individuais. Detém-se sobre uma

aluna que apresenta dificuldade em identificar a medida do

perímetro de uma figura geométrica (centímetro). Diante da

agitação e do barulho de alguns alunos que não estão fazendo

tarefa, a professora adverte: “desse jeito eu não posso ver a

tarefa dos que estão interessados, porque tem gente aqui que

fica destruindo a sala.”

No entanto, em várias ocasiões, foram presenciadas situações em

que um ou mais alunos se recusavam a fazer alguma tarefa ou desistiam da

atividade que começavam a realizar, mediante o argumento de que “não

sabiam fazer” ou que “não queriam fazer” a atividade proposta, como na

seguinte situação:

A professora chama uma das alunas para resolver uma das contas

de divisão na lousa. A aluna resolve a primeira conta sem

dificuldade, com a professora sempre ao seu lado, orientando-a.

Na segunda conta, a aluna apresenta dificuldades em uma

determinada etapa da operação de divisão. A professora

interrompe a resolução da operação e parte para a explicação do

conceito de divisão através de um esquema simples que desenha

a lousa:

1 1 1

Pede para que a aluna imagine que cada bolinha desenhada é

uma bala e que cada número 1 é um menino. Faz a distribuição

das “balas” para os “meninos” e pergunta à aluna: “quantas balas

você acha que cada menino ganhou?”

A aluna fica em silêncio e logo responde que não sabe. A

professora pede para que ela tente, que não desista tão

134

Page 37: Document5

facilmente. Com a ajuda e a insistência da professora a aluna

consegue resolver o problema e, então, a professora o aplica na

resolução da operação de divisão. A professora diz que vai

escrever mais uma conta para a aluna, que diz, enfaticamente:

“não vou fazer!”

Diante da recusa da aluna, o aluno E. diz: “é isso aí, não faz

não!” A professora permanece em silêncio e chama um outro

aluno à lousa.

As duas situações relatadas acima, remetem à análise de

PERRENOUD (1995) sobre as cinco estratégias dos alunos face ao trabalho

escolar, estratégias essas apresentadas principalmente diante de uma prática

pedagógica mais tradicional, mas ainda presentes no que o autor denomina

como “novas didáticas”:

a) Beber o cálice da amargura: o aluno aceita realizar a tarefa,

renuncia à revolta e executa docilmente aquilo que lhe é solicitado e da

maneira como é solicitado; não discute, nem questiona. Realiza a atividade

com o menor investimento de si mas, pelo menos, não pode ser acusado

pelo professor de ter má vontade, garantindo assim a confiança do mesmo e

uma certa autonomia nas correções das tarefas;

b) Depressa! depressa! depressa!, ou como rapidamente se

livrar da tarefa: o aluno realiza a tarefa o mais rapidamente possível para se

ocupar de outras coisas; copia do vizinho mais adiantado, utiliza o menor

tempo possível para refletir, verificar o seu raciocínio ou reler o que

escreveu. Seu maior objetivo é acabar antes para poder usufruir de alguns

momentos de descanso até que seja solicitada a realização de uma nova

tarefa;

c) Despacha-te lentamente: sem recusar a atividade proposta, o

aluno tenta gastar o maior tempo possível para realizá-la; aponta o lápis,

procura material ou solicita explicações, fazendo o que for possível para

ganhar tempo; aparenta um ar ocupado, mas não se esforça muito, apesar de

parecer interessado pelos exercícios;

135

Page 38: Document5

d) “Não percebo nada disto”: o aluno mostra-se incompetente

frente à tarefa para poder se esquivar dela; utiliza a incompetência, a

incapacidade de compreender as instruções ou de visualizar a solução para

justificar longos períodos de ociosidade, principalmente quando o professor

está ocupado com outros alunos. Caso o professor esteja disponível, essa

estratégia permite que o docente faça uma parte da tarefa para o aluno, ao

oferecer-lhe pistas e subsídios para a resolução da atividade;

e) Contestação aberta: é a mais perigosa das estratégias,

consistindo no fato do aluno negar abertamente a utilidade da tarefa ou

recusar-se a fazê-la de forma explícita e, para isso, alega falta de interesse,

de vontade, cansaço ou indisposição. Poucos são os alunos que adotam

regularmente essa atitude sem sofrerem medidas disciplinares mais

rigorosas e, portanto, essa estratégia é mais ocasional que as anteriores; os

alunos que a utilizam geralmente são aqueles que não tem mais nada a

perder e estão vivendo uma relação de desgaste com a instituição escolar.

Pode-se observar que as três últimas estratégias e, em especial, a

última, foram as mais utilizadas pelos alunos diante das tarefas propostas.

As atitudes dos alunos face às atividades propostas pela

professora podem ser mais facilmente compreendidas se for considerado

que as suas trajetórias escolares foram, muito possivelmente, marcadas por

constantes frustrações, esforços mal - sucedidos, avaliações depreciativas e,

especificamente, a realização de tarefas escolares sem significado para as

suas vidas cotidianas.

O resgate da auto - estima dos alunos, por parte da professora,

ocorria principalmente através da valorização de seus avanços acadêmicos.

A professora, durante a realização conjunta das atividades,

principalmente nos momentos de leitura de textos, fazia constantemente

elogios públicos aos alunos:

136

Page 39: Document5

Iniciam a leitura de uma poesia de Ruth Rocha, “Quem tem

medo de quê?”. A professora coloca um trecho do texto na

lousa:

Lagartixa? Vejam só!

Isso parece piada...

Nem ligo pra lagartixa!

Acho ela uma coitada!

Sabe do que eu tenho medo?

Que me dói o coração?

Até me arrepia a espinha?

Tenho medo ... de injeção!

Todos lêem em voz alta junto com a professora. Somente os

meninos; depois as meninas, que parecem ler com mais

entusiasmo. Então o S. lê., com certa hesitação, mas

corretamente.

A professora comenta animada: “Palmas gente, ele não lia

nada e agora está lendo!” Depois a J.: “Palmas para ela

também!”

Um outro comportamento freqüentemente apresentado pela

professora era encorajar o aluno a não desistir diante dos erros cometidos.

Assim, frente a um aluno que diz não saber resolver uma conta de divisão, a

professora aconselha: “não diga que você não sabe fazer, diga que não

consegue, mas que vai tentar.”

Para crianças com histórico de múltiplos fracassos na escola

esses momentos de valorização pública de seus pequenos (mas

significativos) avanços parecem ser muito importantes para resgatar a auto -

estima e o desejo de aprender.

No entanto, mesmo mostrando-se consciente da necessidade de

empreender o resgate da auto - estima de seus alunos, a professora nem

sempre o fazia quando surgiam situações inesperadas, como no dia em que

um aluno chamou o outro de “burro”, após o primeiro ter dado uma

resposta incorreta na resolução de um exercício de matemática. Diante

dessa situação, inesperada frente aos padrões de intervenção da professora,

137

Page 40: Document5

ela não interviu e continuou realizando a atividade, simplesmente ignorando

o comentário ofensivo do aluno em relação ao outro.

Não houve oportunidade de se conversar com a professora sobre

a situação descrita já que, logo após o término da aula, ela estava com

pressa para ir para a outra escola onde lecionava no período da tarde.

Sua atitude faz refletir sobre a necessidade de que a professora

Ana procedesse a problematização do fato ocorrido para além da sala de

aula, partindo das idéias dos alunos, de modo que eles próprios

apresentassem suas análises, versões, hipóteses e posições a respeito do

ocorrido (SOUZA, VIÉGAS & BONADIO, 1999: 11).

Em uma Classe de Aceleração acredita-se ser vital para o resgate

da auto - estima e de valores éticos e sociais que sejam aproveitadas as

situações e experiências ocorridas na sala de aula. O uso dessas situações

parece ser essencial para a abordagem de assuntos como o preconceito16 e a

rotulação dos alunos que fracassam, a postura adequada diante do erro e do

acerto e outros temas emergentes relacionados ao dia - a - dia dos alunos

com história de multirrepetências, o que não se configurou na prática

pedagógica da professora Ana, pelo menos no período observado.

Houve momentos que a professora compartilhou com a

pesquisadora análises mais amplas sobre o projeto de Aceleração, como

quando afirmou que, na sua opinião, apesar das Classes de Aceleração não

continuarem acreditava que a mentalidade das professoras participantes

mudara, pois haviam se tornado mais críticas e melhores preparadas em

termos metodológicos ou quando comentou que, mesmo com a existência

de módulos e de uma rotina norteadora do trabalho em sala de aula,

acreditava que era possível que o professor improvisasse e criasse as suas

16 Segundo HELLER (1989: 47) preconceitos são os juízos provisórios refutados pela ciência e por uma experiência cuidadosamente analisada, mas que se conservam inabalados contra todos os argumentos da razão.

138

Page 41: Document5

próprias atividades dentro de um determinado conteúdo, sempre seguindo

os parâmetros do Livro do Professor.

As professoras substitutas, encarregadas das aulas quando as

professoras titulares estavam sendo capacitadas, não participavam de um

processo de capacitação paralela e não usavam o Livro do Professor e,

segundo ela, os alunos consideravam que os dias de aulas com as

professoras substitutas eram “dias perdidos”.

De acordo com a professora, o conteúdo e os objetivos das

Classes de Aceleração I e II eram o mesmo, mas a maneira de se trabalhar o

conteúdo era diferencial. Desse modo, na Classe de Aceleração I a ênfase

seria na alfabetização enquanto que, na Classe de Aceleração II, seria

enfatizado a compreensão de idéias e a estimulação da expressão oral do

aluno.

A professora Ana achava ser necessário a implantação de um

projeto de Aceleração de 5a à 8a séries pois, para ela, os alunos continuariam

a ter dificuldades nessas séries.

Segundo Ana, somente naquele período existia um bom clima

entre ela e os alunos da turma atual pois, no começo do ano, a indisciplina

era muito severa e a conquista da disciplina havia sido realizada com muito

diálogo e “pulso firme” por parte da professora.

Naquele momento específico Ana estava desanimada e

ponderava se deveria continuar na Classe de Aceleração no próximo ano

letivo, por sentir-se cansada e solitária sem a presença do diretor e de sua

antiga colega Célia, com quem havia vivenciado o processo de

implementação do projeto naquela escola.

Em uma das conversas sobre as dificuldades dos alunos, a

professora pediu à pesquisadora a sua opinião sobre o caso de um

determinado o aluno (E., de dezesseis anos): “o que você acha que pode ser

uma criança que não lê, mas escreve?” Perguntou-se a ela qual era a sua

139

Page 42: Document5

hipótese sobre o problema. Ela, então, respondeu: “acho que é uma coisa

da cabeça, não consigo entender...”

Diante de sua impotência para compreender as dificuldades de

aprendizagem específicas do aluno E., a professora parece expressar uma

representação de fracasso escolar centrado no aluno, o que contraria, a

princípio, a posição defendida pelo referencial teórico do projeto de

Aceleração, mas que parece indicar aquilo que a professora Ana é capaz de

ensinar, face ao momento de desenvolvimento e de aprendizagem

profissional que estava vivendo e ao contexto educacional em estava

inserida.

Portanto, pode-se perceber que as alterações previstas pelas

políticas educacionais para assegurar o sucesso de alunos com histórico de

fracasso escolar não garantem, de imediato e na sua totalidade, as

necessárias mudanças nas mentalidades e nas práticas dos atores

(professores, coordenadores, diretores), cotidianamente envolvidos no

atendimento desses alunos. Em outras palavras, mesmo diante de uma

professora atuando no contexto de uma política de superação do fracasso

escolar, não é surpresa deparar-se com a sua concepção de fracasso escolar

que atribui o fracasso ao aluno.

Essa suposta contradição pode ser explicada por PERRENOUD

(1997: 29) quando afirma que no estado de ambigüidade endêmica dos

discursos sobre o insucesso escolar a favor da diferenciação, mas sem

colidir com os bastiões do conservadorismo , as opções individuais dos

professores tornam-se determinantes.

A partir de agora serão tecidas algumas considerações sobre a

prática pedagógica da professora Ana.

Em primeiro lugar, questiona-se: a prática docente da professora

Ana, da Classe de Aceleração II da Escola I, pode ser considerada uma

prática bem - sucedida?

140

Page 43: Document5

A fim de se responder a essa questão recorreu-se, inicialmente, à

Proposta Pedagógica Curricular das Classes de Aceleração, a qual afirma

que:

(...) o trabalho deverá desenvolver-se de maneira flexível, mas sem desvios de rumo, dentro de um padrão metodológico que se sustente em princípios norteadores claros. Assim, mobilizar interesses, ativar a participação, desafiar o pensamento, instalar o entusiasmo e a confiança, possibilitar acertos, valorizar os avanços e melhorar a auto - estima passam a ser diretrizes da atuação do professor, numa busca de tornar significativo o processo de ensino - aprendizagem (SÃO PAULO - Estado, 1997a: 10).

Deve ser levado em consideração que a professora Ana é uma

professora experiente, preocupada com a qualidade de seu trabalho e com o

desenvolvimento de seus alunos. Possui uma excelente compreensão dos

fundamentos da Proposta Pedagógica Curricular das Classes de Aceleração,

como pôde-se observar pela maneira como desenvolve as aulas e nas

ocasiões onde se tratou desse assunto (conversas informais e entrevista).

Os dados obtidos realmente revelam que o trabalho desenvolvido

pela professora converge com a maioria dos princípios contidos na Proposta

Pedagógica Curricular, especificamente no tocante ao seu empenho em

criar um clima de entusiasmo e estimular a auto - confiança dos alunos,

como também na valorização dos avanços e acertos apresentados por eles

no processo de aprendizagem.

Porém, quanto à flexibilidade metodológica, à mobilização da

participação e o desafio ao pensamento do aluno, sua atuação parece um

tanto instável, quando comparada com os mesmos princípios. Pelo menos

no período de observação de aulas verificou-se que a metodologia de ensino

dominante foi a aula expositiva dialogada. Quanto a isso, deve-se esclarecer

que o uso da aula expositiva dialogada não deve ser considerado sinônimo

de um ensino convencional ou obsoleto, pois é uma técnica extremamente

útil, mesmo que o projeto de Aceleração seja baseado no referencial

construtivista.

141

Page 44: Document5

Nas várias oportunidades em que utilizou a aula expositiva

dialogada, a professora buscou criar situações desafiadoras e estimulantes

para a apropriação do conhecimento por parte dos alunos, mas nem sempre

obteve sucesso. Acredita-se que outras estratégias, como atividades em

grupo ou atividades individuais diferenciadas, poderiam ter sido utilizadas

de forma mais significativa e produtiva.

Além disso, notou-se que do “kit” de material destinado às

Classes de Aceleração (quatro volumes destinados ao professor - Ensinar

pra Valer! - e aos alunos - Aprender pra Valer!, fichas, cartazetes e jogos

pedagógicos), os três últimos itens foram muito pouco utilizados, pelo

menos nas aulas observadas.

Quanto à participação da turma e o desafio ao pensamento do

aluno, a professora poderia ter sido melhor sucedida se procurasse explorar

um pouco mais o conhecimento prévio e as vivências dos alunos sobre os

conteúdos trabalhados, mesmo diante de uma rotina de trabalho exigente

como a que caracteriza as Classes de Aceleração.

Mas, em que medida essa avaliação da prática pedagógica da

professora Ana se diferencia da prática docente nas salas de aulas do ensino

regular?

A grande diferença parece residir na capacidade da professora

Ana em compreender o perfil de seu alunado e, principalmente, em refletir

sobre as suas concepções sobre as causas dos fracassos desses alunos.

Aparentemente, aos olhos da professora Ana, o fracasso escolar ainda

parece estar mais relacionado ao fracasso individual do que propriamente a

fatores relacionados ao sistema educacional e à função social da escola.

A diferença, mais ainda, parece residir na capacidade da

professora Ana em acreditar no sucesso desses alunos e de si mesma,

enquanto uma das principais responsáveis por esse sucesso.

Partindo desse princípio, avalia-se que a prática docente da

professora Ana é caracterizada pela presença de “altos e baixos”: nem

142

Page 45: Document5

sempre tão bem - sucedida como potencialmente poderia ser, os seus pontos

fracos se manifestam principalmente nas situações de ensino -

aprendizagem nas quais os alunos acabam por não lhe fornecer o feedback

esperado por ela, o que poderia estar acentuando o seu sentimento de

fracasso e frustração, muitas vezes manifestado pelas suas atitudes e

desabafos.

5.3. Análise da tradução do projeto Classes de Aceleração

pelas professoras da Escola I

A análise dos dados coletados na Escola I, através das entrevistas

com as professoras e da observação da prática da professora Ana, da Classe

de Aceleração II, parece levar à conclusão de que a tradução do projeto de

Aceleração nessa escola, quando defrontado com os pressupostos teórico -

metodológicos da proposta de aceleração, não pode ser considerado

satisfatório.

Foi possível constatar que, pelo menos, dois fatores considerados

essenciais ao sucesso da tradução do projeto para a prática docente não

estiveram presentes nessa escola: a presença de uma direção escolar e de

uma coordenação pedagógica atuante e comprometida com o projeto e o

testemunho da crença dos agentes educacionais no projeto e entusiasmo

quanto aos resultados obtidos (PLACCO, ANDRÉ & ALMEIDA, 1999).

Quanto ao envolvimento da direção escolar e coordenação

pedagógica com o projeto de Aceleração, pelo que foi percebido, a partir

dos dados coletados, o envolvimento de ambos deu-se, aparentemente,

apenas no primeiro ano de funcionamento das Classes de Aceleração na

Escola I.

O diretor, devido às cobranças dos professores das séries

regulares, acabou por se distanciar do projeto, o que trouxe conseqüências

danosas, principalmente em relação ao envolvimento da professora Ana.

Quanto à coordenadora pedagógica, foi mencionada uma única vez por uma

143

Page 46: Document5

das professoras, de forma crítica, supostamente por não ter atuado como

uma fonte de apoio para as dificuldades do cotidiano.

No que diz respeito à crença dos agentes escolares no projeto e o

seu entusiasmo quanto aos resultados, pode-se afirmar que a professora

Ana, apesar de muitas vezes demonstrar cansaço e frustração em relação ao

aprendizado dos alunos, sempre os incentivou a participar das atividades e

estimulou o desenvolvimento de um melhor autoconceito dos mesmos.

A professora Bianca, por outro lado, mostrou-se desanimada e

descrente em relação ao seu trabalho e à capacidade de aprendizagem de

seus alunos.

Nessa perspectiva, a professora Bianca sempre se referiu aos

alunos de sua Classe de Aceleração de forma preconceituosa e hostil, como

quando se referiu aos seus alunos como rebeldes, bravos e teimosos ou

quando afirmou, de forma categórica, que eles não tinham interesse em

aprender, afirmações essas que explicitam as suas concepções tradicionais

sobre o fracasso escolar. Não manifestou crédito quanto ao potencial de

aprendizagem de seus alunos e, além disso, os recriminava por serem

velhos demais ou por não realizarem as tarefas propostas.

Ao comentar sobre o desempenho de seus alunos, a professora

Bianca, na maior parte das vezes, expressou uma concepção totalmente

contrária à premissa básica do projeto de Aceleração: a idéia de que todo

aluno é capaz de aprender e que todo professor é capaz de ensinar. Durante

as ocasiões em que conversou com a pesquisadora, Bianca fez várias

reclamações sobre os alunos e sobre o projeto e se manteve resistente a

qualquer tipo de aproximação, não aceitando conceder uma entrevista

individual, nem permitindo a observação de aulas em sua sala.

A participação da professora Bianca como docente de Classes de

Aceleração denuncia dois grandes obstáculos ao sucesso do projeto: a falta

de um processo de seleção de professores, por parte da direção escolar,

144

Page 47: Document5

mais adequado a projetos dessa natureza e a falta de adesão do professor

aos princípios básicos da proposta de aceleração da aprendizagem.

Ao não privilegiar a permanência dos docentes que estariam

atuando em Classes de Aceleração, o processo de seleção de professores e

de atribuição de classes, pode ser considerado como um dos fatores

responsáveis pela saída da professora Célia da Escola I.

Segundo MARIN (1997), boa parte dos professores das Classes

de Aceleração foi selecionada entre os professores ACT’s (Admitidos em

Caráter Temporário) e não entre os professores efetivos, o que fez com as

que essas classes fossem, em alguns casos, a sua única condição de

trabalho.

Analisando-se a prática pedagógica da professora Ana, da Classe

de Aceleração II, pôde-se perceber ela procurava ensinar os seus alunos de

uma nova maneira, mas encontrava muitas obstáculos nesse processo,

especialmente quando se via diante das dificuldades dos alunos em

compreender os conteúdos escolares.

Dessa maneira, apesar de ter apresentado um bom domínio dos

pressupostos teóricos e das diretrizes metodológicas do projeto de

Aceleração, quando Ana se defrontava com as variações do desempenho de

seus alunos e com a heterogeneidade de sua classe, acabava comportando-

se de maneira instável, pois ora os aceitava e procurava entender as suas

dificuldades, ora os acusava de não estarem atuando de acordo com as suas

expectativas.

Sua prática pedagógica, pouco flexível em relação a um

determinado tipo de padrão de atuação, a levava a utilizar o Livro do

Professor e do Aluno como um manual didático, não explorando outras

possibilidades de construção do processo de aprendizagem dos alunos e não

valorizando os debates espontâneos que emergiam como pontes para a

problematização de conteúdos.

145

Page 48: Document5

Como foi dito anteriormente, um dos fatores que poderiam ter

prejudicado o desempenho da professora Ana, no decorrer de sua

experiência nas Classes de Aceleração da Escola I nesse ano, seria a perda

de dois parceiros e interlocutores: o diretor da escola e a professora Célia,

que se ausentou da escola e com quem a professora Ana relatou, em

conversas com a pesquisadora, ter tido uma grande afinidade. Com o

afastamento do diretor, a professora Ana não parece ter encontrado outros

pares para trocar experiências e buscar soluções para as dúvidas pois, além

de nunca ter se referido à coordenadora pedagógica, ainda criticou a falta de

apoio da Diretoria Regional de Ensino e as capacitações oferecidas, por não

articularem a teoria com a prática.

Quanto à sua colega da Classe de Aceleração I, professora

Bianca, durante o período em que se permaneceu na Escola I, não foi

percebida a existência de muita afinidade entre elas.

Analisou-se a situação das professoras de Classes de Aceleração

da Escola I, mas não se pode perder de vista o fato de que elas estavam

inseridas em um contexto mais amplo, a instituição escolar, a qual possui

características próprias, assim como uma cultura específica.

146