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História da Filosofia Quinto volume Nicola A bbagnano DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO: ÂNGELO MIGUEL ABRANTES. HISTÓRIA DA FILOSOFIA VOLUME V TRADUÇÃO DE: NUNO VALADAS ANTÓNIO RAMOS ROSA CAPA DE: J. C. COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃO TIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-Porto EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970 TÍTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA Copyright by NICOLA ABBAGNANO Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA, LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa QUARTA PARTE A FILOSOFIA DO RENASCIMENTO RENASCIMENTO E HUMANISMO § 332. RENASCIMENTO E HUMANISMO: O PROBLEMA HISTORIOGRáFICO Escritores, historiadores, moralistas e políticos, todos estão de acordo em que se teria verificado na Itália, a partir da segunda metade do século XIV, uma mudança radical na atitude dos homens perante o mundo e a vida. Convencidos como estão do início de uma época nova, constituindo uma ruptura radical com o mundo medieval, procuram explicar a si mesmos o significado dessa mudança. Esse significado, atribuem-no então à renascença de um espírito que já fora próprio do homem na época clássica e se perdera durante a Idade Média: um espírito de liberdade, pelo qual o homem reivindica a sua autonomia de ser racional e se reconhece como intimamente ligado à natureza e à história, apresentando-se resolvido a fazer de ambas o seu reino. Uma tal renascença é, no ponto de vista desses escritores, um regresso à antiguidade, uma reaquisição de capacidades e poderes que os antigos (isto é, os Gregos e os Latinos) tinham possuído e exercitado. Este regresso porém, não consiste numa mera repetição do antigo mas numa retomada e consequente continuação daquilo que pelo mundo antigo fora realizado. Tais princípios são expressos, de uma forma ou de outra, por inúmeras figuras do Renascimento italiano; pode mesmo dizer-se que a cada nova descoberta de matéria documental nos apercebemos melhor até que ponto eles foram partilhados pelos escritores e vultos notáveis da época.

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História da FilosofiaQuinto volumeNicola A bbagnano

DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:ÂNGELO MIGUEL ABRANTES.

HISTÓRIA DA FILOSOFIAVOLUME VTRADUÇÃO DE:NUNO VALADASANTÓNIO RAMOS ROSACAPA DE: J. C.COMPOSIÇÃO E IMPRESSÃOTIPOGRAFIA NUNES R. José Falcão, 57-PortoEDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970

TÍTULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANOReservados todos os direitos para a língua portuguesa à EDITORIAL PRESENÇA,LDA. - R. Augusto Gil, 2 cIE. - Lisboa

QUARTA PARTE

A FILOSOFIA DO RENASCIMENTO

RENASCIMENTO E HUMANISMO§ 332. RENASCIMENTO E HUMANISMO: O PROBLEMA HISTORIOGRáFICOEscritores, historiadores, moralistas e políticos, todos estão de acordo emque se teria verificado na Itália, a partir da segunda metade do século XIV,uma mudança radical na atitude dos homens perante o mundo e a vida.Convencidos como estão do início de uma época nova, constituindo umaruptura radical com o mundo medieval, procuram explicar a si mesmos osignificado dessa mudança. Esse significado, atribuem-no então à renascençade um espírito que já fora próprio do homem na época clássica e se perdera durante a Idade Média: um espírito de liberdade,pelo qual o homem reivindica a sua autonomia de ser racional e se reconhececomo intimamente ligado à natureza e à história, apresentando-se resolvido afazer de

ambas o seu reino. Uma tal renascença é, no ponto de vista desses escritores, um regresso à antiguidade, uma reaquisição de capacidades e poderes que os antigos (isto é, os Gregos e os Latinos) tinham possuído e exercitado. Este regresso porém, não consiste numa mera repetição do antigo mas numa retomada e consequente continuação daquilo que pelo mundo antigo fora realizado. Tais princípios são expressos, de uma forma ou de outra, por inúmeras figuras do Renascimento italiano; pode mesmo dizer-se que a cada nova descoberta de matéria documental nos apercebemos melhor até que ponto eles foram partilhados pelos escritores e vultos notáveis da época.

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Estes testemunhos aparecem-nos confirmados por imponentes fenómenosculturais: o nascimento de uma nova arte, magnífica pela variedade e pelovalor das suas manifestações, de uma nova concepção do mundo, de uma ciênciaque nos séculos seguintes e mesmo até ao momento presente deveria darnotáveis frutos e de uma nova maneira de compreender a história, a políticae, em geral, as relações dos homens uns com os outros. Assim, tais testemunhos foram durante muito tempo tomados à letra, servindo de base ao estabelecimento dos períodos históricos da civilização ocidental.A historiografia filosófica não se limitou porém, nem poderia fazê-lo aaceitar o contraste que os próprios humanistas quiseram estabelecer entre asua época e a Idade Média. Se é verdade que uma parte dos historiógrafosaceitou esse contraste como fio condutor para a interpreta-10

ção das doutrinas e figuras que se apresentam em primeiro plano no século XV,não é menos certo que uma outra parte se deu pelo contrário ao trabalho desalientar a continuidade que, apesar de tudo, subsiste entre aquele século eos que o precederam. Tem-se já hoje como certo que não é possível, do pontode vista da exactidão histórica, basear a interpretação do humanismo e doRenascimento na existência de uma antítese entre o "homem medieval" e o"Homem do Renascimento". Não é possível considerar o Renascimento meramentecomo a afirmação da imanência em contraste com a transcendência. medieval ou da irreligiosidade, do paganismo, do individualismo, do sensualismo e do cepticismo em contraposição àreligiosidade, ao universalismo, ao espiritualismo e ao dogmatismo da IdadeMédia. Não faltam e até abundam no Renascimento motivos francamentereligiosos, afirmações enérgicas de transcendência ecertas retomadas de elementos cristãos e dogmáticos; muitas vezes essesmotivos e elementos aparecem entrelaçados com elementos e motivos opostos,formando sistemas complexos cujo centro de gravidade e sentido completo sãodifíceis de determinar. Difícil é pois a compreensão das polémicas que agitama vida cultural do Renascimento: a que, em nome da eloquência e da antigasabedoria clássica, os humanistas travaram contra a ciência e a cultura,oposta, que os partidários da ciência travaram contra a eloquência; a quelançou platónicos contra aristotélico e a que se desenrolou no próprio seiodo aristotelismo entre alexandristas e11

averroístas. É evidente que nenhuma destas posições polémicas representa por

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si só o Renascimento, e por conseguinte não se pode ver neste apenas arevolta da sabedoria e da eloquência, nem a da ciência contra aeloquência, nem as reivindicações do platonismo contra o aristotelismomedieval, nem a desforra do aristotelismo científico sobre a transcendênciaplatonizante. A primeira exigência a fazer é a de que o Renascimento sejaentendido na sua totalidade pois só assim se poderá conhecer oterreno comum no qual nascem e se radicam as várias e opostas tesespolémicas.

§ 333. O HUMANISMOA primeira destas polémicas, travada entre a sabedoria clássica e a ciência,é às vezes apresentada como a antítese entre humanismo e renascimento. Umavez que a irrupção do Renascimento é marcada pelo aparecimento das novasciências naturais, a polémica contra a ciência, iniciada por Petrarca, temsido interpretada como constituindo a defesa da transcendência religiosa e dasabedoria revelada contra a liberdade de investigação científica. Aconteceporém que a defesa da sabedoria clássica, inspirada na convicção (que é umaherança deixada pela Patrística) da existência de um perfeito acordo da mesmacom a verdade revelada do cristianismo é muito mais antiga do que oRenascimento e nunca chegou a ser totalmente abandonada pela Escolástica; ohumanismo seria assim a12

força que combate e retarda o advento do verdadeiro espírito renascentista,o qual, como reivindicação da liberdade de investigação, seria par sua

vez a continuação do aristotelismo e do averroísmo medievais. Humanismo eRenascimento constituiriam assim, na sua antítese, claras atitudes doespírito medieval, o que, se nos permite a compreensão da continuidadehistórica que deve existir entre a

Idade Média e a Moderna, afasta toda e qualquer possibilidade de entendermosa originalidade e ovalor do Renascimento, ao estabelecer os pressupostos do pensamento moderno.A interpretação histórica do Renascimento, se, por um lado, vem esbater a contraposição polémica do mesmo à Idade Média, vem por outro, fazer luz sobre aqueles aspectos que caracterizam suficientemente a sua configuração doutrinal. E do entre os aspectos mais importantes, sob este ponto de vista, podemos enunciar os seguintes: 1) - a descoberta da historicidade do mundo humano; 2) - a descoberta do valor do homem e da sua natureza mundana (natural e histórica); 3) - a tolerância religiosa.1) - O humanismo renascentista não consiste apenas no amor e no estudo

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dasabedoria clássica e na demonstração da sua concordância fundamental com averdade cristã mas sim e antes de mais na vontade de reconstruir uma talsabedoria na sua forma autêntica, procurando compreendê-la na sua

realidade histórica efectiva. É com o humanismo que surge pela primeira vez aexigência do reconhecimento da dimensão histórica dos acontecimen-13

tos. A Idade Média tinha ignorado por completo tal dimensão. É certo que jáentão se conhecia o se utilizava a cultura clássica; esta era porémassimilada à época e tornada contemporânea. Factos, figuras e doutrinas nãopossuíam para os escritores da Idade Média uma fisionomia bem definida,individualizada e irrepetível: o seu mérito residia apenas na validade quelhes pudesse ser

reconhecida relativamente ao universo de raciocínios no qual se moviam osditos escritores. Sob este ponto de vista eram inúteis a geografia e acronologia como instrumentos de averiguação histórica. Todas essas figuras e doutrinas se moviam numa esfera intemporal que não era outra senão a delineada pelos interesses fundamentais da época, apresentando-se por isso como contemporâneas dessa mesma esfera.Com o seu interesse pelo antigo, pelo antigo autêntico e não por aquele quevinha sendo transmitido através de uma tradição deformante -o humanismo renascentista concebe pela primeira vez a realidade daperspectiva histórica, isto é, da separação e da contraposição do objectohistórico, relativamente ao presentehistoriográfico. Andam em polémica noRenascimento, platónicos e aristotélicos; porém, o seu interesse comum residena descoberta do verdadeiro Platão ou do verdadeiro Aristóteles, quer dizer,da doutrina autêntica dos troncos do seu pensamento, não deformada nem

disfarçada pelos "bárbaros" medievais. A exigência filosófica não é um meroaspecto formal ou acidental do humanismo, mas sim um seu elemento14

essencial. A necessidade de descobrir os depoimentos e de os reconstituir nasua forma autêntica, estudando e cotejando os manuscritos, é acompanhada pelanecessidade de neles buscar o seu conteúdo autêntico em matéria de poesia ede verdade filosófica ou religiosa. Sem investigação filológica não hápropriamente humanismo pois apenas existe uma

posição genérica de defesa da cultura clássica, a

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qual pode ser encontrada em toda e qualquer época e por conseguinte não é característica de nenhuma em particular.A defesa da eloquência clássica é a defesa da linguagem autêntica doclassicismo contra a deformação sofrida durante a Idade Média esimultaneamente uma tentativa de reconstituição da sua

forma original. A descoberta de falsificações documentais e de falsasautores, e a tentativa de integração de escritores e filósofos no seu própriomundo, na sua própria distância cronológica, são os aspectos fundamentais docarácter historicista do humanismo. Não restam dúvidas de que o humanismo, notocante a resultados, só parcial e imperfeitamente levou a cabo esta suatarefa de restauração histórica; trata-se aliás de tarefa que nunca

se esgota e se apresenta sempre em primeiro lugar aos historiógrafos. Todaviafoi o humanismo quem se apercebeu do valor desta tarefa, iniciando-a edeixando-a em herança à cultura moderna. O iluminismo de setecentos constituiseguidamente umpasso decisivo nesse caminho, do qual nasceu por sua vez a investigaçãohistoriográfica moderna.

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Nunca será demasiada a importância que se der a este aspecto do Renascimento.A perspectiva historiográfica torna possível distinguir o passado do presentee por conseguinte torna também possíveis o reconhecimento da naturezadiferente e própria do passado e a pesquisa das características e condiçõesdeterminantes de uma tal individualidade e irrepetibilidade. Por último, dá-nos ainda a consciência da originalidade do passado em confronto connosco e a da nossa originalidade ao passado.A descoberta da perspectiva histórica está para o tempo, como a descoberta daperspectiva visual, conseguida pela pintura do Renascimento, está para oespaço: consiste na possibilidade de nos apercebermos da distância que vai deum objecto a outroe de qualquer deles ao observador. É por conseguinte a possibilidade de os entendermos na sua real localização, na sua diferença relativamente aos demais e na sua individualidade autêntica.O significado da personalidade humana, com centro original e autónomo deorganização dos vários aspectos da vida, é condicionado pela perspectiva,nesta acepção. A importância que o mundo moderno atribui à personalidadehumana é o resultado de um propósito atingido pela primeira vezpelo humanismo renascentista.2 -Quando se diz que o humanismo renascentista descobriu ou redescobriu "ovalor do homem", quer com isso dizer-se que reconheceu o valor do homem comoser terrestre ou mundano, inserido no mundo da natureza e da história,

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capazde nele forjar o próprio destino. O homem a quem se16

reconhece um tal valor é um ser racional e finito, cuja integração nanatureza e na sociedade não constitui condenação nem exílio mas antes uminstrumento de liberdade o que por essa razão pode obter no meio da natureza,e entre os homens a sua formação e a sua felicidade. Este reconhecimento nãoé, indubitavelmente, mais do que a

expressão filosófica ou conceitual (alcançada comatraso, como frequentemente acontece) de capacidades e poderes que o homem searrogava havia já alguns séculos e que já exercera e continuava exercendo nascidades que constituíram o berço do humanismo. A experiência humana em queeste se apoia dera já frutos no campo da economia, da política o da arte, oque explica a conexão geográfica do humanismo com as grandes cidades e

particularmente com aquelas em que (como Florença) o exercício das novas actividades político-económicas fora e continuava a ser mais livre e amadurecido. Vimos no volume anterior desta História, como já no domínio da própria Escolástica, a partir do século XI, o homem reivindica uma autonomia cada vez maior da razão, isto é, da sua iniciativa inteligente, face às instituições típicas do mundo medieval (a igreja, o império o feudalismo) que tinham tendência para apresentar como dimanados do Céu todos os bens de que ele podia dispor. No humanismo renascentista, porém, esta autonomia aparece-nos afirmada e reconhecida de modo mais radical, como capacidade do homem para planear a sua própria existência individual ligada à história e à natureza.17

É claro que, se entender como naturalismo a tese segundo a qual para alémda história e da natureza nada existe, não se poderá na verdade dizer que ohumanismo e o Renascimento tenham conhecido o naturalismo; porém, se seentender como naturalismo a tese segundo a qual o homem está radicado nanatureza e na sociedade e só desses dois elementos poderá obter os meiosnecessários à sua própria, realização, um tal naturalismo foi característicode todos os escritores da época, os quais, se bem que exaltem a "alma" dohomem como sujeito relativamente aos próprios poderes da liberdade, nãoesquecem por isso o corpo nem aquilo que ao corpo pertence. A aversão aoascetismo medieval, o reconhecimento do valor do prazer e a apreciação doepicurismo sob um novo prisma são as manifestações mais evidentes destenaturalismo humanista. Ligado a ele aparece-nos também o reconhecimento daexistência de um vínculo que liga o homem à comunidade humana; este é um temaespecialmente escolhido pelos humanistas florentinos os quais

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participaramactivamente na, vida política da sua cidade. Segundo este ponto de vista,exalta-se a vida activa em contraposição à especulativa e a filosofia moralem contraposição à física e à metafísica. A Política de Aristóteles éestudada com renovado interesse e o seu autor elogiado por ter reconhecido ovalor do dinheiro como coisa indispensável à vida e à conservação doindivíduo e da sociedade. Reconhecia-se assim à poesia, à história, àeloquência e à filosofia um valor essencial; atendendo ao que o homem é e verdadeira

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mente deve ser; retomava o seu inteiro valor aquele conceito de paideia ouhumanitas que já no tempo de Cícero e de Varrão exprimia o ideal da formaçãohumana como tal, ideal este que só se

poderá identificar por intermédio daquelas artes próprias do homem e que o distinguem de todos os outros animais (Aulo Gellio, Noct. att., XIII, 17).3)-Finalmente, fazem também parte do humanismo renascentista a concepçãocivil da religião e o conceito da tolerância religiosa. A função civil dareligião encontra-se na fundamentação da correlação entre cidade celeste ecidade terrena: a cidade terrena deverá, na medida do possível, realizar a

harmonia e a felicidade que são características da cidade celeste. A harmoniae a felicidade pressupõem, por sua vez, a paz religiosa. O ideal da pazreligiosa é a for-ma tomada pela exigência da tolerância religiosa, nohumanismo e no Renascimento. Os humanistas estão convencidos da identidadeessencial entre filosofia e religião e da unidade de todas as religiões, nãoobstante a diversidade dos respectivos cultos. Como é óbvio, este ideal temde ser entendido como privando a intolerância de toda e qualquer base pois naverdade a crença na possibilidade de uma "paz" no sentido em que, porexemplo, Pico della Mirandola emprega este termo, significa a renúncia aoscontrastes insuperáveis e

à luta entre religião e filosofia por um lado e entre as várias religiões eas várias filosofias por outro, bem como o fim do ódio teológico.

Cada época vive de uma tradição e de uma herança cultural das quais fazemparte os valores

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fundamentais que inspiram as suas atitudes. Esta tradição, porém,especialmente nas épocas de transição e renovação, nunca consiste em herançapassiva ou automaticamente transmitida mas sim na escolha de uma herança. Oshumanistas rejeitaram a herança medieval e escolheram a do mundo clássicocomo sendo aquela que achavam constituída pelos valores fundamentais que lheseram mais caros. O que lhes interessava era fazer reviver a mencionadaherança como instrumento de educação, ou seja, de formação humana e social. Aprimazia que concederam às chamadas letras humanas, isto é, à poesia, àretórica, à história, à moral e à política, fundava-se na convicção,igualmente herdada dos antigos, de que estas disciplinas são as únicas queeducam o homem como tal, levando-o a tomar consciência das suas reaisaptidões. Esta convicção poderá talvez, nos nossos dias, considerar-sedemasiado estreita mas o que não pode é ser

encarada como preconceito de literatos. As letras humanas não constituíam para os humanistas campo próprio para exercícios brilhantes mas inúteis, nem ornamento fabuloso destinado à ostentação nos círculos da alta sociedade.Constituíam sim o único instrumento que conheciam, apto a formar homens,livres, dignos e empenhados em construir um mundo justo e feliz. Não hádúvida que o humanismo (como todos os outros períodos da história doOcidente) conheceu também o prazer do exercício literário, a elegância dainvestigação meramente erudita e

a tentação de esconder, sob os méritos formais da linguagem, das artes ou daliteratura, a carência20

de um sério e profícuo interesse humano. É igualmente indubitável que estessintomas de deterioração prevaleceram ou se tomaram mais evidentes no séculoXVII, quando a decadência política e

civil da Itália tomou quase impossível o exercício daquelas actividades queos humanistas dos séculos anteriores tinham exaltado no mundo antigo.Entretanto, porém, o humanismo renascentista italiano dera já os seus frutos da Itália e mesmo nesta, o novo espírito de iniciativa e liberdade que o Renascimento tinha suscitado dava igualmente seus frutos no campo da ciência.§ 334. O RENASCIMENTOOs estudos filológicos mais recentes (Hüdebrand, Walser, Burdach)estabeleceram para além de toda e qualquer dúvida a origem religiosa do termoe do conceito de renascimento. Renascença é umasegunda nascença, a nascença do homem novo ou espiritual de que falam o

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Evangelho segundo S. João e as Epístolas de S. Paulo (§§ 130-31). Termo econceito mantêm-se durante toda a Idade Média com o significado de regressodo homem aDeus e à vida que lhe fugiu após a queda de Adão.O Renascimento é uma renascença do homem neste mesmo sentido de renovação;esta renovação porém não consiste já numa transcendência dos limites danatureza humana, numa existência de pura e exclusiva ligação com Deus, massim numa verdadeira renovação do homem na sua capacidade e nas suas21

relações com os outros homens, com o mundo e com Deus. Uma renascença emDeus, entendida como

uma nova e mais genuína acepção das relações do homem com Deus, longo de serexcluída desta renovação, é até considerada como a sua condição primordial,embora não fique assim esgotado o sentido da renascença, pois esta reporta-seao mundo do homem na sua totalidade: à sua actividade prática, à sua arte, àsua poesia e à sua vida em sociedade. A renascença do homem não é onascimento para uma vida diferente e super-humana, mas sim o nascimento parauma vida verdadeiramente humana porque baseada naquilo que o homem tem demais seu: as artes, a instrução e a investigação, que fazem dele um serdiferente de todos os outros que existem na natureza e o tomam na verdadesemelhante a Deus, restituindo-o assim à condição de que decaíra. Osignificado religioso de renascença identifica-se com o mundano: o fim últimoda renascença é o próprio homem. O seu instrumento essencial é o retorno aosantigos que é também entendido como um regresso ao princípio, ouseja, como um retorno ao que dá vida e força atodas as coisas e de que depende a conservação e o aperfeiçoamento de todosos seres. O regresso ao princípio ora um conceito neoplatónico e por isso nãoadmira que tenha sido sobretudo teorizado pelos Platónicos do Renascimento(Ficino, Pico). Foi todavia expressamente defendido também por certosfilósofos naturalistas (Bruno, Campanella) e

por Maquiavel; este último afirma que o regresso às origens constitui o únicomodo possível de reno-22

vação das comunidades que só assim fugirão à decadência e à ruína pois,segundo ele, todas as origens têm em si uma corta bondade pela qual as coisas retomarão a sua vitalidade e a sua primitiva força.

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No neoplatonismo antigo o regresso ao princípio ora um conceitodeclaradamente religioso. O princípio é Deus e o regresso a Deus é ocumprimento do verdadeiro destino do homem e consiste na reprodução emsentido inverso do processo da criação pelo qual os seres se desprenderam deDeus, num voltar a subir a ladeira, numa tendência para a identificação comDeus. Este significado religioso não é estranho aos escritores doRenascimento; os Neoplatónicos, sobretudo, repetem-no e fazem-no seu. Porém oregresso às origens assume também no Renascimento um significado histórico ehumano, segundo o qual o "princípio" a que se deve regressar não é Deus e sima origem terrena do homem e do mundo humano. É sem dúvida neste sentido queMaquiavel falava do "regresso às origens" como modo de renovação dascomunidades humanas. Aliás o próprio Pico, della Mirandola admite (em De enteet uno), ao lado do regresso ao princípio absoluto, isto é, a si mesmo,consistindo nisto a sua felicidade terrena. Ora este regresso do homem ao seu

princípio é, substancialmente, regresso àquilo que o homem foi, ou seja aoseu longínquo, mas mais autêntico, passado, às origens da sua história. Comoé óbvio, as origens da história humana estão para além do mundo clássico,para o qual olham sobretudo os escritores do Renascimento os quais, porém,sustentam que foi no mundo clássico que o exercício23

daquelas faculdades que desde a origem asseguraram ao homem um lugarprivilegiado no mundo, encontrou a sua expressão amadurecida e perfeita. Poresta razão o Renascimento pôde acrescentar ao conceito da verdade como filiatemporis o da continuidade da história através da qual o homem melhora eamplia as suas faculdades e que por isso permite aos modernos verem maislonge que os

antigos, tal como acontece ao anão empoleirado nos ombros do gigante.Por meio do regresso à antiguidade clássica, que é ao mesmo tempo regresso do homem a si próprio, vai tendo lentamente lugar a conquista da personalidade humana. Esta conquista é condicionada pela consciência da própria originalidade relativamente aos outros, ao mundo e a Deus. A descoberta da historicidade e a investigação filológica, fornecem ao homem o sentido da sua própria originalidade quanto aos outros, quanto àqueles mesmos exemplares da humanidade que tinham vivido no passado. O regresso da arte à natureza e a redução desta à objectividade (de onde nasceu a ciência), realçam a originalidade do homem face à própria natureza de que faz parte e contribuem deste modo para a formação do sentido e do conceito da personalidade humana.Finalmente, a confirmação da transcendência divina pela qual o Renascimento

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se liga nova e directamente à especulação cristã da Idade Média, acentuando aseparação entre o homem e Deus, vem acentuar ainda mais o carácter originaldo homem e a irredutibilidade da sua situação à de qualquer outro ser, querseja supe-24

rior, quer inferior. Resulta daqui a função mediadora. e central que éatribuída ao homem como "cópula do mundo> (Ficino, Pico, Bovilo, Pomponazzi),como nó da criação, no qual encontram a

sua unidade e o seu equilíbrio os vários aspectos da mesma. Daqui resultamtambém a afirmação da liberdade humana e as discussões em torno das relaçõesdesta com a ordem providencial do mundo. Resultam ainda as análises dafortuna ou do acaso, aos quais se não pretende sacrificar o poder decisivo davontade que se afirma dominadora de ambos. Resulta finalmente o,reconhecimento da origem humana dos estados, fruto da habilidade e daperspicácia dos políticos.

§ 335. RENASCIMENTO: AS ORIGENS DA CIÊNCIA EXPERIMENTALCom o reconhecimento do carácter essencial e determinante das relações entreo homem e a natureza, o humanismo estabeleceu a premissa fundamental dainvestigação experimental moderna. Tem-se insistido muito, nestes últimostempos, naimportância da contribuição dada pelos Escolásticos de Trezentos à formaçãoda ciência moderna, através da crítica de teorias aristotélicas fundamentais,como a do movimento dos astros e projécteis (§325). Confrontando estacontribuição com a hostilidade que os humanistas manifestam contra o físicoAristóteles e, em geral, contra as especulações físicas e metafísicas dosEscolásticos, somos

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levados a concluir, que o desenvolvimento da ciência moderna está mais ligado ao aristotelismo tradicional do que ao humanismo renascentista.Vimos já, porém, como a aversão ao físico Aristóteles e a preferência dada aoAristóteles moralista constituía para os humanistas um motivo polémico quetinha por objectivo acentuar a importância que pretendiam atribuir àquelesramos da ciência do espírito, considerados indispensáveis à direcção da vidaactiva do homem. Este motivo polémico não implicava a aversão à natureza ou à

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sua investigação e observação directas que já a arte do Renascimento tãoestreitamente ligada ao movimento humanístico considerava como seufundamento, guia e ideal. Acontece que a investigação científica, tal como serevelou nas invenções de Leonardo e

na obra de Galileu ora uma investigação baseada na observação e naexperiência. E a observação

e a experiência não são coisas que possam limitar-se a ser anunciadas eprogramadas têm que se empreender e levar efectivamente a cabo. Não podemporém empreender-se nem levar-se a cabo se não se apoiarem num interessevital, interesse este que só pode ser constituído pela convicção de que ohomem se encontra firmemente implantado nomundo da natureza e de que as suas faculdades cognoscitivas mais eficazes eadequadas, são precisamente aquelas que derivam das suas relações com anatureza. Quando Galileu punha, ao lado dos raciocínios matemáticos, a"experiência, sensata" como a única fonte restante do conhecimento, estavaclaramente a indicar a mudança de direcção que

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existe na base do empenhamento experimental da ciência moderna. Já antesdele, Bernardino Telésio, embora sem se empenhar em trabalhos deinvestigação, afirmara em De rerum natura juxta propria principia que osprincípios próprios do mundo natural e os únicos capazes de o explicar, sãoos princípios sensíveis, enunciando a equação entre "o que a própria naturezarevela" e "o que os sentidos dão a perceber". O recurso à experiênciasensível, interrogando-a e obrigando-a a falar é o único caminho que, segundoesta opinião, conduz à explicação da natureza pela natureza, ou seja, aqueleque não lança mão de princípios estranhos à própria natureza. Esta autonomiado mundo natural, que é pressuposto de toda e qualquer investigaçãoexperimental, é um aspecto da atitude humanística, ao

procurar entender cada coisa nos seus elementos constitutivos e no seu valor intrínseco. Assirn, e de uma forma geral pode dizer-se que o Renascimento criou as condições necessárias ao desenvolvimento de uma investigação experimental da natureza, estabelecendo designadamente:1) - Que o homem não é um hóspede provisório da natureza mas sim ele próprio um ser natural, cuja pátria é a natureza;2) -- Que, o homem como ser natural, possui tanto o -interesse como acapacidade de conhecer a natureza;

3) - Que a natureza só pode ser interrogada ecompreendida por meio dos instrumentos que ela própria fornece ao homem.27

Trata-se aqui, obviamente, de condições gerais mas não determinantes

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eque portanto não poJem considerar-se a origem de todos os caracteres deque a ciência moderna se apresenta composta nos seus primórdios. Estes caracteres determinam por sua vez outros factores, estes porém, ainda esobretudo pertencentes ao humanismo renascentista.O primeiro consiste precisamente no já citado "regresso ao antigo" que é a tendência peculiar do humanismo. O regresso ao antigo produziu a revivescência de doutrinas e textos desprezados durante séculos, como por exemplo as doutrinas heliocêntricas dos Pitagóricos, as obras de Arquimedes, dos geógrafos, dos astrónomos e dos médicos da antiguidade. Os velhos textos forneceram com frequência a inspiração ou o motivo para novas descobertas, como aconteceu sobretudo com Arquimedes, no qual amiúde se inspirou Galileu.Por outro lado, o aristotelismo renascentista, ao mesmo tempo que dava origema uma nova e mais livre leitura de Aristóteles, ia elaborando eficazmente, empolémica com as concepções teológico-r-liracu-listas, o conceito de umaordem natural imutável e necessária, baseada na série causal dos eventos.Este conceito passou a constituir o esquema geral da investigaçãocientífica. A magia, posta em evidência pelo Renascimento, uma vez aceite edifundida, contribui para determinar o carácter activo e operativo da ciênciamoderna, o qual consiste no domínio e na sujeição das forças naturais com ofim de as colocar ao serviço do homem. Por último, a ciência derivava aindado platonismo e

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do pitagorismo antigos o seu outro pressuposto fundamental, sobre o qual insistem igualmente Leonardo, Copérnico e Galileu: a natureza apresenta-se escrita em caracteres matemáticos e a sua linguagem própria é a da matemática.A todos estes factores que, com importância diversa e de modos diferentes,condicionam os primórdios da ciência experimental na Europa, o Renascimentoestá, directa ou indirectamente, ligado neste ou naquele dos seus aspectosessenciais. Entre estes factores podem e devem certamente incluir-se ascríticas que os Escolásticos de Trezentos (Occam, Buridan, Alberto daSaxónia, Nicolau Oresmo) tinham formulado contra alguns dos pontosfundamentais da física aristotélica. Essas críticas provêm (é preciso não oesquecer) da orientação empírica que Occam fizera prevalecer na últimaEscolástica, quando, pela reconhecida impossibilidade de interpretar edefender as verdades teológicas, a filosofia ficara disponível para outrosfins e interesses. O valor de tais críticas deriva portanto, não do facto dese situarem adentro do aristotelismo tradicional mas antes do de serem

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anti-aristotélicas e de constituírem a primeira manifestação daquela revolta doaristotelismo que, na segunda metade do mesmo século e no século seguinte deuorigem ao humanismo. Constituem portanto, não a união do aristotelismo com aciência, mas, antes pelo contrário, a primeira ruptura da frente aristotélicatradicional. Ao aristotelismo de Trezentos (como a boa parte dorenascentismo) faltava todavia aquele reco-

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nhecimento da naturalidade do homem e dos seus meios de conhecimento, o qual é condição indispensável de todo e qualquer estudo experimental da natureza.Sob este aspecto o aristotelismo não podia fornecer à ciência qualquerimpulso ou razão de vida. Só a revolução humanística pôde realizar a

mudança radical de perspectiva da qual nasceu a investigação científica e a nova concepção do mundo.Esta concepção, para a qual contribuíram igualmente platónicos como Cusano eFicino, filósofos naturalistas como Telésio e Bruno e cientistas comoCopérnico e Galileu, é (,não o esqueçamos) precisamente a antítese da cone-opção aristotélica.O mundo não é um conjunto finito e concluído, mas antes um todo infinito e aberto em todas as direcções. A sua ordem não é final mas sim causal; não consiste na perfeição do todo e das partes e sim na concatenação necessária dos eventos.O homem não é o principal ser visado pela teleologia do universo e cujo destino estaria pois confiado a essa teleologia, mas sim um ser natural entre os outros, que tem a mais a faculdade de planear e realizar o próprio destino. O conhecimento humano do mundo não é um sistema fixo e concluído mas sim o resultado de tentativas sempre renovadas e que devem ser continuamente submetidas a verificação.O instrumento desse conhecimento não é uma razão supermundana e infalível mas um conjunto de poderes naturais falíveis e corrigíveis. São estes os traços gerais da concepção que ainda permanece na base da nossa ciência e da nossa civilização.30

§ 336. RENASCIMENTO: DANTE

O primeiro anúncio da renascença aparece comDante Alighieri. Toda a sua cultura é medieval e escolástica. O seupensamento filosófico oscila entre S. Tomá s e Sigieri de Brabante-ao qual,apesar da condenação eclesiástica, exaltou no Paraíso-e o seu espíritoalimenta-se dos textos e das discussões que imperavam nas escolas. A sua obrapoética, porém, vive um clima novo e anuncia os aspectos fundamentais doRenascimento. Já a poesia autobiográfica da Vida Nova não é mais do que a

análise e expressão poética da renovação sofrida pelo poeta, sob o

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impulsoespiritualizante do amor. Precisamente por causa desta renovação nasce opoeta para a sua arte e torna-se capaz de escrever poesia segundo o "doceestilo novo", por conseguinte não através duma fria elaboração doutrinal, maspor inspiração do amor que o leva a falar como lhe dita o seu íntimo. (Purg.,24, 49 e segs.). Na Comédia, porém, a ideia de renovação alarga-se eaprofunda-se, abrangendo a própria pessoa do poeta e

o seu destino individual, a renovação de tudo que o rodeia, bem como dareligião e da arte, da igreja e do estado. Aparentemente, a Comédia é a visãoprofética da viagem de Dante através dos três reinos transmundanos, viagempela qual o poeta, após ter conhecido os abismos da culpa e do pecado seafasta penosamente do mal, subindo a montanha do Purgatório até atingir nocume desta o Paraíso ,terrestre e consequentemente o esquecimento do pecado ea renovação total da sua alma, simboli-31

zados pela acção purificadora das águas do Lete e

do Eunoé. Toma-se assim digno de iniciar a última parte da viagem pelasesferas celestes, até ao limiar do mistério divino. Mas o fim da ~ dantescanão é o de descrever a preparação da alma de Dante para a vida extra-terrenamas sim o de promover a

renovação do mundo ao qual pertence o homem, Dante. O próprio Dante afirmana carta em que dedicou o Paraíso a Cangrande della Scala, que a finalidadedo poema é a de "apartar os que vivem nesta vida do estado de miséria,conduzindo-os a

um estado de felicidade" (Ep., XHI, 15). A viagem transmundana de Dante é a de um homem vivo que deve regressar para junto dos vivos e aí revelar a sua visão. É precisamente da revelação da sua visão e por conseguinte da participação na mesma de todos os homens de boa vontade, os quais poderão, servindo-se do magistério artístico do poeta, refazer com ele a viagem e com ele se renovar, que Dante espera a renascença do mundo seu contemporâneo.Esta renascença por ele esperada, é um regresso às origens. "0 supremo desejode todas as coisas", escreve em Convívio (IV, 12, 14), "e o primeiro que danatureza resulta, é o de regressar à sua origem". A igreja deverá renovar-se,regressando à sua primitiva austeridade, segundo a admoestação

e o exemplo dos seus dois grandes reformadores, S. Domingos e S. Francisco. O

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estado deverá regressar à paz, à liberdade e à justiça que eram oseu apanágio na ora de Augusto, renovando-se assim no regresso à concepção imperial de Roma.32

Mas precisamente porque a intenção de Dante visa o outro mundo para depoisregressar a este e promover a sua renascença, a obra do poeta é rica de umarealidade humana, na qual os símbolos e as alegorias acham a carne, e osangue que lhes dão vida. A natureza da arte de Dante é determinada pelopropósito de renovação, da qual o poeta a

considera instrumento. Precisamente porque essarenovação deve tirar os homens da sua miséria e conduzi-los à renascença nummundo renovado, é que os homens figuram no poema dantesco não como símbolosou esquemas conceituais (ainda que às vezes ali apareçam com esta função) masantes com a sua realidade humana, os seus ~os, as suas paixões e a suaaspiração ao divino. É impossível separar no poema de Dante o conteúdodoutrinal as alegorias e os símbolos, da forma poética, na qual aquelesencontram a própria realidade artística. A distinção entre forma e conteúdo impossibilita o entendimento da arte de Dante a qual possui a mesma unidade da personalidade histórica do seu autor. As doutrinas, alegorias e símbolos fazem parte integrante da concepção dantesca de renascença, como dela fazem igualmente parte integrante os homens que deverão vivê-la e fazê-la sua.Dante não se teria preocupado em revestir de carne e ossos os seus símbolosse não o tivesse MOVido uni interesse fundamental, como é o de fazerparticipar os homens e o seu mundo, da renascença por ele próprio sofrida, nasua viagem transmundana. Quanto maior for a corpulência humana e passionaldas sombras que pululam nos fossos33

;infernais, padecem os tormentos purificadores ou

sorriem envoltas na luz do paraíso, tanto mais evidente )resultará o apelo à renovação e à exigência de renascença para as quais propende o espírito de Dante. No ocaso da Idade Média, Dante vem afirmar, com todo o poder da sua arte, a exigência daquela renovação que deveria ser a palavra de ordem da renascença.§ 337. RENASCIMENTO: PETRARCASe Dante se encontra ainda doutrinalmente ligado à Idade Média, FranciscoPetrarca (20 de Julho de1304-18 de Julho de 1374) já se liberta mesmo doutrinalmente daquele mundo edá início pleno aohumanismo. A polémica que conduziu contra oaverroísmo em De sui ipsius et nzultorum ignorantia (1337-38), assinalaprecisamente essa libertação. Tal polémica é conduzida em nome da velhasabedoria romano-cristão, representada por Cícero e Santo Agostinho, que

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Petrarca considera fundamentalmente de acordo entre si. A difusão doaverroísmo, com o crescente interesse que suscitava pela investigaçãonaturalista, parece a Petrarca desviar perigosamente os homens daquelas artesliberais que são as únicas a poder dar a sabedoria necessária para sealcançar a paz espiritual nesta vida e a

eterna beatitude na outra. Quase todos o& conhecimentos que os ditosinvestigadores naturalistas acabam por atingir, vêm a revelar-se falsos à luzda experiência; "mas ainda que fossem verdadeiros", acrescenta Petrarca, "denada serviriam para

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a vida beata". A sabedoria clássica e cristã, contraposta por Petrarca àciência averroísta, é a baseada na meditação interior pela qual se esclarecea si própria e se forma a personalidade do homem como indivíduo. O processoautobiográfico de Santo Agostinho, continuamente debruçado sobre si próprio epara quem não existe problema que não seja o

seu próprio e não existe doutrina que não responda a uma sua própriaexigência pessoal (§ 156), é o que se apresenta mais próximo do seu espíritoe a ele pensa recorrer continuamente. Este processo é o adoptado por si naobra (composta entro1347 e 1353) De contemptu mundi à qual chamou também Secretum e que em algunsmanuscritos se apresenta com o título "0 conflito secreto das suaspreocupações" (De secreto conflictu curarum sua-

rum). É um diálogo entre Petrarca e Agostinho, durante o qual o primeiroreporta continuamente ao exemplo e aos ensinamentos do segundo tolas

as suas exigências de ordem espiritual. Esta obra porém, contém além disso aconfissão do conflito interior do poeta, da sua íntima debilidade. Confessa-se ele vítima daquela acédia (ou acídia) que era a moléstia medieval dosconventos e consistia rum doloroso tédio da w;da. A clareza que traz às suascontradições íntimas é sintoma que atingiu o sentido da pers-onalidade o qualemerge precisamente dessa clareza. Numa carta famosa (Ep. famil., IV, 1), aodescrever a sua ascensão ao Monte Ventoso, Petrarca narra como, ao chegar aocume, em vez de se deter na contemplação da majestade do espectáculo que selhe oferecia, abriu as Confissões35

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de Santo Agostinho que frequentemente o acompanhavam nas suas peregrinações eleu "Os homens contemplam as altas montanhas, as enormes ondas do mar, olargo curso dos rios, o vasto círculo do oceano e os caminhos das estrelas-mas esquecem-se de si próprios e a si próprios se encaram sem admiração". Põeentão a advertência de Santo Agostinho Noli foras ire em relação com o Scitote ipsum de Sócrates e reconhece que toda a sabedoria antiga tende àconcentração do homem em

si próprio, distraindo-o do mundo exterior. A suavontade, todavia, continua dividida entre a admiração perante, a natureza e aadvertência da sabedoria, no seu espírito lutam o chamamento do mundo e oapelo à concentração interior, luta esta que é característica da suapersonalidade. É esta mesma

luta que o leva, por um lado, a afastar-se do mundo, buscando a solidão emValchiusa, e por outro aprocurar honras e glória, juntamente com a coroa-ção em Campidoglio. No seu espírito combatem ohomem medieval, acorrentado pelo desejo exacerbado da eterna salvação, o qualexige a maior concentração interior, e o homem moderno, enamorado de Laura,amando a natureza e desejando a glóriae a opulência. Está porém consciente da contradiÇão existente entre as duas exigências e é precisamente nessa consciência que reside a novidade da sua personalidade.Procurou ele libertar-se dessa contradição através da meditação moral em Dereniediis utriusque fortunae. Mas mesmo aí, a contradição aparece reconhecidacomo a lei da vida. "Tudo acontece", diz-36

* nos, ",por força da contradição. Aquilo a que se (lá o nome de mudança é na verdade luta". E a maior e mais áspera luta, é a que se trava no próprio homem. "Que cada um se interrogue e responda a si próprio para assim se dar conta até que ponto a sua vontade é intimamente contrariada por diversas e contrárias paixões e impelida, ora para cá, ora para lá, por estímulos vários e opostos. Jamais se consume ou se apresenta homogénea, mas sim interiormente discorde e dilacerada". Donde o pessimismo que domina as meditações de Petrarca e o leva a afirmar acerca da vida: "A cegueira e o olvido marcam o seu início, o cansaço a sua continuação, a dor o seu termo e o erro todas as coisas".

Este pessimismo, porém, não impediu Petrarca de esperar e anunciar arenascença de uma era de paz. Na canção ao Espírito gentil (quer tenha ounão sido dedicada a Cola di Rienzo), manifesta aesperança de que Roma seja novamente chamada "à sua antiga viagem" e

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reencontre o seu antigo esplendor "<.A minha Roma voltará a ser bela"). Enoutro passo, não falta a espectativa de uniretorno à época áurea do mundo, ou seja à erada paz e da justiça:De almas belas e amigas da virtude Se vai enchendo o mundo; nele veremos depois Tudo áureo e cheio de obras antigas.A época áurea consiste pois num regresso das "obras antigas", quer dizer, docostume e das artes37

antigas. E Petrarca contribui para a renascença do antigo com a sua obra depoeta e de historiador: África, o poema latino do qual esperava a máximaglória, é uma exaltação da virtude romana que jamais se considerou separadada justiça e da benevolência; De viris illustribus é uma tentativa dereconstrução das grandes figuras históricas da antiguidade, para nelaspatentear a sua profunda e

essencià humanitas e idêntico fim têm os Reruin memorandarum cujo significado o próprio Petrarca esclarece, ao dizer: "Estudarei os exércitos romanos, perlustrarei o fórum e, quer nas legiões armadas, quer no tumulto do fórum encontrarei espíritos pensativos e dados à contemplação".§ 338. HUMANISTAS ITALIANOS: SALUTATI, BRUNI, RAIMONDI, FILELFONa esteira de Petrarca seguem os humanistas italianos. Coluccio Salutati(1331-1406) que foi durante 30 anos escrivão da senhoria de Florença,apresenta certos traços de semelhança com Petrarca. Coluccio consideraestéreis, perante a morte, as consolações aduzidas pelos filósofos. A morte éum mal, diz nas Epistolae, embora não seja um mal moral e sim natural, nãouma culpa e sim uma pena. É um mal para quem morro e um má para os parentes eamigos; e é o pior dos males pois consiste na perda do ser. Mesmo que a almasobreviva, o homem, sendo unidade de corpo e alma é

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anulado pela morte que é assim para ele o mal pior. Por conseguinte, o factode o homem nada poder fazer perante a morte, aumenta e agrava a

sua dor em vez de a diminuir. Em face da morte não há pois outra consolaçãoalém da fé: só Deus pode conceder ao homem a graça de o fazer suportar aideia- Aqui, portanto, se por um lado amorte é despojada de todos os aspectos consoladores e benéficos de que erarevestida pela sabedoria antiga e cristã, por outro recorre-se à pura graçade Deus para obter a designação no inevitável. É uma atitude de intimacontradição, já muito remota da medieval. Igualmente remota da concepçãomedieval é a exaltação que Coluccio faz da vida activa relativamente à

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contemplativa. Quem se perdesse na contemplação de Deus a ponto de já não secomover com a infelicidade do próximo, de não se afligir com a morte dosparentes e de não vibrar com a ruína da pátria, não seria um

homem mas antes um tronco ou uma pedra. Por isso, a verdadeira sabedoria nãoconsiste no puro entendimento mas, é antes e sobretudo prudência, ou sejarazão mentora da vida. E num seu tratado, intitulado De nobilitate legum etmedicinae, Coluccio afirma que de boa vontade, contanto que lhe deixem a ciência das coisas humanas, abandonará todas as outras verdades aos, queexaltam a

especulação pura. Põe também as leis, que dizem precisamente respeito aoshomens e às suas relações mútuas, acima da medicina e das ciências naturaisem geral, as quais só se ocupam de coisas materiais. Finalmente, é tambémcaracterística de

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Coluccio a afirmação da liberdade humana que julga conciliável. com a ordem infalível do mundo criado por Deus (De fato, fortinta et castí.Discípulo de Salutati foi Leonardo Bruni, nascido por volta de 1374 efalecido em 1444. Estudou grego com Emanuel Crisolora, o qual, tendo chegadoa Florença em 1397, deu aos estudos humanísticos, a possibilidade de se poremem contacto directo com o mundo grego na sua língua original. Bruni traduziudo gre.-p para o latim numerososdiálogos platónicos e ainda a Ética Nicoinachea, a Económica e a Política, deAristóteles. Escreveu uma Vita Ciceronis e uma Vida de Dante, considerandoxealizado nestas duas figuras o ideal do homem douto e sábio que, longe depermanecer alheio à vida política, nela participa activamente. Na VitaArístotelis, e em Dialogi ad Petrum Histrum onde se discute o valorcomparativo de antigos e

modernos bem como em Isagogicon moralis disciplinae, a sua preocupaçãoconstante é a de demonstrar como as doutrinas morais das mais importantesescolas filosóficas da antiguidade (platonismo, aristotelismo, epicurismo,estoicismo) concordam fundamentalmente entre si. E é justamente às doutrinasmorais que Bruni dá o máximo relevo, uma vez que as disciplinas meramenteespeculativas lhe parecem menos úteis para a vida. " A filosofia

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moral", dizno Isagogicon "é, por assim dizer, inteiramente nossa. Por isso aqueles que adescuram, dedicando-se antes à física, parecem de certo modo ocupar-se deassuntos estranhos, desprezando os pró-40

prios". Estas palavras de um admirador entusiástico e conhecedor directo dosGregos que tão frequentemente afirmavam a superioridade da vida especulativa,são significativas quanto à tendência dos humanistas para a exaltação da vidaactiva o da participação do homem nos negócios públicos com vista ao bemcomum. Também é característica a convicção de Bruni, segundo a qual osfilósofos antigos nada ensinaram que fosse diferente da verdade cristã. "Masse quisesse referir tudo quanto h nos filósofos de concordante com as nossasverdades, creio que suscitaria a admiração de muitos... Ensina Paulo algomais do que Platão?" A sabedoria antiga, quer cristã, quer pagã, aparecia aos

olhos de Leonardo Bruni como um todo harmónico; por conseguinte o regresso à sabedoria clássica justificava-se como uma renascença daquela vida moral que os filósofos antigos haviam conhecido e o cristianismo fizera sua, espalhando-a depois pelo inundo.Os humanistas empenham-se cada vez mais decididamente em considerar eapreciar os aspectos propriamente humanos da vida, ou seja, o que dizrespeito ao homem na sua essência terrestre e activa, ao homem que, antes deatingir a felicidade transmundana, procura conseguir na terra a que forhumanamente possível. Esta compreensão humana do homem, este reconhecimentosem condenação da sua tendência para a felicidade terrena, antes lheadmitindo a legitimidade e o valor, determina

uma nova valorização do prazer e por conseguinte41

uma nova apreciação do epicurismo, doutrina para a qual o prazer ora oobjectivo da vida. Tom-se agora uma concepção correcta do epicurismo e

sabe-se que para Epicuro o prazer não andava separado da virtude mas era,pelo contrário, por ela condicionado. Por esse motivo Epicuro é exaltado comoaquele que enunciou uma verdade fundamental da sabedoria prática do homem. Aexaltação de Epicuro encontra-se numa carta de Cosmo Raimondi (cremonês,falecido em 1435) para Ambrósio Tignosi. "Epicuro", diz Raimondi, "considerouo prazer como o supremo bem porque perscrutou profundamente as forças danatureza ecompreendeu que nascemos e somos formados a partir da natureza, de tal

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modoque não há nada mais congruente do que possuir íntegros e sãos todos osmembros do corpo, conservando-os nesse estado, isentos de todo e qualquer malespiritual ou corporal". A própria virtude se apresenta subordinada aoprazer, na medida em que não é procurada senão porque permite viverprazenteiramente, evitando os

prazeres que não convém buscar e buscando os que convêm. Idêntica defesa doprazer é frequentemente encontrada nas cartas de Francisco Filelfo (1398-1481), o qual insiste na identidade entre a virtude e o prazer e declara quelhe parece "não apenas tolo, mas completamente louco e fátuo aquele quepretende negar o gozo do prazer mais alto, da felicidade e da beatitude, aohomem virtuoso". Este aspecto do humanismo atinge porém a sua expressão máxima com Lourenço Valla.42

§ 339. LOURENÇO VALLA

Nascido em Roma em 1407, Lourenço Valla vagueou por várias cidades italianase viveu durantemuito tempo na corto de Nápoles-, veio a falecer em Roma em 1457. A sua obramais famosa é oDe voluptate, um diálogo em três partes, no qual se defende a tese de que oprazer é o único bempara o homem e se apresenta uma concepção optimista da natureza, quecontrasta não só com o

estoicismo ao qual aparece polemicamente oposta, mas até mesmo com oascetismo cristão. O prazer é, segundo Valla, o único fim de toda aactividade humana. As leis que governam as cidades foram elaboradas com umpropósito de utilidade, a qual gera o prazer, e todos os governos visam omesmo

fim. As artes liberais, como por exemplo, as que têm por objectivosatisfazer as exigências necessárias à vida, a medicina, a jurisprudência, apoesia e a oratória, têm todas como fim o prazer, ou pelo menos a utilidade,que é o que conduz ao prazer (11, 39). A virtude não é senão a escolha dosprazeres: procederá bem aquele que preferir a maior à menor vantagem e amenor à maior desvantageM (11, 40). Até mesmo o cristão só age pelo prazerque todavia para ele é, não o terreno e sim o coles- -. Porém e diversamentedos restantes glorificadores do prazer, Lourenço Valla não considera este

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como idêntico à virtude. Não é verdade que só o

justo seja feL-z, pois, pelo contrário, a vida nos43

mostra frequentemente que assim não é. Na realidade ao cristão apresenta-se aseguinte alternativa: ou se inchna para o prazer terreno e renuncia ao

eterno ou se inclina para este e renuncia àquele (111, 9). Mas quem espera osbens eternos não deve gemer, nem sofrer ou acusar Deus porque lhe faltam osterrenos. A renúncia do cristão deve ser confiante e jovial, para serverdadeiramente sincera e total

(111, 11).Para Lourenço Valla é a aceitação desta condição que é própria do homem no mundo, consistindo na consciência da alternativa que esta condição apresenta."Compreendo", diz-nos, "de que te lamentas: de não teres nascido imortal,como se a natureza estivesse em dívida para contigo. Se ela não pode dar-temais, e é certo que nem mesmo ospais podem dar tudo a seus filhos, não lhe estás reconhecido pelo querecebeste? Preferirias, certamente, não estar exposto ao risco quotidiano deferidas, mordeduras, venenos e contágios. Mas quem assim fosse, seria imortale igual à natureza e aDeus, ora isto não devemos pedi-lo nem é possível à natureza concedê-lo".Glorificador da língua latina, na qual via o sinal da persistente soberaniaespiritual da Roma antiga após a ruína da sua soberania política(Elegantiarum linguae latinae libri, 1444), Valla provou com

argumentos filológicos num opúsculo famoso, intitulado De falso credita etemenlita ConstantÚri donatione declamatio (1440), ser falsa a doação deConstantino, ficando deste modo demonstrada a nuli-

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dade jurídica da pretensão do papado à supremacia política universal.Paralelamente, combateu em De

professione religiosorum (1442) a pretensão da Igreja à exclusividade dagarantia das autênticas relações do homem com Deus nas suas ordensreligiosas. ValI, a não reconhece qualquer privilégio à vida monacal. A vidade Cristo não é custodiada apenas por aqueles que pertencem às ordensreligiosas mas

sim por todos quantos, dentro ou fora da sociedade dos clérigos, dedicam a

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Deus as suas vidas. A verdadeira religiosidade depende unicamente da atitudedo indivíduo, que livremente entra em ligação com Deus e não da adesão a umaobrigação formal de carácter colectivo. Afirma-se aqui a liberdade da vidareligiosa contra a sua regulamentação medieval. E na verdade a exigência deliberdade, da liberdade do indivíduo como tal, está na base de toda a posiçãode Valla, que a faz valer em nome da própria religião e contra as ordensreligiosas e também em nome da investigação filosófica, contra o espírito dereverência pela tradição escolástica. As suas obras De libero arbítrio eDialecticae disputationes (1439) são dirigidas precisamente contra opredomínio de aristotelismo, que considera como a negação ou limitação daliberdade de investigação. No prefácio desta última obra e após ter afirmadoque depois de Pitágoras, mais ninguém teve o nome de sábio mas apenas o defilósofo e que sempre os filósofos tiveram a liberdade de dizer ousadamente oque pensavam, acrescenta: "Tanto menos suportáveis são os peripatéticosmodernos que negam aos

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sequazes de toda e qualquer ~Ia a liberdade de discordarem de Aristóteles,como se este fosse sophos e não filósofo e como se ninguém o houvessediscutido antes". E depois de haver aludido à variedade de opiniões dasescolas filosóficas que se seguiram a Aristóteles e à linguagem bárbara deAvicena e Averróis, apoda de "homens supersticiosos, insensatos e indignos desi mesmos, porque se privam culposamente da faculdade de procurar a

verdade", aqueles aristotélicos que induzem os próprios discípulos a jurarque não mais discuidarão Aristóteles. A mesma afirmação de liberdade seencontra em De libero arbítrio. Aqui porém, trata-se antes de uma lição pelaqual Deus condena ou salva os homens, ultrapassando assim os limitesconsentidos à investigação humana. Nem os homens, nem os anjos conhecem omotivo pelo qual a vontade divina torna certos homens empedernidos no mal etem piedade de alguns outros. Valla nega todavia que se trate de umacontradição entre a liberdade humana e a presciência divina: assim como oconhecimento de um acontecimento presente não determina esse evento, assimtambém o conhecimento futuro não determina necessariamente que o mesmo

sobrevenha. A presciência divina não é causa dos acontecimentos futuros, os quais permanecem por isso contingentes. A solução de Valla

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para este problema é a escolástica mas o problema em si é livremente colocado e expresso mediante um mito: Apolo representa a presciência e Júpiter a omnipotência.46

§ 340. HUMANISTAS ITALIANOS: FAZIO, MANETTI, ALBERTI, PALMIERI, SACCHI,NIZOLIO

Entre os temas preferidos pelos humanistas italianos, dois há que sobressaemrelativamente a todos os outros: a dignidade do homem e o elogio da vidaactiva. O primeiro aparece-nos tratado num

escrito de Bartolomeu Fazio (nascido em Espézia e falecido em 1457)intitulado De excellentia et prestantia hominis, insignificante do ponto devista especulativo, e também num escrito análogo de Giannozzo Manetti (1396-1459) intitulado De dignitate et excellentia hominis. Nesta obra, parte-se daafirmação do carácter divino do homem para se atingir a formulação da suatarefa, expressa na

fórmula agere et intelligere. Agir e compreender significam para GiannozzoManetti "saber e poder governar e dirigir o mundo, o qual foi feito para ohomem". O reconhecimento da dignidade humana é ao mesmo tempo reconhecimento da missão de domínio que o homem deve desempenhar no mundo, consistindo num regnum hominis no sentido baconiano.Contrastando com o optimismo ingénuo destas exaltações, apresenta-se-nos o tom realista e pessimista que domina as obras de Leão Battista Alberti (1404-1472), nas quais a exigência de afirmar no mundo o poderio do homem anda ligada ao reconhecimento das dificuldades e perigos da sua efectivação.Opondo-se à atribuição de culpas à sorte, por parte dos homens, Alberti diz-nos na introdução47

do seu tratado Da família que não se pode atribuir à sorte a função deconservar a virtude, os costumes ou as leis dos homens nem a culpa dasvicissitudes humanas. "A sorte não pode, nem, ao contrário do que julgamalguns idiotas, é assim tão fácil, vencer quem não quer ser vencido. A sortesó subjuga quem a ela se submetem. Desta conclusão, porém, apenas surge parao homem a obrigação de agir de modo mais enérgico. "Por conseguinte, parece-me poder-se acreditar que o homem nasceu, certamente não para apodrecerjazendo, mas para viver agindo". Advertência semelhante se

encontra na obra Da vida civil de Mateus Palmieri (1406-75), onde se afirma asuperioridade da vida consumida ao serviço do bem público sobre a vidasolitária e devotada somente à meditação. Este tema é igualmente

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tratado emDe óptimo cive de Bartolomeu Sacchi (chamado o Platina, nascido em 1421 efalecido em Roma em 1481), para quem o homem que se refugia na solidão é umegoísta que se esquiva ao cumprimento da obrigação de trabalhar pelo bem dosseus semelhantes,A polémica contra a Escolástica, que já fora defendida energicamente porLourenço Valla, é retomada por Mário Nizolio, nascido em Bersello, perto deMódena em 1498 (ou 88) e falecido em1576. A sua obra principal intitula-se Antibarbarus philosophicus sive deveris principiis et vera ratione philosophandi contra pseudophilosophos(1553), a

qual é dirigida contra os aristotélicos que falsearam ou entenderam malAristóteles e contra o próprio Aristóteles, que juntamente com algumasverdades,

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ensinou enorme quantidade de erros. As verdades contêm-se nos livros de éticae política, na retórica e nos tratados sobre os animais; os erros, sobretudona lógica e na metafísica. É portanto necessário ler Aristóteles com espíritocrítico e saber distinguir nele o verdadeiro do falso. E Nizolio enumeraentão as condições essenciais a todo e qualquer progresso rios estudosfilosóficos: um bom conhecimento das línguas latina e grega, o conhecimentodas regras gramaticais e da retórica, a leitura assídua dos autores gregos elatinos, a liberdade de apreciação e a

clareza de expressão (Antibarb., 1, 1). Para combater Aristóteles, Nizolio,adopta o ponto de vista de Ockham. A realidade é sempre individual. Ouniversal não é mais do que o acto de compreensão (comprehensio) do intelectopelo qual se abarcam todas as coisas particulares que pertencem ao mesmo

,género (111, 7). A realidade universal de que falam Dos Escolásticos é destituída de sentido. O universal não passa de um nomepuro que designa um conjunto de coisas particulares. As ciências maiselevadas são a filosofia e a retórica. Constituem ambas um todo ú nico, talcomo a alma e o corpo, correspondendo a filosofia à alma e a retórica aocorpo; ,nenhuma delas pode passar sem a outra e apenas se distinguem pelas respectivas tarefas pois-. enquanto a filosofia tem como objectivos o conhecimento da verdade e a rectidão das acções, a retórica tem como fins a rectidão do pensamento e da fala, no tocante às coisas naturais e civis (111, 3). A filosofia divide-se por sua vez em física e política; da primeira faz parte a t"ogia e da segunda, a

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ética.49

A doutrina de Nizolio constitui o último ataque à Escolástica levado a cabocom as próprias armas

da Escolástica. O ockhamismo é por ela utilizado para defender a sabedoriahumanística e a liberdade de investigação, da persistente reverência pelatradição aristotélica

§ 341. BOVELOEm França, o iniciador dos estudos humanísticos mediante o regresso aoaristotelismo original foi Jaime Faber (Jacques Lefèvre, 1455-1537). Odiscípulo de Faber, Carlos Bovi,.Uus (Charles Bouillé,1470 ou 75-1553, aproximadamente) é uma das personalidades mais notáveis dafilosofia humanista, cujos temas apreende e expõe com grande liberdadeespeculativa. A sua obra mais significativa é De sapiente, no qual reconheceao homem aquela posição central de árbitro e síntese de todo o mundo naturalque igualmente lhe reconheciam Cusano (§§349 e segs.), Ficino (§§354 escgs.), Pico (§§357 e segs.) e Pomponazzi "§§362 e segs.). "Ao homem",escreve, "nada é próprio nem peculiar mas são-lhe comuns todas as coisaspróprias dos outros seres. Tudo o que é próprio deste ou daquele ser ou émesmo próprio dos seres individualmente considerados, pertence também ao homem.O homem transfere para si a natureza de todas as coisas, reflecte tudo eimita a natureza inteira. Ao atingir e absorver tudo quanto está na natureza,torna-se ele próprio tudo isso. Por conseguinte ele não é este ou aquele serparticular nem lhe pertence50

esta ou aquela essência, mas é simultaneamente todas as coisas". Por causadesta sua posição singular o homem encontra-se no cume de toda a realidade.Tom esta quatro graus, segundo Bovilo: o ser, a vida, o sentir e o entender. O mais baixo destes graus, o ser, pertence a todas as coisas: às pedras, às plantas, aos animais e ao homem. Porém, só pelo entender é que o ser atinge a consciência de si próprio e assim conclui o termina o ciclo do seu desenvolvimento. "Definimos a razão como a força pela qual a mão natureza volta a si própria e pela qual se completa o ciclo de toda a natureza, sendo esta restituída a si própria" (De sap., 5).Até aqui parece que nos encontramos em presença do habitual ideárioneoplatónico, segundo o

qual a obra do homem é o acabamento racional e místico do mundo. Na verdade,porém, as afirmações de Borvilo têm outro valor e tendem a definir a

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tarefado homem e a alternativa do seu destino. O homem pode com efeito escolherlivremente entre passar por todos aqueles graus, alcançando na inteligência ocompletamento do ser, ou parar num deles. Se sucumbir ao vício da inércia e àmoleza medieval, degradar-se-á até ao ponto de não ser mais que existêncianua, sem forma e por conseguinte sem consciência, se, pelo contrário, seelevar até ao grau mais alto, elevará consigo o próprio mundo no seu totalacabamento (De sap., 1-2). Só por esta segunda via o homem se tomará nummicrocosmo, num minor mundus, levando consigo, na sua verdade o no seu valorautêntico, o macrocosmo, o maior mundus. Da decisão do homem,

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dependerão, ao mesmo tempo, a realização completa e final do próprio homem edo mundo. o homem deve formar-se como tal, com virtude(, e arte, e, aoformar-se homem, dará ao mesmo tempo ao mundo a sua forma final porque lheconfere a perfeição última: a inteligência de si mesmo. "Esta", diz Bovilo(De sap., 24) "é a

realização consumada (consumatio) do homem econsiste na passagem de homem substancial ahomem racional, de homem natural a homem adquirido, de homem simples a homemcomposto, perfeito e sábio". A natureza humana multiplica-se com estapassagem e de mónada transforma-se em

díade, de homo em homohomo. O verdadeiro homem é aquele que se desdobrou nosábio, ou seja, na consciência que adquiriu de si próprio edo mundo. Mas a díade traz consigo a tríade. Entre o homem como puro ser natural e o homem que se forma por si com arte, devem existir um nexo e uma concordância que são paz e amor, a ligar os dois termos. A mónada e a díade combinam-se entre si, formando o tríade homohomoh~ que é a última perfeição do homem (De sap., 22).Mas o homem como tal, nada tem de comum com os outros seres da natureza;coloca-se numa esfera à parte para onde tudo converge por obra sua, esferaessa situada no polo oposto àquele emque se encontram as outras coisas do mundo.O homem é o centro de todas as coisas, o espelho no qual estas se reflectem, não na sua realidade material e sim na sua realidade verdadeira e ideal."Seja qual for o lugar em que colocares todos os52

seres do mundo, no lugar oposto deverás colocar o homem para que possa ser oespelho de tudo". Alude-se aqui claramente pela primeira vez à

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subjectividade que é a função do homem como tal e por conseguinte àpolarização pela qual o mundo acaba por se estruturar entre objectividade esubjectividade, entre natureza e homem. Reconhece-se ainda à subjectividadehumana um poder de iniciativa, que é essencial ao próprio mundo, umavez que o transfigura e o conduz a uma ordem e a unia unidade que ele por sisó não poderia atingir. "Todas as coisas eram plenamente actuais e cada Limadelas permanecia constante no seu grau, no seu lugar e na sua ordem. Jamais ohomem poderia ter nascido das diversas actualidades, das diferentes espécies,da diversidade entre as coisas e luzes do mundo, que por si sós não poderiamnem dever:'am misturar-se, confundir-se nem harmonizar-sc. Portanto, foiprecisamente no exterior das diferenças e propriedades de todas as coisas, nopolo oposto àquele em que todas se encontram, no nó vital do mundo, no centrode tudo, que o homem se formou, como uma criatura. pública, preenchendo tudoquanto ficara vazio na natureza com forças, sombras, espécies e razões". (Desap., 26). Não poderia ter-se exprimido melhor, na linguagem neoplatonizantee escolástica, a originalidade do homem como sujeito, faca à objectividade danatureza. Há um mito que exprime, segundo Bovilo, esta autoformação do homemque se duplica no tocante à sua naturalidade e se torna sábio: é o mito dePrometeu. Assim como Prometeu penetrou na morada divina para

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ali roubar o fogo e dá-lo aos homens, também o sábio que abandona o mundo sensível e penetra no espaço celestial, leva ao homem o lume da sabedoria, deste modo o fortalecendo e reanimando. Com efeito, o homem, por virtude deste lume "conquista-se a si próprio, possui-se e permanece seu, ao passo que o ignorante se conserva devedor à natureza, oprimido pelo homem essencial e sem pertencer jamais a si próprio". (De sap., 8). Prometeu simboliza portanto o homem que por si se forma e se possui. Bovilo exprimiu com grande energia e profundidade o resultado para o qual tende toda a especulação humanista.§ 342. humANISTAS FRANCESES, ESPANHóIS E ALEMÃESA Jaime Lefèvre junta-se em França Podro Ramus (de Ia Ramée, 1515-1572),autor de numerosas obras nas quais aparecem novamente expostas a física, ametafísica e a lógica aristotélicas. Nas suas Dialecticae institutiones(1543), procura formular uma lógica ou uma dialéctica diferente daaristotélica e mais conforme ao funcionamento natural do pensamento. D3fine adialéctica como doetrina disserendi, ou seja, ciência que ensina a arte de

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discutir, a qual deve acompanhar, no seu método e nas suas divisões, ocomportamento natural do homem quando discute consigo próprio e com os outros acerca de um qualquer objecto. Este comportamento natural é o seguinte:primeiramente54

medita em silêncio para encontrar o argumento que resolverá determinadaquestão; depois exprime a ideia assim formulada e elaborada racionalmente, detal modo que se preste a responder a toda e qualquer objecção que lhe sejadirigida. De acordo com este processo natural de pensar, a dialéctica na suaprimeira parte será o guia e a

base para a solução das questões; na segunda parte será o guia para a expressão desta solução de maneira a poder responder às possíveis perguntas. Por outras palavras, os momentos da dialéctica serão dois: a elaboração mental de um problema e a sua expressão verbal apta a enfrentar a discussão.Ramus constrói sobre estas bases uma exposição minuciosa e pedante queconheceu grande êxito nas escolas lógicas da época mas que tem hoje reduzidointeresse. O que há nele de importante é apenas a exigência de que parte: arecondução da forma lógica do discurso à sua forma natural e o consequenteamoldar da dialéctica ao método próprio de qualquer homem que pense eraciocine. Nisto se revela o espírito humanístico da sua dialéctica queassina-Ia também, embora a seu

modo, um regresso à natureza e ao homem.Exigência semelhante se encontra no espanhol Luís Vives, nascido em Valência em 1492 e falecido em 1540, o qual foi amigo de Tomás Moro (§ 367) e autor, entre outras, de uma obra enciclopédica intitulada De disciplinis (1531).Víves parte também da crítica à lógica aristotélica e opõe-se sobretudo àreverência incondicional que esta lógica desperta ainda nas várias escolas,reverência esta, na qual

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Vives vê a causa da decadência das ciências. É necessário, segundo Vives,regressar, não à doutrina de Aristóteles, agora já inadequada, mas ao exemplo de Aristóteles; os verdadeiros discípulos de Aristóteles não são os que juram pela sua palavra, mas sim os que interrogam a natureza como ele próprio fez.Só através da investigação experimental se, pode chegar ao conhecimento danatureza; são inúteis as subtilezas aristotélicas. Nos três livros da obra Deanima et vita (1539), Vives enuncia uma exigência empírica: é precisoinvestigar, não o que é a alma em si, mas sim as propriedades da alma e

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o modo pelo qual estas operam. Popérri, Vives só parcialmente se conservafiel a este princípio, que deveria assinalar a passagem da psicologiametafísica dos antigos à psicologia empírica, pelo que os seus resultados sãoescassamente significativos. É todavia fácil reconhecer em toda a sua obra-que frequentemente cai no formalismo lógico - aexigência fundamental do humanismo, que é a de um renascimento da ciência mediante o regresso -não já à letra das doutrinas antigas mas ao espírito (quer dizer, aos modos e métodos) em que foram formuladas.Na Alemanha, quem primeiro enunciou esta exigência foi Rudolfo Agrícola(1442-85), autor de umaobra intitulada De inventione dialectica, na qual assume relativamente àdialéctica a mesma posição de Lourenço Valla. Agrícola combate a reverênciainconsiderada por Aristóteles e afirma a necessidade de joeirar livremente assuas doutrinas. Considera ele como indispensáveis o estudo e o conhecimento56

dos escritores antigos para se poderem reconduzir as ciências à sua formalegítima e o fim do seu livro é o de fornecer, deduzindo-os precisamentedesses escritores, os meios pelos quais se pode chegar ao conhecimento dascoisas e à expressão do seu carácter essencial. Agrícola resolve em sentidonominalista. o problema dos universais. Certas coisas apresentam propriedadesidênticas e essas propriedades comuns constituem precisamente o universal. Ouniversal não é portanto outra coisa senão a semelhança que as coisasapresentam nas

suas propriedades essenciais. Porém a importância de Agrícola reside, mais doque nestas doutrinas e na análise por si feita das formas retóricas dodiscurso, em ter sido o primeiro que na Alemanha contribuiu para aqueleregresso ao classicismo que constitui a mensagem do humanismo..

§ 343. MONTAIGNEO regresso do homem a si mesmo, que constitui a essência do movimento de renovação renascentista, encontra a sua expressão culminante na obra de Montaigne.Miguel de Montaigne nasceu em 23 de Fevereiro de 1533 no castelo de Montaigneno Périgord, em França. Educado pelo pai com um método que excluía todo equalquer constrangimento ou severidade, aprendeu o latim como língua maternaatravés de um perceptor que não sabia francês. Estudou direito e tornou-seconselheiro no parla-57

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mento de Bordéus (1557). o seu primeiro trabalho literário foi a tradução deuma obra do teólogo cataIão Raimundo Sabunde (falecido em Toulouse em1436) intitulada Liber creaturarwn ou Theologia naturalis, livro deapologética que procurava demonstrar a verdade da fé católica mais peloestudo das criaturas e do homem, do que com o apoio dos textos sagrados e dosdoutores da igreja. Em 1571 retirou-se para o seu castelo com o fim de sededicar aos seus estudos. Os primeiros frutos do seu trabalho (Ensaios, 1, 2-20, 32-38, 40-48) são simples compilações de factos e sentenças, obtidas apartir de diversos escritores antigos e modernos e nas quais não surge aindaa personalidade do autor. Seguidamente, porém, essa mesma personalidadecomeça a ser o verdadeiro objecto central da meditação de Montaigne, a qualassume o carácter de "pintura do eu" (1, 26, 31; H, 7, 10, 17, 37). Naquelemesmo ano, deixou a França e viajou pela Suíça, Alemanha e Itália onde, emRoma, passou o inverno de 1580-81. Tendo sido nomeado prefeito de Bordéus,regressou à pátria, mas as preocupações do cargo não o impediram de sededicar ao estudo e à meditação. Em 1582 publicou uma segunda edição dosEnsaios enriquecida com algumas adendas, publicou outra em 1588, contendonumerosas adendas aos primeiros dois livros e ainda um terceiro livro. Nesteúltimo, a pintura do eu constituia a parte predominante. Montaigne trabalhavanuma nova edição da sua obra, com ulteriores aperfeiçoamentos quando em 13 deSetembro de 1592 faleceu no seu castelo. O título da obra de Montaigne indica58

claramente o carácter da mesma. Ensaios quer dizer experiências (e nãotentativas); Montaigne pretende descobrir as experiências humanas expressas nas obras de autores antigos e modernos e pô-las à prova, relacionando-as com as suas próprias experiências.O olhar continuamente virado para si próprio, ameditação interior não já religiosa mas laica e filosófica e incidindoportanto não apenas sobre o próprio eu espiritual, mas também sobre todos osassuntos e coisas humanas e símultâneamente o diálogo permanente com osoutros e o contínuo confronto entre as experiências próprias e as alheias,constituem os traços essenciais da obra de Montaigne. É verdade que esta nãoé uma filosofia no sentido de conter um complexo sistemático de doutrinas; éporém um verdadeiro e autêntico filosofar no sentido moderno da palavra,podendo afirmar-se que Descartes e Pascal são os seus mais directosdescendentes. Face a esta posição, perdem valor as caracterizações

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sobre asquais habitualmente se insiste com o fim de determinar a situação históricado seu pensamento. Na realidade, ele passou de uma orientação estóica a umaorientação céptica para acabar por encontrar o seu equilíbrio numaposição socrática; só esta última constitui a substância da sua pessoa e doseu pensamento. O estoicismo e o epicurismo são, para ele, não já doutrinasàs quaiis deva permanecer ligado, mas sim experiências através das quaisatinge o equilíbrio que lhe é próprio. A partir da experiência do estoicismo,chega ao reconhecimento do estado de dependência em que o homem se encontrarelativamente às59

coisas; a partir da experiência do cepticismo, atinge o meio de se libertar,tanto quanto possível, desta dependência e de reconduzir as coisas ao seujusto valor. Assim, por exemplo, põe em evidência a preocupação que liga ohomem ao futuro. "Não estamos nunca junto de nós mas sempre para além de nósmesmos. O temor, o desejo e a esperança lançam-nos para o futuro e tiram-noso sentimento e a consideração do que é, levando-nos, a interessarmo-nos; peloque será, quer dizer, quando já não existirmos" (1, 3, p. 14). Agarra-se denovo à ideia estóica segundo a qual os homens são atormentados pelas opiniõesque têm das coisas e não pelas coisas em si, para promover um alívio da"Miserável. condição humana", reconhecendo aos homens a faculdade dedesprezar aquelas opiniões ou de as aproveitar no sentido do bem (1, 14, p.63). Por outro lado, aproveita para o mesmo fim a experiência céptica, a qualdeve curar os homens da presunção, que é a sua enfermidade natural original,e conduzi-los a uma aceitação lúcida e serena da sua condição. É este oespírito que anima o mais longo e difundido capitulo dos Ensaios (1, 12), aApologia de Raimundo Sabunde. Montaigno faz da condição humana uma diagnoseamarga e impiedosa que será depois apropriada por Pascal. "Que pode imaginar-se de maIs ridículo do que esta criatura miserável e mesquinha que nem sequeré senhora de si própria, e se encontra exposta às ofensas provenientes detodas as coisas, dizendo-se dona e senhora do universo, quando nem ao menospossui a faculdade de conhecer a minima parte deste, quanto mais60

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de dirigi-la?" O homem deve curar-se da presunção de que a natureza parece tê-lo dotado com o fim de o consolar da sua miserável condição (Ib., p. 227).Montaigne em-prega expressões e frases que reaparecerão depois em Pascal: "Umantigo a quem se reprovava o fazer profissão de filosofia, sem que todavialhe ligasse grande importância, respondeu que isso é que era realmentefilosofar" (Ib., p. 262).O mesmo dizia Pascal: "Brincar com a filosofia é filosofar realmente"(Pensées, 4). Por outro lado, este cepticismo leva Montaigne a avaliaradequadamente tudo quanto está verdadeiramente na posse do homem, a começarpelo conhecimento sensível. "A ciência começa e resolve-se nos sentidos. Nãoseríamos mais do que pedras se não soubéssemos o que são o som, o cheiro, aluz, o sabor, a medida, o peso, a moleza, a dureza, a aspereza, a cor, alisura, a largueza e a profundidade. São estas as

raízes e os princípios de todo o edifício da nossa ciência" (Essais, 1, 12,p. 379). "0 privilégio dos sentidos é o de constituírem o extremo limite danossa experiência; nada há para além deles que nos possa servir para osdescobrirmos e nenhum sentido pode descobrir outro". (Ib., p. 380). Aoconhecimento sensível falta porém um critério seguro para se poderemdistinguir as aparências falsas das verdadeiras. Não temos maneira decontrolar as percepções sensíveis, mediante o confronto com as coisas que asdeterminam em nós; por conseguinte não podemos verificar a sua verdade, assim como quem não conheceSócrates, não poderá dizer se o seu retrato se lhe assemelha. "Nãocomunicamos

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com o ser porque toda a natureza humana se encontra sempre entre o nascimento e a morte e não alcança de si própria mais queuma aparência obscura e sombria e uma débil e incerta opinião. E se poracaso o nosso pensamento se obstinar em agarrar o seu ser, isso será o mesmoque pretender agarrar água na mão fechada: quanto mais seapertar e comprimir aquilo que por sua natureza se escapa por todos os lados, mais será perdido por aquele que queria apertar e agarram (Ib., p. 399).Estoicismo e cepticismo foram as experiências de que Montaigne se serviu paraaclarar a condição humana. Mas o estudo do homem determina-semelhor nele, como estudo daquele homem-indivíduo que ele próprio é. Os seus últimos Ensaios assumem sempre um carácter autobiográfico pelo qual o filosofar se toma num contínuo experimentar-se a si próprio, numa contínua explicação do eu a si próprio. Já na introdução da obra Montaigne dissera:"Sou eu próprio o assunto do meu livro"; no terceiro livro acaba por definir

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claramente o seu filosofar como uma incessante experiência de si próprio. "Sea minha alma pudesse criar raízes, eu não me experimentaria; resolver-me-ia(je ne m "essaierois pas, je me resoudrois). FJa porém está sempre emaprendizagem e em prova" (111, 2, p. 29). Montaigne possui um sentido sempreatento da condição problemática da existência; para ele, a existência é umproblema sempre aberto e uma

experiência contínua que não poderá nunca encerrar-se definitivamente e deve por conseguinte explicar-se incessantemente asi própria. Não importa62

para obter esta explicação o considerar-se uma vida humilde e sem brilho. "Afilosofia moral pode ter por objecto com igual êxito, tanto uma vida populare privada como uma outra de mais rica substância, uma vez que cada homem trazem si, inteira, a

forma da condição humana". Por esse motivo, não pretende comunicar com os outros por meio de qualquer sinal especial e estranho mas unicamente através do seu ser universal, "como Miguel de Montaigne e não como gramático, poeta ou jurisconsulto" (Ib.). E declara contentar-se consigo próprio, não com a consciência de um anjo ou de um cavalo mas sim com a consciência de um homem."Quando falo, estou a investigar, a ignorar e areportar-me decididamente às opiniões comuns o,legítimas. Não ensino absolutamente nada; apenas conto". (Ib., p. 30). Estefilosofar autobiográfico que, ao dirigir-se à humanidade do próprio ou,compreende e abarca igualmente a singularidade do indivíduo e auniversalidade máxima da condição humana, é o fruto mais maduro do humanismo e assinala o início da filosofia moderna. Descartes, no Discurso do método, procederá da mesma forma para chegar ao princípio fundamental do saber científico: fará a história dos seus estudos, das suas dúvidas, da sua investigação.Desta atitude nasce aquela aceitação serena da condição humana, igualmenteafastada da exaltação e do desânimo, que é característica de Montaigne. Ãafirmação de Séneca (Quaest. nat., proem): "Coisa vil e abjecta é o homem senão se elevar acima da humanidade", responde ele: "Aqui está uma divisa63

espiritual e um propósito tão inútil quanto, absurdo-, é simultaneamenteimpossível e monstruoso fechar um punho que seja maior do que a mão ou dar umpasso maior do que o permitido pela perna. Nem o homem pode elevar-se acima de si próprio e da humanidade, pois não pode ver senão com os seus olhos, nemaquilo que se escapa à sua apreensão".

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O homem não pode nem deve procurar ser senão homem. Montaigne acrescenta, naverdade, que poderá consegui-lo com a ajuda divina; é porém evidente que osefeitos da graça sobrenatural estão fora das possibilidades e limiteshumanos. O homem deve aceitar-se tal como é. Esta aceitação é o tema de umdos Ensaios mais notáveis, o que trata do arrependimento (111, 2), do qual seextraíram os passos ora citados. Aí, Montaigne, embora dando valor positivoàquele arrependimento moral que consiste em empenharmo-nos sèriamente na reforma de nós próprios, exclui econdena o arrependimento que consiste numa reprovação da condição humana porparte do homem. "Posso desejar, diz-nos, "serdiferente; posso condenar e desgostar-me da minha forma universal e suplicara Deus a minha reforma radical e o perdão da minha natural fraqueza. A istonão posso porém chamar arrependimento, tal comonão posso chamar arrependimento ao desgosto por não ser anjo ou Catão. Asminhas acções regulam-se e conformam-se por aquilo que sou e pela minhacondição. Melhor, não posso fazer. O arrependimento não respeita propriamenteàs coisas que escapam ao nosso poder como não respeita também à aspiração. Imagino inúmerasnaturezas màs ilus-64

MONTAIGNE

tres e moderadas do que a minha; com isso porém, não melhoro as minhasfaculdades, tal como o meu braço o o meu espirito não se tomam vigorosos sóporque concebo outros que o são". (Ib., p. 40). Fantasiar uma condição melhore mais elevada do que aquela em que o homem se encontra efectivamente ecultivar a aspiração àquela e o desprezo por esta, é atitude inútil eperniciosa. Por outro lado, a morte é elemento constitutivo da condiçãohumana: "Não morres por estares doente; morres porque estás vivo" (HI, 13)."A morte mistura-se e confunde-se por toda a parte com a nossa vida", nãotanto por consumir o nosso organismo como

porque a sua necessidade inelutável se impõe aonosso espírito. E "quem receia sofrer, sofre já por aquilo que receia"(Ib.). Por isso, quem ensinasse os homens a morrer, ensiná-los-ia a viver;este ensinamento porém, exclui o modo da morte. Logo que o homem sabe que a sua condição é perdível, dispõe-se a perdê-la sem desgosto. A ideia da morte torna a vida mais estimável. "Eu gozo-a duas vezes mais do que os outros", diz Montaigne (HI, 13) "porque a medida do gozo depende em maior ou menor grau do empenho que nisso pomos... À medida que a posse da vida se vai tornando mais breve, necessário é que eu a

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torne mais profunda e plena". A ideia da morte suscita pois o desejo de viver, de viver mais profunda e plenamente.O humanismo atinge assim em Montaigne o seu equilíbrio. O homem já não seexalta e antes se acoita tal como é. Se a primeira consciência da suasubjectividade individual e histórica, levou o homem,

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no Renascimento, à exaltação da sua situação privilegiada, o aprofundamentodesta consciência, no

seu contínuo experimentar-se e pôr-se à prova, conduziu-o ao reconhecimento dos seus limites e à lúcida aceitação de si próprio. Montaigne representa precisamente esta segunda fase do humanismo renascentista e é justamente através desta segundo fase que o humanismo se transforma na filosofia moderna, abrindo caminho a Descartes e a Pascal.§ 344. CHARRON, SANCHEZ, LIPSIODirectamente ligado a Montaigne, está Pie= Charron que foi seu amigo e neleencontrou a inspiração fundamental do seu pensamento. Nascido em Paris em1541, estudou direito e fez-se advogado; porém, sob o impulso de uma vocaçãovinda mais tarde mudou para a teologia e fez-se padre. Viveu durante muitotempo em Bordéus e aí conheceu Montaigne, ao qual se ligou por amizade. Foicónego em Condom e faleceu em Paris em 1603. Escreveu dois livros. Oprimeiro, intitulado Três verdades contra todos os ateus, idólatras, judeus,maometanos, heréticos e cismáticos (1593), constitui uma apologia da igrejacatólica. As três verdades são as seguintes: há um Deus e uma só religiãoverdadeira: a religião cristã é a única verdadeira; só a igreja católica éverdadeira. O outro livro, intitulado Da sabedoria está em nítida contradição com o primeiro: com efeito, consiste na apologia de umasabedoria profana e baseada no conheci-66

mento do homem. A contradição residia na própria natureza de Charron e erapor ele procurada e teorizada. "É preciso", diz-nos (De la sagesse, 11, 2, 13), "que saibamosdisfinguirmo-nos e separarmo-nos a nós próprios dos nossos cargos públicos;cada um de nós desempenha dois papéis e faz duas personagens, uma alheia eaparente e a outra própria e essencial. É necessário saber distinguir a peleda camisa: o homem hábil poderá desempenhar bem o seu cargo mas não deixará

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por isso de julgar devidamente a estupidez, o vício e a astúcia que aí seaninham... É necessário servirmo-nos e valermo-nos do mundo tal como se nosdepara, considerando-o porém como coisa estranha a nós próprios e sabendogozar-nos de nós próprios à parte, através da comunicação com um bomconfidente ou pelo menos connosco próprios". Aceitar e teorizar umacontradição deste tipo, significa já assumir uma

posição céptica fundamental; ora esta é precisa- ,mente a posição deCharron. Nesta posição, porém, tal como no cepticismo de Montaigne, estáimplícita a convicção de que a vida humana é uma experiência contínua que ohomem faz consigo próprio e com os outros. E na verdade, diz-nos Charron(Ib., 1, 1, 1): "A verdadeira ciência e o verdadeiro estudo do homemconsistem no próprio homem". Em primeiro lugar, está consciente dos limitesdo homem e é precisamente por causa destes limites que não considera que aalma do homem seja absolutamente incorpórea. Tudo quanto é finito é, comotal, determinado por limites espaciais e por essa razão não se apresentadestituído de corporei-67

dado. A alma, uma vez criada, é corpórea, embora

a sua corporeidade seja invisível e incorruptível (Ib., 1, 8, 4). Em virtudedos seus limites, o homem não pode alcançar a verdade. Se bom que o homemexista para procurar a verdade, o possuí-la só a Deus pertence. Mesmo quealguma verdade chegue às mãos do homem, terá sido por mero acaso; ele nãosaberá segurá-la nem distingui-la da mentira (Ib., 1, 15, 11). Por essemotivo o homem está destinado a viver em permanente dúvida, sendo afilosofia céptica a única verdadeira (Ib., 11, 2, 5).

Por conseguinte o princípio da sabedoria consiste no reconhecimento destes Emites, resultando daí "a universal e plenaliberdade do espírito". É preciso que nos libertemos de todos os pressupostosdogmáticos e nos tomemos independentes de lodo e qualquer preconceito. Nistoconsiste a verdadeira sabedoria (preud'homie), uma sabedoria livro e franca, forte egenerosa, risonha e jovial, igual, uniforme e constante", uma sabedoria "cujoprincipal incentivo reside na lei da natureza, que é como quem diz naequidade e na razão universais que **briffiam e resplandecem em cada um denós". Quem age segundo a razão natural, age ao mesmotempo segundo Deus, de onde irradia a razão, e segundo o próprio que age, doqual a razão constitui o elemento mais rico e mais nobre. (Ib., 11,

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3, 4). Esta sabedoria natural é independente da ,religião. É necessário que ohomem seja honesto, não por causa do paraíso ou do inferno, mas porobediência à ordem que lhe vem da razão. A religião deve aprovar, autorizar erematar o comando68

da razão. A religião é posterior à sabedoria (Ib., II,5, 29).

De natureza diferente é o cepticismo do Francisco Sanchos 1, nascido porvolta de 1552 em Braga, Portugal, mas formado em França, tendo sido professorde medicina em MontípeU, ier e Toulouse, onde faleceu em 1632. É autor de umaobra intitulada Quod ?úhiI seitur, terminada em 1576 mas só publicada em1581. Propõe-se Sanches, adoptar a dúvida como processo de pesquisa deum método verdadeiro e de um saber objectivo mas acaba por concluir que ohomem não possui nem um nemoutro. ]Parte da crítica ao procedimento si-logístico da doutrina escolásticaque pretenderia tirar conclusões necessárias com base em princípios universais e obrigar àconcordância sobre coisas de que não se tem um conhecimento directo. Quem nãopercebe porém, por si próprio, determinada coisa, não poderá ser forçado apercebê-la por nenhuma demonstração. A verdadeira ciência, se existisse,seria livre e própria de uma mente livre: seria a "consciência perfeita doobjecto". Mas esta ciência não foi dada aos homens. Nem as coisas se dei=agarrar, nem os homens têm meio de as agarrar,

1 N. T. -Não estão certas as datas citadas por Abbagnano. Este filósofo e médico de formação francesa e italiana, nasceu em 1550 e foi baptizado em Braga em 25-7-1551, na igreja paroquial de S. João do Souto. Faleceu em 1622. n duvidosa a sua nacionalidade real.69

nem poderiam alguma vez agarrá-las completamente. A conclusão é-nos indicadapelo próprio título da obra: nil scitur. Porém esta conclusão não pode sertirada nem mantida dogmaticamente; o homem deve atingi-Ia e tomarconsciência dela, através de uma pesquisa incessante, indagando por todos os lados os limites do conhecimento e dando-se conta da debilidade intrínseca deste último.O cepticismo não constitui portanto para Sanches uma renúncia à investigação mas antes um estíríiulo à pesquisa e à **crítica metódica de todo o saber.Em Charron e Sanches, o regresso ao cepticismo aparece-nos como meio derenovação do homem eda sua ciência. Para o mesmo fim se dirige oregresso ao estoicismo sustentado por Justo Lípsio, nascido em Over-

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Issche,perto de Bruxelas, em1547 e falecido em 1606. Pretendeu Lípsio fazer ressurgir o estoicismoantigo, sobretudo o romano, após tê-lo descoberto nas suas fontes originais,especialmente em Séneca. As suas obras principais são Manoductio adphilosophiam stoicam, Physiologia stoícorum e De constantia. O tema centralda sua reelaboração é constituído pela doutrina da providência. Daprovidência divina depende a

ordem das coisas, segundo Lípsio; e desta ordem depende a fatalidadeimutável de todas as coisas do mundo, ou seja, o destino. Este, portanto,não é senão a acção necessária da ordem cósmica dependente da providênciadivina (De const., I,17-19). Ora é precisamente nesta doutrina que Lípsio considera existir aforça de renovação do estoicismo. Com efeito, é da aceitação do destino

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cósmico que deriva a virtude fundamental do homem, ou seja, a perseverançaque não se deixa demover por qualquer vicis&itude exterior e que apesar detodas as lutas e dificuldades, dá ao homem o equilíbrio e a paz interior(Ib., 1, 20). Quem tiver conseguido atingir a sabedoria estóica, saberá queem todos os casos as coisas acontecem como devem acontecer e por conseguinte só resta ao homem aceitá-las como são.NOTA BIBLIOGRáFICA§ 332. Em H. BARO'N, Renaissance in Italien encontra-se uma resenha dos estudos sobre o renascimento (Archiv. für Kulturgeschichte, 1927 e 1931). Cfr. também o axtigo respectivo de F. Chabod na Enc. Ital. e todas as obras a seguir indicadas, em especial as de Garin. ] É fundamental a obra de JACOB BURCKHARDT, A civilização do Renascimento na Itália, trad. Valbusa, Florença, 1876. São notáveis os trabalhos de G. DILTHEY, aparecidos sob o título A anãUse do homem e a intuição da natureza, entre 1891 e 1900 (trad. ital.Sanna, Veneza, 1926), bem como os de G. VOICT, Die Wiederbelebung desklassischen Altertums, Berlim, 3.1 ediç., 1893. A concepção idealista-queconsiste principalmente no desenvolvimento das teses de Burckh<%rdt-é expostana obra de G. GENTILE, Giordano Bruno e o pensamento da Renascença, Florença,1920 (novamente publicado sob o título O pensamento italiano da Renascença,Florença, 1940). Elementos fundamentais, contidos em E. CASSIRER, O indivíduoe o cosmos na filosofia do Renascimento, trad. ital. Federíci, Florença, 1935eem M. BARON, The crisís of the Early Italian Renaissance, 2 vols., Princeton,1955. A mais equilibrada e

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autorizada interpretação do Renascimento, baseada numa documentação vastíssima,é a de E. GARIN a quã1 se contém principalmente em O humanismo italiano,Bari, 1952; Idade Média e Renascimento, Bari,1954; A educação na Europa (1400-1600), Bari, 1957; A cultura filosófica doRenascimento italiano, Florença, 1961. Considera-se implicita a referência a

e~ obras, a propósito de todos os autores italianos mencionados no presente capítúlo.§ 333. Sobre a intevpretação que insiste na continuidade entre o humanismo renascentista e a Idade Média, efr. G. TOFFANIN, História do humanismo, Roma, 1933, 1939 2 e os autores mencionados no § 335.§ 334. A origem religiosa, do conceito de renascimento foi sustentada pelaprimeira vez por R. HILDEBRAND, Zur sogenannten Renaissance, em "Zeitschriftfür den deutschen Unterricht", Leipzig, 1892, vol. VI, p. 377 e segs. (edepois em Beitrãge zum

deutschen Unterricht, Leipzig, 1897, p. 279 e segs.). Aquela origem fica definitivamente demonstrada após os estudos fundamentais de K. BURDACH, Reforma, renascimento, humanismo, trad. ital. Cantimori, Florença, 1935. Para toda e qualquer investigação no mesmo sentido deverão oonsultar-se as referências contidas nesta obra. Importante é taxnbém WALSER, Studien sur Weltanschauung der Renaissance, BasiWela, 1920.§ 335. A conexão entre as origens da ciência e o aristotelismo medieval foipela primeira vez salientada por P. Duimm, Études sur Léonard de Vinci.1906-13 e seguidamente desenvolvida por numerosos autores, entre os quais efr. espeoiahnente M. CLAGETT, The Science of Mechanics in the MiddIe Ages, 1959 e John Randall Jr., The Schoot of Padua and the Emergence, of Modern Science, 1961.§ 336. Sobre o significado de Dante relativamente ao Renascimento: BURDACH, ob cit., passim.72

Sobre as características medievais do pensamento de Dante: B. NARDI, Dante e a cultura medieval, Bar!, 1942. No mundo de Dante, Roma, 1944.; 337. Sobre a posição de Petrarca no Renascimento: DILTHEY, ob. cit., vol.I, p. 25 e segs.; Burdach, ob cit., passim; Oassirer, ob. cit., passim.§ 338. Sobre os filõsofos do século italiano de Quatrocentos, ver a antologia de E. GARIN, Filósofos italianos de Quatrocentos, Florença, 1942, que contém igualmente informações biográficas e bibliográficas, além das outras obras de GARIN já mencionadas. De Col~o Salutati, De nobilitate legum et medicinae editado -em 154.2 em Florença (edição e tradução ftaliana de E. GARIN, Florença, 1948); a obra intitu~ De tyranne (por VON MARTIN, Leipzig, 1913 a por P. ERCOM, Leipzig, 1914); e o Epistolário (por NOVATI, Roma, 1891-1905).Os Diálogos de LEONARDO BRUNI foram editados por Mmer, Livorno, 1889 e o Isagogicon Por BARON, do qual é fundamentã1 a monografia intitulada Leonardo Bruni, aretino, Deipzig, 1928.

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A carta d-, CosmF, RAIMONDI, na mencionada antologia de Garim Dos tratados morais e das epistolas de Ffi~ há edições quatrocentistas e quinhentistas.§ 339. As obras de Valla foram publicadas em Basileia, em 1540 e 1543. SobreVaffia: Gentile, A filosofia italiana, desde o fim da escolástica até aoinício do Renascimento, p. 266-288; Saitta, Filosofia italiana o humanismo,Florença, 1928, p. 69-78.

§ 340. A obra de B. FAZIO aparece editada em S-andeo, Epitomae de regibusSiciliae et Apuliae, Hanover, 1611. A obra de GIANNOZO MANETTI foi publicadaem Basileia em 1532. As obras de Alberti fomm pubIteadas. por BONUCCI emPlorença, 1843-49, em 5 vols.; uma outra edição foi publicada por MANCINI,Florença, 1890. Sobre Alberti: Gentíle, Giordano Bruno, p. 149-152. O Da vidacivil de Palmieri foi73

publicado em 1529 e o De optimo cive de Platina teve algumas ediçõesquatrocentistas.

As obras de NIZOLIO foram publicadas em Parma em 1553 e reeditadas por LEIBNiz em Franefort, nes anos de 1671 e 1674.§ 341. A obra De sapiente de BOVILO foi novamente editada por KLIBANSKI, em apêndice à edição original alemã da ob. cit.de CASSIRER. As obras de BOVILO tinham sido publicadas em Paris, em 1512.Sobre este autor: CASSIRER, ob. cit., p. 142 e segs.§ 312. As obras de PEDRO RAMUS conheceram numerosas edições nos anos dequinhentos e seiscentos. Sobre este autor: Waddingtou, De P. Rami vita,seriptis philosophia, Paris, 1849 (edàção, francesa, Paris, 1855); W. J. Ong,Ramus Method and Decay of Dialogue, Cambridge, Mass., 1958; R. Hooykaas, Humanisme, science et reforme-Pierre de la Ramée, Leiden, 1958.A obra De disciplinis de L. Vives conheceu inúmeras edições a partir da de Brügge, 1531. S<>bre este autor: Rivari, A sabedoria psicológica e pedagógica de L. V., Bolonha, 1922.As obras de Agricola foram publicadas em Colónia em 1539 e conheceram seguidamente numerosas edições. Sobre o humanismoalemão: Burdach, Deutsche Renaissance, Berlim, 1916.§ 343. A melhor edição dos Ensaios de Montaigne é a que vem publicada nacolecção das Universi,dades de França, a cargo de J. PLATTARD, Paris,1931-32 (mencionada no texto), a qual reproduz a

edição elaborada por Montaigne em 1588, acrescida das adendas e correcções manuscritas do próprio Montaigne. Dilthey, ob. cit., vol. 1, p. 47 e segs.;Strowski, Montaigne, Paris, 1906; Weigand, Montaig?ie, Mónaco, 1911.§ 344. A obra Trois vérités de Charrou fed pela primeira vez publicada emBordéus, em 1593 e o De

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Ia sagesse na mesma cidade em 1601; Obra, 2 vols., Paris, 1635.

De Sanches: Quod nihil seitur, Lyon, 1581, Francfort, 1618; Tractatus philosophici, RGterdão, 1649. MENÉNDEZ Y PELAY0, Ensayos de critica philosophica, vol. II, Madrid, 1892, 195-366; Giarratano, O pensamento de P. S., Nápoles, 1903.De Justo Lípsio: Obra, Wesel, 1675. Dilthey, A análise do homem, cit., p. 245 e segs.; Del Prai na "Revista de História da Filosofia,", 1946.75

li

RENASCIMENTO E POLÍTICA§ 345. MAQUIAVELO humanismo renascentista encontra-se estreitamente ligado a uma exigência derenovação política. Pretende-se renovar o homem, não apenas nasua individualidade mas também na sua vida em sociedade; por esse motivo,empreende-se uma análise da comunidade política, c~ o fim de lhe descobrir ofundamento e de -reportar a este as formas históricas daquela. O regresso àsorigens, que até mesmo neste campo constitui a palavra de ordem da renovação,é por um lado entendido como o regresso de uma comunidade históricadeterminada, povo ou nação, às suas origens históricas, às quais poderá irbuscar nova força e novo vigor, e por outro, como regresso à base estável euniversal de toda e qualquer comunidade,

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ou seja, como reajustamento s reorganização da comunidade sobre a sua base natural. Historicismo e jusnaturalismo são os dois aspectos em que se concretiza a vontade política renovadora do Renascimento. O primeiro destes aspectos remonta, como já se viu (§ 334), ao neoplatonismo na medida em que este tenha perdido o seu carácter teológico.O segundo aspecto encontra a sua raiz no estoicismo antigo e na doutrina do direito natural que dominara a antiguidade e a idade Média; até mesmo este tende a perder as suas implicações teológicas. Para os Estóicos como para os escritores medievais, a ordem natural da comunidade humana identificava-se, por um lado com a razão e por outro com Deus; é sobre a primeira destas identidades que insistem os escritores do Renascimento.O direito natural, base de toda e qualquer comunidade humana é ditado pela própria razão.Nicolau Maquiavel (1469-1527) aparece-nos comoo iniciador da orientação historicista. Toda a suavida foi dedicada à tentativa de criação de umacomunidade italiana. Maquiavel via e reconhecia como única via para essacriação, um regresso às origens da história italiana. A investigaçãohistoriográfica dirigida ao reconhecimento destas origens aparece neleestreitamente ligada ao labor positivo de reconstrução da unidade

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política dopovo italiano, de tal modo que a sua personalidade se

defino precisamente pela unidade entre a tarefa política e a -Investigaçãohistoriográfica. O Príncipe (1513) e os Discursos sobre a primeira década deTito Lívio contêm a revelação daquela unidade78

entre o juízo político e o juízo histórico que constitui a característica fundamental de Maquiavel e faz dele o primeiro escritor político da idade moderna.O primeiro capítulo da terceira parte dos Discursos é dedicado à explicaçãodaquele regresso aos princípios que constitui a palavra renovadora doRenascimento em tudo quanto diz respeito ao

homem e à sua vida em sociedade. Segundo Maquiavel, a única maneira pela qualas comunidades podem renovar-se e fugir assim à decadência e à ruína,consiste em regressar aos seus princípios, pois todos os princípios contêmalguma bondade na qual aquelas poderão retomar a sua

vitalidade e a sua força primitivas. Nos estados, oregresso aos princípios faz-se, ou por acidente extrínseco ou por prudênciaintrínseca. Assim aconteceu em Roma onde os reveses deram causa a que os homens "se reconhecessem"nas ordens da sua convivência e onde instituições adequadas como a dostribunos da plebe e a dos censores, ou até mesmo indivíduos de excepcionalvirtude, desempenharam a tarefa de chamar novamente os cidadãos às suasvirtudes primitivas. Mas até as próprias comunidades religiosas se salvamapenas pelo regresso aos princípios. A religião cristã ter-se-ia extinguidocompletamente se não tivesse regressado à sua origem por intermédio de S. Francisco e de S. Doraingos, que com a pobreza e o exemplo da vida de Cristo lhe restituíram a sua força primitiva.Mas o regresso aos princípios pressupõe duas condições: em primeiro lugar queos princípios a79

que se deve regressar, as origens históricas da comunidade, sejam claramentereconhecidos e entendidos com rectidão; em segundo lugar, que sejamreconhecidas na sua verdade efectiva as posiições de facto, a partir das quáisou através das quàis oregresso deve ter lugar. A objectividade histórica e o realismo político sãopois as condições fundamentais do regresso aos princípios. Estas duascondições constituem na verdade as características, da obra de Maquiavel, o qual, por um lado, se volta para a história, procurando

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encará-la na sua objectividade, no seu fundamento permanente, que é a substância imutável da natureza humana, e por outro, observa a realidade política que o rodeia e ,a vida social na sua verdade efectiva, renunciando a toda e qualquer atitude de êxtase perante repúblicas e principados "cuja existência real jamais foi vista ou reconhecida".Relativamente ao primeiro ponto, isto é, quanto à forma original a que acomunidade deve regressar,,Maquiavel acaba por reconhecê-la na repúblicalivre, tal como existiu nos primeiros tempos da nação romana. Por maisabstracto que seja o imaginar uni tipo ideal de estado, Maquiavel não podedeixar de determinar, através da sua investigação histórica--- a formaoriginal da comunidade política ,italiana, à qual esta deve regressar. Porém,esta forma, baseada na liberdade e nos bons costumes é uma metalongínqua edifícil de atingir. Incumbe ao político, segundo Maquiavel, uma tarefaimediata, a única realizável nas circunstâncias históricas do tempo: fazersurgir um príncipe unificador

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MAQUIAVEL

e reorganizador da nação italiana. Deriva daí o esboço da figura do príncipe.Se uma comunidade não tem outra maneira de se libertar da desordem e daservidão política, senão a de se organizar em principado, a realização desteprincipado, torna-se uma tarefa que encontra a sua regra e a sua justificaçãoem si própria. Pesa sobre esta tarefa o risco de se perder, caindo natirania. Pode muito bem acontecer que aquele que a assumir "se deixe enganarpor um falso bem" ou "se deixe ir voluntária ou ignorantemente" pela viaaparentemente fácil mas funesta da tirania. Renunciará nesse caso à glória, àcerteza, à serenidade e à satisfação interior e irá ao encontro da infância,do vitupério, do perigo e da inquietação. A aceitação daquela tarefa implicapois uma alternativa e uma escolha: ou seguir a via que conduz a uma vidasegura e à glória após a morte, ou seguir aquela que conduz a uma vida depermanente angústia e à infâmia depois de morto (Disc., 1, 9). É porémimpossível que a segunda alternativa seja escolhida por aquele que, por sorte ou por virtude, de particular que era se torna príncipe de uma república, se conhecer verdadeiramente a história e tirar partido dos seus ensinamentos (Ib., 1, 10).Mas uma vez aceite o reconhecida, como própria a tarefa política, éimpossível a paragem a meio caminho. Tem ela as suas exigências derivadas da natureza humana. Não se pode contar corri a boa vontade dos homens. O homem não épor natureza nem bom nem mau, mas pode ser efectivamente81

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uma e outra coisa. O político, se quiser ser bem sucedido nos seus planos,deverá sempre contar com o pior o que quer dizer que deverá partir doprincípio de que todos os homens são maus e de que aproveitarão a primeiraocasião para lhe manifestar a sua malignidade (Ib., 1, 3). O político nãopode pois fazer "profissão de bondade"; deve aprender "a poder não ser bom, ea usar ou não de bondade, conforme for preciso." (0 Princ.,15). Se puder, não deve afastar-se do bem; deve p~ saber usar do mal quandonecessário (Ib.,19). Há certamente meios extremamente cruéis, contrários a todo o viver, nãosó cristão como humano e de tal maneira que todo e qualquer homem deve evitá-los. Nesse caso "torna-se necessário -preferir viver como particular do quecomo roi com tamanha ruína dos homens". Todavia, se não se quiser ou não se puder enveredar por esta renúncia, é necessário entrar resolutamente no caminho do mal, evitando o meio termo que para nada serve (Disc., 1, 26).Maquiavel põe assim duramente o político em face das cruéis e tristes exigências da sua tarefa. Aflora-lhe certamente ao espírito a dúvida sobre se ocombater o mal com o mal, a fraude com a fraude, a violência com a violênciae a traição com a traição tornará possível a recondução da comunidade àverdadeira ordem da sua forma política. Responde porém a

essa dúvida, observando que por vezes se mantiveram no poder aqueles que,depois de o terem obtido por meio de crueldade e perversidade, nãocontinuaram. por essas vias e converteram-nas posto-82

riormente na maior utilidade possível para os seus

súbditos. Esses "podem, com Deus ou com os homens, trazer algum remédio ao seu país". Quanto aos outros, é impossível a sua manutenção (0 Princ., 8).Por outras palavras, o limite da actividade política reside na próprianatureza dessa actividade. A tarefa política não tem necessidade de deduzirdo exterior a própria moralidade nem a norma que a justifique ou lheimponha os seus limites. Ela justifica-se por si, pela exigência que lhe éintrínseca de reconduzir os homens a uma forma de convivência ordenadae livre e encontra os seus limites na possibilidade de êxito dos meiosempregados. Certos meios, extremos e repugnantes, são impolíticos por se voltarem contra quem os emprega e tornarem impossível a manutenção do estado. O domínio da acção política estende-se a tudo quanto oferece garantias de êxito as quais consistem na estabilidade e na ordem da comunidade política. Maquiavel foi o primeiro a perscrutar e

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a considerar aquele domínio por meio dum critério puramente intrínseco pelo qual se entrevê o princípio duma normatividade inerente às tarefas humanas como tais e não sobreposta a estas a partir do exterior, com um carácter de critério e limite estranhos.A tarefa do político, na medida em que implica escolha, risco eresponsabilidade, pressupõe a liberdade do homem e o problematismo dahistória. Maquiavel toma em consideração a hipótese de as coisas do mundoserem governadas pela sorte ou

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por Deus de maneira que os homens não possam nem corrigi-las nem remediá-las;porém, embora a hipótese o tente, pela extrema mobilidade dos acontecimentoscontemporâneos, acaba por rejeitá-la porque nesse caso a liberdade seria nulao a única atitude possível seria o "deixar-se comandar pela sorte". Sustentacomo mais provável que a sorte seja o árbitro de metade das acções humanas,deixando aos homens o comando da outra metade ou pouco menos. A sorte é comoum rio que, quando se encoleriza, transborda e arrasta tudo, de tal modo queo homem não consegue de maneira nenhuma detê-lo ou impedir a sua marcha mascujo ímpeto porém, não se torna daninho ou se toma menos prejudicial se ohomem providenciar a tempo pela construção de defesas e diques que impeçam edisciplinem as cheias. A sorte mostra o seu poder onde não depara com aresistência da "virtude ordenada" e dirige os seus ímpetos para onde nãohouver diques nem defesas a contê-la (0 Prínc., 25).O homem só poderá dirigir a sorte se se conformar historicamente, reportando-se ao passado; ligando o passado ao futuro, evitará as transformações bruscase inconcludentes e conseguirá dirigir a sorte de modo a não ter motivo paramostrar o seu poder a cada volta do sol (Disc., 11, 30). Existe tensão entrea sorte e a liberdade. A acção do homem insere-se nos acontecimentos e éportanto condicionada por eles. Mas quanto mais se apresentar historicamentefundamentada, tanto melhor conseguirá dominá-los, uma vez que a metade queno decurso dos84

mesmos cabe à liberdade humana pode ser a metade decisiva se a previsão tiversido feita com perspicácia. A acção humana - parece dizer Maquiavel* não pode eliminar todos os riscos mas pode e

deve eliminar as reviravoltas inconcludentes e transformar o risco numapossibilidade de êxito.

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Tudo isto envolve a radical problematicidade da história. Esta, tira ou dá ao homem a oportunidade de proceder virtuosamente, umas vezes, suscitando ou destruindo a seu bel-prazer as vontades humanas o outras, delineando um plano que os homens podem favorecer mas não impedir ou urdindo uma trama que aqueles podem tecer mas não quebrar (Disc., 11, 29). Porém, os homens "farão bem em não desistir nunca". Não conhecem, na verdade, o fim para que tende a história e uma vez que esta envereda sempre por atalhos e caminhos desconhecidos, haverá sempre motivos para ter esperança, e, esperando, não devem os homens desistir, sejam quais forem a sua sorte e a sua aflição (Ib., 11, 29). O ensinamento que daí se tira consiste, num chamamento à decisão e ao querer, à inserção activa na história e ao comprometimento com a mesma. Maquiavel rejeita todos os princípios e doutrinas que se resolvam. num "deixar-se andar", num abandonar-se passivamente ao curso dos acontecimentos. O homem que se compromete com a história tem uma tarefa precisa e jamais deverá desesperar: o resultado da sua acção transcende-o e pode conduzi-lo, por atalhos e caminhos distantes, à vitória da tarefa que lhe é cara.85

§ 346. GUICCIARDINI, BOTERO

As Memórias políticas e civis de Francisco Guicciardini (1482-1540) contêm os~os de uma sabedoria mundana que vai buscar as suasraízes à actividade política e tem como objectivo iluminá-la e guiá-la.Guicciardini considera inútil e disparatada a preocupação com problemasrelativos à realidade sobrenatural ou invisível: "Os, filósofos e teólogosque descrevem as coisas sobronaturais ou que se não vêem, dizem mildisparates pois os homens ignoram efectivamente tais coisas e uma

tal indagação serviu e serve mais para cultivar oengenho do que para encontrar a verdade". (Mem.,125). Rejeita por motivos análogos, a astrologia: pensar em conhecer o futuro é um sonho e os astrólogos não adivinham mais do que qualquer outro homem que faça conjecturas ao acaso (Ib., 207).O verdadeiro interesse de Guicciardini incide sobre o homem e em especialsobre o homem nas suas relações sociais, na sua actividade política. O homemé julgado, não pela tarefa que cumpre mas sim pelo modo como a cumpre. Elanão escolhe naverdade, a classe social em que nasce nem as ocupações ou a sorte que lhe caberão. Escolhe porém a sua conduta na sua classeou nas suas ocupações, ou ainda em face da sua sorte. E é por esta condutaque será julgado (Ib., 216). Mas no, que se refere à sua conduta o homem nãopode fazer mais do que confiar na reflexão e na experiência. "Saboi que quemgoverna ao acaso acabará por se encontrar nas mãos do acaso; o que se devefazer é pensar,86

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analisar e observar bem todas as coisas etiam mínima; mesmo vivendo assim é com grande custo que se governam as coisas; pensai agora no que acontecerá a quem se deixa levar pelo curso das águas" (Ib., 187). O "deixar-se levar pelo curso das águas" equivale ao "deixar-se comandar pela sorte" de Maquiavel.Tal como Maquiavel, Guicciardini pretendo o empenho activo do homem na realidade política e um realismo atento e laborioso que corrija, mesmo quandonão o pode desviar completamente, o curso da sorte. Por essa razão dáespecial valor positivo à fé. "Ter fé não é senão crer com firmeza de opiniãoe uma quase certeza nas coisas que não são razoáveis; ou, se forem razoáveis,crer nelas com mais resolução do que asimplesmente baseada nas razões". A fé produz a obstinação e esta pode, nummundo submetido a mil acasos e acidentes, encontrar finalmente ocaminho do êxito. É justamente por isso que sediz: "quem tem fé consegue executar grandes coisas" Ub., 1). Porém, nem a fénem a perspicácia bastam para garantir o êxito, embora possam comandar muitacoisa. A sorte desempenha um grande papel nas coisas humanas, sorte essa queé puro acontecimento casual e independente de qualquer ordem ou leiprovidencial, se existe, é impenetrável ao

homem. "Não se deve dizer: Deus ajudou aquele porque era bom; àquelecorreram-lhe as coisas mal porque era mau; pois o que frequentemente seobserva é o contrário. Nem por isso de=os dizer que a justiça de Deus nãoexiste, uma vez que os seus conselhos são tão profundos que são, mere-87

cidamente ditos abyssus multa" (Ib., 92). É porém evidente que a "máquinamundana", a ordem natural das coisas, encoraja os homens à actividade. Porexemplo, se é verdade que os homens não pensam na morte, embora saibam quetêm de morrer, tal não acontece porque a morte é coisa remota* é, pelo contrário, bem próxima e sempre iminente -mas antes porque a ideia da morte tornaria o mundo cheio de pusilanimidade e torpor" (Ib., 160).

No que respeita à natureza humana, Guicciardini apresenta-se substancialmente de acordo com Maquiavel. Os homens são, é verdade, naturalmente propensos ao bem; mas, uma vez que a sua natureza é frágil e as ocasiões que os convidam ao mal são infinitas, afastam-se facilmente e por interesse próprio, da sua natural propensão (Ib., 225). A consequência disto é que os homens maus são em maior número do que os bons e por conseguinte é boa regra do político o não se fiar senão naqueles que verdadeiramente conhece, mantendo, frente aos outros, os olhos bem abertos, embora sem o mostrar, para não parecer desconfiado (Ib., 201).O governo deve portanto basear-se mais na severidade do que na brandura; a combinaÇão e o

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doseamento de ambas é a arte mais elevada e mais difícil do homem político(Ib., 41). O político deve parecer mas também ser, pois a aparência, com odecorrer do tempo, acaba por se desmascarar: "Fazei tudo para parecerdesbons, o que tem imensa utilidade; porém, como as falsas opiniões duram.pouco, dificilmente conseguireis parecer bons por muito

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tempo, se efectivamente o não fordes" (Ib., 44). É assim a próprianecessidade de êxito que exige e justifica uma substância moral intrínseca da acção política.O ensinamento político de Guicciardini, não seafasta, quanto a realismo, do de Maquiavel; distingue-se deste porém, pelaausência daquele fundamento histórico que nutria a actividade e o pensamentopolíticos de Maquiavel. Este considera ojuízo político fundamentalmente ligado ao histórico. Guicciardini distingueo juízo político do histórico, ligando-o ao seu interesse particular, aoêxito da sua obra pessoal. "Há três coisas", diz-nos, "que gostaria de verantes de morrer mas creio que por mais que vivesse, não chegaria a verqualquer delas: uma república bem ordenada na nossa

cidade, a Itália liberta de todos os bárbaros e o mundo liberto da tiraniacriminosa dos padres" (Ib., 236). Esta aspiração permanece porém puramenteretórica pois a sua particular condição impele-o a servir precisamente acausa que odeia: "0 acolhimento que tive junto de alguns pontífices, fez comque amasse particularmente a suagrandeza; e se não fosse este respeito, teria amado Martinho Lutero como amim mesmo, não para libertar-me das indoutas leis da religião cristã, nomodo por que esta é vulgarmente entendida e interpretada, mas para ver estacaterva de criminosos, reduzida às dimensões devidas, quer dizer, ou semvícios ou sem autoridade" (Ib., 28). A personalidade de Guicciardiniapresenta pois uma cisão que, pelo

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contrário, se não verifica na de Maquiavel: Guicciardini distingue a suacondição particular da tarefa política que julga ser a melhor, ou seja, dojuízo histórico. Maquiavel unira ambas as coisas e nisso reside a suagrandeza.

Os ensinamentos políticos de Maquiavel foram recolhidos em fins do século XVIpor João Botero (nascido por alturas de 1533 e falecido em 27 de Junho de1617), autor dos dez livros de que se

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compõe a obra Da razão de estado (1589). A própria noção de razão de estado éuma herança do maquiavalismo. "Razão de estado é o conjunto dos meios idóneospara fundar, conservar e ampliar um domínio". Com isto reconhece à artepolítica uma autonomia, uma lógica e uma normatividade intrínsecas que acolocam numa esfera à parte, era precisamente isto o que fundamentalmenteresultava da obra de Maquiavel. Mas o que caracteriza e constitui novidade emBotero, em confronto com Maquiavel, é a inclusão entre as exigências da razãode estado, das exigências próprias da moral. Afirma assim que "é necessáriano príncipe a excelência da virtude" pois o fundamento do estado é aobediência dos súbditos e esta é cativada precisamente pela virtude dopríncipe. As virtudes podem conseguir a reputação e o amor; entre as queproduzem o amor, a principal é a justiça, e entre as que obtêm a reputação,a principal é a prudência. A justiça deve ser garantida pelo príncipe, quernas relações entre ele e os súbditos, quer nas relações destes entre si. Aprudência exige que o príncipe se deixe

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guiar unicamente pelo interesse, nas suas decisões. "Por esse motivo não devefiar-se na amizade, nem no parentesco, nem nas alianças, nem em qualqueroutro vínculo relativamente ao qual aquele com

quem tratar, não ti-ver fundamento de interesse" (Da razão de estado, ed. de1589, 60). Preocupado como está, mais com a conservação do Estado do que coma sua fundação e ampliação, Botero prefere as vias cautelosas da prudência,condena asgrandes ambições e os grandes projectos e desconfia da astúcia demasiadosubtil. A diferença entre prudência e astúcia reside inteiramente na escolhados meios: a prudência segue mais o honesto do que o útil e a astúcia só temem conta o interesse. Porém, a subtileza da astúcia é um obstáculo para aexecução, tal como um relógio que, quanto mais complexo, mais facilmente seestragará, assim os projectos e empresas baseadas numa subtileza demasiadominuciosa, fracassam a maior parte das vezes (Ib., 70). No tocante àreligião, Botero, vivendo no ambiente da contra-reforma, considera-a como umdos fundamentos do estado e aconselha o príncipe a rodear-se de um "conselhode consciência", constituído por doutores em teologia e em direito canónico,

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"pois de outro modo carregará a sua

consciência e fará coisas que terá mais tarde de desfazer, se não quiserdanar a sua alma e as dos

seus sucessores". Estamos portanto perante um maquiavelismo temente a Deus, no qual se estabelecem como meios de governo, preceitos de moral, de religião e regras de procedimento astucioso.91

§ 347. T. MORO, G. BODIN

Das duas correntes nas quais se concretiza o esforço de renovação política dorenascimento, a outra é a que se inclina para o jusnaturalismo. As origensdesta corrente residem numa preocupação universal e filosófica que sedistingue da preocupação particular e histórica que prevalece na corrente historicista. Não se trata aqui de renovar e

reconstituir um determinado estado, por meio do regresso às suas origenshistóricas, mas sim de renovar ou reconstituir o estado em geral pelo regresso ao sou fundamento universal e eterno. A investigação sobre a naturezado estado torna-se aqui mais vasta e desenvolve-se a partir duma basefilosófico-jurídica. Procura-se a substância, princípio último que dá força evalor a todo e qualquer estado e projectam-se transformações e reformas quepossam reconduzi-lo à sua forma ideal. Pode-se por conseguinte reconhecercomo primeira manifestação de jusnaturalismo precisa-mente aquele desejo deuma forma ideal de estado que se encontra na Utopia de Tomás Moro. A formaideal do estado consiste na verdade, na sua estrutura racional; e a naturezafundamental de todas as comunidades políticas é descoberta pela razão. Overdadeiro e

propriamente dito naturalismo, o de Gentile e Grócio, desenvolver-se-áprecisamente a partir deste pressuposto: a identidade existente entre odireito natural e as exigências de uma estrutura puramente racional dacomunidade.

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Tomás Moro nasceu em Londres em 1480. Estadista e literato, opôs-se ao actodo parlamento que declarava nulo o matrimónio de Henrique VIII e

Catarina e designava como sucessor o filho do segundo matrimónio do rei comAna Bolena. Por esse motivo foi condenado à morte e decapitado =1535. As suas opiniões políticas e filosóficas encontram-se expressas naUtopia, publicada em 1516, a qual é uma espécie de novela filosófica em que

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as opiniões de Moro aparecem enunciadas por um

filósofo de nome Rafael, que conta o que lhe teria sido dado observar numailha ignota chamada precisamente Utopia, durante uma das viagens de AméricoVespúcio. O ponto de partida de Moro é acrítica das condições sociais na Inglaterra do seu tempo. A aristocraciaproprietária de terras empenhava-se então em substituir o cultivo de cereaispela criação de carneiros de cuja lã retirava maiorrendimento. Os camponeses eram expulsos de casas e quintas e não tinhamoutra saída senão a mendicidade (para a qual a rainha Isabel veio ainstituir penas severas) e a rapinagem. A análise desta situação levou Moroa almejar uma reforma radical da ordem social. Na ilha da Utopia apropriedade privada encontra-se abolida. A terra é cultivada segundo umsistema de turnos pelos habitantes que estão todos adestrados na agricultura e se substituem nos campos uns aos outros, de dois em dois anos. O ouro e a prata não têm qualquer valor e são utilizados nos mais humildes utensílios.Todos têm além disso o seu ofício próprio e há uma categoria de magistradosdenominados sifograntes que93

velam por que ninguém permaneça ocioso e por que todos exerçam com diligênciaa sua arte. Os cidadãos da ilha trabalham apenas seis horas e dedicam o restodo tempo às letras ou aos divertimentos. A cultura daquele povo éinteiramente dirigida para a utilidade comum à qual os utopes subordinamtodos os interesses particulares. Preocupam-se pouco com a lógica mascultivam as ciências positivas e

a filosofia; completam os conhecimentos racionais com os princípios dareligião pois reconhecem que a razão humana não pode, por si só, conduzir ohomem à verdadeira felicidade. Os princípios que reconhecem como próprios da religião são: a imortalidade da alma, destinada por Deus à felicidade; o prémio e o castigo após a morte, consoante o comportamento nesta vida.Embora tais princípios derivem da religião, os utopes. afirmam ser possívelcrer nos mesmos com base em razões e fundamentos humanos. Reconhecem pois queo único guia natural do homem é o prazer e que é sobre este guia que sebaseia o sentimento da solidariedade humana. Na verdade, o homem não serialevado a ajudar os outros homens e a evitar-lhes o sofrimento se não pensasseque o prazer é um bem para os outros; mas aquilo que é um bem paira os outrosé igualmente um bem para ele próprio e

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na realidade o prazer é o fim que a natureza atribuiu ao homem. Porém acaracterística fundamental da Utopia é a -tolerância religiosa. Todosreconhecem a existência de um Deus criador do Universo e autor da sua ordemprovidencial. Cada um, porém, o concebe e venera a seu modo. A fé cristã

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coexiste com as outras e só é condenada e rejeitada a intolerância de quemcondena ou ameaça os adeptos de uma outra confissão religiosa. A cada umé lícito procurar convencer os outros sem violência ou injúria e a ninguém épermitido violar a liberdade religiosa de ou-trem. Os utopes crêem que oculto variado e diverso agrada a Deus e por esse motivo consentem que cada umcreia naquilo que lhe aprouver. Apenas está proibida a doutrina que nega aimortalidade da alma e a providência divina; p"m, aqueles que a professam nãosão punidos mas somente impedidos de difundirem as suas opiniões. A repúblicados utopes. é por conseguinte um estado conforme à razão e no qual ospróprios princípios da religião são aqueles que a razão está apta a defendere a fazer valer, não havendo ali lugar para a intolerância.

Se Tomás Moro idealizara no estado utope a estrutura de uma comunidade de acordo com a razão, João Bodin, pelo contrário,coloca-se expressamente no plano da realidade política e analisa osprincípios jurídicos dum estado racional. Bodin nasceu em

Anvers em 1530 (ou 1529), foi jurista e advogado em ]Paris e teve muitainfluência na corte do rei Henrique III. Faleceu em 1596 (ou 1597). NosSix livres de Ia république (1576) propõe-se esclarecer a definição de estado que enuncia no começo da sua obra: "A república é o governo íntegro demuitas famílias e do que lhos é comum, com poder soberano". ]Porém avalidade própria do estado reside na última determinação, ou seja, na soberania, que é concebida por Bodin como não tendo

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fimitos, excepto os que derivam das leis de Deus ou

da natureza. O poder absoluto e soberano do estado não consiste num arbítrioincondicional, pois tem a sua norma nas leis divina e natural, norma essa quederiva do seu fim intrínseco, a justiça. Não há poder soberano onde nãohouver independência do poder estatal relativamente a todas as leis ecapacidade para as fazer e desfazer. A soberania não é um atributo puramentenegativo, consistindo

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em ser dispensado e liberto das leis e costumes da república. Tal dispensapode existir, como no caso de Pompeio, o Grande, em Roma, sem que hajasoberania. Consiste, pelo contrário, no poder positivo de ditar leis aossúbditos e de abolir as leis inúteis, substituindo-as por outras, o que nãopode ser feito por quem está sujeito às leis ou por quem recebe de outrem ospoderes de que se acha investido (Rep., 1, 9.a ed., 1576, 131-132). O limiteintrínseco do poder soberano, as leis natural, e divina, permitem oestabelecimento da regra seguindo a qual o príncipe soberano é obrigado acumprir os contratos que celebra, seja com os próprios súbditos, ,seja como estrangeiro. É ele quem garante aos súbditos o cumprimento das convenções eobrigações mútuas, sendo obrigado a ,respeitar a justiça .em, todos os seusactos. Um príncipe não pode ser ,perjuro (Ib., 148). De acordo com estesprincípios, ,Bodin -afirma, por um lado, a indivisibilidade do -podersoberano, pela qual este não pode pertencer simultaneamente a um, a poucos oua todos (aceita a antiga classificação das formas de governo em

monarquia, aristocracia e democracia), mas por outro,96

TOMAS MORO

afirma energicamente os limites da soberania que não pode prescindir das leisdivina e natural. "A diferença mais importante entre o rei e o tirano resideno facto de o rei se conformar com as leis da natureza, ao passo que o tiranoas atropela; enquanto um cultiva a piedade, a justiça e a fé, o outro nãoconhece Deus, nem fé , nem lei". (Ib.,11, 4, 246). Partidário da monarquia francesa, Bodin afirma ser o governomonárquico o melhor de todos, contanto que seja temperado pelos governosaristocrático o popular. Com efeito, é própria do governo aristocrático ajustiça distributiva ou geométrica, que distribui os bens segundo os méritosde cada um e é própria do governo popular a justiça comutativa ou aritméticaque tende para a igualdade. A justiça perfeita é a harmónica que é compostapor ambas; tal justiça é própria das monarquias reais (Ib., VI, 6, 727 esegs.). A república bem ordenada é semelhante ao homem, no qual o intelectorepresenta a unidade indivisível a que estão subordinadas a vida racional, avida irascível e a vida sensual. A república aristocrática ou popular sem rei

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é como um homem a quem a actividade intelectual falta ou escasseia. Poderá ela viver, como vive o homem que não cuida da contemplação das coisas divinas e intelectuais, não possuirá porém aquela unidade nem aquela harmonia intrínsecas que só um príncipe lhe pode dar, o qual, tal como o intelecto dos homens, unifica e harmoniza as partes do todo (Ib., 756-57).Como Tomás Moro, Bodin afirma como próprio de uma comunidade racionalmenteorganizada97

O princípio da tolerância religiosa. Dedicou à defesa deste principio oColloquium heptaplomeres (escrito por alturas de 1593), que consiste numdiálogo em

que aparecem a falar sete pessoas, representando sete confissões religiosasdiferentes (e daí o título): um católico, um luterano, um calvinista, umhebreu, um maometano, um pagão e um partidário da religião natural. Supõe-seo diálogo como tendo lugar em Veneza, a qual, ainda antes de a Holanda se tertornado a sede da liberdade religiosa, era conhecida como o estado maisliberal, como o provava o episódio de Sarpi. O personagem mais significativodo diálogo é Toralba, adepto da religião natural. A tese de Torailbaconsiste em que, dada a oposição existente entre as religiões positivas, a

paz religiosa só será possível por meio dum regresso ao fundamento puramentenatural (ou seja, racional) das várias religiões, o qual constitui asubstância comum a todas. Este regresso não exclui porém* persistência das religiões positivas, uma vez que* religião natural, francamente racional e filosófica não está apta aconseguir da plebe ou do vulgo o assentimento que só as cerimónias o ritospoderão obter. Uma vez reconduzidas à substância comum que lhes; éreconhecida pela razão filosófica, as religiões positivas perdem os motivosde oposição e

reconhecem-se solidárias, tornando possível a paz religiosa no seio do génerohumano. Na verdade, esta paz que ora o ideal dos platónicos do Renascimento,de Cusano em diante, é também o ideal de Bodin que escreve a sua obra nodecurso do período das guerras religiosas em França. Porém a98

preocupação de Bodin é principalmente política. O que lhe interessaestabelecer é o princípio da tolerância religiosa como fundamento da ordem civil na melhor das repúblicas.§ 348. O JUSNATURALISMOAs doutrinas de Tomás Moro e de João Bodin contêm já o pressupostojusnaturalismo: o regresso da organização política à sua substânciaracional. Este pressuposto é porém explicado e posto em evidência pelos

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autênticos fundadores dos jusnaturalismo moderno, através da consideração doestado de guerra. A guerra suspende com efeito a

validade das leis positivas e dos acordos entre os estados singulares; não pode todavia suspender a eficácia das normas baseadas na própria natureza humana e por conseguinte inerentes à comunidade humana em qualquer momento e mesmo nas relações de guerra. A consideração do estado de guerra permito isolar no conjunto das normas jurídicas, aquelas que não dependem nem da vontade nem das convenções humanas e são antes ditadas pela própria razão do homem. Assim se explica como foi precisamente da análise do estado de guerra que se induziram as regras básicas e a natureza do direito natural.Alberico Gentile nasceu no Castelo de S. Genesio em 1552, doutorou-se naUniversidade de Perúgia e foi professor de direito em Oxford; faleceu em1611. Na sua obra De jure belli (1588) chega a

formular o conceito de direito natural, partindo do99

problema de saber se a guerra será ou não conforme àquele direito. A sua resposta é negativa. Todos os homens são membrosde um grande e

único corpo que é o mundo e estão por isso ligados entre si por um amorrecíproco. É nesta sua

unidade original que se radica o direito natural que é um instinto imutávelbaseado na natureza.O homem não é pois por natureza inimigo dos outros homens nem há aí lugar para a guerra. Esta nasce quando os homens se recusam a seguir a natureza.Guerra justa é todavia a guerra defensiva, umavez que o direito de defesa é uma regra ~na que, embora não escrita, nasceucom os homens. Pelo contrário, não são justas as guerras ofensivas nem as dereligião, estas últimas porque a religião é de tal natureza que ninguém podeser obrigado a professá-la por meio de violência, devendo por conseguinte serreconhecida como livre (De jure belli,1, 9). Mas a guerra, apenas possível no âmbito duma comunidade humana, nãosuspende as normas fundamentais de direito próprias de toda e qualquercomunidade e portanto naturais. O respeito pelos prisioneiros, pelasmulheres, pelas crianças e pelas cidades e o não servir-se de armastraiçoeiras, fazem parte destas normas que não são próprias deste ou daquele povo mas de toda a humanidade.O princípio da soberania popular foi pela primeira vez afirmado por JoãoAltilsio (Althlis), nascido em 1557 numa aldeia do condado de Wittegenstein-Berleburg e que foi professor na Universidade de Herborn, tendo falecido em 12 de Agosto de 1638.Na sua Politica methodice digesta retoma100

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a doutrina de Bodin segundo a qual a validade do estado consiste na soberaniaque também reconhece como única, indivisível e intransmissível. Porém, segundo Altúsio, estasoberania reside no povo. Toda e qualquer comunidade humana (consociatio) seconstitui através dum contrato, expresso ou tácito, que faz dela um corpussymbioticum, um

organismo vivo. Este contrato baseia-se num sentimento natural e encontra-se regulado por leis (leges consociationis) quesão em parte leges comunicationtis, quer dizer, respeitantes às relaçõesrecíprocas entre os membros, e noutra parte, leges directionis etgubernationis, respeitantes às relações entre os

vários membros da comunidade e o governo. O estado é definido como "uma comunidade pública universal pela qual váriascidades e províncias se obrigam a possuir, constituir, exercer e defender asoberania (jus regni) mediante a mútua comunicação de obras e coisas e comforças e despesas comuns" (Pol., 9, 1; ed. de 1617. 114). A soberania ou jusmajestatis pertence por conseguinte à comunidade popular e é inalienável. Opríncipe é apenas um magistrado cujo poder deriva do contrato. Junto dopríncipe ou "supremo magistrado", encontram-se os éforos a quem competeexercer relativamente àquele os direitos do povo. Se o povo faltar ao contrato, o príncipe considerar-se-á liberto das suas obrigações; porém, se foro príncipe a violá-lo, o povo poderá proceder à escolha dum novo príncipe ou duma nova constituição (Ib., 20, 19-21). Estas bases da doutrina de Altúsio constituem o procedente histórico da doutrina de Rousseau (§ 496).101

Altúsio permanece todavia firme no tocante à negação da liberdade religiosa, Com o seu calvinismo intransigente, afirma que o estado deve ser também o promotor da religião e que deve portanto expulsar do seu seio tanto ateus como descrentes.Músio é o primeiro representante da filosofia jurídica da Refonna. O maisdestacado representante dessa filosofia é Hugo Grócio (Groot, Grotius),nascido em DeM, na Holanda, em 10 de Abril de1583. Jurista e homem político, tomou parte nas lutas religiosas no seu paíse foi encarcerado após a

derrota do partido dos Armínios (designação derivada do nome do teólogoAmiínio) cuja defesa tomara (1619). Tendo conseguido fugir dois anosdepois por obra da astúcia da mulher, viveu emParis e faleceu em 1645 em Rostock. Numa série de obras teológicas (a principal das quais é De veritate religionis christianae, 1627), visou à superação das diferenças entre confissões religiosas por meio do reconhecimento do significado genuíno do cristianismo. O seu propósito é, tal como o de Boffin, a pa7 religiosa, a qual se pode conseguir pela

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redução da religião aos seus princípios naturais: a existência de um só Deus, espírito puro, a providência e a criação. A sua obra fundamental é De juri bellí ac pacis (1625), composta por uma introdução e três livros.O ponto de partida desta grande obra é a identidade do natural com oracional, identidade esta, baseada no pressuposto de que a razão é averdadeira natureza do homem. Tanto aquela identidade como este pressupostosão teses directamente deri-102

vadas da doutrina estóica que alimentara durante tantos séculos todas asespeculações sobre a essência do direito e da comunidade humana. Porém,aquilo em que consiste a originalidade da obra de Grócio e pode serconsiderado como característico da fase moderna do jusnaturismo, é alibertação do conceito de razão de toda e qualquer implicação teológica, lIbertação estaexpressa por Grócio com a

famosa afirmação (que provocou enorme escândalo) de que as normas da razãonatural seriam válidas ainda que Deus não existisse. A partir daqui, aobra de Grócio procura formular a teoria do direito e da política em geralcomo uma pura ciência racional dedutiva, semelhante às matemáticas econstituída apenas por princípios evidentes e demonstrações necessárias.

Este é o único ponto de vista pelo qual a -teoria do direito poderá, segundoGrócio, ascender a umaautêntica universalidade, abstraindo de todos os sistemas particulares dedireito positivo. "Assim como os matemáticos", diz, <trabalham com símbolosabstractos dos corpos, assim eu declaro querer tratar o direito,prescindindo de todo e qualquer facto particular" (De jure b. ac p.,proleg.). A mãe do direito natural é a própria natureza humana que conduziriaos homens a procurarem a mútua associação, mesmo que não precisassem uns dosoutros. Por isso, o direito que se baseia na natureza humana teria lugarainda que se admitisse aquilo que se não

pode admitir sem pecar, ou seja, que Deus não existe ou que não se preocupacom as coisas huma-103

nas" (Ib., § 11). Na medida em que provém por legítima dedução dos próprios princípios da natureza, o direito natural distingue-se do direito das gentes (jus gentium), o qual provém, não da natureza mas do consenso de todos os povos ou de alguns deles, tendo como objectivo a utilidade de todas as nações.Precisamente pela sua origem, o direito natural é próprio do homem, que é oúnico ser racional, mesmo quando se refere a acções (como a criação dosfilhos) comuns a todos os animais (Ib., 1, 1, 11). É definido por

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Grócio como"o comando da recta razão que aponta a fealdade moral ou a necessidade moralinerente a uma acção qualquer, mediante o acordo ou o desacordo desta com a própria natureza racional". Asacções sobre as quais incide o comando são por si obrigatórias ou ilícitas econsideram-se portanto necessariamente prescritas ou

proibidas por Deus. Neste ponto, o direito natural diferencia-se não só dodireito humano mas também do direito voluntário divino que não prescreve nemproíbe as acções que por si e por sua própria natureza sejam obrigatórias ouilícitas, mas antes as torna ilícitas ao proibi-las e obrigatórias aoprescrevê-las. O direito natural é portanto de tal maneira imutável que nemmesmo por Deus pode sermudado. "Assim, como Deus não pode fazer com que dois e dois não sejamquatro, também não pode fazer com que aquilo que pela sua razão intrínseca éum mal, não o seja" (Ib., 1, 1, 10). Por conseguinte a verdadeira prova dodireito natu-104

ral é aquela que se obtém a priori, mostrando o

acordo ou o desacordo necessário de uma acção com a natureza racional esocial. A prova a posteriori, baseada naquilo que na opinião de todos ospovos ou na dos mais civilizados de entre eles, se crê legítimo, consistenuma mera probabilidade e funda-se na presunção de que um efeito universal exige uma causa universal (Ib., 1, 1, 12).Do direito natural se distingue o direito voluntário que não tem origem nanatureza mas sim na vontade e pode ser humano ou divino (Ib., 1, 1,13-15). Porém, só o direito natural fornece o critério da justiça ou dainjustiça: "Entende-se por injusto aquilo que repugna necessariamente, ànatureza racional e social> (Ib., 1, 2, 1).

A guerra não é, segundo Gróoio, contrária ao direito natural. O fim da guerraé a conservação da vida dos membros do todo social ou a aquisição do que énecessário à vida e este fim resulta da própria natureza. Nem mesmo o uso daforça é contrário à natureza, a qual dou a todos os animais a força suficiente para seajudarem ou se matarem reciprocamente. Grócio distingue três espécies deguerras: pública, privada e mista. A pública, é aque é feita por quem tem o poder de governar; a privada, a que é feita porquem está privado do ,poder jurisdicional; a mista, aquela em que uma parte épública e a outra privada (Ib., 1, 3, 1). Da consideração do direito de

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guerra, Grócio leva a

sua análise a incidir sobre a natureza do poder político. O supremo poderpolítico (sunima potestas

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civilis) é aquele cuja acção não está sujeita. ao direito de outrem de modo a poder ser anulado pelo arbítrio doutra. vontade humana. Grócio opõe-se à tese de Alffisio, segundo a qual o poder supremo reside apenas no povo, sendo lícito a este coagir e castigar os reis que fazem mau uso do seu poder.Aceita som reservas a tese contratualista segundo aqual toda e qualquer comunidade humana se baseia num pacto original, mas nãodeixa também de admitir que esse pacto tenha precisamente transferido asoberania, do povo para o príncipe. "Assim como

há vários modos de vida, uns melhores, outros piores, podendo cada umescolher aquele que lhe agrada, também o povo pode escolher a forma degoverno que deseja, **reguilando-se o direito, não pela excelência desta oudaquela forma (no que variam as opiniões) mas sim pela vontade do povo. Podm,com efeito, existir certas causas pelas quais o povo renuncie completamenteao direito de mandar, confiando-o a outrem: por exemplo, porque determinadalei o colocou em perigo de vida e não encontra quem o defenda, ou porque estáoprimido pela miséria e não pode obter doutro modo aquilo de que necessitapara se manteu (Ib., 1, 3, 8). É portanto possível que a soberania sejaintegralmente transferida do povo para o príncipe. É todavia igualmentepossível que essa transferência se processe em determinadas condições e que opríncipe prometa aos súbditos e a Deus cumprir co~, regras que não cumpririasem tal promessa e que por conseguinte não pertencem ao direito natural odivino

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nem ao direito das gentes, a cujo cumprimento todos os reis são obrigadosmesmo sem promessa. Esta limitação não implica o reconhecimento dasoberania do poder popular por parte do príncipe e é perfeitamenteconciliável com o seu poder supremo (Ib., 1, 3, 16). GrÓcio não admite aexistência do direito de depor o príncipe, por parte do povo, mas aceita queeste princípio possa sofrer excepções em caso de extrema necessidade ou emdeterminadas circunstâncias, enumerando em seguida os casos em que severificam estas circunstâncias ou

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aquela necessidade. Podem elas resultar duma cláusula do contrato através da qual a soberania é deferida ao príncipe ou das condIções deste deferimento, sempre que o próprio príncipe viole tais cláusulas ou condições (Ib., 1, 4, 8-14).Ao direito natural está, no pensamento de Grócio, ligada a religião natural a qual o é, precisamente por se basear na razão. "A verdadeira religião", escreve (Ib., 11, 20, 45), "comum a todas as épocas, baseia-se essencialmente sobre quatro enunciados.O primeiro consiste em que Deus existe e é uno.O segundo, em que Deus não é nenhuma das coisas que se vêem e lhes é muitosuperior. O terceiro, em que Deus se ocupa das coisas humanas, julgando-ascom perfeita equidade. O quarto, emque o próprio Deus é o artífice de todas as coisas exteriores". Estesprincípios são tão racionalmente sólidos. e apresentam-se tão reforçados pelatradição, que não podem ser anulados pela dúvida, donde a sua não aceitaçãodeve constituir culpa puní-107

vel. Não podem porém ser punidos aqueles que não aceitem noções nãoigualmente evidentes, como, por exemplo, que é impossível a existência demais de um único Deus, que Deus não é nem o céu, nem a terra, nem o sol, nemo ar, nem nada daquilo que vemos, ou que o mundo não existe ab aeterno pois aprópria matéria que o constitui foi criada por Deus. Estas noções tomaram-seobscuras em

muitos povos sem que estes se possam considerar culpados de talobscurecimento. No que se refere à religião cristã, é um facto que acrescentaà religião original muitas coisas em que se não pode acreditar com base emargumentos naturais masunicamente através do fundamento histórico da ressurreição e dos milagres.Crer no cristianismo, só é possível com o auxílio misterioso de Deus e porconseguinte, pretender impô-lo pela força das armas é contrário à razão (Ib.,11, 20, 48-49). Não é igualmente possível atribuir culpa aos cristãos poraquelas opiniões que se baseiam na ambiguidade da lei de Cristo; será maisjusto punir, pelo contrário, aqueles que se mostram ímpios ou irreverentespara com os seus deuses. (Ib., 11, 20, 50-51).

A obra de Grócio não representa apenas uma tentativa grandiosa de fundamentar racionalmente o mundo da política e do direito. É além disso o primeiro acto de fé na razão humana, a primeira manifestação do empenho, característico da especulação moderna, em reconduzir à razão,

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nela os baseando, todos os aspectos essenciais do homem e do seu mundo.108

NOTA BIBLIOGRÁFICA

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ALT0SIO, Política methodice digesta et aexemplis sacris et profanis Mustrata,Herbon, 1603; Groningen,1610.---OTTO VON GIERKE, J. Althusius und die En-109

twick1ung der naturrechtlichen Staatsth-eorien, Breslau, 1880; trad. ital. deA. Giolitti, Turim, 1943.

DE GRócio: Opera omnia theologica, An-isterdão,1679 e Basileia, 1732. De jure belli ac pacis, Paris,1625, 1632, 1646; Anisterdão, 1553. Há a reprodução fotográfica da edição de 1646, da Fundação Carnegie.-Dilthey, ob. cit., vol. II, pgs. 39 e segs.,-HAMILTON VEERLAND, H. G. the Father of the Modern Seience of International Law, Nova Iorque, 1917; SCHLCTER, Die Theologie des H. G., Gottingen, 1909;CORSANO, Hugo Grócio, Bari, 1948.lio

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RENASCIMENTO E PLATONISMO§ 349. NICOLAU DE CUSA: A DOUTA IGNORÂNCIA

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O platonismo e o aristotelismo, que tinham sido as duas correntes básicas daEscolástica, reaparecem igualmente no Renascimento, mas agora já reconduzidasàs suas fontes originais e aceites, na sua autenticidade histórica, comomeios de renovação do homem e do seu mundo. As disputas em torno dasuperioridade de uma ou de outra orientação, pressupõem a exigência comum derestituir ambas ao seu sentido histórico original, libertando-as dasdeformações e incrustações sofridas por obra da Escolástica. O antagonismoentre Platónicos e

Aristotélicos é, no Renascimento o antagonismo de dois interesses culturaisdiferentes. Platónicos são aqueles que põem em primeiro plano a exigência111

da renascença religiosa e que vêm por conseguinte, no regresso aoplatonismo, considerado como síntese de todo o pensamento religioso daantiguidade, a condição desta renascença. Aristotélicos são aqueles quetendem sobretudo para a renascença da actividade especulativa e especialmenteda filosofia natural; vêem estes no regresso à autêntica ciência de Aristóteles, a condiçãoda renascença de uma livre e rigorosa investigação naturalista. Neste sentido,o renovador do platonismo é Nicolau de Cusa, a

mais completa personalidade filosófica de Quatrocentos.Nicolau Chrypffs ou Krebs nasceu em Cusa, perto de Trier, na Alemanha, em1401. Recebeu a primeira instrução em Deventer, ministrada pelos "irmãos davida comum" que cultivavam o ideal da chamada devotio moderna e se inspiravamprincipalmente na mística alemã (§§ 327-29). Estudou em Heidelberg, eseguidamente, de 1418 a 1423, em Pádua, onde se ligou por amizade a PauloToscanelli, mais tarde médico e astrónomo de fama. Destinava-se ao estudo dodireito mas, tendo perdido o seu primeiro processo, voltou-se para a teologiae fez-se padre em 1430. Em 1432 foi pelo cardeal-legado Julião Cesarini, seuantigo mestre em Pádua, chamado a participar no Concílio de Basileia, após oConcílio, que devia entre outras coisas decidir da união entre as igrejaslatina e grega, foi enviado à Grécia, de onde regressou a Itália na companhiados pensadores e teólogos gregos mais -importantes da época. Pôde assimadquirir grande familiaridade com a língua e com os clássicos gregos

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e sobretudo conhecer directamente aquelas obras de Platão das quais extraiu ainspiração fundamental. Nomeado cardeal e bispo de Bressanone, entrou emconflito com Sigismundo, duque do Tiroi, por ordem do qual permaneceuencarcerado vários

anos. Morreu longe da sua diocese, em Todá, na úmbria, em 11 de Agosto de1464. Na sua viagem de regresso da Crécia, tivera a inspiração da suadoutrina fundamental, a da douta ignorância (De docta ign., 111, 12) a qualvem exposta nas suasduas principais obras: De docta ignorantia e De conjecturis (1440). Seguiram-se depois muitas outras: De querendo Deum e De filiatione Dei (1445),De dato patris luminum (1446), De genesi (1447), Apologia doctae ignorantiae(1449), De idiota (1450), De novissimis diebus (1453), De visiona Dei (1453), Complementum theologicam (1454), De bery11o (1458), De possest (1460), De non aliud (1462), De venatione sapientiae (1463), De apice theoriae, De ludo globi (1464) e Compendium (1464). Nicolau de Cusa escreveu além disso, várias obras de geometria, matemática e teologia.O ponto de partida de Nicolau de Cusa consíste nu-ma determinação precisa da natureza do conhecimento, o qual, é porele modelado segundo o conhecimento matemático. A possibilidade doconhecimento reside na proporção entre o conhecido e o desconhecido. Só emrelação ao já conhecido é que pode avaliar o ainda desconhecido, isso só seráporém possível se o ainda desconhecido possuir uma certa proporcionalidade(quer dizer, homogeneidade ou conveniência) relativa-113

mente ao já conhecido. O conhecimento é tanto mais fácil quanto mais próximoestão das que se

conhecem, as coisas que se procuram; por exemplo, em matemática, asproposições mais directamente derivadas dos primeiros princípios, já por sibem conhecidos, são as mais fáceis e evidentes, ao passo que as que seafastam desses mesmos princípios são menos evidentes e mais difíceis. Daquiresulta que quando procuramos algo de desconhecido e sem qualquer relação comos conhecimentos que possuímos, o mesmo escapa a toda e qualquerpossibilidade de conhecimento e só nos resta proclamar a esse respeito anossa ignorância. Este reconhecimento, da ignorância, este saber que não sesabe e que Nicolau de Cusa filia na antiga sabedoria de Pitágoras, deSócrates e de Aristóteles e também na sabedoria bíblica de Salomão (Ecles,1,8), é a douta ignorância. A atitude da douta ignorância é a única possível

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perante o ser como tal, ou seja, perante Deus. Deus é na verdade o graumáximo do ser e da perfeição em geral; é "aquilo cuja grandeza não pode serultrapassada". Deus, como já o dissera Duns Escoto (§ 306), é o infinito eentre o infinito e o finito não existe relação. O homem pode aproximar-seindefinidamente da verdade por graus sucessivos de conhecimento, mas

uma vez que estes graus serão sempre finitos e averdade é o ser em grau infinito, esta última escapará necessariamente ao esforço feito para a suacompreensão. Entre o conhecimento humano e a verdade existe a mesma relaçãoque entre os polí-114

gonos, inscritos ou circunscritos e a circunferência: multiplicandoindefinidamente os lados desses polígonos, estes aproximar-se-ãoindefinidamente da circunferência com a qual porém jamais se identificarão. Averdade no seu carácter absoluto e necessário permanecerá sempre para além doconhecimento, que é a possibilidade pura de estabelecer relações definidas(Da d. ign. 1, 3). E, tal como o

máximo absoluto, assim também o mínimo absoluto escapa ao conhecimento. Estemove-se no âmbito do que é susceptível de mais ou de menos ao passo que omínimo absoluto escapa ao mais e ao menos por ser aquilo de que não podehaver menor. O máximo absoluto e o mínimo absoluto coincidem por pertenceremambos ao domínio da necessidade e da actualidade plenas, ao passo que* domínio do mais e do menos, no qual se move* conhecimento humano em todos os seus graus é* da possibilidade e da potencialidade (Ib., 1, 4).

Nestas teses fundamentais de Nicolau de Cusa convergem as duas últimasmanifestações da filosofia medieval: o occamismo e o misticismo alemão.O occamismo declarara já impossível ao homem o acesso à realidade divina e omisticismo alemão tinha procurado este acesso fora do conhecimento, na fé,recorrendo à teologia negativa do falso Dionísio, o Areopagita. Também esteúltimo traço, como

veremos, se encontra em Nicolau de Cusa. Este não parte, porém, como Occam,do empirismo; o seupressuposto é metafísico e inspirado no platonismo original. Esse pressupostoé a incomensurabilidade (a não-proporcionalidade) da relação existente entre115

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* ser como tal e o conhecimento humano, ou seja, * transcendência absoluta do ser que permanece um valor ou uma norma ideal, não podendo jamais ser atingido nem possuído pelo homem.

§ 350. NICOLAU DE CUSA: O MUNDO DA CONJECTURAPorém, após ter ensinado a Nicolau de Cusa a transcendência do serrelativamente ao inundo, Platão ensina-lhe também o regresso ao mundo. Adiferente natureza do mundo e do homem com respeito ao ser, não implica acondenação total do mundo e do homem, a negação de todo o seu valor. Ao fazerreviver também este segundo aspecto do platonismo, Nicolau de Cusa aproximou-se do espirito do filósofo antigo, tanto quanto se afastou do platonismomedieval. Após ter desligado Deus, como máximo absoluto, do mundo, volta aencontrá-lo no conhecimento humano, justamente por causa deste desligamento. Osaber que não seconhece Deus é o princípio do seu conhecimento e, em geral, a doutaignorância, o saber que não se sabe, constitui o princípio e o fundamento detodo o conhecimento humano. Para designar este último, Nicolau de Cusa adoptao termo conjectura que traduz a eikasia platónica (Rep., 511 e; § 52),definindo-a como "a asserção positiva que participa, por meio de diferentenatureza, da verdade como W" (De conjecturis, 1, 13). A conjectura é um modode conhecer (por diferente natureza), ou seja, um conhecimento que remetefundamentalmente116

para aquilo que é distinto de si mesmo, para a

verdade como tal mas que precisamente por essa razão está em relação com a própria verdade, dela participando. Aqui, adiferente natureza do conhecimento relativamente à verdade serve parafundamentar o valor do conhecimento que, precisamente pela sua diferentenatureza se põe em contacto com a verdade. Contanto que reconheça os seuslimites e neles se baseie, o conhecimento humano será pois, válido; deixaráde o ser quando não for ignorância douta, ou seja, quando esquecer a suanatureza diferente da verdade que é a sua única participação possível namesma verdade.

Correlativamente, o mundo, considerado na suanatureza diferente de Deus, implica necessariamente uma relação com Deus e atémesmo a sua identidade com ele. O mundo, é, segundo Nicolau de Cusa, um Deuscontraído. As palavras contraído e contracção (Icontractio), são extraídas deDuns Escoto (§ 305) que as adoptara para designar a determinação e a

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concretização no indivíduo, da substância comum. Nicolau de Cusa emprega-ascom um significado semelhante. O universo é omáximo, a unidade, e a infinidade tal como Deus, mas é um máximo, uma unidadee uma infinidade que se contrai, isto é, que se determina e se individualizanuma multiplicidade de coisas singulares. Deus, que é a essência absoluta domundo, está no mundo, considerado na sua unidade, mas não rias coisas; ouniverso que é a essência contraída das coisas, está nestas de modocontraído, quer dizer. multiplicado e diferenciado pela sua multi-117

plicidade e pela sua diferença. Resulta daqui que Deus é a essência(quidditas) do sol e da lua (como de todas as outras coisas) não está no solnem na

lua; porém, o universo que é a essência contraída, é sol no sol e lua na lua;a sua identidade realiza-se na diversidade e a sua unidade na pluralidade; éneste sentido que é contraído. (De d. ign.,11, 4). Mas esta relação entre Deus e o mundo, que a própria transcendência de Deus relativamente ao mundo pressupõe, significa que tudo quanto se pode encontrar no mundo existe, na sua necessidade e na sua verdade, em Deus. Neste sentido, Deus é a complicação (complicatio) de todas as coisas. Deus é, com efeito, identidade, igualdade, simplicidade; estas três coisas são porém, a complicatio da diversidade, da desigualdade, da divisão. Por outro lado, é também a explicatio, ou seja, o desdobramento da identidade na diversidade, da igualdade na desigualdade, da simplicidade na divisibilidade. Pela sua explicação, Deus está em todas as coisas, embora permaneça absolutamente para além delas, pela sua unidade multiplicável.A especulação ulterior de Nicolau de Cusa incidiu, ora sobre um, ora sobreoutro aspecto desta relação entre Deus e o mundo. Em De conjecturais, De idiota e De visione Dei acentua a inatingibilidade datranscendência divina, afirmando que a única fórmula capaz de a exprimir é a dacoincidência dos contrários: coincidência do máximo e do mínimo, dacompilação e da explicação, do todo e do nada, do criar e do criado. Estacoin-118

cidência não pode porém ser apreendida nem compreendida pelo homem e por isso, Deus permanece para além do todo e qualquerconceito humano, como infinito absoluto, relativamente ao qual são nulos ospassos de quem caminha na sua direcção. Todavia, em De noit aliud (1462)reconhece essa expressão non aflud como a que melhor exprime a transcendênciadivina. Significa ela, na verdade, que Deus não está nesta ou naquela coisa eque, portanto, não pode ser conhecido nem determinado mediante coisa

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algumaque dele seja distinta. Mas a fórmula exprime também a ideia de que Deusdetermina tudo quanto é distinto de si, abrindo assim caminho à compreensãoda essência do mundo. Põe ela em evidência, por conseguinte, não só ocarácter distinto do mundo relativamente a Deus mas também a conexão do mundocom Deus; é sobre esta conexão que insistem as outras obras de Nicolau deCusa. Em De possest descobre tal conexão no conceito de possibilidade(posse). Tudo quanto é, pode ser o que é. Isto é válido mesmo

para a realidade absoluta, isto é, para Deus: também essa pode ser. Porém,nessa, o poder ser não precede o ser actual; o poder ser, a realidadeabsoluta e a relação entre um e outro, são na realidade absoluta igualmenteeternos. Em De venatione sapientiae Nicolau de Cusa distingue o poder fazer (posse facere), opoder transformar-se (posse fieri) e o poder ser feito (posse factum). Opoder transformar-se precede o poder ser feito, mas o

poder fazer precede o poder transformar-se; por essa razão o poder fazer é oprincipio e o termo119

da possibilidade de tudo quanto se transforma ou é criado. É tudo o que pode ser e por conseguinte não pode ser nem maior nem menor, é o máximo e o mínimo absolutos e não pode ser outra coisa. Por esse motivo é a causa eficiente, a causa formal ou exemplar e a causa final de tudo, o princípio e o termo de todas as coisas criadas (De ven. sap.39). O conceito da possibilidade serve aqui a Nicolau de Cusa para justificare também para garantir a transcendência de Deus como posse facere emface do criado e a sua imanência nele como fundamento do posse fieri e doposse factum. Em De apice theoriae o mesmo conceito de possibilidade éreconhecido como o caminho mais directo e imediato para um conhecimento deDeus nos limites da douta ignorância. Sapientia clamat in plateis, disseraNicolau de Cusa em De idiota (1, fi. 75 v. ): a verdade revela-,se nasexpressões mais simples e

vulgares, empregadas por todos. Até mesmo acriança ou o jovem sabem o que significa a possibilidade, quando falam em poder correr, poder falar ou poder comer. Não há noção mais fácil nem mais certa do que a do posse, sem a qual não há realidade, nem bem; é ela pois que abre caminho à compreensão da misteriosa essência da realidade absoluta.Assim, partindo da douta ignorância, ou seja, dos limites que geralmente seaceitam e se reconhecem no saber humano, Nicolau de Cusa conseguiu de certomodo restabelecer sobre esses mesmos limites uma relação entre Deus, de um

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lado, e o120

mundo e o homem, do outro, relação esta que lhe permite uma nova avaliação do homem.§ 351. NICOLAU DE CUSA: A DOUTRINA DO HOMEMA doutrina da douta ignorância implica a ideia de que o homem não podeaventurar-se ao conhecimento de Deus sem ter em conta os seus limites.Implica todavia também a ideia de que nesses mesmos limites pode ele obter um conhecimento de Deus cuja. validade é garantidapela íntima relação que subsiste entre o homem e Deus. A velha doutrina dasemelhança entre a mente divina e a mente humana é reafirmada por Nicolau deCusa no

sentido de que o homem pode descobrir nos limites da sua subjectividade averdadeira face de Deus. E com efeito, a verdadeira face de Deus não sedetermina quantitativa nem qualitativamente, nem

segundo o -tempo, nem segundo o espaço; é a forma absoluta, a face de todasas faces. Assemelha-se àqueles retratos que parecem fitar o observador,qualquer que seja a posição em que este se encontre. Quem olhar Deus comamor, verá o seu rosto olhá-lo amorosamente. Quem o olhar com ira, verátambém irado o seu rosto. E quem o olhar com alegria, vê-lo,-á irradiandoalegria. A objectividade humana empresta a sua própria cor

ao semelhante divino, tal como uma lente colorida empresta a sua cor aosobjectos observados. Mas é precisamente nesta multiplicidade de rostosdivinos,

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nesta multiplicação dos semblantes de Deus consoante a atitude subjectiva de quem o procura, que se encontra a revelação deDeus na sua verdade, Deus não pode revelar-se senão através da subjectividadedo homem e esta subjectividade não é uni

impedimento à procura de Deus e sim condição dessa procura (De vis. Dei, 6).A subjectividade humana é aqui reconhecida por Nicolau de Cusa em todo o seuvalor; para se aproximar de Deus, o homem não deve negá-la nem aboli-Ia,mas antes reforçá-la e desenvolvê-la. É ela uma força assimiladora que setransforma em sensibilidade diante das coisas sensíveis e em razão diante dascoisas racionais (De id., 111, 7). É unia semente divina que com a suaforça reúne em si (Complicans) os modelos de todas as coisas e foi lançada àterra para que possa dar os seus frutos e produzir por si, conceptualmente, a

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totalidade das coisas (Ib., III,5). A subjectividade humana é actividade, capacidade de iniciativa e dedesenvolvimento e possibilidade de realizar sempre novas aquisições nodomínio do saber. "A natureza intelectual do homem", diz Nicolau de Cusa(Excitationes, V), "é capaz de Deus porque é potencialmente infinita: pode,na

verdade, compreender sempre cada vez mais". E ela é também o princípio detoda e qualquer avaliação e até mesmo a própria condição do valor. Não queristo dizer que seja o intelecto a criar o valor; todavia, sem o intelectonão haveria maneira de o apreciar e por conseguinte todas as coisas criadascareceriam de valor. Se Deus quis que à sua obra fosse atribuído um valor,teve que criar

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o intelecto humano que é o único a poder estimá-lo (De ludo globi, 11). Porisso o homem não tem necessidade de romper os limites da sua subjectividadepara se elevar até Deus. À pergunta de como será possível alcançar Deus, decomo poderá o homem, atingir Deus, que é todo no todo, em si, recebe aqueledo próprio Deus a resposta: Sê teu e

serei teu. Aqui reside a verdadeira liberdade do homem. O homem pode, se quiser, pertencer-se a si próprio e só se for de si próprio é que Deus será seu.Por essa razão, Deus, embora não o necessitando, espera que o homem escolhaser de si próprio (De vis. Dei, 7). Assim a última consequência da doutaignorância, ou seja, do reconhecimento da transcendência absoluta de Deus, éo apelo divino aohomem para que escolha livremente ser ele próprio, reconhecendo-se naprópria finitude, aceitando-a e realizando-a. Somente se não se negar a sipróprio e livremente aceitar ser o que é, se colocará o homem numa relação autêntica com Deus e Deus será seu, tal como ele é de si próprio. Os limites que a douta ignorância reconhece ao homem, constituem assim, não a negação mas antes o fundamento do valor do homem.A criatura é um "Deus ocasionado" ou um "Deus criado", que não pode tenderpara outra coisa senão para ser aquilo que é e só desse modo consegue dealguma maneira reproduzir a infinidade de Deus (De d. ign., 11, 2). Ovalor que a criatura tem em si, dentro da sua finitude, é claramentepatenteado pela encarnação do Verbo, o qual, ao

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assumir a natureza humana, que recolhe e unifica123

em si todas as coisas, nobilitou e elevou, conjuntamente com o homem, todo omundo natural Ub.,111, 2). O mistério da encarnação é assim para Nicolau de Cusa, expressão dovínculo que une a natureza finita do homem, justamente na medida em

que é finita, à natureza infinita de Deus, ou seja, a demonstração do valorda subjectividade humana baseada precisamente naqueles limites de que a

douta ignorância constitui o reconhecimento e a aceitação.§ 352. NICOLAU DE CUSA: A NOVA COSMOLOGIAO princípio da douta ignorância leva Nicolau de Cusa a uma nova concepção domundo físico, a qual, por um lado se vai ligar às pesquisas dos últimosescolásticos, especialmente de Occam, e

por outro preludia directamente a nova ciência de Kepler, Copérnico egalileu. Em primeiro lugar, o reconhecimento dos limites próprios darealidade e do valor do mundo conduz Nicolau de Cusa a negar que uma partedeste-a celeste-seja possuidora de uma absoluta perfeição e seja portantoingénita e incorruptível. A doutrina de Aristóteles, que a filosofia medievaltinha feito sua, segundo a

qual existe uma separação entre a substância celeste ou etérea, dotada demovimento circular perfeito, e a substância elementar dos corpos sublunaressujeitos ao nascimento e à morte, doutrina essa já posta em dúvida por Occam,acaba por ser definitivamente aniquilada por Nicolau de Cusa. Não124

reconhece ele, na verdade, a nenhuma parte do mundo o privilégio daperfeição absoluta: todas as

partes do mundo têm o mesmo valor e todas se aproximam mais ou menos daperfeição, masnenhuma a alcança pois esta pertence única-mente a Deuis.O mundo não tem centro nem circunferência como o supusera Aristóteles. Se ostivesse e se por conseguinte tivesse dentro de si o seu princípio e oseu termo, haveria fora do mundo outro espaço e outra realidade, ambosdestituídos de qualquer verdade. Só Deus é centro e circunferência do mundo;é porém um centro e uma circunferência não corpóreos e antes ideais,significando apenas que todo o mundo nele se reúne (complicans) e que eleestá em todo o mundo (explicans). Da construção do mundo pode dizer-se

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unicamente que <tem o centro em toda a parte e a circunferência em nenhumlugar, uma vez que circunferência ecentro são Deus que está em toda a parte e emnenhum lugar (De d. ign. 11, 12). Por isso, o mundo, não pode dizer-seinfinito (infinito é apenas Deus), tão-pouco pode conceber-se finito, umavez que é destituído de limites espaciais entre os quais se

encerre (Ib., 11, 11).A terra não se encontra pois no centro do mundo e por essa razão não podedeixar de ter movimento. Não é esférica, embora tenda para aesfericidade, uma vez que a esfericidade Perfeita não pode ser atingida pelascoisas criadas, assim como se não pode atingir o máximo absoluto:relativamente a cada coisa de forma esférica, há sempre125

outra cuja forma esférica é mais perfeita. O movimento que a anima écircular, embora não seja, pela mesma razão perfeitamente circular. Mas istonão implica que ela seja a mais vil e baixa de todas as coisas criadas. Éuma nobre estrela, com luz, calor e influência diferentes da das outrasestrelas. A geração e a corrupção que nela se verificam, verificam-seprovavelmente também nos outros

astros e, possivelmente, também esses astros são habitados por seresinteligentes, de uma espécie diferente da nossa. O sol não é diferente daterra. Se nos fosse permitido penetrar nele, veríamos, sob a

sua luz, uma terra central, rodeada de uma zona aquosa, seguidamente, de uma atmosfera mais pura do que a nossa e por fim, de uma zona ígnea superficial; estas quatro esferas sucessivas comportar-se-iam como os quatro elementos terrestres. Por outro lado, se um homem se encontrasse no espaço exterior à terra, vê-la-ia resplandecer como o sol. E se a lua não nos aparece tão luminosa como o sol, é pelo facto de estarmos demasiado perto dela, quase na sua zona aquosa (Ib., 11, 12).Os movimentos que se verificam na terra como em qualquer outra parte domundo, têm por fim salvaguardar e garantir a ordem e a unidade do todo. Deacordo com esse fim, os corpos pesados tendem para a terra, os corpos levespara o alto, a terra para a terra, a água para a água, o ar para o ar, o fogopara o fogo, o movimento do todo, tanto quanto possível, para o movimentocircular, e todas as formas para a forma esférica, como se126

vê nas partes constituintes dos animais e das árvores e ainda no céu (Ib.,11, 12). Foi esta talvez a

primeira formulação do princípio da gravidade. A concepção do mundo

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apareciacompletamente renovada pela obra de Nicolau de Cusa. Retoma ele também a teoria do impetus queos filósofos da escola occamista (§ 325) tinham formulado para explicar omovimento dos céus e dos projécteis, negando o princípio ari,stotélico,segundo o qual o

motor deve acompanhar o móvel na sua trajectória e reconhecendo assim a existência da lei da inércia que constitui uma das bases da mecânica moderna.Todo e qualquer corpo, como a bola lançada pelo jogador, prossegueindefinidamente no

seu movimento até que o poso ou outros obstáculos o façam afrouxar ou parar (De ludo globi, 1). A mecânica de Leonardo da Vinci foi buscar a Nicolau de Cusa a sua inspiração.§ 353. O PLATONISMO ITALIANOEnquanto Nicolau de Cusa elaborava a sua filosofia que, ao renovar oplatonismo, renovava igualmente a concepção do homem e do seu mundo, travava-se em Itália a polémica sobre o platonismo e seu valor relativamente aoaristotelismo. Esta polémica fora iniciada por Jorge Gemisto Pletone, nascido em Constantinópla por alturas de 1355 e falecido em 1464. Tendo vindo aItália para participar no Concílio de Florença, que devia decidir a união dasigrejas grega e latina, foi dos que fomentaram127

aqui o conhecimento da língua grega e portanto o estudo directo das obrasclássicas. Pletone ora partidário de uma unificação total das crençasreligiosas com base no platonismo. Via em Platão aquele em cujo nome ahumanidade poderia encontrar a

sua unidade religiosa e por conseguinte a paz; neste espírito escreveu oConfronto das filosofias de Platão e Aristóteles (por volta de 1440) que deuorigem a uma longa e acesa polémica durante a qual foram alternadamente.exaltadas as figuras dos dois filósofos. A esperança da unificação dasreligiões não era um sonho exclusivo de Pletone. O próprio Nicolau de Cusa,alguns anos depois, manifestava em De pace fidei (1454) a mesma esperança esuplicava a Deus que permitisse aos homens o venerá-lo numa única religião,ainda que tivesse de subsistir a diversidade de cerimónias e ritos. Nicolaude Cusa baseava especulativamente a sua esperança na doutrina que jáexpusemos (§ 351), da diversidade dos rostos divinos. Pletone, baseia-a numarovivescência do platonismo no qual via porém, não já a doutrina original dePlatão e sim a dos Neoplatónicos. e Neopitagóricos da filosofia helenística(§§ 117 e segs.) mesclada de elementos orientais aos quais o próprio

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Pletonese refere expressamente. Com efeito, há entre as suas obras um comentário aoschamados Oráculos caldaicos, por ele atribuídos a Zoroastro, mas que narealidade são uma misturada de teses pertencentes ao neoplatonismo siríaco (§125). A obra de Pleitone é importante apenas pelo facto de exprimir aconvicção, pró pria do Renascimento, de que a renovação do homem e da suavida religiosa

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e social só se poderá atingir mediante um regresso às doutrinas filosófIcasdos antigos.

As ideias religiosas de Gemâsto foram combatidas por Gennadio, teólogo daigreja oriental, também participante no concílio de Florença, por TeodoroGaza e por Jorge de Trebizonda que escreveu

contra ele uma obra intitulada Confronto das filosofias de Aristóteles ePlatão (sobre estes v. § 360). Em defesa de Pletone interveio BasílioBessarion (nascido em Trebizonda em 1403 e falecido em Ravena em 1472) com umescrito intitulado Contra um caluniador de Platão. A preocupação inicial deBessarion é a de não condenar Aristóteles para defender Platão, demonstrando,pelo contrário, na

medida do possível, a sua concordância fundamental. A superioridade dePlatão relativamente a Aristóteles reside, segundo Bessarion, no facto dePlatão, mais do que Aristóteles, se ter aproximado da verdade revelada pelo cristianismo, embora sem a alcançar plenamente. Bessarion pretendo porém, expressamente, reconduzir as doutrinas, quer de Platão, quer de Aristóteles, ao seu genuíno significado; é este igualmente o objectivo das suas inúmeras traduções: da Metafísica de Aristóteles, dos Memoráveis de Xenofonte, dos fragmentos de Teofrasto.O interesse que estas discussões provocaram pela filosofia de Platãoexprimiu-se pela fundação em

Florença da Academia platónica. Ficou esta a dever-se à iniciativa deMarcílio. Ficino e Cosme de ,Médicis, e reuniu um círculo de pessoas que viamnum regresso às doutrinas autênticas do platonismo antigo a possibilidade derenovação do homem e129

da vida religiosa e social. Os sequazes da Academia, especialmente MarcílioFicino e Cristóvão Landino, viam no Platonismo a síntese de todo o pensamento

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religioso da antiguidade e portanto também do cristianismo que, por esse,motivo, seria a religião mais elevada e verdadeira possível. A doutrina dePlatão ora na verdade considerada por Ficino (Prohemium ad Merc. p.1836) como a última e mais perfeita manifestação daquela teologia de queMercúrio Trismegisto fora o iniciador e que fôra depois continuada edesenvolvida por Orfeu e Pitágoras. A concordância entre esta teologia e ocristianismo explicava-se através do reconhecimento de uma fonte comum dasdoutrinas de Platão e Moisés, fonte essa contida nos ensinamentos de Mercúrio Trismegisto que teriam constituído o núcleo de toda a teologiaposterior. O regresso ao platonismo não significava pois para os sequazes daAcademia platónica um regresso ao paganismo mas antes uma renovação docristianismo, pela sua recondução à fonte original que teria sidoprecisamente o platonismo. A este regresso ao antigo está ligada outra facetada Academia platónica, o anticuriailismo. Contra as pretensões de supremaciapolítica do papado, a Academia platónica defendia o regresso às ideiasimperiais de Roma pelo que o De monarchia de Dante ora frequentemente objectode comentários e discussões. Entre os membros da Academia e além dos inúmerosletrados e crudátos da época que se congregavam em redor de Lourenço, oMagnífico, e de Ficino, destaca-se Cristóvão Landino que viveu entre 1424 e1498. Nas Disputationes130

camaldulenses e no De nobilitate atimae, diálogos em que falam os membros ilustres da Academia, encontram-se expostas e defendidas as doutrinas de Ficino. Porém a figura que constituiu o elemento animador da Academia, foi o próprio Marcílio Ficino.§ 354. FICINO: A ALMA, CóPULA DO MUNDOMarcílio Ficino nasceu em Figline, no Valdarno em 19 de Outubro de 1433 o fezos seus estudos em Florenç a e Pisa. Tendo entrado em contacto com Cosmo deMédicis, deste recebeu encorajamonto e auxílio, bem como o encargo detraduzir Platão. Na villa Careggi oferta de Cosme, Ficino entregou-se durantemuitos anos ao estudo e difusão do platonismo, reunindo à sua volta aquelecírculo de amigos e discípulos que constituía a Academia platónica. Tendoadoecido gravemente em 1474, em vão buscou alívio, como ele próprio conta (Ep., I, fis. 644), nafilosofia e nos escritores profanos; só se curou depois de ter feito umapromessa a Maria. Resolveu então pôr a sua actividade filosófica ao serviç oda religião e formulou por isso claramente o princípio directivo da suaespeculaçãoa unidade intrínseca da filosofia e da religião. Nos últimos anosda sua vida assistiu às contendas que afligiram Florença e à tentativa

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deSavonarola a que foi hostil. Faleceu em 3 de Outubro de 1499 e foi sepultadoem S. Maria del Fiore. Ficino, quando jovem, escrevera um tratado intituladoDe voluptate131

(1457). A primeira obra escrita após a crise foi De christiana religione, em1474, que escreveu primeiro em italiano e depois em latim. Em 1482 saíu a TheoJogia platonica; em 1489 o De vita; em 1492 saíram os 12 livros das Epístolas que na realidade consistem numa colecção de ensaios e opúsculos. Importantes são os comentários a Platão, especialmente o que incide sobre o Banquete. Ficino traduziu para latim os diálogos de Platão, as Enéadas de Plotino e inúmeras outras obras de escritores gregos (Atenágoras, Jâmblico, Proelo, Porfirio, Psofios, Xenócrates, Sinésio, Spêusipo, Pitágoras e Hermias).O objectivo declarado da especulação de Ficino é o de renovar e promover aunião entre religião e filosofia. Esta união existiu na antiguidade emtodos aqueles povos entre os quais religião e filosofia tiveram amplodesenvolvimento. A sua separação provocou a decadência tanto da religião quese tornou superstição ignorante como da filosofia que se tornou iniquidade eastúcia. A renovação conjunta da religião e da filosofia só se pode atingiratravés do restabelecimento da sua correlação e para tanto é necessáriorecorrer ao platonismo noqual é mais estreito o nexo existente, entre religião e filosofia e que porconseguinte permite a revivescência de tal nexo na sua fecundidade (Dechrist. rel., proém., II, Theol. plat., proém.; In Plotin., proém.). Opróprio título da principal obra de Ficino exprime-lhe a intenção: aTheologia platónica tem por objectivo renovar a especulação cristã, ligando-aao platonismo. Porém, uma especulação assim entendida deve necessàriamenteter no homem o132

seu centro. A teologia medieval tem por objecto únicamente Deus mas ateologia tal como Ficino a entende, tem realmente por objecto o homem,, uma vez que o único fim de uma especulação religiosa ou de uma religião filosófica é a renovação do homem. O significado que para Ficino contém a redenção confirma esta posição central do homem. A redenção é uma reformatio, uma reforma ou uma renovação, pela qual no homem e através do homem, toda a natureza criada aparece restituída à sua forma e reconduzida a Deus. Ficíno observa que a reforma das coisas disformes é para a divindade uma tarefa não menos importante do que a sua formação inicial. Pela redenção, Deus "declarou e fez com que nada existisse de disforme nem de desprezível no mundo, uma vez que uniu as coisas terrenas ao rei do céu, adequando-as assim, de certo modo, às coisas celestes" (De christ. rel., 18). É pois no homem que reside o centro e o núcleo de todo o ser.*

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Pode dizer-se que toda a especulação de Ficino incide sobre esta posiçãocentral do homem no

mundo. Toda a realidade se diferencia em cinco graus: o corpo, a qualidade, aalma, o anjo eDeus. A alma encontra-se no meio e é por isso a terceira essência ou essênciamédia: quer ascendendo do corpo para Deus, quer descendo de Deus até ao corpo, encontra-sesempre no terceiro grau. Por conseguinte é o núcleo vivo da realidade. Deus eo corpo são muitíssimo diferentes um do outro e constituem os dois extremosdo ser. O anjo não**hga ~s dois extremos pois está completamente133

voltado para Deus, descurando os corpos. A qualidade também os não liga poisse inclina paira o

corpo, descurando as coisas superiores. A alma prendo-se às coisas superiores sem deixar as inferiores; é imóvel como aquelas e móvel como estas; concorda com umas e deseja-as a ambas. Move-se em direcção a um extremo sem abandonar o outro e por conseguinte é a verdadeira cópula do mundo (Theol. plat, 111, 2). Introduz-se entre as coisas mortais sem ser mortal, pois introduz-se íntegra e não repartida e portanto retira-se íntegra e não dispersa. Enquanto rege os corpos adere ao divino e por isso não é companheira e sim senhora dos corpos. É simultaneamente todas as coisas porque traz em si a imagem das coisas divinas das quais depende, e os motivos ou modelos das coisas inferi que de certo modo produz. É considerada por Ficino como o centro da natureza, a intermediária de todas as coisas, a cadeia do mundo, a face do todo, o núoleo e cópula do mundo (Ib., 111, 2).Em virtude desta sua natureza, a alma é necessária à economia e à ordem domundo e por isso deve ser indestrutível. Ficino retoma todos os argumentosaduzidos por Platão e pelos Neoplatônicos em apoio de tal,indestrutibilidade; porém o principal argumento e o que mais intrinsecamentese prende com a natureza por ele atribuída à alma é o que se baseia naparticipação que esta tem no infinito, A alma é capaz de medir e dividir otempo, e

ainda de remontar indefinidamente no curso deste em direcção ao passado ou deo estender infinitamente em direcção ao futuro. É ela que descobre134

e define a infinidade do tempo assim como é também a verdadeira medida detal infinidade. Mas a medida deve ser proporcional àquilo que mede: a própriaalma deve ser portanto infinita, como

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medida do infinito (Ib., VIII, 16). E esta infinidade revela-se com efeito nassuas próprias aspirações. A posse de corta coisa, a obtenção de um certoprazer, bastam para satisfazer todos os restantes seres animais. Só o homemjamais está contente com oque possui (Ib., XIV, 7). Ao lado desta característica da infinidade, quedistingue o homem das outras criaturas, há uma outra, igualmente distintivado homem e que é a liberdade. Ficino admite a existência de uma trípliceordem divina do mundo: a providência, que é a ordem que governa osespíritos, o destino que é a ordem que governa os seres

animados e a natureza, que governa os corpos. O homem é porém livre porque, embora participando destas três ordens, não é determinado por nenhuma delas.A sua natureza média permte-lhe participar duma ou doutra, segundo a sualivre escolha, mas sem ficar submetido ao seu determinismo. Participa nestastrês ordens de modo activo e não passivo: participando na providência, aexemplo do governo divino, governa-se a si próprio e governa a casa, o estadoe os **am,*mais; participando no destino com a imaginação e a sensibilidade(que o ligam aosoutros animais) governa o próprio destino; e participando na natureza,adquire o **d~io dos corpos. Por isso está liberto da necessidade e segue,livremente ora esta, ora aquela lei, servindo-se delas

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como instrumento mas sem lhes sofrer os efeitos (lb., XIII). A sua verdadeiraescolha é portanto a

escolha da liberdade. Retomando a fórmula de Nicolau de Cusa, Ficino afirmaque o homem, ao decidir-se pela acção, opta mais por pertencer a si próprio,do que por servir este ou aquele e por isso o acto verdadeiramente livre éaquele que escolhe a

Liberdade (lb., IX, 4). Também para Ficino, tal como para Nicolau de Cusa, o homem não deve procurar ser senão ele próprio.§ 355. FICINO: A DOUTRINA DO AMORAo carácter medianeiro da alma está ligado oamor que é justamente a actividade pela qual aalma desempenha a sua função medianeira. Ficino parte duma descrição míticadas origens do amor na qual se revela já a sua ideia dominante. Os trêsmundos criados por Deus, o da mente angélica, o da alma e o das coisassensíveis, provêm todos do caos. Em primeiro lugar, Deus cria a substância ou essência da mente angélica a qual, nos primeiros

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momentos, é obscura e informe. Porém, uma vez que nasceu de Deus, volta a Deus pelo desejo. Movida pelo desejo e iluminada pelo raio divino, determina-se e forma-se, e nela se determinam e formam as ideias modelos da criação. Este processa que vai do caos à determinação consumada das ideias arquétipos da criação é o processo do amor.136

MARSILIO FICINO

o primeiro regresso da mente a Deus é o nascimento do amor; a infusão do raiodivino é a nutrição do amor, a inflamação da mente é o incremento do amor, oaproximar-se a mente de Deus é o arrebatamento do amor; a formação da menteé a perfeição do amor. Assim pois, foi a criação guiada pelo amor, do caosaté ao cosmos; e a característica do cosmos como tal é a beleza. Por via dabeleza, o amor conduziu a mente primeiramente disforme até à formação acabada (In Conv. Plat. de am. comm., 1, 3). Porém o que faz do amor a actividade medianeira do universo é a natureza recíproca das relações que estabelece entre Deus e o mundo. Não é apenas o mundo que tende para Deus e se forma nesta sua tendência, mas é o próprio Deus que ama o mundo. O homem não poderia amar Deus se este mesmo o não amasse. Deus volta-se para o mundo num acto livre de amor, toma-o a seu cuidado e torna-o vivo e activo. O amor explica a liberdade de acção tanto divina como humana, uma vez que é livre e nasce espontaneamente da livre vontade (lb., V, 8).Deus forma e governa livremente o mundo e livremente o homem se eleva até Deus.O amor é o vínculo do mundo e é ele que abole a indignidade da naturezacorpórea, a qual é resgatada pela solicitude de Deus (Theol. plat., XVI, 7). "São três", afirmaFicino, "os benefícios do amor: reconduzindo-nos à integridade, de divididosque estávamos, reconduz-nos ao céu; coloca cada umno seu lugar e faz com que, nesta distribuição, todos ~ satisfeitos, extinguetodos os aborreci-137

mentos e acende na alma uma alegria continuamente nova, tornando-a feliz, com um doce o brando prazer" . (In Conv., IV, 6). Deste modo o amor é, não só a condição da ascensão do homem para Deus, mas também o próprio acto da criação, ou seja, da descida de Deus até à criatura.As duas doutrinas fundamentais de Ficino, a da alma medianeira e a do amor,constituem as facetas originais do platonismo do Renascimento. Repete eleincontestavelmente o esquema neoplatónico, servindo-se porém deste paraacentuar a função central do homem. O centro da especulação original é opróprio Deus, unidade absoluta, da qual tudo deriva e à qual tudo regressa. Ocentro da especulação platónica de Ficino, como de Nicolau de Cusa, é o homemna sua função medianeira e

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por conseguinte no amor como justificação e actodesta função. O homem é situado pelo platonismo de Nicolau de Cusa e deFicino numa posição particularmente sua que faz dele um elemento indispensávelda ordem e da unidade dinâmica do ser. Contínua este a ter a sua origem e asua perfeição emDeus, encontrando porém a sua verdadeira unidade vivente e autojustificante no homem e no amor que o liga a Deus e que Deus lhe retribui. A noção dos limites do homem e da transcendência do ser relativamente a esses limites é parte essencial do platonismo histórico original. Mas mesmo estes limites constituem, para Nicolau de Cusa e Ficino, a originalidade da natureza humana e o fundamento do seu valor e da sua liberdade.138

§ 356. LEÃO HEBREU

A teoria ficiniana do amor foi retomada por Leão Hebreu, nascido em Lisboaentre 1460 e 1463 e falecido entre 1520 e 1535, provavelmente emFerrara. Deixou escritos os Diálogos de **anwr, editados pela primeira vez emRoma em 1535 e que tiveram logo inúmeras traduções e vastíssima difusão. Adoutrina ali exposta é substancialmente ade Marcílio Ficino. Descreve-se ali o amor como o duplo processo que vai deDeus às criaturas e do homem para Deus e que faz do homem o centrodo universo, o ser sem o qual o mundo inferior estaria completamente separadode Deus. Atribui-se ao amor a circularidade do processo cósmico que deriva deDeus e a Deus regressa. O intelecto humano, ao unir-se ao corpo, transporta aluz divina do mundo superior para o inferior e faz assim participar de Deustudo quanto foi criado. O amorde Deus é o desejo de que o mundo, que lhe é inferior em perfeição, atinja ograu máximo de perfeição e beleza, o amor do homem, através do qual o própriomundo ama Deus, tem como fim último a plena e absoluta união com Deus. Estametafísica. do amor, que já se encontrava em Nicolau de Cusa e em Ficino,constitui um traço comumdo platonismo do renascimento. Prestava-se ela, comefeito, não só a justificar a posição central do homem no mundo mas também esobretudo, a exprimir o carácter religioso daquele platonismo que via nafilosofia platónica a mais perfeita sín-139

tese religiosa da antiguidade, reconhecendo nela aúnica via para a renovação religiosa do homem.

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§ 357. PICO DE MIRÃNDOLA: A PAZ REGENERADORAO interesse religioso domina também a complexa figura de Pico. João Pico, conde de Mirândola, nasceu em Mirândola em 24 de Fevereiro de 1463. Após haver estudado em Bolonha e Ferrara, foi a Pádua entre 1480 e 1482, onde entrou em contacto com o averroísmo ensinado na Universidade local. Pico não tinha a prevenção dos humanistas contra os "bárbaros" filósofos medievais.Numa carta de1485 para Ermolao Bárbaro (§ 340), condena a

atitude dos que sacrificam a aparência à substância e se deixam derrotar pelas especulações daqueles que pouco cuidam dos ornamentos do discurso.Precisamente pelo desejo de entrar em mais estreito contacto com os filósofosárabes e escolásticos, cuja doutrina predominava ainda na Universidade deParis, dirigiu-se a esta cidade. Em 1485 voltou ali, com o fim de anunciaruma grande discussão entre eruditos convocados em Roma a expensas suas, sobre900 teses; algumas destas revelaram-se heréticas e foram condenadas. Picodefendeu-as na sua Apologia. Para fugir à condenação, dirigiu-se a França eem seguida fixou-se em Florença, onde manteve relações de amizade comLourenço, o Magnífico, Ficino, Polinizado e com o próprio Savonarola pelo qualse deixou, nos últimos anos da sua

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vida, converter à ideia da necessidade de uma reforma moral da igreja. Morreuem Florença em

17 de Novembro de 1494, ao que parece, envenenado pelo secretário. Entre assuas obras, além da Apologia e da carta para Bárbaro, cabe referir asseguintes: Heptalus**, comentário aos primeiros capítulos do Génese, editado em1489; De ente et uno (1492), tentativa de síntese entre aristotelismo eplatonismo; e Oratio, de dignitate hominis. Após asua morte foram publicadas as Disputationes adversus astrologos, obra que é uma crítica da astrologia, as Conclusiones que desenvolvem as 900 teses que tinha preparado para a discussão em Roma o Comentário a uma canção de amor de Gerolamo Benivieni.De temperamento passional (viu-se implicado num clamoroso escândalo por causado rapto de uma dama florentina), investigador incansável eirrequieto, erudito excepcional, João Pico não alcançou na sua especulação,nem a profundidade de Nicolau de Cusa nem a clareza de Ficino. No seupensamento convergem os mais diversos elementos, derivados do platonismo e doaristotelismo, da cabala e da magia, e ainda da escolástica medieval, árabe,

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hebraica e latina, sem chegarem a fundir-se numa unidade especulativaoriginal. O que o liga principalmente ao platonismo é o interesse religiosoque domina a sua actividade especulativa. No discurso De hominis dignitateque preparou como introdução à discussão sobre as 900 teses que deveria tertido lugar em Roma e que tem sido justamente designado como o manifesto doRenascimento ita-141

liano, expõe Pico admirâvelmente o e~ e o plano do seu filosofar, plano este,ao qual se mantém fiel em todo o resto da sua obra. O ponto de partida dodiscurso é a superioridade do homem sobre as restantes criaturas, que era otema favorito dos humanistas bem como de Nicolau de Cusa e de Ficino. Aohomem, último produto da criação, não ficara disponível nenhum dos bens jádistribuídos na totalidade às outras criaturas. Deus decretou então que lhefosse comum tudo o que individualmente destinara aos outras. "Por essa razãoacolheu o homem como obra de natureza indefinida e após tê-lo colocado nocoração do mundo, falou-lhe deste modo: Não te dei, ó Adão, nem lugardeterminado, nem aparência própria, nem qualquer prerrogativa especial, paraque obtenhas e conserves o lugar, a aparência e as prerrogativas quedesejares, de acordo com a tua opinião e

esse mesmo desejo. A natureza limitada dos outros está contida nas leis pormim prescritas. Determinarás a tua, livre de qualquer obstáculo esegundo o teu arbítrio a cujo poder te confiei. Coloquei-te no centro domundo para que daí pudesses avistar melhor tudo quanto há no mundo. Não tefiz nem celestial nem terreno, nem mortal nem imortal, para que, sendo de tipróprio o quase livre o soberano artífice, te moldasses e esculpisses naforma da tua preferência. Poderás degenerar nas coisas inferiores, poderás,segundo a tua vontade, regenerar-te nas coisas superiores que são divinas"(Or. de hom. dign., fis. 131 v. ). A indeterminação da natureza humana ofer~ao142

homem a livre escolha do seu ser e coloca-o face à alternativa de degenerar ao nível dos animais irracionais ou de se regenerar em Deus. Mas este regenerar-se não é senão a renascença do homem, ou seja, aquela renovação que o Renascimento, na sua totalidade, tende a realizar. Qual é a via dessa renascença?É precisamente aqui que se revela o aspecto religioso da filosofia de

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Pico. Arenascença realizar-se-á através de vários graus de sabedoria, culminando nomais alto que é o constituído pela sabedoria teológica. "Mas já que nãopodemos **deançá-la", acrescenta Pico, "nós, que somos carnee temos o gosto das coisas terrenas, aproximemo-nos dos antigos padres, quedestas coisas, para eles tão familiares e tão próximas, nos poderão darriquíssimo e seguro testemunho," (lb., fis. 132 v. ). Por conseguiinte, a viada renascença consiste uma vez mais no regresso aos antigos. E é nos antigosque Pico encontra o caminho da sabedoria purificante e libertadora. A ciênciamoral dominará o ímpeto das paixões, a filosofia natural conduzirá o homem deum grau a outro da natureza e a teologia aproximá-lo-á de Deus. Mas aregeneração não terá lugar senão na paz e pela paz, É este o fim último dohomem e é um fim religioso. Aquela não poderão conduzir, nem a dialéctica,nem a ciência moral, nem a filosofia natural, as quais se limitarão aindicar o caminho, Só a teologia indissolúvel e a amizade harmónica, pelaqual todos os homens não só se harmonizam naquela única mente que está acimade todas as mentes, como, de modo inefável, se143

fundem num só" (Ib., fls. 133 v.'). Estas paz eamizade que para os Pictóricos constituíam o fim da filosofia, cifram-se napaz celeste que a mensagem cristã anunciou aos homens de boa vontade, eque cada um de nós deseja para si próprio, aos seus amigos e a toda a suaépoca. Esta paz regeneradora é também aquela que Pico quer afirmar eestabelecer filosoficamente, mostrando o acordo fundamental de todas asprincipais manifestações do pensamento, dos Pictóricos a Platão eAristóteles, dos Neoplatónicos aos Escolásticos e dos averroístas à cabala eà magia. Aquilo que impele Pico à tentativa de demonstrar o acordofundamental entre as mais diversas doutrinas filosóficas e religiosas dahumanidade, não é uma necessidade de quietude ecléctica mas sim a convicçãode que só por meio da paz filosófica poderá o homem regenerar-se e renascerpara a sua verdadeira vida. Esta verdadeira vida que é a felicidade e o sumobem é definida por Pico como o regresso ao princípio (De ente et uno, VH,proém.). Regresso ao principio pode significar para cada ser, regresso ao seupróprio princípio ou -regresso ao princípio absoluto que é Deus. Mas oregresso ao seu próprio princípio é na realidade um regresso a si próprio e desse modo, o homem poderá obter apenas a beatitude terrena e não a eterna.Por conseguinte, só no regresso a Deus residem a vida eterna e a paz

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definitiva do homem. Se o platonismo e o aristotelismo do Renascimentorepresentam respectivamente as exigências opostas da vida religiosa e dainvestigação científica, a conciliação, entre Platão e Aristóteles representapara Pico144

a harmonia e a paz entre aquelas exigências. A teologia não nega a filosofia natural, antes a completa assim como Platão completa Aristóteles: o homem não pode renunciar nem a conhecer a natureza nem a transcendê-la.

A aspiração à paz regeneradora sugere a Pico o único tema original da suaespeculação teológica. Apresenta na verdade, para ilustrar a tradicionalsemelhança entre a criatura e Deus, um esboço que, segundo ele próprioafirma, jamais foi apresentado por outros. Vê a unidade das criaturasdiferenciada em três formas: a primeira é a unidade pela qual cadacoisa é una; a segunda é aquela pela qual uma criatura se une a outrae todas se unem para formarem o mundo; a terceira é aquela pela qual todo o universo forma, com o seu artífice, um todo uno, tal como oexército com o seu chefe. Esta tríplice unidade que está presente emtodas as coisas, faz de cada coisa a imagem da trindade divina.E portanto, aquilo que de semelhante a Deus há em cada criatura singular,aquilo que constitui o seu maior valor, é a unidade, a paz ou a concórd,ia da sua constituição intrínseca, paz e concórdia que a ligam às outrascriaturas e a Deus.§ 358. PICO DE MIRÃNDOLA: CABALA, MAGIA E ASTROLOGIATodas as obras de Pico tendem a realizar o projecto de uma paz filosófica. A estapaz deveria conduzir a grande discussão de Roma e nela se145

inspira fundamentalmente o discurso introdutório De hominis dignitate. Aobra De ente et uno destina-se à demonstração do acordo existente entrePlatão e Aristóteles. Por sua vez, o Heptalus destina-se à demonstração doacordo existente entro a

filosofia antiga e a narração bíblica da criação. E aúltima obra de Pico, a que é dirigida contra osastrólogos, destina-se também a ilustrar a concordância existente entre asdoutrinas mágicas e astrológicas e o cristianismo.

A narração bíblica da criação é interpretada por Pico no Heptalus em sentidoalegórico: vê nela adescrição da formação dos três mundos admitidos pelos filósofos antigos, ousejam, o mundo inteligível ou angélico, o mundo celestial e o mundo sublunar,

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aos quais se junta uni quarto que é o homem como microcosmo, no qual convergetodo o resto da realidade. A obra De enle et uno descobre a concordância entrePlatão e Aristóteles na determinação das categorias fundamentais da realidadeque são o ser, o uno, o verdadeiro e o bem, categorias estas que culminam ese unificam em Deus. Nas duas obras, como nas outras, Pico recorrecontinuamente a doutrinas orientais, mágicas e cabalísticas, na convicção deque a origem de todo osaber humano seja uno e que esta unidade, reconstituindo-se, torne o próprio saber capaz da regeneração do homem. A magia, acabala e a astrologia desempenham portanto um grande papel na especulação de Pico.A magia, para ele, não é más do que "a realização completa da filosofianatural" (Or. de hom.

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dign., fis. 136 v ). Há também uma magia que opera, baseando-seexclusivamente na obra e na autoridade dos demónios; é porém coisa execrandae monstruosa que nada tem a ver com a verdadeira magia, a qual se destina afazer do homem o senhor das forças naturais. Esta, perscruta a íntimaconcórdia do universo a que os Gregos chamam simpatia e que, consiste nasmútuas relações das coisas naturais. Os sortilégios dos magos não são maisque as ilusões apropriadas, pelas quais se tornam visíveis os milagresocultos nos penetrais do mundo e nos mistérios de Deus. E assim como ocamponês casa os olmos com as videiras, assim também o mago casa a terra

com o céu, ou seja, as forças inferiores com os dotes e faculdades superiores(Ib., fis. 137). O mago não transgride, portanto, a ordem natural mas antes asubmete, pondo em acto e ajustando as energias que jazem disseminadas edispersas na natureza

(Concl. mag., XI, XIII).Se a magia serve para penetrar os mistérios da natureza, a cabala serve parapenetrar os mistérios divinos. Pico considera-a, na verdade, como o melhorguia para a interpretação das sagradas escrituras, sob o véu dos símbolos, noseu genuíno significado. As doutrinas da cabala (ver § 244) parecem pois aPico estar em perfeito acordo, não só com

a doutrina da igreja e com a filosofia cristã mas também com as de Pitágorase Platão (Or. de hom. dign., fis. 138 vo). A convicção de que através dacabala as doutrinas básicas do cristianismo remontam a uma tradição

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antiquíssima, reforça a vontade

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de Pico em renovar a religiosidade do seu tempo mediante um regresso às suas fontes originais.A sua atitude é porém diferente no que se refere à astrologia. Em face do determinismo astrológico que fora afirmado pela filosofia árabe da IdadeMédia e dominava ainda a filosofia natural do ocidente, Pico faz-se paladinoda liberdade do homem. A astrologia pode ser entendida em dois sentidos. Emprimeiro lugar é astrologia matemática ou especulativa, quer dizer,astronomia, a qual se preocupa unicamente com a determinação das leismatemáticas do universo. Em segundo lugar é astrologia judiciária oudivinatriz, preitendendo fazer provir do curso e da natureza dos astros osacontecimentos da vida terrena. Contra esta última se dirige a obra de PicoDisputationes in astrologiam. Converte ela, na sua opinião, os homens, delivres a escravos e fá-los ainda desgraçados, ansiosos, inquietos oinfelizes em quase todos os seus actos (Ib., 1, proém.). É absurdo supor queo nascimento de um homem como Aristóteles seja devido à influência dosastros. Muitos outros nasceram ao mesmo tempo que ele e não possuíram o seu talento. Este, recebeu-o ele de Deus e não do céu; o corpo apto a servi-lo, recebeu-o dos pais o tão-pouco do céu. Escolheu a filosofia e essa escolhafoi fruto da sua livre vontade; nada existe nele que se possa atribuir àinfluência dos astros (Ib., 111, 27). A acção dos céus, que Pico considera,tal como Aristóteles, de natureza imutável e incorruptível, deveria seruniforme e constante e não explicaria por essarazão, a variedade e a mutabilidade, dos acontecimentos.148

terrenos (Ib., HI, 7). Pôs e acima de tudo, a astrologia inverte a relaçãohierárquica que é própria, da realidade, pois subordina o superior aoinferior, visto que, se o céu é sem dúvida superior às coisas terrenas, ohomem, como ~o e liame do universo inteiro é superior ao pró prio céu.Através da investigação cientifica, o homem encontra-se em posição decompreender as leis naturais servindo-se disso para dominar a natureza. Aastrologia anularia esta liberdade e torná-lo-ia. escravo (Ib., IV, 8). Picodefendia, deste modo, contra uma das mais difundidas e arraigadas crenças do seu tempo, a dignidade do homem como responsabilidade em face do próprio destino.§ 359. FRANCISCO PATRIZZIO mesmo propósito de renovação religiosa, próprio do platonismo

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renascentista, domina a obra de Francisco Patrizzi. Nascido em Cherso, naDalmácia, em 1529, estudou em Veneza e em Pádua. De 1576 a 1593 ensinoufilosofia platónica, em Ferrara e seguidamente foi chamado para idênticasfunções em Roma, onde faleceu= em 1597. As suas principais obras são asDiscussiones peripateticae e a Philosophia nova. A primeira tem como assunto aaniquilação da filosofia aristotélica e a segunda, aconstrução de uma filosofia platónica que possa servir de base à fé cristã.Patrizzi considera a filosofia aristoté lica como inimiga da religião, umavez que nega a omnipotência divina e o governo divino do

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mundo; afirma ainda que os Escolásticos não são verdadeiros filósofos namedida em que não fizeram senão reformar a filosofia aristotélica semcuidarem de conhecer as coisas tal como são. A sua filosofia tem porobjectivo a renovação e defesa da religião cristã através do regresso àsdoutrinas pré-aristotélicas e particularmente às crenças orientais,pitagóricas e platónicas. Ao dedicar a sua obra ao papa Gregório XIV,convida-o a mandar ensinar a sua filosofia em todas as escolas cristãs,chegando a

crer que tal provocaria o regresso dos protestantes ao seio da igreja. APhilosophia nova está dividida em quatro partes: a panaugia ou doutrina daluz, a panarchia ou doutrina do primeiro princípio de todas as coisas, apanpsichia ou doutrina da alma e a pancosmia ou doutrina do mundo. Patrizziafirma, com os Neoplatónicos, como primeiro princípio, o Uno. O Uno é a causaprimeira, absoluta e incondicionada, e não pode ser qualificado senão como obem. Do Uno se distingue a unidade, gerada a partir dele, e da unidade osoutros graus do ser até aos menos perfeitos: a sabedoria, a vida, ointelecto, a alma, a natureza, a qualidade, a

forma e o corpo. O conjunto destas nove ordens da realidade constitui ouniverso inteiro. O conhecimento humano é um acto de amor que tende aregressar à unidade original, suprimindo a separação entre os elementos doser. É definido por Patrizzi como "a união com o objecto cognoscível"(Panarch., XV) e consiste no acto de amor pelo qual o homem tende para oobjecto, procurando suprimir a distância que o separa deste último. Mas150

este identificar-se o intelecto cognoscitivo com o objecto, esta coitio, só épossível com base numa identidade de natureza entre sujeito e objecto. Se osujeito é alma e vida, também o objecto é alma e vida; Patrizzi defende aanimação universal das coisas, o panpsiquismo, como sendo o único

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princípiocapaz de explicar a sua conexão no mundo, a simpatia que as liga até formaremo todo e as torna penetráveis ao intelecto humano (Panpsich., IV). A forçanatural que distribui vida e

movimento a todos os corpos é a luz; Patrizzi retoma assim a física da luz que já fora defendida pelo platonismo medieval de Roberto Grossetesa e de S. Boaventura.NOTA BIBLIOGRÁFICA§ 349. A primeira ed. das obras de NICOLAU DE CUSA é alemã e intitula-seOpuscula varia; não traz indicação do ano nem do local da impressão mas foiprovàvelmente editada em Estrasburgo em 1488. Outras eds.: Paris, Basileia,1565. O De non aliud foi descoberto e editado por Ubinger, Die Gotteslehredes N. C., Münster, 1888, págs. 138 e segs, Do De dacta ignorantia hâ umanova edição de P. Rotta, J3ar@, 1913. A Universidade Heidelberga iniciou umanova edição critica, das obras de Nicolau de Cusa: De idiota, De sapientia,De mente, a cargo de L. Baur, Leipzig, 1940; De concordantia catholica, acargo deO. Kallen, Leipzig, 1940; etc.

Sobre Nicolau de Cusa: Vanstenbeerghe, Le cardinal N. de Cues, Paris, 1930; CAssiRER, Indivíduo e cosmos na filos. do ren., cap. 1; M. de GandUlac, La phil. de N. de C., Paris, 1941.151

§ 352. Sobre a física de Nicolau de Cusa: DuHEm, Études sur Léonard de Vinci, vol. II, Paris, 1909, pags. 97 e segs..§ 353. Algumas obras de Pletone, entre as quais o Confronto, encontram-se emP. G. de Migne, 160.1 Sobre ele: MESZKOWSKi, Estudos sobre oplatonismo do renascimento, em Itália, 1936, cap. U. O texto e atradução latina de Ficino dos Oráculos caldaicos em apêndice a este, úJtimo volume.As obras de Bessarione em P. G., 161.,. Sobre ele: MOMER, KardinalBessarion aIs Theologe, Humanist und Staatsman, Paderborn, 1923.

Sobre a Academia platónica: DELLA TORRF, HiStória da Academia platónica de Florença, Florença, 1902.De C. Landino, as Disputationes foram publicadas em Florença por volta de 1480, o De vera nobilitate é inédito e o De nobilitate animae foi publicado por GENTILE e PA0L1 nos "Anais das Universidades toscanas". Gentile, Estudos sobre o renascimento, pgs. 87 e segs.§ Trads. platónicas de Ficino. Florença, 1483-E-1; de PLOTINO, 1492; aThealogia platonica, Florença,1482. Ediç. das obras completas: Basileia, 1561, 1567,1576; Paris, 1641.

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Sobre Ficino: Saitta, A filosofia de M. P., Messina, 1923; BARON,Willensfreiheit und Astrologie bei F. und Pico d. M., Berlim, 1929; P. O.KRISTELLER, The Philosophy of M. P., Nova Iorque, 1943 (com bibl.).

§ 356* Os Diálogos de, amor de Le Hebreu foram reeditados por C. GEBHARDT, Heidelberga, 1929 e por CARAMELLA, Bari, 1929. FONTANESI, O problema do amor na obra de Leão Hebreu, Veneza, 1934.§ 357. De Pico, foram as Conclusiones editadas em Roma em 1486 e em Colônia em 1619; a Apologia, em Roma em 1489; o Hoptalus em Florença em 1490;152

as outras obras, em Boilonha, em 1496. A Oratio de hominis dignitate, oHeptalus, o De ente et uno e o

Comentário à canção de G. BENIVIENI foram reeditados e traduzidos por Garin,Florença, 1942, assim como as Disputationes adversus astrologiamdininatrirem, Florença 1946. Os trechos citados são tirados da trad. deGarin.

Sobre Pico: GARIN, Jodo Pico de Míràndola, Fiorença, 1937; G. BARONE, J. Pico de Mirándota, Milão-Rorna, 1948-49.§ 359. As Di&cussiones peripateticae de PATRIZZI: Veneza, 1571; Basileja, 1581. A Nova philosaphia: Ferraxa, 1591; Veneza, 1593; Londres, 1611.T. GREGORY, em "Renasci~to", 1953, pgs. 89e segs..153

IV

RENASCIMENTO E ARISTOTELISMO§ 360. O PRIMEIRO ARISTOTELISMOUnidos, no campo da historicidade, pelo esforço de regressar às doutrinasautênticas de Platão e

Aristóteles, os Platónicos e Aristotélicos, do Renascimento opunham-se unsaos outros na defesa de interesses contrários: religião e investigaçãonaturalista. Os Platónicos viam no platonismo a síntese do pensamento religiosoda antiguidade e por conseguinte no regresso ao platonismo a condição darenascença religiosa Os Aristotélicos viam no aristotelismo o modelo daciência naturalista e por conseguinte no regresso ao naturalismo a renascençada pesquisa da natureza. A polémica entre Platónicos e Aristotélicos, éportanto o choque de duas, exigências de evidente e igual necessidade para155

o homem; e as tentativas de concüiação (como p. ex. a de Pico) tendem aharmonizar estas exigências num conceito do mesmo homem mais próximo da perfeição.O regresso ao aristotelismo original foi iniciado em Itália por aqueles

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eruditos, gregos que tomaram parto no Concílio de Florença para a reuniãodas duas igrejas ou que se refugiaram naquele país após a queda deConstantinopla nas mãos dos Turcos (1453). O primeiro foi Jorge Scholario,chamado Gennadio, ~o em Constantinopla efalecido por volta de 1464. Adversário de Genuísto Pletone, condenou e combateuo seu escrito sobre as Leis. Num escrito Sobre as dúvidas de Pletonerelativamente a Aristóteles defendeu Aristóteles contra Pletone, aduzindo asua maior conciliabil-idade com a doutrina cristã. Baseava-se evidentementena tradição escolástica que estudara o de que fora partidário; traduziramesmo para o grego, obras de S. T~ e de Gilberto Porrotano (o De sexprincipiís). Parece ser-lhe também atribuível a tradução para o gregodas Summulae logicales de Pedro Hispano, (§ 289) que foi mais tardeerradamente considerada obra original do filósofo bizantino Míguel Psollos.

A polémica contra Pletone foi continuada por Jorge Trapezunzio, nascido provavelmente em

Creta, em 1396 e falecido em 1484- Chegou este aItália por volta de 1430 e escreveu em 1464 a Comparatio Platonis etAristotelis à qual respondeu por volta de 1469 o caildeal Bessarion (§ 353).A actividade de Trapezunzio dirige-se principalmente

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à explicação e comentário das obras aristotélicas, nomeadamente da lógica, que expõe em De re didectica, não sem utilizar elementos tirados da tradição escolástica.Não têm mais interesse filosófico as obras de Teodoro Gaza, nascido por voltade 1400 em Tessalónica e falecido por volta de 1473. Tendo chegado a Itáliaem 1440, permaneceu durante alguns anos na escola de Vitorino da Foltre eensinou primeiro em Ferrara e depois em Roma. Travou polémica com Bessarionsobre questões aristotélicas eescreveu contra Pletone. Traduziu inúmeras obras de Aristóteles e o tratado Sobre as plantas de Teofrasto.Quem primeiro contrapôs o Aristóteles original ao Aristóteles da escolásticaárabe e latina foi Ermelao Barbaro (1453-93) de Veneza, o qual compendiou aética e a filosofia natural, e traduziu a Retórica de Aristóteles e oCo~ntário de Gemisto. Professa o mais absoluto desprezo pelos "filósofosbárbaros"", incluindo entre estes, tanto Alberto e Tomás como Averróis. Vê naforma rude e inculta da sua linguagem a primeira e mais grave traição aoespírito original do classicismo que pretendeu encerrar os mais altos pensamentos na forma literária mais nobre. Os filósofos bárbaros; foram pelo

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contrário, defendidos por Pico de Mirândola na famosa carta dirigida aErmelaO na qual o repreendia e simultâneamente aconselhava* buscar neles, para além da rude forma literáría,* substância do seu pensamento, do qual Pico julgava extrair aindaensinamentos ~. Na ver-157

dade, porém, a intolerância de Erinolao pela barbárie da forma eraintolerância pelas superstruturas que o pensamento medieval acrescentara ao Aristóteles original.§ 361. AVERROISTAS E ALEXANDRISTASMais um passo no sentido de um regresso ao autêntico Aristóteles foi o quederam aqueles aristotélicos que, polemicando contra o aristotelismoaverroista, pretendem manter-se fiéis aos textos de Aristóteles e dos seusantigos comentadores, especialmente Alexandre de Afrodísia. O campoaristotélico apresentava-se a Marcílio Ficino dividido em dois partidos:Alexandristas e averroístas. "Os primeiros", afirmava Ficino (In Plotin.,proém.), "crêem que o nosso intelecto é mortal enquanto os outros sustentamque é único em todos os homens; tanto uns como os outros destroem osalicerces de toda e qualquer religião, principalmente porque negam a acção daprovidência divina sobre os homens, e tanto uns como os outros são infiéisao seu próprio Aristóteles". O grande centro Averroísta era, ao tempo, aUniversidade de Pádua (§ 312). O averroísmo dominou aquela Universidadedesde a primeira metade do século XIV até meados do século XVII-, foi emPádua que apareceu em 1472 a primeira edição em latim das obras de Averróis aque se seguíram posteriormente, no século XVI, numerosas outras. Notam-setodavia entre os partidários do chamado averroí srno,158

diferenças importantíssimas de doutrina e sobretudo frequentes atenuações dasteses que mais directamente se opõem à religião cristã. porobra de Pedro Pomponazzi, nasce o alexandrismo que pretende regressar, emmatéria de interpretação de Arístóteles, ao comentário antigo de Alexandre, opróprio averroísmo sofre por isso modificações tais que é frequentementedifícil classificar os pensadores aristotélicos nesta ou na outra corrente,Dum modo geral pode dizer-se que os Averroístas tendem para o panteísmo, namedida em que consideram o intelecto humano único e idêntico ao divino, aopasso que os Alexandristas afirmam a transcendência de Deus relativamente aomundo. Uns e outros têm em comum os temas da sua especulação que são aimortalidade da alma e a relação entre a liberdade e a ordem necessária domundo. Uns e outros têm sobretudo em mira a afi-rmação da ordem

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necessária domundo e por conseguinte negam o milagre e, dum modo geral, a intervençãodirecta de Deus nos acontecimentos do mundo. O aristotelismo do Renascimentotende por isso a delinear uma concepção do mundo baseada numa ordem imutávele necessária e com tal assenta as bases de uma ciência da natureza que tenhapor objecto precisamente essa ordem. Tanto Alexandristas como Averroístasrecorrem além disso e com frequência à chamada "doutrina da dupla verdade" ,entendida no sentido já explicado (§ 283) de admissão da existência de umaposição entre as conclusões da filosofia e as crenças da religião, oposiçãoessa que não julgam

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possível conciliar. Este ponto de vista nada tem que ver com o de Averróis.ao afirmar que a religíão tinha por objecto as mesmas verdades que afilosofia mas revestia-as de uma forma que as tornava mais aptas a serviremde guia e salvação das multidões. É antes, pelo menos na aparência, oregisto de um conflito entre filosofia e religião, entre razão e fé; o uma vezque se exclui a possibilidado de solução do conflito e se admite ora averdade de um, ora a de outro, dos dois termos em contradição pode designar-se esta posição poi "doutrina da dupla verdade". É óbvio que nada sabemos dasinceridade em que cada pensador reconhecia a "verdade" da religião: as condenações, as retratações e os arrependimentos tornam impossível qualquer investigação sobre este ponto que aliás seria estranha a um estudo histórico da filosofia. Tudo o que nesta matéria se pode fazer, consiste em precisar a posição explícita dos filósofos e em expor as bases teóricas da mesma.A figura de Nicoletto Vernia. (1420-99), que ensinou em Pádua desde 1465 até morrer, pode ter-se como típica do averroísmo paduano do século XV.Conhecido pelo seu feitio desabusado e faceto, Vernia sustentou as teses típicas do averroísmo, provocando a intervenção do bispo de Pádua que em 1489 proibiu as discussões sobre a unidade do intelecto sob pena de excomunhão.Vemia pagou bem os seus erros. Enquanto que as suas obras se perderam,ficaram-nos dele alguns escritos menores, nos quais a sua orientaçãonaturalista se torna evidente através da superioridade

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que atribui à filosofia natural relativamente à metafísica e à medicina emface da jurisprudência; esta última está, segundo Vernia, ligada às acçõesparticulares dos homens, ao passo que a medicina respeita à natureza que é o reino do universal e do necessário.

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Discípulo de Vernia foi Agostinho Nifo, nascido em Sessa, na Campânia, em 1473, e falecido em 1546, o qual ensinou,primeiro em Pádua e seguidamente em Pisa, Bolonha, Salerno e Roma. Numa obraintitulada De intellectu et daemotúbus afirma que não existem outrassubstâncias espirituais e imortais para além das inteligências motoras doscéus. Publicou em 1495-97 as obras de Averróis, por si anotadas, a seguirescreveu uma obra em que atacava o De imortalitate animae de Pomponazzi, recorrendo frequentemente a argumentos tomistas. No campo da moral, Nifo mostra-se partidário de uma espécie de sabedoria mundana, alcançada pelos escritores antigos em que tem como objectivo o prazer; e, a acreditarmos nos testemunhos (ou intrigas) dos escritores seus contemporâneos, a sua conduta foi em tudo conforme àquela orientação.Um misto de platonismo e aristotelismo resulta das doutrinas de Leonico Tomeo, nascido em Venexa em 1456 e falecido em Pádua, onde ensinava, em 1531.Afirma ele que a oposição entre Platão e Aristóteles reside mais na linguagemdo que nopensamento e que a diversidade das expressões sedeve ao facto de Aristóteles adoptar -mais do que161

Platão -uma linguagem física. De acordo com este princípio, procuraencontrar na própria doutrina de Aristóteles o fundamento da demonstração daimortalidade da alma feita por Platão (De imortalitate animae, 1524). Ademonstração platónica baseia-se no princípio de que a alma se move por si;por conseguinte não pode ser destruída, nem por ela própria, pois o movimentonão pode falhar-lhe, nem por outra coisa, dado que o seu movimento nãodepende de outra coisa. Ora, segundo Torneo, Aristóteles teria negado que aalma se movia por si mas umicamente no sentido do movimento espacial que nemo próprio Platão lhe atribuía. Do mesmo modo se pode conciliar a doutrinaplatónica da reminiscência com a aristotélica da alma como tabula rasa querecebe do exterior as sensações: na verdade, a expressão aristotélica refere-se à alma que não recebeu ainda sensações ou que não recordou ainda osconhecimentos que já possui. Tomeo sustenta que existe uma alma do mundo quetudo anima e governa e constitui oprincipio do conhecimento humano. Assim o reconhecem também os peripatéticos, os quais admitem que o nosso espírito sobrea influência do exterior e não tem sentido diverso a doutrina averroísta daunidade do intelecto.

Cognominado "o segundo Aristóteles" pelo seuconhecimento da filosofia aristotélica, foi Alexandre Achillini, que

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nasceuem Bolonha em 1463 e ensinou medicina e filosofia, primeiro em Pádua e depoisem Bolonha onde faleceu em 1512. A sua162

obra principal é constituída pelos Quodlibeta de intelligentis; foi todaviaigualmente autor de obras de anatomia e de medicina. A maneira de proceder deAchillini é um bom exemplo daquela "doutrina da dupla verdade" cujosignificado específico se esclareceu através do confronto entre os filósofos deste período. Achillini ilustra e defende com grande vigor todas as teses típicas do averroísmolatino, mas não deixa de lhes opor e com pouco menos energia, as tesestradicionais da escolástica. Talvez (ou com certeza) o seu coração estejacom as primeiras; afirma todavia que, ao transmitir a palavra do "filósofo"(ou seja, Aristóteles, na interpretação averroísta) não pretende fazer suasas conclusões. É este, muito provàvelmente, apenas umsubterfúgio, para ter a possibilidade de defender eilustrar sem perigo o averroísmo. Assim, enquanto por um lado afirma que, segundo Aristóteles, Deus faz mover o mundo por necessidade e que o mundo é eterno, por outro sustenta que Deus faz mover * mundo por um acto livre e que o próprio, mundo * as inteligências motoras dos céus foram criadas por Deus.Reconhece que Averróis tinha razão aoafirmar que, de acordo com a doutrina de Aristóteles, há um único intelectopossível em todos os homens; sustenta porém que Aristóteles não tinha razão,uma vez que o intelecto é a forma que confere a cada homem o seu serindividual. O intelecto activo é, pelo contrário, reconhecido por ele comosendo o próprio Deus; chama-lhe intellectus qui esi omnia facere e considera-o como a ac~ade

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divina que determina a intelecção e por conseguinte também a felicidade, do homem.Posição semelhante, encontra-se nas obras de Marco António Zimaira (1460-1523) que foi também professor em Pádua e que interpretava a unidade do intelecto, afirmada pelo averroísmo, comounidade dos princípios fundamentais do conhecimento.§ 362. POMPONAZZI: A ORDEM NATURAL DO MUNDOO fundador da escola dos AlexandrÍstas foi Pedro Pomponazzi (cognominadoPereto ou Peretto) o qual nasceu em Mântua em 16 de Setembro de1462. Tendo obtido em 1487 o grau de doutor emmedicina em Pádua, ensinou depois filosofia naquela Universidade, emconcorrência com Alexandre AchiIlini, segundo o costume então em voga decontrapor um professor a outro no ensino da mesma matéria. Encerrada aUniversidade paduana após a batalha da Ghiaradadda (1509), Pomponazzi foi

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leccionar para Ferrara e dali para Bolonha onde escreveu todas as suas obrase se suicidou em 18 de Maio de 1524. A sua obra mais famosa, De immortalitateanimae é de 1516. Acusado por muitos de impiedade, Pomponazzi não sofreuqualquer aborrecimento, principalmente por causa do apoio de Pedro, Bembo edos magistrados bolonheses. Pôde até, em 1518, responder às acusações164*/*numa Apologia, do que lhe resultou ser alvo de novos ataques, entre os quaiso de Nifo (De immortalitate animae libellus, 1518). A este replicouPomponazzi com o De Defensorium. As suas outras principais obras, Denaturalium effectuum admirandorum causis sive de incantationibus e De fato, libero arbitrio et praedestinatione foram publicadas já depois da sua morte.O objectivo essencial da especulação de Pomponazzi consiste no reconhecimentoe justificação da ordem racional do mundo. Pomponazzi é levado anegar ou a rejeitar todo e qualquer facto ou elemento que contradiga o idealde um mundo necessàriamente ordenado com base em princípios imutáveis. Vê emAristótoles o filósofo que xejeitou aintervenção directa de Deus ou de outros poderes sobrenaturais nas coisas do mundo e quiÍs entender o mundo como puro sistema racional de factos.Pomponazzi remete para o domínio da fé tudo quanto é miraculoso e até aprópria crença nosmilagres, pretendendo assim desimpe£ür o caminho da investigação racional detoda e qualquer ingerência estranha e restituí-Ia à sua liberdade. A doutrinaaverroísta da dupla verdade é também o seu guáa: a igreja ensina a verdade;ele limita-se modestamente a declarar a opinião de Aristóteles. Na realidade,porém, a opinião de Arístóteles é para ele a procura racional que nãopretende guiar-se senão por si própria, ao passo que a fé, ou seja areverência perante a autoridade, uma vez reconhocida como falha de toda equalquer base racio-165

nal ou moral, se esvazia de sentido e deixa de ser um obstáculo àinvestigação. Estes tragos do filosofar de Pomponazzi são evidentes sobretudona

obra De incaiuationibus. Aparentemente, esta obra encontra-se pejada desuperstições medievais, tendo por objectivo a explicação de encantamentos,magias, bruxarias e efeitos miraculosos de plantas, pedras o outras coisas. NemPomponazzi nega arealidade de tais factos excepcionais ou miracuilosos os quais parecem

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comprovados pela experiência. Porém, o espírito novo da obra revela-se na recondugão dos supostos factos miraculosos a factos naturais e na sua explicação mediante causas que pertencem à ordem necessária do mundo.Pomponazzi começa por criticar a explicação popular tradicional segundo aqual tais factos seriam produzidos pelos espíritos ou pelos demónios. Nem osespíritos, nem os demónios, poderiam sequer ter conhecimento das coisasnaturais pelas quais se

produzem aqueles efeitos miraculosos: não poderiam, com efeito, conhecê-los,nem - como Deus -através da sua própria essência, nem - com oshomens -através das qualidades abstraídas das coisas. Não através da suaprópria essência pois tal só poder-ia acontecer se esta fosse a causa dascoisas, o que não sucede; não, também, através das qualidades abstraídas dascoisas como acontece com os homens pois aqueles não possuem, como

estes, órgãos de sentidos. É portanto inútil admitir a existência deespíritos ou demónios para explicar encantamentos e bruxarias. Na verdade,encantamentos e bruxarias não são milagres no sentido166

de serem absolutamente contrários à natureza e estranhos à ordem do mundo;dizem-se porém milagres apenas na medida em que são factos insólitos eraríssímos que não acontecem segundo o curso

ordinário da natureza e sim com longuíssimos intervalos (De íncant., 12). A via através da qual estes aparentes milagres reentram na ordem natural é o deternúnisrno astrológico.Deus é a causa universal das coisas mas não pode agir imediatamente sobre ascoisas do mundo sublunar. Todas as suas acções relativamente a estasúltimas são apenas acções mediatas executadas por intermédio dos corposcelestes que são os órgãos ou insitrumentos necessários à acção divina. Aordem cósmica exige que o grau suiperior só possa agir sobre o inferioratravés do grau intermédio, o que implica que nenhum milagre seja possível nosentido de uma acção sobrenatural directa de Deus sobre as coisas do mundosubluna-r. Oráculos, encantanientos, ressurreições e outros efeitosmiraculosos que têm lugar no mundo por obra de magos ou

necromantes, são só efeitos naturais, devidos ao influxo dos corpos celestes(De incant, 10). Mas aparte mais típica desta doutrina de Pomponazzi é a que inclui na ordemnatural do inundo, regulado pelo determinismo astrológico, a própria históriados homens. Com deito, tudo o que acontece no

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mundo sublunar está sujeito à geração e à corrupção, tem um princípio, umaprogressão, através da qual atinge o acabamento e um termo. A esta evoluçãonão se subtraem os estados, nem os povos,167

nem as próprias instítuições religiosas. Todas as

religiões nascem, florescem e morrem. O nascimento de uma religião écaracterizado por oráculos, profecias e milagres cujo número diminuiprogressivamente à medida que se aproxima a época do seu termo. Ocristianismo não se subtrai a esta lei. "Vemos", diz Pomponazzi (Ib., 12)"que as instituições religiosas e os seus milagres no principio são maisdébeis, depois aumentam até atingir o cume

e em seguida vão enfraquecendo até desaparecerem por completo. É por essemotivo que também nanossa fé estão a acabar os milagres, excepto os fingidos ou simulados: o fimparece estar próximo". Assim, nada, absolutamente, se subtrai à ordemnecessária do mundo e à lei que o governa. É verdade que Pomponazzi se mantémfiel ao velho determinismo astrológico que fora introduzido na ffi osofiaocidental pela especulação árabe (§ 235) mas

esse determinismo é apenas o meio de que se servepara alargar a todos os fenómenos, incluindo os aparentemente miraculosos, a ordem necessária da natureza que é o fundamento da investigação filosófica. Pomponazzi foi o primeiro a expor com grande clareza e extrema energia o pressuposto de toda e qualquer investigação naturalista: a afirmação de uma ordem regular que não sofre exepções. Só a partir deste pressuposto é possivel. o estudo do mundo natural. Mudará mais tarde a forma particular deste pressuposto e será negado o determinismo astrológico; não mudará, porém, o pressuposto em si.168

§ 363. POMPONAZZI: A NATURALIDADE DA ALMA

O famoso tratado de Pomponazzi sobre a imortalidade da alma temfundamentalmente o mesmo fim: fazer regressar o homem à ordem das coisasnaturais. A alma humana não pode de modo algum existir e obrar sem o corpo. Asua individualidade depende na verdade do corpo que, como queria S. Tomás, amultiplica e divide nos homens individualmente considerados: a sua acçãodepende outrossim do corpo pois não pode compreender senão os objectoscorpórcos. As inteligências celestes não necessitam do corpo, nem comosujeito, nem como

objecto: o seu conhecimento não é adquirido pelo corpo, que não têm, nem éproduzido pelos corpos pois das são motoras e não movidas. Pelo contrário, a

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alma sensitiva necessita do corpo como sujeito, uma vez que não podedesempenhar as suas funções senão por intermédio de um órgão corpôreo enocessita dele também como objecto, uma vez que o seu conhecimento é por eleproduzido. A alma intelectual humana possui uma natureza intermêdia entre ainteligência celeste e a alma sensitiva. Não necessita do corpo como sujeitoporque não necessita de órgãos corpórcos como a alma sensitiva; necessita porém do corpo comoobjecto por não ser capaz de compreensão se não for movida pelos corposexteriores. Este modo de funcionar do inteler-to humano não podetransformar-se no funcionamento imaterial das intolàgências celestes. Aexperiência demonstra que o intelecto humano só pode

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entender mediante imagens; ora uma vez que as imagens só pelo corpo lhe podemser fornecidas, a própria vida do intelecto encontra-se ligada ao

corpo e sofre a mesma sorte deste (De imm. an., 91). S. Tomás admitira apossibilidade de um outro

funcionamento do intelecto, independentemente do corpo, ou seja, das imagenspor este fornecidas, Pomponazzi observa que isso significaria transformar anatureza humana na divina e a alma humana também na divina, segundo umadaquelas transformações fabulosas narradas por Ovídio nas Metamorfoses (Ib.,9). É precisamente aqui que serevela plenamente o carácter naturalista da psicologia de Pomponazzi: a almaé reconhecida na sua condição e no seu funcionamento naturais, que seapresentam E-ados ao corpo e à experiência sensível. Querer subtraí-Ia aestas condições naturais é ridículo; significa abandonar-se a uma <dábula" e não já investigar cientificamente a natureza da alma.Outro significado não tem igualmente a defesa da autonomia da moral queencerra a obra Sobre a imortalidade da alma. À objecção segundo a qual onegar a imortalidade da alma significaria anular a vida moral do homem, poisfaltaria o prémio ou o castigo na outra vida o que poria em dúvida a própriajustiça divina na medida em que o bem ficaria, sem prémio e o mal sempunição, responde Pomponazzi que a virtude e o vício têm o seu premio ou oseu castigo em si próprios. Tanto o prêmio como o castigo têm duiplanatureza: uma

essencial e inseparável e a outra acidental e separá-170

vel. O prêmio essencial da virtude é a própria virtude, que torna o homemfeliz. A natureza humana a nada mais pode aspirar, além da virtude, pois só

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ela torna o homem seguro e tranquilo. Do mesmo modo, o castigo do vicio é opróprio vício, a mais desgraçada e infeliz de todas as coisas. Num sentidoabsoluto, pois, não há virtude que fique sem prémio nem vício que permaneçaimpune. Podem porém faltar neste mundo o prêmio e o castigo acidentais, querdizer, aqueles bens ou aqueles males (como o dinheiro, os danos, etc.) quesão separáveis da virtude e do vício como tais. Todavia, da falta desteselementos acidentais da vida moral não resulta qualquer inconveniente e uma tal falta é até pelo contrário, preferível. A bondade parecerá dim-inuir e tornar-se menos perfeita se for premiada de modo acidental, ao passo que quem agir sem qualquei esperanç a de prêmio, executa a mais virtuosa das acções.De modo análogo, o castigo diminui a culpa e portanto é, na verdade, maiscastigaido, aquele que parece não ser, de todo, punido. Pomponazzi estácontudo ciente de que são poucos os homens capazes de agir em virtude da puraexigência moral e dá-se conta de que os fundadores das religiões se viramforçados a anunciar para a outra vida, prémios e castigos eternos, com o fimde desviar do mal a maior parte dos homens a qual é incapaz de agirautèoriornamente. A prescrição de tais prêmios e castigos vem pois aoencontro duma exigência natural: a natureza humana, completamente imersa namatéria e participando pouco do intelecto é melhor determinada por móbeis que apelem para o

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seu lado material. A moiral humana natural é por conseguinte aquela pela qualo homem escolhe a virtude pela felicidade que lhe anda inseparàv01menteligada. É todavia igualmente natural a perspicácia dos legisladores queprescrevem prêmios e

castigos eternos. Pomponazzi quer reconhecer e compreender o homem na sua naturalidade, quer submetê -4o a uma lei que o ligue à ordem necessária do todo.§ 364. POMPONAZZI: LIBERDADE E NECESSIDADEA relação existente entxe esta lei necessária e aliberdade humana é estudada na terceira das obras fundamentais de Pomponazzi,intítuilada De fato, libero arbitrio et praedestinatione. Ali se expõemamplamente todas as dificuldades, dúvidas e contradições que nascem do estudoda relação que existe entre a presciência, a predeterminação e aomnà,,potência divinas, por um lado, e a liberdade huimana, por outro. Apresciência e a prodeterminação divinas não podem ser negadas sem que seprive a

religião completamente, do seu fundamento; a liberdade não pode ser negada

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sem que se contradiga directamente a experiência humana. Pomponazzi examinalonganiente todas as soluções possíveis enão chega a uma conclusão precisa; pelo contrário confessa-se torturado poreste problema tal comoo fabuloso Prometeu era torturado pelo abutre que lhe devorava o fígado para o punir por ter roubado o fogo divino (De facto, 111, 7).172

O que se pode dizer é que a presciência divina não exclui em absoluto aliberdade humana. Há uma dupla relação entre o conhecimento divino e a acçãohumana. Em primeiro lugar, Deus prevê a

acção humana com base na sua causa que é a natureza humana, quer dizer, elesabe que o homem pode atingir desta ou daquela maneira e que pode executar ounão determinaida acção e sabe-o em virtude do conhecimento que tem danatureza humana. Porém, esta presciência divina é ènicamente previsão dapossibilidade de uma acção e não da sua efectiva execução; não eliminaportanto a liberdade de acção. Em segundo lugar, Deus conhece a acção futura, não na sua causa mas sim na sua efectiva realização, isto é, sabe com certeza qual das muitas acções possíveis será na verdade executada pelo homem.Todavia, Deus conhece isto na medida em que conhece tudo o que existe epor conseguinte até mesmo o futuro; tão-pouco esta presciência tolhe, pois, aliberdade humana e explica-&e pelo facto de que Deus, na sua eternidade,compreende todos os tempos (Ib., 111, 12). Considerações semelhantes valempara a predestinação. Deus quer que todos os homens sejam felizes, comaquela beatítude que se alcança por meios naturais e mediante a pura razão.Predestina porém, alguns homens à beatitude eterna, a qual não é alcmçada porvias puramente naturais. Esses homens, se cooperarem com a graça divina,al=çarão aquela beatitude, mas, se a recusarem, ~erão a própria alma. Apredestinação deixa pois subsistir a liber-173

dade do homem para aceitar ou recusar a ajuda sobrenatural de Deus (Ib., V, 7).Onde, porém, a contradição nos surge irreme. diável é na relação existenteentre a omnipotência divina e a liberdade do homem, Aqui, Pomponazzi recusa-se a uma conclusão definitiva e limita-se a dizer que, atendendo aconsiderações puramente naturais e a quanto pode consentir a razão humana, aopinião menos contraditória é a dos Estóicos que afirmaram o destino, isto é,a necessidade absoluta da ordem cósmica estabelecida por Deus. Contra estasolução, mantém-se a dificuldade de ser Deus a causa não apenas do bem mas

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também do mal. Pode todavia responder-se que tanto obem como o mal concorrem para o acabamento do universo e que neste, como numorganismo vivo, devem existir não só partes puras e nobres mas também partesimpuras e vis. Se não existissem tantos males, não haveria os correspondentesbens o se o mal fosse impossível, o bem sê-lo-ia também (lb., 11, 6). Apreferência de Pomponazzi por uma

solução tão radicalmente determinista como a estóica, revela-nos a essênciado seu pensamento. O imiportante é salvar a todo o custo a ordem racional domundo, ainda que esta ordem conduza à negação do livre arbítrio do homem. Ointeresse de Pomponazzi incide totalmente sobre a investigação naturalista eesta investigação só é possível desde que seaceite a ordem necessária do mundo. Contra esta exigência ergue-se a doutrinada igreja e Pomponazzi declara expressamente que é preciso crer naigreja e por conseguinte negar o destino dos Estói-174

cos (Ib., perorat.). Para elo, porém, a exigência religiosa e a exigênciacientífica constituem sistemas distintos e que não se comipensam mútuamente.Reduzindo a exigência religiosa a um puro acto de respeito pela autoridade da igreja, liberta a investigação científica de toda equalquer interferência, entendendo-a como pura indagação racional.§ 365. OUTROS ARISTOTÉLICOSPomponazzi abre a série dos peripatéticos alexandrístas. Foi seu discípuloSimão Porta ou Porzio (1496-1554), autor de duas obras, intituladasrespectivamente De rerum naturalibus principii o De anima et mente humana(1552), o qual se manteve estrietamente fiel às doutrinas do mestre. Pelocontrário, no cardeal Gaspar Contarini, (1483-1542), patriarca de Veneza,também seu discípulo e autor de De immortalitate animae contra setentiam Pomponatii doctoris sui, encontrou Pomponazzi um adversario sobre a questão da imortalidade da alma.Um lugar à parte é devido a André Cesalpino, nawido em Arezzo em 1519;ensinou primeiro emPisa e mais tarde em Roma, onde foi médico de Clemente VII e faleceu em 1603.O interesse naturalista de Cesalpino toma-se evidente com a obra De plantis(Florença, 1583) na qual revelou um"sisterna natural" do mundo vegetal, inàciando anova ciência botânica. Nas suas duas obras filosóficas, Quaestionesperipateticae e Daemonum investigatio, propõe-se regressar ao estudo dasobras aris-175

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totélicas, prescindindo de todos os intérpretes, com o objectivo de fazersurgir o verdadeiro e genuíno Aristó teles (Quaest. perip., pref). Vai aindamais longe do que Pomponazzi na afirmação da independência da investigaçãofilosófica relativamente ao ensinamento eclesiástico, Não nega que, nalgunspontos, as dou-trinas de Aristóteles sejam contrárias k verdade revelada;declara porém, que não lhe cabe evidenciar esta oposição pelo que a deixa aosteólogos competentes (Ib.). A doutrina. de Cesalpino é essencialmente umpanteísmo em moldes averroístas. Deus é imanente no mundo, tal como a alma éimanente no corpo. É a alma do universo considerado na sua totalidade mas nãoa alma das partes singulares do universo. Assim como no organismo vivo a almanão se encontra em acção em todo o corpo e tem a sua sede no coração, de ondetransmi,te a vida ao corpo inteiro, também a alma do universo tem a sua sedeno céu e dali difunde a sua força vivificadora por todas as partes douniverso (lb., 1, q. 7). O órgão desta actividade vivificadora é o espíritovital que actua por intermédio do calor celeste, o qual se encontra espalhadopor toda a parte, coordena todas as porções e garante a unidade do universoffiaem. invest. 3). O universo é pois considerado como um corpo vivo eanimado no qual todas as partes se encontram subordinadas ao conjunto. Asinteligências celestes, admitidas por Aristóteles para explicar os movimentosdos céus, são aspectos da inteligência divina única. "Assim como", diz-nos(Quaest. per., 11, q. 6), "a alma sensível toma a designação de vista nosolhos o de

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ouvido nos ouvidos, também a inteligência, na medida em que faz mover a lua, é atribuída à lua, na medida em que faz moverSaturno, é atribuída a

Saturno e assim por diante. Todas as inteligências se contêm numa só, domesmo modo que as

partes se contêm no todo". São igualmente partes da inteligência divina osintelectos humanos individuais, os quais se diferenciam das inteligênciasmotoras dos céus pelo facto da sua participação no intelecto divino não ser eterna mas sim corruptível. Por mais que a individualidade dos

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intelectos humanos dependa da matéria, não será por isso que e~ intelectos perderão após a morte essa indivídualidade: o facto de terem aderido a um corpo basta pam os distinguir uns dos outro; e para os distinguir a todos da inteligência divina que jamais se encontra unida a qualquer corpo ffiaem. invest., 3). Mas esta afirmação da persistência da individualidade da alma humana (e portanto da sua imorta-lidade) não impede a doutrina de Cesalpino de ser uni autêntico panteísmo: Deus é a alma do mundo e identifica-se com a força que lhe comunica movimento e vida.Enquanto Cesalpino leccionava em Pisa o em Roma, Jaime Zabarella (1533-89) ensinava em Pádua uma doutrina mais próxima do alexandrismo. Tal como Cesalpino, Zabarefia declara limitar-se a expor a doutrina de Aristóteles sem se preocupar com a relação existente entre esta e o cristianismo (De prim.rer. mat., HI, 2). Mas, ao contrário de Cesalpino, Zabarefia afasta-se dopanteísmo ao afirmar a separação entre Deus e o mundo. A relação exis-177

tente entre Deus como primeiro motor e o céu que põe em movimento não ésemelhante à que tem lugar no homem entre alma e corpo. Deus não é * formaenformadora (inform~ do céu assim como * alma é a forma enforniadora docorpo; é apenas * forma assistente (assistens) do céu. Com efeito, ele nãodá o ser ao céu, que é eterno como ele próprio, mas apenas o movimento (Denatura coeli, 1). Que Deus se limita a comunicar movimento ao céu é o que seconclui da circunstância de só se poder provar a existência de Deus comoprimeiro motor se se admitir a eternidade do movimento celeste. Se seabstrair desta eternidade, poderá admitir-se a existência de um primeiromotor imóvel e semelhante à alma dos animais mas não a de um primeiro motor separado da matéria, indivisível, infatigável e perpétuo. Um tal primeiro motoir só poderá ser demonstrado se se partir do principio da eternidade do movimento celeste. ou se admite portanto que o movimento celeste e por conseguinte * mundo são eternos ou não é possível demonstrar * existência de um primeiro motQr distinto (De invent. aeterni motoris, 2). Mas uma vez admitida a existência de um primeiro motor, este é por sua natureza distinto dos céus e por conseguinte é forma assistente. Quanto à alma humana, esta é ao mesmo tempo forma enformadora e forma assistente do corpo: como forma enformadora dá o ser ao corpo e como forma assistente é princípio motor.Neste último aspecto a alma é actividade intelectiva e portanto independentede todo e qualquer órgão corporal (De nwnte hum. 1, 13). O intelecto é indi-178

vidual, assim como a própria alma, da qual constitui a força. É falsa adoutrina de Averróis que o

julgava numèricamente idêntico em todos os indivíduos. Se assim fosse, nãoconstituiria a forma essencial do homem, aquálo que o distingue de todas asoutras coisas (Ib., 10). O intelecto humano é porém o intelecto

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material. Ointelecto actirvo não pertence na realidade ao homem. Aquele (o intelectoactivo) está para o intelecto material assim como a luz está para a vista. Aounir-se aos objoctos, a luz torna-os visíveis e determina a visão em acto. Domesmo modo, ao unir-se às imagens, ointelecto activo é portanto o primeiro motor. Se este comunica ao homem afaculdade de entender é apenas porque só o homern possui o intelectopossível, ou seja, é capaz de receber a luz do intetecto divino (De menteagente, 12). Ãobjecção segundo a qual o intelecto possível, o único que é próprio do homem, é mortal eque por conseguinte a doutrina aristotélica parece excluir a imortalidade,responde Zabarella com a enumeração das opiniões dos Aristoté licos arespeito deste argumento, considerando como a mais verosímil aquela segundo a

qual o intelecto possível é mortal, não pela suasubstância mas pela sua imperfeição e natureza corpórea (lb., 15). Aliás a imortalidade oncontra-se firmemente estabelecida pela igreja e pela teologia e Zabarella recusa-se a demonstrar a existência de qualquer relação entre filosofia e teologia (De invent. aet. nwt., 2).Na esteira de Zabarella segue César Cremonini, nascido em 1550 em Forrara efalecido em 1631 em179

Pádua onde ocupara a cátedra daquele após a sua

morte. A separação entre Deus e o mundo é igualmente salientada porCremonini, o qual afirma que o mundo não pode ter sido criado por Deus. Aacção criadora seria uma acção extrinseca. que não pode ser reconhecida emDeus. Deus não pode, também, ser a causa eficiente do movimento do mundo; eledá movimento apenas como objectivo, isto é, como objecto de desejo: dámovimento porque é amado e desejado. Mas precisamente por isto, aquálo quepor elo é movido deve ~r em posição de o amar e desejar: deve possuir umaalma. A alma dos céus é portanto o princípio eficiente dos movimentos. Deus eas inteligências celestes só podem moveros céus por intermédio desta alma enformadora que ama e deseja a Deus e assim move directamente os céus e indirectamente as coisas que lhes estão suibinetidas (De calore innato, dict. 2; dict.9, p. 89). Tal como Zabarella, Cremoními opõe-se à doutrina averroísta, da unidade do intelecto, e considera este como sendo a diferença específica que distingue os homens entre si o relativamente aos animais. A conexão entre alma e corpo é operada pelo calor inato que tem a sua sede central no coração, de onde irradáa para todas as partes do corpo. Este calor inato não é corporal; é antes aquele calor dos

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temperamentos de que falava Galeno, o qual é devido à mistura dos elementos que compõem o corpo, mistura esta causada pelo movimento dos céus (Ib., dict. 9, p. 89). A natureza da alma humana na sua singularidade depende portanto dos astros.180

O afistotelismo do Renascimento contribuiu fortemente, com o regresso àindagação cáentífica de Aristóteles, para a renascença da investigaçãonaturalísta. Elaborou, além disso, a base necessária a tal investigação, ouseja, o conceito da ordem naluxal do mundo. Porém, o naturalismo, tãopoderosamente encaminhado, não podia já permanecer sujeito ao sistema doaristotelismo; devia tender a subtrair-se-lhe, tomando outras vias. A magia,por um lado, o o naturalísmo de Telesio, por outro, apontavam essas vias. Oocaso do aristotelismo averroísta é marcado pela figura de Júlio CésarVanini, nascido por alturas de 1585 no reino de Nápoles, e queimado vivo comoherético em Tolosa, em 1619. Na sua principa] obra, intitu-lada De admirandisnaturae reginae deaeque mortaflum arcards surgem novamente as teses típicasdo aristotelismo renascentista e outras de Nicolau de Cusa: a eternidade damatéria, a homogencídade existente entre a substância celeste e a sublunar, aidentidade de Deus com a força que governa o mundo e a força natural dosseres. Não apresonta qualquer originalidade e é como um resumo com o qual seencerra

um aspecto da investigação naturalista no Renascimento.NOTA BIBL1OGRÁFICA§ 360. As obras de GENNADIO em P. G., 160- A Comparatio de TRAPEZUNZIO foi editada em veneza em 1523 e a De re dia7_ectica em IAão em 1569 e posteriormente. O tratado De fato de TEODORO GAZA foi editado pela TayJor de Toronto em 1925.181

Os Comentários de ERMOLAO BARBARO foram objc-to dL vãri edições em Veneza, Basiloia e Paris, a partir de 1544.§ 361. De VERNIA, foram editadas em Voneza, em 1504, as Quaestiones de pluralitate intellectuS contra falsam et ab omni veritate remotam apinionem Averroys. Outros escritos foram publicados por Ragnisco sob o título Documentos inéditos e raras relativos à vida e obras de N. V., Pádua, 1891 e unia Quaestio sobre a nobreza da medicina foi publícada por Garin em "A ~uta das artes", Florença, 1947. B. NARDI, Ensaios sobre o aristotelismo paduano do sécu.To XIV ao século XVI, Florença, 1958, caps. IV e V; GARIN, A cultura filosófica do renascimento italiano, Florença, 1961, pgs. 293 e segs.As obras de AGOSTINHo NiFO conheceram várias edições nos séculos XV e XVI:colecções completas, Veneza, 1599; Opuscola moralia et politica, Paris, 1645.GARIN, ob. cit., pgs. 299 e segs.De L. ToMEO aS obras De immortalitate animae, Pãdua, 1524, e Opera,

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Paris, 1530.DE ACHILLINI: Opera Omnia, Veneza, 1508-45. B. NARDI, Sigieri de Brabante no pensamento da renascença italiana, Roma, 1945, 11 parte.Sobre M. A. ZIMARA, Nardi, ob. cit., cap. Xff.§ 362. Sobre o suicídio de Pomponazzi: CIAN, Yovos documentos sobre P. P., Veneza, 1887. Opera, Bastícia, 1567 (De incantationibus e De fato); inúmeras edições anteriores das obras singulares. Sobre ele: FIORENTINO, P. P. Estudos históricos sobre as escolas bolonhesa e paduana do século XVI, Florença, 1868.O comentário ao De anima de Arístóteles foi publicado por L. FERRI em A psicologia de P. P., Roma, 1877; À. H. DouGLAS, The Philo8. and Psychol. of P. P., Cambridge, 1910; B. NARDI, AS obras de P. em Diário critIco da fil.it.", 1950; As obras inéditas de P., ib.,1950 e 1951.

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§ 365. As obras de CESALPINO: Veneza, 1571 e1593.

As obras de ZABARELLA conheceram inúmeras edições no séefflo XVI, sendo aúltima de Havenreuter ede 1623. Sobre ele: R.AGNIS00j. Z., o filósofo, Veneza,1886; do mesmo, Pomponazzi e Z., Veneza, 1887; GARIN.O humanismo italiano, Florença, 1952, pgs. 191 e segs.; B. NARDI, Ensaios sobre o aristotelismo paduano do século XIV ao século XVI, Florença, 1958, passim.As obras de CREMONINI foram editadas separadamente nos séculos XVI e XVH. Sobre ele: MABILLEAU, Ptude historique sur Ia phil. de Ia renaiss, en Italie, Paris, 1881.A obra de VANINI Intitulada De admirandis naturae reginae, ete. foi publicada em Paris, em 1616. Trad. ital. das obras, por PORzio, Lecee, 1911.Sobre todo o arístotelismo, italiano do século XVI: CI-TARBONEL, La p~ée italiene du XVI.e siécle et le courant libertin, Paris, 1919; J. RANDALL JR., The School of Padua and the Emergence of Modern Seience, 1961.183

v

RENASCIMENTO E REFORMA366. O RETORNO ÀS ORIGENS CRISTÃSO Renascimento, como retorno do homem às9~ possibilMades origináfias é ~bém renovação da vida religiosa. O homemprocura entrar de posse daquelas possibilidades que con,3hituíam a força e ava1idade do mundoanfigo: daí que procure reconhecê-las paralá dia dispersão edo enfraquecimento que elas têm sofrido ao longo dos séculos da História ede novo se firmar nelas para ~mar o caminho interrompido. Perante adecadência da vida religiosa, o homem retorna às fontes da religiosidade:quer redescobri-las na sua pureza, entendê~las no seu

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significado genuíno, fazê-las reviver na sua fecundidade espiritual. Viu-sejá como o p~i~ procurava reconhecer e fazer revíver a origffiária sabe-185

doria religiosa da humanidade, sabedoria que via sintetizada em Platão, e naqual, segundo considerava, confluíam igualmente a especulação oriental e opensamento greco-romano. Mas a religião dos Platónicos do Renascimento é umareligião para. os

doutos, quer dizer, não é verdadeiramente umareligião mas um filosofia teológica na qual ocristianismo originário do Novo Testamento apenas entra como um elementoentre outros e nem =nio como o dominante. Marsílio Ficino e Pico de Mirândolapartilham este ponto de vista com Cusano e até mesmo, com Bruno: o retomo àreligiosidade originária é para eles um ~mo aos "teólogos" da Antiguidade:àqueles que elaboraram e exprimiram a vida religiosa em fecundas fórmulas depensamento. O platonismo não podia por isso tornar-se numa autêntica. reformada religiosidade: ele é ummomento da renovação filosófica renascentista -A refôrma da vida religiosa do ocidente cristão podia ser o resultado apenasde um retomo às fontes do crÍstianismo enquanto tal: isto é, não aos jogosou à teologia greco-ofiental mas à palavra mesma de Cristo, à verdaderevelada da Bíblia. Aquele rena,_vimento espiritual, aquela reforma total dohomem, que a pregação de Cristo havia onunciado e promovido só podiareadquirir o seu sentido oríT,,nário e tomar-se ~ade mediante um regresso àpalavra divina, a que vem expressa nos Evangelhos e nosi outros li~s daBíblia. A palavra de Deus d~se não só aos deutos mas a todos os homens comotais e não pretende reformar a doutrina, mas sim a vida. Uma renoivaçãoreligiosa, segundo o

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espírito do Renascimento, devia tender a fazer reviver directamente a palavrade Deus nas consciências dos homens, dibertando-a dassuperstruturastradicionais, restabelecendo-ana sua forma genuína e na sua

potência salvadora.Tal foi a tarefa da reforma religiosa, à.qual seliga necessàriamiente, tal como no Humam, %no, um momento filológwo:restabelecer na sua pureza e genuidade o texto bíblico. Mas, ~samente como

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no Humanismo,,o momento filológico é o instrumento de uma exigência más - profunda, a de regressar ao significado verdadeiro e originário da palavra divina paira a fazer valer oomtoda a eficácia do seu poder de renovação. O momento füol¥co-humanístico da Reforma é representado por Erasmo.§ 367. ERASMODesidério Erasmo nasceu em Roterdão, em1466. Foi educado num claustro agustinilano, onde pronunciou votos e, em1492, se ordenou de padre. Fez-se no entanto dispensar das obrigações do seuofício e deixou até de usar o hábito. Espírito independente e cioso da suaindependência, não quis aceitar nenhum encargo ou ensino e rejeitou, noperíodo da sua máxima celebridade, a9 ofertas mais fisonjeiras. Vagabundeoupor toda a Europa. Em1506, na Uníversidade de Turim, tomou-se mestre e doutor de teologia: mas a~a que ele tomou a peito foi a de escritor e fálólogo. [Pode oonsiderar-se ofundador da patrologia pelas suas edições de

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S. Jeirónimo, SLO Hilário, St.<> Ambrósio e SLO Agostinho. Além disso,elaborou um texto crítico do Novo Testamento, que traduziu do grego para olatim, Quando, desencadeada a Reforma, Lutero, que havia sido o precursordela, se lhe dàrigiu, para obter o seu apoio, Erasmo recusou-se. Não ~aligar-se a nenhum partido e era totalmente alheio a todo o movimento queprovocasse rebelião ou desordem. Por outro lado, não condenou a Reforma nemmesmo quando pronunciou contra a tese luterana sobre o livre-arbítrio. Nochoque entre o cristianismo da Igreja e o cristianismo luterano quispermanecer neutral e recusou a oferta do cardinaliato que lhe foi feita pelopapa Paulo RI em

1535. A luta religiosa obrigava-o a sair dos seus refúgios: deLo,vaina, rigidamente catóhica, foi obrigado a sair por haver sido con-qiderado amigo da Reforma; de Basfieia, onde se Tefugiara, abalou logo que a reforma se impôs. Estabeleceu-se então em Friburgo, onde transcorreram os seus últimos anos; faleceu em 12 de Julho de 1536 em Basiácia, ondese detivera na esperança de regressar à Pábria.O primeiro escrito de Erasmo são os Adágios, uma rewlha de sentenças gregas e l~; mas a sua prini obra significativa é a Enchyridion militis christiani que contém já os práncípios ideais e práticos da reforma protestante. A obra mais famosa é o Elogio da loucura (Stultitix laus, 1509), a que são afins pelo conbeiúdo os Colloquía familiaria, publicados em 1524. Ao mesmo ano pertence o escrito contra Lutero Diatribe de libero arbitrio. Ao De servo arbítrio de Lutero replÍcou ele com o Hyperaspistes.188

São dmportantes também os prefácios ao Novo Testamento e os escritos

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pedagógicos, entre os quaàs o

* mais notável é o De ratione studii 1(1511), o pro,"uma do humanismo alemão.

Brasmo, foi chamado por Dilthey "génio voltairiano" e, na realidade, eleserve-ge da sátira e do sarca~ para pôr a nu a decadência moral do seu tempoe especialmente da Igreja. Porém, a crítica de Erasmo não é negativa edestrutora, comoserá a de Voltaire, mas positiva e evocadora, evisa areconduzir a vida humana à simplicidade e à pureza do cristianismo primitivo.Significativo a este propósito, é sobretudo o Elogio da loucura. A loucura épara Erasmo o impulso vital,, a beata inconsciêncÍa, a ilusão, a ~âncàacontente de síi-numa, palavra. a mentira vital. Toda a vida humana, seja aindividual, seja a social, funda-se em mentiras, em Anusões ou em imposturas,que velam a crua realdade e constituem o maior atractivo da própria vk1a. EErasmo, pondo a ffl- -ar a Loucura e entricheirando-se por detrás (de um ~tod@v@udo, pode rasgar o véu daquelas mentiras e mostrar a realidade que elasocultam. Os interesses vitais que o seu

sarcasmo defende pare= evidentes. Quando fala desses loucos, os quais confiamem ~, s pequenos sinais exteriores de devoção, em certo pala ~,o, em cortasoraçõezinhas inventadas por algum pio impostor para -seu divertimento ouinteresse, julgam ter assegurado o gozo de uma inalterável felicidade e umbom lugar no paraíso"; ou de quem crê que "lhe basta deitar uma pequena moedanuma bandeja para que o mundo fique limpo de uni sem número189

de rapinas como quando saiu da fonte baptismal" (EI., 40)-pronunciaevidentemente uma condenação das indulgências e de toda a prática de devoçãoformal, no que é tão terminante como o será Lutero. E quando a Lioucuraatribui a Cristo estas palavras: "Abertamente e sem parábolas prometi emoutros tempos a herança do meu Pai não aos frades, não às rezas, não àabstinência, mas sim à observância da caridade. Não, não conheço aquelaspessoas que prezam demasiado as suas pretensas obras meritórias e que queremparecer mais santas do que eu próprio" (Ib., 54)-é evidente a desvalorização das obras e a exaltação da fé que será o próprio lema da reforma luterana. Em oposição às obrasmeritórias, à religiosidadefo~, ística às regras nomástioas, exalta Erasmo areligiosidade verdadeira, que é fé e caridade segundo os ensinamentos dosEvangelhos. E este ensinamento é contraposto ao próprio papado: "Os papas

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dizem-se vigários de Jesus Cristo; mas se se conformassem à vida de Deus, seumestre, se praticassem a sua pobreza e a sua doutrina, se sofressempacientemente os seus padecimentos e a sua cruz e mostrassem o seu desprezopelo mundo; se reflectissem sèriamente no bom nome do papa, isto é, de pai, e no epíteto de Santíssimo com que são honrados: quem seria então mais infeliz do que eles?" (Ib., 59). Todos os temas da polémica protestante contra ia Igrejase encontram já na obra de Erasmo. E se no Elogio da Loucura são expressossob o véu da f~ satírica, na Enchyridion militis christiani são retomados edesenvolvidos positivamente. O escrito é piolêmicamente dirigido contra acultura bico-190

lógica que exercita as pessoas nas disputas doutoras mas nãopromove, nemreforça a fé religiosa. Era~ propõe-se formar o militante cristão, não oteólogo ou o literato. Toda a força da "filosofia de Crisi está natransfiguração que ela é capaz de operar ws costumes e na vida do homem. "0 Modo MLs eficaz de converter os Turcos, diz ele (Lett. dedic. deIPEnch., ed.Holborn, 5), obter-se-á se eles virem resplender em nós as palavras e oensinamento de Cristo; se nos Jembirarmos de que nós não &wjamos osseusâmpérios, o ouro e os bens deles, senão que procuramos apenas a sua salvaçãoe a glória de Cristo. Esta é a teologia verdadeira, genuína, eficaz, quejáuma vez sujeitou a Cristo a soberba dois filósofos e os ceptros invictosdos príncipes. Se agirmos assim e só assim, o próprio Cristo estará em nós".A perfeição cristã não está no género de vida mas

nos sentimentos, está na alma, não nos vestidos e nos alimentos (Ib., 12). Aarma principal dio militante cristão é a deitura e ia interpretação daBíblia. Erasmo aconselha escolher para guia aqueles iintérpretes que mais seafastam da letra dos livros sagrados. Cumpre ir além da letra para alcançar oespírito, já que sóno espírito reside a verdade.Mias onde a exigência da reforma se apresenta decididamente, onde o humanistaaristocrático e altivo se torna o porta-voz de uma tendência que devia res 1~numa rcb~ de povos, é na necessidade expressa cÍlaramente, por Erasmo, delodos lerem e entenderem a seumodo a Bíblia. "Eu divirjo violentamente, diizeile (Paraclesis in Nov Test, ed. Holborn,191

142), daqueles que não quer= que as sagradas, escrituras sejam lÍdas pelos indoutOs, traduzidas na fingua dopovo, como se Cristohouvesse ensinado coisas tão obscuras que a custo poucos filósofos as

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pudessem entender, ou como se a defesa da reli~ cristã consistisse emserignorada. É talvez meilhor ocultar .o mi,stério do rei, mas Cristo querque os mi~os sejam dàvulgados o mais poissível. Desejaria que todas asmulheres pudessem ler o Evangelho e as

cartas de S. Paulo." É precisamente deste re~o à leitura e ao entendimento daSagrada Escritura que Erasmo espera a renovação- do homem, aquela reforma ourenascimento que é a restauração da autênitica natureza humana. "FàcIlmenteentra na alma de todios o que é màximiamente conformo à natureza. Mas afilosofia de Cristo, que ele próprio chama de renascimento, que outra coisa ésenão arestauração de uma bem construída na-tumw?" (Ib.,145). Esta conv~ oonstitui o móbdl e o fundamento da obra filológica deErasmo destinada a restabelecer o texto do Novo T~mento e a promover a difusão mediante nova tradução. O renascimento que só a palavra de Cristo pode determinar é con.traposth por Erasmo à sabedoria teológica que toma as pessoas destras nasdisputas mas não lhes dá nem a fé nem a caridade. "Quem deseje ser maIsinstruído na piedade do que na disputa, ocupe-se o mais que possa das fontese daqueles escritores que directamente procedem das fontes" (Ratio veraetheol., ed. Holbom, 305). POT isso Erasmo exerce a sua actividade de filólogonão isó no domínio do192

ERASMO

Novo Testamento, mas também no dos Padres da Igreja, cuja doutrina lhe parcoeinspirar-se directa.mente nas flontes do cristianismo, enquanto que repudia edespreza a especulação ewoUstica, como sendo a que desvaneceu o sentido orig~do cristianismo, entregando-se a questões ociosas. A tais q~ões ociosas comoàs cerimónias, aos jejuns eobras meritórias, opõe Erasmo os dois pontos basdilares do ensino de Cristo:a fé e a caridade. (Desfolheá todo o N~ Testamento, diz de (Ib. 239), nãoencontrareig nenhum preceito que diga respeito às cerimáúias. Onde se fazmenção dos alimentos e das ve~ Onde se referem os jejuns e semelhantescoisas?O preceito de Cristo invoca, apenas a caridade. Das cerimónias nascem osdissídios, da caridade a paz."

Deste modo estabelece Erasmo os pressupostos teóricos da Reforma e, o

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quemais conta, esclarece oconecUo fundamental desta: o de uma renovação radical da consoiência cristãmediante o retorno às fontes do cristiani&mo. Mas a -sim tarefa devia deter-se aqui. Humanista habituado a mover-se no mundo dos dotitos, partícipe doideal humanista de uma paz religiosa universal, na qual encontrassemconcíliação e concórdia as diversas experiências religiosas do género humano, ele não podia aperceber-se do alcance revolucionário da sua doutrina; equando tal alcance se revelou na obra de Lutero, ele desconheceu-o e fechou-se na sua neutralidade de estudioso. Erasmo formulara filosóficamente osprincípios da reforma cristã, mas não podia reconhecer a sua própria acção naobra de Lutero, que daqueles193

princípios se valia para agitar forças políticas esociais, todo um mundo, que parecia a Erasmo estranho e surdo à vida dacultura. Por isso, quando a 28 de Março de 1519 Lutero lhe enviou uma cartapedindo-lhe que se pronunciasse públicamente a favor da Reforma, Erasmo, embora aprovando os princípios de que Lutero partia, recusou-se a seguí-lo e a encorajá-lo na obra revolucionária que em nomede tais princípios Lutero iniciara. Na luta que omovimento reformista desencadeou, Erasmo quispermanecer neutral; e talpermaneceu substancialmente, não obstante algumas oportunistas concessões àIgreja. Sobre um único ponto, todavia, atacou aReforma: o problema do livre-arbitrio. Retomando o ensinamento de S. Paulo ede Santo Agostinho, Lutero afirmara decididamente a dependência da vontadehumana em relação a Deus. Esta afirmação que, como veremos, deriva de umareligiosidade resoluta e exasperada, não podia ser acolhida pelo filósofohumanista Erasmo. Na Diatribe de libero arbitrio (1524), Erasmo enumera osmotivos que levam a admitir a liberdade, definida como ",a força da vontadehumana pela qual o homem se pode dirigir às coisas que conduzem à salvaçãoeterna ou se pode desviar dela. A liberdade humana é para Erasmo liberdade de se salvar; e que o homem tem a capacidade de se salvar é demonstrado pelopróprio relevo que nas Sagradas Escrituras têm os conceitos de mérito, dejuízo e de punição. Não teriam sentido ais punições, as ameaç as, aspromessas diviinas se o homem não fosse livre. Mesmo a194

concessão da graça, resolvendo-se numa ajuda divina à vontade humana, pressupõe aliberdade; e assim a pressupõe a oração, que não teria sentido se ela

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próprianão fosse manifestação de uma vontade de salvação. Erasmo reconhece que serepetem na Bíblia, esobretudo nas epístolas de S. Paulo, expressões que parecem negar olivre-arbítrio, mas nelas vê o sentimento próprio dia consciênciarellilgiosa que faz denvar todos os méritos humanos de Deus. Quanto àconciliação entre o livre-arbítrio e a omnipotência divina, afirma acooperação do homem, e de Deus "na obra indivisível da regeneração": a

graça é causa principalis, a liberdade humana causa secundaria. Assim como ofogo tom uma força interna graças à qual arde e que pressupõe Deus comocausa principalis que !a criou e a mantém, asgim asalvação humana é obra do homem ajudado e sustentado pela acção divina. Na realidade, esta solução eclética não salvacoisa alguma, porque, atribuindo a salvação humana à cooperação do esforço dohomem com a graça divina, atribuí a um e a outra o mesmo valor determinante enão resolve o problema. A atitude de Erasmo é aquii ditada pela prevadênciaque a exigência filosófica humanista tem nele sobre a religiosa: ele quersalvar a dignidade e o valor do homem que são inconcebíveis sem a liberdade epor llsso recalcitra à tese extremista de Lutero que exprime todavia aessência mesma da vida religiosa: a dependência absoluta do homem para comDeus e o reconhecimento de que só a Deus ~nce a ciativa deterinúnante da -salvação-195

§ 368. LUTERO

O retorno às fontes cústãs, como via de renovação da consciência religiosa,encontra o defensor mais resoluto em Martinho Lutero (10 de Novembro de 1843* 18 Fevereiro de 1546). A exigência, que Erasmo apresentara mas quiserarestringir aomundo dos doutos, é assumida por Lutero como o instrumento de uma revoluçãoque devia desligar aEuropa germânica da Igreja católica. Partindo dk=tamente do Evangelho, Luteroimpugna o valor de toda a tradiição eclesiástica e chega à negação da obra eda função da Igreja. Na sua doutrina e nos~, tados históricos que dela derivaram parece evidente o valor revolucionáriodaquele retorno aosprincípios que o Renascimento procurara realizar em todas as manifestações davida. No domínio reLgioso este princípio levava a negar o valor da tradição e

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portanto da Igreja, que durante os séculos acumulara o património dasverdades fundamentais do catolicismo. O retomo aos princípios significavaaqui o retomo ao ensinamento fundamental de Cristo, à palavra do Evangelho, epor isso o repúdio de tudo o que a tradição eclesiástica acrescentar a a estapalavra. No seu escrito Contra Henrique VIII de Inglaterra (1522), Luterocontrapõe à tradição eclesiástica o Evangelho. Ele polenuiza contra os

adversários, que à sua vontade de firmar-se na palavra de Cristo respondemcom "glosas patrísticas, laboriosos e artificiais ritos depositários dosséculos". E acrescenta: "Eu grito: Evangelho! Evangelho! e cães uniformementerespondem: Tradição,196

Tradição! O acordo é impo~ Eis aqui precisamente o centro especulativo e práfioo da refôrma luterana; e por esse oentro ela -se religa ao Renascimento que pretende renovar o homem e o seu mundo me&ante,um reitorno, à sabedoria originária.Deste Princípio dia Refôrma brotam todos os seus aspectos doutrinais. É, naverdade, graças à tentativa an~osamente repetida de alcariçar, para lá diastincrustações seculares, o signikcado, origináriiio da mensagem evangélica,que se acendeno espíwito de Lutero a centelha daquela verdade que devia ser o enunciado basiIar dia Reforma: a justificação por meio da fé. O próprib Lutero cora que soda a escritura se erguia diante de si como um muro, antes de entender o significado da frase de S. Paulo: o justo viverá pela sua fé.Por esta frase aprendeu que a justiça de Deus reside na fé, na misericórdiapela qual o próprio Deus nois j,usffica com a sua graça. De posse destaverdade fundarnental, pareceu a Lutero haver encontrado a chave diaiinterpretação genuína dos textos sagradois. A justiça divina significou paraele a justiça passiva com que Deus justifica o honiemrnediante a fé,anàlogamente, a obra de Deus significa aquilo que Deus opera em nós, asabedoria de Deus o atributo pelo qual nos faz sapientes, etc.. De modo quetodo, o significado, da mensagem cristã foi condensado por Lutero no abandonototal do homem à iniciativa divina, graÇas ao qual o homem nada tem depróprio a não ser o que recebe de Deus como dádiva gratuita. Assim L~reconheceu e determinou na sua nudez essenciail a atitude religiosa. A fé épara ele

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a confiança pda qual o homem crê que os poeudos. lhe são rernidosgratuitamente por Cristo; e é por isso a própria justificação por parte de

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Deus. O homem que tem fé é o homem cujos ~os flor= remidos, o homern justificwdo, o homem, wdvo. A jushi~ pella fé imphca arenúncia atoda a tentativa por parte do homem, o confiante abandono a Deus, a certeza interior da salvação.É evidente que, deste ponto de visita, o esforço, que dominara toda afilosofla escolástica, de justi,fkw pela razão a fé, devia parcoer repugnantee

absurdo. "Tal como acontece a Abraão, a fé vence, mata e sacrifica a razãoque é a mais encam~ e pesitífera inimiga de Dous". A razão, de facto,sigrúfica a iniciativa por parte do homem, o esforço da pesquisa, a confiançanas possibáldades humanas; ao passo que a fé é a iniciativa abandonada aDeus, a rmúnoia a toda, a pesquisa, a confiança exdusiilva na graçajustificadora de Deus. A doutrúna de Oxam, que excluía pela irracionalidade einveififica,bi,lidade da fé e a tinha absolutamente excluído do âmbito daindagação racional, é saudada por Lutero como amiga e alliada. Occam, que Lu~estudara no perlodo da sua formação académica, é, pode dizer-se, o únicofilósofo que ele salva da condenação. Todos os outros, desde Arístóteles a

S. Tomás, chama-os de "sofistas" e ~seiia-os com os piores atributos. O oocanusmo é assim um dos pressupostos da reforma luterana: afirmando a irracionalidade da fé, permitiu ver nela a atítude, oposta à atituíde activa da investigação: o confiante abandono a Deus.198

O pTimeiro cor;olário do regresso ao Evangelho é a nova dou~, dossacramentos. No De captivitate babylonica ecclesiae (1520), Lutero reduz ossacramentos a três só: o baptismo, a penitência e a euca~ poás só estes foramiinstítuidos por Cri~, como den~ o testernunho evang~ Mas ele Pretende ~r-sea ~ testemunho no que respeita ao PróPriO conceito dos sacramento que mais doque &~tos uns dos outros, são três símbolos de um único saemmento. Osacramento fundamental é * baptismo, j--@eIo qual ohomem morre para a carne

* para o mundo e revive a justificação dMna. O baptismo nunca perde a sua efi~ nem mesmo se o pecado é S~Ivamente cometido: ele caincide com o niato da fé no homem, e a própria fé é a rMOvaÇãO incessante do sacramentio baptismal, uma vez que mercê dela o homem morre conCinuamente para a Carne e continuan~ renasce paira o espírito. A penitência COrroboTa a confiança, na salvação, seMO O rec ~1imMUO colectivo dia justificação inteiráor. E a eucaristiia renova a particiPaÇão na vida de Cristo mediante o banqueti,-fraterno do pão e do vio . Assim os sacramentios perdem o cará~ de uLmiajurisdição ~rdoU,1 e tornam-se a expressão daquela ári~ta relação entre ohomem e Deus, que se realiza na fé. A doutrina dos sacramentos élimia

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toda afunção intermédia entre o homem e Deus, nega a possibilidade, da mediação ~~e coloca d~amente ohomem defronte de Deus em virtude de um acto Puramente inteoior, o da fé, deque os próprios ~amentos são a realiização e a garantia. A nega-199

ção da tradição eclesiástica, operada mercê do retomo ao Evangelho, toma-seassim a negação da função sacerdotal e por isso da distinção entre castasacerdotal e mundo liaico. Esta consequência é tratada no outro escrito deLutero À nobreza cristã da, nação alemã (1520), que inioiou a rebelião daAlemanha contra a igreja de Roma.

A justificação pior meio da fé tira todo o valor às chamadas obrasmeritórias. Sem a fé, estas obras não fazem senão redobrar os pecados: asboas obras não podem portanto ar ninguém. Todavia não devem poT àsso serexcluídas: elas são de facto o fruto, e ao mesmo tempo o sinal seguro dajustificação diviina. A, fé verdadeira não é ociosa mas operosa; e se asobras não se seguem à fé, tal fé não será genuína. "Assim como as árvoresexistem antes dos frutos, diz Lutero no De libertate christiana (1520), enão, são os frutos que fazem as árvores boas ou másmas as árvores que fazemos frutos tais, assim o homem deve ser na sua pessoa pio ou mau, anítes quepossa fazerobras. boas, ou más". Mas as obras levam o homem para fora da suahumanidade para aquela exterioridade em que o homem já não é lívre, masservo. Lutero faz valer em toda a sua força a distinção paulista entre oespírito e a carne. O homem que tem fé nasceu para a vida do espírito, é umanova criatura independente de todo o mundo que o circunda, portantoabsolutamente livre. Mas na sua carne, isto é na sua natureza sensível, o,efistão é, pelo contrário, o mais submisso, o mais dócil dos homens. O homemexterior que vive no mundo deve adaptar-se à prática

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LUTERO

do bem não para adquirir mérito, mas para contribuijr para o aperfeiçoamentoda -vida social. O campocuja vida cada um deve contribuir com todas as suas possibilidades. Osapateiro, o artífice, o camponês têm, cada um deles, a própria ittarefa ooraa qual prestam serviço aos outros e contribuem para uma obra de que o

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corpo ea alma beneficiam, de modo que oofício dois vários membros beneficia avida total do corpo. Aquise revelaoutro corolário dos mais notáveis da doutrina de Lutero: a vida social, e aW, efa que cada um nela desempenha é o único serviço divino, a única obra, emque o cristianismo dá testemunho da sua fé interior. Não são as práticaspiedosas mas o exercíciio, do -dever civil que é a

obra boa, fruto e sinal da fé, garantia oerta da justificação dávina.Enquanto afasta os homens dias práticas do culto, Lutero procura levá---los aempenharem-se no exercioio do devor civiiI, vmdo neste apenas a obra em queexteriormente se manifesta ese realiza a fé.Frente à concepção luterana da fé como absoluto abandono do homem a Deus, atentativa de Erasmo de salvar de algum modo a liberdade humana fixando-senuma posição de semipelagianismo, devia parecer impossí vel. Ao De liberoarbitrio de Erasmo, Lutero replicou em 1525 com o De servo arbitrio, cujotítulo diz tudo. Seig-undo Lutero, não se pode adimâir ao mesmo itiempo, aliberdade divina e a humana. O livire-arbítrio não é mais que um nome vão;a presciência e a omâipotência divina excluem-no. Deus prevê, propõe elevia aei com vontade201

e~ e infalível -tudo o que sucede. A p~ônede e a predeternúnação dÍvinaimplicam que nada acontece que Deus não queiTa; e asso exclui que no homeraou em qualquer outra criatura haja livre-arbítrio. Cumpre portanto concluirque Deus opera igualmente nos homens o mal e o bem, assim com um artífice seserve por vezes de instrumentos maus ou deteriorados, e que ~to a &-úvação,como a danação do homem, é únicamente obra sua, Ã óbvia objecção de que emtal caso Deus é o autor do mail, Lutero responde retomando a doutrina deOccam. Deus não é obrigado a observar nenhuma regra ou norma: ele não devequerer uma coisa por ser justa, mas aquillo que ele quer por Isso me= é justo(De serv. arb., 152). Uma vez mais, a doutrina de Lutem encontra um preitextona f~ia de Oecam: a ind,,derença da vontade ffivina que cria, querendo, anorma do bem e do mal é afirmada por Lutero como defesa da predesbinação (quehavia sido, também ela, aliás, sustentada por Occam). Mas esta itão

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absolutae apaixonada n~ da liberdade humana revela logo em Lutetro o seu móbilreligioso. A doutrina da p~tànação não é nele uma doutrina fidosófica; e asvelhas t~ de Oco,un têm nele uma ress~cia muito diferente, Lutero pretendedefender e realuzar plenamente a atítuderelíigiosa da fé, o abandono ~ dohomem a Deus. Tal atitude exclui que o homem possa reivkdw,ar para si aliberdade, o, mérito, a iniciativa. Tudo deve ser atribuído a Deus e apenas aDeus. "0 sumo grau da fé, &z Lutem (Ib., 42) consiste

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em crer que Deus é demente mesmo se Galvia poucos, mesmo se condena muitos;em julgá-lo justo mesmo se por sua vontade nos torna necessàriamenteculpados, mesmo quando pareça delatar-se com as dores e as misériais, e antesdigno de ódio que de amom. E, na realidade, o que conta, na disputa entreErasmo e Lutero em torno da liberdade humana, não é o valor das razõesaduzidas em apoio de uma ou de outra ~, razões já gastas e velhais, mas adiversidade das afltudes que aquelas razões revelam. Não obstante todo o seu ffiteresse pela renovação reFeiosa, Era~ permaneceu um filósofo humanísta; em Lutero, pelo contrário, o r~mo ao Evang~ determinou uma aútude de roligiosidade absoluta e intransigente, para a qual a única liberdade humana não podeser senão a sujeição a Deus * a única iniciativa, como único mérito, a renúncia * toda a kú ciativa e a todo o mérito.Essa atitude constitui a originalidade da doutrina * dia obra de Lutero.Indubitàvelmente, todos os elementos de tal doutrina são medievais e nãoapresentam nenhurna ofiginalidade (excepto tailvez a dos sacramentos), mas aoriginalidade está em ter feito valer o retomo ao Evangelho como instrumentode uma palmgenesia religiosa e em ter fewto de tã retorno uma força dedestruição e de renovação. A Reforma religasse ao Renascimento precisamenteno

seu moítivo central, no seu esforço de se refazer nasorágens; e, tal c~ o Rienasoimento, tende a levar o homem a empenhar-se nas obras da vida, desviando-os das cerimônias e do culto ex~.203

§ 369. ZWINGLI

O retorno às fontes religiosas é concebido eposto em prática do modo mais conforme ao ideal humanístico pelo reformadorsuíço Ulrich Zwinglii, nascido no 1.O de Janeiro de 1484 e falecido a 11 deOutubro de 153 1. Zwingli faz sua a doutrina de Pico de Mirândola (§ 357) de

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uma sabedoria refligiosa, na qual confluem e se harmonizam os textos dasSagradas Escrituras e os dos filósofo pagãos. Por isso ede não restringe arevelação a um facto histó- ,rico determinado, nem mesmo ao cristianismo. Arevelação é universal: tudo o que se dIsse de verdadeiTo, por quem quer quetenha sido dito, procede da própria boca de Deus, de contrário não seriaverdadeiro. A Plaitão e a Séneca, não menos que a Maisés e a S. Paulo, opróprio Deus revelou, mediante a luz interior da consciência, elemenitosessenciais da verdade. Oretorno às fontes da religião deve portantosignificar o retorno a todas as vozes divinas através das quais Deus isemwlou e tem por fim renovar em nós mesmos a intimidade de directa adesão a Deus.Estas teses desenvolvidas no De vera et falsa religione commentarius (1525),conduzem Zwingli a enriquecer e generalizar o seu conceiito de Dous, nosentido elástico, aprópria natureza. No De prorejeita nenhuma diasdeterminações filosóficas da &rvi,n,d:ade. Deus é o Ser, o suma Bem, a U,,ade no senflido elástico, a própria natureza. No De providentia (1530),ele identifica-o com a potência que rege o mundo, com o sujeito único e aúnica força

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que rege as coisas. Neste sentido Deus identifica-se com a providência, e Zwingli diz: "Se a providência não existisse, Deus nãoexistiria; excluída a Providência, Deus também é excluído". A salvação detodos os homens é determinada pela acção providencial de Deus. Deus quis livremente todos os acontecimentos do mundo: deterniinouítanto o pemdo de Adão como ia encarnação do Verbo; e determina, em virtude de uma eleição gratuita, a salvação dos homens. Esta última é devida a uma livre decisão de Deus, que a dá ou a nega segundo o seu arbitrio, a coisa alguma estando obrigado, mas determinando só com a sua vontade tudo o que é justo e injusto.E a eleição d&se ab aeterno, não se deve à fé, mas precede-a; os eleitos &ão-no ~s de crer. A fé não é más que o abandono total à vontade de Deus,abandono pelo qual o homem se torna independente de todas as coisasexteriores; e

este abandono pode encontrar-se em pagãos como Sócrates e Séneca, que Zwingk não duvida hajam sido eleitos para a vida oterna.Para Zwingli, como para Lutero, a fé é a confiança inabalával na graça justificadora de Deus, a certeza absoluta de se estar totalmente nas mãos de Deus e não poder (agir diversamente do modo por que se age: confiança e certeza que fizeram as grandes almas reúgiosas e activas da Reforma e transformaram o que parece à primeira vista,um princípio de encorajamento e denúncia, a negação da lib"ade humana, num elemento de força e de exaltação.Mas para a universalização da revelação e do próprio conceito de Deus, a fépurif-ica-se e interioriza-se ao205

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máxinio na doutrina de Zwingli. Zwingli rejeita, bastante mais do que Lutero,toda a expressão ou subsídlio exterior da vidia religiosa. A fé basta-se a simesma: nada que venha do exterior pode aJudá-la ou apoiá-la. Ela move tudo,mas não é movida por coisa alguma, porque é a própria, ~ de Deus; naconsoiência. As cerimónias, os sinibolos, os pietextos exteriores dareligiosidade são resoluhamente excluídos. O próprio sacramento daEucaristia, a que LuteTo atribuía valor real, interpretando-O no sentido da consubstanciaçáo - (já defendido por Oceam no seu tratado De corpore Christi et de sacramento altaris), isto é, com a presença simultânca das duas substâneias, a do pão ou do minho e a do corpo ou do sangue de Cristo, é por Zwiingli Teduzido a uma pura cerimónia simbólica, na qual o corpo de Cristo já não está no seu corpo real mas na comunidade dos fiéis que se torna verdadei- ,ramente o corpo de Cristo no acto de reevocar durante a cerimónia, o sacrifício de Cristo. Foi precisamente esta interpretação da eucaristia que determinou a polémiica entre Zwinglii e LuteTo e tornou impossível o acordo entre os dois inovadores.Num outro ponto de vista, o antagonismo entre Lutero e Z~gli resultaevidente. Lutevo, negando o valor das práticas reEgilosas, tinha levado, ohomem * empenhar-se na vida social e a considerar esta * único domínio daopera buona reveladora da graça. Mas -neste domínio ham@a baprado o caminho atodas as forças inovadoras, reconhecendo e afirmando o valor absoluto dopoder político e negando-se a toda a eirativa de reforma social. A doutrinade

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Lutem leva assim a um revigoramento do conservantísmo político-social.Zwingli, que nascera e vivia numa wciedade democrática, dá-se conta do valorde renovação que o reto -mo às fontes religiosas, representa paria asociedade do seu tempo. A vida ~ deve, segundo Zwingli, determinaractivamente e transformar, moffiante um retorno à sociediade cristãoriginária, a vida política e gocial. Ele condena Lutem que encoraja ospríncipes a perse- ~ @nuwnanamen1tc a forro e f os inocentes culpados apenasde terem fé na verdade. Nega a obediência passiva à autoridade política;reconhece legítimo só,um governo que encaminhe para a vida cristã e aprove adeposição dos tiranos, pela concorde vontade do, povo. A comunidade doscristãos deve tornar-se, no espírito da reforma de Zwingli, uma

=unidade política que retorna às formas da sociedade cristãoriginária.Zwinglí é consciente de que este retorno não é integralmente possível ereconhece, por e~pdo, que a comunhão de bens, que poderia reallizar-se apenas entre santos, não é possível neste mundo, no qual se pode todavia avizinhar esse estado de perfeição mediante a beneficiência. Mas antes de tudo ele leva o princípio reformador ao plano social e dele faz um instrumento de renovação e a base de uma nova orga~

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política.§ 370. CALVINOSe o retorno às fontes religiosas é para Lutem ~ncialmente o regresso aoEvangelho e para ZwIngli o regresso à revelação Originária concedida

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a pagãos e ia cristãos, para Calvino é, ao invés, o retorno à religiosidadedo Velho Testamento. joi Calvino, (10 de Julho de 1509-27 de Maio de1564) nasceu em França, em Noyon, mas foi na Suíça, em Genebra, que levou acaibo a sua obra de reformador; e desta obra se originaram as igrejasreformadias que não se organizaram sob a influência do Estado, com naAlernanha, mas se desenvolveram livremente. Em 1553 Calvino mandava condenarà foguoira, pelo Conselho de Genebra, o espanhol Miguel Serveto, que negava aencarnação, pois via na figura histórica de Cristo uma simples participaçãona substânda eterna do, Pai (Restitutio christianismi, 1553). Mais tarde,foram efectuadas perseguições econdenações contra a chamada correntelibertina, que congregava os idefensores da imanência de Deus em todio ouniverso. AintoIcrância foi para Calvino uma arma de defesa dia nascenteIgreja reformi enquanto vilveu, o poder político em Genebra foi completamente subordinado às exigências esparituús da reforma religiosa.Num capítulo dia sua obria fundamental Instituiição da religião cilsitã(aparecida pela primeira vez

em latim em 1536 e por ele traduzida pwteriormente para francês epublicada em1541 ~a língua, a qual constitui o primeiro documento literário dia prosafrancesa), Calvino propõe-se mostrar a unidade do Velho e do Novo Testamento,combatendo a tese de que o Velho Testamento tenha anunciado aos Hebreus umafeLcidade puramente terrena. Calvino insiste na impossibilidade de entender adouffina do Evangelho sem o Velho Testamento; e,208

na lade, na sua interpretação da Bíblia são os conceitos do VelhoTestamento que prevalecem. Do Velho Testamento extrai o conceito axial diasua concepção religiosa: Deus com absoluta soberania e potência, perante oqual o homem nada é. Na teoliogia de Calvíno, Deus é omnipotência e impre~biLdade, mais do que amor. Da sua vontade depende o curso das coisas e odestino dos hori portanto também a sua salvação. " Conforme aquilo que a EscriÍtura claramente demonstra, nós dizemos que o Senhor há muito decidiu, no seu conselho eterno e imutável, que homens havia de destinar à salvação e quais deixar na ruí-na. Aqueles que ele chama à salvação, dàzemos nós que os recebe pala sua misericórdia gratuita, sem ter em conta a digmdãde deles.

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Pelo con4~, o dngresso na vida está vedado a todos aqueles que ele quer v~ àcondenação; e isso ooorre devido a um seu juízo oculto e incompreensível, emborajusto e equâniri (Inst-7, 111, 62-63). A eleição diviina não se segue à

previsão divina, senão que a precede. Calvino considera inconeffiáveis estas duas afirmações: a de que os fiéis iobtêm a suasantidadepela eleição e a de que são eleitos por esta santidade. A santidadeorigina-se hfficamente da eleição: não pode portanto ser causa dela. Éimpossível atribuir ao homem um

mérito qualquer relativamente a Deus. O homem reconetifia-se com Deus apenas através da m~ de Cristo e da participação nas suas promessas. Mas a própria obra mediadora de Cristo é um decreito ~o de Deus, que faz parte da ordem providencial do mundo. "Nós temos, diz Câvino (Ib., 6, 11, 275)209

~ rogra breve mas geral e certíssim-m: aquele que por completo se aniquilou e despojou, não digo da sua jusuiça que nada é, mas daquela sombra de justiça que nos engana, está devotamente preparado para receber os frutos da misericórdia de Deus. Porque, quanto mais cada um repouse em si mesmo, tanto mais será,um impedimento, à graça de Deus". Aliás, a graça de Deus não impele o homem do Inesmo modo que nós atiramos uma pedra. É uma faculdade natural, reconhece Calváno., querer ou não querer e tanto faz querer o mal como não que= o bem, entregar-se ao pecado como resistir à justiça.O S~r serve-se da perversidade do homem como de um instrumento da sua ira; enquanto refreia e ~era a vontade dos que destina à súvação, dirige-a, forma-", condu-la segundo a regra da sua justiça, e finalmente confirma-u e fortifica-a com a virtude do Espffito. Deus quer que tudo o que ele faz emnós seja nosso, contanto que entendamos que nada depende de nós (Ib., 2; 11, 188-190).Esta doutrina da predestinação, precisamente no que possui de extremo e de paradoxal, consÜW! a força da consciência Calvino Quem conta, apenas com os mérisos humanos, permanece necessàriamente em dúvidia quanto à ~cia de tás méritos, tão imperfeitos e precários, e poT ísso quanto à própria salvação.Mas quem crê apenas méá- ,tos de Cristo e se sente, em virtude de taisméàtos, predestinado, adquire uma força de convicção que não recua peranteas dificuldades e o leva até ao fanaksmo. Como Lutero e Zwingli, Calvinoabria ao0~ o campo de ~ da vida social e levava-o a

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empenhar-se num trabalho activo dentro da sociedade e a &,ansformá-la emconformidade com o seu ideal r~oso. O trabalho tomava-se assim um

dever sagrado, e o êxito nos negócios uma prova evidente do favor de Deus e,segundo os conoeitos do Velho Tostamento, um sinal da sua predilecção. Pela

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ética caMnista se modelou o espírito da nascente burguesia capitalista: o espírito activo, agressivo, desdenhoso de osos sentimentos, continuamente dirigido para o êxiito. É signàficativo que opróprio Calvino tenha reabilitado a usura e haja declarado, moralmentelícito receber juros de emprésfiLmo. ~ quer que seja, a verdade é que ocarácter religioso, atribuído ao êxito, nos ócios estabelece laços estrekos~re a actividade mercantil e a o~êne@a religiosa e reveste de um caráctersagrado a prosperidade económica. No plano própriamente especulativo, a t~ade Ciadvino põe o

homern perante um muro: a imprescrutabUidade dos desígnios dívinos que faz com que o homem nada possa entender da justiça divina e deva limitar-se a sDfr64a.§ 371. TEÓLOGOS E MÍSTICOS DA REFORMAO sistematizador teológioo da reforma luterana foi Rfipe Meilanethon (16 deFe~o dL- 1497-19 de Abril de 1565). Pola sua -incansável activádade dedefensor dos princípios luteranos, de professor, de autor de manuaisdidácticos (de diaJéctica, de física, de ética) foi chamado PraeceptorGermaniae. Ten-211

tou reportar os princípios da Reforina à espe~ da Antiguidade c CS~Imente de Platão e de Aristótelesque interpretou através de Cícero. Defensor do nominalismo (nos conceitos universais vê sómente Os nomes comuns das coisas)identifica este ponto de ViSta com o de Platão, e de Aristóteles. E, emgeral, faz wu o princípio humanistico do acordo substancial entre osensinamentos da antiguidade clássica e a revelação cristã . - A primeira obraimPortantC de M~thon são os Loci ~munes rerum theologicarwn editados pelaprimeira vez em1521 e ree@aborados e enriquecidos nas subsequentes edições. Estasreclaborações mostram o desenvolvimento do pensamento de Melanethon, que,partindo da simples interp~ da doutrina de Lu~, proema em seguida Vinculá4a à~ção do pensa" mento antigo, atenuando-a em alguns pontos essenciais,especialmente na doubrina do livre-arbitrio. O princípio de que ede parte é apresença no homem de um lumen naturale que é o fundamonto último de toda aactividade teórica e prática. São manifestações deste lumen naturale osconhecimentos inatos, que Melanethon admite w~ os Estóicos e Cícero. Taisconhecimentos são as verdades supremas, os princípios por si evidentes quesão a base da ciência e da conduta humana. São princípios inatos práticos asleis do decálogo, que Deus ~ou e sancionou com a sua autoridade, quando elesse obscureceram na consciência do homem. Sobre os princípios naturais

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inatosdeve ser fundada a ordem social: eles de~ ser por~ o guia do homem, que quer,segundo o ensinamento de Lutero, reafizar no mundo

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a obra de Deus. A obra de MeUnetIon é desfituída de eiriginalàdadeespecuktiva: o seu valor consi= em haver conduzido ao terreno filosófico os princípios da reforma r ~,* sa que Lutero valer apenas no domínio religioso, excluindo e condenando toda a ~boração, filosófica dos mesmos.Sebastian Franck 1(1499-1542) enxerta as d~nas da mística alemã no tronco do panteIsmo, humanista. He é o autor de uma história unâ~ (Chronica) que foi impressa em Estrabuirgo (1531), de uma Cosmographia 1(1534) e de 280 Paradoxa (1534-35). Como XMan~, Franck con,&dera que há nos homens uma luz natural, fundamento da capacidade de juízo, qlue dIes possuem. TW lume, que Platão, Cícero, Senéoa e os outros filósofos pagãos denominam razão, chamam-lhe os cri~ Verbo ou Filho de Deus, Chsto invisível. O Cri~ invisível é portanto a própria razão, mercê da quad o homem consegue vencer o seu egoísmo carnal, renuncia a si mesmo e se fia em Deus. A obra de libertação e de renascimento espiritual, aquela justificação que Lutero atribuía à iniciativa divina e da qual o homem era sujeito passlivo, torna-se em Franck a obra mesma da razão humiana, em que actua e se identifica a acção justificadiora de Deus. NissO reside precisamente a importância da doutrina de Franck, a qual pela primeira vez leva a ~ma P&ig"a ao torrem fdosófico, não já no sentido de retraçar os pressupostos doutrinais (como fizera Melanethon), mas no sentido de traduzir numa afitude filosófica equivalente a atiltude religiosa que, ela defendia.Franck é fiel à doutrina da justificação de213

Lutero; mas a justificação é para ele obra e iiniciativa humana, em quetodavia se manifesta e actua a obra e iniciativa divina. Dai a sua doutrinasobre o livre-ar, bítrio (Padaroxa, 264-268). Em polémica com

Lutero, Franck defende a liberdade humana, visto que é mediante ela que serealiza a decisão justificadora de Deus. Daí, também, a interpretaçãopuramente alegórim da Sagrada Eserãura, cujos factos -,ao por Franckconsiderados símbolos de verdade eternos. O sacrifício de Cristo é apenas o símbolo de ,um processo que se repete continuamenle na História: o processo - da libertação e da redenção do homem que, através da razão, se mune a Deus.Daí, enfim, o conceito de uma igreja invisível de que se faz parte, não poratributos externos, mas

pela perseverante justificação interior, e da qual são membros também os pagãos, com Sócrates e Séneca, que viveram de acordo com os ditames da razão.A par desteradonalismo religioso, Franck apresenta uma vMo da históriadominada pela acção proVidencial de Deus. Desta acção é o mal um instrumentoe uma condição necessária, portanito impossível de eliminar. Homens

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maus eloucos sempre exisfixam e existirão sempre em maior número do que os homensjustos e piedosos. E haverá sempre um papa no mundo, porque este tem.newssidade da fé cega e de servir -alguém; e oshornens, devido àsuadebMidade, dificilmente conhecem outro modo de servir Deus que não seja pelascerimónias externas, pelos cantos, procissões, etc. Elepróprio, Franck, querser e permanecer estranho às seiitas religiosas e tomar o seu lugar entreaqueles poucoshomens de

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todos os ~s que têm servido livremente Deus na interwridade do seu espírito.

Mais próximo do misticismo de Me~ Eckhart está Valentino Weigel (1533-88),autor de numerosas obras, entre as quais as mais notáveis filosóficamente são: A verdadeiraresignação, Introdução à teologia alemã, A chave áurea, As origens do mundo,Pequeno livro, Sobre a vida e a maneira de conhecer todas as coisas, Conhece-te a ti mesmo, O bem e omal no homem, A vida santa. - W6gal parte do conceito de Deus próprio dosmistkos: Deus é umaunidade inefável superior a toda a essência criada e incomparável, com ela.Mas ao mesmo tempo Deus, é imanente no homem e constitui o principio que conhece e opera nele. E, de facto, todo o oc>nhectimento humano encontra o seu princípio, não no objecto, mias no sujeito em que age Deus mesmo.O homem possui itrês formas de conhecimento: a sensibilidade, que item por objecto o mundo sensível, a razão de que dependem asciências e as artes, e a inteligência que visa ao que é invisível e divino.Mas estas três formas de conhecimento têm o seu principio, não no objecto queas produz, mas no sujedito cognoscente. No conhecimenito sensível, defacho, a

coisa externa solicita a percepção, mas não a produz, porque esta é umaactividade do sujeâo. E o mesmo

acontece com o conhecimento sobrenatural: daí que possamos, na verdade,entender a palavra divina consignada na Bíblia, mas a~ na medida em que emnós próprios actue a luz divina. Na realidade, Deus e a sua palavra estão emnós: ele é onosso olho e a luz que o ilumin . Por isso é knpos-215

sível ent~ a Sagrada Escritura moffiante um corfi, ecimento puriamente

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natural: só a presença do p~ Santo em nós nos abre o entendimento. Donde se segue que a justá, ~ do homem por parte de Deus não vem do exterior, senão que ua na illb~d@adie !MCSIM do homem. Weágel une a doutrinal~ana da justif~ à dioutrina de Ec~ do Deus no homem. Ohomem, deve morrer para si mesmo e o PTóprúo Deus deve fazer-se nede homem.O renascimento que se alcança através da fé é a afirmaÇão da vida divina no homem, afirmação pela qual a vontade humana é suplarítada ántekwn~ pela vontade salvadora de Cri~.O mais ~,Icaltivorepresentante daleosofia alemã luterana é Jakob Bõhmie na~em 1575. De familia humd&, não sqguiu estudos regulares e exerceu o mesterde sapaíteiro. As lutas entre váxias seitas protestantes turbavam a suac<xwiê íntensaniente ~osa e conduziram-no a uma m"tação desordenada efantástica, da qual ffie ~ que poderia bwtar máraculosamente, um princípio deela-reza e de oámLação. A sua primeiwa obria foi A aurora nascente, ~posta em1612. As autoridades Protestantes puseram-lhe a Proibição de escrever; massete anos depoils, retomou a sua achivídade e compôs numerosos e"tos: os trêsprincípios da essência divina (1619), A tríplice vida dó homem (1619-1620),Psicologia verdadeira (1620), A encarnação de Cristo (1620), Sex punctatheosophica (1620), Sex puncta mystica (1620), Mysterium pansophicum (1620),De signatura rerum (1622), Theocospia (1622), Mysterium magnum (1623), Cris-216

tofia ou a via para Cristo (1622-24), 177 Questões teosóficas (1623), Tábua dos três princípios (1624), Clavis (1624). Bõhme morreu em Korütz a 17 de Novembrio de 1624.Gomo iodos os místicos, Bõlime considera arazão i~paz de chegar a um ver~o conhecimento de Deus. Um tal conhecúmentoobtém-se aperiais através de uma visão @media$a que é possível ao homem.porque há nele uma Oentelha dia luz dilvina. Tal como Franck e Weigel, Bõhme~te uma origiriària iluminação divina, devida ao facto de que a alma tem asua origem na es~ mesma de Deus. (Aurora, pref. 96). Tal como os outrosmísticos alemães, Bõhme coloca Deus acima de todas as as reais, de sodas asdeterminações finitas, chegarido, a di= que se pode designá-lo por limasópalavra: um nada eterno(Mist. ~, ., 1, 2). Deus é o mysterium magnum, oeterno abismo do ser; este abismo item uma vontade; e esta vontade anelaespelhar-se em si mesma. A -trindade divina determina-se assim: o Pai é aVontade (W111) do abismo oterno; o Fiffio é o Sentimento (Gemüth) e~ da v~e,o prazer que ela experimenta em

contemplar-se; o Espírito, fmalmente, é a, Resultante (Ausgang) da Vontade e do Sentimento na linguagem e na inspiração. Porém, não se

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tratava tanto de &és pessoas como detrês aspeotos dia dlivúndade no sou nascimento eterno, pois que a divindade é veridadeiramente uma via única e um único bem. (lb., 7, 9-12). Todavia, esta única, vida iinclui em si a opo,~ de dois princípios.Se de facto fosse absolukv=te una, nera sequer poderia revelar-se a217

à mesma: a revelação supõe uma dualida&, kW uma o~,- A opo~ é entre aistrevas e a luz, entre o óffio e o arnor, ~ o coppo e a natureza, entre ocoração e o sentim~ de Deus. "Se deve -haver a luz, tera de haver ita~ ofogo. O fogo gera a luz e a luz ~ cin si o fogo, ela compreende em si mesma ofogo, isto é a naftm-ez-a, e habita no fogo" (Ib., 40, 3). O amor poder~seapenas através do Mio, o Mio através do amor, e astrevas estão estreitamentefigadas à luz. I)cus compreende Portanto em si a eterna natureza em OPOS@ÇãOao eterno espírito, que é o ~0 daqueda e~ naitureza. E nesta eterna naturezaex@stern sete formas fundamentais ou qualidades, nas quais encontram a suaraiz todos os aspectos da realidade criada. A primeira forma natural é oAnelo, do qual nasce o e~ querer & Deus. A segunda é o Movimento a que oAnelo dá origeim, do qual nascem o espírito, a sensibdúdade e a vida. Aterceira é a Angústia, que deriva das precedentes. Estas três primeirasformas nas quais se reflecte a acção do Padre, do Filho e do EspírUo Santo,são simbálicamente Indicadas por Bõhme com os nomes dos elementosdeParacelso: sal, mercúrio e enxofre (Clavis, 9, 46). Da angústia brota oFogo, que é o nasdmento da v@dia e a quarta forma natural: nela se revelaautênticamente a trindade divina. Do fogo brota @a quiinta forma, a Luz, queé o amor. A sexta forma é o Som da palavra divina. A sétima é o Corpo queresulta da acção combinada de todas as formas precedentes e é des;~, a como anatureza

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de Deus, o céu incriado, o salítre dàvâno (Aurora,11, 1).

O mundo criado encoutra as suas raízes ne~ sete formas da natureza divina.Ele não foi criado do nada: Deus tirou-o de si, e ele não é senão a revelo@oe a explicação da essência divina (De tr. pri.nc. 7, 23). O que em Deus é aoposição dos dois princípios (ia natureza e o espírito), no mundo é aoposição entre o bem e o mal. Umavez que o mundo deriva de ambos osprincípios divinos, deve reflectir em si a oposição desses princípios. Todasas coisas do mundo estão portanto em luta entre si e esta luta é

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inelutávelporque, sem ela seria ,possível a

vida e todias as fbrmais da realidade (Myst. magn.,26, 37-38). O homem microcosmo é a imagem da divindade. A sua alma compreendetrês princípios: * alma do fogo, ia alma da luz e a alma do animal; * o seucorpo Compreende também três princípios: * corpo celeste, o corpo sideral e ocorpo elementar (Ib., 15, 15; 11, 20-25). Através da fé, a imagem divina dohomem restabelcoe-se e refaz-se tal como

era no princípio, iantes da queda de Adão. Bõhme interpreta a fé, emconformidade com a doutrina luterana, como justificação total do homem, comoum -retomo do homem, através de Cristo, à luz e à vida de Deus. Orenascimento do homem é verdadeiramente o renascimento de Deus no homem. Maspara B5hrne este renascimento é fruto da liberdade. Whme nega iapredestinação dávina, mas

nega-a, não já para fazer valer perante Deus osméritos do homem, mas para mostrar que a acção divina é intrínseca à vontade humana de salvação.219

A queda do homem entra na ordem provadencW do mundo Porque sem ela o amor e a graça de Deus não teriam podido wvelar-se. Decerto que Deus não PrOdc~ Os homens nem tão-pouco a sua Presciência ~ ou viola a üb~, e deles. Mas a queda, a salvação e alternativa que se propõe à Qivre escolha do homem enitmo bem e o mad, e~ radicadas na essência divána, @sto é, na duplicidade dosprincípios de tal, essêncáa: a naitur<za e o espirito.O fundamento ida salvação humana não é só um dos PVínciPi05 d'MaOs, mas sim toda a essência divina, que, compreendendo também a Natureza, i~ é, as trevas e a possibilidade do~o,~possível ao homem aimagem de Deus, a liberdade o a esccdha.O ml~ismo de Bohme conclui assim, com uma tentativa de @nterpretar a dependência absoluta do homem Para cOM Deus num sentido que pode wlvax a liberdade humana. Mas esta t~tàva é1im@ ou atenua a distâncáa ~e o homem e Deus, faz do homem uma Partícula da divindade e do problema da salvação humana -um problema có~, no qual ~ envolvidos -também,todos os aspectos do mundo, tanto o homem como a natureza, os anjos e os animais. O pressuposto panteístico destrói o carác. ter original e específico do destino humano.§ 372. O RACIONALISMO RELIGIOSOA necessidade de libe~ a originária doutrina cristã das superstrutruras que atradição católica havia acumulado fez nascer na Alemanha o estudo220

crítico dos textos bib @. De 1559 a 1573 Flacius (com outros) publicou 13volumes das chamadas Centárias de Magdeburgo, em que se documentavam asnumerosas mudanças que através dos séculos tinham wfrido a doutrina e o

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cerimonial da Igreja. Simultâneamente, contra a tese da unsuficiência dasSagradas Escráuras para construá*cni por si só um

guia para a salvação, tese queimplicava a necessidade de uma interpretaçãoautêntica delas por parte da Igreja e era defendida pelos escritorescatólicos (especialmente por Belarmino), tentaram os p~tantes mo~ asuficiência e a intelígibilídade da Sagrada Escritura. Denominaram elesclavis aurea

o método de que Flacius @se serviu para tal fim, eque ~súa pirincipalmente em explicar cada simples passo, mediante o sentido total da Escritura.Não obstante a arbitrariedade dos resultados, este método abriu o caminho àexegese histórica da Bíblia, cuja necessidade Erasmo hav@a sido o pri>zrwiro, a compreender. E um pa~ ulterior desta exegese é representado pelosocinianismo. O fundador do socinianisma foi Lelio Socini nascido em Siena em1525 e morto aos 37 anos, em 1562, em Zurique, depois de ter vividb naAlemanha, na Suíça e na Polónia. O sobrinho Fausto, Socirai, também nascidoem Siena em 1539 e falecido em1604, na Polóniia. (onde se estabelecera em 1579) prosseguiu e levou a efeitoos estudos do tio, sendo o verdadeiro fundador do socinianismo. Fausto Socinidefende, nas pisadas de Flacius, a veracidade e suficiência das SagradasEscrituras, servindo-se, tam@bém ele, da clavis aurea para demonstrar acoerênedia

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delas. Mas o espír@t" racionalista da sua ~se sagradia reflecte-se nas suasd,out,@mw, que chegam a negar os dogmas fundamentaís do cristianismo. JáMiguel Serveto (1511--53) nepra o dogma trinitário, admitindo um ú nico Deus,isto é, o Paá, e recusando-se a rcoonhecer que a trindade se funda na SagradaEscritura. A mesma negação se encontra em Socino. Deus, que é uma essêndanumèricamente una, deve ser também uma pessoa numèficamente una: pessoasdiversas implicariam essências, isto é, substâncias diversas. O que excluique Cristo seja Deus. Aliás, se fosse Deus, já não seria homem, pors umaúnica substância não pode ter em si duas formas. A pretensa dirvindade deCristo contradiz ao mesmo tempo o testemunho do Evangelho e a

razão humana. O pecado original deixa de subsistir, "é uma fábulia judaicaiiintroduzida na Igreja Pello Anti-Cristo," (Dial. de justif., Op. 1, 604 b).A culpa requer a vontade, e não pode haver culpa no homem que acaba de

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nascer. Fausto Socini defende, além disso, a liberdade do homem e @nterpretaa doutrina luterana da justificação como uma espécie de Mmissão jurídica que Deus faz do pecado em virtude da fé. Mas o homem não podesalvair-se ~o pela sua vontade, porquanto a escolha divina não ocorre sem ialivre acção da vontade humana. No racionaliismo religioso de Sooini ocristianismo tornou-se num puro iteismo filiosófico, no qual os caracteresh@stórieos: do cristianismo se desvanecem de todo.

Insiíste, ao invés no carácter moral e prático do cril,stiràni,smo, entendidocomo religião da Uberdade e

da caridade, G@acomo Aconcio que, nascido tialvez222

em Trento (1520) viveu ~, s anos na Inglaterra, onde morreu em 1567. No seuStrata gemata Satanae (1565), vê ele o único meio que o homem tem de fugiTaos ardis de Satanaz, considerando como supérf,luos à salvação, todos ospontos de doutrina que nãoinf1uene@ení a prática da virtude cristã. Tudo oque conduz eincita à fé, à esperança e à candade, é verdadeiramenteessencial; tudo o que divide os

cristãos e os lança na luta e na tintolorância é considerado oomo umatentativa dwabólica. - Num tra- ozinho @ntítulado De methodo (1558), Aconcíotambém prenunciou, conquanto de maneiÍra vaga e genérica, a exigência darenovação metodológica baconiana. "Uma vez que a utilidade dias artesoonsisoe, não no seu cionhecimento mas no seu uso, e quie é necessário, se tequeres servir de uma arte, que i~, à mão os prewitos dela, como os elementosdas letras a quem deseje escrever e ler, é evidente que no ensino das artesse deve evitar toda a verbosidade" (De meth., 15). Aconcio insiste no fimpráãw das artes e no valor das experiêndas, ma retoma e ilustra velhas egastas noções da lógica e da metafísica. escolástica.

§ 373. A CONTRA-REFORMACosturna-se dar o nome de Contra-Reforma à reacção da Igreja católica,reacção que se @nich com o Concilio de Trento (1545-63). Na realidade, aContra-Mbrma é a reforma que a igreja, sob oimpulso das circunstâ"s lustóvicas, faz de si223

mesmia; o tal reforma é mais unia vez um retorno aos princípios. A Igreja, de facto, retorna decididamente aos prIncípios fundamentaús que havmm presidiido à sua fonnação e reencontra nesses principios o seu vigor e a sua força de expansão, que a impelem, ta difundir o seu ensino em íodas as partes do mundo e a reconstituiir asua potência uni~ que havia súdo, quebrada pela Reforma.

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GontTa aReforma, que queria voltar ao Evangelho, anulando de golpe os resultados datradição ecliesiástica, a Igreja reafirma o valor de taltradição e por~ dasdoutrinas, das cerimónias e dos à que se

tinham acumulado e consolidado através dos tempos. Para -a Igreja, o retornoàs origens não é o retomo à BíbUa, mas o retorno ao primieiro pier~ da suaformação histórica, ou seja, o perWo pau~, no qual a palavra de CÉistocomeçou a tomar corpo e consistência na organização eclesiástica, sefixairam. as interpretações autê nticas dos pontos fundamentàs da fé enasceram os ritos e as h~quias. E, enfim, o x~o aoproselítísmo e à capacidadedifusora dos primeiros tempos, à prietensão a um

magistério universal do qual não deve excluir-se nenhum,povo da terra. OC"ncílio de Trento negou portanto que ia Sagrada Esffitura bastasse por si sóà salvação do homem; negou o princípio dia livre @nterpretação e reafirmou odireito da Igreja (já sustentado e difundido pelos Padres nos primeirosséculos) de dar, ela só , ia interpretação autêntica dos textos bíblicos.~iirmou. assim o valor e a função me~ora da Igreja, a necessidade dahierarquâa, e portanto a validade dos sacramenOs e dos

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ritos. Assim se restabelecia o vadíor das obras e a

Igreja desenvolvia e ref)orçava. a sua actividadie no mundo mediante acriação de ordens religiosas que tinham como escopo fundamental a educação, a~iciênoia e, em geral, a actividade filantrópica. A seiumodo e emconformidade com a sua natureza, a Igreja fazia seu o princípio, afirmadopelo, Renaiscimento e pela Reforma, de que a rokgiosi;IIJ!ade deve aplicar-senci, mundo e pôr-se, ao serviço dos homens.A persionaúdade más @mportante, dia Contra-Reforma é o cardeal RobertoBeliarmino. Nascido em MentepuViano a 4 de Outubro de 1542, e fa-L-cido a 17de, Setembro de 1621, Beilarmino fo@ jesuíta, professor de teologia noColégio romano, e consultor do Santo Ofício: como ital tomou parte noprocesso contra Brum em 1559 e no primeiro processo contra Galileu em 1616. Asua obra princ@paI são as Dísputationes de centroversiis christianae fideiadversus huius temporis, nas quais as deoisões do Concílio de Trentosãoilustradias e de&ndidas com grande clareza e enorgia. Belarmino afirmoutambém,a superioridade do Papa sobre a Igreja e sobre o concílio, e bem assima sua idalibiUdiadt; e que o Papa, embora possuindo apenas o poderespiritual, goza, pela superioridade própria deste poder, uma

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abscêuta. supremaoia sobre todos os reis e príncip.,@s da terra,podendo por issso coroá4os ou destroná-los segundo o seu critério ~vel.O ~mo da Igreja aos seus mais sóLdo@s princípios devia significar, esignificou de facto, também um retorno ao tomismo. O Wmismo representava225

a mais bem sucedida sintese dia fé e da razão e realizava a ipossibilidadedaquela jusWicação rwionad do d,ogma cristão que a Igreja sempre pmmovera eque havia sido negada, pela Reforma, a qual seguira o exemplo da Escolásticana sua última fase. O representante principal do wtorno ao tomismo é oespanhol Frawisco Suarez, que nasceu, em Granada em 1548, foi professor emvárias universidades espanholas e morreu emljisboa em 1617. A sua obraprincipal, as Disputationes metaphysicae, é um manual ocimpleito e sl~úco dametafísica escolá~a em que se retomam todos os princípios basilares dotomismo, com algumas, conoessões ao nominalismo occamístico. A concessão dizrespeito sobretudo ao reconheeim~ da individualidade do mal. " Toda asubstância singular é singular por si mesma ou peda sua própria reailidade"(entitas) e não tem necessidade de outro princípio de individuação além dasua própria realidade ou dos princípios intrínsecos em que tal realidade~ste" (Met. disp., V, 61). ERte nheciiinento não leva no entanto Suarez anegar a ~ade do universal: ele admite a do~ de Escoto segundo a qual oindirviduo é uma especificação ou contradição de uma natureza comumconstkuída de matéria e forma.-Quarito ao resto, a obra de Suarez não seafasta de S. Tomás e não apresenta por isso nenhum in;tOr@sse:. É todavianotável a doutrina política exposta por Suarez no De legibus (1612). A ~fundamental d~ obra é a de que, enqu~ o poder siá~ deriva ime-

N226

diatamente de Deus, o poder temporal, deriva apenas do pwo. De facto, todosos homens nascem, livres e o corpo político resulta da livre reunião dosindivíduos, os quais, explícita ou tàoitamente, reconhecern o dever de seocuparem do bem comum. Daí que a soberania resida apenas no povo, que ésuperior ao rei, ao qual ele a confia e a quem pode retirá-la desde que o reda exerça de uma maneira impodifica, isto é, não no @niteresse comum mas

tirânicamente, ou seja, no interesse próprio. Esta doutrina, que ;se apoia um pouco nas ~ias politicas da Idade Média e tamb6m. em S. Tomás possui, umiintuito evidente. A Reforma afirmara o absolutismo do poder político dospríncipes, ao passo que negava o poder e a funçãomesma da Igreja. A

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Contra-Refórma, fazendo derivar o poder eclesàástico directamente de Deus, pretendesubtraí-lo a toda a dúvidia ou bimitação para reafirmar o carácter absolutodele. Mas ao mesmo tempo, atribuindo ao poder político dos estados apenas ofundamento cont,ingente e rautável da vontade popular, visa arebaixar o valor de tal poder em ~o ao siástico e a fazer ressaltar assilim a supremacia absoluta deste. O reconhecimento, da origem popular do poder político não é, portanto, em Suarez e nos o~ jesuítas (camo o espanhol Juan Maúana, 1536-1623, autor & um De rege et regis institutione) mia tentativa. positiva de fundar asobemn@a política do ~o, mas antes a tentadva negativa de desvalorizar tal soberania em benefício total do poder eciesliásfico.227

Sobre ~a grande controvérs@a entre reformistas e católicos, a dia liberdadehumana, o ponto de visita dia Igreja é sustentado, pelo jesuíta espanhol LuisMolina (1535-1600) na obra Uberi arbitrii cum gratia e donis, divinapraesciencia, providentía, praedestinatione et reprobatione concordia. Como otítulo, diz, o escríto, propõe-se mostrar o acordo entre ia liberdade humanapor um lado, a griaga, a

presciência, a providência e a predestinação por outro lado; e a tentativa éfeka segundo o modelo das @soluções toraísticas. A graça não elinÍna, segundo Moilina, a liberdade humana mas ~rma-a o garante-a. Deus concedeu atodos os homens a possibilidade de se salvarem; e quiis que a salvação delesdependesse da sua própria boa vontade. De modo que ia graça divina. cooperacom o -Iivrk>arbítrio do homem, mas não o abole nem o suplanta. Nem ol,ivxe-iarbkrio abole a presciência, a qual, pelo que mlslye@ha às acçõeshumanas, não as precede mus se lhes segue. A ciê4icia, de Deus énecessiitante com respeito à ordem dias causas naturais e aos acontedimentosque ele próprio determina mediante um

acto livre da vontade. Mas há ainda uma ciência média, que concerne às acçõeshumanas, pela qual Deus sabe infalivelmente que acção entre as múltiplaspossibilidades o homem realizará efectivamente, embora deixando o homem livrepara realizar a acção oposita. Trata-se, como se vê, de uma ~posição dasteses, tonústas. Mas a obra de Molina devia ricacender no próprio seio daigreja católica a

disputa sobre a liberdade, visto que foi a essa tese228

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que Jansénio (§ 420) buscar o ponto, de ~ida polémico para uma defesaresoluta da predest~ d@vinia e da servidão humana.

A atitude do homem da Contra-Reforma no mundo é ilustrada pelas obras dojesuíta espanhol Bal~ Graciano (6 de Janeiro de 1601-6 de Dezembro de 1658),autor de vários escifitos (0 herói, O político, D. Fernando o católico, ODiscreto), o maiis famoso dos quais é o Oráculo manual e arte de prudência,publicado em 1647. As máximas de Graciano insipiram-se num realismo, lúcido e cru que recorda o deMaquiavel e aánd:a mais Guicoiardâni. Graciano, crê na perfectibilidade dohomem, na sua progresisiva formação. "Não, se nasce perfeito, diz ele: ohomem vai-se aperfeiçoando todos os dias na suiapessoa e na prática dia vidaaté chegar a ser um exemplo perfeito,, a personificação da virtude e dovalor. Revela-se então na fineza do gosto, na segurança do esp~,-, na

maturidade do juízo, e na força de viontade" (Or., 6). Mas esta formação nãoé um facto apenas espiritual e íntimo: é itambém capacidade de triunfar navida, arte do êx@to. Graciano insiste igualmente nos dotes

essenciais da personalidade humana como o saber, a fkmeza, a coragem e adestreza prática que consiste em se desembaraçar nas circunstânclas da vida prática e em prevale=sobre os outros. Exàta ohomem deuma só peça que "julga tralção a d-issimu~, que se giorifica mais dasua tenacidade que da asituesa e se enoontra sempre onde se encontra a verdade" (Ib., 29). Mas iao mesmo lempio,229

ensina a arte de governar a vontade dos ~os ~ecendo a debilidade ou a p~ dorninante de cada um: "A astú cia consiste em intuir os idolos dos o~ para se insinuar: conhecer o impulso de cada um e possuir a chave da vontade dos outros. Deve-se avançar ao pnmeffo movimento, que nem sempre é o mais alto, e o maiis das vezes é o mais baiixo: porquie são mais numerosos no mundo os desregrados do que os que se sujeitam às regras (Ib., 26). Aqui é a "arte da prudência" que avalia, os actos humanos pelo juízo, que os homens fazom deles e dá uma dmp(>rtância es~ à aparêw@a, porque "as coisas não se estimam por aqu@lo que são mas por o que parecem. Wer e sabê-lo mostrar é valer duas vezes" (Ib., 130).As obras de Graciano alcançaram grande sucesso na Europa nos últimos decénáosdo século XVII: talve7 porque ofereciam aos espíritos da @poca um quadroimparcial dos meios paria se obter êxito e se inseria naquela concepçãoarisftw~ da autoridade que era partilhada por muitos. Matis tarde,Schoperihaueir viu em Grac@ano um precursor do ,,,eu pessimismo e traduziu o Oráculo em ale~. Na realidade, não se trata de pessimismo, mas, de uma observação realista e crua da natureza humana, uma reflexão que se impõe como premissa de toda a acção entre os homens que queiram assegurar o sucesso de qualquer empreend=ento. As máximas deste jesuíta são um outro sinal da mundanização do espírito religioso que a Contra-

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Reforma wem em comum com a Re~.230

NOTA BIBLIOGRÃFICA

§ 366. Sobre o Renascimento e a Reforma: BURDAci-i, Deut8che Renaissance, Berlim, 1920; M., Riforma, rinascimento e umanesimo, Florença, 1935; HAUSER e RENAUDET, Les débuts de Páge moderne. La Renaissance et Ia Réforme, Paris, 1929; e bem assim, as obras sobre o Rena-scimento cit~ na nota bibliográfica do cap. I, e especialmente a de DILTHEY.§ 367. Noticias e documentos sobre a vida de Erasmo em E. MAJOR, Erasmus vonRotterdam, Basileia, s. d.; as obras de Erasmo foram impressas em Basíleia,em 1540-41 e em Leida em 1703-06; as cartas ao cuidado de Allen, Opusepistolarum, em Oxford,1906 e segs. O De libero arbitrio teve uma nova ed. ao cuidado de Walker,Leipzig, 1910; o Enchyridion militis christiani e os prefácios ao NovoTestamento (In Novum Testamentum praefationes, Batio seu methodus compendio, perveniendi ad veram theologiam) tiveram edições criticas ao cuidado de H. Holborn, Mó~, 1933, com o título Ausge-wãhlte Werke. -Elogio da Loucura e Diálogos, trad. ita@I., Bari, 1914.Sobre Erasmo: HuyzINGA, Erasmus, LeIpzig, 1928; MEYER, Étude critique sur lesrelations d'Erasme et Rotterdam. Milão, 1935; A. RENAUDET, Êtudes era-&-miennes (1521-29), Paris, 1939; E. e Utalie, Genebra,1955.

Sobre as relações entre Erasmo e Lutero: A. M=R, Êtude critique sur lesrelations d'Erasme et de Luther, Paris, 1909.

§ 368. Uma primeira ed. completa das obras de Lutero faí dada à estampa em Wittenberg, 1539-58. A última é a ed. erítica em 60 vol. publicada em Weimar, de 1883 em diante.O testemunho autobiográfico de Lutero é-nos dado em KROKER, Luther8Tischreden in der Matheig-231

chen SammIung, n.o 590. -E. TROELSTSCH; Prote@stantisches Christentum und Kirche in der Neuzeit, in "Die Kultur des Gegenwart", I, IV, 1; ID., Di-Bedeutung des Protestantismus für die Entstehung der modernen Welt, ReÉlim, 1925; GRISAR, Luther, 3 vol., Friburgo, 1,912-1913; BUONAIUTi, Lutero e Ia riforma in Germania, Bolonha, 1926. Veja também a obra cit.%da de Dilthey, trad. itali., I p. 70 segs.§ 369. As obras de Zwlngli no Corpus reformatorum, Berlim, 1904 e segs., DILTHEY; L'analisi del Uomo, ete., trad. ital, I, p. 83 segs.; 285 segs.§ 370. As obras de Calvino no Corpus Reformatorum, Braunschve@g, 1863-84.Institution de Ia religio chrétienne, ed. crítica ao cuidado de J. Pannier(na "Oollection des Universités de France"), Paris,1936, 4 vol. (cit. no texto).-CAREW HUNT, Calvino, trad. ital. de A.Prospero, Bari, 1939.-MAX WEBER, Die protestanti-sche Ethik und der ~

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des Kapitalismus, Tubinga, 1905; DiLTHEY, op. cit., 1, p. 291 segs.; A. OMODEO, G. Calvino e Ia rifornw in Ginebra, Bari, 1947.§ 371. As obras de Medancithone tiveram a primeira ed. completa em 5 vols. em Basileia em 1541. Foram republicadas em 28 vol. no Corpus reformatorum, 1834 segs. Uma revalorização da obra de Melanethone foi feita por DILTREY, em L'analisis del uomo, etc., I, p. 207 segs.De S. FRANCK: Chronica, Estraburgo, 1531; Cosmographia, Uinia, 1534; 280, Paradoxa, 2.1 ed., 1542. As obras de V. Weigel foram publicadas isoladamente nos princípios do Século XVU-STOCKL, Gesch. der Phil. des Mittelat, III, Mogúncia, 1866, p. 559 segs.As obras de Bõhme foram editadas nos séculos XVII e XVIH por várias vezes emAmsterdão; nova ed. ao cuidado de Schiebler, Leipzig, 1831-47; 2.1 ed.,232

1861 e segs.; Aurora, os três princípios da essência divina, A tríplice vidado homem, Quarenta questões sobre a alma, foram traduz~ em francês por St.Martin, Paris, 1800.-K. LEESE, Von J. Bõhme zu Schelling, Erfurt@ 1927; E.NOBILE, Jakob Bõhme e i? suo dualismo essencial, Roma, 1928.

§ 372. Sobre os Socini e Serveto: DILTHEY, L'analisi dell'uomo, etc., I. p. 175 segs. As obras de Fausto Socini foram publicadas em 2 vol. em 1656 na "13ibliorteca Fratrum Poloniae".G. Aconcio, De methodo e Opuscoli re7igiosi e filosofici, ao cuidado de G. Radetti, Florença, 1944; Id., Stratagematum Satanae Libri VIII ao cuidado de G. Radetti, Florença, 1946.§ 373. Sobre a Contra-Reforma: E. GOTHEIN, Reformation und Gegenreformation, Mónaco, 1924 (trad. ital.). -As Disputaciones de Belarmino foram editadas em Ingolstadt, 3 vols., 1586, 1588, 1592; nova ed., Mogúnci,a, 1848.-As Disputationes metaphysicae de Suarez foram editadas em Salamanca em 1597 e em Mogúncia por várias vezes no século VII: o De legibus em Coimbra, em 1612. Edições completas das obras: Lião, 1632 segs.; Veneza, 1740-51; Paris, 1856-61. -A obra de Luigi Molma sobre o livre-arbítrio foi editada em Antuérpia em 1535.-B. SPAVENTA, La politica dei gesuiti nel secolo XVI e nei XVII, Milão, 1911.As obras de Graciano foram editadas em Antuérpia em 1669. O Oráculo foi traduzido em todas as linguas, sendo o maior número de traduções em italiano. Ver a trad. de G. Marone com introdução e bibliografia, T-jaxwÀano, 1930.233

vi

RENASCIMENTO E NATURALISMO374. RENASCIMENTO E NATURALISMO: MAGIA, FILOSOFIA NATURAL; CIÊNCIAO renascer do homem, que é o anúncio o a esperança do Renascimento, é orenascer do homem no mundo. A -relação com o mundo é reconhecida como parteintegrante, constitutiva do homem. A elareza que o homem alcança noRenascimento no que respeita à natureza própria é também ao mesmo tempoclareza no que Tespeita à solidariedade que o lága ao mundo: o homemcompreende-se como parte do mundo, distingue-se dele por reivindicax aoriginalidade própria, mas ao mesmo tempo radica-se nele e reconhece-o

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como oseu próprio domínio. O tema do homem como natureza média, tema comum aoshumanistas, platónicos, aristoté-235

licos e magos, exprime precisamente a conscí~ com que o homem se reconhece essencialmente inserido no mundo e a sua decisão de se servir da sua posição privilegiada, semelhante à de Deus, para fazer do próprio mundo o seu reino. Revela-se portanto indispensável uma investigação que vise a realizar este domínio. O estudo do mundonatural já não se apresenta no Renascimento como a fuga do homem à interioridade própria ou como inútil distracção da meditação sobre o destino da pessoa.A investigação natural começa a aparecer como um instrumento indispensávelpara a realização dos fins humanos no mundo, já que só por ela o homem podeobter os meios de tal realização. A invesitigação natural é de facto a parteprimeira e fundamental da filosofia do Renascimento. Podem dist@nguir-se nelatrês aspectos ou fases, que são a magia, a filosofia da natureza e a ciência;mas estes três aspectos, que caracterizam a investigação especulativa oupositiva da natureza no século XVI, são preparados pelo humanismo e pelo aristotelismo do século XV. Pelo humanismo na medida em que não só tornou.possível a disponibilidade dos testes da ciência antiga mas também insistiuna naturalidade do homem e por isso no seu vital interesse em conhecer omundo natural. Pelo aristotelismo, que pretendeu explicitamente promover orenascimento da investigação natural, como havia sido praticada porAristóteles, e que veio pôr a claro o fundamento que a tornou possível: oconceito da ordem necessária do mundo.

A magia renascentista é caracterizada por dois pressupostos: 1) a universalanimação da natureza,

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que se verifica ser movida por forças intrinsecamente semelhantes às queactuam no homem, coordenadas e harmonizadas por uma simpatia universal; 2) a

possibilidade que assim se oferece ao homem de penetrar de golpe, com meiosambíguos ou vãolentos, nos mais ocultos recessos da natureza e de lhesconseguir dominar as forças com lisonjas e

encantamentos, isto é, com os mesmos meios com que se atrai a si um seranimado. Com estes dois pressupostos, a magia vai à procuxa de fórmulas ouprocessos miraculosos que sirvam de chave para osmais impenetráveis mistérios naturais e ponham o

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homem de golpe na posse de um poder ilimitado em relação à natureza.A filosofia natural, que já se havia manifestado nalguns dos própriosdefensores da magia, mas se

afirmara pela primeira vez em Telésio, abandona este último pressuposto. Anatureza é no entanto sempre considerada como uma totalidade viva, masconsidera-se regida por princípios próprios; e a doscoberta destes princípiostorna-se a tarefa da filosofia. Renuncia-se à quimérica pretensão de penetrarviolentamente nos mistérios naturais, e até se negam tais mistérios; asforças naturais estão patentes e revelam-se na experiência, só é necessárioreconhecê-las e secundá-las. A filosofia da natureza destrói as pontes, sejapela magia, seja pelo aristotelismo: pretende penetrar na natureza porintermédio da própria natureza, prescindindo de hipóteses e de doutrinasfictícias. E assim abre o caminho à verdadeira e própria investigaçãocientífica.

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A ciência é o último o mais maduro resultado do naturalismo do Renascimento.A redução naturalística é conduzida ao seu ponto extremo: a natureza nada tema ver com o homem, nem com a alma nem com a vida; é um conjunto de coisas quese movem mecânicamente; e as leis que regulam * mecanismosão as damatemática. A ciência reduz * natureza à pura objectividade mensufrável,separa-se do homem e torna-a estranha à sua constituição o aos seusinteresses: e só assim a abre verdadeiramente e dela faz o regnum hominis.

§ 375. RENASCIMENTO E NATURALISMO: A MAGIAA primeira figura de mago é a de Johann Reuch,lin ou Capnion (assim grecizouele o seu nome), que veio a dedicar-se à magia através da Cabala. Nascido a22 de Fevereiro de 1455 em Pforzheim, morto em Tubinga em 1522, ReuchImviajou em Itália, onde conheceu Pico de Mirândola pelo qual foi provàvelmentedirigido para os estudos cabalísticos. Em seguida ensinou língua hebraica egrega em Tubinga. As suas obras principais são Capnion sive de verbo mirificoe De arte cabalistica. -0 homem está situado entre dois mundos, o mundosensível e o suipra-sensível; o como participa com o corpo do mundo sensível,e com a alma do mundo supra-sensível, assim o seu conhecimento se dirige aomesmo tempo a um e a outro. O conhecimento do mundo sensível atinge-o eleatravés dos sentidos, da fantasia, do juízo e da razão. o conheci-238

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mento do mundo supra-sensívei a~ elo ~ da mente (mens). A mente é portantosuperior à razão; é o olho da alma para o mundo supra-sensí. vel; mas Como oOlho corpóreo vê o sol e as coisas iluminadas pelo sol só por meio das luzesdo sol, assim a mente vê o divino só através da luz divina, que ela encontraimediatamente em si mesma (De arte cab., III, fol. 52). Esta imediatarevelação de Deus à mente é a fé, a qual, portanto, é indispensável para oconhecimento do mundo sobrenatural e divino (De verbo mir., I, fol. 11 b). Arazão é inútil para tal fim e o procedimento silogístico, do qual se serve, éinsidioso e contrário, e de modo nenhum uma ajuda, ao conhecimento divino (Dearte cab., 1, fol. 24). Por isso Reuchlin vê na Cabala, entendida como umaimediata revelação divina, a única ciência possível da divindade e a únicavia para aceder a ela. "A Cabala, diz Reuchlin, é uma teologia simbófica naqual não só as letras e os nomes, mas as próprias coisas são sinais dascoisa,,s" (lb., M, fol.51 b). A arte cabalística é o meio para chegar ao conhecimento dessessímbolos. Esta arte eleva o homem do mundo sensível ao supra-sensível: e pelasubordinação em que o primeiro se encontra em relação ao segundo, capacita-oa operar efeitos miraculo que espantam o vulgo. O cabalísta é também umtaumaturgo; e especialmente o nome de Jesus torna-o capaz de realizarmilagres (De verbo mir., III, fol. 52). A condição necessária é apenas umaintensíssima fé, pois que não é o cabalista que opera poir si o milagre, massim Deus que o real=

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através dele pela força desse nome miraculoso (Ib., I, foi. 22).

O carácter prático da magia é acentuado por Cornélio Agripa de Nettesheim,nado em Colónia em 1486, e falecido em Grenoble em 1535. Na sua obrafundamental De oculta philosophia, Agripa, tal como Pico de Mirândola eReuchlin, conformemente à Cabala, admite três mundos: o mundo dos elementos, o mundo celeste e o mundo inteligível. Estes três mundos estão ligados entre si de tal modo que a virtude do mundo superior flui até aos últimos graus do mundo inferior, dissipando a pouco e pouco os seus raios, e pelo canto deles os seres inferiores chegam através da via dos seres superiores até ao mundo supremo. Tal como uma corda tensa que, tocada num ponto, logo vibra toda, assim o universo, quando tocado num ponto dos seus extremos, ressoa também no extremo oposto (De oec.phil., 1, 1 e 37). A via deste influxo que liga o universo o garante a acçãorecíproca das suas partes é o

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espírito através do qual a alma do mundo opera emtodas as partes do universo visível (Ib., 1, 14). Ora, o homem está situadono ponto central dos três mundos e recolhe em si, como um inicrocosmo, tudo oque está dísseminado nas coisas (lb., 1, 33). Esta situação permite-lheconhecer a força espiritual que mantém coeso o mundo e servir-se deJa paraoperar acções miraculosas. Assim nasce a magia, que é a ciência mais alta ecompleta porque é a que submete ao homem todas as potências omitas danatureza (lb., 1, 1, 2). A ciência e a arte do mago incidem sobre estes trêsmundos: há aqui uma magia

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natural, uma magia celeste e uma magia refigiomsa ou cerimonial. A primeiraensina a servir-se das coisas corpáreas para efectuar acções miracul~; asegunda vale-se das fórmulas da astronoinia e dos influxos dos astros paraoperar milagres; finalmente, a terceira, com o mesmo fim, estrema assubstâncias celestes e os demónios. -Nos últimos anos da sua vida, Agripaacentuou o carácter místico da sua especulação; e no De vanitate etincertitudine scientiarum (1527), condenou em bloco a ciência, considerando-a uma verdadeira peste da alma e apontando a fé como a única via de salvação.Mas, na r"-idade, permaneceu fiel à magia, que havia exaltado primoiro,defendendo ainda a utilidade dela para a sabedoria; e voltou a publicar, em1533, isto é, dois anos antes de morrer, o De oculta philosophia.

Uma das mais famosas figuras de magos foi Teofrasto Paracelso. O seu nome oraFilipe Bombast de Hoenheim, que mudou para Filipe Aurélio TeofrastoParacelso. Nasceu a 10 de Novembro de 1493 em Einsiodeln, na Suíça, foimédico e cirurgião, ouantes reformador da medicina em sentido mágico. Morreu em Salisburgo, a 24 deSetembro de 1541. Teofrasto é um mago; mas algumas exigências que ele apontoufazem dele um precursor do método científico. O homem foi criado paraconhecer as

acções miraculosas de Deus e para operar acções semelhantes: a sua tarefa éportanto a pesquisa. Mas a pesquisa deve aliar a experiência à ciência parachegar a um conhecimento verdadeiro e seguro. Teoria e prática devem procederparalelamente e de acordo, pois que a teoria não é mais que prática espe-241

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culativa e a prática não é senão a teoria apE cada (De nwrb. caduc., 1, p.616). Não se pode fazer fé num

experimento desprovido de carácter científico; masquem possui a ciência, além da prática, sabe também porque um fenómeno sedeve verificar de um modo ou de outro e pode evitar as suas consequências(Labyr., 6). A investigação, entendida como unidade da teoria e daexperiência, será a palavra da nova ciência- Mas tal pesquisa tem em

Teofrasto um carácter mágico. O princípio que deve guiá-la é acorrespondência entre o macrocosmo e microscosmo. Se queremos conhecer ohomem, isto é, o microcosmo, devemos voltar-nos para o macrocosmo, isto é,para o mundo. A modicina que tem como escopo conhecer o homem, para lheconservar a saúde e libertá-lo das doenças, deve fundar-se em todas as ciências que estudam a natuireza do universo. Esta é a reforma da medicinaque Teofrasto tentou o que se, por um lado, lhe proporcionou o ódio e asperseguições dos colegas médicos, o capacitou, ao que se conta, a operarcuras milagrosas. A medicina assenta em

quatro colunas, que são a teologia, a filosofia, a astronomia e a alquimia.Todas estas ciências possuem carktor mágico. A teologia serve ao médico parautilizar o influxo divino, do qual tudo depende; a astrologia serve-lhe parautilizar os influxos celestes, dos quais dependem as entermidades e porconseguinte as curas respectivas; a alquimàa serve-lhe para conhecer aquinta-essência das coisas e para a a@Plicar nos tratamentos. O mago, com aforça da sua fé e da sua imaginação, exerce sobre o

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espírito dos homens, ou sobre o espírito da natureza, um influxo que suscitapotências desconhecidas e ocultas e chega assim a operar coisas consideradas impossíveis (Dephil. occ., 11, p. 289). Pelo fiat divino nasceu em primeiro lugar a matériaoriginária (yliaster ou hyaster) constituída por três princípios materiais(três como a trindade divina): o enxofre, o sal e o mercúrio. Estesprincípios são as specie prinúgenie da matéria e poi eles são constituídos osquatro elementos do mundo

e em geral todos os corpos da natureza (Meteor., p. 72). A força que move oselementos é o espírito animador ou Archeus. Assim como todas as coisas são

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compostas por três elementos, assim as forças que os animam são constituídaspelos seus arcanos, isto é, pela actividade inconsciente e instintiva doArcheus (Ib., p. 79 segs.). A quinta-essência é o estrato corpóreo de umacoisa obtido mediante a análise artificial da coisa mesma e separando oelemento dominante dos outros elementos que estilo m@;&turados a ela. Aquinta-essência não é um quinto elemento, como o nome diz, mas um dos quatroelementos e precisamente aquele que domina a

constituição da coisa e exprime a sua naturezafundamental. Nela estão ocultos os arcanos, isto é, a força operante de umminera@ de uma pedra preeiosa ou de uma planta; e dela, portanto, sedeve servir a medicina (que pela alquimia toma conhecimento dela) para operar as curas (De myster. nat., 1, 4).Em Itália, o tema da simpatia univem1 das coisas, que é o fundamento damagia, foi tratado

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por Jerónilmo Fracastoro (1478-1533) que foi médico, astrónomo e poeta. Nasua obra De sympathia et antipathia, explica o universal influxo recíprocodas coisas servindo-se da doutrina empedocleana da atracção entre ossemelhantes e da repugnância entre os dissemelhantes. Mas para explicar amodalidade deste influxo, Fracastoro recorre à doutrina atomística e aosfluxos dos átomos. Ele firma-se no pri@ncípio aristotélico de que nenhumaacção pode ocorrer senão por contacto; assim, quando os semelhantes não setocam e não se movem por natureza um para o outro, é necessário, paraexplicar a sua simpatia, que de um ao outro se verifique um fluxo de corpúsculos,que transmita a

acção (lb., 5).Uma figura de médico mago que se assemelha à de Paracolso é Jorónimo Cardano,nascido em Pavia em 1501 e professor de medicina em Pádua e Milão; morreu emRoma em 1576. Na sua autobiografia De vita propria, apresenta-se a si mesmocomo uma personalidade excepcional e demoníaca e relaciona os casos da suavida com forças arcanas e prodigiosas. As suas obras mais notáveis são o De subtilitate (1552), oDe varietate rerum (1556) e os Arcana aeternitatis (póstumo). Trata-se deescritos desconexos e ricos de digressões; uma espécie de encielop6dia semnenhum plano unitário. Ele admite apenas três elementos: o ar, a água e a

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terra, e nega que o fogo seja um elemento. Os princípios da geração são ocalor celeste e a humida,de terrestre; o seco e o frio são apenas privações.O calor celeste é o único princípio vital uni-244

versaL Ele é a alma que dá vida a todas as coisas do mundo e a via daquelasimpatia universal que liga todas as coisas naturais, desde os corposcelestes até ao mais baixo grau do mundo corpóreo (De rer. variet., 1, 1-2).O homem é o grau mais alto das coisas terrestres. Ele não é uma espécie deanimal, assim como os animais não são uma espécie de plantas. Foi criado paraum triplo fim: conhecer Deus e as coisas divinas; servir de mediador entre odivino e o terreno; e, enfim, dominar as coisas terrestres e servir-se delaspara sua utilidade (De subtil., X1, fol. 302). Para atingir estes fins,foram-lhe dadas três faculdades: a mente para o conhecimento do divino, a razão para conhecer as coisas mortais e a mão paira utilizar as coisas corpóreas. A mente está acima das potências sensíveis, é independente da matéria e portanto imortal (De rer. variet., VIII, 40 segs.). A mente, todavia, não é individual mas única em todos os homens:Cardano aceita neste ponto o averroísmo Ub., VUI, 42).Um mago que dava grande importância à observação da natureza foi GiovanBattista Della Porta, nascido em Nápoles em 1535, falecido ern 1615, autor decomédias e cultor de óptica, a ponto de ter disputado a Galileu a descobertado telescópio. Na sua obra principal Magia naturalis sive de miraculis rerumnaturalium (1558), distingue da magia diabólica, que se vale das acções dosespíritos imundos, a magia natural, que é, ao invés, o ápice do saber humano,o coroamento da filosofia natural. Esta não ultrapassa os limites das245

causas naturais, e as opera~ que efectua parecem maravilhosas só porque as suas causas permanecem ocultas (Mag. nat. 1, 1). A obra é, W11 real-idade, uma recolha desordenada de factos e transmutações miraculosas, que Porta se recusa a submeter a exame com o pretexto de que "aqueles que não fazem fé nos milagres da natureza tendem a destruir toda a filosofia" (Ib., pref.). O mesmo amor do maravilhoso leva Porta a fundar em Nápoles uma "Academia dos segrodos" na qual se podia entrar sob a condição de comunicar algum maravilhoso arcano, superior à inteligência do vulgo. Lirni@ta-se, portanto, a reagrupar os fenómenos e os casos miraculosos segundo tipos gerais como a si,mpatia e a antipatia, as acções e as reacções dos quatro elementos e as influências astrais, sem tentar dar uma explicação deles: daí que Campanella (Del senso delle cose, IV, 1), embora inspirando-se nele, lhe reprove o haver tratado a magia apenas do ponto de vista histórico ou descritivo e queira encontrar (como veremos, § 384) um fundamento dela na universal animação das coisas.

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Está ligado a Paracelso, Jean Baptiste Helmont, nascido em Bruxelas em 1577 efalecido em 1644. Helmont admite como elementos fundamentais apenas a água eo ar, excluindo o fogo e a terra: a água constitui as coisas terrestres, o aré a matêria dos céus. A água é constituída de três espécies primigénias quesão o sal, o enxofre e o mercúrio.O espírito vital ou aura vital é a força animada que move, anima e ordena oselementos. Ele não age cegamente, mas em virtude de uma ideia ou modelo,

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em conforraidade com o qual plasma os gêrnw6 ou os desenvolve para constituiras coisas. Há pois uma causa externa (causa excitans) que dispõe a matériapara a geração e facilita a acção da aura vital.-A magia é, segundo Helmont,a arte de operar milagres mediante a aura vital. Todas as coisas exercementre si uma simpatia natural que condiciona, a sua acção recíproca. Anatureza inteira é mágica e age màgicamente. Não é de admirar que o homem, que é a imagem de Deus, soja, também ele, dotado de força mágica. Ma se se aceita a magia, Hehnont refuta a astrologia. Os astros não exercem nenhuma influência sobre a formação, sobre os costumes e os destinos dos homens: não determinam nem predestinam (De vita longa, 15, 12). São antes os sinais dos acontecinientos que se verificam no futuro, no mundo sublunar; todavia, nenhuma predição certa se pode tirar deles, dado que não influem sobre tais acontecimentos.Concepções semelhantes às que acabamos de expor encontram-se na Philosophiamosalca do médico inglês Robert Fludd (1574-1637), que estudou em Oxford, masviajou longamente em França,1.ália e Alemanha. Como já indica o título da obra, a sua doutrina é deinspiração cabalística (fazia-se remontar a Cabala a Moisés). Fluddinterpreta a criação do nada como criação de uma matéria originária, que é aprópria essência de Deus, de modo que eni Deus as coisas são ab aeterno, nãona sua idealidade, mas na sua realidade indistinta e

indeterminada (complicada, no sentido de Cusano).247

A potência e a sabedoria de Deus relacionam-se entre si como a luz com as trovas. A sabedoria de Deus é Cristo, que é o princípio operante de todas as coisas o a única causa eficiente do mundo. A luta entre a luz e as trevas determina a simpatia e a antipatia de todas os coisas naturais, porque ela se encontra em todas, e também no homem, microcosmo que reproduz a natureza do macrocosmo e está em reciprocidade de acção com ele. Tal como os outros magos e cabalistas, Fludd admite três partes da alma huniana, a mente, a alma e o espírito: a mente é a imagem da Palavra divina; a alma é a imagem da mente; o espírito é a imagem da alma, e o corpo a imagem do espírito (Phil. mos.

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11, 1, 5).§ 376. A FILOSOFIA NATURAL: TELÉSIOA figura de Telésio marca uma viragem decisiva na filosofia do Renascimento.Pela primeira vez nasce, por obra dela, um naturalismo rigoroso, igualmentealheio às velhas concepções aristotêIJeas e às quiméricas pretensões damagia, uma concepção que não vê na natureza senão forças naturais e pretende explicá-la comos seus próprios princípios. Bernardino Telésio nasceu em Cosença em 1509,estudou em Pádua e em 1535 doutorou-se. Em 1565 publicava em Nápoles osprimeiros dois livros da obra De rerum naturam juxta propila248

principia; mas só em 1585, três anos antes de morrer, publicava a obracompleta em 9 livros na qual também eram desenvolvidos e refeitos os doisprimeiros livros. Faleceu, em Cosença em Outubro de1588. Dedicara-se também a investigações parti. culares, destinadas aexplicar fenómenos naturais, como o atestam certo número de breves escritos,alguns dos quais publicados após a sua morte (De terraemotibus, De colorumgeneratione, De mari, De cometis, De iride, Quod animal universum ab unicaanimae substantia gubernatur contra Galenum, De usu respirationis, Desaporibus, De somnio, De fulmino, Quae et quomodo febres faciunt, Solutiones Thylesii). -Estes escritos menores são importantes porque demonstram que o interessedominante de Telésio incidiu exclusivamente nos problemas naturais. Elepróprio é consciente de que a sua investigação deveria ser conduzida muitomás para lá do ponto a que pôde chegar "a fim de que os homens possam não sósaber tudo, mas também exercerem o seu poder sobre tudo" (De rer. nat., 1,17), e desculpa-se aduzindo não ter podido fazer mais, obrigado como foi afilosofar apenas nos últimos tempos da vida e em meio de muitos impedimentos(que, ao que sabemos, foram de natureza económica). Telésio conseguiu contudoestabelecer com grande evidência os princípios de um novo naturalismoempirista. A natureza é um

mundo em si, que se rege pelos seus princípios intrínsecos e exclui toda aforça metafísica. Ela é completamente independente de tudo o que o

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homem pode -imaginar e desejar, subtrai-se a todo o arbítrio e deve serreconhecida como aquilo que é. Telésio não teiri. outra pretensão senão a dereconhecer a nua objectividade da natureza; assegura que as próprias coisas,

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quando são rectamente observadas, manifestam a sua natureza e os seuscaracteres (Ib., proem.). Esta autonomia da natureza é o fundamento do seumétodo, que se pode chamar o da redução naturalística, porque tende aencontrar por toda a parte o principio explicativo natural, excluindo todosos outros. É pr"amente deste método que resulta o seu omipirismo. O homem paxa conhecer a natureza tem apenas de fazer falax, por assim dizer, a própria natureza, fiando-se na revelação que ela lhe faz de si na medida em que ele é parte dela. O homem pode conhecer a natureza só na medida em que ele próprio é natureza. Daqui deriva a preeminência que a sensibilidade possui como meio de conl=imento: o homem como natureza é sensibilidade.Portanto, "aquilo que a natureza revela" e "aquilo que os sentidostestemunham" coincidem perfeitamente. A sensibilidade não é mais do que aautorevelação da natureza àquela parte de si que é o homem. Perante estaatitude fundamental de Telésio, os

resultados da sua filosofia passam para segundo plano. O hilozoismo queTelésio vaí buscar aos

primeiros físicos gregos é já um limite da sua posição. Ele impede-lhe derealizar até ao fundo aquela autonomia do mundo natural, que apenas a ciênciade Galileu consegulirá estabelecer de250

modo definitivo. Mas se a ciência galficica se afa~ por completo daorientação animista que Telésio tem em comum com as doutrinas mágicas do seu ten , parte todavia do mesmo pressuposto de autonornk do mundo natural e, portanto, utiliza a grande afirmação de Telésio.§ 377. TELÉSIO: OS PRINCIPIOS GERAIS DA NATUREZAPara determinar os princípios gerais da natureza, Teàésio parte de umaobservação assaz simples: o sol é quente, luminoso, ténue e móvel; a terra éfria, obscura, densa e imóvel. O sol e aterra são, portanto, as sedes de dois princípios agentes, o calor e o frio: ocalor dilata, de facto, as coisas e torna-as mais leves e adaptadas aomovimento, o frio condensa-as, torna-as mais pesadas e, portanto, imóvetis. Ocalor e o frio são princípios incorpóroos; têm, portanto, necessidade de umamassa corpórea que possa sofrer a acção de iun ou do outro; esta massacorpórea, provida de inércia, é o terceiro principio natural. Todos osfenómenos do mundo são determinados pelas acções opostas do calar e do friona massa corpórea. Mas a fim de que esta acção possa verificar-se é necessário que os dois princípios agentes sejam providos de sensibilidade. Defacto, se se combatem entre si, é necessário que pere@opoionem as ilmpre~próprias e as acções do outro, e precisamente que cada251

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um percepcione com prazer as impressões e as acções pelas quais é beneficiado e mantido, e com dor as que possam prejudicá-lo ou destruí-lo. Todas as coisas da natureza são, portanto, dotadas de sensibilidade. Não é necessário, todavia, que todas sejam providas dos órgãos de sentido que são próprios dos animais. Tais órgãos são apenas vias e aberturas através das quais as acções das coisas extern,as chegam mais fàcilmente à substância sentiente; e se são necessárias aos animais, que são compostos de diversas partes, não o são para os outros entes, que não estão revestidos de partes protectoras (De rer. nat., 1, 6).Dos dois princípios agentes, o calor é o verdadeiro princípio activo: aterra, na qual actua o

frio, é antes a matéria originária dos entes produzidos. Além do sol e datorra, não existem outros elementos originários; Telésio nega que o sejam aágua e o ar (Ib., 1, 12). As duas naturezas agentes bastam, segundo Telésio,para explicar os movimentos dos corpos, a vida e a sensibilidade de todos osseres naturais. Seria necessária uma indagação quantitativa para determinar aquantidade de calor suficiente para produzir determinados efeitos. Telésiomanifesta o desejo de que outros possam, empreendê-la para tomar os homensnão só sapientes, mas também poderosos (Ib., 1, 17); e é significativo quetenha exprimido tal exigência, embora declarando que a não podia satisfazerele próprio. Decerto que a sua física quantitativa eanimista tornava impossível satisfazê-la. Mas ela constituiria a base daciência de Galilou.

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Telésio entrelaça na exposição dos princípios da sua física a crítica àfísica arisítotélica. Esta cTítica investe todos os pontos da sua exposição,mesmo os funda-mentais. Aristóteles considerava Deus como o motor imóvel docéu. Telésio sustenta que a

acção de Deus não se pode limitar a explicar um facto determinado ou umdeterminado aspecto do universo. Deve ser, pelo contrário, reconhecida comoabsolutamente universal e presente em todos os aspzctos do universo comofundamento ou garantia daquela oTdem que assegura a conservação de todas as coisas. Nenhuma raça humana, nenhuma esp6cie animal, nenhumente natural poderia conservar-se por muito tempo sem a acção de uma potênciasuperior, visto que os homens, animais e os ventos naturais se destruiriammàtuamente pela luta contínua a que se abandonariam sem remédio, se nãofossem governados por umúnico ente que provisse à sua salvação; por isso a

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conservação deles supõe o governo de um seromnipotente e perfeito (Ib., IV, 25). Deus, portanto, não pode ser invocado como causa directa e imediata de um qualquer evento natural; é simplesmente o garante da ordem do universo. E, como tal, a sua acção idontifica-se com a das forças autónomas da natureza. Telésio, por um lado, mantém firmemente o princípio da autonomia da natureza contra a doutrina aristotélica do primeiro motor, na qual vê uma negação de tal princípio; por outro lado, como fará Descartes, vê na acção divina a garantia da própria ordem natural.253

§ 378. TELÉSIO: O HOMEM COMO NATUREZA E COMO ALMA IMORTAL

Telésio tentou a -redução naturalistica da vida intelectual e moral do homeme fez desta redução o fundamento e a justificaç@@o do valor de uma ede outra. Precisamente na medida em que o homem é parte ou elemento danatureza, a natureza reveIa-se ao homem e o conhecimento humano é garantidona sua validade. Precisamente na medida em que o homem é parte da natureza, asua conduta moral reporta-se a um princípio autónomo e assim a vida moral éjustificada no seu valor. Já se disse como todo o conhecimento se reduz,segundo Telésio, à sensibilidade. E, de facto, a alma humana não é senão umproduto natural, como a de todos os outros animais; é o espírito produzidopelo gérmen. Veremos então que o homem também é provido, segundo Telésio, deuma alma imortal e infundida directamente por Deus; mas esta alma, que é osujeito da vida religiosa, não tem nenhum papel na viida natural do homem. Aparte predominante que pertence à sensibifidade é devida aofacto de que, através dela, o homem se figa à natureza e por ela é, elepróprio, natureza. Na verdade, através da sensibilidade, a acção das coisasatinge o homem. Esta acção verifica-se por contacto; e, portanto, o tacto tema prioridade sobre todos os

outros sentidos, po@s. que é o único modo por que se pode verificar umamodificação do mpírito, em consequência da acção das coisas externas (De254

rer. nat., VII, 8). Todavia, a sensação não se reduz nem à acção das coisasexternas nem à modificação que ela produz no espírito: implica também apercepção (perceptio) que o espírito tem de uma e de outra. Que o espírito seja modificado pelas coisas não é facto que determine a sensação, se de -tal modificação não se tiver consciência. O sensualismo de Telésio não é de modo algum um matenalismo. A percepção é consciência, provocada decerto pela acção da coisa e pela modificação que ela produz, mas não redutivel a tais faotores materiais. (Ib., VII, 3).À sensibilidade assim entendida se reduz a inteligência. Esta integra e

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substitui a sensibilidade, que tem sempre um campo de acção limitado. Uma vez que nem sempre todas as qualidades de uma coisa são presentes à sensibilidade, e que, pelo contrário, muitas ~es alguma delas p=anece, oculta ou desconhecida, o perceber esta última, afirmando a sua presença, embora no momento ela não se revele, é o acto específico da inteligência (lb., VII, 3).Este acto é um acto de valoração ou de remeinoração e é por isso, também ele,sensibilidade, embora imperfe;ta e analógica. A inteligência não é, segundoTelésio, senão o substituto mais ou menos adequado da sensiNlidade. Todos ospnncípios da ciência não são mais do que generailizações de percepçõessensíveis. Definindo o circulo o o triângulo, a geometria não faz senãoatribuir-lhes, a eles e à sua espé cie, aquilo que o sentido percebe como próprio do círculo, do triângulo e da espécie a que p ~em. Outras

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qualídades são, a3 invés, postuladas porque não são diversas das que sepercepcionam nem lhes repugnam e são, pelo contrário, similares e quaseidênticas a elas. Outros princípios, os axiomas, derivam, pois, directamentedos sentidos, os quais, por exemplo, nos testemunham que o todo é maior doque qualquer das partes e que duas coisas iguais a uma terceira são iguaisentre si (Ib., VIII, 4). A validade das matemáticas é assim inteiramentefundada na experiência sensível. Telésio afirma, todavia, a superioridade dasciências que mais directamente se ligam à experiência. A matemática procedepor meio de sinais e indícios, mas, por exemplo, a evaporação da água pelaacção do calor não se faz notar por um sinal qualquer mas

pela própria natureza, isto é, pelo calor e pela água percebidos ereconhecidos pelos sentidos (Ib., VIII, 5). Não porque as matemáticas sejammenoscertas; também elas extraem os seus princípios dos sentidos ou da analogia com as coisas percebidas pelos sentidos Ub., VIII, 5).Assim, a vida natural do homem é reconduzida por Telésio a princípiospuramente -naturais. O bem supremo é a conservação do espírito no

mundo. Só na medida em que se podem realizar os movimentos necessários à suaconservação, ohomem experimenta prazer: o prazer é o sentido da conservação, a dor osentido da destruição. Isto não implica que prazer e dor devam ser assumidoscomo móbiles da acção moral. Faz parte da ordem do mundo, estabelecido egarantido por Deus, que todo o ser tenda à sua conservação. A conservação256

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própria é portanto o fim moral supremo para homem; e uma acção que sejanecessária para ck deve ser também realizada, mesmo que seja m~ incómoda, edeve ser considerada boa até que sirva a tal fim (Ib., IX, 4). A valoraçãodas ac~ respeitantos ao fim da conservação é o fundamento da virtude. Amedida que o homem impõe às paixões deriva precisamente da exigência de evitar os excessos que possam debiEitá-lo e destruí-lo: a virtude mesma não é portanto outra coisa do que a condição necessária para a conservação do homem no mundo (Ib., IX, 4). Virtude e vício não são, portanto, como queria Aristóteles, hábitos, mas faculdades naturais que o exercício reforça apenas porque os concentra o os torna mais puros (Ib., lX, 3 1).Telésio realizou assim a redução naturalística de toda a vida intelectual emoral do homem. Viu-se como a pró pria divindade não é para Telésio um factorextranatural. Sê-lo-ia no caso em que interviesse na natureza determinando umfacto qualquer que pudesse explicar,se únicamente em virtude da suaintervenção. Mas tal não acontece. Opondo-se a Apistóteles, exclui até adirecta acção motora de Deus. Deus não faz só isso; Deus faz tudo. Masprecisamente porque faz tudo, a sua acção não é presente num lugar mais doque em outro e é apenas a condição suprema da acção uniforrne e

normal dos princípios naturais. Em Deus, Telésio vê apenas (como faráDescartes) o garante da ordem e da uniformidade da natureza. Há, todavia, umelemento que está na natureza mas não per-257

tence à natureza: e é a vida religiosa da alma, a

aspiração do homem ao transcendente. O sujeito dela não pode ser o espíritoproduzido pelo gérmen, a alma que o homem tem em C(YMUM comos outros animais e que nele se diferencia apenas por uma pureza maior, e porisso por uma maior eficiência operativa. O sujeito da vida religiosa é umaalma directamente criada e infundida por Deus. A existência dela não é apenasum dado religioso, mas pode ser reconhecida com razões puramente humanas. Ohomem, de facto, aspira aconhecer não só as coisas que servem para a suaconservação, mas também a substância e as operações dos entes divinos e deDeus. Aspira, além disso, a um bem que está para lá de todo o bem presente ecrê numa vida futura mais feliz do que esta. Julga infelizes os maus, mesmose dispõem em abundância dos bens do mundo e considera felizes apenas oshomens bons. E, enfim, crê que no além será restabelecido aquele equilíbriomoral, que muitas vezes não se realiza no mundo, onde os melhores talvez

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sofram e os piores abundam de todos os bens Ub., V, 2). Esta alma divina échamada por Telésio forma superaddita.- ela contribui indubitàvelmente paradar à alma humana aquela grande pureza e facilidade de movimento que é asua característica em relação à alma dos animais (Ib., VII, 15). Mas nenhuma função específica lhe atribui Telé sio na vida intelectual e moral do homem.No homem, ela não pode agir senão através do espírito pelo gérmen, sem o qualnão poderia conhecer os movimentos das coisas percebidas e,258

através deles, da própria natureza das coisas. E a

própria vida moral em nada depende dela: até umleão não se subtrai ao perigo pela fuga mas vai voluntàriamen,te ao encontro da morte, para não se mostrar tímido ou degenerar (Ib., V, 40). A forma "superaddita" dá no entanto ao homem a liberdade que lhe é própria: a escolha entre o bem natural e o bem sobrenatural; e, portanto, constitui a característica original do homem perante todos os outros seres da natureza.Aqui se vê que o reconhecimento da alma imortal como forma "superaddita" nãoé em Telésio uma concessão às crenças religiosas, mas o reconhecimento daoriginalidade da existência humana relativamente aoresto da natureza: só ela torna, de facto o homem irredutível aos outrosentes naturais, o subtrai ao determinismo e o dispensa da escolha entre otempora@l e o eterno.

Este limite da redução naturalística não consti- tui uma ruptura nonaturalismo de Telésio. Na realidade, o seu sistema desenvolveu-se de modo a nãorequerer continuações ou integrações de ordem metafísica. As continuações eintegrações que Telésio expressamente requereu e desejou, lamentando-se denão as ter fornecido ele próprio, são todas de ordem física. O interesse deTelésio é mais científico do que filosófico. O seu continuador natural éGalileu. Bruno e Campanella representam por isso um desvio do rumo tomado porTelésio, pois tentam o

enxerto do seu naturalismo no velho tronco da metaiísica neoplatónica emágica.

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§ 379. BRUNO: O AMOR DA VIDA

Giordano Bruno retorna de facto ao neoplatonismo e à magia. Nasceu em 1548 emNola. Aos15 anos entrou para o convento dominicano de Nápoles, onde, graças às

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suasexcepcionais qualidades de memória e de engenho, foi considerado um meninoprodígio. Mas aos 18 anos as primeiras dúvidas acerca da verdade da religiãocristã levaram-no a chocar-se com o ambiente eclesiástico, e, alguns anosdepois (1576), foi obrigado a refugiar-se em Genebra, depois em Toulouse e emParis. Nesta cidade publicou, em 1582, a sua comédia Candelaio e o seuprimeiro escrito filosófico De umbri sidearum, que dedicou ao rei Henrique111. AE obteve os primeiros êxitos, não como filósofo, mas como mostre daarte luliana 1 da memória, em que precisamente se inspira De umbtis. De Parispassou-se em1583 para Inglaterra, onde ensinou em Oxford e travou relações com a corte darainha Elisabeth. A este período pertencem os diálogos italianos e tambémalguns dos poemas latinos (o De immenso) que terminou em seguida. Regressadoa Paris, foi obrigado a ir-se de lá depressa por causa da hostilidade dosambientes aristotélicos, que àsperamente atacara. Foi então para a Alemanha(1586) e aí ensinou em Marburgo, Wittenberg e Francoforto do Meno, onde1 Relativa a Raimundo Lúlio, escritor e alquimista espanhol. (N. do T.)260

terminou os seus poemas latinos. Depois aceitou o convite do patrício,veneziano Giovanni Mocenigo, que desejava ser instruído por ele na artemágica, e dirigiu,se para Veneza, julgando-se a salvo sob a protecção daRepública. Mas, denunciado por Mocenigo, foi preso a 23 de Maio de 1592 pela Inquisição de Veneza. Bruno submeiteu-se. Reconhecia a legitimidade da religião como guia da conduta prática, sobretudo daqueles que não podem ou não sabem elevar-se à filosofia. A doutrina da dupla verdade, própria do averroísmo, que durante o Renascimento, se apoiava no sentido aristocrático da verdade, considerada património dos doutos, valeu-lhe como justificação para si mesmo. Mas em 1593 Bruno foi transferido para a Inquisição de Roma, onde permaneceu no cárcere sete anos. Aos repetidos convites para se retractar, opôs sempre uma recusa, afirmando não ter nada que retractar o a 17 de Fevereiro era queimado vivo no Campo das Flores em Roma, sem se ter reconciliado com o Crucifixo, do qual, nos derradeiros momentos, desviou o olhar.Os escritos de Bruno podem ser classificados do seguinte modo:l.'-A cornédia Candelaio (1582);2.'-Escritos lulianos: De compendiosa architectura et complemento artisLullii (1582); De lampade combinatoria lulliana (1587); De progresso etlampada venatorum logicorum (1587); Artificium perorandi (1587);Animadversiones circa lampadem

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lullianam (1587); De specierum scrutinio (1588); Lampas triginta statuarum (1590 ou 91).

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3.-Escritos nmernotécnkos: De umbris idea- rum (1582); Ars memoriae (1582);Cantus circaeus (1582); Triginta sigillorum explicatio (1583); Sigillussigillorum (1583); De imaginum compositione (1591).

4.'-Escritos didácticos que expõem as doutrinas de outros pensadores:Figuratio Aristotelici physici auditus (1586); Acrotismus camoeracensis (1586); Dialogi duo de F. Mordentis prope divina adinventione (1586); CLX articuli adversus huius temporis mathematicos atque philosophos (1588).5.'-Escritos mágicos: De magia et theses de magia; De magia malhematica; De principás rerum, elementis et causis; Medicina lulliana; De vinculis (comipostos todos eles entre 1589 e 1591).6'.-Escritos de filosofia natural: La cena de le ceneri (1584); De la causa,principio et uno (1584); De Vinfinito, universo e mondi (1584); Summaterminorum methaphysicorum (1591); De minimo (1591); De monade (1591); De iminenso et innumerabilis (1591).7. -Escritos morais: Lo spacio delia bestia trionfante (1584); Cabala delCavallo Pegaseo con l'aggiunta dell'Asino cillenico (1585), Degli eroicifurori (1585).

8.'-Escritos de eIrcunstância: Oratio valedictoria, pronunciada em Wittenberg em 1588; Oratio consolatoria, pronunciada em Hehnstedt em 1589.Já neste prospecto, que não compreende os títulos das obras que se perderam(entre as quais um tra-262

tado intitulado Das sete artes liberais), se evidencia a multiplicidade dosinteresses que agitaram a mente de Bruno. Mas é também evidente, a quem ler estas obras, que todos os seus múltiplos interesses têm uma nota fundamental comum: o amor da vida na sua potência dionisíaca, na sua infinita expansão.Este amor da vida toí rnou-lhe insuportável o convento, que ele denominou numsoneto "prisão estreita e negra" (Opp. it., 1, 285) e fez-lhe nutrir um ódioinextinguível por todos os pedantes, gramáticos, académicos, aristotélicosque faziam da cultura um

puro exercício livresco o desviavam os olhos da natureza e da vida. O próprioamor da vida o levou a representar em Candelaio com realismo cru o ambientenapolitano onde transcorrera a sua juventude; e, assim, fustigou na comédiaos pedantes, os crédulos e os intrujões, mas sem humorismo nemdesprendimento, antes com uma exasperada complacência pelo espectáculo datrivialidade e da raiséria, que apenas se explica pelo apego à realidadeviva, qualquer que ela seja. Do amor da vida nasce, enfim, o seu interesse

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pela natureza, que não arrefeceu nele, como em Telésio, num pacatonaturalismo; pelo contrário, exaltou-se num ímpeto lírico e religioso queamiúde encontrou expressão na forma poética. Bruno viu e quis a natureza bemviva, plenamente animada, e o sustentar esta universal animação, o projectara vida na infinidade do universo, constituiu o alvo mais alto do seufilosofar. Daqui a sua predilecção pela magia que se funda precisamente nopressuposto do pampsiquismo universal e quer conquistar pela força a natureza

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como ise conquista um ser animado; daí a renúncia à paciente e laboriosainvestigação naturalística que Telésio prospectara. Daí, ainda, a suapredilecção pela mnemotéctúca ou arte luliana, que tem a pretensão de tomar de assalto o saber e a ciência, de se assenhorear do saber com artifícios ranemónicos e de fazer progredir a ciência com uma técnica inventiva rápida o miraculosa que se adiante a passos largos à metódica e lenta investigação científica.O naturalismo de Bruno é, na r~ ade, uma religião da natureza: ímipetolírico, raptus nrentis, contractio mentis, exaltação e furor heróico. Porisso se dá melhor com o simbolismo numérico dos N"itagóricos do quecom a matemática cientifica, e melhor com as invenções miraculosas echarlatanescas de um Fabrício Mordente do que com as fórmulas rigorosas deCopérnico. A obra de Bruno marca uma paragem no desenvolvimento donaturalismo científico, mas exprime, na forma mais apaixonada e potente,aquele amor da natureza que foi, indubitávelmente, um dos aspectosfundamentai,s do Renascimento.

Isto toma possível entender a posição de Bruno relativamente à religião: umaposição que é, substancialmente, a de Averróis, mas sem o respeito que a deAverróis implicava relativamente à religião. Como sistema de crenças, estaaparece de facto a Bruno como repugnante e absurda. Ele não reconhece a suautilidade "para a instituição de povos rudes que devem ser governados" (De1'inf., in Opp. it., 1, 302), mas nega-lhe todo o valor. Ela é um conjunto desuperstições direotamente contrárias à264

GIORDANO BRUNO

razão e à natureza; Pois Pretende fazer crer que é vil o insensato o que àrazão parece excelente, que a lei natural é uma ignominia, que a natureza e a

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divindade têm fins diferentes; que a justiça natuTal e a dMna são contrárias;que a filosofia e a magia são loucuras; que todo o acto heróico é velhacariae que a ignorância é a mais bela ciência do mundo (Spaccio in Opp. it., H,207-208). Spaccio della bestia ttionfante, La cabala del Cavallo Pegaseo,L'asino cillenico são obras que se entretocem numa

feroz sátira anticristã que nem sequer poupa omistério da encarnação do Verbo. Nem o cristianismo reformado, que Brunodirectamente conhecera em Genebra, em Inglaterra e na Alemanha, se salva dasua condenação, que lhe parece mesmopior do que o catolicismo, porque nega a liberdade e o valor das obras boas eintroduz o cisma e adiscórdia entre os povos (Ib., 11, 89 e 95).Mas além desta religiosidade, de que Bruno zomba considorando-a como "santaburrice" e que é directamente contrária à natureza e à razão, háa outra religiosidade, a dos "te@@logos", isto é, osdoutos que em todos os tempos e quase em todas as nações têm procurado umavia para chegar aDeus. Esta religiosidade é o próprio filosofar, tal comoBruno o entende e pratica. Quanto ao seu conceito e ao seu conteúdo, estão deacordo, segundo Bruno, os filósofos orientais e cristãos. Bruno faz sua aideia dominante no Renascimento, expressa naforma mais rigorosa por Pico de Mirândola (§ 357), de uma sabedoriaoriginária que, transmitida por Moisés, foi desenvolvida, acrescida eaclarada por

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filósofos, magos, teólogos do mundo oriental, do mundo clássico e do mundocristão. Ele admite, contudo, a possibilidade de que aquela sabedoriaoriginária. possa, em alguns pontos, ser revista, porquanto "nós somos maisvelhos e temos idade mais avançada do que os nossos predecessores" e atravésdo tempo o juizo amadurece, a não ser que se renuncie a viver nos anos em quese deve viver e se viva como mortos (Cena, in Opp. it., 1, 31-32). Masconsidera que este desenvolvimento histórico da verdade é, na realidade, umrenascimento e um regerminar da verdade antiga ("são, amputadas raízes quetornam a germinar, são coisas antigas que voltam, são verdades ocultas que sedescobrem" (De1'inf., em Opp. it., 1, 388); e vai inspirar-se de preferência, para lá de

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Aristóteles e de Platão, nos Pré-socráticos, aqueles em que pode encontrar um

mais puro e imediato interesse pela natureza. E, narealidade, a natureza, é o termo da religiosidade edo filosofar de Bruno, o objecto do seu ímpeto lírico, do seu "furor".§ 380. BRUNO: A RELIGIÃO DA NATUREZABruno, desde o princípio toma o mundo natural como objecto da suainvestigação e renuncia a

toda a especulação teológica. "Não, se requer do filósofo natural, diz ele(Della causa, 11, Opp it., 1,175), que busque todas as causas e princípios, mas

só as físicas, e destas as principais e próprias".266

utilizando o princípio neoplatónico da transcendência e incognoscibilidade deDeus, rejeita a divindade como tal para fora do campo da sua investigação. A Deus não se pode ascender a partir dos seus efeitos, como não sepode conhecer Apeles pelas suas estátuas. Deus está "acima da esfera da nossainteligência"; e é mais meritório chegar a ele pela revelação do que tentarcoiihecê-lo. Por isso "consideramos princípio e causa aquilo de que hajaindício ou seja a natureza mesma, ou reluza no âmbito ou sseio dela" (Ib.,177). Deus, enquanto é objecto de filosofia, não é a substância transwndente de que fala a revelação mas é a própria natureza, no seu principio imanente.Neste sentido, isto é, apenas como natureza, ele é a causa e o princípio domundo: causa, no sentido de determinar as :coisas que constituem o mundo,permanecendo distinto delas; princípio, no sentido de constituir o próprioser das coisas naturais. Mas em qualquer caso não se distingue da natureza:"A natureza ou é Deus ou é a virtude divina que se manifesta nas coisasmesmas" (Summa term. met. in Opp. lat., IV, 101).

Como princípio do mundo, Deus é o intelectouniversal "que é a primeira e principal faculdade da alma do mundo, a qual éforma universal daquele". Ele é o artífice interno da natureza e é causa nãosó intrínseca, mas extrínseca dela, porquanto, embora opere na matéria, nãose multiplica com o multiplicar-se das coisas produzidas. Deus não só anima einforma o inundo, como também o dirige e governa. Bruno pode afirmar assim auniversal ani-267

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mação das coisas e retomar as antigas doutrinas que fazem da natureza umgigantesco animal. E uma

vez que a alma é forma, serve-se dos conceitos de matéria e forma parajustificar o seu pampsiquismo. Tais conceitos são assumidos na elaboração deAvácebrão (§ 247): há uma única forma e uma única matéria; a única forma éDeus como alma do mundo, a matéria é o receptáculo das formas, o substractoinforme, que o intelecto divino anima e Plasma. A matéria não é aipenascorpórea mas também incorpórea (como o dissera Avicebrão) e não subsisteseparadamente da forma, como aforma não subsiste separadamente dela. Mas esta conexão em Bruno (que nistose opõe explicitamente a Aristóteles) torna-se unidade, ou antesidentidade. As formas particulares das coisas nascemdo seio da matéria que continuamente as suscka e destrói; de modo que amatéria é princípio activo, como já havia sido reconhecido por David deDinant (§ 219), o qual o havia identificado como Deus. Por último, matéria e forma resultam idênticas e constituem uma única identidade, que é forma e matéria, alma e corpo, acto e potência. Esta unidade é o universo. Bruno retoma esta conclusão de Parinénides: o todo é uma substância única e imóvel, que, como tal, já não é nem matéria nem forma, porque é tudo, é o supremo, é o uno, é o universo (De Ia causa, III e V, in Opp. it., 1, 223, 247;Sign. sigil., in Opp. lat., 11, 180).Os conceitos de matéria e de forma não servem portanto senão para justificar e fundar a identidade mesma, de que Bruno partiu, da natureza com Deus.268

Reconthecida tal identidade, pode ele utilizar a especulação teológica deCusano transferindo para o

universo os caracteres que Cusano atribuíra a Deus. Para Cusano (§ 350) o universo é decerto unidade e infinidade; mas unidade e infinidade cotaraída, isto é, determiriando-se e individualizando-se numa multiplicidade de coisas.Esta diferença esbate-se eanula-se em Bruno, que rejeitou desde o princípio Deus como substânciatranscendente para fora do campo da sua especulação e se limitou a considerar~, únicamente como natureza, isto é, como princípio imanente. Pode entãorecorrer à especulação de Cusano para determinar a natureza do Unocronológico de Parménides; e, em primeiro lugar, tira a este uma das suascaracterísticas que era, não obstante, fundamental, isto é, a finitude, eafirma, tal como Cusano, a infinidade. Nela distingue então a coincidentiaoppositorum, que era a fórmula resõluüva de Cusano. No universo coinci,dem omáximo e o mínimo, o ponto indivisível e o corpo divisível, o centro e acircunferência; e dele se pode dizer que o centro está em toda a parte e a

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circunferência em parte alguma ou que a circunferência está em toda a parte e o centro em nenhum lugar (De Ia causa, V, in Opp. it., 1, 249-50). Todavia, o atributo fundamental do universo, o que acende e exalta o ímpeto lírico de Bruno e constitui o tema preferido da sua especulação, é a infinidade. A esta consagrou as suas obras Cena delle cenerí, De 1'iiifitúto, utúverso e mondi e, entre os poemas latinos, o De immenso, que Bruno considera o cume e a conclusão da sua trilogia latina (Opp.269

lat., 11, 196-97). A defesa de Bruno faz, na Cena, do sistema copernicano, é,toda ela, determinada pela possibilidade que este sistema oferece de ent-ndere afirmar a infinidade do mundo. Bruno é totalmente indiferente às vantagenscientíficas da hipótese copernicana e é bastante duvidoso que haja entendidoverdadeiramente o projecto geométrico de Copérnico, do qual ele faz na quintaparte do diálogo uma exposição sobremaneira confusa. Os argumentos em favordo infinito que ele aduz em De 17nfinito não são novos: remontam a Occam (§320), a quem pertence aquele argumento fundamental, amplamente desenvolvidopor Bruno: o de que à infinita potência da Causa deve corresponder ainfinidade do efeito. À predilecção pelo infinito deve-se* desprezo de Bruno por Aristóteles, que fôra decerto* mais decidido e rigoroso adversário do infinito real. Paira Aristóteles, ainfinidade significa essencialmente incompletude e, por conseguinte, ausência de determinações precisas e de ordem: e Bruno detém-se longa,mente a responder aos argumentos aristotélicos. A negação de um centro do mundo tira todo o fundamento à observação aristotélica de que no infinito não haveria uma ordem espacial, isto é, um centro, um alto e um baixo absolutos; como vira Occam e Cusano definitivamente estabelecera, isso não vale como argumento contra a realidade do infinito, que é caracterizado precisamente pela impossibilidade de determinações espac;ais absolutas. Fm De immenso Bruno detém-so a analisar o pressuposto de toda a doutrina aristotélica, isto é, a impossibilidade de entender a perfeição do mundo senão como finitude.270

Perfeito, diz ele (De inunenso, in Opp. lat., 1, 1, 309), não é aquilo que écompleto e fechado em proporções determinadas (certis numeris), mas sim o quecompreendo inúmeros mundos e por isso todos os géneros e todas as espécies,todas as medidas, todas as ordens e todos os poderes. Em De l'ffifinito (lb.,298) distingui,ra uma dupla infinidade: a de Deus que é tudo em tudo, mas nãoem cada parte. Correspondentemente, distingue em De immenso um duplaperfeição, uma na essência, a outra em imagem A primeira é a de Deus como

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intelecto do mundo* que pertence a primeira infinidade; a segunda é* do imenso simulacro corl)óreo de Deus que é o mundo, ao qual pertence a segunda infinidade (Opp. lat., 1, 1, 312). De modo que a mais alta perfeição é a infinidade do intelecto, isto é, da alma e da vida, a qual Bruno afirma que se estende para lá de todos os limites definildos, em todos osinumeráveis mundos. Aqui está, sem dúvida, o acento novo que transforma a infinita grandeza espacial numa infinita potência de vida e de inteligência: e aqui está o fundamento daquela religião do infinito em que vêm a fundir-se para Bruno o amor da vida e o interesse pela natureza.§ 381. Bruno: A TEORIA DO MíNIMO E DA MóNADAA esta consciência rigidamente monística, para a qual tudo se reduz a umDeus-Natureza, que tem em comum os atributos do ser de Parrnénides e do271

Deus de Cusano, apresenta-se todavia um pro~a c;rucial: como se concilia aunidade imutável do todo com a multiplicidade mutável das coisas? Em De Iacausa (Opp. it., 1, 251) Bruno distinguira o ser, que é o todo, dos modos deser, que são as coisas: o

universo compreende todo o ser e todos os modos de ser, cada coisa singulartem todo o ser, mas não todos os mo-dos do ser. Tal distinção propõe umoutro aspecto do problema: como são possíveis tantos modos de ser, se o ser é uno e imutável? "Profunda magia, diz Bruno no mesmo diálogo (Ib., 264), é saber tirar o contrário depois de ter encontrado o ponto de união". O ponto de união é, indubitàvelmente, o Deus-Natureza: mas que magia poderá tirar daqui a diversidade e a oposição dos modos singulares?À resolução do problema dedica Bruno dois poemas latinos, o De tripliceminimo et mensura e o

De monade numero e figura. A relação reciproca entre estes dois poemas, quesão apresentados comoa preparação do De immenso é esclarecida por Bruno no sentido de que oprimeiro se vale do método matemático, o segundo do método (ut licet) divino(Opp. lat., 1, 1, 197). E, na realidade, o primeiro propõe o problema daconexão entre a unidade do todo e a multiplicidade das coisas, do ponto devista humano: o segundo propõe o mesmo problema do ponto de vista divino. Oprimeiro pretende mostrar a via através da qual o homem mediante a própria consideração das coisasmúltiplas pode alcançar a unidade; o segundo pretende mostrar oprocesso mediante o qual da unidade &vina procede272

a multiplicidade das coisas. Assim, os dois poemas se integramreciiprocamente e proparam a exaltação lírica da infinidade do todo, que é o tema do De immenso.

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Há que notar, desde já, que a via matemática proposta por Bruno no De mitúnwnão tem nada que ver com a matemática científica. O pressuposto animístico emágico impede Bruno de apreciar no seu justo valor a análise quantitativa, deque o próprio Telésio, apesar de tudo, adverte a exigência. A matemática deque ele se serve é uma matemática qualitativa e fantástica, uma matemáticamágica, que exclui a medida numérica e nega que se possa chegar a uma precisadeterminação quantitativa dos fenómenos naturais. Trata-se antes da busca donúnimo, que é para Bruno a substância das coisas consideradas na sua grandezaqualitativa. "0 objecto e escopo da natureza e da arte, isto é, a composiçãoe a resolução a que elas visam no agir e no contemplar, nascem do mínimo,consistem no mínimo e reduzern-se ao mínimo" (De min. 1, 22, in Opp. Lat., 1,111, 140). O mínimo é a matéria ou elemento de tudo: é ao mesmo tempo a causaeficiente, ofim e a totalidade; é o ponto de uma ou duas dimensões, o átomo nos corpos, amónada dos números. Não há uma única espécie de mínimo qualitativamenteidêntica em todos os aspectos da natureza. Existem tantos géneros de mínimoquantos são tais aspectos: há uma superfície mínima, umângulo mínimo, um corpo mínimo, uma razão mínima, uma ciência mínima e assimpor diante. E todos estes mínimos têm nomes diversos, podem unirse e273

separar-se, mas não se penetraim nem se misturam, tocam-se apenas (Ib., 176).Assim, o ponto é o mínimo da superfície, o átomo é o mínimo do corpo, o sol omínimo do sistema planetário, a terra é o mínimo da oitava esfera em que estásituada (Ib.,173-174). O mínimo é, portanto, para Bruno, a cnidade última e real,qualitativamente diferenciada, que permite entender em primeiro lug aconstituição das coisas particulares, as quais tendem, cada uma, a conservaro próprio mínimo e assim conspi,ram para um mesmo fim; e em segundo lugar,permite o unificar-se das coisas particulares de modo a formarem espécies egéneros sempre cada vez mais vastos até ao último generahssimo e comuníssimoser, que é o do universo (Ib., 271). O mínimo e, assim, o princípio queconsiste em entender a unidade das coisas na sua inultiplicidade e amultiplicidade na unidade; e responde, na forma fantástica e

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aproximativa queé própria de Bruno, ao problema crucial da sua especulação cosmológica. Naúltima parte do De minimo, dedicãda à construção e à medida das figurasgeométricas, Bruno vale-se da matemática concreta do salerniano FabrícioMordente, que ele conhecera durante a sua segunda estada em Paris (1585-86) eque era o inventor de um compasso e de uma regra de cálculo. Mas nem ainvenção de Mordente nem as especulações de Bruno possuem, na verdade, omínimo valor científico. O mínimo bruniano, caracterizado, como é, peladiferença qualitativa, não é susceptível de tratamento matemático e não temsignificado senão como tentativa para resolver, do ponto de vista da inves-274

tigação humana, o problema da relação entre a unidade da natureza e amultiplicidade das coisas.

Se o De minimo expõe a vida humana para chegar a entender a relação entre o todo e as partes, o De monade expõe, ao invés, o processo divino através do qual tal relação se constituiu.O poema é inteiramente fundado neste significado simbédico dos números e das figuras geométricas que havia sido o tema preferido dos NeopitagóTicos, e tinha depois passado para os filosofemas da magia renascentista. Elo tende a fazer derivar todo o mundo natural da década, isto é, dos primeiros dez números, que, por seu turno, provêm das m6nadas, ou seja, da unidade.Conformemente ao pressuposto fundamental do neoplatonismo, o Uno ou Mónada éconcebido como o princípio de tudo. Uno é o infinito, uma é a primeiraessência, uno é o ~íp@o o a causa prima, uno é o mínimo indivisível do qualfluem as espécies naturais; uno é o sol do macrocosmo e uno é o coração domicrocosmo. O uno é representado pelo círculo. Do uno brotam as díades comodo fluxo do ponto brota a linha. E a díade constitui a estrutura de outrosaspeotos fundamentais do universo. A bondade, ao difundir-se. cria o bem, averdade, ao explicar-se, cria o verdadeiro, do modo que se determina a díadeda essência e do ser composto. Matéria e forma consti,tuem uma díade; díade éa potência que pode ser activa ou passiva, o acto que pode ser primo@ro ousegundo. São duas as almas do homem, a intelectiva e a sensível: e, em geral,a díade constitui todas as oposições que se encontram no domínio275

rnetafísico, físico e humano. A tríade, representada pelo triângulo,constitui os três princípios da unidade, da verdade e da bondade, de queprocede a outra tríade da essência, da vida e do intelecto, à qual se segueminúmeras tríades no mundo físico e no mundo humano. A tétrada, que era

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sagrada para os Pitagóricos, constitui o bem, o intelecto, o amor e a beleza:as quatro formas do conhecimento que Platão distinguia na República: ointeligível, o pensável, o sensível e o umbroso; os quatro elementos dageometria, ponto, linha, superfície e profundidade, assim como os quatroelementos que Bruno encontra no céu, no mundo intelectual, no mundoespiritual e no mundo sublunar. Anàlogamente, Bruno mostra-nos a presença e a acção da pêntada, da hêxada, da héptada, da óctada, da enéada e, por fim, da década, estabelecendo correspondências simbólicas entre estes números e os aspectos fundamentais do mundo na sua estrutura metafísica, física e humana.Trata-se de correspondências fantásticas, nas quais os elementos do universometafísico ou físico são ordenados e numerados mais ou menos arbitràriamentepara os tornar susceptíveis de entrar no sinal mágico de um ou de outronúmero. O que importa, porém, é o intento geral do poema: reduzir o universoà estrutura numérica para mostrar que a sua génese depende da mónada, que é aorigem de todos os números. Bruno quis demonstrar, com a sua matemáticasimbólica, a derivação do mundo do uno: e quis mostrar em acto estaderivação, fazendo ver o multiplicar-se do uno e o articular-se das figuras

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correspondentes, nos sucessivos graus da realidade correspondente. O carácterarbitrário e fantástico desta derivação é evidente, mas é também evidente queBruno quis com ela responder ao problema que a sua filosofia da naturezasuscitava: conciliar a unidade do universo com a multiplicidade dos seusmodos de ser.

§ 382. BRUNO: O INFINITO E O HOMEMO carácter fantástico destes desenvolvimentos da especulação de Bruno, quedeviam e pretendiam ser técnicos e responder a um preciso problemaespeculativo, confirma a natureza de toda a especulação bruniana, que tem assuas raíws na necessidade de expansão dionisíaca, na vontade de abrir aohomem perspectivas mais amplas o projectar, para lá de todos os horizontesfechados, a vitalidade que o filósofo sente em si mesmo. Bruno não elaborouuma forma de filosofar séria e crítica, apesar de se ter dado conta de talexigência: filosofar significa para ele lutar contra os limites

e as angústias que dilaceram o homem por toda a,parte e, por consequência, possuir uma visão do mundo mediante a qual opróprio mundo já não seja um limite para o homem, mas o domínio da sua livreexpansão. A gnoseologia de Bruno obedece à mesma exigência. Tomando comoponto de partida o neoplatonismo, Bruno integra-o e modifica-o conforniemente

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a essa divinização da natu-277

reza que é o termo último do seu pensamento. É significativo que, enumerandono De umbtis idearum (Opp. lat. 11, 1, 48-49) os graus da ascese místicasegundo Plotino, lhe acrescente dois por sua conta: a transformação de simesmo na realidade e a transformação da realidade em si mesmo.O último grau do homem é, por consequência, não a identificação com Deus,ruas com a res, isto é, com a realidade ou a natureza. No Sigillus sigillorum(Ib., 11, 11, 180), põe como grau mais alto, acima da sensibilidade, daimaginação, da razão e do intelecto, a contractio mentis, pela qual asactividades humanas se concentram e se unificam, tornando-se aptas acompreender a unidade do todo. E esta é também a tarefa da mens, último grau. de conhecimento, na Summa terminorum metaphysicarum, (Ib., 1, IV, 32). Tudo isto sugere que, para Bruno, o termo final do conhecimento humano é a união mais íntima possível com a natureza da sua substancial unidade. E este é, de facto, o significado do mito de Acteon, exposto em De gli eroici furori.Acteon, que chegou a contemplar Diana nua e fo@ transformado em veado,passando de caçador a caça, é o símbolo da alma humana que, andando em buscada natureza e chegando finalmente a vê-la, se torna ela mesma natureza. E, defacto, a natureza é a unidade a que todas as coisas se reduzem na suasubstância. Aquele que, como Acteon, vê "a fonte de todos os números, detodas as espéoies, de todas as razões, que é a móriada, verdadeira essênciado ser de todos; e se não a vê na sua essência, em absoluta luz, vê-a

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na sua gonitura que lhe é semelhante, que é a sua

àmagem: porque da mónada, que é divindade, provém essa mónada que é anatureza, o universo, o mundo, onde se contempla e espelha, como osol na lua, mediante a qual ilumina, encontrando-se aquele no hemisfério dassubstâncias intelectuais" (De glier. fur., in Opp. it., 11, 743). O termomais alto da especulação filosófica não é, portanto, o êxtase místico dePlotino, a junção com Deus, mas a visão mágica da natureza na sua unidade. Oque é expresso também por Bruno no mesmo diálogo, na

alegoria dos cegos, os quaits simbolizam a incapacidade humana de alcançar a verdade e que readquirem a vista e se consideram recompensados quando podem, finalmente, contemplar "a imagem do sumo bem na terra" (Ib., 515).Ora, este identificar-se do homem com a natureza, este fazer-se natureza, é otermo último não só da vida teorética, mas também da vida prática. Anatureza, isto é, Deus, age com necessidade inelutável. Uma intrínsecanecessidade regula a

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acção de Deus-Natureza, o qual só pode querer em todos os casos o óptimo e,por consequência, não conhece a indecisão e a escolha (De 1'inf., in Opp.it., 1, 293, De imm., in Opp. lat., 1, 1, 246). Mas isto não quer dizer queDeus não actue livremente; significa antes que nele necessidade e liberdadese identificam e que, na verdade, ele não agiria livremente se porventuraagisse diversamente do modo que exige a necessidade da natureza (De imm.,Ib., 243). Não se pode confrontar a liberdade perfeita de Deus com aimperfeita do homem nem

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iazê-la consistir na escolha indiferente entre possibifidades diversas econtingentes. Isto acontece ao homem devido ao estado de ignorância e de imperfeição em que se encontra, estado que lhe impede de conhecer o melhor ou de perseverar nesse conhecimento. Se a liberdade humana f~ perfeita, seria como a de Deus: coincidiria com a necessidade da natureza (De imm., Ib., 246-47). Um aprofundamento deste conceito é efectuado por Bruno no Spaccio.Perguntando-se como as preces de Jove podem influir nos decretos do fado, queé inexorável, responde que o próprio fado quer que se lhe peça aquilo que eledeterminou fazer. "Também quer o fado que, conquanto saiba o próprio Jove queele é imutável, e que não pode ser outro do que o que deve ser e será, nãodeixe de incorrer por tais meios o seu destino." (Opp. it., 1, 3 1). Averdadeira liberdade humana identifica-se, portanto, com a necessidadenatural (com o "fado") e consiste aperias no reconhecimento e na aceitação dopróprio fado. A prece é muitas vezes um sinal de futuros efeitos favoráveis ecomo que a condição de tais efeitos, dado que o fado manifesta a suanecessidade na própria vontade dos homens e não fora dela Ub., 40-41). Averdadeira liberdade humana é, portanto, como a divina, idêntica ànecessidade. A liberdade que é contingência e escolha arbitrária não é umprêmio mas apenas uma consequência do estado de imperfeição em que o homem se encontra relativamente a Deus.A tónica da especulação de Bruno recai todavia naquilo que assimila o homem aDeus, não no280

que o ffistingue de Deus. Bruno apprecia e exalta na condição humana tudo oque leva o homem a adequar-se à natureza de Deus. Na idade de oiro, quando ohomem viviia no ócio, já não era virtuoso como os animais e talvez fosse mais

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estúpido do que muitos deles. A pobreza, a necessidade, as dificuldadesaguçaram-lhe engenho, fizeram-no inventar as indústrias e descobrir as artes;e, ainda hoje, fazem nascer das profundidades do intelecto ,humano novas emaravilhosas invenções. E só assim o homem é verdadeiramente e se mantém"Deus da natureza" (Spaccio, III, in Opp. it., II,152). Mas o que sobretudo exalta e diviniza o homem é o heróico furor: oímpeto racional pelo qual o homem, que aprendeu o bem e o belo, sedesinteressa daquilo que antes o atraía e não tende senão a Deus. O poderintelectivo do homem não se satisfaz com uma coisa finita e tende à fontemesma da sua substância, que é o infinito da ,natureza e de Deus. Nistoreside a mais alta dignidâde do homem que não é absorvido e nulificado pelo infinito natural mas pode compreendê-lo, fazê-lo seu e reconhecê-lo como o sinal mais certo da sua natureza divina.§ 383. CAMPANELLA: VIDA E ESCRITOSSe o naturalismo de Bruno é uma religião dionisíaca do infinito, onaturalismo de Campanella é o fundamento de uma teologia política ou

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de uma política teológica. Tomás Campanella nasceu em Stil, o, na Calábria, a 5 de Setembro de 1568. Entrou em 1582 para aordem dorninic^; mas a sua actividade de escritor atraiu sobre siperseguições e condenações. Nos fins de 1591 foi aprisionado em Nápolesdevido às opiniões contidas emPhilosophia sensibus demonstrata, que publicara meses antes. Era nesta época um fervoroso sequaz de Telé sio; e ele próprio contou em seguida (Syntagma de libris Propriis, 1) ter deposto uma elegia no ataúde de Telésio, com quem nunca pudera falar. Após alguns meses de encarceramento, foi libertado (1592) e deveria voltar dentro de seis dias para a sua província, mas transgrediu a ordem e d@rigiu-se para Roma e em seguida para Florença e Pâdua, onde se inscreveu na Universidade, e foi de novo preso em 1593 por heresia.Transportado para Roma e torturado, foi em 1595 solto e confinado em S.Sabina, onde continuou a sua actividade de escritor, que nem mesmo no cárcereinterrompera. Depois de uma nova prisão e de um novo processo (1597),Camipanolla voltou em1598 para sua terra. Aí urdiu a conjura que deveria conduzir à realização do seu ideal político-re,liigi',oso: uma república teocrática de que ele próprio seria o legislador e o chefe. Mas em 1599 a conjura foi descoberta.Campanella foi conduzido a Nápoles para lhe ser instaurado umprocesso; para fugir à condenação capital, fingiu-so louco e

sustentou a sua ficção mesmo sob a mais dolorosa das torturas (1601); foiassim condenado a prisão perpétua e irremissível (1602). Permaneceu no cár-282

cere cerca de vinte e sete anos. O seu espírito àndómi,to temperou-se nesta terrível prova. Do fundo da sua cela, lancava apelos e conselhos a todos os reis e príncipes da terra, vaticinando a iminente renovação

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do mundo mediante o retomo a uma única religião e a um único estado. Por convicção ou por oportunismo, converteu-se à tese de que só a monarquia de Espanha poderia realizar a unificação política do género humano e consagrou à defesa desta tese a sua actividade de escritor. Nunca mais abandonou esta actividade, nem mesmo na "hórrida fossa" de Castel Sant'FAmo, nem na prisão mais branda de Castel dell'Ovo ou de Castel Nuovo. Vàu repetidas vezes sequestrarem-lhe ou destruírem-lhe os manuscritos e outras vezes perderem-nos por os haver confiado, na esperança de que fossem publicados, a pessoas que o visitavam na prisão. Mas reescreveu as obras perdidas, conseguiu manter correspondênoia com vários letrados curopeus e publicar na Alemanha algumas das suas obras.Em 1626, é libertado pelo governo espanhol e transfeÈido para o Santo Ofíciode Roma. Aí o papa Urbano VIII autoriza-o a dispor de todo o palácio do SantoOfício como loco carceris (1628); e Campanella começa a orientar as suasesperanças de renovação política, já não para a Espanha, mas para França. Demodo que, quando em 1633, é descoberta em Nápoles uma conjura contra o vice-rei organizada por Tomás Pignatelli, discipulo de Campanella, e este já nãose sente seguro em Roma, o embaixador francês favorece a fuga de Campanella,que se refugia em283

Fiança (1634). Acolhido b(-,ne-vola-mente pelo rei Luís XIII e provido de uma Pensão, Camipanella pôde passar tranquilamente Os últifinos anos da sua vida, preparando a publicação das suas obras. já havia algum tempo que as estrelas lhe t@~ anuinciado que o eclipse do 1.o de Junho lhe seria funesto; quando adoeceu, não lhe valeram os ritos mágicos em cuja eficácia sempre acreditara, e a 21 de Maio desse ano morria.O interesse dominante de Campanella é um só, e é te0lógicO@P0lítico. Pode-se,todavia, dividir as suas obras em duas partes: uma, filosófico-teológica, aoutra, pc>lítica. o próprio Canpanella deixou-nos no Syntagma d, librdsproprus et recta ratiOne studendi (uma espécie de guia para o estudo dafilosofia ditado em 1632 ao francês Gabriel Naudé) um índice das suas obras que indica a Ocasião e a época aproximativa da composição. Estudos recentes vieram ordenar e comipleta!r estas indicações, permitindo que se siga um rumo no emaranhado dos escritos de Camipanella, que foram, quase todos, refeitos várias vezes pelo autor.Escritos filosóficos: Philosophia sensibus demonstrata, composta em 1589 epublicada em 1591. Compendium de rerum natura, composto em 1591 e publicadoem 1617. Del senso delle cose e della magia, composto em 1604 e depoistraduzido para latim e publicado nesta língua em Francoforte em1620. Apologia pro Galileo, composta em 1616 e publicada em 1622. Philosophiarealis, publicada em Francoforte em 1623, e compreendendo: escritos defísica, entre os quais é notável sobretudo o Epilogo

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magno, composto, na sua feitura definítiva, entre1604 e 1609; os Afotismi politici, compostos antes de 1606; a Città del sole, composta cerca de 1602, e em seguida revista e depois traduzida em latim e as Quaestiones fisiológicas, morais e políticas compostas antes de 1613.Astrologicorum libri VII, compostos em 1613 e publicados em 1629. Atheismus triumphatus, composto em 1605 e publicado em 1631. De medicina, composta em 1609 e publica em 1635. De gentifismo non retinendo, composto em 1609-10 e publicado em 1636. De praedestinatione, composto em 1628 e publicado em 1636.Philosophia rationalis, publicado em1638, compreendendo a Poetica, a Rethorica e a Dialectica, escritos váriasvezes refundidos. Metaphysica, um dos escritos fundamentais, concluído depois de uma longa elaboração em 1623 e publicado em 1638. Quod remíniscentur, composto cerca de 1615. Theologia, obra vastíssima em 30 livros começada a compor em 1613 e que permaneceu inédita.Escritos políticos: Discorsi sui Pãesi Bassi, compostos em 1594-95 epublicados em 1617. Monarchia di Spagna, composta em 1600 e publicada em1620 em tradução alemã. Aforismi politici, já citados. Città del sole, jácitada. Monarchia del Messia, composta em 1605 e publicada em 1633 natradução latina. Discorsi della libertà e della felice sugestione allo statoecelesiastico, compostos em1627 e publicados em 1633. Discorsi ai principi d'Italia, compostos em 1607.Antiveneti, compostos em 1606.

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Campanella é também autor de Poesias (compostas na juventude e nos primeirosanos da permanência no cárcere) que não são poesia filosófica no sentido deserem (como as de Bruno) a expressão versificada da sua filosofia, mas poesiaautêntica, isto é, expressão de uma sua atitude fundamental. Nelas Campanellaatinge a consciência da sua tarefa, da sua missão no mundo. Dirigindo-se aDeus para que o liberte da prisão, (Poesie, ed. Gentile, p. 135), faz oseguinte voto:

Se mi sciogli, io, far seuola ti prometto Di tutte nazioni A Dio libertador,verace e vivo, S'a cotando pensier non é disdetto E fine a cui mi sproni: G11Idoli abbater, far di culto privo Ogni Dio putativo E chi di Dio si serve, eaDio non serve; Por di ragione il seggio e lo stendardo Contra il vizi-ocodardo; A libertà chiamar ranime serve, Umiliar le proterve. Né a tettich'avilisce Fulmine o belva, dir canzon. novelle, Por cui Sion languisce; Ma tempio f-arõ il ciolo, altar de stelle.1 Se me Ubertares, prometo-te / Fazer devotaz,, todas as nações / A Deuslibertador, veraz e vivo, / So- a tão grande pensamento não recusas / O

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f im a que me inicitas: / Os Idolos abater, privar do culto / Todo o Deussuposto / E que de Deus se serve, e Deus não serve; / Pôr pelarazão o trono e o estan-286

A realização da unidade religiosa do género humano apresenta-se a Campanellacomo o fim fundamental da sua vida e é a promessa que ele faz a Deus comovoto para a sua libertação. Num soneto, esclarece a natureza política destefim e V~, -0 estreitamente aos princípios fundamentais da sua filosofia(Poes., p. 18):

lo nacqui a debellar tre maLi estremi Tiranniffie, soctismi, lpocrisia:On'dor m'aoeorgo con quanta armonia Possanza, senno, amor m'insegnó Temi.Questi principi ssou ver! e supremi Della scoverta gran filosofia, Rimediocontra Ia trina bugia, ~to cui piangendo, mondo, fremi. Carestie, guarre,plesti, invidía. inganni, In~tizia, lussuria, accidia, sdegno, Tutti a que tre gran mali soíttostanno, Che nel eleco amor proprio, figlio degnoD'Ignoranza, radice e fomento hanno. Dunque a divelIer Vignoranza io vegno,

darbe / Contra o vício cobarde; / A liberdade chamar almas escravas, / Humilhar a soberba. / Nem mesmo aos lares sobre que cal / Fera um raio, direi canções novas, / Que a Sião enIanguesce; / Mas do céu ~ um templo, e das estrelas altar.1 Eu nasci para debelar três grandes males: Tiranias, sofismas, hipocrisia: /E agora vejo comquanto harmonia / Força, senso, amor me ensinou Temi. / Estes princípios sãoveros e supremos / Da d~berta grã filosofia, / Remédio contra a trina287

Força, senso e amor são como veremos, Os três primados, isto é, os princípiosmetafísicos do ser: a sua descoberta equivale para Campanella à destruiçãodas tiranias, dos sofismas e da hipocrisia e, por conseguinte, de todos osmales que destes nascem no mundo. O poder de libertação e de elevaçãopolítica da sua filosofia é assim clarainente afirmado. A filosofia, paraCampanella, devia ser a alavanca para a realização de uma

reforma política que eliminasse os males do mundo e o restituísse à justiça e à paz.E foi esse, na realidade, o interesse dominante de toda a obra de Campanella,a qual se desenvolve gradualmente da física à matemática, da motafísica à

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teologia, para constituir a teologia à base da unidade religiosa do génerohumano e da sua unificação política.

§ 384. CAMPANELLA: FíSICA E MAGIAO ponto de partida de Campanella é a física de Telésio., Mas--- emb oraconfirmando os princípios .fundamentais desta física com uma grande massamentira / Sobre a qual, chorando, mundo, tremes. / Carestias, guerras,pestes, inveja, enganos, / Injus- ,tiça, luxúria, preguiça, desdém, / Todosa estes três males subjazem, / Que no cego amor próprio, filho digno / Da ignorância, ra:,,i e alimento têm. Por isso, eu venho arrancar a ignorância.288

CAMPANELLA

de observações particulares e desordenadas, Campanella não tarda em afastar-se para procurar integrações mágicas e metafísicas que são completamenteestranhas ao espírito do seu fundador. Assim o Del senso delle cose e dellamagia retoma os (princípios da física telesiana só com o objectivo dedemonstrar aquela universal animação das coisas que é o fundamento da teoriae da prática da magia. E o Epilogo magno refaz toda a trama do De rerumnatura de Telésio transformando-se numa espécie de cosmogonia teológica, quejá não tem como escopo pôr a claro os princípios autónomos da natureza, massim o de roportar tais princípios a proposições teológicas. A despeito do seujuvenil entusiasmo por Telésio e da sua constante fidelidade à letra dafísica deste último, Campanella move-se numa esfera de interesses que já nãotêm relação com os que animavam a obra de Telésio. Telésio repele toda aforça mágica, metafísica e teológica nas suas explicações naturalísticas: oseu objectivo é o de entender a natureza na ordem que lhe é própria, e emDeus só vê o garante desta ordem. Campanella vê na natureza a estátua e aimagem de Deus e nas forças que a agitam o campo de acção dos encantamentos edos milagres dos magos. O seu interesse científico é nulo. Ele não quercompreender a natureza, mas tomá-la de assalto e subjugá-la. Crê naastrologia à qual dedica uma obra e da qual tira a confirmação do seuvaticínio do iminente retorno do mundo à unidade religiosa e política (Ath.triumph., 14, 27; Quod, remin., 1, 2, a. 3). E se defende a otwa de C ~,

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(na Apologia pro Galileu) defende-a apenas do ponto de vista teológico e visa a demonstrar que a doutrina de Galileu é mais conforme à Sagrada Escritura do que a contrária.

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Dos princípios do naturalismo telesiano, deduz Campanefia imediatamente auniversal sensibilidade das coisas. Uma vez que todos os seres, mesmo osanimais e os homens, são formados pelas duas natui"ezas agentes, o calore o frio, e pela massacorporea, e uma vez que os animais e os homens são dotados desensibilidade, faz-se mister que as próprias naturezas agentes o a massacorpôrea sejam sentientes. O efeito deve encontrar-se na

causa de que procede: se os animais sentem, isso é sinal de que sentem oselementos ou princípios por que são constituídos (Del senso, 1, 1).Campanel,la sustenta, por conseguinte, que coisa alguma é privada desensibilidade: nem a matéria, nem o céu e as estrelas, nem as plantas, nem aspedras e os metais e nem mesmo os outros elementos constitutivos do mundo. Asensibilidade que todos estes entes possuem é devida a um espírito quente e

subtil que anima a massa corpórea e é ele mesmo corpérco (lb., 11, 4). Mascomo o homem, além da alma corpó rea, possui também uma alma infundida porDeus e pela qual efectua as operações mais excelentes, seja embora servindo-se, como de um eficaz instrumento, do espírito corpóreo (lb., H, 27; Epil.,111, 14), assim o mundo tem, na sua totalidade, uma alma que é o instrumentodirecto de Deus e que dirige todas as operações (Ib., II,32). A alma do mundo determina o con3enso que

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as coisas naturais têm entre si, porque as dispõe todas para um único fim eassim as liga todas umas às outras não obstante a dissemelhança delas. (Ib.,RI, 14). Por isso Campanella não só não nega a causa final como lhereconhece a supremacia sobre as outras e considera a causa finalcomo oquente, o frio a matéria, o lugar-como simples meios para chegax ao fim(Epil., 111, 1, av. a). Deste consenso se vale a magia para efectuar as suasoperações miraculosas. Ela é a sabedoria * um tempo prática e especulativaporque "aplica * que compreende em obras úteis ao género humano" (Del senso,IV, 1). Campanella distingue: uma magia divina, que opera em virtude da graçadivina, como foi a de Moisés e de outros profetas inspirados por Deus; umamagia natural, que é a

das estrelas, da medicina e da física, e que adquire, através da religião, aconfiança própria de quem espera o favor desta ciência, e uma magia

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diabólica, que opera pela acção do demónio e logra fazer coisas que parecemmiraculosas a quem não as entende. A magia dirvina não exige muita ciêndaporque se funda no amor e na fé em Deus. A magia natural, pelo contrário, fazuso de todas as ciências e artes, e Campanella assegura que para ela rarascoisas lhe são impossíveis. Mas para ele é também magia o agir sobre oshomens e as suas paixões; daí que sejam "segundos magos os oradores e os poetas" (Ib., IV, 12); mas o maior mago é o legislador porque "amaior acção mágica do homem é dar leis aos hornens" (lb., IV, 19).291

A máxima expressão da fidelidade de CampaneMa à física de Telésio é asupremacia do conhecimento sensível, supremacia que Campanella afirmouconstantemente da primeira â última das suas

obras. "A sabedoria, diz ele (Ib., 11. 30), é o conhecimento corto de todasas coisas, internamente, sem dúvidas". Ora, o próprio nome de sabe doriaderiva dos sabores do gosto, que é o único dos sentidos que não se limita acolher as qualidades extrínsecas da coisa, mas, tríturando-a e assimilando-a,lhe colhe a intrínseca natureza física. Sabedoria, por excelência, é,portanto, a sabedoria fundada nos sentidos, sem os quais não se podemverificar, corrigir ou refutar os conhecimentos incertos. Assim, osantipodas, negados por Santo Agostinho e por outros Antigos, vieram a seratestados como seres reais por Cristóvão Colombo, mediante a experiênciasensível. "0 sentido é certo e não requer prova, porque ele próprio é prova;mas a razão é conhedimento incerto, o por isso exige prova; e quando se aduza prova e a causa, vai-se buscá-las a uma sensação certa" (Ib., H, 30). Talcomo Telésio, Campanella sustenta que mesmo o intelecto é sensibilidade. "0compreender em universal é senso amortecido e longínquo, e a memória é sensoadormecido, e o discurso é senso estranho e em símile" (Ib., H, 30). Ouniversal, que é o objecto do intelecto, é a semelhança que as coisasparticulares têm entre si; e, assim, é o conhecimento indistinto e confusoque se certifica e concretiza com o aguçar-se do conhecimento sensível. (Ib., H, 22).292

Porêm, esta redução de todo o conhecimento à sensibilidade levanta o problemaque determina a

passagem da física à m~,sica. A sensiWidade é, de facto, sempre conhocimentodas c~ exteriores; como pode a alma, se todo o conhecimento é sensibilidado,

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conhecer-se a si mesma? "0 que me surpreendia, diz Campanefia (Ib., 11, 30),(era) que aalma se ignorasse a si mesma e ao que fazia". E, narealídade, a alma não pode ignorar-se a si mesma: é nisiter, portanto, que a sensibilidade externa se funde na sensibilidade que a alma tem em relação a si mesma, tal é o problerna que Campanelia defronta na Metafísica.§ 385. CAMPANELLA: O CONCEITO DE SICampanella divide a sua Metafísica em três partes: a primeira, dodlicada aosprincípios do sa@ber, a segunda aos princípios do ser, a ~ira aos priric~ dooperar. Ele inicia o seu tratado, reproduzindo o movimento de pensamento deSto. Agostinho no Contra Acadêmicos (§ 160): a própria dúvida supõe umaverdade que está para lá de quaisquer dúvidas. "Sapiente, diz elo (Met.,1, 2, a. 1), é aquele a quem as coisas sabem (sapiunt) tais como são, e saberé perceber a coisa tal como ela é". O céptico que sabe que não sabe nada,reconhece pelo menos essa verdade e assim pressupõe que existem um sabor e umacorteza fundados em princ~ universais que estão paira além de qual-293

quer dúvida. Tais principios, ou noções comuns, derivam uns do interior daalma, de uma faculdade inata, outros do exterior, por universal consenso detodos os entes ou de todos os homens. O mais seguro princípio da primeiraespécie é aquele pelo qual somos e podemos, sabemos e queremos. O mais seguroprincípio da segunda eq3écie é aquele pelo qual somos alguma coisa e nãotudo, podemos, sabemos, queremos alguma coisa e não tudo ou de todas asmaneiras. Por isso, quando tratamos das coisas particulares e simples, epassamos do conhecimento da nossa presença a nós mesmos ao conhecimentoobjectivo, começa a incerteza: a alma distrai-se do conhecimento de si paraconsiderar os objectos que nunca se lhe manifestam total e distintamente, masapenas parcial e confusamente. "Nós podemos, sabemos e queremos coisasdiversas de nós, porque podemos, sabemos e queremos o que nós próprios somos:de modo que posso solevar um peso de 50 sestércios porque posso solevar-me amim próprio, que o carrego, assim como sinto calor porque me sinto afogueadoe gosto da luz porque gosto de ser iluminado pela luz" (Ib.,1, 2, a. 5). Por outros termos, o conhecimento das coisas externas pressupõeo conhecimento que a alma tem de si mesma. Deve haver um conhecimento inatode si (notitia sui ipsius innata, Ib., VI, 8, a. 1), uma consciê nciaoriginária, em que reside a possibilidade do conhecimento de todas as outras

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coisas. Dado que a sensação se efectiva através da assimilação do sujeitocognoscente à coisa conhecida e é, como tal, uma paixão da alma, isto é,

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uma mõdfficação que a alma sofre do exterior, esta modificação permaneceriaestranha à alma se

a consciência dela não fosse essencial à alma e não constituísse o seu ser."Nós dizemos, diz Campanella (Ib., VI, 8, a. 4), que a alma e todos os outrosentes se conhecem originária e essencialmente a si mesmos; ao passo queconhecem secundária e acidentalmente todas as outras coisas na medida em que se conhecem asi mesmos transformados e assimilados às coisas pelas quais, sãotransformados. O espírito sentiente não sente, portanto, o calor, mas sente-se em primeiro lugar asi mesmo: sente o calor através de si mesmo na medida em que é transformado pelo calor, sente o corpo na medida em que o substracto do calor é o seu objecto".Esta doutrina reproduz e amplifica a de T~io. Telésilo excluíra, de facto,que a sensação se reduzisse. à acção das coisas ou à modificação produzida noespírito das coisas; e tinha-a, pelo contrário, identificado com a percepçãoque o espírito tem da acção das coisas e da modificação produzida em si portal acção. "Resta, portanto, dizia ele, concluindo (De rer. nat., VH, 3), queo sentido é a percepção das acções das coisas, dos impulsos do ar, assimcomo das próprias paixões, das próprias modificações e dos própriosmovimentos; e sobretudo destes. O sentido, de facto, percebe estas acções só na medida em que percebe ser influenciado, modificado e comovido por elas".Mas esta doutrina, que havia sido mantida por Telésio aonível de uma pura análise naturalística do conhe-295

cimento, é elevada por Campanella ao plano metafisico. A autoconsciência nãoé própria apenas da alma mas de todos os entes naturais enquanto dotados desensibilidade. "Há uma drupla sapiência nas coisas, diz Campanedla naTheologia (1, 11, a.1): uma, inata, pela qual elas sabem ser e pela qual o ser lhes agrada e onão ser lhes desagrada, e esta sabedoria é essencia@ de modo que não se podeperder sem perder o ser. A outra, adquirida (illata), pela qual elas sentemas coisas externas porque -são por elas modificadas e a elas tornadassemelhantes. Assim, cada coisa se sente a si mesma por si, e, como sói,dizer-se, essenei alte, enquanto que sente as outras acidentalmente,

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isto é,na medida em que se toma semelhante às coisas pelas quais é modificada, querno sentido de ser colrrompida, como acontece quando é afastada do próprioser e sente dor, quer no sentido de ser aperfeiçoada, como quando éconservada e restituída à sua integridade através da sensação de coisas afinse favoráveis, e experimenta prazer". A primeira espécie de sabedona, oconhecimento inato, é pró. prio de todas as coisas: mas nas coisas e noshomens é diminuída ou impedida pelos conheci. mentos adquiridos. Em Deus, que é privado de todo o conhecimento adquirido, conserva, pelo contrário, toda a sua potência (Theol., ib.).A Metafísica de Campanella foi publicada em Paxis, em 1638, mas só foicompletaida, após uma longa elaboração, em 1623. Em 1637 Descartes publicarao seu Discurso do Método. Tem-se estabelecido com frequência o confrontoentre a notítia sui296

de Campanella e o cogito de Doscartes. Na reakdade, os traços salientes da tcwia de Campanella ind"m claramente o alcance e os limites desta. Ela serve únicamente para fundar a possibilidade do conhecimento sensível e é privada do significado idealístico que intérpretes modernos têm pretendido ver nela.É estranha a Campanefia. a problematicidade da realidade que constitui otraço fundamental da teoria de Descartes. A realidade e a cognoscibilidadedas coisas eternas não são um problema para Cam~,a, como o serão paraDescartes; a

realidade é pressuposta, de tal modo que a autocons~a é atribuída não só aohomem mas a todas as coisas naturais, como seu elemento constitu~. Por isso,não é pensamento (como o é para Dese ~,), mas senso, sensus sui. Nãocaracteriza a existência específica do homem como sujeito pensante, que sepõe o problema de uma realidade divem de si, mas exprime a constituição decada ente natural como tal, o qual não pode agir sensivelmente ousensivelmente sofrer a acção dos outros sem se sentir a si próprio. ParaDescartes, a autoconsciência é o homem como tal, para Campanella *autoconsciência é tanto o homem como Deus, como * ser mais ínfimo danatureza. Além disso, a autoconsc~a perdeu em Canipanella o ca~ deinteriorídade espiritual que tivera em Sto. Agostinho, para o qual ela ora oprincípio da investigação que a alma diTigo a si mesma. Pode dizer-se que emSto. Agostinho a autoconsciência é o princípio de uma metafísicaespiritualista; em Campaneija é o princípio de uma metafísica naturalística;em Des-297

cartes será o princípio de um idealismo problemático. Mas só na forma que assume em Descartes, a autoconsciência podia tornar-se o princípio

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da filosofia moderna como investigação directa do homem, em que se manifesta o carácter específico da sua existência no mundo.§ 386. CAMPANELLA: A MetafísicaDissemos que a autoconsciência é para Campanella o princípio de uma m~sicanaturalistica. Nela, de facto, se fundam as determinações essenciais darealidade natural. Tais determinações são reveladas precisamente pelaautoconsciência: nós somos conscientes de poder, de saber e de amar

e d~mos admitir que a essência de todas as coisas é constituída precisamentepor estes três priinados: o poder (potentia), o saber (sapíenlia) e oamor (anwr) (Met., VI, proem.). Cada coisa é, namedida em que pode, porquanto só é na medida em que pode ser. O poder ser é, portanto, a condição do ser e da acção de todas as coisas (Ib., VI, 5, a.1.). O segundo primado, o saber (saber de si ou saber do outro) constituiigualmente a

essência de todas as coisas. De facto, não só os animais e as plantas, mastambém as coisas inanimadas, como se viu, sentem; e nesta sensibilidade sefunda o consenso universal das coisas, a harmonia que rege o mundo (Ib., VI,7, a. 1). Quanto ao terceiro primado, é claro que ele pertence a298

todos os entes, porque todos amam o seu ser e o

desejam conservar (Ib., VI, 10, a. 1). Em cada umdestes o primado da relação do ser consigo mesmo precede a sua relação com o outro: podemos exercer uma força sobre o outro ser só na medida em que a exercemos sobre nós, como podemos conhecer e amar o outro ser na medida em que nos conhecemos e amamos a nós mesmos (Ib., H, 5, 1 a. 13).Mas todas as coisas que conhecemos são finitas e limitamos e, como talis,compostas não só de ser

mas também de não-ser (Ib., IV, 3, a. 1). Assim como existem três primados doser, assim existem três primados do não-ser: a impotência, a incipiência e oódio. São estes três primados que constituem a essência das coisas finitas,que portanto não podem tudo o que é possível, não conhecem tudo o que écognoscível e não amam apenas, mas odeiam também: e precisamente por isso sãofinitas (lb., VI, proem.). Mas a finidade das coisas compostas de ser e não-ser pressupõem a infinidade de um ser que exclua o não-ser e seja puroser. Aquilo que se restringe a uma essência limitada e determinada e excluitodos os outros seres dos seus limites, não é o ser primo, mas antesdepende do ser primo. Primo é o ser que exclui toda a limitação, que é

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ilimitado e infinito e não conhece nem princípio nem fim. Tal ser é Deus Ub., VI, 2, a. 1).A Deus não se chega apenas através das considerações demonstrativas destegénero. Ele é também imediatamente testemunhado por aquele conhe-299

cimento i-nato e oculto ~a el abdita) pelo qual cada ente sabe ser e ama oseu ser e o seu autor. Se Deus não é de per si conhecido pelo conhecimentoadquirido, é todavia sempre conhecido e amado em virtude do conhecimentoinato. O conhecimento adquirido só pode chegar a Deus através do raciocínio,partindo das coisas sensíveis, mas o conhecimento inato testemunha-oimediatamente e para lá de toda a dúvida (Theo., 1, 2, a. 1). Testemunha-ooutrossim na sua essência, dado que, assim =o revela os três primados dascoisas, também revela os três primados de Deus. Como qualquer outro ente,Deus é potência, sabedoria e

amor (Met., 11, a. 4). Mas nele a potência não impláca nenhuma impotência, asabedoría nenhuma incipiência e o arnor nenhum desvio do bem. Os trêsprimados são nele infinitos como infinito é o

ser pelo qual é constituído (Ib., VI, ptroem.). Nem em Deus nem n&,,, criaturas eles permanecem separados e diversos nem tãopouco se confundem ou se unificam. Can"neUa admite em relação a eles aquela distinção formal de que falava Duns Escoto (§ 305) que não é distinção de razão nem distinção real, exclui a pluralidade numérica e garante a unidade do ser (Theol., 1, 3, a.12).Deus cria as coisas do nada o o nada passa aconstituir as coisas não por obra efectiva de Deus, mas em virtude daautor@zação de Deus. Criando o homem, Deus não lhe nega positivamente o serda pedra ou do burro, mas permite ou consente que ele não sejacontemporâneamente pedra -burro e assim permite de certo modo que o não300

ser o constítua. Na sua sabedoria Deus serve-se do próprio não-ser como doser porque sujeita a limitação própria das criaturas à sua ordenadadisposição no universo (Met., VI, 3, a. 2). Através dos três primados, Deuscria o mundo o também o sustém e governa. Deles, de facto, derivam trêsgrandes influxos, que são a necessidade, o facto e a harmonia. A necessidadederiva da absoluta potênc@a de Deus, e devido a ela nenhuma coisa pode ser ouagir diversamente do modo como o prescreive a sua natureza. O facto deriva daabsoluta sabedoria de Deus o por isso as coisas tendem, cada tuna, ao seu

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próprio fim e todas ao fim supremo (Met., IX, 1, Theol., 1, 17, a. 1). Ooposto da necessidade é a contingência, o oposto do facto é o acaso, o oposto da harmonia é a fortuna; e estes opostos derivam não já do ser, mas do não-ser que compõe as coisas finitas (Met., IX, 1).§ 387. CAMPANELLA: A POLITICA RELIGIOSAA filosofia especulativa de Campanela, seja física, seja já metafísica, não éfim para si mesma.

Tem como escopo apenas constituir o fundamento teorético de uma reformarefigbsa que deveiria reuffir (todo o género humano numa única comunidade. Campanella é, por temperan-wnto e vocação, um profeta religioso, para o qual a filosofia vale como instrumento derenovação da consciência relil&isa do homem. -Não se limba apenas a sonhar301

o àdcal desta renovação nem o restringe ao mundo dos doutos, como se fizerano Renascimento, mas Pretende PrOmovê-40 pràticamente e por toda a parte,reencontrando e indicando o órgão eficaz da sua,realização imediata. Quando,na Cidade do sol, delineou o ideal! Perfeito com que a sua mente sonhava,empenhou-se em traçar as vias que podiam, conduzir à realização desse ideal enão hesitou perante os compromissos inev@táveis. Recluso no cárcere dogoverno espanhol e condenado a prisão perpétua, apontou precisamente amonarquia de Espanha como o braço secular que devíia levar o governo àunificação religiosa. E então d@rigiu-se aos príncipes de Itália para osconvidar a favorecer aquola monarquia (Discurso aos príncipes de Itália,1606-07): a sua exortação apoiama-se no princípio de que "é mister ligar-se ao partido que seja melhor, ou que pelo menos o fado nos apresenta" (ed.Ancona, p. 46). Saído da prisão e definitivamente desiludido dias esperanças que pusera em Espanha, dirigiu-se à França e esperou então da monarquia francesa aquela realização da unidade religiosa dos homens que era o primeiro dos seus pensamentos. Campanella cons@derava possível que a sua reforma religiosa se tornasse realidade e até estava seguro do próximo advento dela. Aceitava de antemão os compromissos que aquela reallização teria custado no tocante ao Weal descrito na Cidade do Sol, preciisamente porque se considerava mais legislador e 1 feta do que filósofo.Mas se, no;terreno político,isto é, no que res~ à escolha do braço secularque devia traduzir em rea-302

lidade a reforma réligiosa, se dispôs a transigir, não parece que tenha sidofruto de transigência a aceitação e a defesa do catolicismo, a que permaneceufiel desde o princípio até ao fim da sua actividade. Com efeito, viu sempreno catolicismo, que sempre defendeu, a religião autêntica, a religiãonatural, a

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única religiosidade conforme à razão e por @sso comum a todos os povos euniversal. E, na realidade, neste ponto, a transigência não teria sidopossível, se o intento de Campanella fosse o de conduzir os homens à religiãoaiutênifica e assim os reunir numa uni,~ comunidade. Aceitaruma forma dereligião imperfoita, ou mesmo parcialmente falaz, teria sido uma traiçãofatal à sua missão de profeta. Esta missão impunha-lhe, todavia, defender epreconizar uma reforma do catolicismo: uma reforma pela qual o catolicismodeveria ser reconduzido à sua natureza, assumindo-se a si mesmo como norma dasua própria renovação. E assim. Campanella se vale do c,onceito axial doRenascimento, o retorno aos princípios, para profetizar por um lado o retornode todos os povos da terra, quaisquer que sejam assuas crenças, ao catolic@smo e, por outro, o retornodo próprio catolicismo à ;sua verdadeira natureza.O fundamento deste duplo retorno é a religião natural. A prim&ra formulação do conceito de religião natural está na Cidadedo Sol. Está aqui delineada a estrutura de um estado idealmente perfeito,governado por um príncipe sacerdote, chamado Sol ou Metafisico, assistidoportrês príncipes colaterais, Pon, Sin e Mor, isto é Potessado, Sapiência eAmor,

303

que são os três primados da metafísica campanelliana. As característicasdeste estado, no qual tudo é mmmosamente ordenado e predisposto por homens deciência, são a comunhão dosbens e das mulheres (segundo o modelo de Platão) ea relligião na~. Os habitantes do estado ~ vivem exclusivamente segundo arazão, isto é , segundo os dita@nos da m&afísiica de Camp~: a sua refi, giãoidentifica-se com esita metafísica e dlistingue-se do crisfiariwno pedaausência& da @revelação, e, por conseguinte, da íntegração sobrenaturaf1 queo ensino da razão requer e ex@ge. "Aqui, adm-iras-te de que adorem Deus emTrindade, dizendo que é suma Potência, da qual procede a Suma Sapiência, e deambas, o Sumo Amor. Mas não conhecem as pessoas distintas * não as nomeiamcomo nós, porque não conheceram * revelaÇão, mas sabem que em Deus háproowsão * relação de si para: si;_ e assim todas as coisas se cccnpõem depotênc@a, sapiênc@a e arax, eNuanto têm ser; de impotência, incipiência edesamor, enquanto dependem do não-wm (edição Bobbio, p. 106). Que a purapesquisa filosófica conduzia ao

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reconhecimento da Trindade, era pensan~o bastante anfigo, que se encontra,por exemplo, emAbelardo (§ 209). Em CampancHa, este pensam~ leva a concluir que ocrisfianismo "nada acrescenta à lei naturà além dos sacramentos" e que porisso "a verdadeira lei é a cristã e que, eliminados todos os abusos, serásenhora do mundo" (Ib., p. 108). A esta conclusão se manteve fiel ao longo de toda a série das obras posteriores. Defendendo nas Questioni sull'ottima republica (ed. D'Ancona, p. 289)304

os conceitos da Cidade do Sol, afirma que pretendeu nesta obra apresentar umarepáblica, não fundada por Deus trnas pda filosofia e pela razão humana, parademonstrar que a verdade do Evan- ~ é conforme à Natureza. A ~ião natural épo~o fundada sobre a razão e descoberta pela ~fia. Mas é uma refigião pariaos doutos, que não seria capaz de promoveir a unidade espíritual do génerohumano. É ~bém imperfeita, porque carece de @ntegração sobrenatural e, porconseguinte, do testemunhodas profecias, dos milagres, das graças que dãoforça difus@va e ~r @naba1áveI à religião revelada. A religião naturalpoderia bastar no CampaneU a filósofo, mas nunca poderia satisLzer o Carn~pr~a. E este, na rea& ,, não v@u na religião natural senão a norma quepermite pÔr à prova o valor das re@ligiões históricas, escolher entre elas averdadeira, justificá-la na sua verdade e reconduzi4a ao seu verdadeiroprincípio, eliminando os abusos. Porisso Campanella afirma que a re¥,ãonatural, que é a indita ou inata, é sempre verdadeira, enquanto que aadquirfida ou adicionadia (addita) é imperfeita o pode por vezes ser falsa(Met., XVI, 3, a.1); mas considera ser impossível que a religião inata possaexistir sem a adquirida ou adicionada. A religião inata é própria de todos os

seres que, tendo a sua origem em Deus, tendem a retornar a ele, a religiãoadquirida é própria só dos homens e é por isso a única que implica mérito cvalor moral (Met., XVI, 2. a. 1; Theol., VHI, Ia. 2). Como uma norma não valesenão em referência àquilo de que é norma, assim a reEgião indita só vale em305

relação com a religião addita, de que constitui o fundamento. Camipanelladevia por isso mostrar que a

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religião indita era o fundamento e a norma de todas as ,religiões pos@Úvaspara promover o retomo do género humano, dividádo em seitas relágiosasdiversas, à única religião verdadeira; mas ao mesmo tempo devia reconheceresta religião verdadeixa como sendo umadas próprias religiões positivas e, precisamente, aquela que melhor seadequasse à religião natural. Tal foi de facto, a tarefa de que se incumbiuno Atheismus triumphatus o no Quod reminiscentur.

Na primeira obra, quetraz o subtítulo Recognitio religionis universalis,pretende de facto demonstrar que a roligião universal é a racional"infundlida em nós por Deus, comprovada pelos filósofos e pelas nações,reveladas pelos profetas e em seguida tornada pública sobrenaturalmente porDeus e ilustrada ,pelas graças, pelos verdadeiros milagres, pela profecia epela santidade" (Pref.). Esta religião uni,versal funda-se na razão, à qualjulgam conformar-se todos os povos da terra e à qual se conformam também todos os seres inferiores da natureza, seja sob uma forma expressiva seja de uma maneira implícita (Ath., 3, p. 23). Porque, entre todas as religiões positivas, cumpre escolher a que não só não repugna à natureza, comotambém lhe agrada e a aperfeiçoa (Ib., 10, P. 105); e tal só a religião cristá."Toda a lei (listo é, toda a religião) é razão ou regra de razão; portanto,toda a lei é participe ou esplendor da primeira Razão, da Sapiência de Deus,que é o Salvador, uma vez que a Razão é a própria Sabedoria que governa esalva todos os entes segundo o306

modo próprio de cada qluad" (Ib., 10, p. 107). Aquii, Campianella retoma oantigo conceiso, da patrístícia que identifica Cristo com a razão unwersal, edaí extrai o argumento para identificar a religião natural com ocristianismo. As leis poisitivas são especificações, explicações e aplicaçõesda mesma prima lei natural, A variedade destas não é irracional e não afliena de Deus os povos (Ib., p. 109). Basta, portanto, queos povos tomem consciência do único verdadeiro fundamento da sua religião, qualquer que ela seja, para, que se convertam ao cristianismo e ponham ~o à diiverWade das rekgiõ-os e dois estados (lb., p. 1051).É o Quod reminiscentur um, apelo a todos os povos da terra para que sedecidam a tal retorno.O título é tomado do Salmo 22: quod reminiscentur et convertentur ad Dominumuniversi fines terrae e

inspira-se no princípio fundamental de que todas ascoisas retornam ao seu principio. Campanella declara iminente o retorno detodos os povos da terra ao seu

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princípio, isto é, à reIiigião autêntica, ao crisuiani-smo genuíno docatolicismo. Por isso se dirige aos cristãos e aos não cristãos, nofificando-lhes os signos astrológicos e as profeciais que indicam o iminente retorno,para os convidar a agix em confoTmidade. E em primeiro lugar dirige-se aosumo Pontífice e a todos os -cristãos. "Eu peço-vos pelo reino dos santos,pela redenção de Cristo, pela esperança da glória futura, a fim de que nosrecordemos da nossa origem; e assim faremos com que sodas as nações seconvertam a Deus" (Quod rm., 1, 4. a. 1).

307

E úukca os Temédios prático-políticos, que devem provocar ou favorecer esteretomo e eliminar, pela reforma dos costumes e práticas do catolicismo, todasas possibilidades de abuso e reconduzu-lo à sua verdadeira natureza. É assimpartidário de uma

reforma moral do catolicismo, que, deixando inãterados os dogmas e aestrutura hierárquica da Igreja, a restitui à ordem e à s~,*cidade do períodopatríshico e, por consequência, à sua capacidade de proselitísmo e de difusãounáversal. Assim Campanella se inscr@a nos planos grandiosos da @greja daChntra-Refornia e acabava -por justificar e defender arenovada força deexpansão da própria Igreja. Mas com tudo isto enganar-nos-íamos sesupuséssemos a posição de Carapanella caracteriza @, por um conformisno ortodoxo. O plano profético de Campanella vk@a de^ a coincidir como plano e as exigências da ágreja da Contra-Reforma mas o móbü e ajustificação deste plano não eram nem podiam ser os da Igreja. Campanellaaceàta o catolicismo porque, o,identifica com a religião natural: aceita arevek-4o porque, sem as pr~as, e os milagres da religião, eJe não possuiforça persuasiva nem capacidade de difusão universaL O último fundamento daposição de Campanella é filosófico e naturalistico, não religioso. Ele éprofeta de uma rel@gião quetem as suas

raizes na natureza e na razão crítica; no entanto, se aceita o catolicismo,visa, para além dele, a um

fundamento natural, e racional, não tradi<áona,1 nem revelado, que só a tr~ e a Tevedação podem justifikar a seus ~s.308

NOTA BIBLIOGRMCA

§ 375. Obras de Reuchlin: Capnion sive de verbo mirifico, Basileéa, 1494;

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CoMniJa, 1532; Lião, 1552; De arte cabalistica, Spiro, 1494; Tubinga, 1514;Hagenau, 1517. GEIGER J. R., Sein Leben, und 8cine Werke, Leipzig, 1871.Obras de Agripa: De oculta phiZosophia, Colónia,1510, 1531-33; De incertitudine et vanitate s~tiarum. Colónia, 1527, 1534;Paris, 1529; obras completas, Lião,1550, 1600.

Obras de Paraoelso: Opecra, Basileira, 1589-91; Estraburgo, 1616-18; ~.,1658; Leipzig, 1903.STRUNTz, T. P., Leipzig, 1903; STILLMANN, T. P.,,1922; 1. BETsKART, T. P., Zurdque, 1947, K. GOLDAMMER, P., Tubdnga, 1952.

Obras de Fraciasboro: De sympathia et antipathia rerum, Lião, 1545; Opera omnia, Veneza, 1555, 1574; Lião, 1591. LASSWITZ; Gesch. der Atomistik, I, Mamburgo, 1890, p. 306 segs.; CASsiRER, Gesch. des Erkenntnisproblems, 1, Berlim, 1906, p. 208 segs.; PAULO Rossi, in "Riv. critica di storia della fil.", 1954.Obras de Cardano: ed. -completa, Lião, 1663, 10 vol. A autobiografia De vita propria foi traduzida paira italiano por Mantovani e foi dada à estampa várias vezes.Obra,9 de Della Porta: Magia naturalis, Nápoles,1558; 2.1 -ed., 1589; De humana physiognomia, Vico Equense, 1586; Derefractione, Nápoles, 1593.-FioRENTINo, Giovani Battista della Porta, inStudi e

ritratti della rinwcenza, Bari, 1911, p. 235 segs.Obras de Helmont: ed. completa de Lião, 1667. Obras de Fludd: Philosophia mosaica, Gudae, 1638; ed. completa, 1638.§ 376. Sobre a vida da Telésio: BARTELLI, Note biografiche, Cosença, 1906.Ed., De rerum natura: Nápoles, 1586, 1587; Génebra, 1588; Colónia, 1646;309

nova ed. ao cuidado de Spampanato, vol. 1, Modena,1910, vol. II, GénGva, 1913; vol. 111, ~a, 1923.

§ 377. FioRENTINO, B. T., ossia studi storioi su Pi~ della natura nelrinascimento italiano; 2 vol,, Florença, 1872-74; GENTILE; B. T., in Il~stero italiano nel rinascimento, Florença, 1940, p. 175 segs.; ABBAGNANO, Telésio, Milão, 1941, com bibliografia.§ 379. Obras de Bruno: Opere italiane; ed. Wagner, 2 vol., Leipzig, 1829;edição de Lagarde, Gottingen, vol. 1, 1888; vol. 11, 1889; ied. Gentil-e,vol. I, Dia@oghi metafisici, Bari, 1907; 2.a ed., 1925; vol. II, Dialoghimorali, Bari, 1908; 2.1 ed., 1927; vol. IIII, Candelaio, Bari, 1907-09; 2."ed., 1923, Opere látine: ed. n;acional, parte@s 1 e II ao cuidado deFiorentino, 1880-86; partes111 e IV ao cuidado -de Tocco e Vitelli, Florença,1889-91. No texto é citada a 2., ed. GentIle das obras italianas e a ed.nacional das obras latinas.

Sobre a vida de Bruno: SPAMPANATO, V#a di G. B., 2 vol, Messina, 1921.

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Um Bruno profeta religioso é apresentado por CORSANO, 11 pensiero di ~dano Bruno nel suo svolgimento storico, Florença, 1940.O ensaio de OLSCHKi, Giordano Bruno, Bar!, 1927 é uma áspera crítica ao pensamento de Bruno reportado, nas suas características fun~entais, às deficiências psiquicas e por isso reduzido a notações puramente psicológicas. A exposição de Guzzo, 1 dialóghi del Bruno, Turim, 1932, é uma subentendida polémica, com ~hki; L. FIRPO, II proceso di G. B., Nãpoles, 1949; D. WALEY SINGER, G. B., His Life and Thought, Nova lorque, 1950.Sobre o conceito da verdade como filia te~oris (desenvolvido no entantode modo unilateral): GENTILE, G. B. e il pensiero del rinascimento, Florença, 1920.§ 380. Que a exposição bruniana das doutrinas de Copérnico é confusa e incompreensível por defeito de informação científica notou-o Schiapparelii.310

§ 381. Sobre a obras latinas: TOCeo; Le opere latine di G. B. esposte econfrontate con le italiane, Florença, 1889; LASSWITZ; Gesch. der Atomistik, p. 395; CASSIRER, Gesch. des Erkenntnisproblems, I, p. 368 segs.§ 382. Sobre as doutrinas gnoseológicas e morais: D1LTREY; Analisi dell'uomo, trad. itali., p. 66 segs.; CASSIRER; Individuo e cosmo, passim.§ 383. Sobre a vida de Campanella: AMABILE, Fra T. C., Ia sua congiura, esuoi processi e Ia sua pazzia,3 vols. Nipoles, 1882; Id... Fra T:,C. nel Castelli di Napolí, in Roma ed inParigi, 2 vdl., Nápoles, 1887. Sobre os escritos: FiRpo, Bibliografia degliseritti di T. C., Turim, 1940; ID., Ricerche campanelliane, Florença, 1947.

Edições: Philosophia sensibus demonstrata, Nápoles, 1591; Compendium da rerumnatura, Francoforte,1617; Del senso delle cose e della magia, Franeoforte,1620; Paris, 1636; Paris, 1637 (todas ra trad. lat.); @ed. do texto italianoao cuidado de Bruers, Bari, 1925; Philosophia realis, Francoforte, 1623;Paris, 1637; Epilogo magno (texto ital.), ao cuidado de Ottaviano, Roma,1939; Città del sole (texto itaL e lat.), ao cuidado de Bobbio, Turini, 1941;Astrologicorum libri VII, Lião, 1629-30; Francoforte, 1630, Atheismustriumphatus, Roma, 1631; Paris, 1636; De gentilismo non

retinendo, De praedestinatione, em vol. com o escrito precedente; Philosophia rationalis, Paris, 1638; Poetica (texto itali. e lat.), ao cuidado de Firpo, Roma, 1944; Metaphysica, Paris, 1638;Quod reminiscentur (as primeiras duais das quatro partes), ao cuidado de Amerio, Pádua, 1939; TheoZogia, ao cuidado de Amerlo, livro 1, Milão, 1936, livros XXVII-XXVIH, Roma, 1955: Discorso sui paesi bassi, Lião, 1617, 1626 (texto lat.); texto it&. ao cuidado de Firpo, Turim, 1945; Monarchia di Spagna, Amsterdão, 1640, 1641, 153, texto ital.In Opere di T. C., ao cuidado de D'Ancona, Turim, 1854, vol. II, p. 77s@egs.; Aforismi politici, ao cuidado de

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311

Firpo, Turim, 1941; Monarchia del messia, Iesia, 1633 ,(t~ lat.); Discorsodella libertà e della felice suggest"e dello stato ecelesiastico, Iesi, 1633;Discorsi aí principi d'Italia, ed. Firpo, Turim, 1945; Antivenefi, ao cuidadode Firpo, Florença, 1945; Apoloffla pro Galileo, Franeoforte, 1622; Poesie, ed. Gentile, ed. Vindguerra, Bari, 1938; Lettere, ao cuidado de Spampanato, Bari, 1927; Syntagma di libris propriis, ed. Spampanato, Florença, 1937.§ 384. Sobre as doutrinas filosóficas: FELICI; Le dotrine filosofico-religioso di T. Campanella, Lanciano, 1895; CORSANO, T. Campanella, Milão, 1944; 2., ed. Bari, 1961.§ 385. A interpretação idealística do princípio da autoconsciência foiapresentada por GENTILE, Studi sul rinascimento, Florença, 1936, p. 189segs.; ID:, Il pensiero italiano del r@nwcimento, Florença, 1940, p. 357segs.; e é validada como único critério hist6rico-critico por DENTICE diACCADIA, T. C., Florença, 1921.

§ 386. Sobre a metafísica especialmente: BLANCHET, Campanella. Paris, 1920, parte IV.§ 387. AmABiLE, na citada biografia de Campanella, sustenta a tese de que ofilósofo Intimamente convicto da verdade da religião natural, privada de todaa estrutura revelada, simulou aderi-r ao catolicismo nunia atitudeoportunista. Esta tese apresenta-se atenuada nas monografias citadas deBLANCHET e de DENTICE, segundo os quais a adesão de Campanella ao catolícismoseria fruto de uma transigência considerada necessária pelo filósofo, paraconseguir a realização prática de sua reforma filosófica, embora no seuIntimo permaneicesse fiel ao racionalismo. T~ aaiãloga é sustentada porTREVES, La filosolia politica di T. C., Bari, 1930, ao passo que BOBBio, noprefácio à sua ed. da Città del sole (p. 42), retonia, na sua crueza a tesede AmABiLE. A. CORSANO, T. Campanella, Milão, 1944,

312

inclína-se ainda@ embora com mais equilíbrio, para a tese de AmABILE. Emcontrapartida. R. AMERIO, em numerosos artigos, entre os quais sãoparticularmente notáveis Di alcune aporie dell'interpretazione deisUcacampanelliana al lume degli inediti, in "Riv. di fil. neoaool.", 1934, p. 605segs., sus@tentou a perfeita ortodoxia de Campanella, negando quer a tese da simulação, quer a da transigência oportunística. r@, difícil impugnar as conclusões de AMERIO, fundadas em textos inéditos de Theologia, pelo que respeita à adesão convicta de Campanella ao ca!tolicismo, que ele reconhecia indubitàvelmente como a religião natural. A não-ortodoxia de Campanella consiste apenas (como resulta no t-e>.@to) do móbil daquela adwão que não é a fé na revelação mas o naturalismo metafisico. Este móbjl exclui todavia qualquer simulação ou

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transigência oportunística e implica a íntima unidade da posição filGsófi@ca de CampaneUa.313

N D 1 C E

QUARTA PARTEA FILOSOFIA DO RENASCIMENTOI-RENASCIMENTO E HUM-ANISMO ... 9

§ 332. O problenia histórico ... ... ... 9 § 333. OHumanismo ... ... ... ... ... 12 § 334. O Renascimento ... ... 21 §335. @@oi@gens d& --* 25, §336. Dante . .. ... ... ... ... ... ... 31 §337. Petrarca ... ... ... ... ... ... 34 §338- Humanistasitalianos: Salutati,

Bruni, Raimondi, nlelfo ... ... 38 §.339. Lourenço Valla ... ... ... ... 43 §340. Humanistas, italianos: Fazio, Ma-

n,etti, Alberti, Palmieri, Sacchi, Nizolio .. . ... ... ... ... ... 47§341. Bovilo ... ... ... ... ... ... ... 50 §342. Humanistasfranceses, espanhóis e

aJemães ... ... ... ... ... ... 54 §343. Montaigne ...... ... ... ... ... 57 §344. Charron, Sanchez, Lipsio ...... 66

Nota bibliográfica ... ... ... ... 71

315

II - RENASCIMEMTO E POLITICA ... 77

§ 345. Maquiavel ... ... ... ... ... 77 § 346.Guicoiardini, Botero ... ... ... 86 § 347. T. Moro, G. Bodin .. . --- ... ... 92 § 348. O Jusnaturalismo ... ... ...... 99

Nota bibliográfica ... ... ... ... ios

UI - RENASCIMENTO E PLATONISMO ... 111

§ 349. Nícolau de Cusa a douta ignorância ... ... ... ... ... ... ... 111 § 350. Nicolau de Cusa: omundo da conjectura ... ... ... ... ... ... 116 § 351. Nicolau de Cusa: a doutxIna dohomem ... ... ... ... ... ... 121 § 352. Nicollau de

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Cusa: a nova cosmologia ... ... ... ... ... ... ... 124 § 353. O Platonismoitaliano ... ... ... 127 § 354. Ficino: a alma, cópula do mundo 131 § 355. Ficino: a doutrina doamor ... ... 136

316

§ 356. Leão Hebreu ... ... ... ... ... 139 § 357. Pico deMirândola: a paz regeneradora ... ... ... ... ... ... 140 § 358. Pico de Mirãndola: Cabala, Magia

e Astrologia ... ... ... ... ... 145 § 359. Francisco Patrizzi ... ... ... ... 149

Nota bibliográfica ... ... ... ... 151

IV-RENASCIMENTO E ARISTOTELISMO 155

§ 360. O primeiro aristotelismo ... ... 155 §361. Averroistase Alexandristas ... 158 §362. Pomponazzi: a ordem natural domundo ... ... ... ... ... ... 164 §363. Pomponazzi: anaturalidade da

aãma ... ... ... ... ... ... ... 169 §.364. Pomponazzi:liberdade e necessídade ... ... ... ... ... ... ... 172 §365. Outros aristotélicos ... ... ... ... 175

Nota bibliográf . ... ... ... ... 181

317

V - RENASCIMENTO E REFORMA ... ... 185

§ 366. O retorno às origens cristãs ... 185 § 367. Erasmo ... ... ... ... ... ... 187 § 368. Lutero ... ... ... ... ... ... 196 § 369. Zwingli ... ... ... ... ... ... 204 §370. Calvino ... ... ... ... ... ... 207 § 371. Teólogos e místicos da reforma ... 211 § 372. O racionãl@ismo religioso ... ... 220 § 373. A contra-reforma ... ... ... ... 223

Nota bibliográfica ... ... ... ... 230

VI-RENASCIMENTO E NATURALISMO ... 235

§ 374. Magia, Fil~fia, natura11; Ciéncia, 235 § 375. A

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Magia... ... ... ... ... ... 238 § 376. A Filosofia natural;TeIésio ... 248 § 377. Telésio: os princípios gerais da

natureza ... ... ... ... ... ... 251

318

§378. Teléoio: o homem como natureza e como alma imortal ... ... ... 254 §379. Bruno: o amor da vida ... ... 260 §380. Bruno: a relígião da natureza ... 266 §381. A teoria do mínimo eda mónada 271 §382. Bruno: o infinito e o homem ... 277 §383. Campan&,Ia: Vida e Escritos ... 281 §384. Campanella: Física e Magia ... 288 §385. Campanella: oconhecimento de si 293 §386. C~anella: a metafísica ... ... 298 §387. Campanella: a política religiosa 301

Nota bibliográfica ... ... ... ... 309

319

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