19
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mestrado em Urbanismo V SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO “Cidades: temporalidades em confronto” Uma perspectiva comparada da história da cidade, do projeto urbanístico e da forma urbana. SESSÃO TEMÁTICA 2: ARQUITETURA DA CIDADE FERROVIAS E CONSTRUÇÃO DA CIDADE MODERNA Coordenadora: RACHEL COUTINHO (FAU-UFRJ) A ferrovia e três utopias urbanas, ou como os pioneiros viam o trem: Uma análise comparativa entre “Cidades Jardins, “Cidade Linear” e “Cidade Industrial”. Antônio José Pedral Sampaio Lins Mestrando do PROURB - Programa de Pós Graduação em Urbanismo da FAU/UFRJ. Mostraremos neste trabalho a contribuição que alguns autores, como Ebenezer Howard, Arturo Soria y Mata e Toni Garnier, considerados posteriormente como utópicos, propuseram como solução de desenho para as cidades. Dentro destas propostas, comentaremos de forma comparativa como foi que utilizaram a ferrovia, meio de transporte recentemente criado, então, como definidores de conceitos e desenhos de cidades. Inicialmente entendemos que os conceitos estabelecidos por estes autores, no período entre o fim do século passado e início deste século, tiveram grande importância na forma de se pensar as cidades à partir de então. Choay, em “Urbanismo em Questão”, reconhece que a questão do pensamento urbano no período tenta opor uma ordem a uma possível desordem nas cidades: “Aquilo que se entende como desordem clama sua antítese, a ordem” (1965; 15). Desta maneira, reconhecemos que, desde “A República” de Platão, passando pela “A Utopia” de Thomas Morus (século 17 e 18), diversos autores se interessaram pelo ideal das cidades. Usando o discurso ou propondo políticas, tinham a intenção de indicar modelos de cidades. Ou como, mais uma vez, nos indica Choay citando Mannheim, “...nós consideramos como utópicos todas as idéias situacionalmente transcendentes (e não somente as projeções de desejo) que são, de uma maneira geral, um efeito de transformação sobre a ordem histórico social existente”. Assim a autora classifica o modelo que denominou de progressista, aquele que se identifica com “‘o ideal humanitário liberal’ e uma parte de sua ‘idéia socialista comunista’”(Idem; ibidem). Algumas cidades européias e americanas eram, no período entre meados dos séculos XIX e XX, o retrato do caos espacial urbano e dos conflitos gerados pelo processo de industrialização. A grande migração da mão de obra do campo para as cidades, atraída pelas novas oportunidades de trabalho nas indústrias, transformaram as cidades em verdadeiros caldeirões de concentração humana e conflitos sociais. As cidades incharam, transformando-se num cenário de degradação e perda acelerada da qualidade de vida. Choay chama a atenção que “do ponto de vista quantitativo, a revolução industrial foi prontamente seguida por um impressionante crescimento demográfico das cidades” às

571-1134-1-SM (1)

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Artigo sobre desenho urbano

Citation preview

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE CAMPINAS Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

    Mestrado em Urbanismo

    V SEMINRIO DE HISTRIA DA CIDADE E DO URBANISMO Cidades: temporalidades em confronto

    Uma perspectiva comparada da histria da cidade, do projeto urbanstico e da forma urbana.

    SESSO TEMTICA 2: ARQUITETURA DA CIDADE

    FERROVIAS E CONSTRUO DA CIDADE MODERNA Coordenadora: RACHEL COUTINHO (FAU-UFRJ)

    A ferrovia e trs utopias urbanas, ou como os pioneiros viam o trem: Uma anlise comparativa entre Cidades Jardins, Cidade Linear e Cidade

    Industrial.

    Antnio Jos Pedral Sampaio Lins Mestrando do PROURB - Programa de Ps Graduao em Urbanismo da FAU/UFRJ.

    Mostraremos neste trabalho a contribuio que alguns autores, como Ebenezer Howard, Arturo Soria y Mata e Toni Garnier, considerados posteriormente como utpicos, propuseram como soluo de desenho para as cidades. Dentro destas propostas, comentaremos de forma comparativa como foi que utilizaram a ferrovia, meio de transporte recentemente criado, ento, como definidores de conceitos e desenhos de cidades. Inicialmente entendemos que os conceitos estabelecidos por estes autores, no perodo entre o fim do sculo passado e incio deste sculo, tiveram grande importncia na forma de se pensar as cidades partir de ento. Choay, em Urbanismo em Questo, reconhece que a questo do pensamento urbano no perodo tenta opor uma ordem a uma possvel desordem nas cidades: Aquilo que se entende como desordem clama sua anttese, a ordem (1965; 15). Desta maneira, reconhecemos que, desde A Repblica de Plato, passando pela A Utopia de Thomas Morus (sculo 17 e 18), diversos autores se interessaram pelo ideal das cidades. Usando o discurso ou propondo polticas, tinham a inteno de indicar modelos de cidades. Ou como, mais uma vez, nos indica Choay citando Mannheim, ...ns consideramos como utpicos todas as idias situacionalmente transcendentes (e no somente as projees de desejo) que so, de uma maneira geral, um efeito de transformao sobre a ordem histrico social existente. Assim a autora classifica o modelo que denominou de progressista, aquele que se identifica com o ideal humanitrio liberal e uma parte de sua idia socialista comunista(Idem; ibidem). Algumas cidades europias e americanas eram, no perodo entre meados dos sculos XIX e XX, o retrato do caos espacial urbano e dos conflitos gerados pelo processo de industrializao. A grande migrao da mo de obra do campo para as cidades, atrada pelas novas oportunidades de trabalho nas indstrias, transformaram as cidades em verdadeiros caldeires de concentrao humana e conflitos sociais. As cidades incharam, transformando-se num cenrio de degradao e perda acelerada da qualidade de vida. Choay chama a ateno que do ponto de vista quantitativo, a revoluo industrial foi prontamente seguida por um impressionante crescimento demogrfico das cidades s

  • 2

    custas de uma drenagem dos campos em proveito de um desenvolvimento urbano sem precedentes (1965, 10). Elas no estavam preparadas para os impactos do seu crescimento rpido. As moradias disponveis eram insuficiente para receber as levas de migrantes. Eram verdadeiras hordas sub humanas, que se abrigavam onde podiam, aceitando condies de vida e moradia indignas (Benvolo; 1983, 552) 1.

    Ilustrao 1: 2 Gravuras de Gustave Dor (1872): Viso de bairros populares de Londres. (Benevolo, 1983: 560) . O trem vapor, novo meio de transporte de passageiros e cargas, foi sendo construdo e

  • 3

    incorporado s cidades, nos anos quarenta do sculo XIX. Algumas vezes de forma livre e sem planejamento, rompendo, em alguns casos, as estruturas fsicas urbanas existentes. A interferncia desestruturadora provocada pela construo das ferrovias nas cidades era facilmente aceita em troca do conforto e das convenincias que trazia. A falta de um controle pblico das aes no espao urbano foi um dos motivos para esta rpida deteriorizao. Com o objetivo de entender e minimizar estes impactos, alguns autores propuseram solues para a grande confuso urbana. Foram pensadores que preocupavam-se, principalmente com os grupos sociais e as condies de vida nas cidades. Alguns destes autores no levarem em considerao a via frrea como elemento de segregao espacial. Outros formularam solues de desenho que adotavam a ferrovia como elemento de segregao. Quais foram as contribuies de alguns destes autores e da ferrovia para o desenho das cidades? As novas solues de desenho ou de cidade, pioneiras no perodo, usaram, em alguns casos, o trem e a ferrovia como elementos estruturadores da cidade. Assim foi com os trs autores e suas respectivas propostas que analisaremos aqui: Ebenezer Howard e as Cidades Jardins (1898), Arturo Soria y Mata e a Cidade Linear (1886) e Tony Garnier e a Cidade Indstrial (1915). Estas trs propostas, de certa maneira, introduziram novos conceitos de desenho urbano inditos at ento. Suas influncias se fizeram sentir de vrias maneiras. As Cidades Jardins de Ebenezer Howard, por exemplo, tiveram reflexo at o segundo ps-guerra na ocupao dos subrbios jardins das cidades inglesas e norte-americanas. Soria y Mata props uma forma de unir os ncleos urbanos por meio de uma Cidade Linear, propondo a ruralizao da vida urbana. Tony Garnier introduziu no pensamento urbano a noo do zoneamento das funes urbanas com sua Cidade Industrial, influenciando posteriormente a Le Corbusier e a Carta de Atenas. Boa parte do que ocorreu na teoria das cidades no segundo ps-guerra foi formulado por conceitos de alguns visionrios que viveram e escreveram muitos anos antes, no perodo entre o fim do sculo XIX e incio deste sculo. Sabemos, hoje, que muitos deles foram ignorados por seus contemporneos (Hall,1990;2). Alguns foram rotulado de utpicos. Veremos a seguir cada um dos exemplos em questo. Traaremos, por fim, algumas concluses sobre a forma como as ferrovias influenciaram e foram importantes no desenho de cada um desses autores, com a inteno de mais a frente estender esta anlise aos bairros suburbanos ferrovirios da cidade do Rio de Janeiro. 1. A Ferrovia no pensamento de Ebenezer Howard Ebenezer Howard escreveu seu trabalho sobre as cidades do amanh com o ttulo de To-morrow: a Peaceful Path to Real Reform (Amanh: um Caminho Suave para Reforma Verdadeira)2, publicado em 1898. Posteriormente, na edio de 1902, assumiu o seu ttulo definitivo Garden Cities of To-morrow3 (Cidades Jardins do Amanh)4. Franoise Choay classifica-o como um autodidata e militante do movimento socialista ingls. Considera-o um culturalista e identifica no interior de seu modelo a preocupao com a situao do grupo humano e no mais do indivduo isoladamente (1965: 21). Suas preocupaes com os grupos sociais tinham muita proximidade com o pensamento

  • 4

    socialista e anarquista do incio do sculo. Suas vises utpicas sobre o comportamento dos habitantes da cidade jardim tinham mais componentes de sociedades alternativas que de desenhos alternativos. Howard sintetizou conceitos e tcnicas dispersas at ento, com tal originalidade para seu tempo, que o trabalho ganhou grande destaque. Ele abordou desde temas como a viabilizao do investimento, da organizao administrativa envolvendo um grupo de administradores, conselheiros, financiadores, educadores, empreendedores e lderes de livre associao, at a sugesto de um diagrama. O diagrama propunha desde a organizao de uma cidade em si, at a ocupao do territrio e uma rede de Cidades Jardins, ocupando uma regio inteira. Howard criou uma empresa para viabilizar sua proposta, a Garden Cities Association, que passou a se chamar Gardens Cities and Town Planning Association em 1909 e, posteriormente, Town and Country Planning Association em 19415. A concretizao das cidades jardim de Letchworth (1903)6 e Welwyn Garden City (1919)7, serviu como base para o desenvolvimento de outras cidades novas posteriores. O livro de Howard pode ser considerado como um captulo importante no moderno pensamento ingls sobre cidades. Podemos fazer um paralelo com o uso de seus conceitos e as atuais cidades novas inglesas. Da mesma forma pode-se traar um paralelo com o movimento em direo aos subrbios das cidades norte-americanas na dcada de 1950. Seu conceito foi baseado na idia dos trs magnetos. O autor considerava que a soluo para os problemas das cidades conturbadas estaria centrado num movimento de equilbrio do homem com a natureza. Ele identificava na grande concentrao populacional das cidades do final do sculo 19 o seu grande problema. Os trs magnetos considerados por ele foram: cidade, campo e cidade-campo, sendo que o homem era o centro de gravidade da teoria. A imagem de um magneto, escolhida simbolicamente pelo autor, identificou diversos atrativos ou conceitos que cativariam os homens para a cidade ou campo como ms. Essa forma simblica, como vemos na ilustrao 1, levava em considerao que o homem deveria ser o ponto de equilbrio dos trs magnetos. Nas suas palavras, afirmava que no haviam somente duas opes de vida, vida na cidade ou vida no campo, ...mas sim uma terceira alternativa, na qual todas as vantagens da mais energtica e ativa vida na cidade, com todas as belezas e delcias do campo, podem ser asseguradas em perfeita combinao; e a segurana de ser possvel de viver essa vida ser o magneto que produzir o efeito para o qual todos ns lutamos o movimento espontneo das pessoas de nossas barulhentas cidades para o seio de nossa gentil me terra, imediatamente a fonte de vida, de alegria, de sade, e de poder (1985: 9).

  • 5

    Ilustrao 2: Magneto, segundo proposta de Howard (Howard, 1985; 9).

    O autor props que o magneto cidade-campo, posteriormente denominado cidade-jardim, estivesse contido numa rea de 6000 acres, cujo centro seria ocupado pela cidade em s. A cidade-jardim, segundo Howard, teria uma rea de 1000 acres, ou seja a sexta parte do seu territrio, podendo ser na forma circular, ...com 1240 jardas (aproximadamente 3/4 de milha) do centro ao ponto extremo da circunferncia (idem: 14) (ver ilustrao 3). Do centro dessa circunferncia, em direo ao crculo perifrico, partem seis boulevards de dimenses magnficas, com aproximadamente 36,00 m de largura, dividindo a cidade em seis distritos. Esse centro seria ocupado, tambm com uma forma circular, ... com cinco acres e meio, ... de belos e bem tratados jardins. Como limite dos jardins do crculo central das quadras imediatamente subsequentes, se encontrariam os prdios pblicos principais, como a prefeitura, a casa de concertos e conferncias, teatro, biblioteca, museu, galeria de artes e hospital. As seis quadras, com a forma de segmentos de crculos que abrigariam os prdios principais, seriam ocupadas por um Parque Central, com 145 acres, e teriam como limites pelo outro lado por um Palcio de Cristal, composto de seis construes na forma de arcadas e cobertas de vidro. Essas construes, alm de servir como abrigo para os pedestres, poderiam abrigar, pequenos negcios ambulantes. Seus espaos vazios serviriam como um jardim de inverno. A partir da quinta avenida, que limitaria o Palcio de Cristal, estariam situados as quadras residenciais, ...alinhada, como so todas as demais da cidade, com rvores - ...onde ns encontramos um anel de casas excelentemente construdas, cada uma situada em seus amplos e prprios terrenos(idem: 17).

  • 6

    Ilustrao 3: Diagrama das Cidades Jardins (Howard, 1985; 15).

    O dimensionamento ideal da cidade foi para abrigar 30 000 habitantes na rea urbana e para 2 000 nas reas agrcolas. A cidade teria 5 500 lotes com a dimenso aproximada de 6.00m por 36.00m. Os lotes seriam sob a forma de jardins comuns e, em alguns casos, o autor admitia que tivessem cozinhas cooperativas. No crculo mediano da cidade seria construda a Grande Avenida, ...com 128m de largura e formando um anel verde... com 4.83km de comprimento, criando um parque adicional com 115 acres, situado, dessa forma, a no mximo 220m do terreno mais afastado. No centro desta avenida estariam reservadas reas para a construo de escolas pblicas, cercadas de jardins e playgrounds, e igrejas de diversos cultos (ver ilustrao 4). Finalmente, o autor descreve dessa maneira o limite externo da cidade: No anel externo da cidade esto as fbricas, armazens, leiterias, mercados, depsitos de carvo, depsitos de madeira, etc., todos frontais ao crculo da ferrovia, que cerca toda a cidade, e que se conecta lateralmente com a linha (ferroviria) principal que cruza a regio. Esse arranjo permite que as mercadorias sejam carregadas diretamente nos caminhes dos depsitos e fbricas, e assim sejam remetidas para os mercados distantes por ferrovia, ou que sejam retiradas dos caminhes para os armazens; isto no somente economizaria uma boa quantia no que diz respeito ao empacotamento e transporte, ... , reduzindo o trfego nas ruas da cidade, e dessa forma os custos para sua manuteno. O demnio da fumaa ficaria bem controlado na Cidade Jardim; todo o maquinrio movido pela energia eltrica, cujo custo para iluminao ou outros usos bem mais baixo (Idem:18).

  • 7

    Ilustrao 4: Diagrama para o centro da Cidade Jardim (Howard, 1985; 16). O limite externo que define o plano de transio entre a cidade e o campo caracterizado pelo anel ferrovirio descrito acima. A ferrovia, nesse caso, definidora do espao urbano, como se a rea por ela ocupado formasse um anel divisrio, quase como uma muralha. Junto faixa de domnio da estrada de ferro esto dispostas as fbricas e os depsitos, reforando a diviso espacial cidade - campo. A ferrovia adquire um aspecto importante na proposta de Howard. Alm do aspecto do diagrama, que destacamos anteriormente, a relao da Cidade Jardim com seu territrio estabelecido pela via frrea. Assim tambm tratada a ligao dos diversos ncleos urbanos e o que seria a capital, numa rede de Cidades Jardins, que o autor denominou de Central City (ver ilustrao 5). Segundo Howard, cada vez que uma Cidade Jardim alcanasse o nmero limite de habitantes, seria criada outra Cidade Jardim com as mesmas caractersticas, a uma distncia tal que houvesse um campo de agricultura para cada cidade entre elas. O conjunto das cidades formaria um anel em torno de uma Cidade Central, e se comunicariam por um sistema de vias frreas 8. Dessa forma o Autor defende que esse sistema seria um sistema ferrovirio e no um caos ferrovirio, como o que servia os subrbios Londrinos de ento. Lembramos que a ferrovia a vapor tinha, ento, menos de 60 anos de existncia quando Howard escreveu seu trabalho. A insero da ferrovia na malha urbana era, tambm, recente 9, pois suas vias no cortavam a cidade existente. Os primeiros terminais ferrovirios construdos ficavam na, ento, periferia das cidades.

  • 8

    Ilustrao 5: Diagrama do territrio com as Cidades Jardins (Howard, 1985; 106). No diagrama das Cidades Jardins o papel que a ferrovia teve foi assumido como um forte aliado. Howard afirmava que:

    Essas relquias do passado que foram criadas h mais de sessenta anos atrs, embora algumas delas sejam de infinito valor como memria, exemplos e heranas, no so, ... , certamente de um tipo que precisemos combater ou com o qual precisemos polemizar (Idem; 97), referindo-se introduo na Inglaterra da ferrovia, da luz eltrica, do suprimento de gua potvel e do gs. Dessa forma usou o traado da via frrea como um elemento de

  • 9

    desenho, supondo que a faixa da via era um elemento suficientemente forte para garantir a segregao espacial entre a cidade e os campos de agricultura imediatamente prximos da rea urbana. Na sua concepo, um cinturo de indstrias e galpes era suficiente para criar o limite formal entre a ferrovia, a cidade e o campo, sugerindo que estes elementos fossem utilizados como segregadores espaciais. Howard, como Owen, idealizou dar as costas s metrpoles industrializadas e instalar um padro de povoamentos de auto-suficientes campos cidades e foram os primeiros a considerar o dispositivo do anel verde obrigatrio(Kostof, 1992; 55). Considerando-se que o anel verde proposto por ambos situava-se imediatamente aps o anel ferrovirio, podemos afirmar que os dois compartilhavam quanto s intenes da segregao espacial. Sua proposta visava mais uma sociedade alternativa que um desenho alternativo. 2. A Cidade Linear de Soria y Mata e a Ferrovia Arturo Soria y Mata considerado o inventor da Cidade Linear. Para alguns autores esta foi a ltima utopia urbana do sculo XIX (Sambricio, 1984; v). Soria y Mata ao interpretar a sua idia de uma cidade com a forma linear, estava, na realidade, colocando em prtica alguns pensamentos expressos anteriormente: com essa cidade pretendia ...mudar no somente o modo de vida dos cidados mas tambm, mais profundamente, seus modo de pensar(Idem; v). Ignorando, de certa maneira, a diferena entre cidade e campo, e idealizando sua ...vontade de ruralizar a cidade, aproximando-se das idias expressas por Marx em seu Grundisse, Soria y Mata afastava-se das proposies urbanas dos socialistas utpicos(Idem; v). Ao contrrio de Howard, em sua Cidade Jardim, Soria y Mata, no visava a criao de um ncleo satlite ligado metrpole.... Sua proposta no visava, maneira dos utopistas, a implantao de uma comunidade com organizao nostlgica...(Idem; v), e sua maior ambio era urbanizar o campo, e/ou ruralizar a cidade. Ao adotar uma forma completamente nova de encarar o problema e usando o conceito, anteriormente expresso por F. L. Olmsted, de abandonar as cidades velhas e seus vcios, e

    consciente de que a cultura urbana no mais que o reflexo da dominao do campo pela cidade, le pretende, por transformar o modo de vida ..., fazer funcionar a cidade de uma maneira rural(Idem; vi). Soria y Mata fundou uma das primeiras companhia de bondes (tramways) em Madrid, e sua proposta privilegiava as infraestruturas urbanas em relao s questes da moradia do trabalhador, ou mesmo as maneiras como os moradores iriam se comportar ou organizar. Segundo Sambricio ...o tema dos servios pblicos aparecia como um instrumento eficaz da luta contra um sistema corrompido e como um exemplo de uma gesto possvel do territrio, afastando, dessa forma, Soria y Mata da questo da moradia operria. O autor props que a cada famlia deveria corresponder uma moradia individual e, com ela, um pequeno e protegido jardim para ser cultivado (Idem; ix). Esta preocupao com a forma de morar definia, tambm, como seria a implantao dos terrenos destinados s residncias. Soria y Mata inicia dessa forma o texto de apresentao da Cidade Linear: Um dos traos mais marcantes do estado social atual o abandono dos campos e o congestionamento das cidades. Os campos iludidos, destitudos de conforto, de meios

  • 10

    de comunicao, de po, se esvaziam, e os camponeses emigram ou vo morar nos grandes centros, as cidades tentaculares, braseiros onde se consomem sem trgua as energias humanas(1984; 9), indicando que as questes sociais que o incomodavam tinham relao direta com a migrao dos camponeses para a cidade e o conseqente abandono do campo, ou ainda, o inchamento das cidades no fim do sculo XIX. A agricultura, por isto, ficava carente de mo de obra e o campo ainda no tinha como usufruir dos progressos da industrializao. As cidades, para ele, ficavam super populosas e os cidados migrantes sofriam todas as privaes ficando sujeitos a misria, ...prximos de uma ... guerra social(Idem; 9). O autor, semelhana de Howard, tambm criou uma empresa, a Compaia Madrilea de Urbanizacin, que chegou a construir uma pequena mostra da Cidade Linear para que se realizassem avaliaes numa escala real 10. Soria y Mata cita na introduo de seu trabalho diversos autores que o precederam, como Rousseau, Owen, G. Pecqueur, Tolsto, Ruskin, Morris Wells, Mantegazza, Zola, Beauclair, Fermin Caballero Vandervelde e Mline. Alguns desses autores eram mais conhecidos por sua obra literria ou potica do que por sua obra no campo do pensamento da cidade. A questo do inchamento das cidades e da falta de moradia, que incomodava Soria y Mata, era compartilhada por todos. Embora no cite nominalmente Ebenezer Howard, faz meno direta s Cidades Jardins. Afirma, tambm, que essas idias e conceitos, ...de paz, de trabalho, de progresso e de cultura, so fecundas e conseqentes, e no puras especulaes. Apresenta como prova de suas afirmaes o exemplo, cheio de xitos, segundo ele, da Cidade Linear construda nas portas de Madrid por sua Companhia. O xito, segundo o autor, ia das questes puramente de carter econmico s solues de drenagem, fornecimento de gua, produo agrcola, construo de muitos quilmetros de vias vicinais e frreas.

    Ilustrao 6: Projeto de Cidade Linear (Soria y Mata, 1984; 13 verso).

  • 11

    Para ele existiam trs formas onde cabiam a aplicao da Cidade Linear:

    1. ... o subrbio de expanso das grandes capitais, contornando os velhos centros de uma zona verde nas quais sero disseminadas as radiantes e belas villas;

    2. ...aglomerao servindo de trao de unio entre duas cidades j existentes, utilizando-se ou no de linhas retas e diretas, ou se adaptando suavemente aos acidentes do terreno;

    3. ...colonizao e repovoamento do campo (Idem; 15). Para tanto, props a utilizao de, entre outros, alguns princpios fundamentais:

    1. O plano de simetria, da sexualidade e da progresso que caracteriza a superioridade das formas animais sobre as formas vegetais, deve se manifestar tambm na evoluo das formas das cidades. ...A forma mais perfeita das cidades deve ser de acrdo ao plano da simetria, da sexualidade e da progresso das formas animais 11;

    2. O plano de uma cidade deve preceder a sua construo, assim como o projeto de uma casa precede a sua construo;

    3. As formas geomtricas das ruas e das quadras devero ser regulares, de preferncia, por que elas so as mais belas, mais asseadas e adequadas e vantajosas que as formas irregulares;

    4. A ocupao do terreno dever ter uma proporo de 1/5 de sua rea construda e 4/5 para rea cultivada;

    5. A triangulao para a ligao entre as cidades, liberando as terras intermedirias para a agricultura;

    6. Reverter o sentido do deslocamento das populaes para o campo e no mais para as cidades;

    7. Justia na repartio da terra ( Idem; 16 a 17).

  • 12

    Ilustrao 7: Projeto das ruas e dos lotes da Cidade Linear (Soria y Mata, 1984; 14). A forma como concebeu a Cidade Linear mostra suas preocupaes com a infra estrutura de uma cidade. Destaca-se, entre elas, a ferrovia uma vez que a forma linear a mais adequada para a construo de suas vias. Sua proposta est baseada em Uma rua central que serve de eixo toda a cidade(1984;12). A forma da cidade basicamente composta por essa via central, com uma largura uniforme de 40, 60 ou 100m, conforme o caso, ao longo da qual saem ruas transversais, direita e esquerda, em ngulo reto. A via estrutural conteria, alm da pista central, duas pistas de trfego local em cada lateral, jardins, caladas e ciclovia. Nela, tambm, estaria a via frrea, como o principal meio de transporte da Cidade Linear, pelas vantagens oferecidas por sua velocidade e confiabilidade (ver corte transversal, ilustrao 7). As ruas transversais teriam largura constante, de 20 40m, e se adequariam natureza e topografia do terreno. E, enfim, duas ruas nas extremidades de cada lado da rua principal, marcando o limite da extenso da Cidade Linear(idem; 12), paralelas principal, com largura de 10 20m. Essas duas vias seriam os limites laterais entre a cidade e o campo. Seriam plantadas, pavimentadas, teriam saneamento, bancos e quiosques vigias. A via central, a rua cardo, conforme denominao adotada pelo autor, poderia se estender indefinidamente e se constituiria ...em uma via maravilhosa de higiene, de urbanizao racional e esttica(idem; 12). Para ele a forma de desenvolvimento linear era extremamente conveniente, pois considerava que a via frrea era o melhor elemento de integrao entre os diversos ncleos urbanos que a Cidade Linear se propunha ligar.

    Ilustrao 8: Corte esquemtico na via principal da Cidade Linear (Howard, 1985: 13) Seu trabalho propunha um desenho alternativo e no uma sociedade alternativa. 3. Tony Garnier e a Cidade Industrial O projeto da Cidade Industrial foi concebido entre 1901 e 1904, sendo que foi editado pela primeira vez entre 1915 e 1917. Muitos autores reconhecem em Tony Garnier um marco no planejamento urbano moderno. Franoise Choay classifica-o como um Urbanista Progressista(1965;31).Pierre Bourdeux considera Tony Garnier como um dos pais da carta de Atenas, pois sua Cidade

  • 13

    Industrial j propunha a separao das funes, como produo, moradia e sade. Suas idias foram adotadas por autores posteriores, como Le Corbusier 12. Este chegou a comentar, em Maneira de Pensar a Arquitetura, que Tony Garnier era um dos urbanistas que estudou uma Cidade Industrial(de pequena envergadura, verdade). A Cidade Industrial contm as primeiras proposies de criao de um zoneamento urbano. Na concepo do autor os edifcios municipais encontram-se no centro, bem ordenados, porm todo seu contedo tem incio em um loteamento de residncias familiares...contguas ao mesmo centro urbano da cidade(Mariani, in Garnier, 1990;36). A separao das funes urbanas era acompanhada por uma exaltao dos espaos verdes como elemento adequado para o zoneamento. Mariani afirma, sobre Garnier, que aps a sua publicao, o trabalho no provocou maiores reaes que as discusses no interior da categoria( 1990;19). Porm so muitos os autores que discutem seu trabalho, reconhecendo a sua grande contribuio s modernas teorias do Planejamento Urbano 13. O trabalho de Garnier rico em desenhos e ilustraes, mas no foi suficientemente estruturado teoricamente. Suas observaes escritas so compostas de poucas notas para definirem a Cidade Industrial de uma maneira genrica, concentrando nos desenhos seu maior esforo. Os autores que o sucederam, Le Corbusier em especial, tenderam a reduzir sua grande contribuio a uma proposta do zoneamento. Mariani discorda afirmando que a sua (de Garnier) ...real inteno foi ... investir no layout urbano com o senso preciso da ordem, sem cobrir com uma cortina qualquer liberdade, tanto da configurao da cidade em si como nos padres de vida de seus habitantes (1990;21).Vale notar que Tony Garnier desde 1905 estabeleceu seu atelier de trabalho em Lyon, onde exerceu uma carreira de arquiteto, principalmente. Seus trabalhos construdos foram residncias unifamiliares e coletivas para operrios, mercados, matadouros, hospital, estdio municipal, bancos, memoriais, e outros projetos arquitetnicos. Chegou a projetar a sede das Naes Unidas em Genebra, no ano de 1924. Entrou em concursos de projetos de cidades ou de urbanismo para reas delimitadas, obtendo boas qualificaes, mas no teve nenhum projeto urbano de sua autoria concretizado. Retirou-se da profisso em 1936, e faleceu em 1948. Uma Cidade Industrial, de Tony Garnier, foi concebida como um Modelo. Embora tenha descido aos detalhes das construes que formariam essa cidade imaginria, o autor concebeu todas as suas estruturas. Limitou em 35 000 habitantes a populao da cidade, e acreditou que sua estrutura no se aplicaria para cidades maiores (Garnier,1990;43). O stio por ele idealizado possua muitas semelhanas com as cidades da regio das minas de carvo, no sudeste da Frana, e acreditava que esse esquema pudesse ser aplicado a algumas cidades como Rive-de-Gier, Saint-tienne, Saint-Chamond, Chasse e Givors. Tanto o stio como o material de construo escolhido para as edificaes eram caractersticos daquela regio da Frana (Idem;43). O stio foi imaginado como uma regio igualmente montanhosa e plana, sendo cortado ao sul por um rio navegvel. A parte plana da cidade, junto ao rio, seria ocupada por um grande parque industrial, servido por uma via frrea e sua estao ferroviria, e uma estao fluvial, ambas de cargas. Junto ao rio estariam, tambm, o abatedouro, a usina de tratamento de esgotos, estao de psicultura e terras agricultveis (ver mapa: Plan Gnral, ilustrao 6). O autor supunha a existncia de um ncleo histrico , composto por uma cidade j existente. Porm no incorporou esse ncleo, considerado por ele em projeto como centro da cidade, a nova malha proposta, mantendo-o como um bairro afastado, prximo da estao ferroviria. meia encosta o autor situou a malha urbana que conteria o centro de negcios e as quadras residenciais, destinando os pontos mais

  • 14

    elevados do stio aos estabelecimentos sanitrios, ou seja, hospitais, casas de sade, sanatrios e um local para hlioterapia. Garnier props nas margens de um curso dgua, situado a nordeste, uma usina hidroeltrica, que serveria, tambm, como usina de captao e tratamento de gua para abastecimento da cidade 14. Houve, da parte de Tony Garnier, uma preocupao evidente de criar, ou de determinar, um zoneamento territorial ao destinar reas distintas para os diversos usos. A orientao das construes em relao insolao na cidade foi, tambm, uma preocupao do autor. Afirmava que ...Como a cidade em si, esses (hospitais) so protegidos dos ventos frios, dispostos para a face sul em terraos em declive na direo do rio(Idem;43). Para tanto, os lotes possuiriam uma dimenso de 15.00m de comprimento por 15.00m de largura, e estariam contidos no distrito de moradias em quadras de 150.00m no sentido leste-oeste e 30.00 no sentido norte-sul. Ou seja, os lotes estariam dispostos no sentido leste-oeste, o de melhor orientao quanto a incidncia solar. A cidade foi estruturada com base numa grelha de estradas perpendiculares e paralelas, imaginadas em torno de uma via principal. Tem sua origem na praa da estao ferroviria, e as vias foram distribudas no sentido leste-oeste, para seguir a melhor orientao solar. As ruas norte-sul teriam largura de 20.00m e as leste-oeste de 13.00 a 19.00m. Todos os principais prdios pblicos estariam concentrados no distrito central e seriam agrupados por funes: a. Servios administrativos e locais de encontros; b. Museus; c. Esportes e lazer. Os prdios de servios administrativos, locais de encontros e os museus estariam situados em parques com acesso por uma rua principal, com viso para o vale e o rio, e orientao norte-sul. Os museus seriam agrupados em um parque, e cercados de monumentos, esttuas e marcos histricos. As escolas primrias seriam distribudas ao longo do setor residencial e estariam dispostas de maneira que atendessem um nmero de famlias e crianas equilibrados entre elas.

  • 15

    Ilustrao 9: Planta de situao e corte esquemtico da Cidade Industrial (Garnier, 1990; P. 1). O distrito central seria construdo em torno da estao ferroviria e estaria destinado a abrigar todos os prdios pblicos e coletivos, como os hotis, lojas de departamentos e mercado a cu aberto. Dessa maneira na praa da estao estariam concentrados todos os edifcios em altura da cidade, sendo que o resto da cidade teria um perfil de construes baixas. Em sua concepo, A estao um elemento de muita importncia e est situada na interseo da artria principal, que leva para fora da cidade, e as ruas que ligam a cidade a rea mais antiga margem do rio. O edifcio principal (a estao ferroviria) abre sobre a praa e sua torre do relgio visvel de toda a cidade. Facilidades e amenidades pblicas esto ao nvel da rua e caminhos subterrneos de pedestres so equipados com plataformas e salas de esperas (para os trens). O ptio ferrovirio est situado mais a leste, e os lados que servem as indstrias ao oeste. A ferrovia em si mesma vista como uma linha absolutamente reta, mostrando o uso de trens de grande velocidade(Idem;46). A ferrovia, em suas palavras, seria uma ferrovia que corre entre a cidade e o rio, elevada em um plano mais alto(Idem;44). De acordo com o desenho da cidade, a ferrovia cortaria a relao dos moradores com o rio, sendo um forte elemento segregador dos espaos da cidade. A ferrovia delimitaria o distrito industrial e seria o seu principal meio de transportes. O mesmo se daria com o distrito das minas de carvo. Apesar dos acessos rodovirios cidade, Garnier concebeu a ferrovia como seu principal meio de transportes. Seus diversos distritos se comunicariam atravs das vias frreas. Por fim, o autor termina sua descrio, sob a forma de memria, afirmando que esse era ...um esforo no qual todos podem apreciar que o trabalho uma lei humana e que o culto da beleza e benevolncia pode fazer da vida uma experincia verdadeiramente esplndida(Idem;48). Podemos dizer que Garnier idealizou, partir de um belo desenho de cidade, uma sociedade centrada no esforo do trabalho. Mais que uma sociedade alternativa props um zoneamento urbano. Para isto usou um desenho urbano que levou em considerao a ferrovia como elemento de segregao e marcao dos usos nas diversas zonas da Cidade Industrial. 4. Trs Autores, a Ferrovia e o Desenho de Cidades Com referncia aos esquemas e desenhos propostos por Ebenezer Howard para a Cidade Jardim, por Soria y Mata para a Cidade Linear e por Toni Garnier para a Cidade Industrial, pode-se dizer que os trs so contemporneos as preocupaes de sua poca. Suas motivaes foram o aspecto catico e a perda de referncia das cidades partir de meado do sculo XIX. Como assinalamos anteriormente, Benevolo nos mostra que em poucas dcadas o processo de industrializao provocou nas cidades uma exploso demogrfica. A perda

  • 16

    das formas tradicionais de controle pblico do ambiente levaram as cidades a experimentar o caos. As facilidades criadas pelos novos meios de comunicao ofereceram uma mobilidade at ento desconhecida (1983;551 e 552). O autor lembra que ...algumas desvantagens de ordem fsica (o congestionamento do trfego, a insalubridade, a feira) tornaram intolervel a vida das classes subalternas, e ameaaram ... o ambiente em que viviam todas as outras classes(Idem;552). As aes que visavam oferecer solues ao caos, segundo o autor, se dividiriam em duas vertentes: aes sobre a realidade das cidades existentes, com reformas setoriais; e alternativas de se produzir novas cidades, longe das cidades existentes. Os trs autores que consideramos optaram em propor novas cidades longe das existentes. Rob Krier, por sua vez, lembra que no perodo entre o fim do sculo XIX e incio do sculo XX os trs autores, Howard, Soria y Mata e Garnier, deram uma contribuio importantssima ao planejamento das cidades. Considera que Howard ao propor uma cidade com um tamanho razovel, limitando o nmero de seus habitantes, contribuiu para criar uma alternativa de dimenso para os centros urbanos. Ao comentar quanto ...aos planos de Soria y Mata e Garnier (considera que) so de substncia diferente. As ruas de suas cidades ideais so feitas no antigo sistema de grelhas, mas os prdios so colocados de maneira isolados uns dos outros. Suas proposies dissolvem a forma urbana tradicional e criam no seu lugar uma paisagem de Vilas(1979;65 e 66). De certa maneira, o movimento de descongestionar os centros urbanos fez com que os diversos autores propusessem solues de busca ou de volta ao campo. Hall denomina esse movimento de As Cidades nos Jardins(1993;86). Hall assinala que Howard era o mais importante como personalidade isolada, pois propunha-se a fundar uma srie de comunidades cooperativas. Acusavam-no por isso de desejar mudar as pessoas como pees de um tabuleiro de xadrs, quando no fundo ele pretendia que esse movimento fosse no sentido de se criar comunidades auto governveis (Idem;87). Hall considerou que Soria y Mata e Garnier fossem tradutores locais do movimento das cidades jardins. Consideramos que essas propostas foram de tal forma simultneas no tempo que, embora alguns autores conhecessem o pensamento de seus contemporneos, a base do movimento em direo ao campo pode ser creditado ao desejo de encontrar uma cidade mais justa. Os pensamentos socialista e anarquista do fim do sculo passado contribuiu muito para isto, conforme assumido por empreendedores liberais como Mata e Garnier 15. Os trs, Howard, Soria y Mata e Garnier, optaram por oferecer alternativas de construes de novas cidades, no exterior das cidades existentes. Com motivaes semelhantes, quanto a necessidade de se ocupar as reas rurais, diferem seus pontos de vistas quanto a funo do desenho em si. Howard tinha como objetivo criar mais uma sociedade alternativa que um desenho de cidade alternativo. Soria y Mata, por seu lado, tinha como objetivo criar mais um desenho alternativo que uma sociedade alternativa. J Tony Garnier props um desenho de cidade distribuda em distritos, sob a forma de zoneamento, que separavam as funes urbanas, e no se propunha a qualquer mudana social, mas sim tornar o espao mais belo e suportvel. A maneira como trataram a infra-estrutura de suas propostas de cidades se assemelham na escolha do meio de transportes que iriam privilegiar. A estrada de ferro , para os trs autores, o modo de transporte estruturador de seus desenhos de cidade, embora cada um use-a de modo diverso. Para Howard a ferrovia era um anel virio que estabelecia o limite externo entre a cidade

  • 17

    e o campo. O anel ferrovirio era, nesse caso, um elemento segregador entre o espao urbano e o campo, impedindo que houvesse uma relao direta entre os dois. A ferrovia era, tambm, o meio de transporte indicado como estruturador do territrio, servindo de ligao entre os diversos ncleos urbanos denominados de Cidades Jardins e a Cidade Central, a capital. O territrio foi concebido sob a forma de um outro crculo maior de cidades com uma capital eqidistante de seus satlites, situada no centro. Soria y Mata usou a ferrovia como eixo estruturador da Cidade Linear e sua infra estrutura, fazendo com que de seu eixo nascessem as ruas transversais e paralelas. A forma importante para o autor como meio de se estabelecer a estrutura urbana. Os terrenos limtrofes da cidade poderiam ser destinados para a produo agrcola. O limite lateral entre a cidade e o campo estaria distncia de uma quadra do seu eixo central. A ferrovia situava-se no eixo da cidade, e era vista como fator de integrao, embora dividisse a cidade em duas partes. Ela serviria como principal meio de transporte no interior da cidade, e de ligao entre as diversas cidades de uma regio. Para o autor essa seria a maneira de tratar o territrio. Como j afirmamos acima, Garnier inovou a forma de pensar a cidade quando formulou, pela primeira vez, o conceito de zoneamento urbano. A ferrovia foi fundamental na escolha da forma nuclear como disps as diversas funes urbanas no stio. Ela permitia a perfeita ligao entre os vrios distritos da cidade, alm de servir ao transporte de longa distncia. A escolha da ferrovia como meio de transporte e estruturador da Cidade Industrial foi contemporneo sua poca. Para tanto, vale destacar o carter de centralidade que assumia a estao ferroviria. O autor, com essa escolha, privilegiava as pessoas que fariam deslocamentos a distancias mdias e longas. Para um percurso de pedestre os moradores acessariam somente os servios de escolas e pequenas compras. Para todos os demais usos haveria necessidade de deslocamentos atravs dos trens, face a distncia estabelecida entre os diferentes distritos da cidade: da casa ao trabalho, do trabalho ao comrcio, do comrcio para casa, ou, ainda, da casa s reas de cultura e lazer. Os distritos, na sua concepo, estariam dispostos de tal modo que a ferrovia era o elemento de ligao e transporte, porm a via frrea era tambm o elemento de segregao ao se transformar em obstculo fsico entre os distritos. Ou seja, para se acessar um distrito qualquer, vindo de um outro a p, a via frrea representaria sempre um obstculo. Tony Garnier tratou sua Cidade Industrial como um territrio, inovando, a meu ver, o planejamento urbano. interessante assinalar, por fim, que hoje os trs projetos e seus desenhos podem parecer ingnuos para a atualidade. Devemos, porm, destacar essas iniciativas que, embora sejam denominadas utpicas, representam algumas das primeiras tentativas de entender o impacto do processo de industrializao nas cidades tradicionais, e oferecer solues que rompiam com posturas tradicionais. Por mais erros que cometessem em nome da criao ou salvao da sociedade, essas iniciativas pioneiras formaram a base do pensamento contemporneo do urbanismo e do desenho urbano. Para os trs autores a ferrovia era um meio de transporte. Poderia ou no representar um meio de segregao espacial. Usando o traado da via frrea como elemento de desenho urbano, no a explicitaram como um obstculo fsico e segregador. As ferrovias s tornaram-se explicitamente segregadoras espacialmente quando assumiram seu papel de via expressa, cercadas por muros, com o objetivo de permitir a circulao de trens mais velozes.

  • 18

    NOTAS: 1. Benevolo enumera as causas que permitiram a transformao do ambiente poca da seguinte maneira: a. Aumento da populao, devido diminuio da mortalidade; b. O aumento dos bens e servios produzidos pela agricultura, pela indstria e pelas atividades tercirias, por efeito do progresso tecnolgico e do desenvolvimento econmico; c. A redistribuio dos habitantes no territrio, em funo do aumento demogrfico e das transformaes da produo; d. O desenvolvimento dos meios de comunicao: as estradas de pedgio, os canais navegveis, as estradas de ferro e a navegao a vapor; e. A rapidez e o carter aberto destas transformaes, que se desenvolveu em poucos decnios; f. As tendncias do pensamento poltico com a transformao das formas tradicionais de controle pblico do ambiente construdo (1983;551 e 552). 2. Traduo minha. 3. Lewis Munford, citado por Fishman, reconhece que o trabalho de Howard fez mais que qualquer outro simples livro na direo do moderno movimento de planejamento de cidades (Fishman:1977, 23). 4. Traduo minha. 5. Segundo Potter, na introduo a edio de 1985 do livro Garden Cities of To-morrow, a empresa criada por Howard, a TCPA, publicou durante algumas dcadas um peridico mensal e trabalhou como consultora do governo britnico em algumas grandes propostas de planejamento. Ajudou a formar muitos profissionais ministrando cursos para planejadores, conselheiros e membros de governos locais (1985: ix). 6. Esta cidade foi projetada por Parker and Unwin Architects, contratados pela Garden City Ltd. (Fishman, 1977: 67). 7. Esta cidade foi projetada pelo arquiteto Louis de Soissons, que aproveitou a experincia anterior de Parker e Unwin em Letchworth, para desenhar um layout mais eficiente e consistente (Idem, ibidem: 79). 8. Ter tambm um sistema de ferrovias atravs do qual cada cidade colocada em comunicao direta com a Cidade Central. A distncia de qualquer cidade ao corao da Cidade Central de somente trs quartos de milha, e isto pode ser coberto rapidamente em cinco minutos(Idem; 107). 9. Howard cita que Fazem agora sessenta anos que a primeira ferrovia foi construda de Birmingham a Londres... (Idem; 97). 10. Sua obra foi divulgada pela primeira vez fora da Espanha em 1913 atravs de um relatrio intitulado Rapport Prsent par la Compaia Madrilea de Urbanizacin dans le Premier Congrs International de LArt de Construire Villes et Organisation de la Vie Municipale, de Gand, na Blgica. Esse relatrio sintetizou uma srie de conceitos lanados pelo autor em artigos publicados no peridico El Progresso durante o ano de 1882, na publicao A Cidade Linear: antecedentes e vrios dados acerca de sua

  • 19

    construo de 1884, e que, mais tarde, em 1892 foram traduzidas em uma brochura intitulada Vias Frreas em Tramway de velocidade rpida em cinturo de Madrid Canillas, Hortaleza, Fuencarral, Viclvaro, Vallecas, Villaverde, Carabanchel e Pozuelo, conforme introduo por Benoit-Levy, ao Rapport acima citado. Cita, que a Espanha quela poca j tinha uma poltica de habitao, e uma Associao Espanhola de Cidades Jardins (in Mata, 1984; 7 e 8). 11. Dessa maneira o autor identificava o problema da locomoo nas grandes cidades com a forma de vegetais tentaculares como uma justificativa na adoo da forma linear para o bom desenvolvimento de um meio de transporte e a forma simtrica de sua cidade. Pela lgica estritamente tcnica, uma ferrovia dever usar os terrenos mais planos e atravessa-lo da maneira mais linear possvel. 12. Le Corbusier visitou Tony Garnier em duas ocasies, 1908 e 1946, e escreveu que por volta de 1900, Tony Garnier apresentou uma srie de magnficos desenhos de ilustrao em seu trabalho Cidade Indstrial, o primeiro exemplo de territrio urbano definido como espao pblico e organizado de maneira a oferecer comodidades para o benefcio comum dos habitantes, conforme citado por Mariani (1990; 19). 13. Le Corbusier, como outros arquitetos franceses, afirmava que aps Garnier, os arquitetos que mais contribuiram para o Planejamento Urbano moderno, foram Perret, em segundo lugar, e o prprio Corbusier (Idem; 20). 14. Em nosso caso, o fator preponderante (para a implantao da cidade) uma corrente rpida (de gua) que fornecer a energia para uma estao hidroeltrica que ... gerar energia para as fbricas e a cidade. Existem tambm minas na regio, embora um pouco mais afastadas(Idem; 43). O autor se refere aqui s minas de carvo, situadas a leste do rio, servidas pela ferrovia (ver ilustrao 8). O carvo das minas serviria, tambm, para abastecer as indstrias da regio. 15. Entendemos assim, pois ambos, Soria y Mata e Garnier, no tinham envolvimento com movimentos polticos especficos, como Howard. Eram bons projetistas, que utilizaram-se de uma tendncia de movimento de volta ao campo, que Benevolo denominou da vertente de construo de novas cidades, para projetarem alternativas de desenho e no alternativas de sociedades. Bibliografia Citada BENEVOLO, Leonardo. Histria da Cidade. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1983. CHOUAY, Franoise. L Urbanisme - Utopies et ralits: une anthologie. Paris: ditions du Seuil, 1965. FISHMAN, Robert. Urban Utopias in the Twentieth Century: Ebenezer Howard, Frank Lloyd Wright and Le Corbusier. Massachusetts: The MIT Press, 1982. GARNIER, Tony. Une Cit Industrielle. New York: Rizzoli International Publications Inc., 1990. HOWARD, Ebenezer. Garden Cities of To-morrow. East Sussex: Attic Books, 1985. KOSTOF, Spiro. The city assembled. The Elements of Urban From Through History. Boston, Toronto, Londres: Little, Brown and Company, 1992. SORIA Y MATA, Arturo. La Cit Linaire. Conception Nouvelle pour LAmnagement des Villes. Paris: cole Suprieure des Beaux Arts, 1984.