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Revista Virtual Direito Brasil – Volume 13 – nº 2 – 2019 ISSN 2176-3259 0 REVISTA VIRTUAL DIREITO BRASIL Volume 10 – Número 2 - 2016 Coordenação Maria Bernadete Miranda ISSN 2176-3259

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Revista Virtual Direito Brasil – Volume 13 – nº 2 – 2019 ISSN 2176-3259

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REVISTA VIRTUAL DIREITO BRASIL Volume 10 – Número 2 - 2016

Coordenação Maria Bernadete Miranda

ISSN 2176-3259

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1 Revista Virtual Direito Brasil – Volume 10 – nº 2 – 2016 ISSN 2176-3259

EFETIVAÇÃO E CRISE DOS DIREITOS HUMANOS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA.

EFFECTIVE AND CRISIS OF HUMAN RIGHTS IN

CONTEMPORARY SOCIETY.

Murilo Naves Amaral 1 Gleisson Lucas Cardoso 2

RESUMO: O presente artigo expõe os aspectos jurídicos e sociais que envolvem a aplicabilidade das normas relativas aos direitos humanos na sociedade contemporânea, de modo a analisar, especialmente, o caso brasileiro. Nesse sentido, demonstra também os empecilhos que se manifestam quando se verifica a necessidade de implementação de tais direitos, cujo reconhecimento se deu por meio de um árduo processo de controvérsias que culminaram nas demandas sociais que exigem a supressão das lacunas no tocante a matéria. Diante disso, torna-se necessário ainda, observar que a questão dos direitos humanos, embora positivada, passa por um momento de crise, tendo em vista que a eficácia plena de tais previsões mostra-se profundamente comprometida pelo fato de que as políticas públicas voltadas a essa questão não priorizaram de maneira eficiente a concretização da norma estabelecida em abstrato. Por esse motivo, o presente artigo busca, mediante exposição de exemplos, demonstrar a ineficácia dos direitos humanos no plano concreto ao mesmo tempo em que expõe a importância de se consolidar e efetivar a aplicabilidade desses direitos. PALAVRAS-CHAVES: Direitos Fundamentais. Crise dos direitos humanos. Justiça igualitária ABSTRACT: This article sets out the legal and social issues surrounding the applicability of standards on human rights in contemporary society, in order to analyze especially the Brazilian case. In this sense, also it shows the obstacles that arise when there is a need to implement such rights, whose recognition was through an arduous process of disputes culminating in the social demands that require the removal of gaps regarding the matter. Therefore, it is still necessary to note that the issue of human rights, although positively valued, goes through a time of crisis, considering that the full effectiveness of such forecasts show was deeply compromised by the fact that public policies focused on this issue not prioritized effectively the implementation of the established norm in the abstract. Therefore, this article seeks, through examples of exposure, demonstrate the ineffectiveness of human rights in concrete plan at the same time it exposes the importance of consolidating and carry out the applicability of these rights. KEYWORDS: Fundamental Rights. Human rights crisis. equal justice.

1 Advogado. Professor Universitário. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia- UFU. 2 Professor Universitário. Bacharel em Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC – Uberlândia. Advogado. Pós-graduado em Direito processual civil e argumentação jurídica pela Pontificia Universidade Católica - PUC – MG. [email protected]

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SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Noções introdutórias sobre os direitos humanos. 3. Os direitos humanos e os direitos fundamentais. 4. A crise dos direitos humanos no Estado democrático. 5. O fator econômico como questão determinante na aplicação dos direitos humanos fundamentais. 6. As dificuldades de efetivação dos direitos humanos nas sociedades de classe. 7. A efetivação dos direitos humanos com base na justiça igualitária e na perspectiva das parcelas distributivas. 8. A questão do mínimo existencial e a cláusula da reserva do possível. 9. Conclusão. 10. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O artigo tem entre suas finalidades contemplar em um primeiro momento as

noções iniciais dos direitos humanos, apresentando seus conceitos, bem como as origens

da tutela desses direitos no universo jurídico. Posteriormente, se fará parâmetros entre os

direitos humanos e os direitos fundamentais, de modo a expor os pontos que estes se

encontram na busca por objetivos únicos, ainda que, um possa ser mais abrangente do

que o outro.

Ademais, se tentará demonstrar a crise dos direitos humanos no Estado

democrático, bem como, de onde se origina essa crise. Interessa dizer que a crise dos

direitos humanos não se restringe às questões dentro do campo do direito, pois se passa

também por questões de ordem social, financeira e estrutural, que se caracterizam, por

sua vez, como fatores que contribuem para a não efetivação de tais previsões.

A tentativa de demonstrar a crise prossegue, no discurso de que, um dos fatores

determinantes para a aplicação desses direitos, é o fator econômico, essencialmente o

fator financeiro, que tem grande peso na aplicação e efetivação de políticas humanitárias,

tendo em vista que, a efetivação dos direitos humanos demanda, em muitos casos, grandes

investimentos.

Nesse cenário, se apresentará outros empecilhos na efetivação dos direitos já

mencionados, bem como, nas sociedades de classe, tentando demonstrar aqui os

equívocos oriundos do excesso das visões individualistas da sociedade contemporânea.

Ademais, se buscará demonstrar a aplicação desses direitos com base na justiça igualitária

e na perspectiva das parcelas distributivas, se valendo dos ensinamentos de John Rawls.

Em seguida, será apresentada a questão do mínimo existencial e a cláusula da

reserva do possível, fazendo um cotejamento da aplicação desses institutos, qual deles

deverá prevalecer quando da aplicação dos direitos humanos, bem como as demais

ponderações de relevância ao tema.

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Pretende-se assim solucionar as referidas controvérsias que envolvem a

necessidade de se assegurar os direitos humanos colimados na sistemática jurídica e a sua

efetivação nas sociedades de classes, ponderando-se no sentido de tentar encontrar a

melhor forma de aplicar esses direitos nas classes mais carentes, de maneira a visar à

redução das disparidades existentes.

2. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE OS DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos, concebidos como disposições universais, tratam-se dos

pilares essenciais que devem estar presentes em todos os Estados que prezam pelo sistema

democrático. Nesse contexto, embora muitas vezes verifica-se uma dificuldade em sua

implementação concreta, os direitos humanos se configuram como referenciais

imprescindíveis para o desenvolvimento das sociedades contemporâneas, de modo que a

violação a qualquer de seus preceitos exporia uma crise na sistemática jurídica constituída

e, consequentemente, colocaria todos os membros que compõem o meio social em uma

grave situação de vulnerabilidade.

Com o advento da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 10 de

dezembro de 1948, que até os dias atuais trata-se da máxima referência legislativa no

âmbito do direito internacional, houve a consolidação de um modelo, que por meio da

Organização das Nações Unidas, situou o homem, em sua coletividade, como principal

beneficiário de um ideal comum, cuja característica está no fato de se assegurar liberdades

e direitos básicos que devem reger a construção de uma sociedade, estruturada no objetivo

maior da proteção da pessoa humana. Por representar a consciência histórica que a

humanidade passa a ter de seus próprios valores, conforme ressalta Norberto Bobbio, com

a Declaração de 1948, a afirmação dos direitos passa a ser ao mesmo tempo universal e

positiva:

[...] universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens, positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais proclamados ou idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado.3

3BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 14ª Tiragem. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 30.

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Diante disso, a universalidade dos direitos humanos, que se manifesta no direito

interno de cada país pela concretização dos direitos fundamentais, se institui como o

apontamento hermenêutico que todo o arcabouço legislativo deve se basear, levando em

consideração que a interpretação e a consequente aplicação da norma jurídica somente

terá uma eficácia condizente com o processo democrático, se os valores que sustentam o

ordenamento tiver como foco o atendimento ao caráter humanitário que a constituição da

vida em sociedade exige. Mesmo porque, é a partir das concepções cruciais dos direitos

humanos é que se fortalece o embasamento do Estado de direito, que situa a atuação

administrativa em favor da coletividade, de forma que, em nome do princípio do poder-

dever, a autoridade “é obrigada a tomar toda e qualquer providência em prol do interesse

público”.4

Embora o reconhecimento dos direitos humanos em sua forma plena seja algo

recente, deve-se salientar que o processo de construção do corpo normativo no tocante a

essa matéria é fruto de um processo histórico que consolidou, no decorrer do tempo, ideais

que fortalecem o aspecto kantiano de que o ser humano não se trata de um meio para

atingir um fim, posto que, é o próprio fim a ser atingido, tendo em vista a necessidade de

preservar e de se proteger sua dignidade. Em face de tal cenário, a própria noção de

personalidade que traz ao sujeito as feições da cidadania de direitos e obrigações, se

aproxima dos aspectos relativos à proteção humana, haja vista que, perante esse novo

contexto que se firma, “pessoa é o ser humano ou o que o ser humano sob a ordem jurídica

reconhece como tal”.5

Destaca-se que essa necessidade em situar o homem como um fim em si mesmo

é reforçada à medida que se tem o desenvolvimento do modelo econômico, tendo em

vista que os abusos cometidos pelos grupos dominantes no século XIX, principalmente

na esfera das relações trabalhistas, fez com o que houvesse a necessidade de se

regulamentar determinadas matérias jurídicas, cuja lacuna provocaram inúmeras

violações a dignidade humana6. A solidificação desse processo se dá a partir do momento

4CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 14 ed. Forense: Rio de Janeiro, 1995, p. 08. 5Ibidem, p.32. 6De acordo com o que narra Amauri Mascaro Nascimento as “primeiras leis trabalhistas na Europa foram motivadas pela necessidade de coibir os abusos perpetrados contra o proletariado e, mais diretamente, a exploração do trabalho dos menores e das mulheres. A falta de leis permitiu a utilização do trabalho de menores de 8,7 e até 6 anos de idade nas fábricas e jornadas de trabalho excessivas para as mulheres. Desse modo, surgiram leis sobre a idade mínima para trabalho na indústria e duração diária do trabalho. Leis de previdência e assistência social também foram elaboradas, iniciando a área do direito social hoje denominada de seguridade ou segurança social, abrangendo previdência e assistência social”. “[...] Mais

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que se concretiza no século XX os ideais voltados ao Estado social, cujo marco se deu

com a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919 e,

consequentemente, com às noções de solidariedade, que teve seu ápice com a Declaração

Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Nesse sentido, a análise da construção ao reconhecimento dos direitos humanos e

consequentemente ao direito fundamental à dignidade humana pelos Estados, passa pela

própria consolidação do sistema econômico vigente, cuja necessidade em melhorar as

condições de trabalho e estabelecer uma justiça social mais igualitária serviu de alicerce

na concretização da democracia liberal, ao mesmo tempo que veio atenuar as distorções

verificadas pelo liberalismo econômico.

3. OS DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS.

. A contemplação dos direitos fundamentais estabelecida pelo Estado democrático

origina-se a partir das previsões estabelecidas pelos direitos humanos no âmbito

internacional, de modo que estes tratam-se dos referenciais normativos a serem seguidos

por todas as nações e povos que têm como pressuposto o respeito à dignidade humana.

Sob esse prisma, a concretização dos Direitos Humanos a partir da configuração

dos ideais da dignidade humana, passa a se impor, pela sua própria natureza, não somente

aos Poderes Públicos constituídos em cada Estado, mas também “a todos os Estados no

plano internacional, e até mesmo ao próprio Poder Constituinte, à Organização das

Nações Unidas e a todas as organizações regionais de Estados”, sendo “juridicamente

inválido suprimir direitos fundamentais, por via de novas regras constitucionais ou

convenções internacionais”.7

Por derradeiro, a aplicação da norma jurídica, sobretudo das disposições

constitucionais, aponta para uma perspectiva em que os direitos fundamentais, como

decorrentes dos direitos humanos, tratam-se de vetores hermenêuticos que estabelecem o

melhor sentido no tocante a incidência do sistema legal, de modo que, conforme ressalta

Peter Haberle8, a interpretação constitucional deve atender, entre outras finalidades, o

tarde, as leis trabalhistas não se restringiram a textos eventuais e específicos. Tornaram-se, em alguns países, códigos, inspirados no Code du Travail da França”. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. 36 ed. São Paulo: Ltr, 2011, p.45-46. 7COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 65-66. 8HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997, p.11.

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objetivo de cumprir perante o caso concreto preceitos básicos da justiça, da equidade, do

equilíbrio entre os interesses conflitantes, dos resultados satisfatórios, da unidade e

harmonização, da igualdade social, da proteção efetiva da liberdade e da ordem pública

voltada para o bem comum.

Nota-se que essa relação entre direitos humanos e direitos fundamentais expõe o

aspecto monista do ordenamento jurídico, tendo em vista que não haveria uma dualidade

entre o estabelecido pelo direito internacional e o previsto pelo direito interno, ainda mais

pelo fato de que quando se trata de disposições que visam à proteção da pessoa humana,

há uma sobreposição à autonomia e a vontade dos Estados, pois que, sendo caracterizadas

como normas cogentes ou de jus cogens, passam a prevalecer sobre os todos os demais

regulamentos. Por sua vez, a concretização de tais leis e princípios se instrumentaliza

mediante a incidência dos direitos fundamentais, que no caso brasileiro, conforme

previsto na Constituição Federal em seu artigo 5º, § 1º, possuem aplicabilidade imediata,

ou seja, como bem lembra Alexandre de Moraes9, não necessita de outros mecanismos

para torná-la eficiente.

Nesse sentido, a premissa globalizante dos direitos humanos, cuja incidência

concreta ocorre pela aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, faz com que, em

conformidade aos ensinamentos de Habermas, o “sistema dos direitos”, fundamentado

discursivamente, “ultrapasse o nível de um único Estado democrático”, de maneira que

“o conteúdo semântico dos direitos fundamentais exige um “estado cosmopolita” fundado

no direito internacional”.10 Diante disso, como bem lembra Luigi Ferrajolli:

Repensar o Estado em suas relações externas à luz do atual direito internacional não é diferente de pensar o Estado em sua dimensão interna à luz do direito constitucional. Isso quer dizer analisar as condutas dos Estados em suas relações entre si e com seus cidadãos – as guerras, os massacres, as torturas, as opressões das liberdades, as ameaças ao meio ambiente, as condições de miséria e fome nas quais vivem enormes multidões de seres humanos -, interpretando-as não como males naturais, tampouco como simples “injustiças”, quando comparadas com uma obrigação utópica de ser moral ou política, mas sim como violações jurídicas reconhecíveis em relação à obrigação de ser do direito internacional vigente, tal como ele já está vergado em seus princípios fundamentais. Isso quer dizer, em poucas palavras,

9MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1998, v. 3, p.42. 10HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. II, p.317.

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conforme a bela fórmula de Ronald Dworkin, “levar a sério” o direito internacional: e, portanto, assumir seus princípios como vinculadores e seu projeto normativo como perspectiva alternativa àquilo que de fato acontece, validá-los como chaves de interpretação e fontes de crítica e deslegitimação do existente; enfim, planejar as formas institucionais, as garantias jurídicas e as estratégias políticas necessárias para realizá-los.11

Perante tal perspectiva, o que se verifica, é que a construção do corpo normativo

dos direitos fundamentais, que poderão estar explícitos ou implícitos no sistema jurídico,

ultrapassa os fundamentos do catálogo constitucional, haja vista que permite que se

integrem à Constituição as previsões estabelecidas em tratados internacionais de direitos

humanos, ao apregoar matérias, que embora muitas vezes não estejam expressos na Lei

Maior, compõem e complementam o corpo fundamental do texto constitucional.

4. A CRISE DOS DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DEMOCRÁTICO

Antes de se provocar uma celeuma sobre a crise dos direitos humanos, importa

sublinhar algumas características do Estado democrático como, por exemplo, o respeito

às liberdades civis, o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais.

Ademais, conforme expresso no preâmbulo da Constituição de 1988, o ordenamento

jurídico pátrio tem como finalidade maior assegurar o exercício dos direitos sociais e

individuais, que traduzidos na aplicação dos direitos fundamentais expressam a máxima

construída pelos Estados democráticos que é a efetivação de um corpo normativo voltado

à proteção da dignidade humana.

Essa característica que se verifica no preâmbulo constitucional demonstra, de

forma clara, o comprometimento do Estado brasileiro com os valores construídos a partir

do processo de redemocratização, ocorrido durante a década de 1980, que de acordo com

o que destaca Uadi Lammêgo Bulos:

É que, promulgada a Carta de 1988, com a redemocratização e reconstitucionalização do País, ocorreram mudanças significativas, a exemplo da tentativa de buscar a eficácia social das constituições (efetividade), a prevalência do princípio da força normativa da Constituição e o aprimoramento da hermenêutica constitucional. 12

11FERRAJOLI. Luigi. A soberania no mundo moderno. Trad. Carlo Coccioli; Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 46. 12BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.77.

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Nesse cenário, percebe-se a positivação dos direitos humanos por meio da

transcrição dos direitos fundamentais num forte pilar legislativo, que é a Constituição, de

modo que não seja possível a redução desses direitos, pois ao contrário, deve-se permitir

que junto a isso seja adicionado as garantias que os efetivem.

Todavia, surge o seguinte questionamento: se esses direitos supracitados estão

garantidos na Carta Magna, onde então estaria a crise dos direitos humanos? Quais seriam

as possíveis causas? Com base nesses questionamentos tentar-se-á elucidar as possíveis

causas da crise e sua origem, com base nos aspectos doutrinários que permeiam a matéria.

Conforme pontifica Rawls o objeto primário da justiça “é a estrutura básica da

sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais

importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de

vantagens provenientes da cooperação social”.13 Nesse contexto, torna-se imprescindível

expor uma preocupação com a distribuição desses direitos, haja vista a desigualdade de

classes presente na sociedade. Tal questão se mostra mais evidente pelo fato de que os

setores da sociedade mais carentes são aqueles que necessitam de maiores cuidados e,

consequentemente, de maior participação das instituições sociais para a efetiva aplicação

dos direitos voltados à proteção da pessoa humana, pois, como sublinha Roberto Aguiar:

Uma das disciplinas auxiliares da aplicação da lei dos casos concretos é o serviço social. Caracteriza-se o serviço social como uma atividade que reúne conhecimentos hauridos de várias ciências para operacionalizar a assistência a indivíduos, grupos e comunidades no sentido da superação de seus problemas. 14

Aguiar cita em sua obra uma das principais ferramentas de aplicação dos direitos

humanos, em essencial os de 2ª geração, ao citar serviços sociais. Para tanto, é preciso

que se considere o desenvolvimento do Estado na aplicação dessas políticas humanitárias,

para que a defesa desses direitos não seja apenas uma dissimulação. A crise dos direitos

humanos se origina na medida em que esses direitos são institucionalizados não para sua

efetividade, mas para mascarar a prática de determinadas atividades.

13RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. – São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.07-08. 14AGUIAR, Roberto A R. Direito, Poder e Opressão. 2ª Ed.São Paulo: Alfa-Omega, 1984, p. 130.

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Veja-se que os papéis assumidos pelo Estado não se concretizam de maneira

eficaz, tendo em vista que há apenas uma aparência de que existe a defesa desses direitos

para que o poder continue na eminência de sua força, pois como reafirma Aguiar “para

sobreviver, o poder tem de aparentar mudanças”, de modo que se torna “preciso que a

máquina de propaganda e comunicação instile na opinião pública”.15

Para comungar da ideia de Aguiar, cita-se aqui a ineficácia da aplicação desses

direitos por parte do Estado nas regiões periféricas das cidades brasileiras, onde o que de

fato chega ao topo de tais comunidades é basicamente as forças policiais, sobretudo

militares. É óbvio que a questão da segurança pública expõe a própria manifestação de

direitos fundamentais, contudo, não deve o Estado apenas se limitar em tais condutas,

uma vez que, atuando dessa forma, o que se estabelece são posturas opressivas, que

muitas vezes recaem em graves violações de direitos humanos.

Sabe-se que os Direitos humanos vão além da segurança, inclui outros direitos

como: saúde, saneamento básico, moradia, educação etc. Entretanto, a maioria desses

direitos é negada aos moradores dessas comunidades que compõem boa parte do território

das cidades brasileiras, haja vista que o constante patrulhamento de forças especiais de

combate nessas regiões, na realidade trata-se de uma verdadeira politica de exclusão e de

preconceito no tocante a esses locais.

Poderia dizer que se trata de um verdadeiro apartheid social, de modo que direitos

mínimos, como por exemplo, o acesso a uma rede de educação de qualidade, postos de

saúde com bom atendimento, estrutura de moradia, são substituídos somente pela

presença de forças de segurança, cuja atuação ostensiva não é capaz de solucionar os

verdadeiros problemas que rondam essas camadas da população. No documentário

brasileiro intitulado “Notícias de uma Guerra Particular”16, produzido em 1999 pelo

cineasta João Moreira Salles e pela produtora Kátia Lund é possível observar essa

realidade, como por exemplo, quando o ex-chefe da polícia civil do Rio de Janeiro, faz

declarações no sentido de que a polícia mantém os excluídos sob controle. A ideia

apresentada pelo ex-chefe da polícia civil do Rio, ao analisar a política de segurança nos

“morros” da capital fluminense, não apresenta intuito de agir em prol dessas

comunidades, mas sim de reprimir, para que esse setor da sociedade não se rebele ou traga

transtornos ao poder estatal.

15Ibidem, p.139 16NOTICIAS DE UMA GUERRA PARTICULAR. Direção: Kátia Lund; João Moreira Salles. Brasil: 1999.

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10 Revista Virtual Direito Brasil – Volume 10 – nº 2 – 2016 ISSN 2176-3259

Nessa avaliação específica da cidade do Rio, percebe-se que o Estado se faz

presente, contudo, de forma equivocada, ao implantar em regra, apenas políticas

repressoras nessas regiões e, ao deixar lacunas em outros setores da educação, saúde e

lazer, se tornando incapaz de contribuir para a formação e qualificação dos cidadãos.

Uma reportagem que merece destaque da revista “Educação”, com o enunciado

“Educar em meio à guerra”, traz importante observação do pesquisador Cesar de Queiroz

Ribeiro do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), quando proclama dizendo: "a socialização

também se dá no entorno da vida social. É difícil pensar que as pré-condições vão ser

constituídas num ambiente de instabilidade.” 17

A formação educacional feita de cada cidadão nessas comunidades não possui

bases firmes, visto que, o ambiente de formação não é estável e as condições de

aprendizagem também não são, além, do difícil acesso à internet, biblioteca segura, ainda

há dias de confronto nessas localidades onde as aulas são sobrestadas. Nesse prisma, faz-

se necessário anotar que, conforme ressalta Rawls, a estrutura básica deve ser avaliada a

partir da posição de uma igualdade de cidadania, com base na ideia em que se deve

preservar condições equitativas de oportunidade.18

Portanto, torna-se clara a necessidade de se alcançar um posto igualitário que

garanta condições equitativas já definidas pelos direitos, ainda que haja classes sociais

distintas, de maneira que tal objetivo somente será devidamente atingido, caso o Estado

se empenhe mediante investimentos e políticas públicas que sejam capazes de garantir o

mínimo de oportunidades aos mais variados atores sociais.

5. O FATOR ECONÔMICO COMO QUESTÃO DETERMINANTE NA

APLICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS.

A concretização dos direitos humanos fundamentais passa necessariamente pela

análise do sistema econômico vigente, pois caso o modelo estabelecido não permita uma

maior inclusão social ou a manutenção de preceitos mínimos de dignidade quanto à

existência do sujeito, haverá graves violações no tocante a esses direitos, tendo em vista

que sua incidência estará seriamente prejudicada.

17ORTIZ, Fabíola. Educar em meio à guerra. Revista Educação. Disponível em: <http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/153/artigo234702-1.asp>. Acesso em 30 ago. 2015. 18RAWLS, John. Uma teoria da justiça, 2000.

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Apesar do Estado liberal ter trazido inúmeros benefícios ao garantir a plenitude

dos direitos individuais, por outro lado, conforme destaca Dalmo de Abreu Dallari,

“ignorou a natureza associativa do homem e deu margem a um comportamento egoísta,

altamente vantajoso para os mais hábeis, mais audaciosos ou menos escrupulosos”, o que,

por consequência, fez com o que se criasse obstáculos para a proteção dos menos

favorecidos, gerando uma crescente injustiça social, pois limitou-se a estabelecer o direito

de todos serem livres sem, necessariamente, assegurar o poder do exercício dessa

liberdade.19

Em decorrência dessa realidade a concretização efetiva do Estado de Direito,

baseado na justiça social e na dignidade humana se torna cada vez mais complicada, tendo

em vista que é irrefutável a necessidade de compatibilizar o desenvolvimento econômico

com uma ordem social justa, que traga benefícios a toda população. Tal constatação torna-

se mais evidente em países com grandes desigualdades sociais, como por exemplo, os

países latino americanos, que após terem passado por regimes autoritários, não

conseguiram, mesmo com o retorno do processo democrático, consolidar as relações entre

governos e sociedade, que, particularmente em relação aos pobres e membros

marginalizados do meio social, têm sido caracterizadas pelo uso ilegal e arbitrário do

poder, de forma que o alcance da proteção aos direitos humanos fique constantemente

comprometido.

Por essa razão, as crises provenientes da incompatibilidade da economia de

mercado com os ideais democráticos, assim como a ausência de políticas públicas que

negligenciaram as necessidades básicas da população, impediram a aplicabilidade plena

dos direitos humanos fundamentais no âmbito da sociedade, tendo em vista que, embora

estejam positivados, encontram no fator econômico o empecilho para a sua concretude.

No caso brasileiro observa-se a presença desse cenário, uma vez que apesar de ter

avançado no processo de industrialização, não conseguiu abandonar suas principais

características de subdesenvolvimento, como por exemplo, as enormes disparidades

existentes entre áreas urbanas e rurais e o fato de boa parte da população viver ainda sem

condições de garantir o mínimo de subsistência.

Na verdade, apesar desses países terem propiciado garantias de manutenção dos

direitos mínimos que regulamentam a vida privada, no que tange aos direitos sociais a

19DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 277.

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12 Revista Virtual Direito Brasil – Volume 10 – nº 2 – 2016 ISSN 2176-3259

eficácia não foi a mesma, considerando que a manutenção das desigualdades não foi

suprida e que o acesso ao mínimo existencial das maiorias dos membros que compõem a

sociedade ainda se encontra longe de se tornar realidade. Nesse sentido, apesar de que,

nos termos do que leciona Pedro Lenza20, a “ordem econômica tem por fim (objetivo),

em igual medida, assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça

social”, o que se verifica é uma verdadeira inversão dessa disposição, impedindo, assim,

que os direitos humanos fundamentais possam ter uma incidência mais ampla e presente

no meio social.

O grave desencadeamento desse fato é que à medida que o modelo econômico

avança, verifica-se uma ascensão do processo de negação aos direitos sociais, que

mediante a pregação pela existência de um Estado mínimo, abandona-se o povo no

tocante a efetivação de seus direitos e, consequentemente, restringe a cidadania e às

liberdades políticas. Em contrapartida, se mantêm os privilégios das classes com maior

poder aquisitivo no meio social em detrimento da brutal carência de direitos daqueles que

se situam nos grupos subalternizados.

Dentro deste contexto, deve-se salientar que o esforço para consolidar os direitos

fundamentais na sociedade contemporânea, requer o conhecimento das causas e dos

fatores econômicos que produzem e fazem aumentar os aspectos determinantes da

pobreza e da desigualdade de renda, de maneira a buscar compreender os mecanismos

jurídicos, políticos e institucionais relativos à proteção desses direitos, já que a

distribuição assimétrica de riquezas não seria apenas uma questão de natureza social, mas,

sobretudo, uma violação da ordem jurídica vigente que tem como base os fundamentos

do Estado democrático.

6. AS DIFICULDADES DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

NAS SOCIEDADES DE CLASSE

Os problemas existentes na não efetivação dos direitos humanos são diversos, mas

cumpre-nos enumerar aqui os mais consistentes. Para isso devem-se frisar as distorções

da sociedade individualista contemporânea, cujo pensamento advém desde as declarações

provenientes das revoluções burguesas do século XVIII.21

20LENZA. Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12 ed. São Paulo: Saraiva; 2008, p. 709. 21Segundo Perelman a ideia de que são os homens, livres e iguais em direitos, que constituem o único fundamento da ordem política, em virtude de um contrato social, se desenvolve a partir de meados do século XVII, nutre o pensamento do Século das luzes e culmina nas proclamações e nas declarações americanas e

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13 Revista Virtual Direito Brasil – Volume 10 – nº 2 – 2016 ISSN 2176-3259

Não obstante os direitos individuais terem sido de grande relevância no

desenvolvimento da sociedade, com a constitucionalização do Estado social, outros

direitos foram reconhecidos, de modo a priorizar uma sociedade mais justa e igualitária,

com vista à consolidação dos direitos sociais e, consequentemente, nos ideais voltados a

trazer oportunidades de crescimento a todos, de maneira a reduzir as desigualdades

existentes entre as classes. Contudo, lamentavelmente, embora tenha sido reconhecido os

fundamentos da solidariedade e da justiça social, as distorções das concepções

individualistas perduram na sociedade moderna, se tornando, portanto, um empecilho

para aplicar de maneira correta as políticas públicas de implementação dos direitos

humanos.

Alguns podem até se indagar, essas pessoas em especial residentes dessas regiões

mais carentes como é o caso dos moradores das periferias dos centros urbanos brasileiros,

não pensam em mudança? Acomodam-se? Para responder a esses questionamentos, se

utilizara dos escritos de P. Ollier anotado por Perelman em seu livro:

Deram-se conta de que, nessas condições, a liberdade igual, pressuposta pela autonomia da vontade não passava de uma ficção. ‘A liberdade do assalariado de recusar o contrato que lhe é oferecido é inteiramente teórica. Ela é proporcional à sua independência econômica, ele tira seus recursos apenas de seu trabalho e não pode adiar por muito tempo fechar o contrato. Cedo ou tarde ele terá de aceitar as condições do patrão. A alienação da força do trabalho no contrato de trabalho, expressa e fundamenta, a um só tempo, a alienação social’.22

Partindo dessas considerações, ao se fazer a prática interpretativa da questão,

trazendo para a situação fática real das cidades brasileiras, percebe-se que, os moradores

dessas regiões são obstados de buscar mudanças pelo fator econômico, ao não encontrar

oportunidades devido às lacunas deixadas pelo Estado, ou seja, essas pessoas são forçadas

a aceitar sob a condição em que vivem, em meio ao tráfico, a violência policial, as guerras

urbanas entre facções e consequentemente a intensos tiroteios.

Ainda, além de a sociedade individualista/patrimonialista e o fator econômico

desfavorável serem pontos negativos para aplicação desses direitos, não há infelizmente

francesas do século XVIII, que caracterizam a ideologia individualista e burguesa dos direitos do homem e do cidadão. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo, Editora Martins Fontes, 1996, p. 220. 22P. OLLIER apud PERALMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo, Editora Martins Fontes, 1996, p. 221.

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14 Revista Virtual Direito Brasil – Volume 10 – nº 2 – 2016 ISSN 2176-3259

parceria entre os poderes para desenvolver os direitos humanos nessas camadas sociais,

tornando assim, obstaculizada qualquer política altruísta em tais regiões.

Com fulcro nesses insucessos do Estado frente à aplicação dos direitos humanos

fundamentais, torna-se pertinente remeter as palavras de Conrado Hübner Mendes, que

propõe parceria dos poderes em busca de uma melhor aplicação constitucional desses

direitos, vale conferir:

Assim, não haveria prioridade, hierarquia ou verticalidade entre instituições lutando pelo monopólio decisório sobre direitos fundamentais. Haveria, ao contrário, uma cadeia de contribuições horizontais que ajudariam a refinar, com a passagem do tempo, boas respostas para questões coletivas. Separação de poderes, nesse sentido, envolveria circularidade e complementaridade infinitas. 23

Desse modo, pode-se confirmar o fito que se busca para tentar refrear os efeitos

da crise dos direitos humanos, a busca homogênea dos poderes para lograr êxito num

mesmo objetivo. A proposta apresentada por Mendes é pertinente, visto que, com essa

ligação entre os órgãos na tomada de assuntos que envolvam discussão de garantias

fundamentais, bem como, dos direitos humanos, seja decidido de maneira mais

democrática, evitando, assim, condutas contrárias à concretização de tais direitos.

A presença policial unicamente na periferia das cidades brasileiras não pode

efetivar os direitos aqui colimados, pois deve chegar lá também politicas voltadas à

educação segura, saneamento básico, estrutura de moradia, lazer com segurança, outras

políticas humanitárias que, existem como direito, mas de fato, não passam de uma ficção.

E é por isso que se traz a defesa da parceria dos poderes, inclusive uma atuação mais

participativa de órgãos como, por exemplo, o Ministério Público, que como ressalta as

anotações de Alexandre de Morais:

A Constituição Federal, visando, principalmente, evitar o arbítrio e o desrespeito aos direitos fundamentais do homem, previu a existência dos Poderes do Estado e da Instituição do Ministério Público, independentes e harmônios entre si, repartindo entre eles as funções estatais e prevendo prerrogativas e imunidades para que bem pudessem exercê-las, bem como criando mecanismos de

23MENDES, Conrado Hübner, Tese de Doutorado em Ciência Política pela USP. Direitos Fundamentais, separação de poderes e deliberação. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-05122008-162952/pt-br.php>. Acesso em 30 ago. 2015.

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controles recíprocos, sempre como garantias da perpetuidade do Estado democrático de Direito.24

Nesse caminho, o que se pontua acima não é a invasão de um dos poderes no

tocante aos outros, mas a cooperação mútua na efetividade dos direitos humanos e por

consequência dos direitos fundamentais, de maneira a alcançar a justiça igualitária

mediante a efetivação de medidas que visem à concretização de diálogos institucionais

entre os poderes estatais e uma maior comunicação com os mais variados setores da

sociedade.

7. A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS COM BASE NA

JUSTIÇA IGUALITÁRIA E NA PERSPECTIVA DISTRIBUTIVA.

Ao se falar em justiça igualitária não há como deixar de explorar as escritas de

Rawls, uma vez que sustenta sua teoria da justiça numa ótica voltada para a ética e

política, de modo que, com base em uma ideia de justiça como equidade e em ideais

contratualistas, expõe como argumento: de que se pode supor que, todas as partes estão

numa posição original e são iguais, tendo os mesmos direitos na escolha dos princípios.25

Contudo essa perspectiva visa lidar com todos os grupos sociais de maneira

igualitária, sem necessariamente extirpar dessas classes as desigualdades, mas reduzi-las,

tendo em vista que:

Uma pessoa age de um modo muito apropriado pelo menos quando outros não são afetados, com o intuito de conseguir a maximização de seu bem-estar, ao promover seus objetivos racionais o máximo possível. Ora, por que não deveria uma sociedade agir baseada exatamente no mesmo princípio aplicado ao grupo e, portanto, considerar aquilo que é racional para um único homem como justo para uma associação de seres humanos? 26

Percebe-se que, Rawls tenta transmitir a ideia por meio de sua teoria, de que se

todos estão na posição original e desconhecessem sua riqueza ou pobreza27, e

trabalhassem pela maximização do bem estar em prol do grupo, se teria uma justiça com

24MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 402. 25RAWLS. Uma teoria da justiça. p. 20-21. 26Ibidem, p. 25. 27Ibidem, p. 20-21.

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16 Revista Virtual Direito Brasil – Volume 10 – nº 2 – 2016 ISSN 2176-3259

equidade, refugando as distorções do pensamento individualista da sociedade

contemporânea. Em face de tal cenário é proposta, dentro de uma perspectiva

contratualista, as bases de uma concepção de justiça a partir de um consenso original,

estabelecendo, para isso, princípios para a estrutura básica da sociedade.

Na posição original de pessoas livres, racionais e de igualdade, é que se tem a

preocupação de promover seus objetivos aceitando, portanto, os princípios de justiça

como articuladores dos termos básicos do grupo social. Para Rawls, “[...] a ideia

norteadora é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto

do consenso original”.28

Nesse diapasão, irrompem vários conflitos de interesse entre esses indivíduos,

pois, há os que compartilham dessa ideia e os que não comungam da mesma, por diversos

motivos, como por exemplo, quanto à distribuição de benefícios, dentre outros. Assim,

mostra-se necessário a aplicação de uma justiça social que determine a repartição de

vantagens, estabelecendo um acordo para uma distribuição adequada.

Para isso, se estabelece dois princípios de justiça: inicialmente o primeiro afirma

que cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades

básicas, iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as

demais pessoas, o segundo princípio da teoria de Rawls, discursa que todos merecem ter

as mesmas oportunidades, e que as desigualdades econômicas e sociais, como

desigualdades de riqueza, são justas se resultarem em benefício dos menos favorecidos

na sociedade.29

Os princípios elencados acima se aplicam a estrutura básica da sociedade,

controlando a atribuição de direitos e deveres, sobre as vantagens econômicas e sociais.30

Rawls confia na efetivação dos direitos humanos por meio da aplicação desses princípios,

de maneira que conforme demonstra em seus ensinamentos:

A teoria da justiça como equidade tenta arbitrar entre essas tradições concorrentes, em primeiro lugar propondo dois princípios de justiça para servirem como guias na efetivação, pelas instituições básicas, dos valores da liberdade e da igualdade, e depois definindo um ponto de vista segundo o qual esses princípios aparecem como mais apropriados do que outros para a

28Ibidem, p. 12 29Ibidem 30Ibidem, p. 64.

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natureza dos cidadãos de uma democracia, se eles forem considerados como pessoas livres e iguais.31

Todos esses preceitos declamados, não quer dizer ferrenhamente que a

distribuição de direitos não pode haver proporções desiguais, nesse sentido Rawls admite

essa forma de aplicação, sobretudo, ressalva que uma distribuição desigual de alguns

desses valores pode ser feita, desde que, traga vantagens para todos.32 Faz-se a aplicação

do segundo princípio organizando as desigualdades sociais, econômicas de modo que

todos se beneficiem.

Sendo assim, haverá injustiça se a aplicação desses direitos for desigual e não

beneficiar a todos. Numa concepção geral de justiça, não se institui medidas quanto às

desigualdades permissíveis, somente exige que a posição original de todos seja

melhorada. Visando essa melhora nos grupos sociais, Rawls reflete sobre o segundo

princípio da teoria da justiça, e encontra nesse principio diversas interpretações

hermenêuticas, selecionando uma delas, a igualdade democrática.33

Ademais, observa-se que Rawls acredita na aplicação dos direitos humanos e na

sua efetividade com base nesses dois princípios, e conclui a interpretação dos mesmos

enunciando nos seguintes aspectos:

(1) Cada pessoa tem direito igual a um sistema plenamente adequado de liberdades e de direitos básicos iguais para todos, compatíveis com um mesmo sistema para todos. (2) As desigualdades sociais e econômicas devem preencher duas condições: em primeiro lugar, devem estar ligadas a funções e a posições abertas a todos em condições de justa (fair) igualdade de oportunidades; e, em segundo lugar, devem proporcionar a maior vantagem para os membros mais desfavorecidos da sociedade.34

Nesse ínterim, passa-se ao exame da efetividade desses direitos na perspectiva

distributiva, ainda em Rawls. Ao expor a justiça distributiva na teoria da justiça, o autor

preconiza que:

O principal problema da justiça distributiva é a escolha de um sistema social. Os princípios da justiça se aplicam à estrutura básica e regulam o modo como suas mais importantes instituições

31RAWLS, John. Justiça e democracia. tradução Irene A. Paternot; seleção, apresentação e glossário Catherine Audard. – São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 207. 32Op. cit, 2000, p. 66. 33Ibidem, 2000, p. 70. 34Op. Cit, 2000, p. 207-208

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se organizam formando um único sistema. Ora, como já vimos, a ideia da justiça como equidade é usar a noção de justiça procedimental pura para lidar com as contingências de situações particulares. O sistema social deve ser estruturado de modo que a distribuição resultante seja justa, independentemente do que venha a acontecer Para se atingir esse objetivo, é necessário situar o processo econômico e social dentro de um contexto de instituições políticas e jurídicas adequadas.35

Vê-se que, Rawls demonstra preocupação com a criação de instituições políticas

e econômicas que garantem uma justiça social e, sobre o modo em que, tanto o sistema

político, assim como, o econômico, deve ser organizado para essa contribuição. Afirma

ainda, que “é claro que a justiça das parcelas a serem distribuídas depende das instituições

básicas e de como elas alocam a renda total, isto é, os salários e outros rendimentos

acrescidos de transferências”.36 O cerne da questão contudo, consiste em como deve ser

feita a distribuição dos bens sociais, para que seja justa nas concepções de Rawls.

Para ele essa distribuição deve partir da posição dos menos favorecidos, tendo

como parâmetro os mais carentes. O autor aposta nas instituições básicas quando expõe

as parcelas distributivas, e vai considerar a aplicação dos princípios da justiça, se os

vencimentos dessas classes mais precárias, possibilitar a maximização de seus direitos

em longo prazo, vejamos:

A questão de saber se os princípios da justiça são ou não satisfeitos gira, portanto, em torno da questão de saber se a renda total dos menos favorecidos (salários mais transferências) possibilita a maximização de suas expectativas a longo prazo (obedecendo às restrições da liberdade igual e da igualdade equitativa de oportunidades.)”37

O trecho acima ratifica o raciocínio tecido acima, de que, essa distribuição e

aplicação de princípios são adequadas se os grupos carentes estiverem se desenvolvendo,

aumentando suas expectativas, reduzindo assim, a diferença de classes sociais, tendo,

portanto, igualdade de oportunidades.

As instituições efetivam a aplicação desses direitos, mas apenas quando sua

utilização é voltada no sentido de visar o bem geral, buscando a equiparação das classes,

deixando assim, a concepção individualista e procurando não excluir as classes mais

35Op. cit, 2000, p.303. 36Ibidem, 2000, p. 305. 37Ibidem, 2000, p.306.

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carentes, mas trazê-las a um patamar de desenvolvimento, oportunidades e condições tais

como da classe burguesa.

Caso o intuito dos poderes que regulam o cumprimento das funções dessas

instituições não for este, estar-se-á diante de um governo de aparências, segundo Rawls:

“São essas instituições que correm risco quando as desigualdades de riqueza excedem um

certo limite; e, da mesma forma, a liberdade política tende a perder o seu valor, e o

governo representativo só existirá nas aparências”. 38

Convém sublinhar ainda neste sentido, que esse governo de aparências permanece,

devido ao conceito de soberania exercido por esses órgãos. Para isso, faz-se necessário

anotar parte do pensamento de Luigi Ferrajoli, ao se falar em soberania no mundo

moderno, o autor explora parte da constituição italiana, de maneira específica o termo

“soberania popular”, e vai nos dizer :

A bem da verdade, as constituições continuam falando em “soberania popular”; porém, isso não passa de uma simples homenagem verbal ao caráter democrático-representativo dos atuais ordenamentos. “A soberania pertence ao povo”, esta escrito no primeiro artigo da Constituição italiana; mas, acrescenta-se imediatamente, o povo “a exerce na forma e nos limites da Constituição”. Logo, nem mesmo o povo é soberano no antigo sentido de superiorem non recognoscens ou de legibus solutus; e menos ainda o é a maioria, pois a garantia dos direitos de todos – até mesmo contra a maioria – tornou-se o traço característico do estado democrático de direito.39

Neste diapasão, por analogia, pode-se concluir a mesma linha de reflexão de

Ferrajoli, ao vislumbrar a nossa Constituição Federal de 1988, que proclama em seu artigo

1º, parágrafo único: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de

representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”40 Se o poder

investido por nós aos representantes não for utilizado de maneira a governar com justiça,

e distribuição de direitos e oportunidades iguais, este poder estará apenas descrito na

norma constitucional como bem diz Ferrajoli, para uma simples “homenagem verbal.”

38 Ibidem, p. 307. 39 FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno, p. 33. 40BRASIL. Constituição Federal 1988. Brasília: Senado Federal Subsecretaria de edições Técnicas, 2007, p. 13

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Por fim, deve se analisar a questão do mínimo existencial, assim como, a cláusula

da reserva do possível, e verificar entre esses institutos, qual deles deverá prevalecer na

aplicação dos direitos humanos, o cotejamento dessa discussão hermenêutica será

apresentado no capítulo seguinte.

8. A QUESTÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL E A CLÁUSULA DA

RESERVA DO POSSÍVEL

A noção de mínimo existencial constitui-se de um mínimo de satisfação das

necessidades básicas sociais em que o Estado está obrigado a oferecer ao cidadão, para

uma vida digna, em que os agentes públicos não teriam poder de disposição.

Ainda, necessário se torna o estudo do instituto da reserva do possível, pois, além

de servir como parâmetro de definição de mínimo exigido pela norma a ser observado em

sede de direitos fundamentais, mostra-se também, como importante elemento de

limitação da área de discricionariedade do Estado frente à distribuição dos seus recursos

econômicos.

Discursando agora sobre o mínimo existencial, Ana Paula de Barcellos, com

grande propriedade nos ensina dizendo:

A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial) estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível. 41

Tarefa árdua, portanto, é a definição de um conceito final de mínimo existencial,

pois, há diversas necessidades humanas que variam, nessa extensão que objetiva

estabelecer um padrão mínimo de dignidade. Sobretudo, a doutrina tem nos mostrado

41BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 252-253.

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diversos conceitos nesse sentido, que poderá ser utilizado como parâmetro para o presente

estudo.

A fim de buscar uma bússola para a definição de mínimo existencial, sem invocar

demasiados pensadores que advogam esses conceitos, nos valemos dos escritos de

Demetrio Vicenzo Florenzano, este, ao tentar elaborar sua defesa conceitual de mínimo

existencial, o faz com base no art. 7º, IV, da nossa Carta Constitucional que prevê um

salário mínimo “capaz de atender a suas necessi1dades vitais básicas e às de sua família

com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e

previdência social”.42

Retomando os conceitos de Ana Barcellos, no mesmo sentido diz: “o mínimo

existencial que ora se concebe é composto de quatro elementos, três materiais e um

instrumental, a saber: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos

desamparados e o acesso à Justiça”.43 Os autores retromencionados partilham de

conceitos muito próximos, ainda que, com uma dicção diversa um do outro.

Apesar de procedente essas definições de mínimo existencial mencionada por

esses autores, em especial, a de Florenzano, ela não é efetivada pelo Estado, sendo

importante sublinhar que a definição defendida pelo autor esta presente em nossa Carta

Magna. Sobretudo, deparamos com a ineficácia da aplicação dessa norma, tendo em vista,

o salário mínimo estabelecido pelo Governo nacional não ser capaz de suportar os custos

para a implementação desses direito no seio familiar.

Essa efetivação em grande parte das vezes não ocorre, devido à cláusula da reserva

do possível prevalecer em relação aos direitos fundamentais sociais essenciais, quando

demonstrado por parte do Estado a inexistência de recurso, como se verá adiante.

Em sentido amplo, a reserva do possível se condiciona ao limite econômico do

Estado para fornecer meios para a aplicação e garantia desses direitos, em específico os

prescritos num conceito de mínimo existencial. A prestação desses direitos à sociedade e

consequentemente a relevância econômica, colidem, no momento em que, o fundo

financeiro do Estado passa a não suportar o ônus para a efetivação dos direitos estritos ao

mínimo existencial.

Vale ressaltar as palavras recitadas por Ana Carolina Lopes Olsen:

42FLORENZANO, Vicenzo Demetrio. Justiça social, mínimo social e salário mínimo: uma abordagem transdisciplinar. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 42, n. 165, p. 39-50, jan./mar. 2005, p. 47. 43 Op. Cit., p. 258.

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Estes direitos – aliás, como todo direito fundamental que tem uma dimensão prestacional a ser observada pelos poderes públicos, ainda que exclusivamente de proteção – prevêem a realização de condutas materiais pelo Estado, como educação, saúde, previdência. Significa dizer que a obrigação prevista na norma depende de uma atividade a ser prestada pelo Estado que, intervindo no mundo dos fatos, altere-o, fornecendo bens jurídicos antes inexistentes para o titular daquele direito. Nestas condições, a dimensão fática de viabilidade de realização do direito assume uma importância especial. 44

Olsen faz importante anotação, ao dizer que a concretização desses direitos

depende de uma prestação Estatal, contudo, o que se vê é a alegação por parte do Estado

da reserva do possível, para se eximir do dever de oferecer a prestação dos direitos sociais,

bem como, os direitos humanos.

Embora o Supremo Tribunal Federal já tenha dado sua posição quanto à matéria,

no julgamento da Arguição de Descumprimento Fundamental n. 45, de maneira que, com

base no entendimento de Celso de Mello, estabeleceu que não pode a Administração

Pública se esquivar de cumprir as promessas constitucionais sem comprovar a

incapacidade de dotação orçamentária, deve-se salientar que a questão ainda se mostra

bastante preocupante, posto que, por mais que a legislação regulamente previsões

mínimas na aplicação de investimentos e gastos públicos nas demandas sociais, o que se

observa na prática, é um total descompasso entre os direitos assegurados e aquilo que

realmente é efetivado.

Por essa razão, deve-se ponderar que a cláusula da reserva do possível não deve

contribuir para omissões por parte do Estado, no que diz respeito ao investimento nas

políticas públicas. Pois ao contrário, precisa - se fixar critérios mais claros quanto a sua

aplicabilidade, e do mesmo modo, cobrar da rede Estatal a distribuição correta e suficiente

dos recursos financeiros, para garantir os direitos colimados na nossa Carta

Constitucional como condição de cumprimento ao mínimo existencial.

9. CONCLUSÃO

Apesar de o presente artigo não esgotar todas as questões que tratam da efetivação

dos direitos humanos perante a sociedade contemporânea, sobretudo, a brasileira,

44OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, 2008, p. 201.

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observa-se que tais direitos, que se manifestam na esfera constitucional pelos direitos

fundamentais, ainda não conseguiram ter sua aplicabilidade assegurada de forma plena.

Diante disso, verifica-se uma crise no tocante a efetivação da proteção à dignidade

humana, principalmente quando se trata de países periféricos ou em desenvolvimento.

Nesse quesito, o comprometimento em relação à efetividade dos direitos humanos

e consequentemente dos direitos fundamentais, trazem a tona os aspectos que circundam

a crise do Estado democrático, tendo em vista que não se pode conduzir qualquer processo

de natureza popular sem que os pilares da dignidade humana estejam devidamente

constituídos e concretizados.

Por essa razão, o presente artigo estabeleceu um diagnóstico acerca dos graves

problemas que envolvem a ineficácia dos direitos humanos na sociedade contemporânea,

ao mesmo tempo em que, buscou demonstrar a necessidade da implementação de tais

direitos, haja vista que somente a partir desse viés será possível construir um Estado, cujo

fundamento seja a justiça distributiva e igualdade social.

Em face de tal cenário, verifica-se que a efetivação dos direitos humanos está

vinculada necessariamente a própria consolidação de políticas públicas, considerando que

somente com a atuação estatal equilibrada por um aspecto positivo, no sentido de garantir

as bases mínimas de dignidade, somada com sua atuação negativa, de modo a não intervir

em direitos individuais, é que será possível solidificar um modelo consistente que seja

compatível com os ideais da democracia contemporânea.

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