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Revista Decifrar: Uma Revista do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa da UFAM (ISSN 2318-2229) Manaus, Vol. 02, Nº 04 (Jul/Dez-2014) Edição Especial: Amazônia 76 MÁRCIO SOUZA: ICONOCLASTIA NAS METÁFORAS DA OSTENTAÇÃO Iná Isabel de Almeida Rafael Silva (UFAM) RESUMO: O presente artigo tem como objetivo primordial desenvolver uma análise da escrita de Márcio Souza sobre o chamado período áureo da borracha na Amazônia, em dois textos exemplares do escritor: a) o livro de ensaios A expressão amazonense, publicado pela primeira vez no ano de 1977, especificamente os capítulos “O período do imperialismo”, “A vida como em Vaudeville” e “Documentaristas da ostentação”; b) o drama As folias do látex, edições de 1976 e 2010. Na primeira obra, o autor, como ensaísta, utiliza a metáfora do teatro para desmitificar a história do fausto na Amazônia; na segunda, como dramaturgo, vale-se do teatro como estratégia para veicular suas desconcertantes metáforas sobre esse mesmo fausto, mostrando o seu caráter fugaz e ilusório. Neste estudo, focalizo as principais metáforas criadas pelo escritor para representar esse período, mostrando como Márcio Souza reescreve a história de um tempo de ostentação, delírio e completa alienação que foi o período da economia gomífera na região, com os ingredientes do humor, da paródia e da iconoclastia, em diferentes gêneros textuais. Em termos teóricos, adoto a abordagem da metáfora conceptual, de Lakoff e Johnson, e a teoria da carnavalização, proposta por Mikhail Bakhtin. Palavras-chave: Márcio Souza, metáfora conceptual, teatro, carnavalização. ABSTRACT: This article analyzes Márcio Souza‟s writing about the rubber boom in Amazonas in two of his works: a) his book of compositions The amazonense expression, first published in 1977. From this book, we will analyze the chapters “The imperialism period”, “Life like in Vaudeville” and “Ostentation documentarians”; b) the play Latex leaves, 1976 and 2010 issues. On the first one, since the author is an essayist, he uses theatrical metaphors in order to demystify the history of wealth in Amazonas. On the second one, taking advantages of his abilities as a playwright, he makes use of the theater to display his disconcerting metaphors about the forementioned wealth and he shows how swift and illusory it is. This study shows how Márcio Souza rewrites the history of the gum economy period with all its ostentation, delirium and total alienation by way of humor, parody and iconoclasm in different text genres. We will focus on the main metaphors created by the author to represent this period. The theoretical basis of this article is Lakoff ad Johnson‟s conceptual metaphors and Mikhail Bakhtin‟s theory of carnivalization. Keywords: Márcio Souza; conceptual metaphors; theater; carnivalization. 1 A teoria da metáfora conceptual Foram os norte-americanos Lakoff e Johnson (2002) que estabeleceram a teoria da metáfora conceptual. De acordo com essa teoria, a metáfora é vista como algo que está

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  • Revista Decifrar: Uma Revista do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Lngua Portuguesa da UFAM (ISSN 2318-2229) Manaus, Vol. 02, N 04 (Jul/Dez-2014) Edio Especial: Amaznia

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    MRCIO SOUZA: ICONOCLASTIA NAS METFORAS DA OSTENTAO

    In Isabel de Almeida Rafael Silva (UFAM)

    RESUMO:

    O presente artigo tem como objetivo primordial desenvolver uma anlise da escrita de Mrcio

    Souza sobre o chamado perodo ureo da borracha na Amaznia, em dois textos exemplares

    do escritor: a) o livro de ensaios A expresso amazonense, publicado pela primeira vez no ano

    de 1977, especificamente os captulos O perodo do imperialismo, A vida como em Vaudeville e Documentaristas da ostentao; b) o drama As folias do ltex, edies de 1976 e 2010. Na primeira obra, o autor, como ensasta, utiliza a metfora do teatro para

    desmitificar a histria do fausto na Amaznia; na segunda, como dramaturgo, vale-se do

    teatro como estratgia para veicular suas desconcertantes metforas sobre esse mesmo fausto,

    mostrando o seu carter fugaz e ilusrio. Neste estudo, focalizo as principais metforas

    criadas pelo escritor para representar esse perodo, mostrando como Mrcio Souza reescreve a

    histria de um tempo de ostentao, delrio e completa alienao que foi o perodo da

    economia gomfera na regio, com os ingredientes do humor, da pardia e da iconoclastia, em

    diferentes gneros textuais. Em termos tericos, adoto a abordagem da metfora conceptual,

    de Lakoff e Johnson, e a teoria da carnavalizao, proposta por Mikhail Bakhtin.

    Palavras-chave: Mrcio Souza, metfora conceptual, teatro, carnavalizao.

    ABSTRACT:

    This article analyzes Mrcio Souzas writing about the rubber boom in Amazonas in two of his works: a) his book of compositions The amazonense expression, first published in 1977.

    From this book, we will analyze the chapters The imperialism period, Life like in Vaudeville and Ostentation documentarians; b) the play Latex leaves, 1976 and 2010 issues. On the first one, since the author is an essayist, he uses theatrical metaphors in order to

    demystify the history of wealth in Amazonas. On the second one, taking advantages of his

    abilities as a playwright, he makes use of the theater to display his disconcerting metaphors

    about the forementioned wealth and he shows how swift and illusory it is. This study shows

    how Mrcio Souza rewrites the history of the gum economy period with all its ostentation,

    delirium and total alienation by way of humor, parody and iconoclasm in different text genres.

    We will focus on the main metaphors created by the author to represent this period. The

    theoretical basis of this article is Lakoff ad Johnsons conceptual metaphors and Mikhail Bakhtins theory of carnivalization.

    Keywords: Mrcio Souza; conceptual metaphors; theater; carnivalization.

    1 A teoria da metfora conceptual

    Foram os norte-americanos Lakoff e Johnson (2002) que estabeleceram a teoria da

    metfora conceptual. De acordo com essa teoria, a metfora vista como algo que est

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    contido em nosso pensamento, por estar enraizado em nossa cultura. E para se comunicar,

    compreender, ser compreendido e entender o mundo, o indivduo precisa dominar essas

    metforas, compartilhar tal conhecimento, caso contrrio a comunicao afetada de forma

    negativa, prejudicando decisivamente a interao social.

    O conceito que essa abordagem postula est expresso na compreenso do prprio

    nome da teoria conceptual , que traduz a noo de concepo porque conceitualiza

    alguma coisa (SARDINHA, 2007). Nesse sentido, a metfora sempre conceitualiza algo.

    interessante observar que a metfora, segundo essa viso, deixa de ser algo individualizado,

    caracterstico de um gnio criador, para possuir uma generalizao mais abrangente e presente

    nos usurios da lngua. Sendo assim, distancia-se da concepo retrica da metfora, iniciada

    com Aristteles, cujo locus a linguagem. Para a teoria conceptual, o locus da metfora deixa

    de ser a linguagem e passa a ser o pensamento. E, para externar esse conceito contido no

    pensamento, o falante se vale de expresses metafricas, que tm a funo de verbalizar tais

    conceitos.

    Os autores dessa teoria explicam que a metfora no somente uma questo de

    linguagem, de palavras, mas tambm e principalmente uma questo de pensamento e de

    ao, pois, nessa concepo, no se usa a metfora apenas como uma forma de ornamentao

    lingustica, como querem os estudiosos da concepo retrica (tradicional) da metfora.

    A metfora sempre relaciona dois domnios diferentes da realidade: o domnio-fonte e

    o domnio-alvo. O termo domnio utilizado para definir as diferentes reas do

    conhecimento ou experincia humana. Assim, a metfora conceptual pode ser sempre

    representada pela estrutura DOMNIO-ALVO DOMNIO FONTE. Com base nessa teoria,

    podemos mapear uma metfora como A AMAZNIA UM TEATROi, que inclusive foi

    muito utilizada por Euclides da Cunha e Mrcio Souza, nos termos que seguem:

    a) O domnio-fonte aquele a partir do qual conceitualizamos alguma coisa

    metaforicamente. No caso da metfora exemplificada acima, a arte teatral o domnio-fonte;

    b) O domnio-alvo aquele que desejamos conceitualizar. Esse o domnio mais

    abstrato. No exemplo que estamos analisando, o domnio-alvo a Amaznia.

    c) E, por fim, as expresses metafricas, que so as expresses lingusticas atravs das

    quais a metfora conceptual se concretiza na lngua. Por exemplo: em na Amaznia h um

    ator agonizante, o homem e em a regio um palco onde se passam todas as cenas de um

    dos maiores dramas da impiedade humana, temos expresses lingusticas que atualizam a

    metfora da Amaznia como um teatro.

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    Para efeito de um estudo mais acurado, Lakoff e Johnson (2002) e Sardinha (2007)

    especificam os seguintes tipos de metforas:

    a) Metforas estruturais: So aquelas que resultam de mapeamentos complexos, que

    marcam a relao entre domnio-fonte e domnio-alvo. Essas metforas estruturam o

    pensamento e condicionam a ao do falante. Por exemplo, quando o Mestre de cerimnia de

    As folias do ltex afirma que a guerra da borracha (...) foi uma pgina magnfica de

    patriotismo, o que ele faz, na verdade, trazer tona a metfora de base A HISTRIA

    UM LIVRO, o que demonstra que assim mesmo que se pensa a Histria, como sendo um

    livro que est continuamente sendo escrito.

    As metforas estruturais, como se v, so conceituais, pois mapeiam um conceito que

    j est estabelecido culturalmente.

    b) Orientacionais: so as que envolvem uma direo e que so gerais, tendo como

    base a corporeidade. Por exemplo: FELIZ PARA CIMA, TRISTE PARA BAIXO; ou

    BOM PARA CIMA, RUIM PARA BAIXO; etc. Segundo Lakoff e Johnson (2002, p. 60),

    essas orientaes ocorrem devido aos corpos que temos e a forma como ocorrem esses

    movimentos. Os autores afirmam que tais orientaes metafricas no so arbitrrias. Elas

    tm uma base na nossa experincia fsica e cultural. Embora as experincias com as posies

    binrias para cima para baixo, dentro fora etc. sejam fsicas em sua natureza, as metforas

    orientacionais baseadas nelas podem variar de uma cultura para outra. Um exemplo desse tipo

    de metfora ocorre quando Mrcio Souza adverte que a histria da Amaznia um teatro

    arrastado para os temas baixos e para a irreverncia consentida (grifo meu). A expresso

    temas baixos atualiza a metfora orientacional BOM PARA CIMA, RUIM PARA

    BAIXO.

    c) Ontolgicas: so as metforas que no estabelecem os mapeamentos, apenas

    concretizam algo abstrato. E essa concretizao expressa em termos de entidade, que pode

    ser contada, ou medida, etc. um dos casos mais evidentes de metfora ontolgica a

    personificao, sendo que a entidade identificada uma pessoa. Em a bela infanta que

    embala todos os coraes, referindo-se Amaznia, a metfora que subjaz expresso

    metafrica A AMAZNIA UMA MULHER.

    Na teoria da metfora conceptual, a metfora compreendida como um fenmeno

    cognitivo. O conceito metafrico visto como primordial e est contido na mente do falante,

    por meio do pensamento. A partir desse pensamento, deriva-se a expresso lingustica atravs

    da fala ou da escrita. importante compreender que, nessa viso, a expresso lingustica

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    subordinada representao mental, alm de ela ser tambm corporificada, pois, de acordo

    com essa teoria, o corpo humano a base ou a fonte de muitas metforas cognitivas. Logo,

    tanto o conceito metafrico, contido na mente, quanto o corpo humano que a base ou a fonte

    das metforas, so primordiais para o estudo das metforas.

    com base nesse escopo terico que analiso, de forma mais acurada, as metforas de

    Mrcio Souza nos livros A expresso amazonense e As folias do ltex. Na primeira obra, em

    sua segunda parte, selecionei primordialmente as metforas que tm o teatro como domnio-

    fonte e a Amaznia como domnio-alvo; na segunda obra, examinei diversas metforas que

    recriam, cada uma delas, algum aspecto da Amaznia.

    2 A Expresso amazonense: a metfora do teatro

    No segunda parte do livro de ensaios A Expresso amazonense, publicado pela

    primeira vez no ano de (1977), Mrcio Souza dedica quatro captulos ao tema co ciclo da

    borracha na Amaznia, principalmente O perodo do imperialismo e A vida como em

    Vaudeville. Ao falar sobre esse perodo da histria da regio, ele se mostra extremamente

    crtico. Chega a dizer que esse foi o perodo de maior alienao e perda da identidade de toda

    a histria do Amazonas, o perodo da mais avassaladora eroso cultural, porque

    Se ainda era possvel reconhecer uma identidade na velha ordem mercantilista,

    o chamado boom da borracha jogou-a por terra. Frente ao enriquecimento

    rpido e s facilidades oramentrias, as lideranas amazonenses perderam

    todas as perspectivas, sobretudo as da prpria regio. De acordo com a

    cotao da hvea, a regio devia ser sempre mitificada e esquecida (SOUZA, 2003, p. 97).

    Razo disso foi que o europesmo da belle poque nos legou um horror pelo passado,

    esse esprito deformante que traa uma linha entre a sua presena redentora e um passado que

    considerado brbaro e no histrico. A farta circulao de dinheiro gerado pelo

    extrativismo do ltex ocasionou aproximadamente trinta anos de dissipao e sonhos. Dos

    sonhos para os delrio foi um salto, mas aquela circulao de dinheiro era extremamente

    ilusria porque no fincava razes na terra, e, portanto, os modos de vida que ela inspirava era

    tambm um castelo de iluses, apartado da histria da regio:

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    No fim do sculo XIX, centenas de aventureiros chegavam como deportados e

    a mo-de-obra do nordestino comeava a ser desviada para os seringais. Pelos

    sales, nos restaurantes, nos jornais, era possvel ver a face que a alienao

    queria impor. Por essa desenfreada entrega do Amazonas alienao, numa

    fictcia circulao de rendas, o Estado naufragaria definitivamente no delrio

    (SOUZA, 2003, p. 98).

    Esse castelo de iluses era sustentado, na base, pela maior de todas as iluses do

    perodo: a iluso de eternidade do ltex. O que alimentava essa crena na eternidade do

    enriquecimento fcil era a constatao de que a rvore da seringueira tinha um elevadssimo

    poder de regenerao. Sangrava-se a rvore para a extrao do ltex, e ela rapidamente se

    regenerava, tornando-se, em pouco tempo, pronta para novas sangrias. Nesse sentido, Souza

    compara a extrao do ltex com a extrao de ouro, no que elas tm de diferente, numa

    aluso famosa Corrida do Ouro, ocorrida em 1896 e 1897, no Rio Klondyke, no Canad,

    prxima fronteira com o Alasca:

    h um grotesco sentido de eternidade na ideologia da borracha, que a torna

    diferente, por exemplo, da corrida do ouro em Klondyke. Os caadores de

    ouro acreditavam no instante, na prospeco, at que o filo exaurisse a ltima

    pepita. Ento, abandonavam o garimpo para viverem a fortuna ou sofrerem a

    derrota. O coronel da borracha, tambm arrivista e ambicioso, acreditava na

    exclusividade. O ouro pode surgir em qualquer terreno, no privilgio de

    nenhuma rea da terra, enquanto a borracha, esta vem de um organismo vivo,

    que nasce e cresce, identificvel entre as plantas da floresta espalhada por

    Deus no territrio amaznico. A seringueira, ao contrrio do filo do ouro,

    mostrava-se inesgotvel. Uma rvore se regenera, multiplica-se aos milhes.

    J o filo do ouro, metal ardiloso e cruel, desaparece to inesperadamente

    como surge (SOUZA, 2003, p. 99).

    Dessa forma, criou-se em torno da seringueira uma verdadeira atmosfera mstica,

    mitolgica: tratava-se de uma rvore dadivosa, que doava o seu leite para o enriquecimento

    dos homens. Comparada com o ouro, aquela rvore adquiria ares de divindade, enquanto o

    metal frio e ardiloso tinha um lado infernal por gerar um dinheiro maldito. Esta ganncia

    ungida pelo mito vai produzir a alegria dominante que regeu os pacatos extrativistas. Quando

    a opulncia se instala, aquela sociedade cinzenta colore-se, cria msculos e vitalidade. Estava

    fadada a ser eterna pela graa da providncia que havia lhe dado a exclusividade e a

    possibilidade de um filo que se regenerava (SOUZA, 2003, p. 100). Embalados por essa

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    doce iluso, os seringalistas levaram a efeito uma atividade extrativista altamente predatria e,

    por essa e outras razes, a eternidade no durou muito.

    Evidentemente que o foco maior do fausto, quase exclusivo, no era a selva

    amaznica, onde a rvore milagrosa se encontrava, nascida sob a bno da ecologia da

    regio. O foco eram as cidades de Manaus e Belm, que foram transformadas em cidades

    cenogrficas para a apresentao do espetculo em torno do leite que emanava daquelas

    rvores. No havia nenhum interesse, por parte das elites regionais, em trazer tona o

    submundo dos seringais, onde a estupidez humana se perpetrava na forma hedionda da

    escravido velada. Em torno dessa questo havia um silncio cuidadosamente construdo para

    que se pudesse propagandear o lado luminoso e festivo do ciclo: as cidades-prodgio

    encravadas na selva: Manaus e Belm se transformaram em pequenas reprodues da

    Europa, sonhos da boa ganncia materialista, de quixotes e sanchos-panas, da boa comida,

    do banquete eterno, das iguarias finas e vinhos, picardia e liberaes orgisticas nos inmeros

    bordis altamente especializados (SOUZA, 2003, p. 100).

    Mrcio Souza utiliza uma metfora conceptual (LAKOFF e JOHNSON, 2002) para

    descrever o perodo: A atmosfera de Vaudeville que se abateu por trinta anos sobre a regio

    foi condicionada pelo nvel de importncia que a matria-prima da borracha adquiriu em

    relao ao imperialismo (SOUZA, 2003, p. 99). Ou seja, a metfora estrutural, em que:

    a) o teatro o domnio-fonte;

    b) o ciclo da borracha o domnio- alvo;

    c) Vaudeville a expresso metafrica.

    O que vem a ser o Vaudeville referenciado nessa metfora de Mrcio Souza? Trata-

    se de uma forma teatral de entretenimento contempornea do prprio ciclo da borracha de

    1880 a 1930, aproximadamente que predominou no Canad e nos Estados Unidos, e pode

    ser identificada pelas expresses, tambm metafricas, de circo dos horrores e teatro dos

    horrores. O Vaudeville, de uma forma geral, conjugava os seguintes atrativos ao gosto do

    grande pblico: era um espetculo noturno de variedades, com dezenas de artistas, executando

    msicas populares, literatura grotesca, exposies apelativas e sensacionalistas, muitas vezes

    de mau gosto, com temas grosseiros e apelos obscenos. Os nmeros apresentados, variados e

    sem ligao lgica entre eles, reuniam ilusionistas, danarinos, ciganos, comediantes, animais,

    acrobatas, atletas e msicos populares. Os espetculos aconteciam em bares, casas de

    espetculos e cabars, e eram consumidos por audincias masculinas.

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    Falando especificamente sobre Manaus como o teatro de Vaudeville, Mrcio Souza

    credita ao jovem coronel-engenheiro Eduardo Ribeiro, governador do Amazonas na primeira

    repblica, o incio de tudo. O Pensador alimentou o sonho de transformar a capital numa

    espcie de Paris dos Trpicos. O fabuloso errio pblico sua disposio permitia-lhe

    urbanizar, sanear e dilatar a cidade, bem ao gosto do capital estrangeiro injetado no mercado

    gomfero. Segundo ele,

    Manaus foi a nica cidade brasileira a mergulhar de corpo e alma na franca

    camaradagem dispendiosa da belle poque. Os coronis, de seus palacetes,

    com um p na cidade e outro no distante barraco central, pareciam dispostos

    a recriar todas as delcias, mesmo a peso de ouro. A boa vida estava escudada

    por uma inconveniente hipocrisia vitoriana, que era de bom-tom, moderna e

    muito propcia a quem fora educado na rgida sociedade patriarcal portuguesa.

    De um certo ngulo, pareciam perder a definio nacional e aspiravam ao

    estatuto de cidados do mundo. O internacionalismo do lucro burgus e da

    ganncia imperialista seduzia os broncos extrativistas (SOUZA, 2003, p. 109).

    Manaus passou a ser objeto de uma ativa poltica de embelezamento, no sentido de

    equiparar-se a algumas das invejveis cidades europeias. Cidade saneada, urbanizada,

    europeizada nas suas aparncias, o cenrio estava pronto, e o palco disponvel para o

    espetculo de Vaudeville. No dizer de Mrcio Souza (2003, p. 116),

    Manaus foi a primeira construo kitsch brasileira, uma cidade do sonho e do

    delrio, microcosmo das doenas do esprito burgus com toques de selvageria

    e grossura. Cenrio para um vaudeville, seus habitantes souberam fazer desse

    gesto espetaculoso da democratizao reificada da arte, a exorcizao da viso

    abnegada dos costumes coloniais (...) uma cidade que no verdadeiramente

    cidade, mas decorao, cenografia, palco ideal para a reificao colonialista.

    Copiando diretamente a arquitetura, a pompa, os costumes, os coronis de

    barranco no eram propensos, no entanto, ao liberalismo, ou ao bom humor

    burgus que levantava indstrias e feiras industriais como monumentos

    vitria do progresso.

    Escalado para ser o grande astro desse teatro de mau gosto, o seringalista conhecido

    como coronel de barranco capricha no desempenho do seu papel burlesco. Tendo passado

    da indigncia opulncia de um salto, ele encarna perfeio aquele mundo de faz-de-conta,

    que Mrcio Souza pe a nu de forma contundente:

    Olhando as fotografias da poca, eles nos parecem altissonantes e respeitveis.

    Puro engano, essas fotografias nos mostram apenas o lado lusitano e

    enfadonho. Agrupados, penteados, srios, em roupas de festa, cercados pelas

    esposas e filhos, esto empacotados por um cerimonial falso, que o primeiro

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    jornal da poca logo desmente. Por pura convenincia esta a imagem que

    temos daqueles anos nada livres das doenas venreas. Convenincia tanto

    mais grave quando se pensa que esta imagem de bons costumes foi usada

    pelos que vieram nos anos de depresso e quiseram conservar o passado

    (SOUZA, 2003, p. 117)

    Caso tpico de personalidade dbia, o coronel de barranco

    era o patro, o dono e senhor absoluto de seus domnios, um misto de Senhor

    de Engenho e aventureiro vitoriano. Havia, por isso, discrepncias na sua

    atitude: era o cavaleiro citadino em Manaus e o patriarca feudal no seringal.

    Mas esta contradio nunca preocupou ningum. A face oficial do ltex era a

    paisagem urbana, a capital coruscante de luz eltrica, a fortuna de Manaus e

    Belm, onde imensas somas de dinheiro corriam livremente. O outro lado, o

    lado terrvel, as estradas secretas, estavam bem protegidas, escondidas no

    infinito emaranhado de rios, longe das capitais. O lado festivo, urbano,

    civilizado, que procurou soterrar as grandes monstruosidades cometidas nos

    domnios perdidos, poucas vezes foi perturbado durante a sua vigncia no

    poder (2003, p. 111).

    Aps demonstrar que o silncio em torno das monstruosidades perenizadas nos

    distantes recnditos da selva poucas vezes foi perturbado, Mrcio Souza exalta dois

    produtores de cultura (artistas) que operaram na contramo do espetculo da ostentao e

    contriburam para quebrar a tradio daquele silncio estpido. So eles:

    a) O escritor Euclides da Cunha, como ensasta: foi um dos primeiros escritores a

    denunciar a situao de escravido em que se encontravam os nordestinos no submundo dos

    seringais. Sobre os flagrantes que ele observou no interior da selva, escreveu uma srie de

    artigos, que foram reunidos postumamente no livro margem da histria. Na referncia a

    Euclides, Mrcio Souza atualiza a metfora do seringueiro como o Ssifo amaznico no

    interior da selva, uma imagem utilizada tambm por Alberto Rangel no livro Inferno verde.

    Ssifo era uma personagem da mitologia grega, considerado o mais astuto dos mortais, capaz

    de enganar at mesmo a morte e ofender os deuses. Por causa de seus crimes, foi condenado a

    empurrar montanha acima uma pedra de tamanho descomunal, at o dia do juzo, sabendo

    que, ao chegar prximo ao topo da montanha, a pedra haveria sempre de rolar montanha

    abaixo, e ele haveria de fazer tudo novamenteii. O trabalho de Ssifo, portanto, diz respeito a

    uma atividade repetitiva, intil e sem esperana alguma. E era essa a sina do seringueiro,

    como sublinhou Euclides da Cunha. S que, conforme Guedelha (2013, p. 61), o sacrifcio do

    Ssifo amaznico nada tem a ver com rochedo ou montanha, mas com seringueiras e ltex,

    que materializavam a perpetuao de sua vida de escravido e penria;

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    b) O romancista portugus Ferreira de Castro, como ficcionista: autor do romance A

    selva, publicado em 1930, que retrata o dia-a-dia do Seringal Paraso, no rio Madeira,

    dando nfase vida de sofrimentos e privaes alarmantes dos seringueiros naquele ambiente

    ignoto. Dele, Mrcio Souza atualiza a metfora da selva como uma priso sem muros na

    qual o seringueiro irreversivelmente aprisionado. Essa uma imagem recorrente em A selva.

    Uma priso a cu aberto, em que os desmarcados das distncias e a prpria selva como um

    eterno feitor vigilante associam-se aos desmandos do coronel arrivista para encarcerar o

    seringueiro-escravo.

    Os dois so apresentados por Mrcio Souza como exemplos raros de vida inteligente

    em meio quela cultura de verniz, importada, transplantada de chofre para uma terra

    sacrificada. Inmeros poetas se deleitavam com a necrofilia literria e dramalhes eram

    levados cena enquanto centenas de retirantes atravessavam o cais em direo aos seringais.

    Os dois abstiveram-se de subir no palco da Vaudeville tropical, preferindo a impopularidade

    de contrapor ao alarido de Manaus o pesado silncio de um mundo hediondo.

    3 As folias do ltex: o teatro da metfora

    3.1 O vaudeville amaznico

    Aps se servir da metfora do teatro (Vaudeville) para representar a Amaznia em A

    expresso amazonense, Mrcio Souza cria o seu prprio Vaudeville, a que d o nome de As

    folias do ltex, agora por meio do gnero dramtico. Trazido a pblico pela primeira vez no

    ano de 1976, As folias do ltex constitui-se de prlogo, dois atos e eplogo. Nesse intervalo,

    nmeros diversos e variados vo se sucedendo em ritmo acelerado. Apesar da impresso de

    no haver nexo entre esses nmeros, h um fio condutor a articul-los, que justamente o

    contexto do chamado perodo ureo da borracha. Na estrutura do drama, temos a seguinte

    configurao:

    prlogo espetculo eplogo

    atualidade perodo de 1743 a 1918 atualidade

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    1 Ato 2 Ato

    de 1743 a 1896 de 1900 a 1914

    O Vaudeville de Mrcio Souza , na verdade, um metateatro (metavaudeville), uma

    vez que o Mestre-de-cerimnia, ao apresentar ao espectador os nmeros que se sucedem nesse

    espetculo de variedades mltiplas, instaura com a sua fala a conscincia do prprio fazer

    teatral de vaudeville que ali se realiza.

    O primeiro ato apresenta quatro cenas, que so as seguintes:

    a) Cena 1 O cientista francs La Condamine envia da Vila de Ega para Paris um

    relato sobre os povos com que manteve contato em sua viagem pelo famoso Rio das

    Amazonas. Narra como se surpreendeu ao ver os ndios cambebas praticando um esporte

    correndo pelo terreiro da aldeia em busca de uma esfera, impulsionando-a com os ps. A

    descrio da brincadeira por La Condamine permite ao leitor deduzir que se trata do futebol,

    praticado com uma bola de ltex. O cientista fica intrigado com a descoberta daquele objeto

    que desafiava a lei da gravidade, a lei da atrao dos corpos. Quanto quele objeto, vislumbra

    um grande futuro para ele; j quanto ao referido esporte, afirma ser uma atividade capaz de

    enfadar a qualquer homem de esprito.

    Cena 2 A cena abre-se com o popularssimo nmero de Caa Riqueza. Nele, a

    infanta Amaznia, acompanhada do seu padrasto lusitano, tem seus dotes e seu corpo de

    donzela disputados pelo mancebo britnico e o viril americano. Fazem parte da cena tambm

    as cocotes, filhas da Frana, e os seringueiros, caracterizados como a plebe ignara que

    nada sabe. Simultaneamente a essa disputa, algumas informaes pontuais sobre a extrao

    do ltex e a manufatura da borracha vo sendo comunicadas ao espectador: os ndios

    cambebas apresentados como descobridores da borracha, o patenteamento de artigos para

    vesturios utilizando a borracha amaznica por Hancock, o patenteamento de tecidos

    impermeabilizados com a hvea por MacIntosh, o processo de vulcanizao aplicado por

    Goodyear, a libertao do Brasil do jugo portugus no tendo alterado em nada o ritmo de

    vida na Amaznia, entre outros fatos histricos. Nesse nterim, ocorre uma metamorfose:

    repentinamente o Lusitano se transforma em um baro do ltex (coronel de barranco).

    Cena 3 Em meio a diversos flagrantes do ciclo, o Americano e o Britnico

    continuam em disputa pela bela e rica Amaznia. Algumas personagens histricas entram em

    cena: primeiramente o casal Louis Agassiz (naturalista) e Elisabeth. Os dois discutem sobre a

    culinria regional, refletem sobre o aspecto rstico de Manaus e fazem projees sobre as

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    mudanas da cidade no futuro; depois a vez do vice-governador Ramos Ferreira, que

    aparece dizendo que vai mandar aterrar os muitos igaraps que cortam a cidade e derrubar o

    matagal que a circunda, a fim de construir uma cidade realmente civilizada. Na sua

    ideologia, a defesa dos igaraps e dos matos um discurso muito potico de quem no sofre

    com os cupins, os carapans, os mucuins e os candirus.

    Cena 4 Continuam as disputas pela Amaznia. Em pouco mais de dez anos, a cidade

    de Manaus explode. o delrio. Surgem as emissrias da cultura francesa, que so as

    cocotes, com a sua pedagogia sexual. Silvino Santos, o pioneiro do cinema na Amaznia,

    aparece registrando as cenas ao seu redor. Entra em cena o governador Eduardo Ribeiro, que

    passa a enumerar os seus grandes feitos mas contestado pelos seringueiros, que lhe dirigem

    improprios. V-se uma cidade europeia (Manaus) brotar no meio da selva, constri-se e

    inaugura-se o Teatro Amazonas.

    H um entreato que promove a passagem do primeiro para o segundo ato. O entreato

    constitui-se de uma triste notcia trazida a pblico pelo Mestre-de-cerimnias: a morte de

    Eduardo Ribeiro em sua chcara na Estrada de Flores, com o laudo mdico atestando suicdio.

    Noticia-se tambm que o Congresso Estadual, para perpetuar a memria do grande estadista,

    batizou com o nome de Eduardo Ribeiro o nico hospcio da cidade de Manaus.

    O segundo ato conta com trs cenas, como segue:

    a) Cena 1 O escritor Euclides da Cunha entrevistado por dois reprteres do Jornal

    do Commercio aps retornar de viagem pelo rio Purus, e denuncia a situao de escravido

    dos seringueiros no interior da selva. As cocotes organizam uma sesso esprita com o

    Americano e o Coronel de Barranco, que espera receber um esprito francs. Mas quem

    aparece um nordestino (arig) lamentando a sua penria com a seca. Em seguida, apresenta-

    se um nmero de mgica circense, daqueles em que se serra uma mulher ao meio: o

    Americano convida a Amaznia a entrar na caixa do Bolivian Syndicate e pega um enorme

    serrote para cort-la ao meio. Plcido de Castro, que est observando a cena, censura o

    Americano, que quer cortar a Amaznia para poder apossar-se de uma das partes.

    b) Cena 2 Trava-se a guerra de trincheiras entre bolivianos e brasileiros, estes sob o

    comando de Plcido de Castro. Encena-se a compra do Acre pelo Brasil, no Tratado de

    Petrpolis. Os seringueiros, o Americano, o Britnico e as cocotes continuam a permear a

    cena em dilogos constantes sobre o contexto do ciclo da borracha. Anuncia-se o baile de

    carnaval no Ideal Clube. As personagens organizam um bloco chamado Madeira-mamor,

    cada um fantasiado de vago. A Amaznia escolhe ser a locomotiva, a Mad Maria.

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    c) Cena 3 Surge o Stradelli, o conde italiano, o nobre das cachoeiras do Alto Rio

    Negro. Ele se encontra morftico (leproso), tendo contrado a doena em suas viagens pelo

    interior da Amaznia. Ele faz um discurso extremamente crtico sobre o fato de se contentar

    em ser uma caricatura da cultura europeia, abrindo mo de sua prpria identidade cultural. No

    fim da cena, reproduz-se um baile de carnaval no Ideal Clube, no ano de 1918. No meio do

    baile, a locomotiva Madeira-Mamor comea a descarrilhar com os seringueiros, o Britnico,

    o Americano, a Amaznia, as cocotes, etc. todos vo ao cho, numa alegoria da decadncia do

    ciclo.

    Tanto no prlogo quanto no eplogo, a pianista Ernestina Rio Negro, juntamente com

    o Mestre-de-cerimnias e uma atriz, situa-se no presente e, exercendo um olhar para o

    passado, refletem sobre os anos do ciclo da borracha. Dessa forma, abrem e fecham o drama

    vaudevilliano de Mrcio Souza.

    3.2 As metforas mais expressivas

    A partir da teoria da metfora conceptual de Lakoff e Johnson (2002), destaquei as

    seguintes metforas e expresses metafricas presentes no drama de Mrcio Souza, entre as

    muitas ali presentes:

    a) Metfora ontolgica A AMAZNIA UMA MULHER.

    EXPRESSO LINGUSTICA QUE

    VERBALIZA A METFORA

    PERSONAGEM QUE PROFERE

    A vem a bela infanta que embala todos os coraes

    Mestre-de-cerimnias

    A doce Amaznia com seu padrasto Lusitano

    Mestre-de-cerimnias

    O resoluto mancebo britnico e o viril americano, que chegam para disputar o

    seu corpo de donzela

    Mestre-de-cerimnias

    Minha querida menina, no se deixe enganar por esses boatos terrveis

    Lusitano

    Meu leite de ouro... um leitinho de nada

    Amaznia

    Leite que todo mundo quer mamar

    Seringueiro

    A bela Amaznia foi surpreendida pela riqueza

    Mestre-de-cerimnias

    Ela no foi uma pobre ingnua. Teve seus entreveros de amor com o guapo

    Orellana

    Mestre-de-cerimnias

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    Perdeu-se de amor pelo determinado Pedro Teixeira

    Mestre-de-cerimnias

    Sua casa est valorizada, embora merea um pouco mais de conforto

    Mestre-de-cerimnias

    Amaznia agarrada por um dos seringueiros, que a sodomiza

    Diretor

    O Americano convida a Amaznia a se deitar na caixa, e ela aceita porque

    moa curiosa

    Diretor

    Comentrio:

    Temos aqui uma especializao da metfora ontolgica, que a personificao.

    De forma recorrente, a Amaznia representada conceitualmente como uma

    mulher desejvel, cobiada por muitos por causa de sua beleza virginal e,

    principalmente, por causa de sua riqueza.

    b) Metforas ontolgicas O OURO/A SERINGUEIRA UMA PESSOA.

    O ouro um metal diablico, ardiloso e cruel com os espritos fracos

    Coronel de barranco

    Nossa riqueza vem de uma rvore dadivosa, de um vegetal generoso

    Coronel de barranco

    Comentrio:

    O contraponto entre essas duas metforas ontolgicas elaboram uma anttese

    entre a natureza do ouro e a da seringueira, por meio dos adjetivos aplicados a

    cada um desses substantivos. Enquanto a seringueira dadivosa e generosa, o

    ouro diablico, ardiloso e cruel. Sintomaticamente, as duas metforas so

    proferidas pela mesma personagem, o Coronel de barranco, que uma

    personagem-tipo. O alto poder de regenerao da seringueira fez nascer na

    mente dos seringalistas a iluso de eternidade daquela atividade extrativista. A

    rvore no se cansava de dar, para ajudar os homens. O ouro, por sua vez, no

    tinha essa deferncia. Visto pela tica negativa de ser sempre um filo reduzido,

    finito, que apenas alimentava a ganncia e o dio, esse cobiado metal no tinha

    condies de competir com a hvea na apreciao dos coronis de barranco.

    Entre o garimpo e o seringal, era este que recebia a avaliao positiva.

    Evidentemente que essa viso tosca, acrtica, deu vazo a um extrativismo

    predatrio que logo desencadearia a decadncia do ciclo da borracha.

    c) Metfora estrutural A HISTRIA UM LVRO.

    Uma poca que foi uma pgina solene da histria

    Mestre-de-cerimnias

    no h piada mais terrivelmente engraada do que o extrativismo

    Mestre-de-cerimnias

    A guerra da borracha foi uma pgina magnfica de patriotismo, uma lio que

    os acreanos deram ao Brasil

    Mestre-de-cerimnias

    O ciclo foi como uma primavera de folhetim

    Ernestina Rio Negro

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    Comentrio:

    A metfora da Histria como um livro pressupe que ela est sendo escrita, que

    partes j escritas podem ser lidas e interpretadas, que cada lance da histria

    corresponde a uma pgina. Nesse sentido, o Mestre-de-cerimnia parece se

    contradizer ao caracterizar o ciclo da borracha como uma pgina solene da histria e logo depois definir o extrativismo como uma piada terrivelmente engraada, at porque o advrbio terrivelmente ligado ao sentido de piada traduz um paradoxo desconcertante: o extrativismo foi uma piada de mau gosto.

    E em piadas de mau gosto no h espao para solenidades. Quanto pgina de patriotismo, o que temos a idealizao da ao dos brasileiros que invadiram o territrio boliviano e se apossaram da terra alheia pela fora. Muito mais

    crtico parece ser o proferimento de Ernestina Rio Negro. Segundo ela, o ciclo

    foi como uma primavera de folhetim, ou seja, uma histria idealizada como aquelas dos folhetins romnticos, de escritores que fechavam os olhos para a

    realidade circundante e lavravam histrias de grande herosmo, de eterna

    primavera, romanceando o mundo de forma desmesurada.

    d) Metfora estrutural PROSTITUIO CULTURA.

    Este homem est pedindo cultura

    Cocote 1

    Somos emissrias da cultura

    Cocote 1

    Uma noite comigo e voc sair culto

    Cocote 2

    A pedagogia sexual

    Cocote 1

    Voc j experimentou um beijo parnasiano, chri?

    Cocote 2

    Estou na casa das minhas amiguinhas francesas, lendo Baudelaire

    Coronel de barranco

    Comentrio:

    Essa metfora aponta para um dos principais flagrantes do ciclo da borracha: a

    prostituio. De forma irnica, Mrcio Souza relaciona a cultura do perodo

    com a prostituio, numa sociedade altamente falocntrica. Dizendo-se

    emissrias da cultura francesa, as cocotes desempenhavam o papel de fornecer

    aos respeitveis cidados do ltex os desfrutes ansiados. E sobre essa atividade considerada espria passavam o verniz da cultura, para lhe dar uma ar

    de respeitabilidade.

    e) Expresses metafricas para Manaus

    Com o fim de embelezar a cidade, declarei de utilidade pblica vrios

    terrenos particulares

    Eduardo Ribeiro

    Em pouco mais de dez anos, a cidade

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    explode, o delrio Mestre-de-cerimnias

    O crescimento abrupto levantou-se de chofre

    Euclides da Cunha

    Uma joia encravada no meio da selva

    Seringueiro

    A opulenta capital dos seringueiros o fruto das audcias do Pensador

    Euclides da Cunha

    Enfim, o sorriso da civilizao em plena selva

    Seringueiro

    Comentrio:

    Eduardo Ribeiro, o Pensador, sonhou em transformar Manaus em uma

    miniatura de Paris, a paris dos Trpicos. E para pr em prtica o seu sonho, deu

    incio a uma srie de polticas de embelezamento da cidade. Desapropriou um

    sem-nmero de propriedades particulares, decretou aes de saneamento e

    assepsia, importou construes e costumes. De suas audcias, como diz

    Euclides da Cunha, surgiu a opulenta capital dos seringueiros, num crescimento abrupto, que levantou-se de chofre (metfora orientacional DESENVOLVIMENTO PARA CIMA). Em pouco mais de dez anos, a cidade explode, o delrio, como diz o Mestre-de-cerimnias. E para o seringueiro, em sua viso acrtica, a cidade europeizada era uma joia encravada

    no meio da selva. Era tambm o sorriso da civilizao em plena selva. So

    metforas que realam o lado luminoso, festivo do fausto: a cidade-cenrio em

    que Manaus foi transformada para o espetculo do capital estrangeiro.

    f) Expresses metafricas para seringais e seringueiros.

    O seringueiro o homem que trabalha para escravizar-se

    Euclides da Cunha

    Logo v-se renascer um feudalismo acalcanhado e bronco

    Euclides da Cunha

    A dvida torna o seringueiro eterno hspede dentro de sua prpria casa

    Euclides da Cunha

    Veja esta conta de venda de um homem

    Euclides da Cunha

    O sertanejo segue numa gaiola qualquer de Belm, ou Manaus, ao barraco do

    seringal ao qual se destina

    Euclides da Cunha

    Aqui, como l, dois palcos onde se passam todas as cenas de um dos maiores

    dramas da impiedade humana

    Euclides da Cunha

    Vocs no passam de vultos na floresta, de fantasmas impessoais, que nem sequer

    pisaram em Manaus

    Mestre-de-cerimnias

    Comentrio:

    O foco das metforas agora desloca-se do lado luminoso de Manaus para o lado

    sombrio dos seringais. Aqui, o grande gerador de metforas Euclides da

    Cunha, que foi pioneiro na denncia da explorao dos seringueiros pelos

    pates arrivistas. As expresses metafricas utilizadas por Euclides, de uma

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    forma geral, atualizam a metfora conceptual SERINGUEIRO ESCRAVO.

    Em sua viso, os seringais amaznicos de alguma forma reeditavam o

    feudalismo, sistema medieval de explorao do pobre. nesse contexto que o

    seringueiro, em evidentes paradoxos, trabalha para escravizar-se e eterno hspede dentro de sua prpria casa. Vendido como uma mercadoria completamente desvalorizada, aprisionado pela dvida e por uma cadeia de

    circunstncias na selva, o sertanejo uma vtima irreversvel de um sistema

    cruel e desumano que o expolia e escraviza.

    Essas metforas e expresses metafricas que destaquei encontram-se mescladas com

    inmeras outras no corpo da tragicomdia de Mrcio Souza. O que temos aqui apenas uma

    amostra, uma vez que se tornaria exaustivo enumer-las todas, considerando a natureza deste

    estudo. Essa abundncia de metforas contribui para que o texto seja extremamente rico no

    plano imagstico, alm de externar as mltiplas formas de se pensar conceitualmente a

    Amaznia do perodo gomfero por meio de metforas. Usando uma metfora para falar das

    metforas, afirmo que elas desfilam de forma altissonante no texto de Mrcio Souza.

    4 Folias do ltex: iconoclastia carnavalesca

    Nesta seo proponho uma leitura do drama Folias do ltex luz da teoria da

    carnavalizao literria, elaborada pelo terico russo Mikhail Bakhtin. A base terica das

    consideraes que fao aqui o livro Problemas da potica de Dostoivski, no qual Bakhtin

    conceitua carnavalizao literria como uma variedade do gnero srio-cmico em que se d a

    transposio do carnaval para a linguagem da literatura (BAKHTIN, 2013, p. 140). E o que

    vem a ser o carnaval? Segundo ele, trata-se de um

    Espetculo sem ribalta e sem diviso entre atores e espectadores. No carnaval

    todos so participantes ativos, todos participam da ao carnavalesca. No se

    contempla e, em termos rigorosos, no se representa o carnaval, mas vive-se

    nele, e vive-se conforme as suas leis enquanto vigoram, ou seja, vive-se uma

    vida carnavalesca. Esta uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo

    sentido uma vida s avessas, um mundo invertido (BAKHTIN, 2003, p. 140).

    Uma vida s avessas, vivida num mundo invertido em que so revogadas as leis e

    proibies do mundo extracarnavalesco, ou seja, do mundo ordinrio. Essa inverso do

    mundo se processa por meio de algumas categorias que so prprias do mundo carnavalesco:

    a) A primeira categoria o livre contato familiar entre os homens, instaurado pela

    eliminao da distncia hierrquica entre eles: os homens, separados na vida por

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    intransponveis barreiras hierrquicas, entram em livre contato familiar na praa pblica

    carnavalesca (BAKHTIN, 2013, p. 140). Em As folias do ltex isso pode ser observado, por

    exemplo, nos impensveis dilogos intimistas entre o seringueiro e o Coronel de barranco,

    inclusive com o uso da segunda pessoa do singular pelo seringueiro: Patro! Patro! Eras!

    Tiraste o bigode? (SOUZA, 1997, p. 74).

    b) A libertao em relao ao poder de qualquer tipo de relao hierrquica torna os

    gestos, palavras e relaes dos indivduos completamente excntricos do ponto de vista da

    vida extracarnavalesca, a se tem a segunda categoria, que a excentricidade: a

    excentricidade uma categoria especfica da cosmoviso carnavalesca, organicamente

    relacionada com a categoria do contato familiar; ela permite que se revelem e se expressem

    em forma concreto-sensorial os aspectos ocultos da natureza humana (BAKHTIN, 2013, p.

    140). Isso pode ser exemplificado atravs da figura das cocotes, emissrias da cultura

    francesa, com a sua pedagogia sexual e seus beijos parnasianos oferecidos ao Coronel de

    barranco (SOUZA, 1997, p. 74).

    c) A terceira categoria da cosmoviso carnavalesca so as msalliances carnavalescas.

    Elementos separados, isolados, fechados no mundo ordinrio entram nos contatos e

    combinaes inimaginveis que a cosmoviso carnavalesca pe em relao familiar. O

    carnaval aproxima, rene, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado

    com o baixo, o grande com o insignificante, o sbio com o tolo, etc. (BAKHTIN, 2013, p.

    141). o que ocorre quando um reprter do Jornal do Commrcio faz o seguinte comentrio

    sobre Euclides da Cunha, enquanto este respondia uma pergunta feita pelo colega do mesmo

    jornal: esse cara meio leso, dizem que v fantasmas (SOUZA, 1997, p. 97), uma

    observao jocosa sobre um detalhe da biografia do ilustre escritor nacional.

    d) A quarta categoria a profanao, formada pelos sacrilgios carnavalescos, por

    todo um sistema de descidas e aterrissagens carnavalescas, pelas indecncias carnavalescas,

    relacionadas com a fora produtora da terra e do corpo, e pelas pardias carnavalescas dos

    textos sagrados e sentenas bblicas, etc. (BAKHTIN, 2013, p. 141). No texto de Mrcio

    Souza h uma passagem em que a cadeia de explorao no ciclo da borracha recontada por

    meio da aluso parodstica cidade bblica de Sodoma, que fora destruda por causa da

    elevada onda de imoralidade de seus habitantes: A Amaznia agarrada por um dos

    seringueiros, que a sodomiza. No mesmo instante o outro seringueiro repete o ato com seu

    companheiro e sodomizado pelo Coronel de Barranco, que logo atacado pelo americano.

    No final o britnico encerra a cena traando o americano (SOUZA, 1997, p. 97). Aqui, o

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    verbo sodomizar foi utilizado com o mesmo sentido de traar que aparece no final da

    frase. Dessa forma, o autor atualiza a metfora EXPLORAR COPULAR.

    Outro elemento caracterizador da carnavalizao, alm dessas quatro categorias j

    explanadas, a celebrao do riso, da comicidade, que obtida por meio das situaes

    inusitadas, da ironia e da pardia. A pardia, de maneira muito especial, est a servio da

    carnavalizao, porque tem a prerrogativa de subverter a ordem das coisas, romper com o

    mundo e inserir o deboche nos recantos mais srios da vida. Ela tem, portanto, uma natureza

    iconoclasta por meio da qual dessacraliza o sagrado e desloca o que est tradicionalmente

    posto. Em As folias do ltex, tudo isso perceptvel:

    - O autor adota o riso como estratgia de crtica, como na cena de guerra

    entrincheirada entre o Brasil e a Bolvia. Um soldado boliviano pede ao soldado brasileiro

    (seringueiro) que toque uma msica bem alegre em sua flauta: una bien engrazada! Para que

    olvidemos la guerra, los muertos y La hambre. O seringueiro ento responde: t bem. L vai

    uma bem baruienta, e comea a atirar em direo ao boliviano (SOUZA, 1997, p. 106-107).

    - Uma situao inusitada acontece no nmero em que ocorre uma sesso esprita da

    qual participam a Amaznia, as cocotes, o lusitano, o coronel de barranco, o americano e o

    britnico. As cocotes chamam sesso de exerccio de positivismo mstico, enquanto o

    seringueiro a chama de macumba de rico. Quando o esprito baixa, o coronel pensa ser um

    Lamartine, mas quem se apresenta o esprito de Severino, do Brejo do Fiodumagua, que

    surge reclamando da inclemente cerca no serto. Isso deixa os gringos frustrados e irados

    (SOUZA, 1997, p. 100-101).

    - H diversas pardias no texto: a Cano do exlio, de Gonalves Dias; textos de

    Euclides da Cunha, do livro margem da histria; passagens da histria da Amaznia; textos

    de Ermano Stradelli, La Condamine, Eduardo Ribeiro, Louis e Elisabete Agassiz, etc. Todas

    essas pardias cercadas de humor e ironia.

    Na literatura carnavalizada, como preceitua Bakhtin, as personagens so alegricas,

    representam tipos especficos, quase sempre encarnam uma classe ou uma situao. Enfim, a

    carnavalizao promove metamorfoses, travestimentos, quebra de tabus, liberao de instintos

    e desejos que so interditados no mundo extracarnavalesco. Da o sentido do apelo

    transgresso e profanao, deslocando a vida do seu curso habitual. Pelas pginas de As

    folias do ltex desfilam personagens-tipo que so verdadeiras metonmias a parte que

    simboliza o todo ou o singular que simboliza o plural como o americano (simbolizando os

    americanos), o britnico (simbolizando os britnicos), o lusitano (simbolizando os

  • Revista Decifrar: Uma Revista do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Lngua Portuguesa da UFAM (ISSN 2318-2229) Manaus, Vol. 02, N 04 (Jul/Dez-2014) Edio Especial: Amaznia

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    portugueses) e o coronel de barranco (simbolizando os coronis de barranco de uma forma

    geral). Em seu Vaudeville, Mrcio Souza recria o mundo amaznico do ciclo da borracha,

    pondo aquele mundo de ponta-cabea e injetando na histria os fortssimos temperos do

    humor e da pardia, numa postura evidentemente iconoclasta, dessacralizando dolos e

    ideologias bem assentados na tradio. Ao optar pelo gnero srio-cmico de vaudeville para

    representar a histria do ciclo da borracha como uma espcie de tragicomdia, o que ele faz,

    na verdade, produzir uma belo exemplar de literatura carnavalizada.

    Consideraes finais

    As consideraes desenvolvidas nesta pesquisa permitem concluir o que segue, a

    respeito do escritor Mrcio Souza, seja como ensasta seja como dramaturgo, no que tange

    representao do ciclo da borracha na Amaznia:

    a) ele ps abaixo uma srie de mitos que a tradio construiu em torno do perodo,

    entre eles a falcia da boa vida manauara na belle poque. Nesse sentido, sua escrita tem

    carter desmitificador e iconoclasta;

    b) ele foi um grande metaforista, considerando metaforista aquele que cria metforas

    ou delas se serve para divulgador suas ideias. O estudo procura comprovar que as metforas

    habitam seus textos e se revelam ostensivamente a cada pgina;

    c) os textos analisados mostram um autor que se valeu, em grande medida, da

    carnavalizao literria como estratgia de produo artstica. Por meio dessa estratgia,

    mostrou uma face da Amaznia ignorada pela crnica oficial, revelando o lado avesso do que

    se sabia sobre a regio e instaurando uma nova forma de olhar a histria, sem os vus da

    idealizao mas instrumentalizado pelo humor e pela pardia em direo a uma reescrita

    crtica dessa histria.

    Com base nessas concluses, postulo que o livro A expresso amazonense e o drama

    As Folias do ltex devem ser lidos de forma vertical, sendo que a leitura de um conduz

    leitura do outro, pelo fato de eles se complementarem e estabelecerem entre si dilogos

    constitutivos. De qualquer forma, tanto a leitura de um quanto a leitura de outro (ou a leitura

    dos dois em conjunto, o que prefervel) contribui decisivamente para se pensar de forma

    crtica a regio amaznica, em geral, e a cidade de Manaus, em particular.

    i Todas as metforas listadas aqui foram extradas de As folias do ltex, de Mrcio Souza.

    ii Conforme o dicionrio: www.dicionarioinformal.com.br

  • Revista Decifrar: Uma Revista do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Lngua Portuguesa da UFAM (ISSN 2318-2229) Manaus, Vol. 02, N 04 (Jul/Dez-2014) Edio Especial: Amaznia

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    CUNHA, Euclides da. Amaznia um paraso perdido. Manaus: Valer; Governo do Estado do Amazonas; EDUA, 2003.

    GUEDELHA, Carlos Antnio Magalhes. A metaforizao da Amaznia em textos de

    Euclides da Cunha. Florianpolis/SC: UFSC, 2013 (Tese de Doutorado).

    LAKOFF, George & JOHNSON, Mark. Metforas da vida cotidiana [Coordenao de

    traduo Mara Sophia Zanotto]. Campinas, SP: Mercado das Letras; So Paulo: WDUC, 2002

    (Coleo As Faces da Lingustica Aplicada).

    RANGEL, Alberto. Inferno verde. 5 ed. revista. Manaus: Valer, 2001 Resgate II

    SARDINHA, Tony Berber. Metfora. So Paulo: Parbola, 2007. (Lingua[gem], 24).

    SOUZA, Mrcio. A folias do ltex. Manaus: Edio da Prefeitura Municipal de Manaus,

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    ________. A expresso amazonense do colonialismo ao neocolonialismo. 2. ed. Manaus: Valer, 2003.